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Economia e Finanças História Económica e Social

A definição da economia da Madeira convoca vários aspectos, desde o seu espaço e posicionamento no processo histórico peninsular e atlântico à preocupação das autoridades no sentido de assegurar a riqueza que torna sustentável a manutenção do espaço e da população.

Teoria: os ciclos

A primeira questão a merecer a nossa atenção prende-se com a tão celebrada teoria dos ciclos económicos da Madeira. De acordo com os seus arautos, o processo económico da Madeira articula-se de acordo com uma afirmação cíclica de produtos. Todavia, esta teoria, que teve o seu apogeu nas décs. de 50 e 60 do séc. XX, deixou de ter adeptos nos começos do séc. XXI. As suas bases foram lançadas em 1929 com Lúcio de Azevedo, sendo a teoria reforçada 20 anos depois com Fernand Braudel, conquistando grande adesão na historiografia brasileira. Ambos argumentam que o processo económico das ilhas se articulou de acordo com o regime produtivo de monocultura. Ainda em 1949, Orlando Ribeiro esclarecia que, no caso da Madeira, não era possível encontrar rastros de monocultura no regime de exploração agrícola madeirense, mas Joel Serrão, em 1950, insistia em definir o “ciclo dos cereais”. A mesma opinião também surgiu nas Canárias, onde, volvidos 20 anos, Elias Serra Rafols respondia a Francisco Morales Lezcano, enunciando que nunca existiu um regime de monocultura, uma vez que a economia canária foi dominada por uma variedade de culturas cuja atuação não é uniforme no tempo e no espaço. Mais tarde, Frédéric Mauro, secundado por Vitorino Magalhães Godinho, retomou a questão, defendendo que a economia insular se definiu apenas por um regime de produtos dominantes e não de monocultura. Vitorino Godinho introduziu, neste contexto, um novo conceito operatório: complexo histórico-geográfico.

Na Madeira, a ideia vingou sobretudo junto de historiadores e eruditos, sendo difícil encontrar esta ideia expressa em qualquer análise de carácter económico. Ficou assim assente o ciclo dos cereais, do açúcar ou ouro branco, do vinho, do turismo, da banana e, certamente, da autonomia. A partir de 1979, esta forma de ver a história chegou à Madeira através da análise da história da arte e urbanismo da cidade, surgindo pela pena de António Aragão a ideia de que a cidade teve dois momentos distintos que definiram diversas formas de concretização artística e urbanística: a cidade do açúcar e a cidade do vinho. O impacto que o livro de António Aragão teve no meio académico e no público interessado levou a que a ideia acabasse por vingar.

Uma análise aturada da economia insular mostra-nos que a mesma não se regeu por princípios exclusivistas, de acordo com a premência das solicitações externas. Pelo contrário, o seu desenvolvimento socioeconómico processou-se de forma variada, sendo a exploração económica dominada pela procura externa em consonância com as condições e recursos do meio, e com as solicitações da economia de subsistência. É difícil, se não impossível, conseguir definir um ciclo em que impere a monocultura de exportação num espaço amplo e multifacetado como é o do mundo insular. Os modelos, embora perfeitamente delineados, não se ajustam à realidade socioeconómica, que é extremamente variada e enriquecida com múltiplos matizes. Embora alguns produtos, como o trigo, o açúcar, o vinho e o pastel, surjam em épocas e ilhas diferenciadas como os mais importantes e definidores das trocas externas, não são os únicos na economia insular. Na verdade, a dominância destes produtos sucede apenas no sector da exportação e nunca na realidade global da Ilha, onde por vezes outros são mais dominantes enquanto fonte de riqueza familiar e de subsistência.

Os ciclos de monocultivo são apenas a parte visível das exportações, pelo que limitar a análise económica a essa dinâmica é uma atitude reducionista que apenas reconhece a importância dos produtos com maior peso nas exportações. A Madeira é um microcosmo definido pela variedade de espaços ecológicos que não se compadecem com uma unicidade agrícola. Esta condição dominante levou a uma sistematização do devir socioeconómico em ciclos.

A documentação é unânime na afirmação de que o empenho do ilhéu não se resume apenas ao produto que mais gira nas relações com o exterior. Há em todos uma certa preocupação com a autossuficiência que milita a favor da manutenção das culturas tradicionais que medram, lado a lado, com as dominantes no comércio externo. Esta polivalência produtiva manteve-se sempre no devir socioeconómico insular. A dominância de um ou de outro produto nas relações com o exterior não destrói essa polissemia produtiva, nem retira o empenho das gentes laboriosas nesse processo. Atesta-o as posturas municipais, nas quais, nos diversos sectores económicos, se expressa uma diversidade de interesses e o movimento quotidiano de produtos.

Em todas as dinâmicas produtivas e comerciais que marcaram e definiram o processo histórico madeirense é gritante a extrema dependência da Ilha em relação ao exterior. A Europa detém, neste contexto, uma posição dominante, firmando-se como centro de orientações políticas e económicas. Essa situação comum ao mundo insular define uma das principais peculiaridades deste espaço: a extrema fragilidade e dependência da sua economia em relação ao velho continente. Para isso, em muito contribuiu a posição hegemónica das cidades-capitais dos impérios peninsulares, bem como a disponibilidade de recursos e meios das sociedades insulares. Por outro lado, é evidente que a afirmação de um produto no sector das exportações não é possível sem um sistema de policultura, principalmente em universos restritos como as ilhas. Assim, os canaviais subsistem se for possível assegurar um vasto hinterland de culturas de subsistência. Deste modo, os ciclos serão a visão mais deformada do processo económico da Ilha, a caricatura de uma realidade que é muito complexa.

Entender a economia das ilhas e a sua história é, assim, reconhecer um estatuto diferenciado a estes espaços económicos. Nas ilhas, domina a diversidade geoeconómica, fruto da configuração geográfica. Na Madeira, esta situação provoca um escalonamento de culturas, impedindo a sua sobreposição.

O espaço e os seus produtos

O estudo e entendimento da história económica da Madeira só podem ter lugar no quadro do espaço atlântico criado pelo europeu a partir de princípios do séc. XV. A partir dessa altura, o Atlântico definiu-se como um espaço excecional dos impérios europeus, no qual as ilhas assumem uma função privilegiada no cruzamento de Rotas, bem como na circulação de pessoas e produtos. A ilha foi, assim, um dos primeiros exemplos da afirmação económica europeia além das fronteiras peninsulares e a primeira demonstração do que viria a ser o mercado atlântico, materializando de forma clara as solicitações do velho continente e as esperanças e descobertas do Novo Mundo.

O Atlântico tornou-se uma realidade de análise historiográfica a partir da déc. de 40 do séc. XX, sendo o exemplo dado pela historiografia norte-americana, preocupada em rastrear as origens europeias. O conceito de espaço atlântico começou a ser definido em 1947 com Louis Wright, mas terá sido o Mediterrâneo de F. Braudel que convocou a atenção a partir da déc. de 50. Os finais do séc. XX foram o momento de afirmação da historiografia atlântica. De ambos os lados do Atlântico, surgiram trabalhos em que este se constituiu como o objeto principal.

No séc. XX, a história das ilhas atlânticas mereceu um tratamento preferencial no âmbito da história do Atlântico. Primeiro foram os investigadores europeus, como o já referido F. Braudel, Pierre Chaunu, Frédéric Mauro e Charles Verlinden, a destacar a importância do espaço insular no contexto da expansão europeia. Só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular, sendo pioneiros os trabalhos de Francisco Morales Padron e Vitorino Magalhães Godinho. Esta ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas do séc. XX e contribuiu para a abertura do conhecimento histórico às novas teorias e orientações. As décs. de 70 e 80 desse século foram importantes momentos no progresso da investigação e do saber históricos, contribuindo para tal a definição de estruturas institucionais e de iniciativas científicas.

A historiografia foi defendendo única e exclusivamente a vinculação das ilhas ao Velho Mundo, realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Os sécs. XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos de tal relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que produtos como o vinho assumem o papel de protagonistas das trocas comerciais. Os estudos confirmam que o relacionamento da Ilha com o exterior não se resumia apenas a estas situações. À margem das importantes vias e mercados, subsistem outros fatores que ativaram também a economia madeirense desde o séc. XV. As conexões com os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) e com os afastados (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) foram já motivo de aprofundada explanação, que propiciou a valorização da estrutura comercial.

A praça comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano e no litoral americano, e rosário de ilhas da América Central. No primeiro destino, destaca-se a costa marroquina, onde os Portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelos ilhéus. No séc. XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, surge um novo destino e mercado, que pautou as relações nas centúrias posteriores. O novo mundo e mercado significaram tanto a esperança de enriquecimento, como a forma de assegurar a posse de bens fundiários.

O Atlântico não é só uma imensa massa de água polvilhada de ilhas, associando-se a uma larga tradição histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o seu nome. Assim, deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e arquipélagos que se tornaram relevantes no processo histórico do oceano, quase sempre como intermediários entre o mar-alto e os portos litorais dos continentes europeu, africano e americano. No Atlântico, as ilhas anicham-se, de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano, pois apenas os Açores, Santa Helena, Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam. As ilhas foram também espaços criadores de riqueza, sendo a agricultura a principal aposta. Esta exploração obedeceu às exigências da subsistência das populações e às solicitações do mercado externo face aos produtos de exportação. A valorização socioeconómica dos espaços insulares não foi unilinear, dependendo da confluência de dois fatores: primeiro, dos rumos da expansão atlântica e dos níveis de expressão em cada um; depois, das condições propiciadoras de cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou não de uma população autóctone. Nos sécs. XV e XVI, as ilhas e os arquipélagos firmaram um lugar de relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela função de escala económica ou mista: com a função de escala, surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha; como espaço económico, temos as Antilhas e a Madeira; e com a dupla função, económica e de escala, os arquipélagos das Canárias, dos Açores, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe.

