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A implantação do Partido Socialista (PS) na Região Autónoma da Madeira (RAM), após a Revolução de 25 de abril de 1974, segue o movimento geral da criação dos partidos a nível nacional e o seu alargamento a todo o território. Com efeito, logo após o 25 de Abril, as diferentes correntes ideológicas e partidárias do centralismo, por um lado, e da autonomia, por outro, vão dirimir os seus argumentos e lograr a sua implantação social e política. Com a entrada em vigor da Constituição de 1933, os partidos então existentes tinham sido todos ilegalizados. A reintrodução do sistema partidário em Portugal, no novo regime implantado após o 25 de Abril, segue o figurino internacional, com correntes que vão da extrema-direita à extrema-esquerda. O PS tinha sido fundado em 1973, na Alemanha, por socialistas no exílio, entre eles Mário Soares, seu primeiro Secretário-Geral, e pretendia retomar a linha ideológica do antigo Partido Socialista Português, fundado por José Fontana no séc. XIX, situando-se à esquerda do espetro partidário. Esse Partido Socialista Português reivindicava-se como marxista, primeiro, e depois como proudhoniano e federalista. O novo PS de Mário Soares, na mesma linha de afastamento das correntes conservadoras, demarcou-se, reiteradamente, da social-democracia dos países nórdicos, quer antes, quer depois do 25 de Abril, por considerá-la gestora do capitalismo, afirmando que o exemplo a seguir em Portugal era o dos partidos socialistas do sul da Europa, nomeadamente do Partido Socialista francês e do Partido Socialista Operário Espanhol. A base ideológica e sociológica dos socialistas portugueses entronca, remotamente, nos liberais, que se opuseram aos absolutistas no séc. XIX, e, de entre estes, nos setembristas – a ala esquerda dos liberais, por oposição aos conservadores cartistas. Tendo como referência o período da primeira República, o PS liderado por Mário Soares revia-se no Partido Democrático de Afonso Costa, que resultou da ala esquerda do primitivo Partido Republicano, já existente nas últimas décadas da monarquia, e cuja ala direita viria a dar lugar aos unionistas de António José de Almeida. Este alargamento à Madeira dos partidos nacionais após o 25 de Abril tem, assim, precedentes na história, quer na Primeira República, quer ainda na monarquia, desde o início do séc. XIX, com as lutas liberais Para compreender a posterior evolução dos partidos na RAM, é necessário ter em conta dois fatores: o posicionamento ideológico e a relação entre o poder insular e o poder central, que se traduz nas ideias dicotómicas de centralização e descentralização do poder. A ideia de descentralização, que é comum ao território continental e insular do país, mas se exprime com especial acuidade no caso insular, sobretudo nos finais do séc. XIX, evolui para o conceito de autonomia, primeiro administrativa e depois política. A forma como o PS, na Madeira, se vai relacionar com estes dois vetores, o ideológico e o autonómico, aliada à realidade sociológica da RAM, é determinante para a compreensão da sua evolução política. Estabelecidos os vetores da filiação e identificação do PS com a sua base histórica, para a compreensão da sua inserção posterior na realidade sociológica das ilhas da Madeira e do Porto Santo, é necessário ainda conhecer os antecedentes imediatos do PS nacional, sobretudo seguindo os passos do seu fundador e líder histórico, Mário Soares. Desde o momento da fundação do PS em Bad Munstereifel, na então República Federal da Alemanha, a 19 de abril de 1973, até as primeiras inscrições de militantes madeirenses no PS, a 19 de setembro de 1974, e à visita de Mário Soares à Madeira, a 15 de fevereiro de 1975, há uma série de acontecimentos que vão condicionar decisivamente a vida futura do PS na Madeira e o colocarão, politicamente, entre uma extrema-esquerda, que o empurra para a direita, e uma direita sociológica que aceita abrigar-se sob a égide de um partido ideologicamente situado no centro-esquerda, o PSD, que vai retirar ao PS o lugar que, tradicionalmente, cabe aos partidos sociais-democratas, trabalhistas e socialistas europeus. Se, pela prática governativa – como a aplicação da reforma agrária, com a extinção do regime de colonia, e a implantação do estado social nas áreas da saúde e da educação –, os sociais-democratas na Madeira ocupam o espaço do PS, já do ponto de vista ideológico, o PSD situa-se, naturalmente, à direita dos socialistas. Como resultado, as classes médias e médias-altas urbanas e as populações rurais, veem no PSD a força política que pode servir de barreira à esquerda marxista, característica que o próprio PS reivindicava para si em manifestações de rua no Funchal Há um acontecimento que vai contribuir para conotar o PS local com as forças revolucionárias de extrema-esquerda. No dia 1 de março de 1975, um grupo de socialistas ocupou um edifício que tinha pertencido a uma instituição bancária, que será a sede do PS na Madeira até 1980. Este ato foi identificado pela população com as ocupações que, no mesmo ínterim, se faziam no Sul do País. Assim, e apesar de o PS nacional ser um partido historicamente defensor da descentralização, e garante constitucional das autonomias, que ficam consagradas na Lei Fundamental de 1976, o seu posicionamento ideológico na Madeira vai coloca-lo do lado do poder central e de setores de extrema-esquerda, visto que a autonomia aparece como uma das formas de resistir à deriva revolucionária que entusiasmava a esquerda e amedrontava a direita. É com este fundo histórico-ideológico que se deve perspetivar o percurso do PS na Madeira desde o 25 de Abril de 1974. A sua implantação dá-se entre 1976 e 1978, no auge da dicotomia entre o poder central e o poder regional, numa altura em que o PSD detém o poder na Região, ao passo que o PS é o partido maioritário na Assembleia da República Por outro lado, a permanente rotação na liderança constante também não ajudou à sua consolidação eleitoral, o que faz com que, entre 1974 e 2015, tendo embora exercido funções a nível municipal, este partido nunca tenha exercido funções de governo.       Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 19.12.2017)  

Direito e Política

boa imprensa, a

A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, durante todo o século XIX e até o primeiro quartel do século XX, permite-nos analisar o discurso normativo segundos os cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. O conceito de boa imprensa, que se veio a tornar operativo no plano das orientações doutrinais e pastorais de Igreja na sua relação com o Mundo, é expressão de uma época marcada por uma cultura de combate, em que a imprensa foi usado como instrumento privilegiado de doutrinação ideológica e de ataque aos campos que pensavam e defendiam modelos de sociedade diferentes. Palavras-Chave: Comunicação Social, Igreja, Ideologia, Iluminismo, Cultura Laica, Doutrina, Teologia.     A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, publicada durante o séc. XIX e até ao primeiro quartel do séc. XX, permite analisar o discurso normativo dos cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. Se é um facto histórico que a autoridade da Igreja Católica e do papa já haviam sido contestadas pela Reforma protestante de Lutero e Calvino, no início do séc. XVI, mas no interior do cristianismo, cuja essência não se era questionada, o período em análise da boa imprensa é o tempo em que a autoridade das religiões reveladas, não apenas o cristianismo, mas igualmente o judaísmo e o islamismo, começava a ser equacionada e até refutada. A análise da imprensa católica madeirense, desde o século XIX até ao primeiro quartel do século XX, é feita no contexto de uma sociedade hoje munida da utensilagem mental que nos confere o Concílio Vaticano II e todas as correntes de pensamento que atravessaram todo os séculos XIX e XX e já mesmo do século do atual século XXI. Na verdade, se tivermos em conta que a boa imprensa formula como objetivo a doutrinação da sociedade, através de uma normatização, que inclui uma determinada conceção de família e do seu papel na sociedade, este trabalho é feito justamente no momento em que o Sínodo dos Bispos, patamar eclesiástico anterior a um concílio, acaba de realizar em Roma, sob o múnus do Papa Francisco, sob o tema da família, cujos cânones clássicos de família monogâmica, de casamento para uma vida inteira, sem a existência do divórcio, que continua a ser vedado no direito canónico, mas constantemente efetivado após uma vida conjugal, que, ab initio, se quis até a que a morte separasse os membros do casal. Essa realidade levanta novos desafios à Igreja Católica, nomeadamente a da confissão e absolvição bem como a da comunhão dos divorciados pela igreja e de novo casados à face das leis civis. Outro desafio não menos atual é o da união conjugal de indivíduos do mesmo sexo, questão que o sínodo episcopal não se absteve de debater, tal como a questão do batismo de crianças de pais solteiros. A Igreja Católica sempre foi apontada como uma instituição a quem fogem os tempos hodiernos de cada época, na medida em que a sua visão do tempo nem sempre coincide, segundo os seus críticos, com aquela que é a visão atualíssima, mas sempre efémera, visto que cada moda é sempre sufocada pela vaga sucessiva e ininterrupta que cada época tem para oferecer. A essa ideia, a igreja sempre contrapôs a dos valores eternos. Essa mutação constante dos tempos, geradora de insegurança, teria como alternativa, numa visão conservadora ou clássica, conforme a perspetiva, a segurança ontológica do lar, com os papéis bem definidos do modelo do homem, como pai e chefe de família, da mulher, como esposa e mãe, no quadro completo de uma relação tendencialmente procriadora, em que os filhos encontravam o tal universo seguro face à insegurança do mundo exterior. A este mundo interior da família, a Igreja oferecia, no espaço exterior, uma simbologia religiosa em que se incluía a devoção mariana, o culto dos santos, com o seu lado sacro e profano, as procissões e romarias, e uma exigência na penitência para o sacramento essencial da transubstanciação eucarística. É assim, neste cenário, que a barca de Pedro atravessa as vagas dos tempos, dos séculos XIX e XX: a família e o lar, a comunidade católica, com as suas datas simbólicas, do calendário litúrgico, consagradas como dias santos, a par dos feriados públicos, que mudam ao sabor dos regimes. Assim, a manutenção do universo católico tinha de ombrear com a chamada má imprensa, cujos valores não só divergiam dos valores pregados pela Igreja Católica, como, por vezes, os combatiam sistematicamente, num combate recíproco de exclusão mútua de legitimidade, ambos os lados convencidos de que eram detentores de uma crença que, metafísica e/ou religiosa, se propunha salvar a humanidade. A boa imprensa pretendia ser e declarava-se como o baluarte dos valores da doutrina, face a um mundo que se dissolvia nas correntes que queriam substituir a crença em Deus pela crença na ciência ou em ideologias que tinham a mesma estrutura teleológica, como o marxismo, mas que, em vez de situar a salvação na outra vida queriam uma sociedade perfeita neste mundo. A boa imprensa tinha uma missão e pretendia abarcar todos os aspetos da vida, não apenas a religião, mas igualmente a arte, a literatura e a própria ciência, criando, assim, uma cosmovisão que dispensava a imprensa má e pretendia assim conduzir o rebanho para os caminhos de Deus. A boa imprensa não se limitava à esfera estrita do religioso, dos sacramentos, das verdades da fé, como primeira instância do catolicismo, antes ambicionava oferecer uma identidade de vida cujas bases eram o catolicismo. A normatização da vida terrena e a relação do homem com o alto pela Igreja tem marcos ao longo dos séculos. Com efeito, podemos destacar três momentos marcantes na construção da identidade católica como norma desde os fins da Idade Média, com o Concílio de Trento (1545-1563), o Concílio Vaticano I (1869-1870) e o Concílio Vaticano II. Tudo isso levanta a questão dos novos desafios e valores com que a Igreja se vê confrontada, sobretudo desde o século XVIII. É nessa encruzilhada da História que é convocado o Concílio Vaticano II, no ano de 1961, pela bula papal Humanae Salutis, de João XXIII, concluído já no pontificado de Paulo VI. Este concílio, em contraste com os anteriores da história da Igreja, que, muitas vezes, significaram um maior enclausuramento da Igreja Católica face ao mundo, tem uma natureza de abertura ao mundo e representou, segundo algumas leituras, o fim do complexo de fortaleza em que a Igreja tendeu a fechar-se depois da Idade Média. No tempo medieval, a Igreja confundia-se com o próprio mundo conhecido, o mundo europeu. Mas se os três concílios referidos são marcos na história do catolicismo, a doutrina de normatização da vida dos católicos pela Igreja, mesmo no plano secular, sempre existiu, desde os seus primórdios e isso traduz-se em 21 concílios ao longo destes mais de 2000 anos. A questão é saber se essa normatização coincide com a mensagem de Cristo, que aceitava o mundo na sua diversidade, como se vê quando conta a parábola do samaritano, ou quando convive com a mulher adúltera ou com o cobrador de impostos, porque a todos quer imbuir do seu amor, ou seja, Cristo inclui na sua mensagem a alteridade, o outro, que é constantemente recusado por sectores fundamentalistas das diversas culturas, atitude, a da recusa, que se torna um obstáculo à comunhão universal. Que a interpretação pelas Igrejas cristãs da doutrina de Cristo é suscetível de ser alterada ao longo dos séculos, provam-no vários factos. Basta ver que, ainda hoje, algumas Igrejas cristãs consideram autênticos e, portanto, de inspiração divina livros que as outras principais Igrejas cristãs não aceitam. A  Igreja Ortodoxa da Etiópia reconhece o Pastor de Hermas e os Atos de Paulo;  a Igreja Apostólica Arménia ora aceita a terceira Epístola aos Coríntios, ora não a inclui entre os livros canónicos do Novo Testamento; a mesma Igreja Arménia não incluía na sua Bíblia o Apocalipse até 1200. Já a Bíblia copta, adotado pela Igreja do Egito, continua a incluir as duas Epístolas de Clemente. Poder-se-á arguir que estas Igrejas não comungam com a Igreja de Roma da mesma perspetiva doutrinal. Bem, por um lado, todas estas Igrejas cristãs, e que não incluem as Igrejas protestantes, se consideram lídimas intérpretes da doutrina de Cristo; por outro, temos o exemplo livro do Apocalipse, que, durante muito tempo, não foi considerado autêntico pela própria Igreja Católica e que hoje o é. Isto alerta-nos, desde logo, para duas coisas: que a Igreja não é a instituição estática e imune ao espírito do tempo, como alguns, dentro e fora dos muros eclesiais, julgam, e que é sempre preciso saber ler na doutrina oficial o que ela contém de marca do eterno, divino ou humano. Qual a importância destes factos? Revelar que a análise das opções culturais, ideológicas e culturais deve passar pelo conhecimento de que mesmo o sagrado da mesma confissão, neste caso, o cristianismo, nem sequer chega ao estatuto de universal nas suas diferentes Igrejas, o que deve precaver os fiéis para uma aceitação cega das crenças e convicções. A busca da síntese de um corpo por natureza plural como é o corpo da Igreja será permanente. A pluralidade sociológica da Igreja é origem da tensão permanente no seu seio, o que, aliás, se verifica desde os primórdios da sua existência e inclui não apenas a questão ideológica e política dos seus membros, mas a polémica da masculinização da doutrina, que, nos primeiros séculos, teria levado à ascendência de uma perspetiva esvaziada do papel da mulher. Nesse processo, incluir-se-ia a postergação de um hipotético evangelho apócrifo atribuído a Maria Madalena, cuja liderança incomodaria os apóstolos. Se o documento é real, a sua autoria fica por confirmar. Contudo, do ponto de vista simbólico, significa a existência de um modelo de Igreja quase estático e outro modelo de Igreja dinâmico, capaz de atribuir um estatuto a mulher idêntico ao do homem. O Concílio Vaticano II vai questionar esse desfasamento temporal e vai trazer, naturalmente, para o seio da Igreja, melhor, vai revelar no seio da igreja aquilo que tinha vindo a ser oculto, pelo menos desde o século XIX: a multipolaridade de identidades sociais e políticas que faziam a sua própria leitura da doutrina até então oficializada numa versão essencialmente conservadora e normalmente veiculada pela boa imprensa, que, sob