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donatário

Pessoa individual ou coletiva que recebeu uma doação, da qual se torna proprietário ou senhor, dentro de um determinado enquadramento jurídico, advindo daí o termo “senhorio” para a donataria. Este tipo de figura jurídica e administrativa remonta ao direito romano, com as doações das terras conquistadas aos soldados romanos, e percorreu toda a Idade Média, estando, por exemplo, na base da fundação de Portugal, com a doação do condado Portucalense feita pelo Rei de Leão, D. Afonso VI, ao conde D. Henrique de Borgonha, três anos depois de este ter casado com uma filha daquele, D. Teresa, como recompensa pelos serviços prestados na luta contra os mouros. Sendo um contrato, implica sempre obrigações para ambas as partes. Na Idade Média, por exemplo, os laços de vassalagem eram fundamentais e, na doação do condado Portucalense, implicaram que o conde D. Henrique reconhecesse o Rei de Leão como seu senhor e o auxiliasse em caso de guerra. Assim, a doação nunca é incondicional, pois como contrato, compreendendo obrigações e deveres para as partes, deve ser colocada em causa sempre que os pressupostos forem desrespeitados. O termo “doação” tem uma aplicação muito vasta (Capelas e Confrarias), considerando-se aqui, sob o lema “donatário”, a questão da organização jurídico-administrativa da Madeira durante os primeiros séculos da sua ocupação, em concreto, a forma como foi originalmente estruturada a administração da Ilha. [caption id="attachment_8497" align="alignleft" width="176"] Infante D. Henrique - Escultura de Francisco Franco-1931-MMLisboa. Arquiv. Rui Carita[/caption] O povoamento do arquipélago foi iniciado por ordem de D. João I (1357-1433), em 1421, como referem os cronistas, ou em 1425, o mais tardar, data em que se encontram pessoas a viver efetivamente na Ilha. Neste último ano, D. João I terá emitido o seu regimento de povoamento, de que só conhecemos uma cópia mais tardia – uma confirmação de D. João II (1455-1495) de 7 de maio de 1493 –, tendo a direção dos negócios desta nova atividade real passado a ser fortemente disputada pelos infantes. Por morte de D. Lopo Dias de Sousa, em 1420, D. João I solicitou a Roma a nomeação do seu filho D. Henrique (1394-1460) para mestre e governador da Ordem de Cristo. Pretendia-se que os rendimentos dessa Ordem militar, de acordo com o espírito da fundação da mesma, fossem aplicados na luta contra os mouros e na dilatação da fé católica. A defesa de Ceuta era então uma preocupação do Monarca, pelo que as despesas daí resultantes teriam de ser, em larga medida, cobertas pela mesma Ordem. A ideia do povoamento da Madeira surgiu na sequência do descerco de Ceuta, nos finais de 1419, e da defesa da costa do Algarve, em que esteve empenhado o infante D. Henrique. Foram João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471) e Tristão Vaz Teixeira (c. 1395-1480), dois dos escudeiros “pobres” do infante, no dizer de alguns cronistas da época, que a propuseram e que se deslocaram à Ilha para fazerem o reconhecimento. No entanto, quando se iniciou o povoamento, acompanhou Zarco e Tristão um outro escudeiro ou pequeno fidalgo, Bartolomeu Perestrelo (c. 1400-1458), que pertencia à casa do infante D. João (1400-1442), mestre da Ordem de Santiago. O infante D. Henrique terá sido um elemento ativo nos incentivos ao povoamento, em nome de seu pai, como indica na sua carta testamentária, de 18 de setembro de 1460: “Comecei a povoar a minha ilha da Madeira haverá agora 35 anos, e assim mesmo a de Porto Santo, e daí prosseguindo a Deserta” (ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 516). O testamento do infante D. Henrique foi feito a favor de seu sobrinho, o infante D. Fernando (1433-1470), filho do Rei D. Duarte (1391-1438), a quem deixou a Ordem de Cristo e os senhorios atlânticos que lhe tinham sido dados pelo Rei e pai pelo espaço de uma vida; ainda assim, doou algumas ilhas dos Açores ao então Rei D. Afonso V (1432-1481). [caption id="attachment_8493" align="aligncenter" width="475"] Carta testamentaria do Infante D. Henrique 18 set 1460. Arquiv. Rui Carita[/caption] Após a morte de D. João I, em agosto de 1433, o infante D. Henrique conseguiu do novo Rei, o seu irmão D. Duarte, logo a 26 de setembro, a doação do arquipélago e também do “espiritual” das ilhas à Ordem de Cristo, de que era administrador (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 1, fl. 218). O Rei D. Duarte doou a seu irmão D. Henrique as “suas ilhas” da Madeira, Porto Santo e Deserta, com todos os direitos e rendas que até aí retivera. Neste documento, o Rei declarou o endosso ao infante D. Henrique “da jurisdição civil e crime, salvo em sentença de morte ou talhamento de membro”, casos em que, conforme era costume, ressalvava para si a resolução final (Id., Ibid., fls. 128-132). O infante D. Henrique ficou ainda autorizado a fazer naquelas ilhas todos os “proveitos e benfeitorias” que lhe parecessem para bem delas, tal como aforar, “em perpétuo ou a tempo”, todas as terras que entendesse, com o direito de dádivas de terrenos e com a remissão de qualquer foro, prerrogativa que o infante conservaria em sua vida (Id., Ibid.). Para além das questões da justiça, que enformaram os séculos seguintes nas ilhas e demais territórios portugueses, o Rei fez mais uma restrição: o donatário, ou seja, o infante D. Henrique, não poderia cunhar moeda própria nestes territórios, pois D. Duarte queria, e afirmou-o, que a sua moeda aí corresse. O Rei reservou ainda para si o foro e certos direitos reais, como a dízima do pescado. Todavia, alguns anos depois, durante os primeiros tempos da regência do infante D. Pedro (1392-1449), D. Henrique conseguiu dispensar os ocupantes da Madeira de alguns destes impostos, por um determinado período. Mais tarde, o Rei D. Afonso V reequacionou o assunto, exigindo o pagamento, no que teve o apoio da infanta D. Beatriz (c. 1420-1506), que várias vezes escreveu para a Ilha a exigir os pagamentos em atraso. O sistema administrativo das donatarias que foi aplicado nas terras portuguesas de além-mar, iniciado na ilha da Madeira e depois exportado para os restantes domínios da Coroa, nasceu da impossibilidade de o Monarca exercer diretamente o seu poder