genealogias

15 Dec 2020 por "Rui Carita"
História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

A genealogia é uma ciência auxiliar da história que estuda a origem, evolução e disseminação das famílias, articulando as várias gerações, os nomes, sobrenomes ou apelidos utilizados, os locais de nascimento e morte, registando casamentos e filhos, tal como, quase sempre, as funções desempenhadas e as instituições criadas, muito especialmente os morgadios e capelas, essenciais à manutenção, antigamente, de determinado estatuto social. Desde os tempos bíblicos que todas as culturas, em todos os continentes possuem genealogias, com pequenas variantes de forma, dado assentarem na constituição e desenvolvimento da família. Sendo um estudo, ou um simples elenco de parentesco, desenvolve-se no âmbito da história da família, sendo assim uma peça fundamental para a grande maioria das ciências sociais e, de forma muito especial, para a grande área da história social, mas não só. Assim, ao elencar os elementos de determinadas famílias, das suas relações e do seu património, a genealogia torna-se também importante para os estudos de economia, de direito, de história da arte e de heráldica, entre outros.

A genealogia, no entanto, é também um vasto campo de dúvidas, voluntárias e involuntárias, face ao levantamento dos antepassados, sobretudo, quando se mudavam quase sistematicamente os nomes ao longo do percurso de vida, quando não se respeitavam, muitas vezes, os habituais apelidos de família, recuperando-se os apelidos dos avós e outros, e ainda devido a dificuldades de registo ortográfico e de posterior leitura, p. ex.. Acresce que, nos inícios do povoamento da Madeira, não estava instituído o hábito do apelido de família, optando-se geralmente por utilizar o nome da localidade de origem ou patronímicos, como Fernandes, filho de Fernando ou Gonçalves, filho de Gonçalo, entre outros. Mais tarde, a repetição dos mesmos nomes, quase de geração em geração, nem sempre acompanhados dos elementos “o velho” e “o novo”, gerou também inúmeras dificuldades de identificação da pessoa em questão.

Os documentos fundadores da história da Madeira, salvo a Relação de Francisco Alcoforado, que é somente um texto descritivo, nomeadamente, o Descobrimento da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da Dita Ilha, do cónego Jerónimo Dias Leite (c. 1537- c. 1593), e Saudades da Terra, do doutor Gaspar Frutuoso (1522-1591), a que o texto anterior serviu de base, são também trabalhos, de certa forma, de genealogia, como o próprio título do cónego Dias Leite indica. Baseado nos arquivos da família Câmara, dos capitães-donatários do Funchal, logicamente, ignora quase por completo os capitães de Machico. Mais tarde, na Ribeira Grande da ilha de São Miguel, o doutor Gaspar Frutuoso não deixou de acrescentar às Saudades da Terra dois longos capítulos dedicados às grandes figuras que estavam, na altura, à frente dos destinos da Madeira: o governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) e o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), sobre os quais teceu os mais altos elogios, demonstrando a parcialidade deste género de trabalhos.

O principal problema das genealogias, essenciais para a maioria dos estudos de história, é serem quase sempre um instrumento panegírico das linhas de descendências sobre as quais se debruçam, obrigando a ter para com as mesmas os maiores cuidados. Outras vezes, as genealogias foram feitas para apagar determinadas “nódoas”, como a persistência de sangue judaico, conceito hoje mais do que discutível, em muitas famílias madeirenses, mas perfeitamente compreensível no parco espaço geográfico da Ilha e na época então vivida pela sociedade católica europeia. Os judeus desempenharam um papel relevante nos inícios da economia insular, prosseguido, depois, sob a vaga capa de cristãos-novos, após a forçada conversão dos inícios do séc. XVI. A capacidade por eles demonstrada para o desenvolvimento de diversas atividades económicas cedo criou descontentamento e resistências, patentes nos pedidos insulares para o afastamento dos mesmos e consubstanciada, também, na deslocação à Madeira de quadros da Inquisição, o que veio a acontecer nos finais do século, entre 1591 e 1592, com uma visitação do Santo Ofício que executou diversas prisões e elaborou depois uma listagem dos descendentes dos cristãos-novos, que vieram a ser indexados num célebre rol dos judeus, de que existiram inúmeras cópias. Este rol destinava-se à recolha da finta, o imposto determinado pelo perdão geral concedido pelo papa Clemente VIII, em agosto de 1604, a troco de um donativo de mais de milhão e meio de cruzados que a “gente de nação” se havia proposto pagar à coroa, publicado em janeiro de 1605 (BARROS e GUERRA, 2003, 11).