O papel da cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (como a vinha e os cereais), não se resumiu apenas à intervenção no processo económico, sendo este produto marcado por evidentes especificidades capazes de moldarem a sociedade, que dele se serviu para firmar a sua dimensão económica. A importância que o sector comercial lhe atribuiu transformou-a numa Cultura dominante em todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer os contornos de uma nova realidade social.

Foi precisamente esta tendência que levou a historiografia a definir o período da afirmação deste produto como o “ciclo do açúcar”. A omnipresença da Cultura e as múltiplas implicações que gerou nos espaços em que foi cultivada levaram alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de análise: os ciclos de produção assentes na monocultura. Deste modo, o ciclo do açúcar resultava, não da exclusiva afirmação da Cultura, mas da sua dominância ou hegemonia no sistema de trocas.

Neste contexto, a grande aposta das autoridades assentou na definição de um regime de policultura capaz de garantir uma estabilidade económica à principal riqueza da Ilha, que continuava a ser a exploração agrícola. Primeiro, procurava-se assegurar o necessário equilíbrio entre as culturas de subsistência e de mercado, de forma que as primeiras pudessem suprir o mais possível as necessidades das populações. Depois, no quadro das culturas de exportação, promoveu-se uma diversificação, de acordo com as solicitações do mercado. Desde o Gov. José Silvestre Ribeiro, com a grande exposição industrial no palácio de S. Lourenço, em 1850, que se vinha apostando na criação ou incentivo de indústrias artesanais com potencialidades económicas nas exportações. Assim, assistiu-se à aposta nos bordados, nas obras de vimes, nos laticínios e nas conservas de peixe. O dealbar do séc. XX foi fértil no aparecimento de pequenas unidades industriais para suprir as carências da Ilha. Temos, assim, as fábricas de velas de estearina, de pregos, adubos químicos, tintas, telha de cimento, bolachas e biscoitos, massas alimentícias e bebidas. Perante este quadro, Fernando Augusto da Silva afirmava, em 1921, que, embora a Madeira fosse uma região mais agrícola que industrial, indústrias havia que se podiam considerar vigorosas e outras que prometiam vantagens, sendo já mais ou menos lucrativas. Este fenómeno era também gerador de novos empregos, sendo os trabalhadores recrutados entre a mão de obra rural, o que pode ser considerado o princípio de uma das vias que, conjuntamente com a emigração, está na origem do êxodo rural que se consolidará com a Segunda Guerra Mundial.

Os primeiros resultados da política de diversificação e culturas começaram a surgir de imediato. Desde 1938, a Ilha produzia excedentes que exportava para o continente português e para alguns países europeus, como Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Alemanha e Itália, bem como para África e para os Açores, por força do incentivo da delegação da Junta Nacional de Exportações de Fruta no Funchal, criada em 1936, e do Grémio dos Exportadores de Frutas e Produtos Hortícolas da Madeira. Também não poderá esquecer-se os diversos viveiros promovidos pela estação agrária da Madeira em várias freguesias, como Ribeira Brava, santana, Caniçal e Santo da Serra. De acordo com dados fornecidos por Ramon Honorato Rodrigues, a bananeira era a Cultura de maior rentabilidade, quando comparada com a vinha ou cana-de-açúcar. Esta situação da valorização económica do produto prende-se com a demanda que o mesmo tinha nos mercados externos.

Os dados disponíveis são esclarecedores relativamente às mudanças ocorridas na agricultura madeirense. Os produtos tradicionais foram perdendo importância e o estatuto de culturas ricas, surgindo outros com maior rentabilidade. É certo que a bananeira era uma Cultura promissora, mas outras culturas de subsistência não lhe ficavam atrás. O principal resultado desta situação foi um nivelamento por baixo da riqueza, cavando-se cada vez mais o fosso do mundo rural e propiciando-se a emigração em catadupa para a Venezuela, a África do Sul e a Austrália.

Neste longo processo, um conjunto restrito de produtos agrícolas teve uma função primordial, assumindo-se tais produtos como catalisadores da animação social e económica, ou definidores de uma diversa realidade societal. Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho e o trigo, primeiro, e o açúcar depois surgem como elementos aglutinadores de uma peculiar vivência com inevitáveis implicações políticas e urbanísticas. Os primeiros materializam a necessária garantia das condições de subsistência e do ritual cristão, enquanto o último encerra a ambição e voracidade mercantil da nova burguesia atlântico-mediterrânica, que fez da Madeira o principal pilar da sua afirmação na economia atlântica e mundial. O processo é irreversível, de modo que, em consonância com os movimentos económicos, sucede-se uma catadupa de produtos com valor utilitário para a sociedade insular ou com capacidade adequada para ativar as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu à economia agrícola, no segundo ele reparte-se entre os serviços, as indústrias artesanais (vimes e bordado) e, de novo, os produtos agrícolas.

Os interesses em causa, quanto ao processo de desenvolvimento económico, não são pacíficos, sendo feito de embates permanentes entre a necessária manutenção da subsistência e a animação comercial externa. Foi, pois, nesta luta permanente entre os produtos de uma subsistência familiar, local e insular e os impostos relacionados com a permanente solicitação externa que se alicerçou a economia da Ilha até ao limiar do séc. XIX.

Os produtos mencionados revelam-se fulcrais para a compreensão da evolução da realidade socioeconómica madeirense. Para dar conta de tal processo, deveremos, antes de mais, salientar que a tradição mediterrânico-atlântica, que define a realidade peninsular, se repercutiu, inevitavelmente, na estrutura agrária e, por conseguinte, no impacto ecológico que acompanhou a expansão atlântica. Dos portos do reino saíram as sementes, utensílios e homens que lançaram as bases dessa nova vivência atlântica e insular. A par disso, as novas realidades civilizacionais americanas e índicas contribuíram para o acesso a novas culturas e produtos com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu. Da Europa, saíram os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da América e Índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame e o arroz. Nesse contexto, as ilhas atlânticas, pela sua posição charneira no relacionamento entre esses mundos, surgem como viveiros da aclimatação desses produtos às novas condições ecossistémicas. A Madeira deteve uma posição importante neste contexto, afirmando-se, no séc. XV, como o viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo – os cereais, o pastel, a vinha e a cana-de-açúcar.

A expansão europeia veio revolucionar o cardápio da Europa, aumentando a gama de produtos e condimentos. A pouco e pouco, a tradição culinária europeia foi sendo destronada pelo exotismo das novas sensações gustativas que acabaram por afeiçoar o paladar. Mas, até que isso se generalizasse, foi necessário conduzir o cereal e o vinho aos locais mais recônditos. Assim, as embarcações que sulcavam o oceano levavam nos seus porões, para além das manufaturas e bugigangas aliciadoras das populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito.

Se o cereal podia encontrar produtos similares nas colónias europeias, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com o vinho, que era desconhecido e incapaz de se adaptar às suas condições mesológicas. Desta forma, o vinho foi conduzido da Europa ou das ilhas até aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu, consistindo no companheiro inseparável dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos primeiros, servia de antídoto para o escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos servia como recordação ou devaneio hilariante da terra-mãe. O vinho consistiu, assim, num dos principais elementos de união das gentes europeias na gesta da expansão além-Atlântico.

Nas primeiras décadas oitocentistas, o vinho perde a sua posição preferencial nas trocas com o exterior. Quer na Madeira, quer fora, depara-se com uma conjuntura difícil, dominada pela fome e emigração. Essa precariedade da economia madeirense não derivou apenas da sua posição dependente em relação ao velho continente, mas também das diminutas possibilidades de usufruto concedidas pelos 741 km2 de superfície da Ilha.

Neste contexto, salienta-se o papel do cabouqueiro, colono que recebe das principais gentes da Ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que estas receberam como benesse. Esse investimento da sua capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças, árvores de fruto, latadas, etc. É, assim, o colono que lança as bases dessa revolução técnico-agrícola, sendo um dos principais obreiros dessa harmoniosa paisagem rural. Os proprietários preferiam os bulícios ribeirinhos da cidade ou do burgo que tentavam erguer, fazendo com que a arquitetura e o viver quotidiano se adaptassem à medida dos réditos acumulados com o comércio do açúcar e do vinho. Empenhados nas lides administrativas ou entretidos nos jogos de pela e de canas, estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano.

No princípio da ocupação da Ilha, as necessidades do cardápio e ritual cristãos comandaram a seleção das sementes que acompanharam os povoadores. As sementes do precioso cereal acompanham os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração vegetativa. A fertilidade do solo, resultante do seu estado virgem e das cinzas fertilizadoras das queimadas, fizeram elevar a produção a níveis nunca antes atingidos, criando excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e das praças do Norte de África.

Até à déc. de 70 do séc. XV, a Madeira firma a sua posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois, a favor dos Açores, que passam a assumir uma posição dominante na política e na economia frumentárias do Atlântico. A Madeira inverte, assim, a sua situação: de área excedentária, a Ilha passa a uma posição de dependência em relação aos celeiros açoriano, canário e europeu. O estabelecimento de uma rota obrigatória a partir do fornecimento de cereal açoriano à Madeira criará as condições necessárias à afirmação da Cultura da cana sacarina, produto tão insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senhorio e da Coroa na Cultura deste novo produto conduziu à afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlântico-insular. A partir de então, os interesses mercantis dominam a dinâmica agrária madeirense. Na Ilha, as searas dão lugar aos canaviais, enquanto as vinhas se mantêm de modo insistente numa posição de destaque.