sobre essas terras. A donataria foi um instrumento a que o Rei recorreu, de início (e, até certo ponto, condicionado pela ação do infante D. Henrique e pela Ordem de Cristo), para delegar os seus poderes, com algumas restrições, nem sempre cumpridas, em pessoas da sua inteira confiança. Assim, competia ao donatário administrar a terra em nome do soberano, considerando-se aquela à luz dos limites legais que constituíam a donataria, com regalias, direitos e obrigações próprias, bem definidas, e restringindo-se a ação do donatário em diversos campos, nomeadamente o da justiça, que veio a ser dos mais controversos. Deste modo, o sistema de donatarias estabeleceu-se por toda a área atlântica, sem excluir a costa da Guiné e o Brasil. Os donatários atuaram de dois modos distintos: designando capitães, os chamados “capitães do donatário”, que exerciam localmente os seus poderes, com ainda mais algumas restrições, como aconteceu na Madeira e no Porto Santo; ou transferindo-se, eles mesmos, para esses domínios, a fim de os administrarem diretamente e de obterem maiores proveitos, acumulando as funções de donatários e de capitães. No Oriente, optou-se pela solução de um governador, ou até vice-rei, que substituía o Monarca; o mesmo veio a acontecer no Brasil, com a criação de uma capitania-geral, embora no âmbito de certas diretivas, levadas de Lisboa, sobre atos administrativos, financeiros, legais e de guerra concernentes ao respetivo mandato. Criadas as capitanias, antes da doação do Rei D. Duarte ao infante D. Henrique, as mesmas foram confirmadas por D. Afonso V, mas também com alguns problemas no âmbito da justiça. D. Henrique, por testamento, veio a deixar os seus senhorios atlânticos ao sobrinho, o infante D. Fernando, com referimos, de forma não definitiva, mas por uma vida, aspeto que o Rei veio a alterar, a 7 de março de 1436. Falecido D. Duarte, a doação foi confirmada pelo infante D. Pedro, em nome de D. Afonso V, a 11 de março de 1449, a pedido de D. Henrique, alegando que os originais se haviam degradado. A mesma voltou a ser alterada e novamente confirmada, como de juro e herdade (logo, transmissível a herdeiros, neste caso, ao infante D. Fernando), a 18 de janeiro de 1452, o que foi transmitido à Madeira, a 16 de agosto de 1461. Com todas estas alterações, o testamento de D. Henrique acabou por ter duas versões. A donataria das ilhas atlânticas portuguesas veio, depois, a ser administrada pela infanta D. Beatriz, entre 1470 e 1483, durante a menoridade dos seus filhos. O donatário seguinte foi o seu filho D. Diogo (1450-1484), duque de Viseu e, assassinado por se haver envolvido numa conspiração contra D. João II, sucedeu-lhe o irmão mais novo, D. Manuel (1469-1521). Inesperadamente, este foi nomeado herdeiro da Coroa pelo Rei D. João II, depois de o seu primogénito, o infante D. Afonso (1475-1491), ter falecido num acidente. Assim, com a subida ao trono de D. Manuel, em 1495, as donatarias entraram para a Coroa, configurando-se um quadro mais institucional. Alguns anos depois, por volta de 1590, o cronista Gaspar Frutuoso, noutro contexto, escreveu que D. João II avaliaria a situação de uma forma diferente, entendendo que a ilha da Madeira “era razão, por ser coisa tamanha”, para integrar a Coroa: “se tornasse à Coroa e aos reis destes reinos que os sucedessem” (AZEVEDO, 2007, 12). As palavras do Rei teriam sido uma “profecia do que ao diante se viu, pois tudo foi como ele então disse” (Id., Ibid., 313). Já noutro contexto, a 1 de novembro de 1656, o Rei D. João IV (1604-1656), poucos dias antes de morrer, doou a ilha da Madeira, “com todos os seus lugares”, bem como a cidade de Lamego e a vila de Moura, “com todas as suas rendas e direitos, foros, tributos, ofícios, datas, castelos e padroados, exceto alfândegas, sisas” e os bispados, “que sempre ficarão na provisão da Coroa”, a sua filha D. Catarina de Bragança (1638-1705) (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 6, fls. 135-135v.). A apresentação e o registo destes documentos foram feitos no Funchal, somente quatro anos depois, a 7 de dezembro de 1660, pelo Gov. Diogo de Mendonça Furtado (Furtado, Diogo de Mendonça), como procurador da infanta. Em 1660, terão decorrido as negociações para o casamento de D. Catarina de Bragança com o Rei Carlos II de Inglaterra (1630-1678), iniciadas oficialmente no ano seguinte, sendo o contrato matrimonial assinado em 1662. A Madeira terá chegado a integrar, numa primeira hipótese, o dote da infanta, mas, posteriormente, o dote acabou por compreender apenas as cidades de Tânger e de Bombaim, para além de um importante montante, a ser pago pelas rendas do Brasil. Tudo leva a crer, assim, que a doação da Madeira à infanta e futura Rainha de Inglaterra foi forjada, em meados de 1660, pois a 1 de novembro de 1656, o Rei D. João IV não estava em condições de a assinar e, inclusivamente, a doação “original” que o governador levou consigo para o Funchal, em finais de 1660, e mandou registar na Câmara, depois de transcrita, voltou à sua posse, ficando na Ilha somente a carta da rainha regente D. Luísa de Gusmão (1613-1666), que a enviava. Alterados os domínios portugueses a incluir no dote de D. Catarina, o assunto praticamente não voltou a ser referido. [caption id="attachment_8501" align="alignright" width="327"] Infante D. Henrique - escultura de Leopoldo de Almeida. Arquiv. Rui Carita[/caption] [caption id="attachment_8504" align="alignnone" width="330"] O Infante D Henrique e a Descoberta e Povoamento do arquipélago da Madeira - Juvenal Pita Ferreira_1960. Arquiv. Rui Carita[/caption] Bibliog.: manuscrita: ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 516; ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombos 1 e 6; BNP, reservados, cód. 8391, Index Geral do Registo da Antiga Junta e Provedoria da Real Fazenda do Funchal; impressa: ALBUQUERQUE, Luís de, e VIEIRA, Alberto, O Arquipélago da Madeira no Século XV, Funchal, DRAC, 1987; AZEVEDO, Álvaro Rodrigues de, “Notas”, in As Saudades da Terra pelo Doutor Gaspar Frutuoso, Manuscrito do Século XVI, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007; AZURARA, Gomes Eanes de, Crónica dos Feitos da Guiné, Lisboa, Alfa, 1989; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. i, Funchal, SER, 1999; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita, As “Notas para a História da Ilha da Madeira” no Pelourinho, Funchal, ed. do Autor, 1959; Id., O Arquipélago da Madeira, Terra do Senhor Infante, Funchal, JGDAF, 1959; Id., O Infante D. Henrique e a Descoberta e Povoamento da Ilha da Madeira, Funchal, JGDAF, 1960; SALDANHA, António Vasconcelos de, As Capitanias. O Regime Senhorial na Expansão Ultramarina Portuguesa, CEHA, Funchal, 1992; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000. Rui Carita (atualizado a 05.04.2016)

