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pelourinhos

O pelourinho, inicialmente designado por picota, é uma coluna de pedra colocada num lugar público de uma cidade ou vila como símbolo do município e da sua jurisdição. Tudo parece indicar que deriva de costumes muito antigos, designadamente, da ereção nas cidades do ius italicum das estátuas de Mársias ou de Sileno, símbolos das liberdades municipais na Roma da Antiguidade. Remete também para a columna ou columna moenia romana, um poste ereto em praça pública no qual os sentenciados eram expostos No nordeste de Portugal, alguns pelourinhos aparecem associados aos berrões, estátuas de pedra da tribo pré-céltica dos vetões, mas essa associação pode ter sido induzida por acontecimentos posteriores e, muito provavelmente, pelas campanhas românticas de recuperação patrimonial, nos meados do séc. XIX. Nas épocas mais recuadas, eram pendurados nos pelourinhos alguns avisos municipais e, pontualmente, eram punidos e expostos os criminosos locais, embora na Madeira tal fosse feito, em princípio, no tronco. Este último termo significava “cepo com olhais, onde se prende o pé ou o pescoço” de um criminoso (SILVA, 1958, XI, 303), mas passou, logo nos finais do séc. XV e inícios do XVI, a indicar também prisão e cárcere, pelo que não é muito fácil entender a diferenciação entre tronco e prisão, parecendo utilizar-se a primeira palavra para os casos de reclusão de um alegado criminoso municipal e a segunda já para o cumprimento efetivo da pena. Os pelourinhos foram, pelo menos desde os finais do séc. XV, considerados o padrão ou o símbolo da liberdade municipal. Embora alguns historiadores, na sequência de Alexandre Herculano, entendam que o termo só começou a aparecer no séc. XVII, em substituição de “picota”, dado como sendo de origem popular, nos meados do séc. XVI, já existia na Madeira. Com efeito, “pelourinho” consta na planta do Funchal de Mateus Fernandes (III) (c.1520-1597) (BNB, Cart., 1090203), no largo que com essa denominação chegou até ao séc. XXI, sendo também referido assim, por volta de 1586-1590, em Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (1522-1591). A ida de um pelourinho para o Funchal deve-se ao jovem duque, futuro Rei D. Manuel (1469-1521), que enviou o seu ouvidor Brás Afonso Correia e o seu contador Luís de Atouguia, com provimento e regimento de 4 de julho de 1485, para demarcarem o chamado chão do Duque, o que foi feito a 5 de novembro do mesmo ano. O documento em causa referia que o duque, “por nobreza e honra” e “para boa ordem” da Ilha, cedia o chão para o concelho fazer uma praça “e nela uma boa câmara para o concelho, sobradada e que fosse tão grande e tal, que na lógia debaixo se pudessem fazer as audiências”. Além disso, queria que na dita praça “se fizesse uma casa para paço dos tabeliães, e por conseguinte se fizesse nela” também “uma muito boa picota” (ARM, Câmara..., fls. 25-25v.) (Urbanismo). O pelourinho do Funchal foi enviado pelo duque D. Manuel, por certo nesse ano de 1485, e foi colocado no largo em frente à igreja de S.ta Maria do Calhau, embora do outro lado da ribeira, que passou a ser designado “do Pelourinho”. Ao saber disso, em 1486, D. Manuel determinou que o pelourinho fosse levado para o largo previsto, junto da futura Câmara, no chamado chão do Duque, conforme a sua determinação anterior. Insistiu então: “E a picota onde a pusestes não me parece que esteja bem, porque não deve estar senão na praça onde está em todos” os outros municípios, assim, “ainda que nisso se faça algum gasto, encomendo-vos que para lá a mandes mudar” (Id., Ibid., 25v.-26). O pelourinho inicial era em madeira, pois na vereação de 23 de dezembro de 1488 o juiz Álvaro de Ornelas, os restantes vereadores e homens-bons, entre os quais Garcia da Vila, que tinha o pelouro das obras, determinaram “que se fizesse de pedraria o pé da picota na praça do campo do Duque, onde ora está a picota de pau”, mandando arrecadar para isso os 2$000 réis “que eram julgados pelo ouvidor para a dita picota” (COSTA, 1995, 228). Um mês e pouco depois, a 7 de fevereiro 1489, na vereação camarária do mesmo dia, pagou-se ao pedreiro Antão de França “o acarretar as pedras da picota ao chão do Duque, e de desfazer e tornar a fazer no dito chão onde ora está feito, e pôr a pedra miúda, e pôr cal, e de suas mãos armar o pé da dita picota, como está na praça junto com a Alfândega” velha (Id., Ibid., 238). Tudo parece indicar que chegou a haver dois pelourinhos, um em madeira e que seria o inicialmente enviado por D. Manuel, na praça junto da Alfândega, ou seja, na futura praça do pelourinho, e outro que tinha, pelo menos, uma base de pedra (em calcário-brecha da Arrábida) e que terá sido expedido do continente e das oficinas régias, sendo montado em fevereiro de 1489, no campo do Duque. Nos anos seguintes, com a construção da nova igreja, cujas obras começaram nos finais da déc. de 90 do séc. XV (Sé do Funchal), o pelourinho de pedra terá voltado ao seu antigo lugar, tal como está representado na planta do Funchal de 1567-1570. A 11 de fevereiro de 1492, o procurador recebeu de “André serralheiro” dois colares e duas algemas estanhadas para a picota (Id., Ibid., 336). Parece assim que se preparava a picota para servir de local de justiça. Mas, logo na vereação de 19 de setembro 1495, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530), futuro terceiro capitão do Funchal, foi convocado para que, como “alcaide-mor” (Alcaide e Alcaide-mor), “desse e fizesse tronco, em que se metessem todos os que fossem presos de noite e outros que se levariam perante os juízes, por dívidas e outras coisas leves e civis” (Id., Ibid., 389). O futuro capitão respondeu que tal já estava assegurado, utilizando-se para o efeito a casa do alcaide pequeno; não há mais referências a esse respeito, nem à utilização do pelourinho, habitual em casos de justiça municipais. Com a União Ibérica, deu-se um caso algo inédito em relação ao pelourinho no Funchal. Nos inícios de 1583, ocorreram vários incidentes implicando soldados do presídio castelhano (Presídio) e funchalenses, tendo intercedido o juiz da cidade, Manuel Vieira e sendo libertados os soldados envolvidos. No entanto, a 6 de março, envolveram-se soldados e populares, num confronto físico que passou a fazer-se à espada, resultando um português morto, Tomé Andrea, natural de Aveiro e tripulante da frota do Brasil retida na Ilha, e três soldados veteranos do presídio feridos, um deles com gravidade. Nas prisões efetuadas, encontravam-se os três veteranos envolvidos e um dos principais autores do desacato, o soldado Francisco de Espinosa. Os juízes do Funchal acabaram por determinar a pena de morte para este soldado, entregando Gaspar Afonso de Magalhães a sentença ao governador, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598). O conde não aceitou de ânimo leve o veredicto, mas ao cabo de várias pressões acabou por mandar sentenciar Francisco de Espinosa no pelourinho, algo perfeitamente inédito no Funchal, referindo-se que tal se fazia pela sua ascendência de fidalgo, pois qualquer pena de morte era executada fora da cidade, em princípio, no Lg. da Forca. Acresce que a pena de morte era