A reputação de cristão-novo ou a afirmação contrária passou a condicionar quase todas as genealogias insulares. Os cristãos-novos não eram somente mercadores, eram também boticários, almoxarifes e escrivães da alfândega, licenciados em leis e mercadores de grosso trato em geral, pelo que, desde muito cedo, estiveram presentes em quase todos os estratos sociais, inclusivamente e como forma de silenciar essa origem, na Igreja. Entre os descendentes, cite-se, p. ex., o licenciado Gaspar Leite (1551-1620) e o seu irmão, o cónego e cronista Jerónimo Dias Leite; os licenciados António Lopes da Fonseca (1571-1636) e Bento de Matos Coutinho (c. 1587-1651); o irmão Lourenço de Matos Coutinho (c. 1590-1654); os médicos Jorge de Castro e Luís Dias Guterres; o mercador e intérprete dos navios estrangeiros, e poeta, Manuel Tomás (1585-1665), tal como o seu sócio Mateus da Gama (1624-1683), contratador do estanco do tabaco, e o pai deste último, João Rodrigues Tavira (fal. 1649), administrador e agente, no Funchal, da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Foi, aliás, pela intervenção deste grupo de cristãos-novos que se expandiram as redes comerciais atlânticas, numa triangulação estabelecida entre a Madeira, Angola e o Brasil, depois ampliada, nos meados do séc. XVII, se não o estava já antes, a Amesterdão e às Antilhas, pelo menos. Nesse quadro emergiu o cónego António Lopes de Andrada (1640-1704), representante do cabido da sé para inúmeros negócios em Amesterdão e o irmão Cap. Gaspar de Andrada, filhos do almoxarife Diogo Lopes de Andrada e netos do célebre boticário João Mendes Pereira (c. 1570-c. 1642), para além de muitos outros.

A má reputação e conotação associada a ter ascendência cristã-nova atravessou todo o séc. XVII e ainda o XVIII, só perdendo importância, progressivamente, a partir da lei de 2 de maio de 1768, elaborada pelo gabinete pombalino, que eliminou essa distinção. Dessa verdadeira contenda social resultou, e.g., que o original de Saudades da Terra tenha sido recolhido no Colégio dos Jesuítas de Ponta Delgada, segundo registou o P.e Sylvio Mondanio na sua Crónica dos PP. Jesuítas de Portugal, pois arrancavam-lhe folhas quando as referências não convinham a determinados elementos; do mesmo foi acusado, depois, o próprio genealogista Henrique Henriques de Noronha, que abordaremos em seguida. A fama atingia, assim, inúmeras famílias madeirenses, nomeadamente os Andrada, Araújo, Dias, Henriques de Noronha ou os Ornelas e Vasconcelos, daí ser nessas famílias que apareceram, no século seguinte, os principais genealogistas madeirenses. O marquês de Pombal ainda tentou aproveitar a situação, em carta de lei de maio de 1773, acusando os padres da Companhia de serem os autores da “funesta maquinação” que ocasionou a “sediciosa distinção de cristãos-novos e cristãos-velhos” (Id., Ibid., 232). Mas, se consultarmos muitas das genealogias, inclusivamente dos meados do séc. XX e mesmo nos dias de hoje, a distinção está ainda muito presente.