diáspora, conceito de

O termo “diáspora” define, no grego clássico, a dispersão dos povos, tendo sido originalmente utilizado para se referir à migração das comunidades gregas pela bacia do Mediterrâneo e, posteriormente, à do povo judaico no mundo antigo a partir do exílio na Babilónia e da destruição de Jerusalém. Dentro deste contexto, estendeu-se à dispersão dos cristãos-novos ibéricos ao longo do séc. XVI, principalmente para a cidade de Amesterdão, onde se fixaram alguns Madeirenses, e, com a implantação da Autonomia, nos finais do séc. XX, o termo foi extensivo às inúmeras comunidades madeirenses da Venezuela, Brasil, Canadá, África do Sul, etc., as quais, de alguma maneira, mantiveram viva a memórias das suas origens.   Palavras-chave: Casas da Madeira; Cristãos-novos; Emigração; Igreja Metodista; Festividades religiosas. O termo “diáspora” define, no grego clássico, a dispersão dos povos, tendo sido originalmente utilizado para a migração das comunidades gregas pela bacia do Mediterrâneo, nos meados do 1.º milénio a.C., fundando novas comunidades. Foi posteriormente divulgado através da tradução da Septuaginta, ou seja, o Antigo Testamento, em grego, onde se inscrevia como uma maldição, a de que o povo judaico ficaria disperso por todos os reinos da Terra. O termo passou, assim, a significar o deslocamento, normalmente forçado ou incentivado, de grandes massas populacionais originárias de uma determinada zona para várias áreas de acolhimento distintas, em especial o povo judaico no mundo antigo, a partir do exílio na Babilónia, no séc. VI a.C., e, mais diretamente, depois da destruição de Jerusalém, em 70 d.C. Dentro deste contexto se tem estendido o termo “diáspora” à dispersão dos cristãos-novos ibéricos ao longo do séc. XVI, principalmente para a cidade de Amesterdão, onde se fixaram alguns madeirenses. Até aos meados do séc. XX, a utilização deste termo restringiu-se ao povo judaico, mas, com as perseguições ocorridas na Segunda Guerra Mundial (Segunda Guerra Mundial) e a constituição, depois, do Estado de Israel, conheceu uma grande divulgação. Em termos gerais, “diáspora” pode assim significar a dispersão de qualquer povo, total ou parcialmente, muito em particular quando estão em causa motivos religiosos e, também, quando a sua apologia é feita por elementos dessa mesma corrente religiosa. Assim se tem utilizado o termo em relação à migração forçada dos presbiterianos madeirenses do reverendo escocês Robert Reid Kalley (1809-1888), obrigado a sair do Funchal em 1846, assim como muitos dos seus discípulos. Uma parte dos mesmos veio a fixar-se em Illinois, nos Estados Unidos da América, daí irradiando depois a Igreja Presbiteriana Escocesa para as colónias portuguesas de Demerara, Trindade e Tobago, assim como para o Brasil e, inclusivamente, para o continente português, como foi o caso, depois, do Porto e de Vila Nova de Gaia. Para além de inúmeras publicações sobre o tema, inclusivamente do Rev. Kalley, o mais recente trabalho é de Ferreira Fernandes (2004), infelizmente não um trabalho de história, mas de jornalismo. A ideia de que poderiam ter saído da Madeira 2000 ou mais pessoas por motivos religiosos não resiste a qualquer análise, pois contabilizaram-se todos os elementos que nesse período de fome emigraram da Ilha, uma vez que os seguidores do reverendo escocês, do Funchal e do Santo da Serra, não chegavam, na melhor hipótese, às duas centenas. O termo, entretanto, dadas as suas conexões com o povo judaico, não foi na generalidade utilizado na Madeira até muito recentemente, não aparecendo mencionado, por exemplo, no Elucidário Madeirense (1998), nem nas Ilhas de Zargo (1967), obras emblemáticas do Estado Novo na Ilha e várias vezes reeditadas. [caption id="attachment_8472" align="alignright" width="243"] Cartaz Madeira Park Georgina Toronto, Canada. Foto Arquv. R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8478" align="alignnone" width="236"] Festas de N. Sª do Monte no Canadá. Foto: Arquv. R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8475" align="aligncenter" width="407"] Arraial madeirense no Canadá. Foto: Arquv. R. Carita[/caption] No período autonómico dos finais do séc. XX, entretanto, o termo foi extensivo às inúmeras comunidades madeirenses, especialmente da Venezuela, mas também do Brasil, como em Santos, do Canadá ou da África do Sul, entre outras, as quais, de alguma maneira, mantiveram viva a memória das suas origens, inclusivamente fundando casas da Madeira, organizando festas por ocasião das celebrações religiosas mais comuns na Ilha, como as de N.ª Sr.ª do Monte, criando grupos folclóricos, etc., associando-se, assim, ao anterior cariz religioso também um sentido étnico, folclórico e cultural. [caption id="attachment_8482" align="alignright" width="318"] Africa do Sul Casa da Madeira em Pretoria com Miss Comunidades. Foto Arqui. R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8485" align="alignnone" width="314"] Grupo folclórico da Casa da Madeira de Pretória-julho 2008. Foto Arqui. R. Carita[/caption]   [caption id="attachment_8488" align="aligncenter" width="720"] Grupo folclórico da Casa da Madeira de Pretória-2008. Foto Arquv. R. Carita[/caption] Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. VII, Funchal, Secretaria Regional de Educação, 2008; Id., 30 Anos de Autonomia: 1976-2006, 2.ª ed., Funchal, Assembleia Legislativa da Madeira, 2008; FERNANDES, Ferreira, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004; KALLEY, Robert Reid e VASCONCELOS, Manuel de Sant’Ana, O Catolicismo em Perigo na Madeira do Século XIX, Lisboa, Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal, 2007; NOGUEIRA, António de Vasconcelos, “Evocação da Diáspora Sefardita”, Boletim Municipal de Aveiro, ano XIV, n.