crise sucessória de 1580

09 Dec 2020 por "Rui Carita"
História Política e Institucional

Tal como aconteceu no continente português, também a Madeira se teria dividido entre os partidos apoiantes das aspirações de D. António, prior do Crato (1531-1595) e de Filipe II de Castela (1527-1598). Estiveram ao lado de D. António as famílias dos capitães donatários do Funchal, Machico e porto santo, embora nem todos se tenham empenhado muito, com exceção de alguns membros da família Câmara – mas esses só se empenharam no continente – e o donatário de Machico, D. Francisco de Portugal (1550-1582), 3.º conde de Vimioso, que veio a morrer na batalha naval de Vila Franca do Campo, ao largo dos Açores. Na ilha da Madeira citava-se o deão da Sé do Funchal, Francisco Henriques (c. 1535-1600), sobrinho do padre Leão Henriques (1515-1589), confessor do cardeal D. Henrique (1512-1580), o Dr. Gaspar Gambôa (?-1582), juiz de fora de Machico, que fugiu para os Açores, onde veio depois a ser justiçado e, provavelmente, outros elementos do clero e da burguesia local, mas sem especial importância. Ao lado do pretendente castelhano vamos encontrar as câmaras e os funcionários régios, que, sem terem tomado especificamente qualquer partido, acabaram assim por apoiar e aceitar sem preconceitos a realeza de D. Filipe I, o mesmo se tendo passado com a maior parte da nobreza e da burguesia. Entre os fidalgos madeirenses será de mencionar João Bettencourt de Vasconcelos, que passara a viver na ilha Terceira, sendo depois capitão-mor da cidade de Angra, onde foi justiçado como partidário de Filipe II, por determinação de Manuel da Silva Coutinho (1541-1583), conde de Torres Vedras e lugar-tenente de D. António.

 

Palavras-chave: condes de Vimioso; corregedores; donatários; encarregado de negócios da guerra; nacionalismo; representação em Cortes.

 

 

Com o falecimento de D. Sebastião (1554-1578) em Alcácer Quibir, tinha sido aclamado Rei o seu tio-avô, o cardeal D. Henrique, que fora regente a partir de 1562 e assegurara entretanto toda a gestão corrente do reino, sendo raríssimos os documentos efetivamente assinados pelo seu sobrinho-neto. Já muito debilitado fisicamente, D. Henrique ainda considerou a possibilidade de pedir dispensa dos votos para se casar e assegurar descendência, mas tal não aconteceu. Entre os possíveis candidatos à sucessão encontrava-se outro neto de D. Manuel (1469-1521), D. António, prior do Crato, filho do infante D. Luís (1506-1555) e de Violante Gomes, a “Pelicana”, com a qual o infante se poderá ter casado em segredo. O cardeal já havia mandado levantar processo, tendo deposto a favor de um possível casamento, entre outras pessoas, Joana de Eça (c. 1480-c. 1573), mulher de Pedro Gonçalves da Câmara (c. 1480 – c. 1550), dama da Rainha D. Leonor (1458-1526) e camareira-mor da Rainha D. Catarina (1507-1578), tal como depôs o sobrinho, Martim Gonçalves da Câmara (c. 1539-1613), que fora escrivão de puridade de D. Sebastião. O cardeal, no entanto, não aceitou a hipótese do casamento do infante e da “Pelicana”, oficializando a situação de D. António como bastardo, e invalidando assim qualquer possibilidade de ele subir ao trono.

Os restantes netos do Rei D. Manuel, como Rainúncio de Farnésio (1569-1622), D. Catarina de Bragança (1540-1614), Manuel Felisberto de Saboia (1528-1580) ou mesmo D. João de Bragança (1543-1583), marido e primo de D. Catarina, estavam todos mais ou menos dependentes hierarquicamente de Filipe II, filho da Imperatriz D. Isabel de Portugal (1503-1539) e de Carlos V (1500-1558), dificilmente podendo opor-se às pretensões, aliás legítimas à época, do Rei de Castela, Aragão, Catalunha, Navarra, Franco-Condado, Países Baixos, Milão, Nápoles, etc. A ideia desenvolvida nos séculos seguintes e, mais especialmente, nos meados do séc. XX, de um Rei português, D. António, e de um Rei espanhol, Filipe II, não tem sentido nos finais do séc. XVI: primeiro, porque os reis eram todos primos, e, depois, porque a ideia de Espanha como um reino homogéneo é muito posterior. A defesa de os apoiantes de D. António serem nacionalistas e da queda da monarquia nacional em 1580 não é outra coisa senão uma tentativa de politização da história, pois tais conceitos não existiam à época.