Com a emergência do barroco, a partir dos inícios do séc.XVII, o culto das genealogias estendeu-se também à Igreja, como prova a nova voga das árvores de Jessé, em homenagem às tribos de Israel ascendentes da Virgem Maria e de Jesus, de que um dos exemplares, dos meados dessa centúria, subsiste no convento de santa clara do Funchal. Conhecem-se outros, em concreto, no retábulo da antiga capela de Santa Isabel, hoje remontado na igreja do Sagrado Coração de Jesus e na tela do camarim do retábulo da matriz de Machico. As representações destas árvores remontam ao românico e o nome de Jessé, pai de David, já aparece citado no Antigo Testamento, depois incorporado na Bíblia, sendo referido pelo profeta Isaías. Inicialmente simples, com quatro a seis figuras, com o advento do protobarroco tornaram-se mais densas, multiplicando-se a presença dos ancestrais, assumindo, inclusivamente os elementos heráldicos das genealogias góticas e renascentistas iluminadas, numa verdadeira colagem entre o sagrado e o profano, numa apropriação pela iconografia sagrada da linguagem então assumida pela genealogia e pela heráldica.

Os trabalhos sobre genealogia interessaram, assim, inúmeros elementos da Igreja, como aconteceu entre os madeirenses, pois alguns prelados são referenciados no Funchal como tendo-se dedicado a esse tipo de trabalhos. O bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira (ARM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 273, Memorias sobre..., fl. 92v.), dedicou-se a estudos genealógicos e terá deixado algumas obras inéditas, enumeradas na Bibliotheca Lusitana, mas de que desconhecemos o paradeiro e se eram relacionadas com as famílias madeirenses, embora pensemos que não. Este prelado chegou a emitir opiniões muito pouco abonatórias sobre o meio social local e, como ministro e ex-presidente do Tribunal do Santo Ofício, em carta de 11 de novembro de 1707 dirigida ao seu superior em Lisboa, referiu a sociedade madeirense nos seguintes termos: “A assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente, me tem dado o conhecimento do seu orgulho e dos seus atrevimentos. Saiba vossa senhoria, que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, nem obediência da razão, levados somente de suas paixões, como brutos sem temor de Deus, nem da honra, nem previsão de futuros” (ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 922, fls. 264-265v.).

Os meados do séc. XVII e os inícios do XVIII marcam um novo interesse pelos trabalhos genealógicos, ainda que não tivessem especialmente esmorecido, mas então dotados de um outro sentido, mais institucional e nacional, se tal se pode escrever. A época foi marcada, depois, a nível nacional e internacional, pela instituição das academias, em Portugal, principalmente pela da história. A Academia Real da História Portuguesa foi criada por D. João V, por decreto de 8 de dezembro de 1720, recebendo o encargo de compor a “história eclesiástica destes reinos e depois tudo o que pertencer à história deles e de suas conquistas”, como se lê no decreto (Collecçam dos Documentos..., 1721). Ao mesmo tempo, no seu seio e através de D. António Caetano de Sousa (1674-1759), foi sendo elaborada a Historia Genealogica da Casa Real Portugueza. Tendo começado pela recolha de dados para uma história eclesiástica de Portugal, face à morosidade do processo em relação à expansão portuguesa, em 1725, comunicou aos membros da academia que tinha passado a ocupar-se, essencialmente, da genealogia da casa real portuguesa, vindo a obra a ser publicada em 19 volumes, entre 1735 e 1749, juntamente com provas e índices.