º 28, 1996, pp. 73-82; Id., “Memória da Diáspora Hispano-Portuguesa em Amsterdão: Elementos de Bibliografia”, Revista da Universidade de Aveiro – Letras, n.º 16, 1999, pp. 173-209; Id., “O Brasileiro de Torna-Viagem e o Protestantismo Português: Influências Socio-Económicas e Imagem”, in BARKER, Anthony David (ed.), O Poder e a Persistência dos Estereótipos / The Power and Persistence of Stereotyping, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2004, pp. 81-94; Id., “Recensão Crítica: Ferreira Fernandes, Madeirenses Errantes, Lisboa: Oficina do Livro, 2004”, Análise Social, n.º 175, vol. lx, 2005, pp. 406-409; PEIXOTO, Fernando, Diogo Cassels: Uma Vida em Duas Margens, Vila Nova de Gaia, Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 2001; Id., Diogo Cassels (1844-1923): a Praxis ao Serviço da Fé, Porto, Ed. Estratégias Criativas, 2006; PEREIRA, Eduardo Clemente Nunes, Ilhas de Zargo, 2 vols., 3.ª ed., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1967; SILVA, António de Morais, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 10.ª ed., 12 vols., Lisboa e Rio de Janeiro, Confluência, 1949-1959; SILVA, Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998. Rui Carita (atualizado a 20.05.2016)

d’albertis, enrico alberto

Famoso escritor e navegador, Enrico Alberto D’Albertis nasceu em Voltri (Génova), em 1846. Depois de se formar como guarda-marinha, em 1866, no mesmo ano tomou parte na batalha de Lissa, um dos momentos mais infelizes da terceira Guerra de Independência italiana. Em 1870, depois de deixar a Marinha militar, aderiu à Marinha mercante; e, no ano seguinte, liderou o primeiro comboio italiano que atravessou o Canal de Suez. Entre 1874 e 1880, dedicou-se à vela, cruzando o Mediterrâneo a bordo de seu iate Violante. Em 1879, fundou o Royal Yacht Club italiano. Em 1882, viajou para San Salvador a bordo de um barco maior, o Corsaro, refazendo a rota de Colombo. Após o sucesso da primeira empresa, já como comandante de corveta, entre 1895 e 1896, fez uma segunda viagem à volta do mundo. Em 1910, fez a sua terceira e última viagem. D’Albertis morreu em 1932, em Génova, no Castelo de Montegalletto, a sua residência oficial. No verão de 1882, D’Albertis – descrito por um cronista do Caffaro como uma pessoa original, franca e leal, que apreciava a força rude, revelando em todos os seus escritos uma grande competência em matérias marítimas – chegou à Madeira a bordo do cutter Corsaro. Sobre esta viagem publicou, em 1884, a obra La Crociera del Corsaro alle isole Madera e Canarie, impressa em Génova pelo R. Istituto Sordomuti. O capítulo 2 de La Crociera del Corsaro é dedicado inteiramente à ilha da Madeira. O autor especifica logo de início os dados essenciais: “O grupo da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas; está localizado a 340 milhas ao largo da costa de Marrocos e é povoado por cerca de 124.000 habitantes. Parece que esta ilha era já conhecida pelos antigos geógrafos e fazia parte, em conjunto com os Açores e as Canárias, da lendária Atlântida” (D’ALBERTIS, 1884, 26). Depois da informação histórica sobre os primeiros exploradores, D’Albertis demora-se com a descrição geográfica da Ilha, e sugere muitos outros dados interessantes: “Alta e íngreme é a ilha da Madeira, levantando-se ao centro com montanhas rochosas, entre as quais o Pico Ruivo, que atinge os 1845 m; geralmente, as montanhas são atravessadas por vales estreitos, ricos em águas, que muitas vezes formam cascatas belas e abundantes que brotam das densas florestas. Apesar de não haver vestígios de verdadeiras crateras, os picos pitorescos das montanhas sugerem grandes convulsões telúricas. […] As inundações, pelo próprio declive das montanhas, são um dos flagelos mais violentos da Ilha. No início do séc. XVIII, uma dessas inundações destruiu Machico e provocou muitos danos no Funchal, que em 16 de outubro de 1842 foi visitado por um terrível furacão e uma inundação como não se via desde 1803” (D’ALBERTIS, 1884, 30-31). Fornecidas as informações sobre o clima e descrita a geografia da costa, D’Albertis prossegue com detalhes sobre a agricultura local e o cultivo da vinha e da cana-de-açúcar: “Não se pode dizer que a agricultura seja muito cuidada, e as ricas colheitas devem-se mais à fertilidade do solo e à excelente posição da Ilha, do que ao cuidado e à habilidade dos agricultores; mas temos de lhes prestar homenagem pela indústria com que souberam preparar terrenos cultiváveis, transformando, como os camponeses da Ligúria, encostas íngremes e ravinas em terraços bem suportados, ou degraus capazes de ser cultivados” (D’ALBERTIS, 1884, 36-37). O estilo da obra é original, sintaticamente rico e, às vezes, quase poético e evocativo, ainda que nos modos próprios da sua época: “Ó Madeira! Madeira! Quanto és bela, quão charmosa, contemplada do alto das tuas pitorescas montanhas! O olhar humano nunca ficaria saciado a admirar as tuas alegres colinas, as tuas verdejantes encostas cobertas de cedros e pinheiros, as imponentes ravinas com os seus terraços cultivados, as tuas espumantes cascatas, os campos férteis ainda mais encantadores pelo teu clima temperado e por um ar pleno dos inúmeros aromas dos teus jardins! Até os muros que cercam as propriedades limítrofes às ruas, quase tímidos e envergonhados, estão escondidos sob um espesso manto de folhagem, flores e trepadeiras. E nem o próprio cemitério é grave e triste; pelo contrário, é um vasto quadrado multicolor, com massas de gerânios e hortênsias, arbustos de pitósporos e de oleandros, que escondem a melancolia daquele lugar de paz e repouso, que recorda claramente os mitológicos Campos Elísios!” (D’ALBERTIS, 1884, 42). Obras de Enrico Alberto D’Albertis: La Crociera del Corsaro alle isole Madera e Canarie (1884). Bibliog.: D’ALBERTIS, Enrico Alberto, La Crociera del Corsaro alle isole Madera e Canarie Genova, R. Istituto Sordomuti, 1884;FORNAROLI, Livia Albertina, Ardita gente ligure. Enrico Alberto d’Albertis, Genova, Bozzo & Coccarello, 1935; PASCALE, Andrea de, Enrico Alberto d’Albertis: il Finalese e la collaborazione con Arturo Issel, Atti del convegno Nascita della Paletnologia in Liguria, Bordighera, Istituto internazionale di Studi Liguri, 2008, pp. 337-346; digital: SURDICH, Francesco, “D’Albertis, Enrico Alberto”, in Dizionario Biografico degli Italiani, vol. 31, Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1985: http://www.treccani.it/enciclopedia/enrico-alberto-d-albertis_(Dizionario_Biografico)/ (acedido a 16 mar. 2016). Chiara Tommasi (atualizado a 05.04.2016)