a capa da normatização, oferecia e impunha uma certa visão do mundo, de natureza conservadora. Ao abrir-se à sua pluralidade interna, a Igreja abria-se ao mundo como um todo, mas na sua variedade. É óbvio que essa abertura expunha a Igreja aos ventos da mudança e a confrontava com a sua própria unidade. A dialética social, que sempre existira no interior da Igreja, tornava-a agora vulnerável e suscetível de ver a essa unidade abalada, uma unidade que, tantas vezes, sufocara o processo dinâmico inerente a qualquer instituição humana, ainda que reivindicando-se de natureza divina. Era agora a vez de as forças progressistas quererem impor a sua visão da doutrina. Revelava-se, portanto, muito complexo o equilíbrio entre os diferentes sectores no seio da igreja, que tinham ligações ao exterior. Afinal, não é a isso que se assiste, às várias tentativas de se apropriação sectorial do carisma do Papa Francisco na sua ligação com o mundo? Desde aquele instante em que o universo emergiu da incubação em que sempre se mantivera que a natureza inicia o seu processo infindável de se auto-organizar, ainda antes que o ser pensante quisesse começar a ter a veleidade de ele mesmo repetir o gesto inicial do fiat lux, tenho ele aqui o sentido literal ou literário da passagem do caos à ordem natural das coisas, porque é disso mesmo que se trata: em cada momento e em todos os tempos há que reorganizar, refundar, ordenar os elementos que se dispersam, caoticamente, se não forem absorvidos e submetidos a um sistema que lhes dê a ordem necessária. Todas essas tentativas que, ao longo dos séculos, se propuseram e nos propuseram a construção de uma sociedade perfeita têm em si duas ideias propulsoras: o mundo está uma desordem; é preciso ordená-lo. E uma estrutura imanente: a do momento do fiat lux, faça-se a luz que supere as trevas. Ao querer repetir esse momento inaudito e irrepetível, os homens sempre reservaram para si o papel dos deuses. E, concomitantemente, sempre tenderam do politeísmo para o monoteísmo, isto é, não só quiseram repetir o instante da criação como sempre quiseram ser únicos no sistema que propunham, porque esta é a natureza das coisas: se o modelo de sociedade que se propõe é aquele que melhor a serve, por que razão se haveria, sequer, de discutir outro modelo que concorra com ele? E partir daí, entendem que esse outro modelo está para o primeiro, no tempo ou na avaliação que é proposto, como as trevas estão para a luz. E é nesse instante que começa a recusa do outro. Qualquer modelo filosófico, cultural ou religioso traz no seu ADN a ideia de proposta e a ideia de recusa. Se essa tensão não for superada através de um processo dialógico, essa recusa mútua trará a rutura em qualquer sociedade, exatamente o oposto do que propõe cada um dos vários modelos. Mas não haverá legitimidade em cada um dos modelos? Enquanto proposta, opção e direito à recusa do outro, sim; enquanto recusa do conhecimento, do direito à existência do outro e do diálogo com o outro, não. E não, porque o homem não é Deus, mesmo que aceitando o princípio teológico de que tenha sido feito à sua imagem e semelhança, o que não quer dizer igualdade absoluta, o que não significa que não tenha o direito de querer caminhar em direção ao absoluto, num processo hegeliano do espírito em busca de si mesmo. A República de Platão, a Cidade de Deus de Santo Agostinho, a Cidade do Sol de Campanela, a Utopia de Thomas More, todas essas obras foram sempre proposições de arquétipos de sociedades perfeitas a construir na Terra, tal como a proposta marxista de uma sociedade sem classes, onde não haveria mais exploração do homem pelo homem, ao contrário da sociedade capitalista, em que o homem seria lobo do próprio homem, e onde a igualdade seria perfeita. Todos estes modelos defendem, contudo, a harmonia entre os homens e todos eles são compatíveis com o “amai-vos uns aos outros” de Cristo, só que Ele, que era filho de Deus, segundo os cristãos, ainda assim, não teve a veleidade de propor um sistema, político ou mesmo teológico perfeito – “o meu Reino não é deste mundo” –, mas ninguém o levou a sério, foi, então, crucificado, e note-se que não é metáfora, como pode parecer neste (con)texto, mas facto histórico que todos aceitam. Já aqueles modelos eram e são todos deste mundo e pronunciavam-se sobre todos os aspetos da vida humana. A propósito do chocolate, proveniente da América Central, e que aparece na Europa no final do século XVI, o Padre José Tolentino de Mendonça lembra uma questão teológica religiosa sobre se o uso do chocolate quebrava ou não a lei do jejum no tempo da quaresma, defendo uns que sim e outros que não, pois se era alimento quando sólido e violava o jejum, diluído em água tornava-se bebida. Afirma o Padre Tolentino de Mendonça: “a questão de fundo não é tanto o chocolate em si quanto o que ele representa: o confronto de modos de interpretar o mundo. De um lado, perfila-se uma posição ascética de rutura; de outro, expressa-se um entendimento do valor do mundo e da criação” MENDONÇA (“Religião e Chocolate”). Portanto, nada fica de fora de qualquer sistema de valores que se outorgue o papel de ordenador de uma sociedade que se pronuncia sobre o que existe ou sobre o que aparece. O Catolicismo é, portanto, um dos vários sistema de valores que se propõem às sociedades,. E afirma-se não apenas no aspeto religioso, mas igualmente na representação cultural e normativa que pretende para a sociedade em que se insere, sem descurar a questão política. Na sociedade madeirense, isso é visível na imprensa católica, a chamada Boa imprensa, boa justamente porque, segunda a própria, ela veiculava esses valores e deles se fazia eco e múnus doutrinário. Esse modelo de sociedade manteve-se em todo o século XIX até o Concílio Vaticano II, em que o diálogo ecuménico veio instituir uma nova relação com as outras confissões religiosas e, assim, alterar o conceito de alteridade desde sempre presente na cultura ocidental. Que a imprensa católica ou denominada neste artigo boa imprensa não se confinava nem se pretendia confinar ao caráter religioso, di-lo logo, inclusive, a denominação de alguns periódicos. Em 1879, circulava na imprensa regional um jornal que se intitulava “Religião e Progresso”, que já no nome traz implícita várias mensagens: que a religião não era incompatível com o progresso, ideia muito divulgada desde o Iluminismo, em que a Razão vinha ocupar o lugar de Deus na vida do homem, e que se acentua com as doutrinas filosoficamente materialistas, estávamos então nas vésperas do auge das teorias marxistas que vieram a sustentar a revolução de outubro de 1917, ano em que do céu, desciam as anunciadas aparições de Fátima. O jornal “Religião e Progresso” autodefinia-se como “jornal religioso, litterário, politico e scientifico”, na grafia da época e antes da reforma ortográfico radical de 1911, o que significa que este periódico, embora se declarando logo como religioso e dizia ao que vinha, não deixa de dizer que cobria vários campos do saber, dispensado, assim, outras publicações que se apresentassem como literárias, políticas ou científicas, porque ali tudo podia ser encontrado. O que se percebe muito bem, porque, se o objetivo era o do caráter da normatividade essa normatividade devia abranger todos os aspetos da vida em sociedade e procurava não se deixar ultrapassar nem ser considerado ultrapassado. Essa autocaraterização teria ainda como intenção não dar oportunidade que a leitura de outras publicações, nos vários campos do saber, induzisse outros valores incompatíveis com o modelo de sociedade que a boa imprensa pretendia incutir na sociedade madeirense, portanto, a doutrinação era multidisciplinar, mesmo que partisse do campo religioso. Neste jornal, nessa edição de 6 de Dezembro de 1879, o artigo de fundo era precisamente “A penitencia”. O artigo começa por falar sobre a forma de proceder dos apóstolos. “Se quizermos mais uma prova da maneira de proceder dos Apostolos, abramos mais uma vez a Escriptura” e conta, o artigo, o caso de um homem de nome Simão que havia sido convertido pelo Apóstolo Filipe e a forma como ele reagiu ao ver o poder dos Apóstolos: “Tempos depois do baptismo d’este converso, vendo elle que pela imposição das mãos dos Apostolos sobre a cabeça dos novos convertidos, descia sobre elles o Espirito Sancto, pretendeu comprar este poder. Simão pensava naturalmente que lhe seria de muita vantagem alcançar este poder; porque, exercido, lhe seria bem rendoso”. A questão teológica é saber como é que Simão seria perdoado desta iniquidade. E aqui há a polémica entre o Catolicismo e o Protestantismo: “Se a fé somente é o que justifica o homem, bastar-lhe-ha recordar os artigos que o apostolo S. Philippe lhe havia ensinado antes do baptismo”, diz o articulista e prossegue: “Não foi isso, porém, o que lhe prescreveu São Pedro. Terminantemente lhe dice: - Poenitentiam age ab hac nequitia tua: - faze penitencia d’essa maldade”. E neste ponto, afirma o articulista: “Creio que o Protestantismo não negará a um Apostolo, o conhecimento d’aquillo que é necessario para a remissão dos peccados”. E prossegue lembrando: “Simão era crente: - Tunc et ipse credit: mas, se apesar da fé de Simão, o apóstolo obrigou-o a fazer penitencia (…) que devemos concluir? Que não é somente a fé que justifica o homem, mas sim acompanhada da penintencia, a qual é absolutamente necessaria para a justificação, e que, por consequencia, é erro consideral-a inutil”. Este é um ponto crucial numa órgão da imprensa católica porque a penitência e o perdão do pecado é um dogma essencial ao catolicismo e um poder inalienável sobre os crentes, a quem não bastava ter fé para lhes serem perdoados os pecados, questão que o autor do artigo levanta: “Se isto assim é, se a penitencia é necessaria para a remissão dos peccados, como é possível que Jesus Christo quizesse dizer [ou seja, tivesse dito]: - prégae o Evangello; os peccados serão perdoados àquelles que acreditarem?! Serão perdoados pela fé, sem a penitencia?! Por acaso, pode a Escriptura estar em desacordo com Jesus Christo? Não, por certo”. E finalmente o articulista chega ao pomo da discórdia: “Se ha desacôrdo, é porque a interpretação do Protestantismo é errada; atribue á Escriptura o que ella não diz. Tira d’ella o que lhe appraz e não o que lá se acha”. Portanto, a posição do protestantismo sobre a questão da importância da fé na salvação do homem só pode resultar de uma má interpretação da Escritura. E de falta de senso: “Apellemos para o bom senso. Quem será que ouvindo estas palavras: os pecados serão perdoados áquelles a quem os perdoardes, serão retidos áquelles a quem os retiverdes: entenderá o seguinte: os peccados serão perdoados áquelles que acreditarem, serão retidos áquelles que não acreditarem?! Bem, qual é, então, o ponto essencial para o qual pretende chamar a atenção o articulista, além da discórdia da interpretação e da falta de senso que atribui ao protestantismo ao sustentar que é a fé que nos salva? É o do poder do sacerdote de perdoar os pecados, sem o qual não há salvação. Esse poder desapareceria se bastasse a fé ao crente: “Jesus Christo não subjeita o perdão dos peccados á fé, mas sim ao poder que confere aos Apostolos: mitto vos… quorum remiseritis, quorum retinueritis peccata”. Portanto, o poder de perdoar ou não perdoar, de reter ou não reter “segundo se verificarem ou não certas condições”. O Evangelho e a sua pregação abrange todos, mas o perdão não: “Mandando pregar o Evangelho, ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar peccados, não ordena que seja a todos: quorum retinueritis. (…) Jesus Christo mandando prégar o Evangelho ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar os peccados, deixa ao juízo dos Apostolas [sic] o julgar se os homens teem ou não arrependimento”. Portanto, segundo o articulista C. como ele assina, Cristo “deixa ao juízo dos Apóstolos”, que são homens, não só perdoar, mas decidir se há arrependimento ou não do pecador, o que pode perfeitamente ser subjetivo, um poder discricionário e terrível para um crente. O papel da boa imprensa fica clarificado quando compaginado com escritos que se lhe opõem e denunciavam, do seu ponto de vista, os objetivos dela. É preciso notar que a missão da boa imprensa não tem fronteiras é uma estratégia que conheceu divulgação por todo o mundo católico, inclusive com legislação que não escondia o seu objetivo. Nos finais de 1841, o governo prussiano aprovava um decreto que considerava ofensivo hostil à religião como ofensivo e difamatório. Acontece que no mesmo decreto censório se confundia, deliberadamente ou não, a religião e a política. Diz-se deliberadamente ou não, visto que os autores do decreto poderiam não confundir a religião e a política com a intenção de o fazer, confundir porque em suas próprias conceções ideológicas as duas se confundiam, sendo também ambas obviamente conservadoras, não podendo nenhuma delas, nem a fé nem a política, ser, de modo algum, progressistas, contra isso se levantavam vozes por todo o lado. Karl Marx, a 5 de Maio de 1842, dia do seu 24º aniversário, estreia-se com o seu primeiro trabalho jornalístico justamente com um artigo que era uma verdadeira declaração de guerra a essa nova lei do governo da Prússia e, assim, uma guerra à boa imprensa prussiana. O artigo foi escrito no novel periódico «Rheinische Zeitung», o qual, justamente à luz do decreto referido, veio a ser alvo de censura e finalmente encerrado. Marx procura destruir o absurdo decreto, no seu ver, recorrendo, com eloquência e acutilância, à literatura, mas de uma forma cómica e sarcástica, procurando demonstrar que o decreto acabaria por provocar consequência contrárias aos seus objetivos: “A liberdade faz [de tal modo] parte da essência do homem que até os seus oponentes a implementam quando combatem a sua realidade; querem apropriar par si mesmos, como o ornamento mais precioso, aquilo que rejeitaram como ornamento da natureza humana”. E depois procurava demonstrar que ninguém logra combater a liberdade em si mesma, a não ser a liberdade do outro: “Nenhum homem combate a liberdade; quando muito combate a liberdade de outros. Assim, toda a liberdade existiu sempre num momento como um privilégio especial e noutro como um direito universal. A questão tem agora um significado consistente, pela primeira vez. A questão não é se a liberdade de imprensa deve existir, pois ela existe sempre. A questão é se a liberdade de imprensa é um privilégio de indivíduos particulares ou um privilégio da mente humana”. Essa era a questão essencial: a liberdade de imprensa existe sempre para quem tem toda a liberdade de defender as suas ideias, se elas foram permitidas pelo poder, mas não existe para aqueles que possam defender ideias que o poder, qualquer que ele seja, não consente. Por isso, Marx afirma nesse artigo: “A censura não abole a luta [entre boa imprensa e a má imprensa], fá-la unilateral, converte uma luta aberta numa luta escondia, converte a luta sobre princípios numa luta de princípio sem poder contra um poder sem principio. A verdadeira censura, baseada na própria essência da liberdade de imprensa, é a crítica. (…) A censura é a crítica como monopólio de poder”. A análise de Marx do decreto do governo da Prússia toca no ponto essencial da questão: o decreto não abole a luta entre a boa imprensa e a má imprensa, apenas a oculta. O que é que Marx critica e denuncia? Que as duas imprensas não possam pelejar em campo aberto e que a uma seja dada a luz do dia, a boa imprensa, e que a outra, a má imprensa, tenha de esconder-se para existir e criticar aquela. Esse é o âmago da questão: que as duas não possam ser legítimas e mesmo que se possam considerar, mutuamente, de má imprensa, à outra, e boa imprensa, a si mesma. E sobretudo critica que ambas ambicionem a viver sozinhas, sem concorrência, impondo a sua visão do mundo a toda a sociedade. Marx estava longe de imaginar – ou imagina? – que, em seu nome, a boa imprensa, católica, tenha sido proibida em países e regimes que se reclamaram da sua doutrina. Ou melhor, que a boa imprensa, nesses regimes, passou a ser aquela que veiculava a ou uma nova versão oficial contraposta a antiga versão oficial conservadora que a antiga boa imprensa, católica, veiculava. A boa imprensa, então, passara a ser a imprensa progressista. Este é um ponto que não pode ser torneado neste artigo em todas as suas latitudes e azimutes. Este jornal prussiano, contudo, não terá beneficiado daquela intimidade de que goza a imprensa regional, que têm as característica de