da exclusiva responsabilidade régia e não encontrámos documentação da sentença ter ido à aprovação do monarca. No século seguinte, existe outra referência a uma sentença executada no pelourinho, mas simbólica e em efígie. Um jovem de famílias sem especiais pergaminhos, o estudante Francisco Rodrigues Jardim, em maio de 1629, apaixonara-se por uma jovem das principais famílias madeirenses, sua vizinha na R. dos Netos: D. Maria de Moura, filha do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos, já falecido, e de D. Catarina de Moura, entretanto casada em segundas núpcias com um primo do ex-marido, Miguel Rodrigues Neto de Atouguia. A família do estudante apoiara o mesmo, participando no rapto da jovem, mas ambos acabaram por ter de fugir para o Brasil. O processo foi levantado pelo corregedor Estevão Leitão de Meireles (Alçadas) e o jovem estudante foi condenado à morte na forca, logo, fora da cidade, em 1631. Dado não se encontrar na Madeira, a família da jovem promoveu o seu enforcamento em estátua no pelourinho da cidade. Pelos últimos anos do séc. XV, o duque D. Manuel enviou, com certeza, exemplares de pelourinho idênticos, e talvez também em madeira, para as vilas e sedes das capitanias de Machico e do Porto Santo, tal como enviou depois, em 1501, para a Ponta do Sol, então elevada a vila, e, em 1502, para a Calheta, e, em 1515, para Santa Cruz. Este último pelourinho era bastante semelhante ao do Funchal e, muito provavelmente, era também em calcário-brecha da serra da Arrábida, pedra utilizada na capela-mor da igreja matriz do Salvador de Santa Cruz. Conhecemos o pelourinho do Funchal através de um desenho de um viajante inglês, datado de 1832 e de dois fragmentos que foram depositados no parque arqueológico do Museu Quinta das Cruzes (MQC). O pelourinho de Santa Cruz foi litografado a partir de um desenho do reverendo James Bulwer (1794-1879), editado em Londres, em 1827, encontrando-se então no local hoje ocupado pelo cruzeiro com as armas dos Freitas (Cruzeiros), que, nessa litografia, ficava mais a poente. A imagem mostra o pelourinho de Santa Cruz com dois fustes de coluna torsos, à semelhança do pelourinho do Funchal, e unidos por um anel relevado, porém, já sem a base, elemento que subsiste nos fragmentos originais do do Funchal. Os pelourinhos de Machico e de Santa Cruz ainda vêm apontados nas plantas do major Inácio Joaquim de Castro, levantadas em 1799, mas do de Machico nada se sabe, devendo ter sido destruído pela aluvião de 9 de outubro de 1803 (Aluvião de 9 de outubro de 1803; Aluviões). Algo idêntico acontecera ao pelourinho da vila da Ponta do Sol, segundo relata Francisco Libânio de Cárceres em texto sobre aquela vila publicado na Revista Madeirense, indicando que, no dia 2 de novembro de 1799, um repentino golpe de mar arrasou a vigia e derrubou o antigo pelourinho que ficava à ilharga da praça. Sobre o pelourinho da Calheta, o Ten.-Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), na planta da Madeira de agosto de 1819, refere que era necessário reativar a bateria do Paul e colocar uma peça militar junto ao pelourinho da Calheta, que ficava a uma dezena de metros abaixo da igreja matriz (Fortes da Calheta), num largo que dava acesso ao caminho que levava ao convento franciscano (Convento de S. Sebastião da Calheta). Como a vila fora parcialmente destruída por uma “grande levadia do mar”, que arrasara o forte e 30 casas, levando ao abandono quase geral da mesma povoação (CARITA, 1982, 64), o pelourinho terá sido destruído por esse fenómeno, em 1799 ou então pela aluvião de 1803. Nada se sabe sobre o pelourinho da vila do Porto Santo, salvo que existe esse topónimo para o largo em frente ao edifício da antiga Câmara Municipal. Mas, como observámos antes, tendo D. Manuel enviado um pelourinho para o Funchal, com certeza que os enviou também para as restantes vilas sedes de capitania. O abandono e os inúmeros saques corsários a que esta Ilha foi entretanto sujeita devem ter feito desaparecer o pelourinho muito mais cedo que nos restantes municípios madeirenses. O pelourinho do Funchal foi mandado demolir pela vereação camarária, em novembro de 1835, dentro da ideologia, então vigente, de que os pelourinhos eram manifestações do Antigo Regime. Em 1989, toda a área foi sujeita a uma completa remodelação e voltou-se a instalar ali um pelourinho, réplica do antigo, mas em calcário de Molianos, tendo-se ainda restaurado o passo de procissão daquela praça. Como restavam dois pequenos fragmentos do pelourinho original no parque do MQC, como adiantámos, em calcário-brecha da Arrábida, um material que se tornara dificilmente disponível, com base neles e no desenho efetuado poucos meses antes da sua demolição, procedeu-se à execução da réplica, inaugurada no dia 21 de agosto desse ano de 1989. A aluvião de 20 de fevereiro de 2010 voltou a afetar gravemente toda a baixa da cidade, mas o pelourinho foi posteriormente restabelecido no local.   Rui Carita (atualizado a 19.11.2015)

Património História Política e Institucional

provérbios e outros ditos populares

Não existindo nenhum dicionário de provérbios madeirenses, mas apenas algumas recolhas avulsas, este texto procura contribuir para um melhor conhecimento do património linguístico e cultural da Madeira. Pretende-se ainda participar na discussão sobre a questão colocada por Cabral do Nascimento, em 1950, acerca da “existência de palavras e locuções madeirenses”, através da análise de exemplos concretos de usos proverbiais atestados no arquipélago da Madeira e de reflexões provenientes de vários estudiosos madeirenses. Palavras-chave: Cabral do Nascimento; gentílicos; regionalismos; topónimos; variações madeirenses do português. Não havendo dicionários específicos sobre os provérbios e outros ditos populares em uso no arquipélago da Madeira, foram analisados vários dos trabalhos publicados sobre vocábulos madeirenses (v.g., monografias dialetais), alguns dos quais remontam a 1916, e também estudos de especialistas em linguística que se têm debruçado sobre os vocábulos regionais. Outros dados foram reunidos na ilha do Porto Santo, junto de fontes orais, após a seleção de pessoas de faixa etária muito avançada. Durante o processo de recolha, e por não haver conhecimento de qualquer registo proverbial referente a esta ilha, começou por se contactar Manuel Avelino Melim, cantor repentista de 90 anos, conhecido como “o peru”. Quando questionado, não sabia o significado do termo “provérbio”, mas posteriormente veio a dar dele a definição de “falar por tabela”, adiantando que aquilo que se pretendia saber poderia ser resumido naquela expressão, cuja referência também se encontra na obra Dizeres da Ilha da Madeira, de Luís de Sousa, que define “falar por tabela” como “referir-se indiretamente” a algo (SOUSA, 1950, 74). Foram igualmente realizadas recolhas orais em várias localidades da ilha da Madeira, junto de pessoas com idades superiores a 60 anos. Estas recolhas permitiram atestar o uso dos provérbios e dos ditos populares selecionados, muitos dos quais se encontram registados em monografias dialetais sobre o arquipélago. Na freguesia do Porto da Cruz, v.g., um ancião afirmou, com o sentido de dar tempo ao