araújo, juvenal henriques de

[caption id="attachment_8468" align="alignleft" width="221"] Juvenal Henriques Araújo, 1932. Fotografia Vicentes[/caption] Juvenal Henriques de Araújo nasceu no Funchal, à Calçada do Dr. Nuno Teixeira (posterior Calçada do Pico), n.º 49, no dia 21 de novembro de 1892. Era filho de João Isidoro de Araújo Figueira (1859-1934) e Virgínia Henriques de Araújo (1877-1966). Concluído o ensino secundário no Liceu do Funchal (1903-1909), matriculou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, onde conviveu com Salazar e o então P.e Manuel Gonçalves Cerejeira, futuro cardeal patriarca de Lisboa. Em 1912, fez parte da direção do CADC (Centro Académico da Democracia Cristã) na qualidade de 2.º secretário e foi um dos fundadores do seu porta-voz, o jornal Imparcial. A 17 de outubro de 1910, poucos dias depois da revolução republicana, na sequência de tumultos na Universidade de Coimbra, onde era reitor o Dr. Manuel de Arriaga, os professores Teixeira de Abreu e José Tavares, que tinham militado no Partido Regenerador-Liberal, são convidados a afastarem-se momentaneamente, a fim de acalmarem os ânimos. Algum tempo depois, os mesmos professores são demitidos pelo Governo, que alegou abandono do lugar. Um grupo de estudantes, no qual se incluía Juvenal de Araújo, publica, em 1911, no jornal Nação, um libelo acusatório desta perversidade política, em tom muito incisivo, sarcástico, mas brilhante, de que resultou a reintegração dos referidos professores. Após a licenciatura, concluída em 1914, regressou ao Funchal, passando a desempenhar a sua atividade profissional como advogado, consultor jurídico da firma William Hinton & Sons, diretor do Banco Madeira e professor do ensino secundário, primeiro no Liceu, como provisório, e depois na Escola Industrial António Augusto de Aguiar, posterior Escola Secundária Francisco Franco (1927-1962), como efetivo. A 31 de julho de 1918, casou com Maria Noémi Henriques Rodrigues (1899-1974), filha de João Anacleto Rodrigues (1869-1948) e de Luísa Capitolina Henriques (falecida a 12 nov. 1963). Do casamento nasceram dois filhos: Duarte Manuel Rodrigues de Araújo (1919-1989), licenciado em Direito (UL, jul. 1948) e padre (ordenado a 21 fev. 1948), e Juvenal Rodrigues de Araújo, nascido em 1920, igualmente licenciado em Direito e advogado. Por escritura pública, lavrada a 19 de abril de 1922, no cartório do notário Frederico de Freitas, o seu sogro, dois irmãos deste, Henrique Augusto e Alfredo Guilherme, e ainda Francisco Leão de Faria, Francisco Roberto Câmara e Juvenal de Araújo fundam a casa bancária Rodrigues, Irmãos & Companhia, entrando os três primeiros com o capital de 200 contos cada um e os restantes com 50 contos cada um. Tendo imediatamente entrado com 50 % do capital, os sócios preencheram a totalidade do mesmo em junho de 1923. Entre 1922 e 1929, Juvenal de Araújo foi o gerente da nova casa bancária. Na sequência dos reflexos na Madeira da grave crise económica e financeira de 1929, esta casa bancária, o Banco Sardinha e o Banco Madeira (surgido a 24 abr. 1920) fundem-se, por imposição do decreto n.º 23.026, de 12 de setembro de 1933, tendo sido adotada a designação do último. O Conselho de Administração do novo banco era composto por Juvenal de Araújo, António Bettencourt Sardinha e Leonel Luís, representando respetivamente os três bancos então fundidos. O novo banco, por sua vez, será integrado, a 7 de dezembro de 1965, no Banco Lisboa & Açores e, em janeiro de 1970, este será, por sua vez, integrado no Banco Totta & Aliança, passando a designar-se Banco Totta & Açores. Na posse da família dos sogros estava já a empresa Henrique, Rodrigues & Companhia (Bazar do Povo) e a companhia de seguros Aliança Madeirense, fundada em 13 de abril de 1891. O Dr. Juvenal funda também, com outros sócios, a empresa de comércio de vinhos Araújo & Henriques Sucessores. Esta foi criada a 11 de agosto de 1923, passando, a 4 de maio de 1932, a Araújo, Henriques & Companhia e acabando por ser integrada, em 1947, na H. M. Borges & Sucessores. Em 1929, Juvenal de Araújo desempenha ainda as funções de diretor da Aliança Madeirense. Durante o regime republicano, foi um militante ativo da causa católica, tendo desempenhado, durante vários anos, o cargo de presidente da Juventude Católica do Funchal, criada em 1913. Entre 1922 e 1925, foi deputado pelo Centro Católico eleito pelo Funchal, tendo-se manifestado ativo na defesa dos interesses da economia madeirense. Com a instalação da Ação Católica Portuguesa na Madeira, em 1936, veio a desempenhar o cargo de presidente da Junta Diocesana durante vários mandatos. No Estado Novo, foi deputado nas legislaturas de 1935-38, 1938-42 e 1942-1945. Desempenhou também vários cargos públicos, nomeadamente: o de presidente da Junta Agrícola da Madeira, em 1925; presidente da Comissão Liquidatária da casa bancária Henrique Figueira da Silva, sob proposta do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Depósitos, sendo nomeado, por portaria do Ministro das Finanças, em novembro de 1931; presidente da Associação Comercial e Industrial do Funchal (1934-1963); diretor do Ateneu do Funchal; vice-presidente da Junta Geral do Funchal (jan.