Logo na altura da fundação, foi intenção real e dos seus colaboradores alargar os trabalhos a outras áreas, procedendo ao levantamento e publicação das crónicas dos antigos reis e ao desenvolvimento das ciências auxiliares da história, como a numismática e esfragística. Salvaguardaram-se assim importantes códices, papéis avulsos, inscrições e outros achados arqueológicos, especialmente, com base no alvará de 14 de agosto de 1721. Por este diploma, D. João V determinava a defesa do património cultural, a fim de impedir perdas, que eram “prejuízo tão sensível e tão danoso à reputação e glória da antiga Lusitânia, cujo domínio e soberania foi Deus servido dar-me” (Id., Ibid.). Não se podia assim destruir monumentos, estátuas e mármores, nem estragar moedas e medalhas, ficando as câmaras e vilas do país responsáveis “em conservar e guardar todas as antiguidades sobreditas, já descobertas ou que venham a descobrir-se nos terrenos do seu distrito”, estendendo estas ações à investigação a nível regional, de modo a fazer-se da história o espelho da grandeza do reino (Id., Ibid.).

Neste sentido, escreveu o presidente da Academia, o conde de Vilar Maior, Fernando Teles da Silva (1662-1731), à Câmara do Funchal, a 19 de maio de 1722, transmitindo a ordem real para, dentro da brevidade possível, dado dever possuir a Câmara interessantes documentos em arquivo, ser organizada uma “história eclesiástica e secular deste reino e suas conquistas” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, cx. 2, doc. 319). Saliente-se, mais uma vez, a delimitação de poderes, com a Academia a solicitar a elaboração de uma história eclesiástica à Câmara e não à diocese, ou ao cabido da sé do Funchal. Enviou-se então uma memória para a organização do trabalho, voltando-se a referir que o assunto era muito “do serviço e agrado de Sua Majestade, que Deus guarde” (Id., Ibid.).

A Câmara delegou o trabalho a Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), que já teria entrado para a Academia como sócio correspondente e que viria a elaborar as Memórias Seculares e Ecclesiásticas para a Composição da Historia da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, com data de 1722, atestando no rosto: “Distribuídas na forma do sistema da Academia Real da História Portuguesa por [....] Académico Provincial” (NORONHA, 1996): trata-se de um estudo ainda hoje de consulta obrigatória para quem trabalhar nessa área. Tal como acontecera em Lisboa com D. António Caetano de Sousa, os trabalhos na Madeira, organizados por Henrique Henriques de Noronha, eram essencialmente genealógicos, conhecendo-se mais algumas das suas produções, como o Nobiliario Genealogico das Famillias que passaram a viver à Ilha da Madeira, datado de 1700, mas com informações até ao ano de falecimento do autor e inclusivamente posteriores, acrescentadas pelos possuidores das cópias seguintes, Horóscopo Genealógico: Árvore da Casa de Henriques, Senhor das Alcáçovas em Portugal, datado de 1710 e Livro da Família Freyes de Andrada, Non plus ultra da Nobreza. Fidalgos da Ilha da Madeira, de 1717, variante dos trabalhos anteriores. Todas estas obras permanecem inéditas, salvo o Nobiliario, que foi editado no Brasil, nos finais dos anos 40 do séc. XX e as Memórias Seculares e Eclesiásticas, nos finais de 90 da mesma centúria.

A divulgação dos trabalhos de Henrique Henriques de Noronha foi enorme, conhecendo várias versões, como a do Nobiliário, publicado no Brasil, em 1948, que seguiu o exemplar existente na biblioteca Municipal do Funchal (BMF). Também há uma versão dessa obra na biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, tal como existe aí o Livro de Arvores das Familias da Ilha da Madeira, tiradas fielmente dos nobiliários que escreveu Henrique Henriques de Noronha, datado de 1764 (BNP, res., Livro de Arvores..., 1764, f. I). Para além de outros escritos de Noronha, a BNP possui ainda uma outra versão das Memorias Seculares e Ecclesiásticas, talvez mais fiável do que a editada em 1996, que seguiu o exemplar da BMF, copiado em 1925-26, por João José Maria Rodrigues de Oliveira.