proximidade e de familiar, como assinala o padre António Rego, num artigo justamente intitulado «A dignidade da imprensa regional”. A imprensa regional fala aos crentes, quase familiarmente, com a característica, como assinala o mesmo prelado, de, sendo os “jornais regionais uma espécie de reserva ecológica da imprensa” terem “defeitos dos pequenos espaços circulares onde as narrativas da aldeia falam mais de pessoas que de ideias. Ou das ideias de apenas algumas pessoas” (REGO, «A dignidade…). Ora o autor não deixa de assinalar - não obstante relevar o papel da Igreja na criação da imprensa regional e no seu desenvolvimento correspondendo ao apelo da Igreja universal -, por outro lado, que a mesma imprensa regional no “nosso país surgiu, na linha da boa imprensa”, desde diários, semanários e mensários, “que faziam circular as ideias nas dioceses e nas aldeias mais longínquas”. Mas não deixa de se queixar o autor que o poder político tenha olhado com desconfiança para esse “vaivém de informações”, certamente um poder político que, politicamente, não se revia ou até, talvez, era visado como sendo um poder que estava do outro lado dos valores que veiculava a boa imprensa. Em termos atuais e na dicotomia política europeia, esse poder político que olhava de soslaio essa imprensa tenderia a ser identificado com a esquerda, ao passo que a direita política, cultural e sociológica não se sentia visada, antes representada e identificada com essa boa imprensa. Rego, contudo, reconhecido como cidadão do mundo por todos, não procede a essa dicotomia fácil e simplista, limitando-se a assinalar, porém, a propósito do porte pago, uma forma de apoio à imprensa regional, que as flutuações do poder, sob o protesto de apoiar os órgãos de imprensa mais fortes, deixar cair os mais pequenos. A generosidade da ideia, contudo, trazia no bojo o propósito de “favorecer a criação de alternativas a uma imprensa cristã já existente por outra que, com mais apoios oficiais, autárquicos e nacionais refletisse a voz dos donos” (idem). Este artigo de António Rego escrito em 13 de Fevereiro de 2007 não deixa de ser simétrico - e até parecer ser uma resposta, quanto ao lugar donde parte, de defensor da boa imprensa - do de Karl Marx de 5 maio de 1842 contra o decreto prussiano de finais de 1841, já antes referido, em que Karl Marx se insurge contra o decreto, por na prática, defender os valores veiculados pela boa imprensa. E nessa posição simétrica da de artigo de Marx, que se queixava do decerto, Rego, queixa-se da forma como estava a ser usado o apoio à imprensa, nomeadamente através do apoio ao parte pago, para, na prática, criar dificultar a vida da boa imprensa, que, normalmente tinha dimensão local ou regional, em favor de uma imprensa de maior dimensão, mas que, na prática, já não partilhava os valores dessa boa imprensa, ou seja, era já não prosélita como a boa imprensa, mas, pior ainda, mas de um outro proselitismo, porque era laica e, ainda cima, aparentemente neutra, portanto mais difícil de combater. Ambos, porém, eram, em termos absolutos, isto é, quando não enquadrados em setores ditos conservadores ou progressistas, de direita ou de esquerda, rigorosamente equivalentes na defesa de um determinado tipo de empresa em desfavor de outro, posição, a de ambos, cuja legitimidade não pode ser contestada enquanto não propugnar abertamente a extinção e a perseguição ao outro tipo de imprensa. Por outro lado, o esquema cultural com que se encara os dois lados não pode, a não ser em termos epistemológicos, situar à esquerda ou à direita, em termos de progressistas ou conservadores, cada um dos setores, pois bem sabemos que essa utensilagem mental, para usar uma expressão de Fernand Braudel, nem sempre corresponde à realidade política em diferentes épocas e latitudes, pois não é verdade que a implantação da República no Brasil se deveu a um ato culturalmente de esquerda, visto hoje, da Princesa Isabel, de abolir a escravatura? E que os Democratas americanos, de esquerda em termos europeus, eram esclavagistas, no Sul dos Estados Unidos, e os Republicanos, considerados conservadores, eram favoráveis à abolição da escravatura? Em qualquer caso, o que se nota é um proselitismo em função da posição religiosa, política ou ideológica de cada um, que se pode revelar quer pela afirmação dos seus princípios, quer pelo combate aos princípios alheiros. É óbvio que, nos setores e territórios em que uma determinada crença ou ideológica é maioritária ou tem o privilégio da exclusividade, sendo proibidos as outras correntes ideológicas ou religiosas, a corrente predominante não precisa de as combater nem de se afirmar contra elas. No caso em que as correntes minoritárias são consentidas, estas têm a tendência em se afirmar, desde logo, perante a corrente dominante. No caso da Madeira, em que o catolicismo sempre foi maioritário, era normal que alguns órgãos de comunicação se afirmassem contra ele, como é o caso de uma revista, que, existindo no século XIX se intitulava justamente “Revista histórica do proselitismo anti-catholico”, dirigida por Robert Reid Kaylley. Voltando à questão do supra referido, publicado no jornal “Religião e Progresso”, a sua importância não podia ser maior no contexto da boa imprensa, porque ele versava, por um lado a penitência e o poder consequente de perdoar, por outro, a polémica explícita com o protestantismo, que entende que basta a fé e não os atos, segundo o artigo ali publicado, e por outro, pode, subtilmente, dar a entender que, se o perdão está reservado aos apóstolos, conforme lhes foi conferido por Cristo, ou seja, aos sacerdotes, e que, se sem esse perdão ninguém poderia ter salvação, então os não católicos não teriam salvação. Quer-se anátema maior lançado sobre os pecadores que não tivessem acesso livre a esse perdão. Quem: os que não se arrependiam? Desde logo! Os protestantes? Imediatamente a seguir! E mais: os que não partilhassem dos valores veiculados pelo catolicismo? Os que não liam a imprensa que os veiculava? Os que, concretamente, não liam aquele jornal? Estas são as questões que se levantam! Mas, depois, outro artigo do mesmo jornal, que também se intitulava político fala de um ato eleitoral. Penariam, também, eternamente, os que não partilhassem das ideias políticos que o jornal veiculava, porque se há um sistema de valores ele não se esgota na religião, estende-se a todos os campos, inclusive aos da política, ou seja, também os eleitores, por certo, não escapariam a retenção da absolvição. Mera especulação intelectual do leitor, inferência ilegítima do que ali não está? Não estão as deduções no campo da doutrina política, mas estão claramente as posologias da doutrina religiosa católica para os males do mundo. Sem perdão não há remissão. Não sendo este um tratado de teologia, importava aqui saber o conceito de pecado. Pecado é a ausência do bem, é a ausência de Deus, que origina o mal, o diabo. O diabo não é, como às vezes pareceu ser em certas correntes ultramontanas, o outro lado de Deus, o seu oposto equivalente, porque, então, dessa equivalência de duas potências, poderia, numa oposição de contrários, caminhar-se para uma síntese hegeliana de superação dessa dicotomia. Sendo Deus aquele que é, “Eu sou aquele que é”, I am that i am”, o diabo, que existe, neste caso como alegoria do mal, sendo aquele que não é – o bem, tende, numa homologia perigosa e de equipolência, a ser aquele que não é como nós, ou seja, o outro de nós mesmos, problema que subsiste na cultura ocidental desde sempre que ela existiu. Ora, se o diabo, como ausência do bem, deve ser extirpado, então o outro, que é aquele que não é – como eu [sou], tende, primeiro culturalmente, e, depois, em situações de afirmação radical de sistemas absolutos que a si mesmo se consideram perfeitos, fisicamente a ser eliminados, porque perturbam a ordem instituída. Como é que se entende a eliminação física dos não católicos, mesmo sendo crentes do mesmo Deus, pelas fogueiras da Inquisição, senão por se tratar do outro em relação ao conceito de sociedade que se defendia e, nessa sociedade, ao conceito que ela pretende impor da própria ideia de Deus? – “A cultura ocidental, erigida sob a égide da ontologia grega, historicamente relegou o outro em sua alteridade ao esquecimento, numa supremacia do ser que justificou as cruzadas, a colonização, a escravidão, os regimes totalitários como o fascismo e o nazismo, entre outros […]A modernidade fundada no racionalismo de Descartes, voltada para a ideia da perfeição e das verdades inatas (divinas), sem a perspetiva da existência do outro, dará luz o eu gestado no Ocidente desde Platão”. (BIRMAN, “O reconhecimento da alteridade, 275). Essa recusa do outro manifesta-se na religião, não só entre as religiões mas dentro das próprias religiões e as suas diferentes correntes. No Cristianismo, o caso das guerras permanentes entre católicos e protestantes, na Irlanda do Norte. No Islamismo, entre sunitas, xiitas, waabamitas, em que cada seira se considera o verdadeiro intérprete do pensamento do profeta. A designação de boa imprensa traz consigo uma valoração implícita no adjetivo bom. Ao autor de um artigo de dicionário ou de uma enciclopédia põe-se a mesma questão que se coloca ao sociólogo, que é a de saber se deve analisar os factos e as instituições sem emitir juízes de valor sobre os mesmos . No caso da análise da boa imprensa, ou seja, a imprensa católica, deverá o autor do texto limitar-se a observar, abstendo-se de ajuizar, mesmo que veja nela valore morais que possa considerar essenciais numa sociedade, situá-los num determinado tempo e lugar ou admitir que os valores que ela veicula são comuns a outros credos religiosos, cristãos ou não? A reflexão não tem de ter uma resposta explícita, mas não podia deixar e ser feita. Em qualquer circunstância, o enquadramento de um facto no seu tempo e na linha do tempo deve ser a resposta para a sua compreensão, o que, assim, obvia apologia ou condenação que lhe não é exigida. Tem sido essa a linha que este artigo, entender a boa imprensa no interstício de vários tempos e e correntes doutrinárias. O jornal «Pregador Imparcial da verdade, da Justiça e da Lei”, na sua edição de 6 de Dezembro de 1823, em tom grandiloquente, anunciava, num artigo intitulado «Alemanha» que o governo deste país tinha dado ordens severas contra as sociedade secretas, visando a maçonaria, obrigando a que “todo aquelle que aspirar aos Empregos, tanto civis como ecclesiáticos, està obrigado, para ser admitido aos exames, a apresentar certidões de Policia, que façaõ fé, de não ser parte em nenhuma destas associações, e deve ter-se muito em vista que se verifique esta condição, mormente quando se tratar de prover os lugares de ensino público”. O «Pregador Imparcial da Verdade…» não só publica, como incentiva que a medida se propague: “Publiquem-se pois em todas as Nações os quadros de todas as Lojas». Segundo o espírito do articulista, a publicação das litas dos maçónicos resulta da obrigação de servir o bem público. Não podem as instituições serem dominadas por indivíduos que possam contamina-las. Se as instituições resultam de um conjunto de circunstâncias, segundo Montesquieu, podemos concluir que as que existem são as melhores possíveis naquelas circunstâncias, porque resultam de uma determinada influência social. Impor-se-ia, portanto, saber o que será necessário para se atingir os objetivos que se pretendem alcançar o melhor possível. Ora, segundo o articulista, atingir o melhor possível os interesses sociais de uma instituição é varrer dela os indivíduos que, pertencendo a uma associação secreta como a maçonaria, supõe-se que não poderiam ter direito a ser titulares das mesmas instituições que, obviamente, para o articulista, deviam ser portadores dos valores que eram veiculados pela boa imprensa. Poderia, abusivamente ou por extensão ilegítima, segundo a máxima de Montesquieu de que se “a legislação resultou do espírito de uma nação” , seria lógico adaptar as leis-comando ao espírito da nação. Mas essa seria uma adaptação ilegítima porque o articulista transmite o sentimento de uma parte da nação que não pode ser tomado como o espírito nacional, que é o todo e não a parte. Assim é, quer viva a nação em monarquia ou em república, sendo que a igualdade que, em teoria, a república implica deveria ser ainda mais impeditivo que isto acontecesse num sistema de governo republicano, privar os cidadãos de pertencer às instituições públicas por não professarem uma ou outra religião e professando esta pertencessem a uma ala progressista ou conservadora desse credo religioso. Nem mesmo a natureza do regime, ao tempo monárquico, poderia ser respaldo para defender tal iniquidade. Não é natureza do regime, monárquico ou republicano, que vai determinar a justeza das leis que devem consagrar o sentido da justiça que é anterior às leis positivas universalmente aceites: “Dizer que não há nada justo e a não ser o que ordenam ou proíbem as leis positivas é [o mesmo que] dizer que antes de ser traçado o círculo nem todos os seus raios eram iguais” (ARON, 57). De facto, não se pode considerar válidos critérios cujos efeitos sejam a exclusão de uma parte da sociedade, mas sim aqueles critérios ou leis que, anotando as diferenças de uma determinada realidade social ou política, ou religiosa, sejam capazes de garantir essas diferenças. Ora o que diz o articulista é que a lei a aplicar deve ser aquela que considera válidas para integrar as instituições os cidadãos que não tenham pertença a instituições de caráter secreto. Essa recusa do outro enquanto indivíduo que não partilha dos mesmos valores é um fenómeno resultante da vida em sociedade, porque o homem, no seu estado natural, isto é, anterior ao estado de vida em sociedade, vive “uma verdadeira paz, pelo menos um estado alheio à distinção paz-guerra” (idem, 58). Esta atitude resulta, segundo Montesquieu, da vida em sociedade, ao contrário do que pensa Hobbes, para quem o homem vive, naturalmente, em estado de guerra permanente contra o seu semelhante. Esta diferença de conceitos, em que, segundo um, Hobbes, o homem é um ser por natureza inimigo do homem, como sua característica intrínseca, ao passo que para Montesquieu, essa não é a sua natureza, sendo conflito um fenómeno social, não sendo possível regressar ao estado de pureza do homem imaginável antes de viver em coletividade, como o concebeu Jean-Jacques Rosseau, conduz à necessidade de superar o conflito em sociedade através da aceitação do outro, a questão da alteridade na cultura ocidental. Esse equilíbrio social só pode ser conseguido através da constatação de que a ordem social é, por regra, heterógena e a liberdade de todos não pode senão resultar da inclusão social de todos os membros de uma sociedade. Hobbes defende um poder absoluto em resultado desse conflito social permanente em guerra com os seus semelhantes. Observa assim, que, neste ponto, o articulista coincide na com Hobbes e não com Cristo, ao defender que não devem ter acesso a certos empregos, nomeadamente ao ensino público , em virtude de serem maçónicos, os pedreiros-livres, defendo que todas as polícias, sabendo as lojas maçónicas há muito, deveriam imprimir as listas dos seus membros e se não as fazem é “porque appareceriaõ talvez marcados com este ferrete o Duque, o Marquez, o Conde, o Cavalheiro, o Magistrado, o Frade, o Clerigo” (in «Pregador Imparcial da Verdade») e acrescenta que não poderia haver mal de tal coisa porque sabiam da existência da lei. Se o autor de um artigo se deve dispensar o papel de julgar as instituições, não deve eximir-se ao dever de fornecer todos os dados a quem o deve fazer, o leitor. A equação dos dados num artigo deve permitir ao leitor o papel de julgar, de que se deve dispensar o autor. Se aqui a atitude do articulista do texto «Alemanha” deriva da sua ideia de organização da sociedade e dos valores que defendia, essa atitude deve ser confrontada com o que pensam sobre a questão da organização social os grandes pensadores de correntes diversas. Assim será possível verificar a finalidade imanente das atitudes humanas com as do autor daquele artigo e sobretudo o momento histórico em que aquele é escrito. Há, com efeito, dois aspetos atitudes culturais claramente identificáveis no jornal. Por um lado, esta atitude da boa imprensa de recusar de tudo o que saia dos cânones da doutrina católica tem um contexto histórico-cultural. Antes de mais, convém esclarecer que a própria existência da boa imprensa é um si mesma uma prova de que os tempos da afirmação inquestionável da