O cardeal-Rei ainda mandou reunir cortes em Almeirim para se decidir a sucessão (a primeira reunião foi no convento de S. Francisco daquela vila, a 11 de janeiro de 1580), mas o cardeal faleceu a 31 de janeiro e não chegou a nomear sucessor, apesar de deixar uma junta de governadores, praticamente todos apoiantes da realeza de Filipe II. A junta era constituída pelo arcebispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida (1531-1585), por D. João Telo de Meneses, D. Francisco de Sá de Meneses (c. 1510-c. 1583), D. Diogo Lopes de Sousa e D. João de Mascarenhas. Deste grupo, só D. João Telo era contrário à sucessão de Filipe II de Castela. O cardeal já havia manifestado, entretanto, a sua intenção de nomear Filipe II como sucessor ao trono, tendo havido uma nítida continuidade governativa.

Um dos exemplos de continuidade a apontar é o de Jácome Ribeiro de Leiria, ouvidor do Funchal (Ouvidorias), colocado na ilha da Madeira pelo cardeal D. Henrique, provavelmente na sequência da morte no Funchal do 4.º capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), 1.º conde da Calheta (Calheta, condes da), falecido a 4 de março de 1580. O ouvidor recebeu entretanto no Funchal o governador da capitania, nomeado pelo cardeal-Rei e pelo novo conde da Calheta, João Gonçalves da Câmara (1541-1580), que optou por ficar na corte. A nomeação recaiu no irmão, Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), conforme já fora determinado por D. Sebastião, em 1571. O novo governador tinha ficado prisioneiro em Alcácer Quibir, mas foi dos primeiros prisioneiros a serem resgatados, tomando posse da capitania em abril de 1580. Com a morte inopinada do jovem 2.º conde da Calheta, a 4 de junho de 1580, presumivelmente vítima do surto de peste que então grassou no país, o irmão regressou ao continente, provavelmente entre setembro e outubro de 1580. No Funchal ficou o ouvidor, que logo após o falecimento do cardeal-Rei, solicitou aos governadores a revalidação da mercê. O ouvidor do Funchal teve confirmação da chancelaria portuguesa de Filipe II a 10 de setembro de 1580, ou seja três dias antes da aclamação do Rei pela Câmara de Lisboa. A provisão registada na Câmara do Funchal foi feita em nome de “Dom Filipe, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves” e é assinada pelos doutores Pero Barbosa e Jerónimo Pereira de Sá "do seu concelho e seus desembargadores do paço" (ABM, CMF, RG, t. 3, fl. 178v.). Pero Barbosa era então um dos mais influentes desembargadores do paço e já em 1579 emitira um longo parecer sobre a sucessão do cardeal, indicando decididamente o nome de Filipe II de Castela.

D. António fora aclamado em Santarém, a 19 de junho de 1580, e depois em Lisboa, mas existem dúvidas sobre se alguma vez assumiu efetivamente o Governo. Em breve seguiram cartas para vários pontos do país e para os arquipélagos atlânticos. Para as ilhas, foi seu portador António da Costa, cavaleiro fidalgo da casa real, que partiu de Lisboa em 9 de julho e estava na Madeira nos finais desse mês. Tal como acontecera com as câmaras açorianas, este delegado deve ter entregado nas da ilha da Madeira as cartas de D. António a anunciar a sua aclamação, datadas do mesmo dia 9 de julho de 1580, acompanhadas de certificados da Câmara de Lisboa a confirmarem a sua aclamação na capital. Não consta que o mandatário António da Costa tenha sido hostilizado na Madeira, mas nada ficou na Ilha a atestar a sua passagem. No entanto, em breve chegava a Lisboa a notícia da sua passagem pela Madeira e da possibilidade de ter ali sido aclamado D. António, o que parece não ter acontecido. Nenhum dos capitães-donatários se encontrava na sede da sua capitania, pelo que nem as câmaras, nem os seus ouvidores quiseram tomar qualquer responsabilidade, aguardando o desenrolar da situação no continente, como se passou com o então ouvidor do Funchal.