Se o cereal pouco contribuía para aumentar os réditos dos seus intervenientes, o mesmo não se poderá dizer em relação ao açúcar e ao vinho, que, a seu tempo, contribuíram para o enriquecimento das gentes da Ilha. A própria Coroa e o senhorio fizeram depender grande parte das suas despesas ordinárias dessa fonte de receita. A par disso, o enobrecimento da vila, e futura cidade, do Funchal fez-se à custa desses dinheiros. O Funchal avançou para poente e adquiriu fama em novos e potenciais mercados.

O vinho Madeira foi, sem dúvida, o que mais se evidenciou no universo das ilhas, e de forma especial na Madeira. O luzidio rubinéctar, que continua a encher os cálices de cristal, é não só a materialização da pujança económica presente, mas também o testemunho de um passado histórico de riqueza. Prende-o à Ilha uma tradição de mais de cinco séculos. Nele, refletem-se as épocas de progresso e de crise. Porém, no esquecimento de todos fica, quase sempre, a parte amarga da labuta diária do colono no campo e nas adegas, o árduo trabalho das vindimas, o alarido dos borracheiros. Para recriarmos essa ambiência passada, torna-se necessário olhar os restos materiais e ler os documentos, a partir dos quais ainda é possível desbobinar o filme do quotidiano de luta que se esconde por entre a ferrugem, a traça e o pó.

O vinho Madeira, celebrado por poetas e apreciado por monarcas, príncipes, militares, exploradores e expedicionários, perdeu paulatinamente, ao longo do séc. XX, parte significativa do mercado, fruto da conjuntura criada nos finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX. A procura deste produto obrigou o madeirense a utilizar todo o vinho e a acelerar o processo de envelhecimento, de modo a satisfazer os pedidos. No entanto, a abertura dos mercados conduziu ao fastio a partir de 1814. Depois, as doenças acabaram com as cepas de boa qualidade, fazendo-as substituir pelo produtor direto, que se manteve lado a lado com as cepas europeias, numa promiscuidade pouco adequada à preservação da qualidade. O passado recente anunciou o retorno das castas tradicionais e abriu portas a novos momentos de riqueza.

A presença da vinha na Madeira, associada aos primeiros colonos, é uma inevitabilidade do mundo cristão. O ritual religioso fez do pão e do vinho os elementos substanciais da sua prática, tornando-os símbolos da essência da vida humana e de Cristo. Ambos foram companheiros da expansão da cristandade, sendo responsáveis pela revolução dos hábitos alimentares. A partir do séc. VII, comer pão e beber vinho simbolizavam para o mundo cristão o sustento humano. Em meados do séc. XV, com o arranque do processo de ocupação e de aproveitamento da Ilha, é dada como certa a introdução de videiras do reino e, mais tarde, das célebres cepas do Mediterrâneo. João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, que receberam o domínio das capitanias do arquipélago sob a direção do Monarca e infante D. Henrique, procederam ao desbravamento e cultivo da terra, plantando as primeiras culturas trazidas do reino, nas quais se incluíam as cepas. O vinho Madeira adquiriu desde logo fama no mundo colonial, tornando-se na bebida preferida do militar e do aventureiro na América ou na Ásia. Escolhido pela aristocracia, manteve lugar cativo no mercado londrino, europeu e colonial. Perante isto, a partir do último quartel do séc. XVI, o ilhéu fez mudar os canaviais por vinhedos, ao mesmo tempo que conquistou novas terras à floresta, a sul e a norte da Ilha. Porém, embalado pela excessiva procura do vinho, o madeirense esqueceu-se de assegurar a autossuficiência. O vinho era a sua fonte de rendimento e a única moeda de troca para assegurar o alimento, a indumentária e as manufaturas, daqui resultando uma troca desigual para o madeirense e muito rentável para o inglês.

No séc. XV, o vinho competia com o trigo e o açúcar, assumindo uma posição de relevo na economia local. Os trigais e os canaviais foram dando lugar às latadas e às balseiras, e a vinha tornou-se na Cultura quase exclusiva. Tudo isto projetou o vinho para o primeiro lugar na atividade económica da Ilha, posição que manteve por mais de três séculos. O ilhéu apostou, assim, desde o último quartel do séc. XVI, na Cultura da vinha, tirando dela o necessário para se sustentar, manter uma vida de luxo e construir sumptuosos palácios, igrejas e conventos. Entre o séc. XVII e princípios do XIX, a Madeira viveu embalada pela opulência do comércio do vinho. O madeirense, com tão avultados proventos, deixou-se vencer pelo luxo, habituou-se à vida cortesã e copiou os hábitos ingleses.

A política exclusiva da Cultura da vinha, imposta pelo mercantilismo inglês, mereceu a reprovação, quer do Gov. e Cap.-Gen. José. A. Sá Pereira, através de um regimento de agricultura para o porto santo, quer do Corr. e desembargador António Rodrigues Veloso, nas instruções que deixou, em 1782, na Câmara da Calheta. Mas foi tudo em vão, visto que ninguém foi capaz de travar a “febre vitícola”, nem de convencer o viticultor a diversificar as culturas da terra. Vivia-se um momento de grande procura do vinho no mercado internacional e as colheitas eram insuficientes para satisfazer a incessante procura. Perante tão desusada solicitação e à falta de melhor, socorriam-se dos vinhos do norte da Ilha e mesmo dos Açores e das Canárias para saciar o sedento colonialista.

O comerciante inglês que surgiu a partir do séc. XVII soube tirar o máximo partido do produto, fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que o aguardavam nos quatro cantos do mundo. Vários fatores fizeram com que o inglês se instalasse na Ilha e se afirmasse como o principal negociante do vinho, nomeadamente as condições favoráveis exaradas nos tratados luso-britânicos e o favorecimento que as regulamentações britânicas do comércio colonial atribuíram à Madeira.

Assim, o movimento de exportação do vinho da Madeira nos sécs. XVIII e XIX liga-se, de modo direto, ao traçado das Rotas marítimas coloniais inglesas que tinham passagem obrigatória na Ilha. São as Rotas da Inglaterra colonial que fazem do Funchal o porto de refresco e de carga para o vinho no percurso para as Índias Ocidentais e Orientais, de onde regressavam pela rota dos Açores, com o recheio colonial. Também os navios portugueses da rota das Índias ou do Brasil escalavam a Ilha, onde recebiam o vinho para as praças lusas. São ainda os navios ingleses que se dirigem à Madeira com manufaturas, retornando por Gibraltar, Lisboa ou Porto. Também os navios norte-americanos trazem as farinhas para sustento diário do madeirense, regressando carregados de vinho. Por tudo isto, o vinho madeirense conquistou o mercado britânico em África, Ásia e América, afirmando-se, até meados do séc. XIX, como a bebida dos funcionários e militares das colónias. Com o movimento independentista das colónias, todos regressaram à terra de origem trazendo o vinho na bagagem.

Seiscentos anos depois da introdução da vinha na Madeira, estavam ainda presentes na memória os tempos áureos da apreciação e do comércio do vinho, apesar das dificuldades que pelo caminho surgiram. À euforia da procura sucedeu-se a crise dos mercados, agravada pela presença das doenças que atacaram a vinha (oídio e filoxera). A crise do sector produtivo, resultante de fatores botânicos, alastrou a todo o espaço vitícola, com efeitos semelhantes na economia e no mercado do vinho. Perdeu-se a ligação ancestral com as tradicionais castas europeias, mas, em contrapartida, descobriram-se novas variedades americanas. As dificuldades do negócio conduziram à debandada dos agentes que haviam traçado o mercado. No entanto, a Madeira conseguiu paulatinamente recuperar ou conquistar novos mercados. O séc. XVII foi o momento de viragem no mercado atlântico do vinho, conseguindo a Ilha levar a melhor na preferência do mercado norte-americano e das colónias das Antilhas. Para além disso, o vinho Madeira tornou-se, como vimos, numa moda do quotidiano das colónias britânicas.

A vinha e o vinho assumem, assim, particular destaque na caracterização do processo histórico madeirense ao longo destes 600 anos de labor. Desde os primórdios da ocupação da Ilha, este produto manteve a mesma vivacidade na vida agrícola e no comércio. Os demais não tiveram capacidade suficiente para resistir à concorrência desenfreada de novos e potenciais mercados fornecedores de aquém e além-mar. Apenas o vinho resistiu à concorrência dos Açores, das Canárias, da Europa e do cabo da Boa Esperança, mantendo o tradicional grupo de apreciadores no velho e no novo mundos.

Também a história do açúcar na Madeira se confunde com a conjuntura de expansão europeia e com os momentos de fulgor do arquipélago. A sua presença é multissecular e deixou rastros evidentes na sociedade madeirense. Dos sécs. XV e XVI, ficaram os imponentes monumentos, pinturas e peças de ourivesaria que foram comprados com os proventos do açúcar, e que, na sua maioria, foram colocados no museu de Arte Sacra do Funchal. Do séc. XIX e do primeiro quartel do séc. XX, perduram ainda a maioria dos engenhos da nova vaga de Cultura dos canaviais. Nesta altura, a cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora sobretudo do álcool e da aguardente. Foi certamente neste momento que surgiu a tão afamada poncha, irmã do ponche de Cabo Verde e da caipirinha do Brasil.

O açúcar é, entre todos os produtos a que, no Ocidente, se atribuiu valor comercial, o que foi alvo de maiores inovações no seu fabrico. Note-se que, no caso do fabrico do vinho, a tecnologia pouco mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a necessidade de permanente atualização no que respeita ao açúcar, situação que se tornou mais clara no séc. XVIII com a concorrência da beterraba.