tempo ao assunto que ali nos tinha levado: Tenha calma. Antes da meia-noite não lhe irá dar sono. Assim, aplica-se às recolhas orais realizadas no arquipélago da Madeira o que disse Raphael Bluteau: “Recolhi Palavras anticadas, como relíquias de Portugal o velho e acrescentei vozes modernas, como enfeites de Portugal o novo” (BLUTEAU, 1712, I, 33). Após esta fase preliminar de pesquisa, em que nos questionámos sobre a existência de provérbios madeirenses, seguiu-se um processo muito importante do ponto de vista metodológico: confrontar os dados coligidos com os que se encontram publicados em dicionários da especialidade, a fim de aferir, através do método da comparação, a sua especificidade madeirense (no caso de não se encontrar atestado o uso dos provérbios e dos ditos populares em outras partes do país). António Carvalho da Silva considera esta questão muito importante e refere que: “A grande questão é que trabalhos anteriores ao de Luís de Sousa (Emanuel Ribeiro, Antonino Pestana, Jaime Vieira dos Santos ou Urbano Canuto Soares) já consideravam madeirenses alguns termos usados em todo o território nacional” (SILVA, 2008, 65). Neste trabalho, foram excluídos muitos dos provérbios recolhidos, pelo facto de também se encontrarem citados em dicionários de provérbios nacionais, como estando em uso noutras regiões de Portugal. Sobre este critério de seleção – o vínculo do uso proverbial às comunidades insulares do arquipélago da Madeira –, já Cabral do Nascimento questionava, a propósito do referido trabalho de Luís de Sousa, a existência de palavras e locuções madeirenses. Relativamente às 140 páginas por ele analisadas, referia que o autor não teria tido o tempo suficiente para saber se os vocábulos por ele recolhidos seriam também utilizados no território nacional. O próprio Luís de Sousa o admitia: “Quero fazer sentir a enorme dificuldade com que se depara quem, tendo nascido na Madeira e sempre na Madeira vivendo, só em rápidas e trabalhosas digressões pelo continente português e pelos Açores, teve ensejo de entrar em contacto com os naturais dessas paragens, faltando-lhe, portanto, o tempo para averiguar se determinada palavra ou locução é original desta ilha ou só aqui empregada, pois a consulta dos nossos dicionaristas e a leitura dos nossos escritores, mesmo daqueles que, como Aquilino, mais se comprazem com os dizeres do povo, não são, em muitos passos, o suficiente para a elucidação de um curioso, às voltas com um trabalho deste género” (SOUSA, 1950, 7-8). Este é um trabalho do qual se irá encarregar o próprio Cabral do Nascimento, ao comparar alguns dos vocábulos de Sousa com outros semelhantes, usados em certas regiões de Portugal continental, muitas vezes, como o próprio afirma, com desvios semânticos. A amostra de provérbios e de ditos populares atestados na Madeira, que a seguir se apresenta, tem em conta esta questão central: a sua originalidade insular. Para além deste condicionamento metodológico, que leva a reter apenas o uso atestado de um provérbio ou de um dito popular numa comunidade linguística situada num determinado território, é de salientar a opção pela descrição linguística, indo de encontro ao que referem Gabriela Funk e Matthias Funk: “Após mais de um século de estudo sobre o Provérbio, seria de esperar que este género da Literatura Oral se encontrasse devidamente caracterizado. No entanto, nas publicações da especialidade, não encontramos nem uma definição global nem uma caracterização consensual de Texto Proverbial” (FUNK e FUNK, 2008, 15). No seu dicionário, Bluteau regista algumas obras que tratam da definição de “provérbio”; descreve o adágio como “sentença comum popular e breve com alusão a alguma coisa”, acrescentando que o licenciado António Delicado reduziu a lugares-comuns os adágios portugueses, e que “os adágios são as mais aprovadas sentenças, que a experiência achou nas ações humanas, ditas em breves e eloquentes palavras” (BLUTEAU, 1712, I, 237). O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Editora Objetiva, 2001) define “provérbio” como sendo uma “frase curta, ger. [geralmente] de origem popular, freq. [frequentemente] com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral (p. ex.: Deus ajuda a quem madruga) […] na Bíblia, pequena frase que visa aconselhar, educar, edificar; exortação, pensamento, máxima”. Em Adagios, Proverbios, Rifãos e Anexins da Lingua Portugueza… encontramos a seguinte definição: “Ora todas as Nações têm ajuizado, que os Provérbios ou Adágios, são de grande utilidade para os Homens […]. Muitas cerimónias, e costumes antigos se encerram nos Provérbios. Eles são o depósito de toda a Antiguidade” (ROLLAND, 1780, 6). Este trabalho visou essencialmente selecionar os provérbios e os ditos populares usados na Região Autónoma da Madeira (RAM), registados ou não, que são verdadeiramente insulanos, ou seja, que mencionam características do arquipélago ou que a ele se referem, bem como às suas gentes e aos seus costumes. Na opinião de Manuel Nóbrega, “a cultura popular nunca pode competir com a erudita. Desaparecendo a atividade agrícola, desaparece a eira, o forno, a matança dos porcos, a lareira de aquecimento, a lenha, bem como o serão que se concentra em volta da televisão em vez de ser em volta da lareira. Por isso mesmo, a preservação da riqueza e cultura popular perde-se de modo irreversível. Perde-se a cultura popular dos provérbios, sobrepondo-se a cultura escrita à oral” (NÓBREGA, 2005-2006, 74). Esta observação leva-nos a pensar se – dado que não existe nenhum dicionário específico de provérbios e ditos populares insulanos, como inicialmente referido – será possível assegurar que determinado provérbio ou dito usado na ilha da Madeira ou de Porto Santo tem efetivamente aí a sua origem, apesar de existirem obras, exclusivamente dedicadas a adágios, ditos e provérbios nacionais, que não o afirmem. Trata-se de uma tarefa muito difícil e complexa. Relativamente a esta exigência metodológica, vale a pena referir de novo o clérigo Bluteau, que, em 1712, escreveu que estava há 30 anos a recolher vocábulos portugueses e lhe disseram que a língua portuguesa não merecia tanto trabalho, pois a maioria dos estrangeiros considerava-a como uma corruptela do castelhano, mas que ele próprio considerava isso um disparate: “Também houve, quem com rústica simplicidade me disse, que não merecia a língua Portuguesa tanto trabalho. A razão desse disparate é, que na opinião da maior parte dos estrangeiros, a língua Portuguesa não é língua de per si, como é o francês, o italiano e Cia mas língua enxacoca e corrupção do castelhano, como os dialetos, ou linguagens particulares das províncias, que são corrupções da língua” (BLUTEAU, 1712, I, 35). Na crítica publicada no Arquivo Histórico da Madeira, em 1950, Nascimento comunga da opinião de Sousa, ao referir a importância de “não nos fiarmos nos dicionários, porque atualmente alguns deles registam (como o de Cândido de Figueiredo) certos termos colhidos por estes monografistas, sem lhes aditar o pormenor da sua origem, o que determina ainda maior confusão” (NASCIMENTO, 1950, 207). V.g., são de salientar termos como “vilão”, vocábulo tipicamente madeirense, e “balalau”, tipicamente