autoridade teológica já passara. O aparecimento da boa imprensa coincide com uma necessidade de reafirmar e manter a unidade da mensagem católica num tempo em que outro tipo de autoridade começava a surgir e que abalava a autoridade teológica. Passara o tempo em que a autoridade política e religiosa coincidiam e juntas formavam a autoridade universal. Os tempos agora eram outros e o tempo histórico da sociedade europeia nos princípios do século XIX haveriam de conhecer profundas alterações. Se o poder político era afirmado pela força das armas, o poder religioso era firmado pela poder teológico sustentado na infalibilidade papal. É nesse contexto que o Concílio Vaticano I proclama a infalibilidade papal, dogma da teologia católica que confere ao papa o dom de definir a interpretação e clarificação em matéria de fé e moral, na medida em que ele, em comunhão com o Sagrado Magistério, o faz no gozo da assistência sobrenatural do Espirito Santo, e, desse modo, fica imune a todo o erro. A função de Magistério da Igreja é do múnus do Papa  e pelos bispos em comunhão com ele. Auguste Comte assevera que o início do século XIX assiste ao fim de uma tipo de sociedade, que tem origem na Idade Média, em que o poder se caracteriza pelos dois adjetivos: teológico e militar. Esses poderes, teológico e militar, partilhavam a supremacia numa sociedade claramente marcada pela hierarquia eclesiástica e militar. A supremacia desses poderes está em vias de ceder o lugar a um outro tipo de sociedade científica e militar: “A sociedade que nasce é científica no mesmo sentido em que a sociedade que morre era teológica” (Comte in ARON, 59). Segundo Comte, a forma de pensar dos tempos passados, a dos teólogos estava a ser substituída pela forma de pensa dos sábios. A sociedade do início do século tinha agora uma nova categoria social que lhe fornecia a base intelectual e moral, que era a dos sábios, que herdavam o poder espiritual dos padres e passavam a ser o novo modelo de pensar, a nova fonte das ideias que serviam a nova ordem social, ao mesmo tempo que os industriais haviam de substituir os militares. Nesta nova ordem, a força militar desapareceria porque era uma sociedade em que os novos detentores do poder exerciam-no pelo pensamento científico e não pela força. Analisando este nova sociedade que despontava, Auguste Comte conclui que a reforma social a que se assistia implica um reforma intelectual e isso só se faria entre a síntese da ciência e de uma política positiva. Neste cenário, em que o poder teológico cede o passo aos sábios, a nova classe intelectual proposta por Comte, é natural que a boa imprensa sinta a necessidade de reafirmar o modelo de sociedade e de família proposto pela doutrina católica, que se confronta, ainda por cima, com perturbações sociais derivadas das contradições de uma sociedade em crise de mudança. Vários modelos confrontam-se então: o modelo proposto por Comte é aquele que visa superar as contradições sociais resultante do confronto entre a ordem antiga, teológica e militar, pela nova ordem, científica e social. Ao lado destes dois modelos, surge o grande doutrinador da Revolução, Karl Marx. Montesquieu, por sua vez, defende a doutrina das instituições livres. Em confronto com estes três modelos, o modelo proposto pela boa imprensa, em que as verdades são eternas, imutáveis e indiscutíveis, e, desde o Vaticano I, reforçadas com a infalibilidade papal, que, obviamente é uma resposta a esse novo tipo de autoridade científica que surge: como contestar o que existe por inspiração divina, através do Espírito Santo? Além de querer divulgar esse modelo à sociedade, a missão da boa imprensa visa reforçar a unidade interna da Igreja. A sociedade tinha de ser visto no seu todo para ser compreendida e esse era agora – então - o objetivo da sociologia. Nenhum facto devia ser entendido isoladamente, sobretudo a partir de uma ciência como a biologia. Já não bastava analisar os fenómenos de per si, mas integrados epistemologicamente. As ciências já não podem ser puramente analíticas, mas devem ter caráter sintético. Isto origina a conceção sociológica da unidade histórica. Ora não se pode entender a sociologia como se ela fosse uma ciência de natureza inorgânica , que tem um caráter analítico ao estabelecerem leis entre fenómenos isolados. Tal como a biologia, que não pode explicar um órgão ou uma função sem integrá-lo anatomicamente, não se pode compreender um acontecimento, por mais relevante, sem o situar na sincronia, isto é, no seu tempo, e na corrente diacrónica, ou seja, conhecer os seus antecedentes e, eventualmente, estabelecer, prospectivamente, eventuais desenvolvimentos futuros. Um cientista não pode cortar uma parte do organismo para saber como ele funciona. Pode deter-se, epistemologicamente, sobre ele mas só o pode explicar no todo, porque estamos a falar da vida e não da morte. Essa inserção do elemento no todo da biologia transfere-se para a sociologia, em que o todo tem primazia sobre o elemento. Segundo o pensamento de Comte, “Não compreendemos a situação da religião […] numa sociedade particular, se não considerarmos o todo dessa sociedade”. (ARON, 86). Não é possível compreender o papel da boa imprensa, por um lado, sem conhecer a evolução histórica da sociedade no seu todo e, por outro, a própria evolução e reinterpretação da doutrina da Igreja à luz do Evangelho, é certo, mas também à luz da sua adaptação constante à sociedade do seu tempo, o que contradiz a ideia comum de a Igreja Católica não ser capaz de introduzir no seu seio dinâmicas vivas capazes de a reatualizarem, à luz dos tempos, o que o estudo dos vinte e um consílios da sua história milenar certamente elucida. Poderá sempre ser acusada de estar mais preocupada de manter o statu quo ante, de manter a autoridade incontestável do seu Magistério na pessoa do papa, mas nunca de ignorar a passagem do tempo, elemento fundamental do seu porvir, porque a Igreja olha os tempos que passam com a sabedoria do Tempo eterno de que é detentora, não apenas enquanto instituição, mas o do Verbo de que se proclama representante. Enquanto a boa imprensa propõe a prática da doutrina cristã na Terra para ganhar o paraíso; o positivismo advoga o progresso humano com base nos avanços da ciência – etimologicamente scientia, note-se, porque é aqui importante -, como meio para a transformação da humanidade; já o marxismo propõe-se construir uma sociedade de justiça através da dialética que afirma estar imanente a uma sociedade dividia em classes. Assim, as três correntes de pensamento convergem em dois aspetos: a scientia, a ciência e o seu caráter teleológico. Pela ciência, o conhecimento, da Verdade, a boa imprensa promete ao crente o alcance do céu; com o progresso da ciência, podemos alcançar o progresso ilimitado da Humanidade, defendem os positivistas; com a ciência da sua circunstância e conhecendo os limites da sua vontade no momento da sua escolha – “Os homens fazem sua própria história, mas não as fazem segundo sua livre vontade; em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado”, (Karl Marx in «O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 2008, p. 207, citado em FRANKLIM, 204), o homem construirá a grande síntese final que é a sociedade sem classes. Assim, as três correntes, caminham para um fim previsível, o paraíso, sendo que a boa imprensa, isto é, a religião católica nos propõe vencer as agruras deste mundo com o paraíso no outro; o positivismo e o marxismo propõem-se construir um outro mundo ainda neste mundo. Perante isto, é de concluir – con[s]ciência certa – que, se não desistirem da sua caminhada, ainda que po percursos diversos e até divergentes – hão de encontrar-se todos às portas de uma Nova Jerusalém, e também nesse caso, serão vencidas as fronteiras entre este mundo e hoje: “Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar já não existia. Vi a cidade santa, a Nova Jerusalém, que descia do céu de junto de Deus”. (Apocalipse, 21: 1,2). Tanto Comte como Marx pretendem uma nova forma de organização do poder temporal, isto é, do poder político, mas enquanto Marx proponha a revolução, os positivistas de Augusto Comte acreditavam que o poder temporal podia ser reformado pelo poder espiritual que caberia aos sábios e filósofos, que teriam o mesmo papel que caberia aos padres na idade teológica, segundo a sua conceção: “O poder espiritual deve regrar os sentimentos dos homens, uni-los em vista de um trabalho comum” (ARON, 97). Para os marxistas, não só todas as estruturas do velho poder devem ruir pela força da revolução, como o papel de construir uma sociedade nova competia às vanguardas revolucionárias, quais sacerdotes de uma nova metafísica revolucionária. A boa imprensa segue a linha de que o poder de transformar o coração dos homens deve continuar a ser da Igreja e do seu magistério - sacerdotes, bispos e o papa -, cuja autoridade advém da Verdade que lhe(s) inspira o Espírito Santo, fonte da renovação constante da Igreja, cabendo a esta espalhar, desde o tempo de Cristo, a conversão interior dos homens e da humanidade. Para a boa imprensa, o Catolicismo era a verdadeira Religião da Humidade e a Igreja, Católica por natureza, isto é, universal, tinha o direito e o dever de divulgar a sua mensagem através dos meios de comunicação ao seu dispor. Os positivistas, por seu lado, proponham-se instituir a sua Religião da Humanidade, um nova religião, de que as religiões do passado eram apenas formas provisórias, que procuravam no sobrenatural e nos deuses aquilo que devia ser procurado no cerne da própria humanidade, cuja unidade moral e humana era o Ser Supremo de si mesma. À escolástica de Tomás de Aquino e dos Padres da Igreja, que tanto tinham influenciado e fundamentado o catolicismo, Comte contraponha a filosofia positivista como o fundamento da sua nova religião. Embora positivista, esta nova religião não dispensava, todavia, os seus templos e capelas e até um novo calendário, o calendário positivista composto por treze meses de vinte e oito dias, com base no calendário lunar e tinha como ideal o altruísmo, palavra criada por Comte. Em síntese espontânea: em que é que diverge o espírito semântico d’ o amor ao próximo de Cristo, o altruísmo de Comte e a igualdade de Karl Marx? O que sabemos, porque observamos a passagem do tempo e do que ele deixa prevalecer, é que o poder espiritual que subsiste é exercido pelas igrejas do passado ou pelo poder de ideólogos, e não pelos verdadeiros sábios ou filósofos, como idealizava Comte na sua nova religião. Se Comte pretendia uma desvalorização dos conflitos ideológicos e do poder temporal, isto é, do poder político, ambição comum aos doutrinadores da boa imprensa, a verdade é que a Europa e o Mundo sucumbiram, por duas vezes, no século XX a esses conflitos que tiveram por base a questão ideológica e que fizeram perecer milhões de seres humanos. Comte preferia a desvalorização do conflito ideológico e do poder da hierarquia temporal e um ascendência do poder espiritual dos sábios sobre a organização social, mas isso está longe de ser uma realidade: “Provavelmente os homens preferem sempre o que os divide ao que os une. Provavelmente cada sociedade é obrigada a insistir no que tem de particular e não nos traços comuns que compartilha com todas as sociedades” . (ARON, 98) Há ideias e os valores que numa sociedade são subtilmente insinuados, aliás, muitas vezes com uma eficácia muito maior, por uma determinado doutrina religiosa ou corrente ideológica ou cultural do que aqueles explicitamente expostos. Quando os revolucionários franceses mudaram o calendário gregoriano por uma calendário próprio ou quando os positivistas pretendiam impor o seu calendário sabiam que isso era uma forma de incutir os valores simbólicos que esse calendário implicava. Hoje é frequente determinadas confissões religiosas minoritárias nos países maioritariamente católicos, como o nosso, reivindicar a legitimidade de lhes ser concedido o dia de guarda da sua religião, o caso de judeus e adventistas, para descanso, tal como os católicos têm o domingo, ou os momentos diários de oração e meditação, caso dos muçulmanos. Os rituais e implicações culturais de um calendário religioso não deixam de ser reivindicados pela boa imprensa, num reafirmação dos valores católicos face ao movimento de secularização da sociedade, que vinha já dos séculos passados: “a rivalidade medieval entre o papado e o império, a Reforma protestante, o século das Luzes, para citar apenas as etapas principais da secularização das sociedades europeias” (Gianni Vattimo in BINDÉ, 35/36). Essa secularização tem ainda outros momento importante na crescente secularização, como a revolução tecnológica, sobretudo no século XIX e a crescente urbanização da sociedade, o que leva “à «perda do centro», isto é, a dissolução das tradições comuns e das crenças nos mesmos valores, seja do ponto de vista religioso seja do ponto de vista ideológico” (idem, 37). Esse movimento de secularização, tem, assim, um largo rastro, e, para os alguns, nomeadamente para os arautos da boa imprensa, que o queriam impedir, ou para outros que o observavam e ou até senão o desejavam, nada lamentavam, como Nietzsche ou Spengler, significava o crepúsculo do Ocidente, esquecendo, como lembra Vattimo, que o crepúsculo, ou alpardinho, no dizer madeirense, “não é apenas o declínio do Sol no poente, mas aquela luz lenta e insegura que anuncia uma nova aurora”. A boa imprensa não deixava de estar atenta a esse movimento da secularização. Num artigo de 11 de dezembro de 1909, no jornal «Brado d’Oeste», defendia-se o descanso semanal e insurgia-se contra o seu incumprimento: . “um abuso que não deve continuar”. Se a questão era a do trabalho e a do direito ao descanso semanal, a questão das datas importantes do calendário litúrgico e o valores da família eram uma constante neste bissemanário da imprensa católica. No próprio dia 25 de Dezembro, dia de natal, no editorial do «Brado d’Oeste» o editorialista escreve: “Vêem-se alli cumpridos oraculos e prophecias”, a profecia que é a concretização do que tinha sido anunciado no passado para o futuro, e assim se fundem a lembrança do passado e a espera do futuro, numa espécie de plenitude do ser, situado naquilo a que Derrida designa por “logocentrismo”, na media em que essa plenitude se situa na realidade ontológica do ser, para além da circunstância do ente no tempo divido da realidade, a dimensão temporal da existência humana. Nessa realidade logocêntrica, o homem ultrapassaria a sua dimensão socio-político-religioso-cultural, situando-se no plano ontológico, em que se dissolvem as diferentes visões do mundo. Isso não significa que essa realidade ontológica seria conseguida à culta do fim das civilizações, mas que todas elas saberiam situar-se e compreender-se como uma das várias manifestações do ser na sua plenitude, como condição de unidade da humanidade na sua pluralidade. Assim, a boa imprensa, não deixaria de ser entendida como uma das faces da realidade, na afirmação dos seus valores, como um dos contributos inalienáveis na afirmação da unidade do ser. Mesmo que ela e os que definiam contra ela se considerassem, reciproca e simultaneamente, como representantes únicos da verdade, excluindo cada o outro de o ser, esse antagonismo só reforçaria o vitalismo de cada um, o que é dizer que os faz andar mais depressa, na senda de uma visão teleológica da realidade. Todas as manifestações religiosas, culturais, civilizacionais participam, numa perspetiva hegeliana, da caminhada do Espírito sobre a Terra até a realização da consciência plena da Razão na sua plenitude final, mas é normal que nenhuma delas ou nem todas elas tenham a noção do seu papel insubstituível e único, mas não exclusivo, na consecução da plenitude da humanidade. Se a História, na visão kantiana, corresponde à realização dos planos secretos da natureza, é natural que os seus autores, muitos deles, não tenham a noção exata do seu papel no grande drama humano. Não se pode, desse modo, pedir a todos, que, para além de saber de cor o seu papel, tenham a ciência exata do sentido da grande narrativa da Humanidade. Assim, as ideologias, as religiões, as culturas, as civilizações são manifestações parcelares da Humanidade na medida em que não a representam no seu todo, mas nenhuma delas deve ser extinta violentamente porque isso seria decepar cada uma das formas em que o espírito humano se manifesta. O mesmo não acontece quando uma determinada civilização se transforma ou se deixa absorver, paulatinamente, por outra, porque, na