O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A cana sacarina tem um período útil de vida em que a percentagem de sacarose é mais elevada. Assim, a cana está, em determinado momento, pronta para ser colhida, representando cada dia a mais que passe uma perda para o produto. Depois de cortada, tem pouco mais de 48 h para ser moída e cozida; caso contrário, começa a perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade de acelerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tecnológicas, que cobrem o processo de corte, esmagamento e cozedura. A isto junta-se a necessidade do aumento da mão de obra, que se fez à custa de escravos africanos. A cana-de-açúcar não está, porém, na origem da escravidão africana, mas no processo de afirmação da mesma a partir da Madeira.

Quando a Cultura sacarina se fazia em pequenas parcelas, a maior parte destas questões não se colocava. No entanto, quando se avançou para uma produção em larga escala, houve necessidade de encontrar soluções capazes de responder aos novos desafios. A viragem aconteceu, na Madeira, a partir de meados do séc. XV e implicou mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escravatura dos indígenas das Canárias e dos negros da costa da Guiné. É por isso que se assinalam, a partir do exemplo da Madeira, importantes inovações tecnológicas no sistema de moenda da cana com a generalização do sistema de cilindros. A história tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de tecnologia inovadora, que contribuiu para revolucionar a economia mundial. Os homens que circularam no espaço atlântico foram, pois, portadores de uma Cultura tecnológica que divulgaram nos quatro cantos e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos madeirenses foi atribuída uma missão especial nos primórdios deste processo.

O facto de os arquipélagos da Madeira e das Canárias terem sido meios de ligação da nova Cultura económica do atlântico ocidental não quer dizer que tivesse havido uma transplantação total e igual para os novos espaços. As condições ambientais e os obreiros da transformação eram outros, como diversa foi a realidade que o produto gerou. Tal perspetiva deverá resultar das ciladas inerentes ao método de análise do processo histórico de forma retrospetiva, no qual, por vezes, o facto surge como a imagem e como a consequência. Tal como provaram alguns estudos do séc. XX sobre a situação da economia açucareira do Mediterrâneo Atlântico, a conjuntura deste espaço é diversa da americana, seja ela insular ou continental. Por outro lado, também não se poderá colocar ao mesmo nível o caso de São Tomé, que, embora situado no sector ocidental do oceano, aproxima-se mais da realidade antilhana que dos arquipélagos da Madeira e das Canárias.

A ideia de que a civilização do açúcar teve apenas uma forma de expressão no Atlântico Ocidental e Oriental deu origem a afirmações precipitadas, no âmbito da análise da economia e da sociedade, que lhe serviram de base. A historiografia associou ao açúcar, desde muito cedo, a escravatura, fazendo jus à afirmação de A. Antonil, segundo a qual os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho. Aqui também a relação não nos surge tão transparente como à primeira vista pode parecer.

As Cruzadas, de acordo com a historiografia europeia, foram o princípio da expansão da Cultura açucareira e da vinculação aos escravos. Nas colónias italianas do Mediterrâneo Oriental, surgem os primeiros indícios da nova dinâmica social, que passaria à Sicília e, depois, à Madeira, expandindo-se a partir deste arquipélago no Atlântico. Diz-se, ainda, que a ligação do escravo, negro ou não, à Cultura dos canaviais foi uma invenção do Ocidente cristão, não tendo lugar no mundo muçulmano. Diferente é, todavia, a opinião de Yoro Fall, que encontra testemunhos evidentes dessa relação no usufruto de mão de obra negra pelas plantações muçulmanas do Egito e de Marrocos.

Sucede que a escravatura da Madeira não assumiu uma posição similar à de Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Antilhas, não obstante o surto evidente de produção açucareira. Aí, ao invés daquilo que tem lugar nestes espaços, o escravo não dominou as relações sociais de produção. Existiu, sob a condição de operário especializado ou não, mas a sua posição não era dominante, tal como sucedia nas áreas supracitadas. Por fim, é de notar que a hipervalorização do açúcar na história da Madeira levou alguns aventureiros e progenitores de teorias de vanguarda a estabelecer também uma forma peculiar de urbanização do Funchal, de acordo com a sua presença. Deste modo, ao Funchal do séc. XVI chamam, sem saberem e explicarem porquê, cidade do açúcar, quando na realidade a expressão urbanística da cana-de-açúcar é manifestada pela ruralidade.

O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da Ilha. Sucedeu assim até meados do séc. XVI, mas, a partir de finais do séc. XIX, tudo mudou. Assim, com os lucros advindos desse produto ergueram-se igrejas – a Sé do Funchal é um exemplo disso – e amplos palácios que se rechearam de obras de arte de importação, testemunhos evidentes que passaram a constar no museu de Arte Sacra. A arte flamenga na Ilha é também um dom do açúcar. O progresso socioeconómico da Madeira e o seu protagonismo na expansão atlântica – nos Descobrimentos e defesa das praças africanas – só foram, assim, possíveis à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença de condição social, fruíram da riqueza. Até a opulência e luxúria da própria Coroa, lá longe no reino, foi conseguida, durante algum tempo, com o açúcar que esta arrecadava na Ilha.

Na Madeira, um dos aspetos mais evidentes da revolução tecnológica iniciada no séc. XV prende-se com a capacidade do europeu de adaptar as técnicas de transformação conhecidas às circunstâncias e exigências de culturas e produtos tão desafiantes como a cana e o açúcar. O tributo de outras culturas foi evidente. Ao vinho foi-se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado, estamos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de aproveitamento das diversas fontes de energia. A tração animal, bem como a força motriz do vento e da água, foram usadas em simultâneo com os cereais e a cana sacarina. Por vezes, a mesma estrutura assume uma dupla função. Sucedeu assim na Madeira com o engenho da Ribeira Brava, posterior museu Etnográfico, no qual a estrutura de aproveitamento da força motriz da água servia um engenho de cana e um moinho de cereais. As grandes questões deste período prendiam-se com a importância da Madeira resultante da expansão dos canaviais no espaço atlântico e da afirmação do açúcar no mercado europeu.

Durante muito tempo, o estudo sobre o açúcar madeirense que teve maior visibilidade internacional foi o de Virgínia Rau e Borges Macedo sobre o livro dos estimos de 1494, em que a temática fundamental é a questão da propriedade. A esse, podemos juntar os textos de Fernando Jasmins Pereira, que, como os de Carlos Montenegro Miguel, Joel Serrão e Ernesto Gonçalves, não tiveram muita divulgação. A incidência temática recaiu quase só nos aspetos relacionados com o sistema de propriedade e com o comércio do açúcar no mercado europeu, ficando esquecidos aspetos fundamentais, como a tecnologia dos engenhos e o fabrico do açúcar. Nos últimos decénios do séc. XX, por força da realização de colóquios e do aparecimento de revistas, a temática açucareira voltou a motivar o interesse dos estudiosos. Neste contexto, é de assinalar os estudos de David Ferreira Gouveia, que equacionou alguns problemas de forma inovadora.

A partir da segunda metade do séc. XVIII, assistiu-se à revelação da Madeira como estância para o turismo terapêutico, mercê das então exaltadas qualidades profiláticas do seu clima na cura da tuberculose, que cativaram a atenção de novos forasteiros. A tísica propiciou à Ilha, ao longo do séc. XIX, o convívio com poetas, escritores, políticos e aristocratas. Não obstante a polémica criada em torno das possibilidades deste sistema de cura, a Ilha permaneceu por muito tempo como local de acolhimento desses doentes, sendo considerada a primeira e principal estância de cura e convalescença do velho continente.

Foi a presença, cada vez mais assídua, de tais doentes que provocou a necessidade de criação de infraestruturas de apoio: sanatórios, hospedagens e agentes, que serviam de intermediários entre esses forasteiros e os proprietários de tais espaços de acolhimento. Estes últimos foram o prelúdio dos posteriores agentes de viagens. O turismo, tal como hoje o entendemos, dava então os seus primeiros passos. Foi, pois, como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infraestruturas hoteleiras e que o turismo passou a ser uma atividade organizada e com uma função relevante na economia da Ilha. Mais uma vez, o inglês foi o protagonista.

O turismo caminhou lado a lado com o vinho e o aparecimento de novas atividades. A vinha persistiu nas latadas e fez-se companheira dos vimieiros e bordadeiras. Esta harmonia revertia a favor da Ilha e tornava possível a existência de várias formas de atividade que garantiam a sobrevivência. A variedade foi a receita certa para manter de pé, por algum tempo, a frágil economia insular. Na déc. de 40, o comércio, a navegação e o turismo foram os grandes propulsores do desenvolvimento insular. As atividades em torno da obra de vimes e dos bordados tiveram nos estrangeiros, principalmente nos Ingleses, os seus principais promotores.

A primeira metade do séc. XX foi marcada por profundas mudanças na economia madeirense, representando, para aqueles que a viveram, um momento para esquecer. Primeiro as guerras mundiais (1914-1919 e 1939-1945) e, depois, os problemas políticos e económicos dificultaram bastante a vida do madeirense. A guerra evidenciou a fragilidade da economia da Ilha e a sua extrema dependência face ao mercado externo. Os problemas económicos dão origem a convulsões sociais que se misturam com as políticas, assistindo-se, em fevereiro de 1931, à Revolta das Farinhas, a que se seguiu, em 1936, a revolta do leite.