- jul. 1926); presidente da Comissão Distrital de Assistência (1947-1953); presidente da Delegação do Funchal da Cruz Vermelha Portuguesa (1937-1940); e presidente do Conselho de Turismo da Madeira, criado pela Junta Geral em 1952. Colaborou em vários jornais e revistas, nomeadamente no Diário de Notícias do Funchal, no Jornal da Madeira, no Correio da Madeira e na revista A Esperança, foi diretor do Diário da Madeira e salientou-se como um orador brilhante, muitas vezes convidado para discursar em eventos públicos. Das muitas conferências que proferiu, foram publicadas apenas duas: «A Família, sua Origem e Fundamentos», inserida numa série de conferências promovidas pela CMF, que as deu à estampa com o título A Família, em 1940, e uma outra proferida na Escola Comercial e Industrial António Augusto de Aguiar, publicada com o título Homenagem ao Professor Alfredo Miguéis (Funchal, ed. do autor, 1943). Juvenal de Araújo publicou ainda dois opúsculos: Acção de Expropriação do Montado do Barreiro, requerida pela Câmara Municipal do Funchal contra os proprietários do mesmo Montado. Alegações finais dos embargantes William Hinton & Sons e D. Josefina Pimbet da Rocha Machado (Funchal, ed. do autor, Tip. do Diário da Madeira, 1917) e Capela de Nossa Senhora do Desterro na freguesia do Monte da Ilha da Madeira. Breve Registo (Lisboa, ed. do autor, 1942). Com o advogado Frederico de Freitas, fundou em 1920 a Revista de Direito. Em 1928, em edição do autor, publicou, com o título Trabalhos Parlamentares, algumas das suas intervenções na Câmara de Deputados, entre 1922 e 1925, na qualidade de deputado do Centro Católico. Foi distinguido com as seguintes comendas: Oficial da Ordem Militar de Cristo (nov. 1924), Cruz Vermelha de Dedicação (1926), Ordem de Benemerência (nov. 1950) e Ordem da Instrução Pública (maio 1963). A 29 de abril de 1930, o Papa Pio XI agraciou-o com a Comenda da Ordem de S. Silvestre. Faleceu no Funchal, a 2 de novembro de 1976. Obras de Juvenal Henriques Araújo: Acção de Expropriação do Montado do Barreiro, Requerida pela Câmara Municipal do Funchal contra os Proprietários do mesmo Montado. Alegações finais dos embargantes William Hinton & Sons e D. Josefina Pimbet da Rocha Machado (1917); Trabalhos Parlamentares (1928); Capela de Nossa Senhora do Desterro na freguesia do Monte da Ilha da Madeira. Breve Registo (1942). Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses, Séculos XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, [1983], pp. 43-44; OLIVEIRA MARQUES, A. H., et alii (coord.), Parlamentares e Ministros da 1.ª República (1910-1926), Lisboa/Porto, Assembleia da República/Edições Afrontamento, 2000, p. 95; SANTOS, Marta Carvalho, MCS, «Araújo, Juvenal Henriques de (1892-1976)», in CRUZ, Manuel Braga da, e PINTO, António Costa (dir.), Dicionário Biográfico Parlamentar 1935-1974, vol. I, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da UL/Assembleia da República, 2004, pp. 191-194; digital: PITA, Gabriel de Jesus, “Juvenal de Araújo e o Centro Católico”, in República e Republicanos na Madeira 1880-1926, Atas do Seminário realizado em outubro de 2010 pelo Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal, 2010 [CD-ROM]. Gabriel Pita (atualizado a 11.04.2016)

almeida, gabriel de

A partir da morte de D. Jerónimo Fernando, ocorrida em março de 1650, entrou o bispado do Funchal em período efetivo de sé vacante, o que, a somar aos quase 10 anos em que o anterior bispo exercera funções a partir do reino, acabaria por totalizar um período de cerca de 30 anos em que não houve prelado residente na Diocese. Durante esse intervalo, esteve o governo eclesiástico entregue ao deão, Dr. Pedro Moreira, que protagonizou, em 1668, um incidente de grave dissidência com o governador, D. Francisco de Mascarenhas, do qual resultou a prisão desse mesmo governador. O desentendimento ocorrido teve por base uma intromissão do governador na esfera da justiça eclesiástica, pois D. Francisco de Mascarenhas tinha solicitado ao cabido uma devassa ao procedimento do deão, a quem acusava de obstaculizar a sua ação, e, tendo os capitulares aceitado o repto, procedeu-se a um sequestro dos bens do Dr. Pedro Moreira, a quem foi, igualmente, imposta residência fora da cidade. Em reação a estas determinações, o governador do bispado, auxiliado por alguns eclesiásticos, desencadeou uma sedição da qual resultou o aprisionamento do governador militar, a sua substituição por D. Aires de Ornelas de Vasconcelos e a restituição ao Dr. Pedro Moreira dos cargos de provisor e vigário geral. Informada a corte de tão insólita situação, rapidamente se puseram em marcha processos de averiguação, dos quais resultou a condenação dos promotores da amotinação e a prisão de vários dos intervenientes, entre os quais o deão, Pedro Moreira, o qual foi encarcerado por ordem do novo governador, João de Saldanha e Albuquerque, sem que a autoridade eclesiástica tivesse sido auscultada. Foi no rescaldo de toda esta turbulência que D. Fr. Gabriel de Almeida, o novo prelado e homem já idoso, veio encontrar a Diocese para a qual fora provido nos fins de 1670, depois de ultrapassado o diferendo em que a guerra de independência com Espanha tinha mergulhado as relações de Portugal com a Santa Sé, e que privara as dioceses do reino de bispos por um período de cerca de 20 anos. Mas quem era, então, D. Fr. Gabriel de Almeida e porque motivos viu ser-lhe atribuída a titularidade da mitra do Funchal? Nascido em Moimenta da Beira, bispado de Lamego, de “nobres progenitores”, Pedro de Almeida, de seu nome de batismo, ingressou nos monges de Cister a 17 de Dezembro de 1625, tendo aí feito profissão a 6 de Janeiro de 1627 (BARBOSA, 1747, II, 308). Naturalmente inclinado para o estudo, desenvolveu carreira académica, na qual pontificaram a docência universitária, iniciada em 1643, como substituto da cadeira de Durando, e a propriedade do estatuto de lente de Escritura Grande, em 1664. Em paralelo com a atividade docente, Fr. Gabriel fora ainda em 1654, eleito abade do Colégio de S. Bernardo, em Coimbra, e em 1660 tornara-se abade geral dos Cistercienses. Para além destas ocupações, fora também agraciado, em 1660, com o cargo de esmoler-mor da regente Dona Luísa de Gusmão, ao qual se seguiu, no ano imediato, o lugar de capelão mor. A sua escolha para prelado do Funchal enquadra-se nos rumos que, no início da regência de D. Pedro, presidiram à indigitação de antístites e que se caracterizaram por uma cuidadosa distribuição de mitras por uma grande diversidade de Ordens religiosas, tendo em vista preservar equilíbrios e prevenir uma eventual hegemonia de um instituto religioso sobre outros; esta pode, inclusivamente, ser a justificação da opção por um Cisterciense, ordem que há 200 anos não era convocada para o exercício do ministério episcopal. Sagrado bispo em 1671, logo passou à sua Diocese, onde entrou a 4 de março desse mesmo ano, vendo-se de imediato envolvido no rescaldo da sedição