verdade, ela não desaparece, a não ser superficialmente, pois que passa a estar incluída no âmago da cultura em que foi absorvida que deixa de ser, na medida em que, ao absorve-la se deixou também absorver. Os factos não têm sentido quando considerados individualmente, apenas ganham sentido quando integrados no percurso dos acontecimentos. Na sua dupla dimensão, a história atende à realidade dos factos que se vão inscrevendo na linha do tempo – a res gastae – ao passo que é o relato desses - a narrativo rerum gestarum – que lhe confere sentido e racionalidade. Esse é o papel da boa imprensa: atribuir uma dimensão transcendente àquilo que, no quotidiano, não tem significado que o ultrapasse. Se a um facto não for conferida dimensão transcendente, ele esgota-se por si mesmo. Se, porém, ele for compreendido numa dimensão mais vasta que o ultrapassa, tal circunstância dá-lhe uma dimensão simbólica. O nascimento de uma menino, numa gruta, é uma facto da natureza humana. Mas se a interpretação desse acontecimento for determinante na marca da humanidade, então ele sobreleva o quotidiano da sua realização. Quando o articulista do editorial do «Brado d’Oeste» no já citado artigo sobre o Natal, afirma que se completam “ali os multiplicados votos de milhares de gerações, sonhos dourados de homens e promessas infalliveis de um Deus” e que “Um passado calamitoso e sombrio termina alli” e “um futuro de venturas brilhantes d’alli se desenrola” e acrescenta que a partir “Do recinto tenebroso de uma gruta raia uma aurora de duração eterna” está não só a proceder à inscrição de facto localizado no “recinto tenebroso de uma gruta” numa leitura providencial da História, mas, igualmente, a proceder à interpretação do facto de acordo com a característica linear e judaico-cristã do tempo. A “duração eterna” de que fala não funciona apenas para o futuro, a partir do momento em que a esperança se realiza, mas absorve, igualmente, o passado em que essa esperança nasceu e sobreviveu no coração de “milhares de gerações”. Dá-se, assim, a unidade do ser e o “cahos do passado recua”. A igualdade dá-se ali pelo “effeito (…) edificante, admirável e prodigioso do […] do Natal do Homem-Deus” porque “O escravo sacode e despedaça as algemas; o senhor (…) curva a cerviz; a mulher proclama os seus direitos; o pobre, o desgraçado, reconhecem alfim que são creaturas de Deus; a religião transforma e humaniza o homem.” O efeito miraculoso da igualdade do escravo e do senhor, da mulher e do pobre, que se reconhecem como criaturas de Deus, é alcançado por esse Homem-Deus. Ao proceder a essa leitura, a boa imprensa, na sua ânsia de absorver a realidade da vida, supera-se a si mesma e eleva à ontologia do ser aquilo que, em princípio, é um facto da vida quotidiana dos entes. Mesmo aqueles que não concordam com a leitura transcendente daquele facto não podem negar que essa leitura é uma leitura universal e não facciosa da realidade. Ao proceder assim, qualquer religião tem um movimento ascendente em relação a si mesma e em relação à realidade concreta, que, é por natureza, fragmentada e caótica, logrando a unidade. Essa consecução da unidade não é, portanto, incompatível, com a diversidade religiosa, embora não seja esse, muito provavelmente, o pensamento do articulista. Augusto Comte pensou a unidade da espécie humana através da constância da sua natureza essencial, que podia observar, contudo, através da diversidade das instituições históricas no plano social. Na sua conceção “a afirmação da unidade humana (…) implica uma certa conceção do homem, da sua natureza, da sua vocação e da relação entre o indivíduo e a coletividade”. (ARON, 114). Mas há, desde logo, uma diferença radical, ou seja, de raiz: enquanto o articulista concebe a unidade do homem pela intervenção do transcendente, a unidade preconizada pelo positivismo é uma unidade imanente. Se é certo que todas as doutrinas sociológicas desde o século XIX proponham que se passasse do pensamento à ação, ou da ciência à política, enquanto fundador de uma nova religião, a religião da humanidade, o positivismo desvaloriza o económico e o político em favor da ciência e da moral e não acredita que seja através da mudança do regime ou de Constituição que o homem ponha termo às convulsões da sociedade. Comte inscreve-se na linha de Kant, que acreditava no papel da natureza na marcha inexorável do tempo e de Hegel, na espiral ascensional do espírito. Para Kant, Hegel e Comte, o tempo é o grande senhor da História. Comte admite que apenas o tempo fará passar das sociedades fragmentadas e injustas de hoje às sociedades reconciliadas do futuro, mas acredita que o esforço dos homens de boa vontade aliado ao sentido inexorável da evolução, que pode ser mais ou menos longa: “Na duração e nas modalidades da evolução, em si própria inevitável, exprime-se a parte de liberdade reservada aos homens” (idem) . Comte não é o profeta da violência revolucionária, como Marx, mas acredita que os seres humanos têm uma «margem de modificabilidade da fatalidade» (idem, 115). Tal como o cristianismo, o positivismo e o marxismo têm subjacente uma estrutura teleológica e acreditam num grau crescente de aperfeiçoamento da humanidade. Ou entra a revolução ou a reforma, que são ou da sociedade ou do indivíduo. O positivismo partilha com o cristianismo o repúdio ao recurso à violência como forma de atingir uma sociedade justa e partilha; com o marxismo, a ideia de que a única transformação social possível é aquela que implicasse o fim do pensamento teológico, com a diferença que Comte é apologista do pensamento reformador pela ciência e Marx pela revolução. A relação entre as conceções religiosas e os comportamentos económicos é visto por Max Weber como uma das causas das transformações económicas das sociedades, na medida em que uma determinada interpretação do protestantismo vai favorecer a criação do sistema capitalista, fundamentada na conformidade, intelectual ou espiritual, entre o espírito da ética protestante – ou de uma certa ética protestante – e o espírito do capitalismo. A tese de Max Weber é a da adequação significativa entre o espírito do capitalismo e o espírito do protestantismo: “A ética protestante a que Max Weber se refere é essencialmente a conceção calvinista” (idem, ibidem), segundo o qual Deus predestinou cada ser humana para a salvação ou para a condenação, não sendo, portanto, pelas suas obras que o homem pode alterar a decisão divina tomada à anterior. sem que, através das nossas obras, possamos modificar esse decreto divino de antemão fixado. Mas é, pelo menos, concebível uma outra interpretação. É através do trabalho que, segundo Max Weber, “certas seitas calvinistas acabam por descobrir no êxito temporal, eventualmente no sucesso económico, a prova da escolha de Deus”. Assim, o trabalho seria a melhor forma para ultrapassar a dúvida da salvação e obter a certeza da graça, sendo a melhor forma de ultrapassar a angústia religiosa. A boa imprensa reconhece ao trabalho o seu papel transformador do mundo e fator do progresso. No editorial do periódico «Brado d’Oeste» de 15 de Dezembro de 1909, o articulista afirma, convictamente, o seu “relevante e grandioso papel […] no seio das sociedades de todos os tempos. […] O que seria , sem elle, finalmente, do desenvolvimento, do progresso? […]” Elle é a mola propulsora de todo o progresso, de toda a civilisação, de toda a felicidade”. O trabalho é uma visto como um combate ao ócio e afirmação de um valor moral. De um modo ou de outro, católicos e protestantes são levados a agir, embora uns para se salvar, outros para ter o sinal da salvação. A nossa conceção de tempo linear provém da cultura judaico-cristã, que veio substitui a ideia do «eterno retorno» herdada das antigas civilizações euroasiáticas, nomeadamente da antiga Babilónia, ou ameríndias, maia e hindu. Essa cosmologia do tempo que nos é dada pelos movimentos de translação ou de rotação da Terra ou do retorno das estações, em que tuto recomeça, deu-nos uma ideia de renovação que se foi inscrevendo na nossa cultura ocidental e que o próprio folclore absorveu – “a primavera vai e volta sempre”, diz uma canção do folclore madeirense – como se o tempo estivesse a renovar-se ciclicamente. Na conceção do tempo ciclo, não só o passado não tem o peso que terá nas futuras civilizações, como não estava inscrita a ideia de futuro, porque aí o tempo se renovava incessantemente. O judaísmo, ao anunciar a vinda de um Messias, vem instituir, pela primeira vez, uma ideia de futuro, um futuro de luz e esperança, que o cristianismo há de confirmar mais tarde, com o nascimento de Cristo, mas, sobretudo, com a sua ressurreição, provando que o futuro messiânico e salvífico tinha sentido. Essa ideia de futuro mantém-se com a parúsia, a segunda vinda de Cristo. Essa esperança no futuro inicia a ideia de tempo linear, porque incute nos povos o sentimento de caminhada em direção a algo, a um tempo em que a realização plena do homem acontecerá. Essa conceção de caminhada para um fim imbuiu ainda as ideologias de matriz materialista, como o marxismo, o que significa que o futuro se transformou em tempo de utopia, fosse qual fosse a doutrina, religiosa, política, ou filosófica, nomeadamente o judaísmo, sempre à espera de um messias, o cristianismo, em que a promessa de uma recompensa no céu anula a própria ideia de morte definitiva do homem enquanto ser espiritual, o positivismo, com a sua Religião da Humanidade, ou o materialismo marxista, com a sua promessa de uma sociedade sem classes e igualitária, em que a luta contra a exploração ganha um sentido de futuro. Quer o cristianismo, quer o marxismo criam no homem o desejo de futuro, porque é lá que se situa ou a salvação ou a utopia de uma sociedade em que, em qualquer caso, haverá o reconhecimento de que todos os homens são iguais, que o cristianismo reconhece à partida, mas que só será possível quando todos se inserirem no projeto de salvação, e que o marxismo garante, desde que todos os cidadãos desencadeiem um processo de luta contra as desigualdades. O cristianismo implica uma consciência moral e o reconhecimento do outro, ao passo que o marxismo exige uma ética de entrega a uma luta contra a exploração, em nome desse futuro. Ambas as doutrinas, a cristã e a marxista, são imbuídas de coesão ideológica sólida porque conduzem os seus sequazes em nome desse futuro. Essa coesão, todavia, só é possível com a convicção e adesão profunda a essa ideia de porvir, por uma lado, o que é uma condição, para o segundo aspeto que só essa convicção garante, que a longa espera, quiçá, espera sem fim, da realização dessa expetativa, sob pena da fragmentação da própria doutrina e deserção dos próprios prosélitos. Talvez isso explique o desmoronamento dos regimes políticos que se ergueram com base nessa expetativa utópica, porque o socialismo nunca foi atingido, ao fim de longas décadas, e isso foi observável ainda neste mundo, ao passo que as religiões permaneceram coesas, apesar das vicissitudes, porque a esperança no paraíso ultraterreno nunca foi desmentida. Essas utopias, nomeadamente as de cariz ideológico e filosófico, iniciaram-se com o iluminismo, prosseguiram com o racionalismo positivismo e e tiveram uma versão iminentemente ideológica com o materialismo marxista - construído, note-se, a partir do idealismo hegeliano e da sua dialética -, ao longo dos séculos XVIII e XIX, com o marxismo a fazer prova da sua eficácia ao longo de quase todo o século XX. Mas essas ainda eram épocas em que o tempo se projetava à la longue, o tempo das longas viagens de barco e de comboio e a própria vida amorosa tinha o seu tempo de espera e de consumação. Ao invés, os tempos que correm não se compadecem com tão longa espera. De repente, todos fomos tomadas pela carácter imediato das realizações humanas. Todas as atividades humanas, mesmo as de caráter pessoal, foram atingidas pela fugacidade do tempo, em que tudo se deve realizar já. O afeto e o amor precisam, normalmente, de tempo, para serem profundos; se olharmos para os transportes e os meios de comunicação, vemos que foram tomadas pela urgência, a carta, o diário, até o telefonema e o telégrafo, foram ultrapassados pela ligação em tempo real da internet. A crise financeira tem como um dos seus principais fatores a questão do tempo, com resultados catastróficas a nível social, económica e humano: “a urgência desorganiza a estrutura do tempo e retira a legitimidade à utopia”. (BINDÉ, 421). Enquanto no passado, era costume os homem sacrificar o presente em nome do futuro dos seus descendentes, o homem de hoje parece estar a sacrificar o futuro das novas gerações em nome do presente, como se o tempo, de repente, houvesse sido abolido, como se o presente fizesse um saque sobre o futuro, gastando hoje todos os recursos de várias gerações e ameaçando não só o bem-estar das futuras gerações, mas o próprio equilíbrio do planeta e, por via disso, o futuro da vida humano. Cansado de se projetar no futuro, lugar da promessa não cumprida, o ser humano, como se sentisse que tinha caído num logro, quisesse o futuro já e com urgência. É frequente, aliás, frases publicitárias que anunciam que “o futuro é já hoje!”. Com a chegada do cristianismo, a noção de um tempo linear, baseado no facto único da morte e da ressurreição do Cristo, fez a sua aparição. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, afirma que «O Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados e, depois de ressuscitado, nunca mais morrerá”. Para que a atual geração não faça um saque sem fundo sobre o futuro dos vindouros e estes não nos cobrem o tempo que é nosso, e que é sempre irreversível, terá de haver um contrato geracional, uma espécie de “pacto do tempo”, em que pudesse haver um investimento no presente com efeitos imediatos, mas com consequências positivas para as gerações futuras. Só com base nesse equilíbrio na gestão criteriosa do tempo é possível recolocar o tempo nos carris da história e retomar o comboio da viagem com todas as carruagens, do passado, do presente e do futuro, no seu lugar certo, que os passageiros dos diferentes tempos não se sintam desconfortáveis, porque os passageiros das outras carruagens invadiram o seu espaço. Nessa perspetiva, poderemos pedir uma concessão de tempo ao futuro, para que não fiquemos sufocados pela ditadura da urgência. Esse contrato geracional deve abranger todos aqueles que, crentes ou ateus, católicos ou protestantes, cristãos ou muçulmanos, entendem que é preciso, para usar a expressão de Jérôme Bindé «alargar a comunidade ética» que acha que é necessário estabelecer compromisso com o futuro, tendo a noção que as decisões que tomarmos hoje não podem ser apenas na expetativa do bem-estar individual de cada um, dos resultados financeiros a apresentar ao fim do trimestre, dos resultados eleitorais de uma nova eleição, mas terão consequências a longa prazo: “O reforço das capacidades de antecipação e de prospetiva é portanto uma prioridade para os governos, as organizações internacionais, as instituições científicas, o setor privado, os intervenientes da sociedade e para cada um de nós”. (idem, 422) Este é o tempo em que à cultura do instantâneo temos de responder com a cultura do compromisso, para que os decisões que foram tomadas no passado possam ser salvas desde que integradas num projeto de futuro, e não haverá futuro se todos nos deixarmos envolver por interesses que deixam consumir pelo recompensa imediata. A cultura de compromisso dos melhores será a melhor forma de envolver a todos. Temos todos de nos empenhar no futuro a partir das lições do passado. Se nos detivermos todos a olhar, deque forma for, contemplativamente o passado, ficaremos divididos criaremos uma crispação ideológica. Se, porem, estivermos cientes do nosso passado comum, empenhar-nos-emos coletivamente, seremos capazes de construir o futuro de que necessitamos, para que o horizonte não se afaste de nós, porque não o pensamos bem. Como dizia Pascal: «esforcemo-nos para pensar bem: é este o princípio da moral» (Bindé, 424). Um programa que implique uma nova moral implica uma ligação entre a doutrina e a prática. Desse ponto de vista, o cristianismo vem representar uma verdadeira revolução, não só porque modificou a nossa ideia de Deus, como também da sua relação com o homem. Aos deuses antigos imanentes à natureza, vem substituir-se um Deus transcendente mas que, mistério da Encarnação, e não obstante a sua natureza transcendente, se faz homem: “Cristo, o Homem-Deus, aliança de Carne e de Luz, estabelece uma ponte entre o homem