Para muitos madeirenses a solução foi a emigração para o Brasil, Venezuela, USA e Curaçau, que funcionou como válvula de escape para a miséria da sociedade. As medidas do Governo, com a criação da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos e as suas iniciativas, atenuaram os efeitos da crise em algumas famílias. Começava aqui um plano de fomento de infraestruturas consideradas primordiais para o progresso da Ilha. Assim, assistiu-se à reorganização do sistema de regadio, que iria permitir um maior aproveitamento agrícola através de novas levadas, e ao delineamento de um plano viário, que permitiria a aproximação das diversas localidades da Madeira.

No passado, foram as condições do meio que fizeram da Ilha o principal motivo de atração turística. Nos sécs. XX-XXI, o turista é outro e por isso também as exigências são diferentes. Assim, aos motivos ambientais aliam-se os culturais, passando os dois a andar de braço dado. No fundo, é a simbiose do grand tour europeu com o turismo terapêutico insular.

A economia insular 

A geografia é determinante na função económica a atribuir aos espaços humanizados. Neste sentido, as condições particulares da Madeira definiram uma vocação eminentemente agrícola. A aposta nos serviços, como o turismo, surgiu por acaso e por influência britânica.

No mundo insular atlântico, o arquipélago da Madeira assume uma posição particular, fruto da quase total ausência da dimensão arquipelágica. Na verdade, são apenas duas ilhas que mereceram ocupação humana, mas uma, o porto santo, pelas dificuldades de abastecimento de água, não permitiu a definição de uma situação socioeconómica assente na complementaridade dos espaços. Enquanto nos Açores e Canárias, devido à existência de diversas ilhas, existiram formas de exploração agrícola assente na complementaridade, no caso madeirense esta deverá buscar-se dentro do espaço da Ilha ou nos arquipélagos vizinhos.

A Madeira apresenta-se, em termos orográficos, com múltiplas condições adversas ao avanço da exploração agrícola do solo. A configuração piramidal, dominada por uma costa alta cortada pelas bacias das ribeiras, fruto da erosão provocada pela força das ribeiras, torna o acesso difícil e limita as possibilidades da agricultura. A costa elevada condiciona a navegação costeira, que, até à déc. de 50 do séc. XX, foi o meio de contacto entre as diversas localidades. A orografia dificultava o transporte terrestre, pelo que apenas o automóvel do séc. XX conseguiu vencer os veleiros e vapores costeiros. Por tudo isto, o processo de povoamento foi condicionado. A falta de água levou ao quase abandono do porto santo e, na Madeira, as dificuldades de penetração no interior conduziram à existência de um povoamento costeiro, assente nas clareiras abertas pelas ribeiras, áreas de fácil acesso, mas também férteis, por força das aluviões de terras trazidas pela água. O acesso a norte, muito limitado por terra e mar, conduziu a que esta área tardasse na ocupação e valorização económica em relação ao que sucedeu na vertente sul.

A configuração geográfica condiciona ainda a diversidade de microclimas, o que conduz à valorização das chamadas fajãs ou à possibilidade de escalonamento das culturas em altitude, procurando aproveitar as condições climáticas. Estas cambiantes permitem que, dentro do espaço da Ilha, se possa estabelecer uma complementaridade assente nas culturas de subsistência e mercado externo. Todavia, a tendência dominante da exploração do solo foram as culturas com grande valor económico, por força da demanda do mercado externo. A partir daqui, definiram-se ciclos ou, melhor dizendo, períodos de produtos dominantes, como foi o caso dos cereais, da cana-de-açúcar, do vinho e da banana.

A área agrícola da Ilha, bastante limitada desde o início da ocupação, obrigou a uma exploração intensiva do solo, o que provocou diversas dificuldades na exploração agrícola – com o esgotamento do solo a obrigar ao sistema de pousio ou rotação de culturas – que limitaram as possibilidades de afirmação de uma produção em larga escala capaz de concorrer em pé de igualdade no mercado. É neste contexto que podemos assinalar a luta hercúlea do madeirense pela conquista de terra através da construção de poios em locais íngremes ou com elevada inclinação, que se tornaram numa das dominantes da paisagem madeirense e que provam a luta secular do seu habitante contra as condições adversas do solo.

A possibilidade de sucesso de uma Cultura não dependia tanto das condições da Ilha, mas do mercado. Enquanto a Ilha produzia açúcar de forma isolada, os madeirenses conseguiram elevada riqueza, mas, quando teve de competir com outros mercados, perdeu capacidade de intervenção por força da limitação do espaço e das condicionantes atrás anunciadas. Situação diferente sucedeu com o vinho, dadas as circunstâncias políticas que permitiram a fixação inglesa e o facto de este produto ter características específicas, sendo capaz de chegar a qualquer sítio em perfeitas condições. Neste caso, foram as características próprias do produto, e não da exploração agrícola, que favorecem a sua posição preferencial no mercado.

A ocupação de um novo espaço obedece a determinados requisitos. Primeiro, deve propiciar condições para que sejam garantidas as condições de sobrevivência das populações. Assim, para além da disponibilidade de água, deve apresentar um solo adequado ao cultivo dos produtos básicos da subsistência, que no caso dos europeus do séc. XV assentava nos cereais e na vinha. Estas exigências são ainda mais importantes quando se fala de ilhas isoladas, onde as condições de acesso a outros espaços estão muito condicionadas por força do nível de desenvolvimento da navegação à vela.

Na Madeira, o processo de povoamento foi muito rápido por força da inexistência de populações e da necessidade de ocupação deste espaço para assegurar o controlo do espaço atlântico. Nos primeiros 600 anos de ocupação humana do arquipélago, a riqueza dos madeirenses foi gerada por força do seu esforço. Um solo de recursos limitados e de difícil domínio constituiu um pesado fardo no quotidiano que chegou até aos nossos dias. Por outro lado, o avanço do povoamento e da população conduziram a alguns problemas. Os recursos da terra, por serem mal distribuídos e limitados, não se ajustavam ao crescimento populacional, obrigando, desde o início, à abertura de válvulas de escape como a emigração. Até meados do séc. XIX, podemos afirmar que a agricultura foi dominada por uma permanente tensão entre os interesses da subsistência e aquilo que demandava o mercado. Esta realidade é testemunhada de forma clara por Giulio Landi, em 1530: “A Ilha produziria maior quantidade se semeasse. Mas a ambição das riquezas faz com que os habitantes descuidando-se... se dediquem apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maior proveito” (ARAGÃO, 1981, 84).

A crise do vinho colocou a necessidade de repensar os produtos dominantes e as formas de exploração económica. As autoridades foram determinadas no combate à tendência para uma exploração de monocultivo. A aposta estava num sistema de policultura, em que se misturavam as culturas de subsistência com aquelas que manifestavam valor mercantil. Deste modo, o momento da segunda metade da centúria oitocentista foi fértil na experimentação de uma diversidade de culturas com valor mercantil e da mercantilização de algumas atividades artesanais, como o bordado e a obra de vimes. A par disso, desde o séc. XVI que se vinha a experimentar novas culturas e frutos com valor alimentar, assumindo-se a Ilha como um dos espaços privilegiados de adaptação dos produtos do Novo Mundo. Os madeirenses rapidamente se habituaram aos novos sabores, pelo que, de uma alimentação tradicional assente nos cereais, se avançou rapidamente para outra baseada em novos produtos, como a batata, o inhame e a farinha de milho. Tudo isto aconteceu de uma forma clara a partir do séc. XIX e consolidou-se nos primeiros decénios do seguinte.

O processo económico, quando assume uma posição de sucesso, mercê da inserção no mercado mundial, conduz a uma forma de exploração intensiva que provoca inevitavelmente o desequilíbrio entre aquilo que o quadro natural possibilita e o que o Homem exige. Na Madeira, a exploração económica fez-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações do mercado exterior, o que contribuiu ainda mais para agravar a relação entre o Homem e o quadro natural, arrastando os espaços para uma situação de total deterioração. O primeiro testemunho surge já em meados do séc. XV com Cadamosto: “As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia. A situação resulta da solicitação para a exploração intensiva por obrigação geral dos madeirenses em abastecer as cidades do reino e praças africanas de cereal” (Id., Ibid., 37).

O cereal, que no início da ocupação do solo havia sido a Cultura da prosperidade, rapidamente cedeu lugar aos canaviais, que em pouco tempo dominaram o espaço agrícola. A indústria para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro natural, lançando a Ilha num processo de desflorestação, de consequências imprevisíveis, e provocando a exaustão do solo agrícola. A situação é testemunhada, em 1689, por John Ovington: “A fertilidade da Ilha decaiu muito relativamente ao período das primeiras culturas. A Cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, como estéreis. A aridez de muitas das suas terras atribuem-na simploriamente ao aumento dos seus pecados” (Id., Ibid., 201).

A opulência foi efémera, pois, a partir da terceira década do séc. XVI, o açúcar madeirense foi destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo a preferência em favor das Canárias, São Tomé e Brasil, que aparecem com preços mais competitivos. No entanto, a persistência de alguns lavradores, a fama da superior qualidade e a procura da doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a Cultura dos canaviais se mantivesse por largos anos, atingindo, em momentos de crise nos mercados americanos, alguma pujança. Ainda assim, como a Cultura estava irremediavelmente condenada, o madeirense, a partir de meados do séc. XVI, foi forçado a canalizar as atenções para as vinhas, fazendo com que estas assumissem o espaço deixado pelos canaviais. Desta forma, por mais de dois séculos, a vinha e o vinho foram os principais aglutinadores das atividades económicas da Ilha, dando ao meio rural e urbano uma desusada animação. O Funchal cresceu em monumentalidade e as principais famílias reforçaram a posição económica.