A família de Henrique Henriques de Noronha é bem o espelho desta época e da necessidade dos trabalhos genealógicos para cimentar e justificar arranjos familiares e, acrescente-se, consequentes concentrações patrimoniais. Filho de Pedro Bettencourt Henriques (1632-1687), segundo descendente de António Correia Henriques (1601-1670) que, por falecimento do herdeiro, sucedera na casa dos seus avós e de D. Maria de Meneses (1632-1699), irmã da sua cunhada e filha de António Correia Henriques, seu tio, era o terceiro filho do casamento, que registou mais sete filhos e cinco filhas. Henrique Henriques estudou cânones na Universidade de Coimbra, entre 1682 e 1684, o que lhe abriu caminho para uma formação clássica e religiosa, patente nas suas obras. Casou a 26 de junho de 1692, na sé do Funchal, com sua prima D. Francisca de Vasconcelos, da qual teve uma filha, D. Antónia Joana Francisca Henriques de Noronha (1693-1746), que também veio a casar com um primo, António Correia Bettencourt Henriques (1690-1763). Figura de destaque da sociedade madeirense da época, membro e mordomo de várias confrarias, foi eleito provedor da misericórdia do Funchal, função que desempenhou entre 1706 e 1707, e foi ainda administrador do recolhimento do Carmo, cujo morgadio herdara pelo falecimento do seu tio Inácio Bettencourt da Câmara, tendo sido sepultado na capela-mor daquela igreja, no túmulo dos Brandão, fundadores daquele recolhimento (Igreja e recolhimento do Carmo).

Todos os restantes filhos seguiram a carreira religiosa: António Correia Bettencourt (1664-1725), o segundo, foi um célebre deão da sé do Funchal; Fr. Pedro de Noronha (1670-?), foi religioso de São Jerónimo e depois reitor do colégio de Coimbra; Fr. Francisco de Bettencourt (1671-?), religioso da mesma ordem, em Belém; Gaspar de Bettencourt (gémeo do anterior), que professou na Companhia de Jesus, mudando o nome para Leão Henriques, em homenagem ao seu avô, foi principal dos Jesuítas em Portugal nos finais do séc. XVI (c. 1520-1589); Lucas de Bettencourt (c. 1673-1704), que professou na ordem de S. Francisco, mudando o nome para Fr. Henrique dos Serafins, foi aluno da Universidade de Coimbra, em teologia, entre 1728 e 1729, mas surge referido como padre religioso jerónimo, o que não confere com os dados fornecidos pelo irmão Henrique Henriques de Noronha, e depois pregador do convento do Funchal; e Tomás de Bettencourt Henriques (1675-c. 1720), o mais novo, mas que também chegou a cónego da sé do Funchal e tesoureiro-mor do cabido. Ao longo do séc. XVIII, o lugar de tesoureiro-mor da Sé do Funchal, esteve quase sempre ocupado por membros desta família, pois, em 1749, foi provido como mestre-escola da sé o cónego Francisco Cândido Correia Henriques que, em 1758, foi igualmente provido como tesoureiro-mor.

Houve ainda as seguintes filhas: D. Mariana de Meneses (1668-1759), a mais velha, que casou com um dos netos do Ten.-Gen. Inácio de Câmara Leme (1630-1694) (tenente-general), Pedro Júlio da Câmara Leme (1678-1742), irmão de D. Isabel de Castelo Branco, que tinha contraído matrimónio com o irmão mais velho dos Henriques de Noronha; e D. Maria, D. Teresa, D. Antónia, D. Filipa e D. Rosa, todas Meneses e freiras no convento de santa clara, posição bem sintomática da necessidade de concentração dos morgadios. Aliás, o mesmo acontecia nas casas continentais com as filhas que não era possível enquadrar na concentração dos morgadios. O governador da Madeira na época, Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, em carta de dezembro de 1711, escrita para o P.e Fr. Vicente Tavares, em Lisboa, para tratar, essencialmente, do resgate do seu irmão Fr. Francisco de Meneses, capturado por piratas argelinos, referiu: “É verdade que eu me tenho achado bem neste governo e, graças a Deus, não tenho queixa, nem da gente, nem da terra. Tenho dois filhos e cinco filhas, os mais deles ilhéus. Paguei as dívidas de meu pai e fica-me com que fazer minhas filhas freiras” (SILVA, 1992, 76).