e o Absoluto: ele garante uma mediação entre as duas ordens e, pelo seu sacrifício, resgata a humanidade. É a Boa Nova que se anuncia” (RUSS, ). E é, paradoxalmente através do seu corpo, o corpo que no homem é sede do pecado, que Cristo vai salvar a humanidade em queda e reerguê-la, como se o homem recuperasse, de novo, o ser - “o homem só é homem na media em que desperta para o ser” (DURAND, 295) - ao homem é-lhe, de novo, devolvida, a dignidade de se ver como um ser livre. É essa condição de homem livre, que a boa imprensa destaca, ilibando Deus da existência do mal, visto que o Deus do catolicismo, ao contrário do Deus do calvinismo, não decide de antemão a sorte do homem, antes lhe confere a responsabilidade e a liberdade de começar de novo. Camus compara o homem a Sísifo, que empurra o rochedo, suportando o seu fardo desde sempre, mas com a grandeza e a dignidade de quem nunca cessa de o fazer. Camus, contudo, fala de um mundo agora sem Deus e sem a eternidade. A boa imprensa, por sua vez, transmite a esperança de um luz que oferece a eternidade da salvação. Será feliz um ser, como o homem, que procura dar sentido a um mundo que parece estar submerso no absurdo e no sem sentido? – “«A própria luta na direção do cume basta para encher o coração de um homem. Temos de imaginar que Sísifo era feliz». (idem, 297). O humanismo que impregnou várias correntes de pensamento do século XX, incluindo o humanismo marxista, desde Mounier a Gide e a Sartre não deixou de (re)colocar o homem no centro da história, onde, ele, aliás, já estava desde o momento em que foi chamado a construir o seu destino, “assim na Terra como no Céu”, onde, ainda assim, se cumpre a vontade de Deus. E não é assim, desde o suspiro do Calvário, em que Cristo pede o afastamento do cálix do sofrimento do Homem: contudo, “faça-se a Sua vontade”. A de Deus. A Cristo, colocou-se, por um breve instante, o instante eterno, a escolha entre beber o cálix até ao fim e a vontade de Deus. Afinal, que vontade prevaleceu, a de Cristo Homem ou a de [Cristo] Deus? O que houve foi uma coincidência de vontades de Deus Pai e de Deus Filho, et bien sûr: Cristo escolheu, voluntariamente, a liberdade de não cair, e com ele o homem, no abismo do nada. Parecia, assim, estar a dar uma resposta, com vinte séculos de antecedência, ao humanismo ateu, que para os proponentes do existencialismo cristão, como Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, entre outros, era fundamentalmente niilista, que também, à sua maneira procuravam a síntese das várias dialéticas do século vinte, entre o ateísmo e o sagrado, a liberdade da renúncia humana e a transcendência divina. Superando essas angústias existenciais da morte a boa imprensa apresentava a imagem da sobrevivência contra a ideia de morte. Era necessário reconstruir o compromisso entre os desafios que se colocam ao cristão no dia a dia e o horizonte de que a vinda de Cristo representou para nós. A boa imprensa tem no seu sintagma um adjetivo, boa, que a demarca da restante imprensa, mas isso não significa, necessariamente, que ela não tenha como objetivo último a divulgação de uma mensagem e de uma doutrina que se considera universal – “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”, Marcos, 16: 15) – e que a si mesma se atribua uma missão cujos limites é atingir o pleno da divulgação dos valores da mensagem, que é a do amor ao outro, que é o próximo. Esta dimensão universal da mensagem, que é uma decorrência das palavras do próprio Cristo, teria condições de futuro? Estabelecendo uma distinção entre mundialização e universalidade, nos dias de hoje, Jean Baudrillard clarifica as diferenças: “Entre os termos mundial e universal existe uma analogia enganadora. A universalidade é a dos direitos do homem, das liberdades, da cultura, da democracia. A mundialização é a das técnicas, do mercado, do turismo, da informação” (BINDÉ, 49). E depois chama a atenção para as dinâmicas de ambas, defendendo a tese de que a mundialização ganhou uma dinâmica irreversível, ao passo que a universalidade estaria em recuo ou até em vias de desaparecer. Assim, verificamos que, num momento em que os avanços tecnológicos poderiam ser uma meio de divulgar valores como os direitos do homem, a liberdade, a cultura, a democracia, o amor ao próximo, valores inseparáveis da modernidade ocidental, os mesmos podem recuar em função do predomínio, em potência, das técnicas do mercado, que, afinal, mesmo nesse campo, podem falhar, por falta de uma ética que as sustente, como a crise atual, neste início da segunda década do século XXI, veio confirmar. Será possível afirmar, a esta distância, que, ainda no dealbar do século XIX, a boa imprensa já teria a noção de que a secularização da sociedade, já em curso, não teria, afinal, força suficiente para se impor em termos definitivos? Afinal, como acabou a Nova Religião da Humanidade, com os seus templos, os seus sábios e filósofos, como representantes da nova espiritualidade? Tiveram sucesso os anunciadores de uma nova ética capaz de substituir a moral cristã que era propagada pela boa imprensa? Com efeito, haveríamos de assistir, desde início do século XIX até aos nossos dias, a um movimento de secularização dupla ou com duas fases. Numa primeira fase, Auguste Comte enuncia a lei dos três estados, que correspondem ao longo percurso da história humana. Numa primeira fase, Comte afirma que a humanidade viveu o estado teológico, em que Deus está presente em tudo, seguido do estado metafísico, em que a ignorância da realidade ou a falta de crença num Deus todo poderoso leva a pensar que há relações misteriosas entre todas as coisas e entre estas e os espíritos. Em face disso, para inaugurar uma segunda fase, Comte estabelece o estado positivo em que a humanidade, finalmente liberta da presença de qualquer crença e guiada pelo espírito científico, busca o conhecimento absoluto e substitui toda a influência teológica pela observação dos factos científicos. Comte, porém, não advoga o fim do culto, apenas a substituição do culto de Deus, que substitui pelo culto do Grande Ser, hipostasiado por ser “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para o aperfeiçoamento da ordem universal» (COMTE, «Curso de Filosofia Positiva», tomo IV), p. 30. Comte não só substitui o culto de Deus pelo do Grande Ser, como defende que “O culto dos homens verdadeiramente superiores forma uma parte essencial do culto da Humanidade. Mesmo durante a vida objetiva, cada um deles constitui uma personificação do Grande Ser. Todavia esta representação exige que sejam idealmente afastadas as graves imperfeições que, muitas vezes, alteram as melhores naturezas.” (Ibid., tomo II, p. 63). Em rigor, o positivismo de Comte deixa de crer em Deus para passar a crer na ciência e na Humanidade. Se o Grande Ser é tão abstrato como o Deus da religião, o Deus que a boa imprensa defende, esse Deus que se fez homem, pelo Mistério da Encarnação para os católicos, e, depois de morto e sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, o positivismo de Comte faz desaparecer esse Deus do estado teológico para logo o reencarnar no Grande Ser, o Ser de toda a humanidade, e tal como Deus encarnou em Cristo, também o Grande Ser, alem de se concretizar em “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes”, pode ser personificado, durante a vida, por cada um desses homens superiores e sábios que passam a ser a nova autoridade moral na nova sociedade. Hoje, como se sabe, os positivistas nunca conseguiram que a superioridade ética desses seres prevalecesse sobre o poder temporal. E este é o segundo momento da ausência da morte das crenças em entidades superiores, sejam elas Deus, o Grande Ser, as grandes Utopias do século XX, todas elas teleologicamente dirigidas para um tempo de plena afirmação da Humanidade. Fosse qual fosse a natureza e o percurso da participação do singular no universal, por transcendência ou imanência, a perda desse caráter universal levou “ao exterminação de todos os nossos valores, o que é uma «morte má»” no dizer de Jean Baudrillard (BINDÉ, 49), que afirma ainda: “O universal era uma cultura da transcendência, da reflexão do tema e do conceito, uma cultura com três dimensões, a do espaço, do real e da representação. O espaço virtual é o do ecrã, da rede, da imanência, do numérico”. Ou seja, a transcendência era comum a todas as doutrinas, fossem elas a da utopia marxista, do Espírito de Hegel, do Positivismo de Comte, ou a doutrina propagada pela boa imprensa, porque todas eram detentoras de valores. Desde o século XVIII procuravam-se sucedâneos ou sucessores para o Deus dos cristãos: Razão, Natureza, História, Progresso, Homem, Iluminismo e a própria Europa, como utopia, que nós vamos vendo soçobrar como distopia, essa Europa onde nasce o humanismo que lhe dá a base cultural: “O humanismo está ligado a uma Europa que tem a vocação do Universal e que encarna «uma grande república divida em vários Estados» (Voltaire)” (RUSS, 180). O cristianismo no seu todo era colocado em causa, “tanto o Deus dos católicos como o de Calvino, processo global e não singular que, inflamava os espíritos” (idem, 181). A boa imprensa nasce, assim, num contexto em que nem sequer era o catolicismo que se contestava, era a própria ideia de Deus, um Deus cuja existência não se podia (não se pode) provar. É certo que a boa imprensa, de tendência proselitista, e tantas vezes de natureza local, poderia, muitas vezes, julgar que se tratava de uma guerra inter-religiosa, mas o questão era muito mais fundo e muito mais vasta: era a própria ideia da morte de Deus que se prenunciava desde o Iluminismo e que é posto em julgamento, com a natureza a se constituir como os fundamentos de uma «religião natural», desde os inícios do século XVIII. Jean Meslier, eclesiástico e ateu, afirma, em testamento publicado por Voltaire, que o cristianismo não era uma instituição divina e contrariava as leis da natureza. Seguem-se, na sua esteira, “Voltaire, Montesquieu, Helvétius e, de um modo geral, os Filósofos que, sem realizar estudos de exegese, censuram ao cristianismo o facto de exigir demasiado à razão, que não admite nem milagres, nem revelação, nem sobrenatural […] Apenas no seio da Natureza e da Razão, paradigmas fundamentais do pensamento da Aufklarüng, existe uma crença válida” (idem, 182). Contra os livros sagrados e a Revelação, ergue-se, em pleno, a Ratio, o dinamismo religioso da Aufklarüng, “uma força universal que não pode reduzir-se às representações singulares da fé. Pois o século XVIII, embora critique a lei revelada, também faz o alargamento da ideia de Deus […] Confúcio situa-se ao lado de Cristo” (idem, 184) . Está posição filosófica de conceber um [novo] Deus como Ser Supremo, através da razão e não por revelação divina dos textos sagrados, o Talmude, a Bíblia ou o Alcorão, e a que se convencionou chamar deísmo, alastrou por toda a Europa. Ter-se-ia esta religião deísta, baseada na natureza e na razão e não na revelação, libertado da “tirania” da crença e da fé, de que era acusada a velha Igreja? «Ao mesmo tempo que o respeito pelos homens pela Igreja se desmorona, o deísmo impõe-se e o culto do Ser Supremo, caro a Robespierre e à Revolução Francesa, não está longe. Como esquecer esse culto deísta, instituído pelo decreto de 7 de maio de 1974? Robespierre, influenciado por Rousseau, rejeita as tendências ateístas dos seguidores de Herbert e contrapõe-lhes a religião natural e o reconhecimento do Ser Supremo”, isto por um lado. Por outro, ao Grande Ser da religião positivista, Comte advoga o culto, mas não via como boas a dúvidas sobre a sua existência. Ou seja, os apóstolos das novas correntes deístas eram tão dogmáticos quanto os das religiões reveladas e os ateus que não criam nem numas nem noutras sentiam o fenómeno da rejeição. Os sacerdotes dos novos credos, tal como os fautores da boa imprensa, estavam imbuídos de proselitismo em toda a semântica da palavra, procurando fazer o apostolado das suas ideias, como qualquer prosélito, que, além de convertido, se porta de forma sectária, isto é, como membro de uma seita. Por sua vez, os partidários das novas utopias materialistas dos séculos XIX e XX não se mostrariam menos intransigentes contra aqueles que não aceitavam o novo projetos de sociedade que eles propunham, sobretudo quando se tratou de as levar ou tentar levar à prática. Como reconstruir, então, a universalidade dos valores a partir das crenças monoteístas, deístas ou utópicas, num tempo da relativização de todos os valores ou já sem valores, de que estavam imbuídos todas aqueles doutrinas, que, crentes ou ateias, tinham sentido teleológico e de caminhada para uma sociedade humana perfeita, algures devir, histórico ou teológico? Fará sentido colocar essa questão aqui no âmbito deste artigo da boa imprensa? Esse é o desafio que se nos coloca como forma de volver ao universal onde todas a formas de expressão se podem encontrar, não um universal por abstração, situado acima do mundo real, mas obtido com a inclusão de cada um, ou seja, de todos. Quando o Deus dos cristãos nos manda amar o próximo, ele exemplifica pela ação. Jesus come com os publicanos e pecadores: “E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publicanos e pecadores  vieram e tomaram lugar com Jesus e seus discípulos” (Mateus 9, 10). Quando criticado, Jesus redarguiu: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que isto significa: misericórdia e não holocaustos; (idem, 12, 13). Note-se que “holocaustos” aparece, às vezes, nesta passagem do evangelho de Mateus, em vez de “sacrifício”, o que, em termos práticos, dá o mesmo, visto que o sacrifício implicava a imolação pelo fogo e o significado de “holocausto” é, etimologicamente, todo (holo) e queimado (kausto), palavra historicamente sugestiva, sabendo que o holocausto que está historicamente próxima de nós significou a recusa completa da alteridade. . Ora, uma cultura de liberdade admite o outro como essencial ao todo. Só podemos chegar ao universal pela inclusão de todos, o que significa incluir um a um, até atingir essa universalidade. Não se pode amar o universal nem ele existe se excluir uma parte de si. Repare-se o que diz Hannah Arendt, citada por Helé Béji, ao ser acusada de não gostar o bastante dos judeus, a propósito do processo de Eichmann: «Esse povo já só acredita em si mesmo? Que espera ganhar com isso?» Não tenho qualquer amor ao povo judeu, nem aos povos alemão, francês, ou americano, nem à classe operária. A única espécie de amor em que acredito é no amor das pessoas. Esse amor pelos judeus, uma vez que eu própria sou judia é suspeito” (BINDÉ, 60). O que Arendt nos explica é que amar um povo é amar um universal abstrato, tal como amar a classe operária e que só acredita no amor das pessoas, de cada pessoa, seja ela do proletariado ou de outra classe social, ou de que nacionalidade for, como o bom samaritano, que era estrangeiro: “o pertencer a uma mesma cultura ou a uma mesma religião não é uma garantia de tolerância ou de felicidade política. Porque não é a ligação cultural que faz a ligação política, mas antes a ligação civil” como afirma Hélé Béji (BINDÉ, 59). Tomando a diferença concetual entre «religioso» e «espiritual» a propósito do diálogo de culturas, Béji afirma que a reivindicação da identidade, quando é feita à custa da universalidade, está eivada de uma violência de natureza religiosa no sentido de tirania da crença e não da espiritualidade e da liberdade de pensamento. O que é que sobreleva na boa imprensa: a espiritualidade ou a tirania da crença religiosa? O que ali estava, à superfície, nesse conceito, era, de facto, a “tirania da crença”. Contra essa “tirania”, e em nome da liberdade, vão revoltar-se a Civilização e Razão, ) mas logo estabelecem novas “tiranias”, usando a a mesma nomenclatura, o que é natural, como filhas dessa primeira crença. Só que nessa aparente “tirania” da crença propaganda pela boa imprensa germinava também a liberdade da sua contestação o que era, perfeitamente, plausível, numa doutrina provinda de quem, como Jesus, não escolhia as companhias para comer. Quando se perfilham a Ciência, a Razão, o Progresso, a República, «entidades com maiúscula em estado de prostração», segundo a expressão de Marcel Gaucher» lembramo-nos que todas elas se ergueram em nome da Liberdade contra o obscurantismo da crença religiosa. Mas, quando verificamos que o homem se perdeu num “individualismo que é uma ideologia de massas e já não uma singularidade criadora”, perguntamo-nos qual dos dois é mais livre: o homem individualista subsumido nas massas anónimas ou o homem a quem era dado o dom de dialogar, intimamente, com o seu Deus, esse Deus que se sacrificara por ele, segundo a doutrina cristã divulgada pela boa imprensa? Béji afirma que “um dos sinais mais desumanos da cultura é a separação do religioso e do espiritual”. Afinal, não era esse o caminho, o da liberdade, que se iniciara desde o Iluminismo? O homem hoje está só perante a multidão e, nas redes sociais tem milhares de amigos virtuais, às vezes, mas sem a convivialidade de outrora. No jornal «A Verdade» de 5 de Fevereiro de 1916, num artigo intitulado “Miasmas d’alma”, com o subtítulo “Estudo Psycologico”, o articulista escreve que “a vida é uma tragedia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo… N’ella se identificam em biliões de actores os generos de caracter disfarçadas pela acção da peça ou pelas exigencias do enredo. […] Subiu o pano. […] Principia a representar-se a Vida, peça d’um só acto […] Que grandes actores tem a tragedia escripta por Deus. … Que genios! Com que arte alguns representam o papel de honestos! […] Ao entrarem, porém, no camarim que é o seu lar, passam a esponja pela face, e ficam o que eram: hypocritas, falsos, aventureiros do destino. Outros abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos, se levam uma bofetada na face direita entregam como Christo a face esquerda, aconselham a essencia do bem, guiam os fracos, choram a desdita dos seus irmãos, mas finda a scena, recolhem a bastidores, passam a esponja e lá ficam, no que são: covardes, intriguistas de escada, especuladores e párias! Que exhuberante é o Theatro do Universo!”