A mudança abalou a estrutura produtiva. Assim, enquanto o açúcar exigia apenas um complexo industrial, o engenho onde decorria a respetiva safra, o vinho necessitava de espaços distintos: o lagar, onde as uvas se transformam no saboroso mosto, e os armazéns da cidade, onde este fermenta e é preparado para atingir os necessários aroma e bouquet exigidos pelo mercado. Deste modo, o agricultor, colono ou não, detém apenas o controlo da viticultura, ficando reservado ao mercador o processo de vinificação.

A conjuntura da primeira metade de Oitocentos, marcada pelos conflitos europeus e guerras de independência das colónias, e associada aos fatores de origem botânica (com o aparecimento do oídio, em 1852, e da filoxera, em 1872), conduziu ao paulatino apagamento da pujança económica do vinho. Como corolário disto, surge a fome nos anos 40 e, nas décs. de 50 e 80, a sangria emigratória para o continente americano, onde o madeirense foi substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de 70 anos, a confusão institucional e económica alargou-se aos domínios social e alimentar. Para além dos novos alimentos que ganharam relevo na culinária madeirense, definiram-se políticas de reconversão e ensaio de novos produtos com valor comercial, como foi o caso do tabaco e do chá.

A emigração de Oitocentos e do período pós-Segunda Guerra Mundial foi responsável por um acentuado processo de desertificação da Ilha, arrastando muitas terras para o abandono. Foi o início de um pousio para as terras, já esgotadas com a exploração intensiva das culturas de subsistência e exportação.

Em pleno apogeu da indústria vinhateira, teve lugar a afirmação de um novo sector de serviços. Na segunda metade do séc. XVIII, a Ilha assumiu outro papel, tornando-se espaço de acolhimento de doentes. A Europa oferecia ao aristocrata britânico vários motivos para o grand tour cultural, mas as ilhas ofereciam a amenidade do seu clima e ambientes paradisíacos, num retorno implícito ao paraíso perdido. Na Madeira, o turismo começou a dar os primeiros passos na segunda metade do séc. XVIII, mas foi a partir de finais da centúria seguinte que se consolidou como sector de serviços na sociedade funchalense. Alguém terá dito que os promotores do turismo insular foram os Gregos, mas os primeiros turistas foram, sem dúvida, os Ingleses. Os Gregos celebraram, na prolixa criação literária, as delícias das ilhas situadas além das colunas de Hércules. Os arquipélagos da Madeira e das Canárias foram considerados a mansão dos deuses, o jardim das delícias, onde convivem os heróis da mitologia. Todavia, foram os Ingleses, ainda que muito mais tarde, a desfrutar da ambiência paradisíaca reservada aos deuses e heróis, escolhendo-a como rincão de permanência, breve ou prolongada. Diz-se até, segundo a lenda de Machim, que a primeira viagem de núpcias, embora ocasional, terá sido protagonizada por um casal inglês. Na verdade, foi a visão mítica, perpetuada nos relatos antigos ou reavivada nos testemunhos coevos, que despertou o desusado interesse do inglês pelas belezas aprazíveis da Madeira.

O ilhéu, autêntico cabouqueiro e jardineiro deste rincão, estava por demais embrenhado na árdua tarefa de erguer paredes e arrotear os poios, e por isso mantinha-se alheio ao usufruto das delícias. Para ele, a beleza agreste dos declives não passava de mais um entrave na luta contra a natureza. Assim, enquanto o inglês se entretinha nos passeios a cavalo ou em rede pelos mais recônditos locais da Ilha, o madeirense cavava e traçava os poios. A verdadeira descoberta da Madeira foi obra dos Ingleses, ainda que tenha sido o Português a descobrir o caminho para aí chegar.

A situação com que a agricultura madeirense se depara na segunda metade do séc. XIX pode ser entendida como o início do processo de transformação que irá marcar a vida do mundo rural. A transformação política, a partir de 1820, conduziu à desestruturação de tal mundo, acabando com algumas situações que marcavam o dia a dia do campo. Acabaram-se os senhorios, mas persistiu o contrato de colonia. A crise do vinho obrigou a repensar-se a forma de aproveitamento do solo, acabando-se definitivamente com a tendência para a aposta preferencial numa Cultura. A grande aposta passou a estar na diversificação de culturas e na aposta firme nas indústrias.

No reduzido quadro industrial, temos de realçar a iniciativa de estrangeiros, nomeadamente britânicos, como Page, leacock e Hinton. Miss Phelps esteve na origem da comercialização do bordado em Inglaterra; já leacock foi o principal promotor da obra de vimes e da aposta na Cultura da bananeira, com a criação, em 1928, da The Ocean Islands Fruit & Co Ltd. No séc. XX, passados os anos conturbados da República, o Governo da Ditadura e do Estado Novo definiram uma política concertada de valorização da produção nacional apostada em assegurar a autossubsistência.

Apenas no período pós-25 de Abril de 1974, o processo autonómico permitiu repensar os rumos da atividade agrícola. A aposta das autoridades foi para uma agricultura assente numa variedade de culturas. Às culturas tradicionais, ditas ricas, como era o caso dos cereais, cana-de-açúcar, vinha e banana, juntavam-se agora outras, conhecidas como pobres, que acabaram, no entanto, por adquirir valor económico no mercado regional e externo. De entre estas, podemos salientar a batata comum –ou semilha, para o madeirense –, a batata-doce, a cebola, a ervilha, o feijão, o tomate e a vaginha, ou feijão em vagem. Depois, podemos juntar um grupo variado de frutas: abacate, ameixa, amora, anona, araçá, castanha, cereja, cidra, damasco, figo, goiaba, jambo, laranja, limão, maça, manga, maracujá, marmelo, noz, nêspera, pero, pera, pêssego e pitanga.

As exportações

As conexões insulares resultam mais de fatores estranhos à progressão do trato comercial que às exigências e possibilidades de troca. O facto de as ilhas apostarem na mesma forma de agricultura, orientada para as necessidades internas ou do mercado colonial, não deixou grande espaço para um estreitamento dos contactos comerciais. Os produtos de subsistência nem sempre foram suficientes para suprir as carências e, no caso da exportação, preferiu-se outros mercados mais vantajosos, pois as ilhas ou arquipélagos vizinhos não ofereciam idênticas condições de lucro. Por outro lado, os produtos de exportação, seja para o mercado europeu, seja para o colonial, acabaram por levar ao afrontamento entre estes limitados mercados. O caso mais evidente é o comércio do vinho, que atinge nos três arquipélagos – Madeira, Açores e Canárias –, no decurso dos sécs. XVIII e XIX, idêntico protagonismo nas Rotas externas, provocando por vezes alguma tensão. Perante isto, as possibilidades de troca interna no mercado insular incidem quase só nos produtos de subsistência – primeiro o trigo e, depois, o milho – e nalgumas manufaturas de reexportação. As últimas resultaram da forma como se estruturaram as Rotas oceânicas e permitiram o protagonismo de certas ilhas como portos de apoio, em detrimento de outras. Todavia, no decurso do séc. XVIII e no seguinte, todas as ilhas faziam parte do roteiro das embarcações. Suplantadas as dificuldades técnicas, as Rotas de navegação ajustaram-se às exigências e interesses do mercado e dos mercadores. O mercado das ilhas tornou-se numa importante e complementar rota de navegação no Atlântico. Fala-se de um circuito fechado, que compreende a metrópole, a Madeira e os Açores, ou o Mediterrâneo, a Madeira e a rota Canárias-Berberia.

A questão do trigo é uma das dominantes da história da metrópole portuguesa e das ilhas. Aliás, no decurso do séc. XIX foi uma das importantes questões do debate político. Assim, a luta pelo pão parece ter sido uma constante da história insular, muito particularmente na Madeira. Para tal concorreu a desarticulação entre o movimento demográfico e a economia de aproveitamento do solo. Na Madeira, há uma aposta preferencial nos produtos de exportação, com grande solicitação nos mercados do novo e do velho mundos, o que afasta as culturas de subsistência das áreas pobres de cultivo e as aproxima dos grandes centros de exportação.

Esta incessante luta pelo pão determina o relacionamento entre as ilhas em todo o processo histórico. O tráfico interinsular assenta fundamentalmente na redistribuição dos meios de subsistência, o que origina alguma complementaridade, mais evidente nos primórdios da criação das sociedades insulares que nos momentos posteriores. É nesta lógica de complementaridade que se definem os circuitos interinsulares e que ganha forma, à escala das ilhas, um novo mercado que enlaça o chamado Mediterrâneo Atlântico. Açores, Canárias e Madeira unem-se quando os interesses e conjunturas não são adversos.

O abastecimento de cereais foi um dos principais incentivos à manutenção das relações interinsulares, que foram uma constante na história madeirense. Todavia, em qualquer dos momentos, o Mediterrâneo atlântico não foi autossuficiente, carecendo da importação do mercado europeu ou do americano. Este último mercado tornou-se uma realidade no decurso dos sécs. XVIII e XIX, funcionando para a Madeira como contrapartida ao vinho. No período entre 1727 e 1810, entraram no porto do Funchal 4297 embarcações com cereal ou farinha, sendo 2053 (48 %) da América do Norte, 799 (19 %) de Inglaterra e 687 (16 %) dos Açores. Disto decorre que a Madeira fazia depender a sua subsistência dos tradicionais mercados consumidores do vinho, a América e a Europa do Norte, que totalizavam mais de dois terços do negócio.