Com a entrada em Lisboa de D. Fernando Alvarez de Toledo (1507-1582), 3.º duque de Alba, e aclamado Filipe II na Câmara de Lisboa, logo se constituiu um Governo chefiado pelo duque e apoiado num conselho de assessores. Era uma sequência do anterior sistema dos governadores, sendo o conselho constituído por Pedro de Alcáçova Carneiro (c. 1510-c. 1584); pelo bispo de Leiria, D. Pedro de Castilho (c. 1530-1615), que também tinha sido bispo de Angra e que depois viria a ser vice-Rei de Portugal; pelo jurista Paulo Afonso; por D. João da Silva (1528-1601), conde de Portalegre e neto de Diogo de Azambuja (1518) e por Duarte de Castelo Branco, meirinho-mor. Como já citámos, constituiu-se assim uma certa continuidade governativa, que tentou que nada se alterasse significativamente até à tomada de posse oficial de Filipe II.

Na Ilha, não podemos deixar de salientar o papel desempenhado pelo então bispo do Funchal, D. Jerónimo Barreto (1543-1589), o todo cauteloso amigo dos Jesuítas, que mediante a promulgação das Constituições Sinodais da Diocese, a 18 de outubro de 1578 – e embora aquelas só tenham sido editadas em 1585 –, tinha limitado igualmente a margem de manobra dos elementos do clero. Assim, não seriam muitas as tomadas de posição individuais, levando todo o bispado a acatar as determinações do cardeal-Rei e depois a realeza de Filipe II, como registaria o conde de Lançarote, D. Agustin de Herrera y Rojas (1537-1598), em 1583. Claro que terão existido posições diferentes, como, em princípio, as do deão da Sé, como viriam a referir as autoridades castelhanas, mas que não terão passado de posições individuais e pessoais, se é que existiram, não chegando verdadeiramente ao domínio público.

Não encontramos na Madeira, como adeptos do prior do Crato, qualquer quadro diretivo, entre morgados ou elementos camarários, e.g., salvo o deão da Sé, e mesmo isso não passa de rumor, pois não existe nenhuma comprovação. Desta forma, e depois de consolidada a posição de Filipe II em Lisboa, pronunciaram-se as Câmaras do porto santo, de Machico, de Santa Cruz e do Funchal. Ao contrário dos Açores, a Madeira esperou sempre uma definição concreta do poder central para depois tomar as suas atitudes, nunca se empenhando decididamente em nenhuma das lutas partidárias que dividiram o país. Esta falta de empenho permitia à Ilha, caso se alterasse o quadro de forças geral, estar sempre do lado vitorioso. Daí a opinião, por vezes expressa pelos partidários de Filipe II, de que a Ilha era toda partidária de D. António, como expressou depois, a D. Francés de Alava y Belmonte (c. 1518-1586) o capitão Gaspar Luís de Melo; e a apreensão do duque de Alba, de que ali tivesse sido aclamado D. António, em julho de 1580, o que não resiste à análise, nem oferece qualquer recorte. Mais tarde, o conde de Lançarote citaria como afetos a D. António o comissário do convento de S. Francisco, Fr. Manuel de Boaventura, e Fr. Tomás de Tentúgal, confessor das freiras de santa clara. No Caniço, era apontado Diogo Álvares Arruda e, em Santa Cruz, Pedro moniz e Freitas Grilo. Publicamente e a assumir a sua opção só parece ter havido o Franciscano Fr. João do Espírito Santo e o comerciante francês Pedro de La Randueta, que pagaram com a vida a opção que fizeram, mas que só aparecem na Madeira depois da instalação de D. António, prior do Crato, nos Açores.

Com a ascensão ao trono de Filipe II, a Madeira enviou logo dois procuradores para defenderem os seus interesses, para o que foram escolhidos João Rodrigues Mondragão e Martim Mendes de Vasconcelos, vereadores das Câmaras do Funchal e de Machico, e que devem ter estado presentes nas cortes de Tomar. Com a ida do Rei para Lisboa, surgem cartas no Funchal sobre assuntos vários, muito provavelmente acionados pelos procuradores da Madeira. A primeira carta, datada de 2 de outubro de 1581 (Sintra), refere um galeão de prata da Nova Espanha, o célebre La Gallega, dos maiores navios do seu tempo, que tinha arribado à Ilha e cuja carga era necessário fazer chegar a Sevilha. Nesta sequência, a 5 de dezembro manda-se pagar aos procuradores que se tinham apresentado ao Rei 100$000 réis pelos dinheiros da renda da imposição aplicada às obras da fortificação e autoriza-se que a descarga de pão no Funchal, assim como a sua arrecadação, sejam pagas também pelos dinheiros da fortificação, dado o bom andamento das obras: “sobre estando as obras da fortificação da dita cidade, como dizem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 2, doc. 137). Parece não haver dúvidas de que houve, pois, uma tentativa camarária de assalto aos dinheiros da fortificação (Defesa).