de 1668, até porque o príncipe regente lhe tinha recomendado que castigasse o clero por se ter metido a “desautorizar, descompor e prender a um Governador e Capitão General que representa a mesma pessoa de Sua Alteza” (BNP, Reservados, Cód. 6999, fl. 42v). Mas se do bispo se esperava punição de eclesiásticos, também o governador João de Saldanha não escapou a ela, uma vez que igualmente se viu objeto da censura episcopal, por ter ousado mandar prender o deão Pedro Moreira sem a necessária aquiescência das justiças religiosas. Porém, e porque o governador agira de acordo com instruções régias, foi o prelado repreendido pelo príncipe regente e, segundo Sarmento, esta repreensão fê-lo sentir-se “tão molestado que dentro em pouco se finou” (SARMENTO, 1947, II, 94). Antes que falecesse, no entanto, teve ainda tempo para se incompatibilizar com os Franciscanos, por duas ordens de razões. Por um lado, entre os frades e as suas irmãs de Santa Clara grassavam discórdias que muito escandalizavam a população, assunto para o qual o príncipe regente já havia alertado o governador, João de Saldanha, mas que também tocava ao prelado, que envidou esforços no sentido de serenar os ânimos entre as duas comunidades seráficas. Por outro, e no tocante apenas aos frades, houve problemas relacionados com o mau comportamento de dois destes em cerimónias na Sé, onde aproveitavam o púlpito mais para mutuamente se descomporem do que para divulgar a palavra de Deus. Desgostoso com aquelas atitudes, D. Fr. Gabriel informou o padre comissário da Ordem de que não voltaria a tolerar a presença daqueles dois pregadores, nem na Catedral, nem em qualquer outra igreja da Diocese. A fim de se não repetirem circunstâncias idênticas, advertia ainda o bispo ao comissário que mandasse vir de outros conventos “religiosos de melhor talento para pregarem nesta sé”, para o que lhe concedia um prazo de 15 dias; caso não respeitasse o período estabelecido, o prelado se encarregaria de prover o púlpito de sujeitos “com mais exemplo e aproveitamento” (CARITA, 1992, III, 327). Segundo Fernando Augusto da Silva, esta dissensão acabou por alastrar até à determinação episcopal de proibir os Franciscanos de pregar e confessar em toda a Diocese, o que, naturalmente, não poderia deixar de elevar a tensão em que o idoso prelado teria de viver, e poderá ter contribuído para que a morte lhe sobreviesse dentro de pouco tempo. Apesar de tantos problemas para resolver e da idade que já lhe pesava, em 1672, D. Fr. Gabriel de Almeida agiu com dureza no Seixal contra os que, tendo prometido esmolas, as não pagaram, devendo por isso ser “cortados dos Ofícios Divinos”, e propôs um adiamento das celebrações da festa do orago mais para a frente do ano, “quando o tempo for mais conveniente” (ACDF, Prov. Seixal, fl. 60); e ainda arranjou tempo e energia para se deslocar, em 1673, ao Porto Santo, em visitação, tendo igualmente visitado as restantes paróquias da Ilha. Em Ponta Delgada, as preocupações episcopais centraram-se mais no gasto excessivo com os pagamentos a pregadores vindos de fora e com o contributo dos fregueses e do pároco para o arranjo da igreja. O bispo também não deixou de fazer o esforço de visitar pessoalmente os territórios rurais da Diocese, não se eximindo de tomar as medidas que considerou necessárias, apesar de por vezes duras. Fez, nessas como noutras ocasiões, jus às apreciações que as Monstruosidades do Tempo e da Fortuna – uma obra que tinha como subtítulo: “Diário de factos mais interessantes que sucederam no reino de 1662 a 1680” e que portanto reportava ao reinado de D. Afonso VI – dele faziam, considerando-o “de seu natural áspero e desabrido no trato” e com dificuldade, portanto, em concitar simpatias (SILVA, 1946, 208). A 12 de julho de 1674, D. Fr. Gabriel de Almeida falecia, no Funchal, vindo a ser sepultado na capela-mor da Sé. Foi o segundo prelado a falecer e ter sepultura na Diocese. Bibliog. manuscrita: ACDF, Livro de Provimentos do Seixal, 1591-1640; ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, l. 113, Registo dos Provimentos das Visitações a Ponta Delgada, 1587-1694; BNP, reservados, cód. 6999, fl. 42v.; impressa: ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal, 2.ª ed., vol. II, Coimbra, Livraria Civilização, 1968; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. III, Funchal, SRE, 1992; MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana, Histórica, Critica e Cronológica na qual se Comprehende a Noticia dos Autores Portuguezes e das Obras que Compuzerão desde o Tempo da Promulgação da Ley da Graça até ao Prezente, vol. II, Lisboa, Oficina de António Isidoro da Fonseca, 1747; NORONHA, Henrique Henriques, Memorias Seculares e Ecclesiasticas para a Composição da Historia da Diocesi do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, s.n., 1993; PAIVA, José Pedro, Os Bispos de Portugal e do Império, 1495-1777, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006; SARMENTO, Alberto Artur, Ensaios Históricos da Minha Terra, vol. II, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1947; SILVA, Fernando Augusto, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal, s.n., 1946; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000. Ana Cristina Machado Trindade (atualizado a 15.09.2016)

dillon, frank

[caption id="attachment_8746" align="alignleft" width="166"] Sketches in The Island of Madeira-Frank Dillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] O pintor Frank Dillon, nascido em Londres, a 24 de fevereiro de 1823, era filho de John Dillon, um comerciante de sedas, sócio da firma Morrison, Dillon & Co. e colecionador de aguarelas e desenhos. Face aos gostos do pai, a formação de Frank foi feita na Royal Academy de Londres, onde estudou sob a orientação de James Holland (1799-1870), um pintor especialmente viajado. O jovem Frank Dillon casou-se em 1847 com Emma Josephine, filha do Rev. George Case, partindo, no ano seguinte, com a mulher para a Madeira, onde estaria cerca de um ano. No regresso, passou, em princípio, por Lisboa, pois expôs na Royal Academy, em 1850, o óleo On the Tagus, Lisbon, conhecido como Torre de Belém e pertencente à coleção da cidade de Londres. [caption id="attachment_8750" align="aligncenter" width="446"] Torre de Belém 1850. Arquivo R. Carita[/caption] A deslocação de Frank Dillon à Madeira parece integrar-se num quadro posterior ao do turismo terapêutico, e apontar para as futuras “Indústrias do Turismo” (Indústria do Turismo). Tudo parece indicar que, dado o sucesso comercial das anteriores edições de litografias da Madeira (Litografias e litógrafos), como fora o caso das de William Westall (1781-1850) e, decidamente, dos dois álbuns de Andrew Picken, especialmente o 2.