As ilhas dos Açores e das Canárias afirmam-se como celeiro de provimento da Madeira. Desde 1516 que a Coroa se viu na necessidade de regulamentar o negócio dos Açores, forçando os agricultores ao abastecimento do mercado madeirense. Os açorianos sempre se mostraram renitentes, quer em momentos de penúria, quer de abundância, pois o comércio com outras áreas parecia-lhes mais vantajoso. Daí a insistência da Coroa relativamente à permanência desta via de suprimento das carências alimentares dos madeirenses. Esta posição açoriana foi uma constante. Afirmou-se no séc. XVI e continuou nas centúrias seguintes. Em meados do séc. XVIII, como reflexo da Guerra dos Sete Anos, tardavam a aparecer os navios americanos com cereal e farinha, pelo que foi necessário o recurso a outros mercados como os Açores, que não se mostrou interessado em tal ligação. A alternativa foi, mais uma vez, Cádis e Canárias. Analisando a relação dos valores da importação de bens alimentares e da saída de vinhos no período de 1784 a 1786, constatamos que a situação é favorável à Madeira, mas eram os Ingleses que arrecadavam todos os lucros, mercê da política de adiantamentos quanto à compra do vinho.

Perante as constantes incursões corsárias nesta importante área de passagem dominada pela Madeira e pelos Açores, a parte portuguesa foi muito afetada, não só pelas presas que sofreu, mas também pelos constantes bloqueios das Rotas de comércio das ilhas e do Brasil. A Madeira, por exemplo, com uma economia dependente do mercado externo, viveu algumas vezes momentos aflitivos, pois viu-se impedida de sair com o vinho e sem qualquer possibilidade de se reabastecer de comestíveis e manufaturas. Esta realidade surgiu no culminar da viragem da economia insular, no decurso da segunda metade do séc. XVII. A aposta no vinho como meio ativador das trocas externas e a definição do mercado nas colónias ou na Europa do Norte provocaram o desvio de tais Rotas, que foi vantajoso para os intervenientes. Os Açores, que no decurso do séc. XVI, em aliança com as Canárias, detinham a missão de suprir as necessidades frumentárias da Ilha, perderam inexoravelmente tal função a favor do novo mercado conquistado com o comércio do vinho. No período de 1510 a 1640, as ilhas acudiram com 69 % do cereal consumido no Funchal, com evidente destaque para os Açores, que proveu 55%, enquanto a Europa se quedou numa posição muito inferior – 28%. A situação mudou no decurso do séc. XIX, com a revolução dos hábitos alimentares das gentes das ilhas. O milho assumiu protagonismo, associando-se agora à batata. A crise de fome na ilha da Madeira, em 1847, é precisamente provocada pela falta deste tubérculo, atacado pela doença.

Um dos fatores fundamentais do processo socioeconómico madeirense, a partir de finais do séc. XV, prende-se com as crises de subsistência, resultantes da desarticulação entre o sector produtivo e o movimento demográfico. A conjuntura resultou de mecanismos da sociedade colonial, que estabelece a dependência entre a metrópole e as colónias, e destas entre si. A adequação do processo económico do Mediterrâneo atlântico à realidade comandou o processo interno e externo, e levou as ilhas ou arquipélagos autossuficientes a uma situação de dependência. Foi o caso dos Açores e das Canárias, onde uma situação inicial de equilíbrio da economia agrária favoreceu uma autossuficiência que foi paulatinamente desapareceu. Por outro lado, a aceleração do processo conduziu ao esvaziamento da realidade própria do Mediterrâneo Atlântico. A complementaridade, que no decurso dos sécs. XV e XVI se havia afirmado como um mecanismo de autodefesa da economia insular, converte-se em afrontamento desmedido, evidente no comércio do vinho ou na política do porto franquismo.

O comércio

O comércio interinsular é uma característica da história económica das ilhas entre os sécs. XV e XVII e resulta, fundamentalmente, da complementaridade. A isto acresce um conjunto diversificado de fatores que evidenciam tal aproximação, tornando-a imprescindível para a marcha do processo económico. A situação torna-se mais evidente para os arquipélagos dos Açores, das Canárias e da Madeira. Em Cabo Verde, não obstante a existência de uma comunidade de insulares e de algumas relações comerciais, não há este tipo de relacionamento e complementaridade do Mediterrâneo atlântico. É de notar que a Madeira, pela posição geográfica e processo económico, foi a ilha que mais usufruiu desta realidade.

As trocas insulares incidem na necessidade de abastecimento de cereais, mecanismo indispensável para o equilíbrio do desenvolvimento económico. O arquipélago da Madeira dispõe apenas de duas ilhas, e a segunda adquire pouca importância económica. Daqui resulta que o processo económico, como muito bem entendeu a Coroa, só foi possível graças ao vínculo de complementaridade com outros arquipélagos. Foi, pois, nos Açores que a Coroa encontrou a solução, mas foi nas Canárias que os madeirenses melhor conseguiram levar por diante tal política.

O relacionamento comercial com as ilhas dos Açores e das Canários pode ser considerado unidirecional, uma vez que quase só tem como objetivo abastecer a Madeira de cereais. É, aliás, o cereal o principal motor destes contactos, mesmo entre os Açores e as Canárias. No período de 1510 a 1640, contabilizamos a entrada de 196.087,5 fanegas de trigo no Funchal, das quais 135.777,5 provinham das ilhas, correspondendo aos Açores 10.800 e às Canárias 27.777,5. Nos sécs. XVIII e XIX, continua a manter-se o relacionamento da Madeira com os arquipélagos vizinhos, mas é na América e na Europa do Norte que a Ilha encontra o abastecimento de cereais. O recurso a novos mercados abastecedores é-lhe mais vantajoso, visto que lhe permite a troca pelo vinho, o que raramente sucedia nas Canárias e nos Açores. Na segunda metade do séc. XIX, os contactos interinsulares a partir da Madeira mostram-se ocasionais.

Os mercados atlânticos: Brasil

A partir do séc. XVII, uma das Rotas privilegiadas do comércio das ilhas é o Brasil. No caso português, este mercado, mercê da política monopolista do Estado, manteve-se fechado até 1765, altura em que se acabou com o sistema exclusivo das frotas criado em 1649. A constituição da Companhia do Comércio do Brasil veio retirar às ilhas a possibilidade de comércio com o país. Daí a reclamação dos insulares, a quem foi dada, em 1652, a possibilidade de envio de três embarcações dos Açores e duas da Madeira.

Maior empenho teve a Madeira no comércio com o Brasil, já no decurso do séc. XVI, pela necessidade de açúcar para suprir, em momentos de dificuldade da produção de tal bem na Ilha, o fabrico de conservas e de casquinha. No decurso dos sécs. XVI e XVII, manteve-se o afrontamento entre os produtores locais e os mercadores do açúcar brasileiro. A partir de meados do séc. XVII, o açúcar madeirense foi, paulatinamente, definhando, rendendo-se a indústria do doce ao açúcar do Brasil. Ao açúcar, juntaram-se os couros, as madeiras e os escravos. Neste contexto, releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco, que conseguiu estabelecer uma trama de negócios a partir do Funchal, tendo Lisboa, Angola e Brasil como vértice do triângulo. No caso da Madeira, foi proibida, em 1776, a entrada do vinho, aguardente e vinagre nas regiões do sul, o que veio reforçar a tradicional relação com os portos do nordeste brasileiro. A esta limitação juntam-se outras, que insistiam na proibição da reexportação de produtos estrangeiros, o que levou à reclamação das autoridades pelo pouco interesse em mantê-la. Deste modo, em 1748, fez-se aumentar o número de embarcações para quatro, dando mais campo de manobra para o investimento madeirense na rota.

Da Europa à América do Norte 

Nos primórdios da ocupação das ilhas, foi a Europa que definiu as Rotas do comércio. Porém, com o evoluir do processo, a vinculação europeia perdeu importância, acabando por ceder lugar ao Novo Mundo, que, para as ilhas, corresponde sobretudo à costa africana e à América (do Sul, Central e do Norte). O Oriente é apenas uma miragem com alguns reflexos na economia açoriana, mercê da função de escala e apoio à navegação estabelecida na ilha Terceira.

A Europa manteve-se sempre presente no mercado insular, catapultando aspetos dominantes do relacionamento externo. As primeiras culturas lançadas nas ilhas surgem, precisamente, para corresponder às necessidades do mercado europeu. Primeiro os cereais, depois a cana-de-açúcar e o pastel, eis os produtos que marcam essa situação de dependência. Os cereais, juntamente com o pastel, são a marca dos Açores e delimitam Rotas de escoamento com destino ao reino, Europa do Norte e Norte de África. O pastel, que, nos sécs. XVI e XVII, adquiriu grande pujança no mercado açoriano, foi o produto que projetou os Açores, nomeadamente São Miguel, nas Rotas do tráfico europeu internacional e que começou por estabelecer o vínculo ao Reino Unido, que sairia reforçado mais tarde, no séc. XIX, com a laranja. Ambos os produtos – pastel e laranja – definem um mercado e uma opção socioeconómica com reflexos evidentes no devir açoriano. Na Madeira e nas Canárias, foi o açúcar que delineou o forte vínculo europeu. Também neste contexto, e ainda que seja a Flandres o principal destino, a Europa do Norte adquire uma posição cimeira, seguida do Mediterrâneo.

A metrópole e o Estado

Ao nível económico e financeiro, a relação entre a Madeira e o continente revela-se na entrega de toda a riqueza da Ilha. As culturas agrícolas são impostas para servir os caprichos da metrópole e todo o lucro situa-se no sector da circulação fora da Ilha. Sucedeu assim com a cana-de-açúcar, que se transformou na galinha dos ovos de ouro para a Coroa portuguesa entre finais do séc. XV e princípios do seguinte. Toda a riqueza resultante da exploração económica, impostos incluídos, é orientada para fora do espaço que a cria. Tão pouco sucede um investimento na valorização do local. O pouco que retornava surge sob a forma de caridade da própria Coroa, de oferta. O Rei D. Manuel foi de todos o mais caridoso para com os madeirenses, pelos quais distribuiu benesses e obras de arte, mas também o que mais fruiu das riquezas da Ilha.