porto-santense, ambos em uso nas duas ilhas, mas porventura com diferentes conotações consoante os dicionários. Emanuel Ribeiro dizia: “Desde o primeiro dia em que desembarquei na Madeira resolvi tomar nota dos diversos e variadíssimos vocábulos que têm o uso aqui e para mim, forasteiro, formavam uma linguagem estranha e extravagante” (RIBEIRO, 1929, 10). A classificação da amostra selecionada a partir do corpus de provérbios e ditos populares recolhidos fez-se de acordo com o critério “marcador de regionalidade”, ou de “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010, 210-226), o que permitiu formar dois conjuntos. De um primeiro conjunto, de forte grau de regionalidade, fazem parte os dois subconjuntos a seguir especificados: os provérbios e ditos populares que contêm um topónimo (Toponímia) ou um gentílico (Gentílicos), cujo nome de lugar e nome de origem sejam identificados como existentes no espaço do arquipélago, e aqueles provérbios e ditos que recorrem a regionalismos e que, a nível semântico, estão relacionados, direta ou indiretamente, com usos e costumes, com diversos aspetos culturais e sociais insulanos (alguns deles já se encontram registados desde 1950). Neste conjunto, é de salientar, v.g., o uso dos termos “vilão” e “palheiro”. Um segundo conjunto, com grau de regionalidade mais fraco, cuja classificação (autenticidade local) se prende com o facto de ter sido registado, nas obras consultadas, como sendo de carácter regional, ou de estar atestado como estando em uso na região, decorre de recolhas orais efetuadas em 2013. Este grupo contém provérbios ou ditos populares – por vezes carregados de ironia, ou com o intuito de admoestação ou de conselho – ligados a vários aspetos da condição humana e insular (meteorologia, festividades e costumes religiosos, etc.). Na mostra, os provérbios e ditos populares são apresentados com indicação da sua fonte e do seu sentido. Nem sempre a sua significação foi retirada da respetiva fonte, como é o caso das expressões que constam dos trabalhos de João da Cruz Nunes (Os Falares da Calheta…, de 1965), de Horácio Bento de Gouveia (A Canga, de 1976) e de Gabriel de Jesus Pita (A Freguesia dos Canhas, de 2003), uma vez que estes autores não fornecem os significados das expressões por si registadas. Provérbios Provérbios com topónimos e gentílicos regionais De São Vicente, nem bois nem gente (MOREIRA, 1996; RIBEIRO, 2007): antigo, em desuso; nem uma coisa nem outra. De São Vicente, nem bom vento nem bom casamento (MOREIRA, 1996): conselho; o vento de Norte significa mau tempo (São Vicente localiza-se no Norte da Madeira, sendo outrora dificilmente acessível); aplicado ao matrimónio contraído com naturais de São Vicente e à necessidade de prudência a esse respeito. Deserta descoberta, chuva certa (fonte oral, Madeira): referência a uma das ilhas que faz parte do conjunto de ilhas desabitadas que são área de reserva natural do arquipélago; quando a ilha Deserta está extremamente visível e o mar calmo, pode ser sinal de chuva. Onde está um machiqueiro, está um engenheiro (fonte oral, Madeira): capacidade de vencer obstáculos, atribuída aos habitantes de Machico. Porto Santo alerta, bonança certa (SANTOS, 1995): referência à segunda ilha do arquipélago; calmaria no mar, boa viagem marítima, sinal de bom tempo. Provérbios com regionalismos e referências diretas ou indiretas à Madeira Do Leste à chuva vai um salto de pulga (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965; PITA, 2003): indica que o tempo é imprevisível; do vento Leste (que está associado ao tempo quente e seco) à chuva pode ser uma mudança brusca. É como o vilão, que dá o pé e toma a mão (NUNES, 1965): João da Cruz Nunes não regista a definição; no entanto, poderá exprimir o facto de alguém que tenta vincar a sua importância; exprime o facto de o vilão (o colono, o trabalhador) não respeitar o seu senhor (o dono da terra). Ao vilão dá-se o pé para ele dar a mão (CALDEIRA, 1961): diz-se quando alguém se impõe na troca de cumprimentos, para evitar que o vilão abuse; neste uso, parece existir um sentido de superioridade, uma tentativa de demonstrar ao vilão quem é mais importante. Filho de balalau, balalau é! (fonte oral, Porto Santo): o vocábulo “balalau” é tradicional da ilha do Porto Santo; este adjetivo avalia ou qualifica alguém com menos capacidade, alguém com dificuldades, que não é rápido nem eficaz nas decisões que toma; v.g., “Ah, rapaz! Tás ficando balalau?”; “Bem disse que filho de balalau, balalau é!”. Variante: Filho de balalau é balalau em cheio! (fonte oral, Porto Santo). O Leste nunca morreu à sede (CALDEIRA, 1961): diz-se quando há estiagem e, a certa altura, sopra vento de Leste; v.g., “Isto é que é um Leste para queimar as plantas! Mas, como se costuma dizer, o Leste nunca morreu à sede”. As primeiras chuvas de verão são para enganar o vilão (fonte oral, Madeira): o vocábulo “vilão” tem uma conotação específica na RAM, sendo tanto o vilão que baila (sentido etnográfico), como aquele que usa de esperteza em determinadas alturas, que trabalha na agricultura ou ainda aquele que usa o tradicional barrete de orelhas, feito de lã de ovelha; no passado, o termo “vilão” servia para diferenciar socialmente o camponês do habitante da cidade; significa que as primeiras chuvas de verão não regam nada, servem apenas para enganar o agricultor. Quem quer ver vilão, ponha-lhe o mando na mão (NUNES, 1965): exibir-se; determinadas situações revelam a natureza das pessoas. Com o mesmo sentido, Bluteau regista: Se queres saber quem é o vilão, mete-lhe a vara na mão (BLUTEAU, 1720, VII, 541). Relativamente ao termo “vilão”, Bluteau tem ainda vários provérbios, e.g.: Se o vilão soubesse o sabor da galinha em janeiro, nenhuma deixaria no poleiro (BLUTEAU, 1721, VIII, 512). O vocábulo “vilão”, em Bluteau (BLUTEAU, 1721, VIII, 512), apresenta a seguinte definição: “Homem do campo, dedicado aos mais humildes ofícios da agricultura”. Quem quiser ver o vilão confiado, dê-lhe a chave da retrete (CALDEIRA, 1961): diz-se das pessoas que, sem motivo, se tornam petulantes; v.g., “Ah! Ele fala assim agora… pois é… quem quiser ver o vilão confiado, dê-lhe a chave da retrete”. Provérbios sem marcador lexical explícito de “madeirensidade” atestados na Madeira (registados e/ou em uso) Existem outros provérbios relacionados com várias realidades e atividades do quotidiano, muitas delas interligadas, como é o caso da meteorologia e da agricultura, ou ainda da alimentação e da agricultura. Da lista a seguir apresentada, apenas alguns provérbios se encontram registados. Agricultura Alqueire muito cheio é mexer no que é alheio (fonte oral, Porto Santo): alguém tirou mais do que devia. Ciúmes a sudoeste, se lavraste bem no cedo, bem fizeste (fonte oral, Porto Santo): indícios de que irá chover, o que será bom para a agricultura, se a terra tiver sido cultivada a tempo. Enquanto há água na fazenda é que se rega (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que enquanto se tem o artigo na mão é que se deve aproveitá-lo. O trabalho faz cansar, mas o descanso não faz alterar (fonte oral, Porto Santo): sobre a relação trabalho-descanso; o descanso não é suficiente para recuperar