. Que questão se poderá colocar quanto ao sentido do artigo, através da leitura deste trecho escrito por quem acredita em Deus, o Deus que é o autor da vida, “tragédia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo”? Como pode esse Deus, origem do Bem, encher o mundo destas personagens que “representam o papel de honestos”, “hypocritas, falsos, aventureiros do destino”, ou que “abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos”, “aconselham a essencia do bem” para depois, tendo recolhido aos bastidores, se revelarem “intriguistas de escada, especuladores e párias!”: pode Deus ser o autor do “Theatro do Universo” com este tipo de personagens? Ou o autor entrou em contradição com a doutrina que divulga ou coloca-se aqui a questão da teodiceia, o da justificação racional de Deus e a sua coexistência com o mal, aporia da cultura ocidental e da cultura oriental. “O teólogo contemporâneo Maurice Zundel, dizia, com alguma ironia, que se o mal existisse realmente, Deus seria a sua primeira vítima, quase fazendo suas as célebres palavras de Stendhal, segundo as quais a única desculpa de Deus em face do mal e do sofrimento só poderia ser a Sua inexistência”. (CORREIA, 1). Contudo, o editorialista, católico, não poderia ter subentendido essa ideia de que Deus, autor do teatro da vida, seria o responsável do mal provocadas pelas personagens da vida no palco do mundo, numa paráfrase vicentina. O que ele critica é justamente que o mal exista não por vontade de Deus, mas por ação das personagens que são, na realidade, a humanidade. Trata-se da questão essencial do homem, colocado perante a responsabilidade de construir o seu destino, segundo o seu livre arbítrio e uma ética da responsabilidade que não deixa ficar a teodiceia desarmada perante esta questão: “a teodiceia não ficou sem recursos. Com efeito, é possível surpreender vários modelos teóricos que visam mostrar que não existe qualquer incompatibilidade lógica entre a existência de Deus e o problema do mal” . tendo como base “o paradigma que é invocado por vários filósofos teístas contemporâneos e que se funda, a meu ver, no postulado ético da responsabilidade” (idem, 40). Essa ética da responsabilidade deve ser exercido na busca e no exercício de valores absolutos como a Verdade, o Bem, o Sagrado, a Beleza, valores intemporais e independentes da história, englobados numa ética cuja consumação tornaria o mundo esteticamente harmonioso, o que contribuiria para a ressurreição do Deus ou Bem Absoluto como ideais a atingir em cada circunstância, sabendo habitar o tempo e o lugar. Existe, a um tempo, a marca do efémero e do eterno. Quando a boa imprensa se concede o direito de divulgar os valores em que acredita e exclui o próximo por divergências confessionais, ela comporta-se como qualquer poder temporal em que o que mais conta é a autoridade e menos a revelação de que a doutrina cristã é filha. Mas, quando, e apesar disso, ela é, genuinamente, crente nos valores que propaga, então torna-se num espaço de diálogo e supera os muros do poder profano, literalmente, o poder que está para além e acima das barreiras que dividem. Qualquer corrente ideológica, religiosa ou filosófica que se coloca nas margens do universal e recusa o diálogo, adquire características que a confundem com qualquer corrente fundamentalista e, a breve trecho, perde a possibilidade de construção do espaço em que todos se devem encontrar. Essa recusa torna conflito inevitável. Um cenário que não tem de ser imaginado, seja quando se pensa nas fogueiras da inquisição, nos campos de concentração de todos os lugares e azimutes ou no apogeu da recusa da alteridade que foi a II Guerra Mundial, onde, em nome de ideologias absolutas que se consideravam prenhes de razão, não cederam lugar ao espaço de diálogo e cederam o passo à loucura do desumano, de onde a justiça se afastou ou foi afastada violentamente. Emmanuel Levinas exprime a exigência do nosso tempo ao afirma que a justiça só é justiça numa sociedade onde não exista distinção entre próximos e afastados, mas também onde exista a impossibilidade de passar ao largo do mais próximo. No caso da boa imprensa, ela revela a sua visão do mundo, mas, na sua visão singular, não deixa de especular, quer dizer, espelhar o universal, visto que o singular não deixa de ser uma face do poliedro que é universal. E descendo até ao mais local, a imprensa católica madeirense teceu as linhas do universal na nossa diocese até a mais humilde capela do mais recôndito lugarejo, no esconso do mais remoto cabeço. Afinal, aquilo que hoje consideramos universal é o que se divulgou em todo o globo a partir de um determinado local. Aquilo que é local em cada momento está apenas à espera de uma oportunidade de ascensão a partir de um monte das Oliveiras. Não dizemos nós que as Sagradas Escrituras não podem ser tomadas à letra? Afinal, todo o texto religioso é metafórico e todo o texto literário carece de uma exegese como se fora religioso, e só assim ele pode atravessar a passagem do tempo e ser atual em todas as épocas. Nenhum universal, que deve ser o objetivo de toda a manifestação humana, se pode construir quando não vemos em cada instante o sinal do eterno. A espiritualidade é saber ver o universal no singular. Para o dizer na linguagem desta espiritualidade, “o amante vê o ser que ama em todo o lado. Se não vimos a verdade naquilo que é diferente, é porque não estamos suficientemente apaixonados e que não temos para Leyla os mesmos olhos de Majnun”. (Nota: Leyla e Majnun são personagens clássicas da arte islâmica, imortalizadas, num poema de Fuzuli (século XVI). Leyla representa a beleza divina; Majnun o espírito humano). A verdade é pura, branca e una, mas não é única, pois o branco é a síntese das sete cores do arco-íris. Ou seja, a exclusão de qualquer das sete cores tornaria impossível a unidade traduzida pelo branco. Assim, o universalismo só o pode ser se integrar todas as matizes em que se realiza e que o realizam. Ou, por outros palavras, é possível ver o rosto de Cristo em cada ser humano, situando-se a frase na semântica do religioso ou da metáfora, conforme a queira entender o leitor, senhor último da palavra.   Miguel Luís da Fonseca

Religiões

bilhardice

O estudo do regionalismo madeirense “bilhardice” tem como escopo a sua individualização em relação a outros termos que a língua portuguesa oferece e que poderiam aparecer como sinónimos deste regionalismo sem qualquer diferenciação semântica. A riqueza semântica do termo “bilhardice” (Regionalismos) obrigará a testes vários no eixo paradigmático e no eixo sintagmático, consoante a nomenclatura de Ferdinand Saussure. A semântica deste termo é mais sustentada em conhecimentos pragmáticos resultantes da sua realização em concreto, da experiência própria de sujeito falante do português madeirense e da sustentação ideológica em diferentes campos científicos, mais ou menos implícitos, nomeadamente da linguística, da semântica, da psicologia, da sociologia e de outros ramos gnosiológicos, incluindo o da filosofia. Com efeito, a consulta de dicionários e enciclopédicas da língua portuguesa revela que este vocábulo não regista nenhuma entrada nessas obras. Exceção a esta situação é o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPLP), online, que o regista como tendo o mesmo significado de “bisbilhotice”. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, autoridade científica de reconhecido prestígio, na sua edição de 1936, registava uma entrada de um termo cognato de “bilhardice”, e definia assim “bilhardeira”: “o mesmo que mexeriqueira, intrigante, na ilha da Madeira; ordinária ou de fraco valor moral em Évora. Em Beja, mulher de mau génio”. Já nas últimas edições, entre 1998 e 1999, o termo deixa de aparecer. A sua formação morfológica fez uso das potencialidades do sistema aplicadas à forma, tendo-se o sujeito falante, por intuição linguística, limitado a acrescentar ao radical adjetival “bilhard-” o sufixo “-ice”, que se junta a adjetivos para formar nomes, como em: sovin- + ice > sovinice; tol- + ice > tolice. Assim, sem grandes meios de consulta do ponto de vista de dicionários ou enciclopédias que registassem o verbete do regionalismo “bilhardice”, i.e., aquilo a que a lexicografia designa o conjunto de aceções, exemplos e informações acerca de um termo, o recurso a exemplos construídos em situações possíveis de comunicação de fala foi a base essencial do estudo deste regionalismo. Em tal situação, este trabalho não pôde contar com o registo sistemático do termo “billhardice” em dicionários ou enciclopédias, que costumam reivindicar para si a objetividade, como se se situassem acima das determinações sócio-históricas em que um vocábulo surge e é usado, quando é certo que as definições de um verbete, em dicionários e enciclopédias, podem trazer implícitas perspetivas ideológicas e culturais, mesmo que possam não ter sido objeto de um ato reflexivo. Contudo, esse obstáculo tornou-se um desafio e determinou o método da pesquisa e da elaboração do mesmo, partindo da consulta de trabalhos já efetuados sobre o mesmo assunto, os quais tiveram e anotaram as mesmas dificuldades, mas cujos autores têm o conhecimento da realidade da língua em contexto, o contexto sociocultural madeirense, a língua portuguesa tal como é falada na Madeira e o uso muito peculiar do termo “bilhardice” pela população da região. Com efeito, as diferentes aceções de um termo resultam também daquilo a que Saussure chama “realidade da língua”, ou seja, da relação do sujeito com os signos que usa, porque a compreensão do signo linguístico e a sua realização se dão num determinado contexto sociocultural e, nesse contexto, adquire uma significação que vai para além da mera equivalência de significantes inscritos na paradigmática da sinonímia, o que implica a variação de valores de acordo com a realidade sociocultural em que se movimenta o sujeito falante, pois cada palavra de uma linha sintagmática se relaciona com as entidades no sintagma, mas igualmente com outras que são suscetíveis de o substituir na coluna paradigmática. Para além disso, os dicionários e enciclopédias são produto de autores que são fruto de contextos socioculturais que os condicionam e lhes proporcionam o material necessário para o seu trabalho, em que um exemplo ilustrativo pode ser, exatamente, este excurso sobre o termo “bilhardice”. Já o uso do verbo “bilhardar” e de “bilhardeiro” pode anotar-se no DPLP (“Bilhardar: Picar duas vezes a bola com o taco. Picar duas bolas ao mesmo tempo quando estão juntas. Jogar a bilharda. Regionalismo, o mesmo que bisbilhotar”; “Bilhardeiro: Jogador de bilharda. Mandrião, calaceiro.  O mesmo que bisbilhoteiro”) e na versão online da edição de 1913 do Novo Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, encontram-se duas entradas para o verbo “bilhardar” e uma para “bilhardeiro”: “bilhardar, 1 v. I. Dar duas vezes na bola com o taco ou tocar duas bolas ao mesmo tempo, no jogo do bilhar. (Fr. billarder); bilhardar, 2 v. i. Jogar a bilharda. Pop. Vadiar”. “Bilhardeiro m. Jogador de bilharda. Vadio, garoto”. O termo “bilhardice” também não se encontra neste dicionário, facto já observado por outros autores, que, por sua vez, citam outros: “A palavra bilhardice é um termo regional para as palavras bisbilhotice, mexerico, coscuvilhice. O que a torna interessante, de facto, é tratar-se de um regionalismo, e ser usada, frequentemente, em detrimento das anteriores. Curiosamente, não constitui entrada de dicionários e é apenas referida como ‘falso testemunho, alveiosia. Aquelas raparigas não fazem senão bilhardar’” (BARBEITO, “Para a Compreensão…”). Note-se que o trecho da citação colocado em itálico tem por autor Jaime Vieira dos Santos, em “Vocabulário do Dialecto Madeirense”, artigo publicado na Revista de Portugal. Em Ana Cristina de Figueiredo, o termo aparece registado com várias aceções: “Ato de conversar animadamente (Cavaqueira). ‘Aquelas parecem duas comadres: sempre na bilhardice!’” Ou como “ação de comentar a vida alheia e de arranjar intrigas ou mexerico sobre a vida de outrem (alcovitice, bisbilhotice, coscuvilhice, mexerico)” (FIGUEIREDO, 2011, 104-105). Interessante será referir o que diz sobre “bilhardice” David Pinto-Correia: “Quanto à ‘bilhardice’, termo felicíssimo exclusivamente madeirense, que sintetiza, com os seus próximos ‘bilhardeiro’ e ‘bilhardeira’ e ‘bilhardar’ (interessante será verificar que este verbo quase só se conjuga no infinitivo ou em formas perifrásticas), e com uma sonoridade bem expressiva, muito do que outras palavras de sentido próximo (como, por exemplo, ‘intriga’, ‘bisbilhotice’, ‘mexeriquice’) não conseguem exprimir: a sua complexidade semântica integra a principal significação de ‘difundir uma situação’, mormente ‘reservada’, ‘que não era necessariamente divulgável’, ou mesmo ‘que devia ser mantida em segredo’, mas também a de uma crítica velada ou de reprovação ao ato em si, ao mesmo tempo que contém muito de ironia, e de caracterização de tal prática como lúdica (como se se quisesse indicar que ‘é um dizer por dizer’, ‘divulgar por divulgar’, sem procurar consequências graves para o que é divulgado ou sobretudo para quem é posto em causa pela divulgação, o que está longe de ser verdade), uma espécie de hábito atavicamente gratuito, inofensivo” (PINTO CORREIA, 2000, 25). Esta longa citação justifica-se não só pela autoridade científica do autor, mas, sobretudo, por colmatar a ausência já anotada do termo em dicionários académicos, na medida em que a sua riqueza semântica serve de fonte autorizada para este verbete. Na mesma linha do carácter lúdico-narrativo para aqueles que praticam a “bilhardice” envereda Teresa Brazão ao dizer “A bilhardice é o curioso e permanente hábito que têm as pessoas, de saber pormenores acerca daquilo que não lhes diz respeito, especialmente quando se trata da vida alheia. De cultivar e fazer crescer desmesuradamente esses pormenores, que acabam tão maiores quão enorme o desejo dos seus insaciáveis criadores […] A Madeira, meio pequeno, que, apesar de tudo, já não é assim tão pequeno, foi, desde tempos imemoriais, solo fértil para o cultivo de tal hábito social” (BRAZÃO, 2005, 68). A autora não deixa, contudo, de notar não só o jogo social que estava por detrás da sua prática em favor de elementos mais bem situados na esfera social, mas igualmente os efeitos que tal poderia provocar nos alvos da “bilhardice”, que, nesse caso, seriam mais frágeis na hierarquia social ou a desigualdade entre o homem e a mulher: “Era mesmo assim. Na mesma medida em que se exageravam e chafurdavam os defeitos de alguns, exaltava-se e engrandecia-se a virtude de outros. Esses outros alimentavam a bilhardice, porque ela lhes era favorável. Quanto mais mal se dissesse dos outros, mais bem se diria deles próprios, numa espécie de equação matemática ou regra dos termos da lógica aristotélica. Assim, as suas poses, estudadíssimas e