As finanças do reino foram marcadas por um permanente déficit, pelo que a Coroa teve necessidade de se socorrer de diversos meios para saldar a diferença. Desde o séc. XIV que a forma mais usual de solucionar o problema era o recurso a pedidos e empréstimos. Era com estas formas de financiamento que a Coroa cobria o déficit e as despesas bélicas, bem como a boda do casamento dos príncipes. O vigor demonstrado pelos madeirenses na defesa dos seus interesses tem expressão na recusa ao pedido de empréstimo de 1478, sendo reforçado no papel do Senado da Câmara do Funchal. Na verdade, a Madeira era, desde 1433, um espaço fora do controle da Coroa, dependendo do mestrado da Ordem de Cristo e tendo o infante D. Henrique como senhor. Mas a sua riqueza estava na mira da Coroa, pelo que D. Manuel, que também foi senhor da Ilha, deu a machadada final no processo de autogoverno dos madeirenses ao proceder, em 1497, à “nacionalização” da Madeira.

A partir de finais do séc. XV, toda a riqueza gerada deixou de pertencer ao senhorio e passou para o usufruto da Coroa, indo a tempo de financiar as grandes viagens oceânicas e a despesa da Casa Real. A partir daqui, é evidente que a Madeira perdeu a capacidade reivindicativa perante a Coroa. O centralismo régio está patente na submissão e pronto acatamento pela vereação de todos os regimentos e decretos régios.

É evidente que, durante o séc. XV e o primeiro quartel do seguinte, a principal fonte de receita do mundo português estava no açúcar madeirense. As receitas advinham dos direitos lançados e do comércio do açúcar apurado. Os dados financeiros disponíveis não evidenciam de forma clara a situação. Perderam-se os livros de contas, mas os poucos que se podem consultar não nos atraiçoam. Primeiro o senhorio e depois a Coroa oneravam este produto com diversas tributações, que lhes permitiam amealhar elevadas quantias que usavam em benefício próprio, no pagamento de tenças, esmolas, empréstimos e dívidas. No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surge com o valor mais elevado das comparticipações dos novos espaços insulares, com 5,3 %. Até à déc. de 30 do séc. XVI, os réditos fiscais resultantes da produção e comércio do açúcar asseguraram parte importante das fontes de financiamento do reino e dos projetos expansionistas. Em 1529, com o Tratado de Saragoça, foi encontrada uma solução provisória que, a curto prazo, parecia agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000 ducados para assegurar a posse das Molucas, que afinal se encontravam dentro da área de influência de Portugal. Mais uma vez, é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o madeirense António de Abreu o primeiro explorador. Por outro lado, os madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. Também João Rodrigues Castelhano é referenciado como recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado da sua fazenda 300.000 reais. A este juntaram-se Fernão Teixeira com 150.000 reais e Gonçalo Fernandes com 200.000 reais. O pagamento fez-se nos anos de 1530-1531 à custa dos dinheiros resultantes dos direitos da Coroa sobre o açúcar.

A Madeira, como centro gerador da riqueza do reino e da forma colonial da administração, não passou desapercebida aos locais e visitantes. No séc. XVIII, a promoção do comércio do vinho gerou de novo elevada riqueza, pelo que a Ilha parecia querer regressar aos velhos tempos da opulência açucareira. É dentro desta ambiência que James Cook refere, em 1768, que a Coroa arrecadava na Ilha 20.000 libras por ano, mas poderia dar o dobro se estivesse nas mãos de outro povo. Em 1827, outro súbdito inglês, cujo nome se desconhece, apontava o destino desta receita: “o Rei pagava todas as despesas das legações no estrangeiro (isto antes de 1820) com o excedente dos seus rendimentos da Madeira. Todos os anos era transferida para Londres, com esse fim, uma quantia de 50 a 80.000 libras” (VIEIRA, 2014, 411). O contraste entre esta crescente riqueza que todos os anos enchia os cofres do reino e as condições cada vez mais precárias da população madeirense é evidente. Também Paulo Dias de Almeida, sendo enviado à Ilha para proceder ao estudo da defesa e da rede viária, fez notar o quanto tal relação enchia os cofres do Estado.

O séc. XIX foi um marco na plena afirmação do debate político, que para muitos madeirenses foi alicerçado nos combates pela defesa do torrão natal. As mudanças políticas tão pouco solucionaram as ancestrais questões. O combate político avivou os ideais autonómicos e conduziu ao estabelecimento da autonomia administrativa por carta de lei de 12 de junho de 1901. A República jacobina foi marcadamente centralista, e o movimento autonomista das primeiras décadas do séc. XX, apoiado nos sectores políticos mais conservadores da sociedade madeirense, fez desta orfandade e sangria financeira o cavalo de batalha para a luta autonómica. Note-se que eram redobradas as razões para tal, uma vez que o esforço de investimento financeiro do Estado na região não suplantava os 0,2 %, quando o contributo financeiro da Ilha para o todo nacional chegava aos 12,5 %. No caso das províncias ultramarinas, o panorama da despesa é distinto, atingindo-se, em 1914-1915, os 16 %. O contraste é evidente e mobilizador de alguns sectores políticos da sociedade madeirense.

Um exemplo mais a provar o tratamento de tipo colonial nas aplicações financeiras do Estado na região está na forma como se procedia ao lançamento de infraestruturas imprescindíveis para o desenvolvimento da Ilha. Incluem-se neste caso as obras do porto do Funchal e as dos aproveitamentos hidroagrícolas e elétricos. Para o primeiro, foi criada, em 1913, a Junta Autónoma das Obras do Porto Funchal, com o objetivo de coordenar as referidas obras e conseguir os meios financeiros necessários, sendo-lhe para isso atribuído o direito de arrecadação do imposto sobre o tabaco. Entre 1931 e 1933, as obras custaram 5.353.000 escudos, enquanto a receita do imposto, entre 1923 e 1932, foi de 25.123.841 escudos, isto é, os gastos foram de apenas 21 %. Por outro lado, as obras contribuíram para um incremento do movimento do porto com repercussão direta nas receitas da Alfândega, que, a partir de 1927, quadruplicaram. A promoção do sistema de regadio e de eletrificação foi encargo da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos criada em 1944. O investimento desta Comissão, entre 1944 e 1968, foi de 340.152 contos, em que a comparticipação do Estado foi de apenas 29 %, sendo o resto de autofinanciamento.

O esforço contributivo da região no período do Estado Novo não foi devidamente recompensado com o investimento. Mesmo assim, é neste período que temos a maior incidência e preocupação do Estado no investimento reprodutivo, com empreendimentos vultuosos, como o porto, o aeroporto e os aproveitamentos hidroelétricos e hidroagrícolas. O problema financeiro pesou de forma evidente no debate político sobre a autonomia. Ademais, para a maioria dos intervenientes é evidente o contraste entre uma ilha que alimentava permanentemente os cofres de Lisboa e o abandono a que estava votada.

Desde o ano 1976, a economia madeirense assumiu vários matizes, nos quais é notório o acompanhamento da economia regional consoante as fases de desenvolvimento vivenciadas pela ram. Tal pode ser verificado através de uma análise comparativa daqueles que eram os motores da economia na déc. de 70 do séc. XX e os propulsores da mesma no séc. XXI.

O sector primário foi aquele que apresentou claramente uma diminuição do seu peso relativo na atividade económica, sendo que a proporção do valor acrescentado bruto (VAB) do sector no VAB regional diminuiu consideravelmente. Dados referentes ao ano de 1995 permitem constatar que o sector que engloba as atividades da agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca representava 3,3 % do VAB da Região, proporção que diminuiu, sendo reportado um peso de 1,9 % no ano de 2012.

Em detrimento dos sectores primário e secundário, o sector terciário afirmou-se como principal motor económico, realidade que pode ser explicada pela influência que a atividade turística assume, mas também pela modernização a que o sector empresarial foi sujeito, impulsionada pelo ritmo de desenvolvimento que a Região estava a apresentar. Naturalmente, não só o comércio e as atividades relacionadas com o sector hoteleiro e com a restauração permitiram que a preponderância do sector terciário se tornasse mais evidente. O sector dos serviços, como, por exemplo, aqueles que estão associados ao apoio das empresas, também contribuiu para isso. Se, no ano de 1995, o sector terciário representava 76,4 % do VAB regional, a proporção aumentou significativamente no espaço de cerca de 20 anos, fixando-se, no ano 2012, em 84, 8 %. As atividades administrativas e os serviços de apoio, que representavam 6,7 % do total regional em 1995, passaram a representar 12,4 % no ano 2012.

Cabe destacar que, para colmatar as insuficiências que a ram apresentava em termos de infraestruturas, foram direcionadas verbas provenientes, na sua grande maioria, de fundos comunitários. Note-se que o sector da construção representou 12,04 % do VAB regional em 1995, reduzindo-se essa percentagem para metade no ano 2012, o que denota um auge do sector ocasionado pelo investimento em obras públicas e nas edificações construídas pelo sector privado. Em termos de emprego, o sector empregou 13,3 % da população empregada em 1995, passando a empregar cerca de 10,6 % em 2012.

Como é possível constatar, a evolução da ram condicionou a caracterização sectorial da economia, tendo sido clara a afirmação do sector terciário, que, em 2011, dava emprego a cerca de três quartos da população empregada, nomeadamente a 73,13 %, representando cerca de 85,26 % do investimento na Região.

 

Alberto Vieira 

Sérgio Rodrigues

(atualizado a 02.01.2017)

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