do cansaço. Quando ameaça mijar, o campo vai regar (fonte oral, Porto Santo): emprega-se quando a previsão é de chuva. Quando há água na fazenda é que se rega (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que quando há ocasião é que se faz, ou se diz. Vermelho ao nascente, é picar os bois e andar sempre (NUNES, 1965): com o nascer do sol, é andar depressa para a lavoura. Outros provérbios, de estrutura semelhante, fazem referência à vida no campo e à ocupação do dia, desde a aurora até ao entardecer, com diversas atividades: Vermelho ao nascente, é amassar e trazer gente (PITA, 2003): quando está a nascer o sol, é hora de começar a trabalhar. Vermelho ao poente, é amassar e trazer gente (NUNES, 1965): quando está a anoitecer, é hora de fazer o pão. Vermelho ao poente, é picar os bois e andar sempre (PITA, 2003): quando está a anoitecer, é hora de guardar os bois. Existe uma particularidade em cada um destes provérbios. Alimentação Nem sempre é pão com fel, nem sempre é pão com mel (CALDEIRA, 1961): nem sempre mau, nem sempre bom. Pão e vinho fazem o velho menino (PITA, 2003): expressão popular que manifesta dois fatores de satisfação na vida – o pão alimenta e o vinho dá alegria e rejuvenesce. Para a serra leva pão e gabão (PITA, 2003): espécie de alerta; recomendação de que para a serra se leve comida e agasalho. Uns comem os figos, outros arregalam os beiços (NUNES, 1965): uns comem, outros não; aplicada quando, na mesma circunstância, uns saem beneficiados e outros prejudicados; v.g., “Ah! Então é assim? Uns comem ui figues, outros arregalam ui beiços”. Aviso/ameaça Alto vareta, quem não quer dar não prometa (SANTOS, 1995): advertência a quem promete e não cumpre. Burro velho é melhor matar que ensinar (fonte oral, Camacha): diz-se de quem não consegue aprender nada. Variante: Burro velho não aprende línguas. Cachorro macho só é capado uma vez (CALDEIRA, 1961): refere-se à pessoa que nem se deixa levar por intrigas nem permite ser vigarizada; o mesmo que dizer: “Enganado, só uma vez”. Há muita maneira de matar pulgas (CALDEIRA, 1961): diz-se a alguém que duvida da forma como aconteceu ou se fez alguma coisa; v.g., “Ah! Não acreditas nisso? Olha que há muita maneira de matar pulgas”. Homem que bate muito com a mão no peito, é fugir dele como o diabo da cruz (fonte oral, Madeira): incitação a desconfiar de quem muito se queixa; v.g., “Não acredites nele nem nas suas cantigas [falas/queixumes], porque homem que bate muito com a mão no peito, é fugir dele como o diabo da cruz”. Os piores venenos guardam-se nos frascos mais pequenos (SANTOS, 1995): as pessoas são capazes de atitudes inesperadas e drásticas; a maldade revela-se, muitas vezes, onde menos se espera. Pragas sem razão nem sequer ao maior cão (CALDEIRA, 1961): conselho que se dá a quem roga pragas. Variante: Praga sem razão não se pede nem ao maior cão. Quem dá e tira, quando morrer, nasce-lhe uma tira (NUNES, 1965; CALDEIRA, 1961): aviso a quem dá e depois se arrepende de o ter feito; servia como forma de assustar as crianças, para não pedirem a devolução daquilo que davam umas às outras; v.g., “Ah, menino! Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira”. Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira (CALDEIRA, 1961): aplica-se a quem dá e depois se arrepende. Quem diz o que quer ouve o que não quer (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre os que censuram outros; diz-se quando alguém dirige insultos ou palavras insinuadoras e se mostra melindrado se a outra pessoa retribui da mesma maneira; o mesmo que dizer: “Se não querias ouvir, não dissesses”. Quem fala no barco é que quer embarcar (CALDEIRA, 1961; PITA, 2003): sobre a revelação implícita de um desejo; alguém fala num assunto que lhe interessa, mas de forma indireta; o mesmo que dizer: “Estás falando nisso, faz tu ou paga tu”. Quem não tem que fazer, descosa a saia e torne a coser (CALDEIRA, 1961): velho aforismo que se usa quando alguém maça ou perturba outra pessoa; diz-se da pessoa que nada faz e que incomoda, com insistência, os outros. Quem quiser empobrecer sem Deus querer, chame gente e não vá ver (PITA, 2003): aplica-se a quem perdeu os seus bens por não os saber administrar e que por isso poderá receber comentários negativos a seu respeito. Quem tem rabo não se assenta (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se pisa o rabo de um gato ou de um cão e eles emitem sons de dor; diz-se de quem foi castigado por ter prejudicado alguém; v.g., “Oh, diabo! Quem tem rabo não se assenta!”. Conselhos A rico não devas e a pobre não prometas (SANTOS, 1995): conselho para que se não fique a dever a pessoas abastadas, porque se ficará dependente delas, e para que se não prometam bens a um pobre, porque ele ficará dependente deles. Boca calada não entra moscas (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se aconselha alguém a estar calado; v.g., “O melhor que tens a fazer é ficar calado, porque boca calada não entra moscas”. Casa quanto caibas e bens que não saibas (PITA, 2003): conselho para se ser feliz – ter uma vida modesta e não pôr os bens materiais em primeiro lugar. Fala pouco e bem e ter-te-ão por alguém (PITA, 2003): estímulo à boa educação. No mesmo sentido: Fala pouco e bem e ter-te-ás por alguém (MILHANO, 2008; RIBEIRO, 2007). Mulher desconfiada vigia-se como gavião (fonte oral, Camacha): é necessário ter uma visão apurada; é necessário vigiar muito bem a reação de terceiros perante os próprios atos. Mulher santeira não queiras à tua beira (fonte oral, Porto Santo): sobre a importância de se ter uma mulher honesta e sensata. Para quem tem boa ideia não há mulher feia (fonte oral, Madeira): expressão que exorta a ter apreço pelos valores e pelas qualidades humanas. Quem casa com mulher bonita tem o diabo à porta (fonte oral, Madeira): diz-se do facto de a beleza atrair pretendentes. Quem tem olhos, tem abrolhos (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer “quem tem olhos tem o direito de ver”; sobre o dever de observar as coisas tal como são. Se queres um bom conselho, toma com quem é mais velho (PITA, 2003): sobre a importância da experiência de vida. Sim ou não duas coisas são (CALDEIRA, 1961): incitamento à resolução imediata, afirmativa ou negativa, de algum assunto; v.g., “Então, vais ou não vais? Sim ou não, duas coisas são!”