º, ambos esgotados em pouco tempo, estas edições representavam uma atividade economicamente rentável. A viagem de Dillon e da mulher à Madeira parece ter sido patrocinada, inclusivamente, por Robert Grosvenor (1801-1893), depois 1.º barão de Ebury, que tinha sido líder dos liberais, pois o álbum foi-lhe dedicado. [caption id="attachment_8757" align="alignright" width="371"] Fortaleza de Santiago Funchal-FDillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8754" align="alignnone" width="397"] Câmara de Lobos-FDillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8765" align="aligncenter" width="399"] View looking up the Santa Luzia river -FDillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8762" align="aligncenter" width="377"] The Governor's House-FDillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] A preparação da edição dos Sketches in the Island of Madeira de Frank Dillon envolveu um amplo leque de contactos, tendo existido, inclusivamente, um folheto de divulgação anunciando a edição e explicando que a mesma se devia ao facto de o álbum de Andrew Picken, editado 10 anos antes, se encontrar esgotado; acrescentava este folheto que a obra contava já com o patrocínio de inúmeras figuras de relevo das principais cortes europeias. Na introdução, o autor junta alguns dados sobre o Funchal, remetendo os leitores que desejassem outros dados para A Teatise on the Climate And Metereology of Madeira de Mason, John Driver e George Peacock, também desse ano de 1850, onde se fazia o anúncio da edição do seu álbum. Refere ainda que optara por apresentar apenas cenários da cidade e dos seus arredores, por limitações relacionadas com um projeto que não se pretendia demasiado grande nem exaustivo. No final dos textos explicativos das litografias, aproveita para deixar algumas conclusões e sugestões úteis sobre a viagem de ida e de volta, tal como para a estadia na Ilha. [caption id="attachment_8768" align="alignright" width="365"] Santa Maria Maior-FDillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8771" align="alignnone" width="351"] View Near the Praça de Constituição, Funchal-FDillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] Frank Dillon expôs a vista da Torre de Belém na Royal Academy nesse ano de 1850, passando a expor regularmente, nesse espaço, óleos e aguarelas das suas viagens seguintes por Espanha, Noruega, Itália, Egito e Japão, especialmente após o falecimento da mulher, em 1860. Tornar-se-ia um dos pintores românticos de referência na área do Orientalismo, com obras em inúmeros museus europeus, e.g., no Vitória & Albert Museum de Londres, acabando por falecer nessa cidade a 2 de maio de 1909. O final da sua vida pautou-se pela defesa do património islâmico edificado, especialmente no Egito, tendo sido um dos primeiros a manifestar-se contra as obras da barragem de Assuã, iniciadas em 1899. No início do séc. XXI, a sua obra estava bem cotada nos mercados de arte, aparecendo periodicamente produtos seus nas grandes leiloeiras internacionais. Não existiam, no entanto, referências ao paradeiro dos originais dos seus trabalhos realizados na Madeira, que muito provavelmente se terão perdido nas suas inúmeras viagens posteriores. [caption id="attachment_8778" align="alignright" width="345"] Robert Machin Chapel - Machico-FDillon_1850. Arquio R. Carita[/caption] [caption id="attachment_8784" align="alignnone" width="377"] Portuguese Cemetery - Funchal-FDillon_1850. Arquivo R. Carita[/caption] O álbum Sketches in the Island of Madeira de Frank Dillon, de 1850, com 15 interessantes e muito bem conseguidas litografias, 4 das quais agrupadas 2 a 2, foi um dos exemplares mais luxuosos editados na sua época, apresentando algumas inovações na impressão; foi igualmente editada uma versão colorida a aguarela à mão, com encadernação, ou não, para as litografias poderem ser emolduradas. Em 1990, o colecionador Paul Alexander Zino (1916-2004) custeou pessoalmente uma reedição deste álbum para os elementos da sua família e do seu círculo de contactos. [caption id="attachment_8781" align="aligncenter" width="459"] Vista do Molhe da Pontinha, Funchal. Arquivo R. Carita[/caption] Bibliog.: Benezit Dictionary of British Graphic Artists and Illustrators, 14 vols., Paris, Oxford University Press, 1999; CAMACHO, Ana Margarida Sottomayor Araújo, “Frank Dillon”, Obras de Referência dos Museus da Madeira, 500 de História de uma Arquipélago, catálogo de exposição comissariada por Francisco Clode de Sousa e patente na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Palácio Nacional da Ajuda, 21 nov. 2009-28 fev. 2010, Funchal, DRAC, 2009, pp. 409-413; DILLON, Frank, Sketches in the Island of Madeira, litografias de Thomas Picken, London, Mess.re Paul and Dominic Colnaghi and CP Publishers to Her Magesty, 1850; LLEWLLYN, Briony, “Frank Dillon and Victorian Pictures of Old Cairo Houses”, in Dictionary of National Biography, vol. 3, Londres, 1984, pp. 2-10; MASON, J. A., et al., A Teatise on the Climate And Metereology of Madeira, Londres, John Churchill, 1850; NASCIMENTO, João Cabral do, Estampas Antigas da Madeira, Funchal, Club Rotário do Funchal, 1935; The Orient Observed (The Searight Collection), London, Victoria and Albert Museum, 1989; SAINZ-TRUEVA, José de (org.), Viagens na Madeira Romântica, catálogo de exposição patente no teatro municipal dez. 1988-jan. 1989, Funchal, DRAC, 1988; SOUSA, Francisco Clode de, «Aparências e permanências», in Estampas, Aguarelas e Desenhos da Madeira Romântica, catálogo de exposição patente na Casa Museu Frederico de Freitas jul.-dez. 1988, Funchal, DRAC, 1988; STEPHEN, Leslie e LEE, Sidney (dir), “Frank Dillon”, in Dictionary of National Biography, vol. I, Londres, Smith Elder & co., s.d., pp. 508-509. Rui Carita (atualizado a 30.05.2016)