refinadíssimas, refletiam a sua enorme embora só aparente virtude. […] As principais vítimas eram os mais fracos, ou senão mais fracos, os menos compensados socialmente” (BRAZÃO, 2005, 68). Neste jogo social, a autora observa a mudança que a liberdade política e cultural veio a ter na mudança das mentalidades: “A liberdade tendeu a desmontar esta coisa toda, graças a Deus. Foram inúmeras as personagens desmascaradas, e hoje fala-se das pessoas doutra maneira. Parecia que a mentalidade dos madeirenses estava a crescer. O número de pessoas aumentou, e deixou de ter o mesmo impacto saber que a dona Sílvia do monte andava a encontrar-se com o senhor Silva da zona velha. Porque ninguém os conhece. E também hoje as pessoas assumem muito mais o que fazem, e não tem graça nenhuma falar de coisas que as próprias pessoas assumem”. E recomenda, nessa sua abordagem sociocultural da liberdade, “A iliteracia do estado novo alimentava a bilhardice. Por isso, agora, temos de investir mais em cultura. Só assim a sociedade ficará melhor, para todos vivermos confortavelmente nela, com a tão propagada qualidade de vida” (Id., Ibid.). Este excurso de Teresa Brazão revela-se bastante pertinente neste verbete porque a autora, ao situar socioculturalmente a “bilhardice” num meio pequeno e ao perspetivá-la em outras vertentes, nomeadamente a político-cultural, confere a esta característica um cunho marcadamente regional, pela importância que ela assume na sociedade madeirense em todos os extratos socioculturais; ou seja, fica aqui claro não se tratar de uma característica exclusivamente popular, como, por vezes, se possa pensar ou dizer. O conhecimento desta realidade contribui para o enriquecimento da semântica do vocábulo “bilhardice” e, de certo modo, ajuda a preencher a lacuna que deriva da sua ausência sistemática em dicionários e enciclopédias. No estudo de um determinado regionalismo, a primeira questão que se coloca é a de saber se existem palavras no idioma que possam substituir, com propriedade ou total equivalência, esse regionalismo. E logo aqui deparamos com a questão da sinonímia. Outra é a de saber se a palavra em questão cumpre uma função que nenhuma outra cumpre para os sujeitos falantes dessa região. Posta assim a questão, o madeirensismo “bilhardice” pode ser comparado com outros termos que lhe são correlatos na língua portuguesa, como “coscuvilhice”, “mexerico”, “bisbilhotice”, “intriga”, “alcovitice”, ou até mesmo “fofoca”, que, note-se, nos remete mais para o português brasileiro pois não provém do português lusitano e tem etimologia africana, mais propriamente da língua banta. Apesar os dicionários darem de “fofoca” o sinónimo “mexerico”, esse termo não deixa de ter um contexto de significação que, não obstante a etimologia africana, tem ressonância nitidamente brasileira. Assim, ao ouvir o termo “fofoca”, um europeu tende a evocar de forma espontânea contextos exóticos, aquilo a que Sartre chama o “estado de consciência”, que implica uma espécie de inércia, de passividade reflexiva ao ouvir um determinado signo face à realidade que ele designa. Assim, se é certo que pode haver múltiplos sinónimos para o termo “fofoca”, tantos quantos aqueles que nos devolve um bom dicionário, a verdade é que nenhum deles ecoará melhor no nosso imaginário como significativo de um ambiente brasileiro. O que fica dito acerca do brasileirismo “fofoca” aplica-se, com a mesma propriedade, ao madeirensismo “bilhardice”. O uso de um signo provoca uma atitude de consciência que integra esse signo numa estrutura mental que não depende de um objeto particular (o signo “árvore” é o universal de todas as árvores, mas não se esgota em nenhuma delas em particular). O signo “bilhardice”, que não designa um objeto, uma realidade física, tangível, mas uma realidade fisicamente intangível, só pode ser entendido ligando-o à realidade exterior que lhe deu origem, em correlação com uma linguagem interior traduzida em imagens mentais que não se ativam de forma reflexiva, mas de forma inconsciente e automática, o que remete não só para o campo da psicologia, da sociologia, da cultura, do folclore, dos hábitos, da geografia e do meio, mas para uma fronteira que define o que é ser madeirense. Nessa perspetiva, o madeirensismo “bilhardice” não é suscetível de ser substituído por outros termos que se reivindiquem como seus sinónimos sem que isso tenha um custo de esvaziamento mental, do ponto de vista cultural, em quem ouve e em quem fala, no caso de falantes madeirenses, perdendo-se o contexto sociocultural de uma mundividência que só pode ser traduzida por este termo enquanto regionalismo compósito de uma realidade cultural. Esteja o sujeito falante na Madeira ou em qualquer parte do mundo, a “bilhardice” evoca a ida à igreja, os arraiais em seu redor, a conversa entre vizinhas, ou vizinhos, a aldeia, a rua, o bairro, a cidade e o campo, enfim, a Madeira e as suas duas ilhas. Ou seja, a relação necessária do uso de um signo com determinado contexto habita no sujeito falante em função de uma opção que lhe é imposta por um contexto sociocultural. A opção do sujeito falante pelo termo “bilhardice”, nesse caso, deriva de ele julgar que é o que melhor traduz a realidade que quer transmitir. Pode haver a tentação de o argumento do nível sociocultural do falante explicar o uso deste termo em detrimento de outros que poderiam ser tomados como sinónimos e com a mesma eficácia; contudo, tal não se verifica, pois observa-se o seu uso por indivíduos de diferentes extratos sociais. Também quando à questão diafásica, a opção ou não por este termo não difere da que é feita por qualquer outro que se apresente como sinónimo, e.g., em situação solene, onde não se fala de coscuvilhice e termos equivalentes; e se, após o ato solene, houver cavaqueira, o termo “bilhardice”, mesmo nos salões dos diferentes fora regionais – políticos, culturais, sociais – antepor-se-á a outros tomados como equivalentes. Resta a variação diatópica, e é nela que devemos prosseguir, visto tratar-se de um regionalismo. Sobre a questão da relação intrínseca entre o significante e o significado no interior do signo, ressalvando a voluntária construção pleonástica da frase, e se o significado de um signo é assumido como representação mental coletiva de um ente, ser concreto ou abstrato, aduz-se que um signo não pode subsistir, ontologicamente, numa espécie de mundo platónico das ideias, sem uma necessária ligação a um referente exterior a si, que é a razão da sua existência. As situações em concreto do uso da palavra remetem para a sua riqueza semântica e negam qualquer sinonímia simplificada. Tal implica considerar, para além do nome abstrato “bilhardice”, o verbo “bilhardar” e o adjetivo “bilhardeiro” (incluindo a sua forma correspondente ao grau aumentativo, “bilhardão”), classes morfológicas importantes para um quadro semântico variado destes termos. Vejamos casos concretos de aplicação: “Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice”. Nesta enunciação, está pressuposta a cumplicidade entre os dois sujeitos falantes, a confiança e a proximidade, quer humanas, quer geográficas, tipo porta com porta, no aspeto espacial. Que significará, então, aqui “bilhardice”? Confidência, segredo, maledicência ou não, dependendo do conteúdo. Imaginemos vários exemplos: “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabe que Maria tem um amante?! – Não me diga! E ela que se tinha por melhor que as outras!”: aqui, o caso é nitidamente de conversa de maldizer. “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabia que Maria tem um tumor? – Ah, coitada da rapariga, tão nova, com filhos pra criar!”: aqui, o caso é de solidariedade, uma confidência, em que a “bilhardice” implica uma obrigação solidária, em que todos sabem de uma triste realidade que merece discrição, pelo menos perante a Maria, e todos têm o dever de passar a ser compassivos com ela. Como se vê, a imagem mental do signo “bilhardice” varia de acordo com as circunstâncias e a sua prática só pode ser entendida em meios geográficos pequenos, em que todos se conhecem. O mais importante, contudo, é que não é possível criar uma rede de sinónimos do mesmo campo semântico, visto que o vocábulo se estende em várias linhas significativas. Perguntar-se-á se nos casos exemplificados o termo “bilhardice” poderia ser substituído por outras palavras no campo da sinonímia. A resposta é que não, uma vez que, entre os sujeitos falantes, se dá ao termo “bilhardice” um significado de acordo com as circunstâncias, o que é relevante, porque os significados chegam a cair no campo da antonímia. Retenham-se, além dos exemplos já dados, mais dois: “Maria é uma pessoa a quem se pode fazer uma bilhardice!”: aqui, o sinónimo é confidência, claramente antónimo de coscuvilhice, a ideia de que Maria é discreta. “Helena andou a fazer bilhardices sobre Maria”: aqui, o termo “bilhardice” é sinónimo de coscuvilhice, veiculando a ideia de que Helena é indiscreta. Ou ainda outros casos, desta vez ilustrativos dos vários sentidos do nome “bilhardice”: “Não me venhas com bilhardices, que eu já te conheço, gostas é de espalhar confusão!”: aqui, significa intriga e origem de conflito. “Aquelas três estão há mais de duas horas numa bilhardice pegada!”: aqui, o termo adquire o sentido de cavaqueira, conversa, sem qualquer tipo de insinuação ou acusação. Para completar este excurso argumentativo e afastar de vez a hipótese de sinonímia absoluta de “bilhardice” com outros vocábulos da nossa língua, aduzo, em defesa da diferenciação deste vocábulo em relação a termos que se apresentam como sinónimos, outros exemplos: com um adjetivo da mesma família: “António é um bilhardeiro, contei-lhe um segredo e logo espalhou por todo o lado!”: António, aqui, é um indivíduo que não merece confiança. “Maria é um bilhardão! Ouve aqui e conta acolá e, ainda por cima, distorce tudo!”: Maria, além de coscuvilheira, é enredadeira e, subentende-se, mentirosa. Outro exemplo, em que o significado muda radicalmente, com recurso ao verbo “bilhardar”: “Estás a bilhardar, eu não disse nada disso!”: neste caso, a mentira é a base da significação. Como se pode inferir destes exemplos de vocábulos cognatos de “bilhardice”, cada palavra é o centro de uma gramática de interpretação da vivência humana em cada lugar e em cada circunstância, e há que concluir que os madeirenses procuraram novas palavras por necessidade de traduzir aquilo que mais nenhuma comunidade viveu. Por isso, a palavra “bilhardice” pode ser sinónimo de outras palavras, mas essoutras palavras não traduzem exatamente aquilo que os madeirenses viveram. Vejamos, a propósito deste assunto, a teoria de Gottlob Frege, esclarecendo, porém, a priori, a nomenclatura deste autor com a equivalente terminologia saussuriana: o sinal ou nome próprio é equivalente a signo; a referência ou realidade designada é o referente saussuriano; o significado é o mesmo que em Saussure (significado). Como é que a relação no interior do sinal ou nome próprio, em Frege, estabelece a ligação entre a referência (que é realidade designada) e o significado, ou seja, qual é a diferença entre o significado em Saussure e em Gottlob Frege, se ambos usam o mesmo termo? É que em Saussure tudo se passa no interior do signo, que é um universal abstrato, mas em Frege o significado é o modo como o referente, físico ou abstrato, se realiza na mente do sujeito falante: aquilo que cada um pensa ou sente ao ouvir um signo, seja ele qual for, é determinado pela sua experiência subjetiva, como adiante veremos. No caso em estudo, a mesma realidade pode ser designada por um sujeito falante não madeirense por outro termo que não “bilhardice”; já para um sujeito falante madeirense, a imagem da realidade contextual que ele pretende transmitir a outro sujeito madeirense só tem uma representação mental adequada se for designada pela palavra “bilhardice”. Para corroborar esta ideia, recorro-me do exemplo clássico de Frege, que vai mais longe, ao defender que a mesma referência pode, inclusive, ter significados diferentes em função do contexto em que é dita. O planeta Vénus não deixa de ser o mesmo em qualquer altura do dia, mas o ato elocutório ganha semânticas diferentes consoante a hora em que é designado, “estrela da manhã” ou “estrela da tarde”. Ou seja, a representação subjetiva do signo linguístico “estrela” muda de acordo com o contexto e a sua vivência. Por sua vez, enquanto o signo saussuriano é uma imagem universal e objetiva, apreendida coletivamente, ao sinal (o signo de Saussure, recorde-se) Frege associa outra componente: a representação que o sujeito falante associa a esse sinal, e que é inteiramente subjetiva. Entre o signo de Saussure e o sinal de Frege não há diferença quanto à universalidade e à representação de uma imagem apreendida coletivamente. A questão está em que, para Frege, a representação mental associada ao sinal é inteiramente subjetiva. Não é fácil encontrar na língua portuguesa um termo que traduza, com a mesma eficácia e fidelidade, a realidade sociológica madeirense veiculada pelo termo “bilhardice”, até porque ela mesma, como vimos nos exemplos expostos ao longo deste excurso, tem uma pluralidade semântica que difere de acordo com o sintagma em que se insere. Convém ler, para estabelecer um paralelo de situação, o seguinte texto sobre a palavra “saudade”: “Saudade é substantivo abstrato, tão abstrato que só existe na língua portuguesa. Os outros idiomas têm dificuldade em traduzi-la ou atribuir-lhe um significado preciso: ‘Te extraño’ (castelhano), ‘J’ai [du] regret [de] (francês) e ‘Ich vermisse dish’ (alemão). No inglês têm-se várias tentativas: ‘homesickness’ (equivalente a saudade de casa ou do país), ‘longing’ e ‘to miss’ (sentir falta de uma pessoa), e nostalgia (nostalgia do passado, da infância). Mas todas essas expressões estrangeiras não definem o sentimento luso-brasileiro de saudade. São apenas tentativas de determinar esse sentimento que sentem os povos de cultura portuguesa. Assim, essa palavra ‘saudade’ não é apenas um obstáculo ou uma incompatibilidade da linguagem, mas antes, e principalmente, uma característica cultural daqueles que falam a língua portuguesa” (LESSA, “O Mito da Palavra Saudade”). Donde se deduz que “bilhardice” está para o falar madeirense como “saudade” está para a língua portuguesa, no sentido em que nenhuma delas, no seu âmbito, encontra um sinónimo que a possa traduzir absolutamente. Explanada na sua polivalência semântica e, ao mesmo tempo, na sua singularidade, e mesmo reconhecendo que o termo “bilhardice” se integra na categoria de regionalismo, podia acontecer que adquirisse um estatuto idêntico ao de outros termos que também não são considerados como parte da norma padrão, nomeadamente os brasileirismos, como é o caso de “fofoca”, mas nem por isso deixam de ser usados correntemente como se o fossem. Para que a riqueza cultural, psicológica, linguística, sociológica e humana de “bilhardice” se tornasse comum ao mundo da lusofonia, como aconteceu, nos começos do séc. XXI, com alguns brasileirismos, veiculados, nomeadamente, pelas telenovelas produzidas no Brasil, seria necessário que houvesse a mesma intensidade de produção mediático-cultural do lado lusitano, sobretudo no rincão madeirense, que existe do lado brasileiro. Se uma mesma palavra tem um sentido geral e abstrato e, todavia, tem em cada sujeito falante uma representação mental que é subjetiva, o que acontece quando estamos perante um signo diferente, como “bilhardice”, oriundo de uma determinada região, no contexto mais geral da língua portuguesa? Já vimos isso com o signo “árvore” ou outro signo qualquer: o que pensa cada um quando o profere ou quando o ouve está dependente da experiência subjetiva. O signo “bilhardice” obteve, desde há muito, um significado que é geral e abstrato no contexto cultural madeirense, que deriva da vivência de uma comunidade e que se concretiza em cada ato de fala particular, como resultado da memória, da experiência e da vivência do falante, as quais conferem a essa palavra uma representação mental segundo a tese de Frege. É esta referência ao mundo real, à própria vida dos sujeitos falantes, que justifica a diferença que, de facto, existe, entre o termo “bilhardice” e os vocábulos que se apresentam como seus sinónimos na nossa língua. A bilhardice é, portanto, um conceito em cuja amplitude semântica não encontra paralelo em qualquer outro termo da língua portuguesa.   Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 12.10.2016)

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