. Destino Boa romaria faz quem em casa fica em paz (PITA, 2003; MILHANO, 2008; MOREIRA, 1996): é melhor ficar em casa que envolver-se em confusões; v.g., “Ah, rapaz! O que é aquela romaria? Vão todos para a tasca?! Aquilo vai acabar mal. Boa romaria faz quem em casa fica em paz”. Cada um rega com a água que tem (NUNES, 1965): cada um sabe de si. Casa acrescentada, morte chegada (PITA, 2003): expressão que se usa quando os idosos investem na recuperação das suas habitações. Variante: Casa nova, velho para a cova. Esta vida é mais larga que comprida (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se comentam factos da vida de outras pessoas, quando as coisas não correm bem. Meninos feitos à pressa saem cabeçudos (CALDEIRA, 1961): diz-se das coisas que são realizadas de forma precipitada e não se concluem com perfeição. Nem sempre o que diz a boca o coração sente (GOUVEIA, 1976): não revelar o que se sente ou pensa; esconder a verdade; ser precipitado nas observações. Quem caçoa também morre (SANTOS, 1995): expressão dirigida a quem ri de algo que se passou com outrem, sem perceber que lhe pode acontecer a mesma coisa. Quem chora menos urina (SANTOS, 1995): forma popular de se endereçar às crianças quando choram. Quem dá o que tem fica no caminho do concelho (CALDEIRA, 1961): sobre a necessidade de prudência para não se ficar pobre; não se deve doar os bens antes de morrer. Quem morre nã volta a este mundo (GOUVEIA, 1976): acerca do destino e da importância da vida. Quem nasce prove nunca espera sê rico (GOUVEIA, 1976): sobre a fatalidade. Quem o seu cu aluga não se senta quando quer (fonte oral, Porto da Cruz): sobre a situação de dependência de algo ou de alguém. Ter uma no coiro, outra no lavadoiro (fonte oral, Madeira): sobre aquele que tem poucas posses; v.g., “Ah! Aquele só tem uma no coiro e outra no lavadoiro”. Esperteza Bezerrinho manso mama a sua e mama a alheia (SANTOS, 1995): sobre aqueles que usam do silêncio e da calma quando querem lucrar com alguma situação. Bezerro manso mama a sua e mama a alheia (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre o jeito para negociar; v.g., “Olha p’ra ele, já viste o que tem? Sempre caladinho, é assim mesmo, bezerro manso mama a sua e mama a alheia”. O mesmo que: Bezerro manso mama o seu e o alheio; Boi manso mama o seu e o alheio (PITA, 2003). Burro dado não se olha para os dentes (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): coisa dada aceita-se prontamente. O mesmo que: Burro dado não se olha para as orelhas (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965). O cão ladra, é a porta do dono (CALDEIRA, 1961): quando alguém provoca outrem, estando protegido. Outros temas A noivos e a batizados só vai quem é convidado (PITA, 2003): sobre as formalidades; v.g., “Então, não vais c’a gente? – Não fui convidado e, ademais, a noivos e a batizados só vai quem é convidado”. Atrás de maio vem S. João (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): depois de uma coisa, vem outra. Cachorro que aveza a sangue de ovelhas nunca mais larga (fonte oral, Madeira): sobre os indivíduos que têm vícios; pode ser também aplicado a homem mulherengo. Comer e coçar, o mais é começar (NUNES, 1965): equiparação entre a fome e a comichão. Dia de S. Tomé, quem mata o porco amarra a mulher pelo pé (CALDEIRA, 1961): aforismo caído em desuso; dizia-se quando havia discussões por ocasião da matança do porco. Dum poço sujo não se tira água limpa (CALDEIRA, 1961): ditado de uso comum; define as qualidades de alguém; v.g., “Não devia meter-me contigo; dum poço sujo não se tira água limpa”. Mijo e urina são a mesma coisa (NUNES, 1965): forma de se referir depreciativamente a alguém; duas coisas iguais. Muita festa para a festa e nada para a véspera (CALDEIRA, 1961): sobre quem ostenta ser melhor do que, na realidade, é. Ouve-se cantar o galo, mas não se sabe aonde ou adonde (CALDEIRA, 1961): sobre quem não é frontal, não tendo a coragem de assumir o que diz, não se conseguindo saber dessa pessoa a verdade dos factos. Para quem não tem vergonha, todo o mundo é seu (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): expressão que manifesta uma forma de apreciação das pessoas indiscretas e atrevidas. As primeiras mulheres são trapos, as segundas guardanapos (CALDEIRA, 1961): provérbio antigo, aplicado a algum tipo de doença que vitimava as mulheres. Quando os porcos bailam adivinham chuva (CALDEIRA, 1961): expressão muito usada no caso de crianças que estão eufóricas e têm gestos chamativos, maliciosos ou travessos; muito utilizado também no caso dos adultos, quando há grande entusiasmo numa determinada situação de natureza pouco clara. Santos que cagam e mijam não são santos, ou não merecem devoção (SANTOS, 1995): classificação, de sentido pejorativo, de determinado comportamento. Tu não sabes da missa metade (fonte oral, Madeira): diz-se quando determinada pessoa julga saber tudo sobre determinado assunto, mas, na realidade, não sabe. Meteorologia e tempo Abril chuvoso, maio ventoso, S. João calmoso faz o ano bondoso (CALDEIRA, 1961): sobre o estado do tempo nos meses do ano. Cerco na Lua, sinal de chuva (NUNES, 1965): previsão popular do tempo. Céu pedrado, mau tempo e mar bravo (fonte oral, Madeira): diz-se quando as nuvens se apresentam fragmentadas, sendo isso sinal de tempestade. Chovendo dia de S. Braz, chove quarenta dias e mais (CALDEIRA, 1961): previsão popular do tempo. Chuva de maio nem sequer no rabo de um gato (CALDEIRA, 1961): menção do facto de que a chuva deste mês estraga as culturas. Chuva que no mar faz alvarinho com bom vento de terra se avizinha (fonte oral, Porto Santo): referência aos chuviscos que, do mar, serão arrastados até à costa pelo vento. Chuvinha de Ascensão, até das pedras se faz pão (SANTOS, 1995): sobre a importância da chuva pela Páscoa no fortalecimento das culturas. Conceição enxuta, Festa molhada (NUNES, 1965): previsão popular do tempo, segundo a qual, quando não chove pela festa da Imaculada Conceição, irá chover no Natal. Diferente de: Senhora da Conceição, dai-me sol e chuva não. Dia de Santa Luzia, minga a noite e cresce o dia (CALDEIRA, 1961): indica a data em que os dias começam a crescer. Dos Santos ao Natal, é inverno natural (PITA, 2003; RIBEIRO, 2007; MILHANO, 2008): diz-se para indicar que, entre o dia de Todos os Santos (1 de novembro) e o Natal, sendo fim de outono e início de inverno, é normal que chova. Em abril vai a velha aonde tem de ir e volta ao seu covil (fonte oral, Madeira): significa que em abril ainda está muito frio para sair de casa a não ser para coisas mesmo necessárias. Em abril, a velha queima o canzil (fonte oral, Madeira) e Em março, a velha está no espinhaço (fonte oral, Porto Santo): sobre a doença e a idade; exprimem o presságio de que alguma coisa grave irá acontecer. Fevereirinho quente traz o diabo no ventre (SANTOS, 1995): expressão regional definindo o clima, possivelmente também usada noutras paragens. Fevereirinho é garotinho (NUNES, 1965): alusão ao facto de se tratar do mês com menor número de dias. Gaivotas na serra é sinal de mau tempo (CALDEIRA, 1961): expressão de presságio usada pelo povo, quando vê gaivotas voarem em direção à serra. Janeiro, mete ombreiro (NUNES, 1965): sobre a necessidade andar bem agasalhado. O Leste de S. Braz, não vindo adiante, vem sempre atrás (PITA, 2003): mais tarde ou mais cedo, chega o calor. Março é cachorrinho (NUNES, 1965): alusão ao facto de que neste mês há, por vezes, grande variação de temperaturas. Natal com chuva, Páscoa com sol (CALDEIRA, 1961): previsão popular do tempo. Profano e religioso Ave-marias em casa, meia-noite na rua (CALDEIRA, 1961): diz-se de alguém que encobre o hábito de chegar a casa tarde; antigamente, ao anoitecer, os sinos da torre das igrejas tocavam as ave-marias, indicando que eram horas de recolher. Bem com Deus, mal com o diabo (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que devemos estar bem com quem mais nos interessa; devemos estar voltados para o bem e de costas para o mal. Deus não castiga nem com pau nem com