O já referido Nobiliario Genealogico das Famillias que Passaram a Viver à Ilha da Madeira, de Henrique Henriques de Noronha, foi a base de praticamente todas as genealogias seguintes, embora não se encontre isento de críticas, muitas delas hoje fundamentadas. Noronha encontrava-se muito bem informado, possuindo, inclusivamente na sua biblioteca, cópias dos principais trabalhos sobre a história da Madeira e mesmo outros, como o Nobiliário de Segredos Genealógicos, atribuído a Manuel de Carvalho e Ataíde (c. 1676-1720), uma obra que anotou diligentemente. Mas verifica-se que acabou por utilizar apenas o que lhe convinha. Foi assim acusado de ocultar, p. ex., a origem de um dos seus ascendentes, João Afonso, que se fixara na Madeira por volta de 1466, casado com Inês Lopes e que aponta como sendo João Afonso Correia, “dos primeiros e principais povoadores que passaram a viver nesta ilha no seu descobrimento; e entre os companheiros nobres de João Gonçalves Zarco” (NORONHA, 1948, 151-152), tendo sido tronco dos Correias e depois dos Torre Bela. Ora se João Afonso se fixou na Madeira em 1466, ainda poderá ter conhecido Zarco, falecido por volta de 1471, mas não foi, por certo, um dos seus companheiros de 1420.

Uma carta divulgada pelo investigador Jorge Guerra, enviada pelo vigário da Fajã da Ovelha, Manuel Sulpício Pimentel da Area, natural do Funchal, a seu irmão, António Xavier Pimentel, é particularmente demolidora dos descendentes dos Correia de Câmara de Lobos. Em causa estava a nomeação de um bisneto de Henrique Henriques de Noronha, António João Correia Brandão Henriques e a eleição, provavelmente fraudulenta, em que este havia sido preferido, entre outros nomes, para a mesa da misericórdia do Funchal. O vigário da Fajã da Ovelha, que deveria ter queixas antigas dos Henriques, acusou-os então de serem descendentes de Inês Lopes, logo, de serem todos “tidos e havidos por cristãos-novos”, para além de não poupar o genealogista, que era também “descendente de uma negra” (BARROS e GUERRA, 2003, 218-219). Henrique Henriques de Noronha “para ofuscar as notas que padecia no sangue e na qualidade, destruiu e aniquilou com água-forte dois livros, um de casados, outro de batizados da freguesia da Sé”, para depois “fingir justificações e brasões perfumando-os com fumos de tabaco para lhes dar cor de antiguidade”, que introduziu “nos cartórios desta cidade, para ao depois tirar por certidão, enobrecendo desta sorte e falsamente aos seus avoengos” (Id., Ibid., 218-219).

Jorge Guerra confirmou, efetivamente, as dificuldades dos citados livros de casamentos e batizados e que tinham sido arrancadas as folhas correspondentes às cartas de vizinhança de João Afonso, mercador e ainda o pormenor, mais estranho, de existirem cópias das mesmas nos arquivos da família Torre Bela, transladados pelo punho de Henrique Henriques de Noronha. Um desses documentos menciona um agravo efetuado pelo mercador João Afonso, em janeiro de 1477, afirmando-se “que havia dez anos, pouco mais ou menos, que ele vivia na dita ilha” (ARM, Arquivos particulares, Família Torre Bela), o que invalida a afirmação de Noronha sobre o seu remoto avô ter partido para a Madeira com Zarco, tal como a dele ter sido servidor da casa do infante D. Henrique. Por essas e outras razões, o investigador Dr. Ernesto Gonçalves (1898-1982), dentro da sua excecional e habitual polidez, haveria de o rotular de “rigoroso zelador da boa fama da nobreza instalada” (VAZ, 1964, 223).