De imediato, e ao mesmo tempo que despachou favoravelmente estes assuntos, o Rei iniciou contactos para a nomeação de um governador para a Madeira, mas não sem ouvir demoradamente várias opiniões a esse respeito, inclusivamente de madeirenses. Com a instalação de forças afetas a D. António nos Açores, despachou para a Ilha um corregedor da sua confiança acompanhado de forças militares, João Leitão (c. 1540 – c. 1602), ao qual fora atribuída a tarefa de determinar a prisão de D. António em Portugal, com indicação de se encontrar encarregado dos “negócios da guerra”. A situação evoluiu nos meses seguintes com o apoio de forças francesas à causa do prior do Crato e, inclusivamente, pelo aparecimento de adeptos ativos da causa de D. António na Madeira, pelo que, perante o oferecimento do conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598), que se encontrava nas Canárias, Filipe II mandou-o avançar de imediato para o Funchal com forças ali recrutadas. Os elementos em causa, um frade franciscano e um comerciante francês, viriam a ser executados, como já se referiu, mas o recorte local da causa do prior do Crato teria sido quase perfeitamente nulo.

Resta acrescentar que era partidário de D. António, prior do Crato, o assumido 3.º conde de Vimioso e capitão de Machico, D. Francisco de Portugal (1550-1582), que acompanhara seu pai, D. Afonso de Portugal (1519-1579), 2.º conde, e seu irmão, D. Luís de Portugal (1555-c. 1620), à fatídica batalha de Alcácer Quibir. Resgatados os jovens D. Francisco e D. Luís de Portugal por interferência do duque de Medina Sidónia, D. Alonso Pérez de Gusmán (1550-1615), e recolhidos em Sanlucar de Barrameda, na província de Cádis, D. Francisco assumiu o título de conde, e em breve apoiava as pretensões de D. António ao trono de Portugal e visava, inclusivamente, o lugar de seu condestável. Com a instalação nos Açores e a passagem por porto santo da armada francesa de apoio ao prior do Crato, nela embarcou o juiz de fora de Machico, Dr. Gaspar Gambôa, para aquele arquipélago. Os Vimioso, no entanto, nunca se tinham sequer deslocado à sua capitania e, entretanto, a câmara já tinha assumido o seu apoio à realeza de Filipe II de Castela, tendo enviado ao continente o vereador Martim Mendes de Vasconcelos. Como pormenor, alguns anos depois, o herdeiro da casa, D. Luís de Portugal, reivindicaria os direitos ao título e à capitania, ainda em tempo de Filipe II, capitania entregue, entretanto, a Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), descendente de Zarco. Falecido sem descendência Tristão Vaz da Veiga, D. Luís de Portugal conseguiu reaver a capitania de Machico.

 

Rui Carita

(atualizado a 01.03.2017)

Bibliog.: manuscrita: AGS, Guerra Y Marina, legados 127, 133 e 421; ABM, Arquivos Particulares, n/class., “Demanda da capitania de Machico”, 1583-1604; “Parecer do Doutor Pero Barbosa sobre a sucessão do Cardeal-Rei D. Henrique”, c. 1579; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, docs. avulsos, mç. 2; Ibid., Registo Geral, t. 3; impressa: ARMAS, António Rumeu de, “El Conde de Lanzarote, Capitán General de la Isla de La Madera (1582-1583)”, Anuario de Estudios Atlanticos, n.º 30, 1984, pp. 393-492, separata; BARRETO, Jerónimo, Constituições Synodaes do Bispado do Funchal, Feitas & Ordenadas por Dom Jerónimo Barreto, Bispo do Dito Bispado, Lisboa, António Ribeiro, 1585; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. ii, Funchal, SRE, 1991; MENESES, Avelino de Freitas de, Os Açores e o Domínio Filipino (1580-1590), 2 vols., Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1987; PORTO, Nuno Vasconcelos, “Três Madeirenses Nacionalistas”, Das Artes e Da História da Madeira, n.º 21, 1955, pp. 9-14; n.º 22, 1956, pp. 36-47; n.º 24, 1956, pp. 6-8 e 48-56; n.º 25, 1957, pp. 45-53; n.º 27, 1957, pp. 46-53; n.º 28, 1957, pp. 48-55; SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O Reinado de D. António, Prior do Crato, Dissertação para o Doutoramento em Ciências Históricas apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1956, texto policopiado; VAZ, João Pedro, Campanhas do Prior do Crato (1580-1589). Entre Reis e Corsário pelo Trono de Portugal, Lisboa, Tribuna da História, 2005; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.

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