pedra (CALDEIRA, 1961): aplica-se quando acontece alguma infelicidade a alguém, depois de ter praticado uma má ação. Deus não fecha uma fonte que não abra outra (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer: vai uma coisa mas vem outra; apelo a que se não perca a fé e se tenha esperança. Deus o deu, o diabo o levou (CALDEIRA, 1961): alusão ao carácter mutável da existência; tão depressa se ganha como se perde. Em dia de S. João toda a água é benta (fonte oral, Madeira): existe a crença de que as águas são purificadas no dia deste santo popular. Variante: Em noite de S. João, a água é lampa: nesta ocasião, há o costume de as pessoas se deslocarem até ao mar, ou para se banharem, ou para tocarem na água. Outra variante: Em noite de S. João, todas as ervas são bentas (SANTOS, 1995): sobre a fé sanjoanina; as ervas são purificadas, ficam benzidas pelo santo popular. Não há romaria sem cambado (CALDEIRA, 1961): aplica-se quando, em qualquer festa, reunião ou ocasião social, aparece uma pessoa a cambalear. Nunca se é velho para pagar pecados (NUNES, 1965): o castigo pelo mal cometido tarda, mas sempre chega. Quem pela murta passou, o seu raminho não apanhou, de Nossa Senhora não se lembrou (FREITAS e MATEUS, 2013): alusão ao sentido do gesto de apanhar um ramo de murta para oferecer a Nossa Senhora na igreja. Quem se emenda agrada a Deus (GOUVEIA, 1976): sobre a importância do arrependimento de coisa mal feita. Rata de sacristia, difícil ficar na ratoeira (fonte oral, Madeira): diz-se de mulher experiente e discreta. Santo da casa não faz milagres (NUNES, 1965): sobre quem, apesar dos seus esforços, nada consegue fazer para modificar a conduta e os costumes dos que lhe são próximos. Santo que não conheço, não lhe rezo nem ofereço (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se quer mostrar que não se tem interesse em falar com pessoa a quem não se conhece ou deve atenções. Saúde e doença Chá de alfavaca, se não morrer escapa (FREITAS e MATEUS, 2013): o chá de alfavaca é aconselhado em determinado tipo de doenças. Quem está doente vai ao médico (NUNES, 1965): sobre quem se queixa mas não procura solução para o seu problema. Sorte Dar sem proveito faz mal ao peito (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): diz-se quando alguém oferece com algo com boa intenção e não lhe é dado o devido valor. Debaixo dos pés se levantam os trabalhos (SANTOS, 1995): os problemas aparecem quando menos se espera. Donde menos se espera é que saem os coelhos (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que conseguiu obter-se algo de forma inesperada; outro sentido será: alguém assume a culpa de alguma coisa, causando espanto. Filho de aselha não dá carreira certa (fonte oral, Porto Santo): prenúncio de insucesso na vida por falta de formação. Fui de balde e vim de celha (fonte oral, Porto Santo): Celha significa a bandeja que os vendedores de peixe usavam antigamente à cabeça, por cima da molhelha, para transportar o peixe (mais tarde, surgiu a canastra); refere-se a quem fez algo inutilmente, ou de que não obteve proveito. Furtar a quem tem não é pecado (CALDEIRA, 1961): diz-se como resposta a alguém que lamenta furtos feitos a pessoas com haveres. Nem todos os dias são dias de festa (CALDEIRA, 1961): não se faz sempre a mesma coisa. Nem todos têm sorte longe da sua terra (GOUVEIA, 1976): sobre a emigração. Quem espera, mais tarde ou mais cedo sempre alcança (GOUVEIA, 1976): sobre a importância de se ser paciente. Quem mata um gato ladrão tem sete anos de perdão (CALDEIRA, 1961): em desuso; aplicado a quem mexe no que é alheio. Quem não pode queixa-se da molhelha (NUNES, 1965): sobre o servir-se de desculpas; diz-se de quem fala muito, mas depois nada faz, arranjando para isso muitas justificações. Quem não sabe vender fecha a loja (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre a arte de ser comerciante. Trabalho Barco parado (varado) não ganha frete (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965; MOREIRA, 1996; PITA, 2003; MILHANO, 2008): o mesmo que: “Quem não trabalha não ganha”. Contas feitas, barco lavado (PITA, 2003): acabado o trabalho, é hora de fazer a limpeza; aplica-se também aos negócios concretizados. Moleiro que carrega na maquia não tem freguesia amiga (fonte oral, Madeira): sobre o valor a cobrar; quem cobra montantes excessivos, perde a clientela. O mesmo que: “É muito caro, não volto lá para comprar”. Quem faz um cesto faz um cento (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): quem aprende a fazer um trabalho pode voltar a fazê-lo; provérbio que evoca o artesanato regional, em particular a obra de vimes, com forte ligação à Camacha. Quem lava um prato, lava dois (CALDEIRA, 1961): quem lava um prato, facilmente lava dois, dispensando ajuda; a expressão tem também um sentido não literal. Trabalhas como um preto e gastas como um fidalgo. O provérbio remonta ao tempo da escravatura no arquipélago, pode ter dois sentidos: trabalhas muito e não poupas, ou trabalhas pouco e gastas muito. O vendeiro tem de beber para o cliente não desconfiar (fonte oral, Madeira): conselho sobre como vender; quando o vendeiro bebe, demonstra que o produto é bom, é genuíno, não está adulterado, de modo que gera a confiança dos clientes. Outros ditos Outros ditos com topónimos e gentílicos regionais Boa para pregar no Pilar de Banger (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): expressão que se empregava quando uma história não era completamente verdadeira e, por esse motivo, deveria ser afixada no Pilar de Banger, de forma a ser conhecida por toda a gente. O Pilar de Banger, com 30 m de altura e 3 de diâmetro, foi mandado construir por John Light Banger. Concluído em 1798 na marginal da cidade do Funchal, servia essencialmente para ajudar a transportar carga do mar para terra e vice-versa. Mais tarde, tornou-se um posto de vigia e de sinais. Em 1939, foi demolido. Em 1990, a base foi reposta. Os ceguinhos morreram no Caniçal (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): não se deixar intrujar; não ir no logro; modismo que exprime “não ir nessa”. Enxergar um mosquito nas Desertas, Ser capaz de (PITA, 2003): diz-se de alguém que tem a capacidade de ver a grande distância. Também pode ser dito com ironia, nesta variante: És capaz de enxergar um mosquito nas Desertas. Justiça da Ponta do Sol (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): ficar sem os haveres e sem apelo; com sentido de expressão idiomática, é uma referência a uma forma de justiça popular referenciada como sendo daquela localidade da Madeira. Na freguesia da Ponta Delgada, sê colono é sê digraçado (GOUVEIA, 1976): alude à situação de dependência de algo; referência à Lei da Colonia, segundo a qual o colono teria de entregar parte da produção ao senhorio; segundo Fernando Augusto da Silva, colonia é um regime agrícola de propriedade em que as terras pertencem ao chamado “senhorio e as benfeitorias ao colono, fazendo este toda a cultura com direito à dimidia da produção” (SILVA, 1950). Peru velho da Calheta quer casar não tem jaqueta (CALDEIRA, 1961): expressão antiga, utilizada nos tempos em que se vendiam perus pelas ruas da cidade, podendo referir-se