Idêntica situação se coloca com a família dos Ornelas de Vasconcelos, justificando dois volumes de genealogias do P.e José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara (1728-1798), filho do 8.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736) e de Cecília de Aguiar França: Noticia Breve mas Verdadeira das Illmas. Familias dos Ornellas, Cabrais, Carvalhaes e Esmeraldos, e Outras a Ellas Unidas, de 1766, onde o autor se intitula comissário do Santo Ofício. Mais uma vez, abundam os equívocos, logo no título dos volumes das genealogias, pois o clérigo em causa foi sendo preterido na nomeação como notário do Santo Ofício e só o foi após a abolição dos róis do finto, outorgada em 1768, tendo tido despacho favorável a 26 de setembro de 1769. O padre genealogista era filho de Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736), neto de Agostinho de Ornelas de Moura ou Agostinho de Ornelas de Vasconcelos (1650-1718) e de D. beatriz de Mariz, filha do mercador Gaspar Fernandes Gondim, fundador da capela de N.ª S.ª dos Anjos da sé do Funchal e bisneto de Aires de Ornelas de Vasconcelos (1620-1689) e de D. Maria de Sande, com quem casara na Baía, filha do célebre Francisco Fernandes da Ilha ou Francisco Fernandes de Oucim (1591-1664).

O Cap. Francisco Fernandes da Ilha, cedo saiu da Madeira. Esteve em Angola e fixou-se depois na Baía. Considerável produtor de açúcar, granjeou avultada fortuna, sendo cavaleiro da Ordem Militar de S. Tiago, dado ter combatido os holandeses em Angola e na Baía; foi também provedor da misericórdia da Baía, em 1656, ainda existindo o seu retrato a óleo e a corpo inteiro na sala de reuniões da confraria. Era filho de Simão Fernandes, fanqueiro, que casara em 1584, com Maria Dias, sendo todas as testemunhas do casamento “gente de nação” e então mercadores do Funchal. Os descendentes vieram a trocar as profissões do avô, passando fanqueiro a sirgueiro e a calceteiro, mas a marca de cristão-novo, numa sociedade limitada como a da Madeira, não era fácil de apagar. E isto para não falar já de outras linhas, como a dos Ornelas Rolim de Moura, pois eram descendentes do mercador João de Caus (m. c. 1622), de origem francesa, que chegou a ser cônsul de França no Funchal e casara com D. Maria de Moura, filha de Mem de Ornelas de Vasconcelos e de D. Antónia de Vasconcelos. Um dos filhos, João de Moura Rolim (m. 1640), mandou levantar a capela do Santíssimo da igreja matriz de São Pedro do Funchal, mas os livros de óbitos da Sé encontram-se cheios de acusações de que, para além de outros, “todos os Mouras Rolins eram cristãos-novos” (BARROS e GUERRA, 2003, 216-217).

A partir dos finais do séc. XVIII, as genealogias entram um pouco em declínio, remetendo-se para uma ciência fechada sobre si própria, algo hermética e pouco acessível, muitas vezes reduzida a “árvores de costados” como as Genealogias Madeirenses de António Bettencourt Perestrelo de Noronha. Ao longo do séc. XIX, estes trabalhos conheceram, inclusivamente, reserva por parte de alguns historiadores, dada a repetição exaustiva e não referenciada dos sujeitos, dos casamentos e da descendência, não sendo fácil encontrar sequências, pessoas, funções ou outros. Pontualmente, no entanto, encontram-se referências a trabalhos mais desenvolvidos neste âmbito, como os colecionados pelo Dr. João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), conhecido como “Dr. Piolho”, dada a sua fraca estatura, “constitucional exaltadíssimo, advogado distinto e homem bastante erudito” (SILVA e MENESES, I, 1998, 381), mas de que pouco chegou até nós. Porém, ao longo do séc. XIX, continuaram os trabalhos genealógicos, devendo-se a Felisberto Bettencourt de Miranda (1816-1889), amanuense da Câmara do Funchal, o manuscrito Apontamentos para a Genealogia de Diversas Famílias da Madeira, Coleccionados de 1887 a 1888, hoje na BMF, por ventura o trabalho mais completo.

Entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, os trabalhos de genealogia anteriores conheceram, inclusivamente, alguma rejeição por parte de determinados investigadores, que os acusavam de ser obras fascinadas “por vãs e ingénuas ficções com que se ornamentam origens familiares”, como referiu o Dr. Ernesto Gonçalves (VAZ, 1964, 9). No entanto, nos meados do séc. XX, este género de investigação disparou exponencialmente com a constituição do Arquivo Regional da Madeira e o trabalho do seu primeiro diretor, João Cabral do Nascimento (1897-1978), em especial, através da revista Arquivo Histórico da Madeira, cujo primeiro número saiu em 1931, no próprio ano da fundação da instituição, tendo aquele diretor contado com a colaboração do conservador Álvaro Manso de Sousa (1896-1953). Nos anos seguintes, as genealogias contariam ainda com o apoio de Luiz Peter Clode (1904-1990), um dos elementos fundadores da sociedade de Concertos da Madeira, também através de uma revista, Das Artes e Da História da Madeira, cujo primeiro número saiu como suplemento semanal de O Jornal, nos anos de 1948-1949, passando depois a folheto colecionável e durando até 1971.

A época do Estado Novo conheceu um alargado interesse por este tipo de trabalhos, destacando-se, entre outros e para além dos autores citados, os trabalhos de Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas (1912-2000), que, embora não residente na Madeira, nutria pela Ilha uma muito especial admiração e interesse. O autor mais produtivo foi, sem dúvida, Luiz Peter Clode, que, progressivamente, coligiu e editou os seus trabalhos, inicialmente saídos na citada revista, entre eles Registo Genealógico de Famílias que passaram à Madeira, Andradas do Arco, Cabrais e Pontes de Gouveia, Genealogia da Família Clode, Genealogia da Família Andrade ou Andrada, Genealogia da Família Drummond e Descendência de D. Gonçalo Afonso D’Avis Trastâmara Fernandes, O Máscara de Ferro Madeirense. Estes trabalhos, no entanto, repetem-se exaustivamente e nem sempre tiveram boa aceitação por parte de alguns genealogistas, e, salvo o colossal trabalho de Fernando de Meneses Vaz (1884-1954) Famílias da Madeira e porto santo, de que, infelizmente, só foi publicado o primeiro volume, anotado por Luiz Peter Clode e por Ernesto Gonçalves, acrescentam muito pouca novidade à investigação genealógica, embora se mantenham como obras de referência.

Entre os finais do séc. XX e os inícios do XXI, continuaram a aparecer trabalhos deste âmbito, tanto sobre determinadas famílias, como os Espinoza Martel ou os Perestrelo, como alargados a determinadas áreas locais, e.g. os trabalhos de Luís Francisco de Sousa Melo em relação a Machico e de Lourenço de Freitas em relação a Gaula. A partir dos finais do séc. XX, as genealogias democratizaram-se graças aos meios tecnológicos e à informática, ganhando outro tipo de base de apoio à investigação, e também se personalizaram e comercializaram, representando outra forma de ocupação e de lazer. No entanto, se, por um lado, disparou consideravelmente a divulgação das sequências genealógicas, por outro, também baixou de forma exponencial a fiabilidade geral dos trabalhos disponibilizados, muitas vezes sem indicações de fontes e com o recurso a dados pouco criteriosos.

 

Rui Carita

(atualizado a 01.02.2017)

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