a alguém que, tendo uma certa idade, quer contrair matrimónio mas não tem bens nem dinheiro. Variante: Peru velho do ilhéu quer casar não tem chapéu (CALDEIRA, 1961). Ribeira Tem-Te Não Caias (fonte oral, Madeira): nome, em forma de apelo, atribuído a uma ribeira existente no Porto da Cruz; consoante o seu caudal, é necessário ter atenção ao atravessar (“Tem-te”) e manter o equilíbrio (“Não Caias”); este nome foi atribuído à estrada que circunda a montanha onde está situada a ribeira; espécie de alerta. São Braz do Arco (Calheta) matou sete e afogou quatro (CALDEIRA, 1961): rifão popular de origem desconhecida; usado como gracejo. São Vicente, boa gente (fonte oral, Madeira): alude à existência de boas pessoas em São Vicente, com as quais vale a pena fazer amizade. O Senhor dos Milagres aceita a brincadeira (CALDEIRA, 1961): referente a Machico; a propósito de promessa não cumprida. Valha-me São Braz do Arco (Calheta) (SANTOS, 1995): vocativo implorando a ajuda divina. Valha-me o Senhor dos Milagres (SANTOS, 1995): referente a Machico; vocativo implorando a ajuda divina. Outros ditos com regionalismos e referências diretas ou indiretas à Madeira As camacheiras estão abanando as saias (CALDEIRA, 1961): diz-se quando o vento, vindo da direção nordeste, é bastante agreste; as camacheiras são na realidade as habitantes da freguesia da Camacha, na ilha da Madeira, apesar de haver também um sítio denominado Camacha na ilha do Porto Santo; a população do Funchal proferia este provérbio sempre que soprava o vento de Nordeste; de realçar que as saias das camacheiras, aqui referidas, são as saias coloridas das floristas e das bailarinas, de cariz etnográfico. Camacheiro (SIMÕES, 1984; SILVA, 1950): é um regionalismo pelo qual se designa o vento de Leste, vento frio e agreste que sopra dos lados da freguesia da Camacha; apesar de este vocábulo identificar também o habitante da freguesia da Camacha, o seu sentido proverbial atribui-lhe a referência ao vento; Guilherme Augusto Simões, em Expressões Populares Portuguesas…, texto publicado em 1984, regista este provérbio, referindo que Artur Bivar já o tinha mencionado no Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, em 1948; estamos perante um vocábulo da RAM registado fora da Ilha. És como o vilão, não vê nada sem tocar com a mão (CALDEIRA, 1961): diz-se quando uma pessoa toca numa coisa em que outra não quer que se mexa; v.g.: “Não toques nisso! És como o vilão, que não pode ver nada sem tocar com a mão?”. Estar como o vilão na casa do sogro (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): diz-se do indivíduo que está comodamente recostado, refastelado, à-vontade. Caldeira regista o seu sentido: aplica-se “quando um indivíduo está à vontade, bem encostado de perna estendida” (CALDEIRA, 1961, 59). Março marçagão, de manhã dente de cão, ao meio-dia sol de alegria e à tarde escapa vilão (NUNES, 1965): sobre a esperteza; comer bem, apanhar sol e passear. Ser galo do palheiro ou galinho do palheiro (CALDEIRA, 1961): pessoa esperta, atrevida; pessoa que fala muito. As canelas de João Blandy ou do senhor Blandy (SOUSA, 1950): no jogo do loto, aquele a quem sai o 77 grita, em vez do número, “as canelas de João Blandy” ou “as canelas do senhor Blandy” (de forma semelhante, quando se diz “boca da peça” os jogadores sabem imediatamente que se trata do número 1, e quando se profere “duas irmãzinhas” identificam logo ter saído o número 66); a família Blandy reside na Madeira há centenas de anos, onde se dedica ao comércio e serviços. Outros ditos sem marcador lexical explícito de “madeirensidade” atestados na Madeira (registados e/ou em uso) Agricultura É mais fácil o céu produzir abóboras, e a terra estrelas, do que virar o nosso feitor (“Provérbios populares”, 1969): forma de se expressar por meio da qual os agricultores se referiam ao modo de ser do feitor da quinta. Mijai, senhor, que a terra está seca (SANTOS, 1995): não é certo que esta expressão seja do arquipélago; de cariz jocoso, é um comentário perante uma situação inesperada; referência à necessidade de chuva. Santa Isabel está a abanar as saias (fonte oral, Camacha): diz-se sobre o vento no verão; em tempos, o povo queria que houvesse vento em julho, mês de S.ta Isabel, para ajudar a ajoeirar o trigo, depois de passar pelo mangual e antes de o guardar; v.g., “Parece que Santa Isabel já está a abanar as saias”. São Pedro bem-disposto, campo regado com gosto (fonte oral, Porto Santo): referência à chuva pelo mês deste santo popular. Alimentação Casca fora, inhame dentro (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): comer com grande apetite, com sofreguidão; v.g., “Isto cá é assim. Casca fora, inhame dentro”. Castanhas com carepa faz o cú tocar rebeca (fonte oral, Camacha): alusão à flatulência provocada pela ingestão de castanhas cruas. Comer formigas faz bem à vista (CALDEIRA, 1961): velho adágio que se pronuncia quando alguém se queixa de ter engolido uma formiga; v.g., “Estava a comer uma maçã e engoli uma formiga! Não faz mal, fez bem à vista”. Meio-dia, panela cheia, barriga vazia (SANTOS, 1995): diz-se para referir a hora da refeição. Aviso/ameaça O diabo quis cuidar de cem cabras e não quis cuidar duma só mulher (fonte popular, Porto Santo): diz-se a mulher que fala muito e continuamente; o mesmo que: “Vai lá p’Argel, o diabo quis cuidar de cem cabras e não quis cuidar duma só mulher”. Do coiro te sai as correias (CALDEIRA, 1961): sobre sofrer as consequências dos próprios atos. Ele com uma mão, eu com duas (CALDEIRA, 1961): usado para se alegar que, na celebração de um negócio, se foi mais sério do que a outra parte nele envolvida. Também se pode dizer: “Ele com duas mãos e eu com uma”. Fecha o aparelho que a burrinha espanta (fonte oral, Porto Santo): incitamento a fechar o guarda-chuva; v.g., “Ah, rapaz! Fecha o aparelho que a burrinha espanta”. Guarda o rir para quando chorares (CALDEIRA, 1961): conselho que se dá a quem ri de escárnio; v.g., “Olha, tás a rir? Guarda para quando chorares!”. A madeira onde o diabo se sujou (SANTOS, 1995): referência ao mau cheiro da madeira de til; era uma expressão muito usada pelos carpinteiros. Não dar cópia nem mandado (SOUSA, 1950): não dar notícia; estar em parte incerta. Não me venhas tirar o inhame da porta (SOUSA, 1950): aviso; frase que indica não ter medo de qualquer ameaça que vise os próprios bens ou bem-estar. Nem que te mates, nem que te esfoles (CALDEIRA, 1961): menção de algo de irreversível ou relativamente ao qual é inútil insistir; v.g., “Olha, eu já te disse que não te dou isso, nem que te mates e esfoles”. Variante: Nem que me mate nem que me esfole. Olho vivo, Santa Luzia (CALDEIRA, 1961; SOUSA, 1950): locução que indica ser preciso ter cautela. Quem me pica num dedo veja em que dedo me pica (CALDEIRA, 1961): admoestação, em tom de ameaça, no sentido de evitar qualquer ofensa; v.g., “Olha, toma cuidado, porque quem me pica no dedo veja em que dedo me pica, ouviste?”. Variante: Quem me pica num dedo, pica-me em dois: forma de alguém fazer sentir que não admite ofensas, que fica melindrado; v.g., “Já sabes. Quem me pica num dedo, pica-me em dois. Então vê lá como me tratas, ouviste?”. Se isso tem veneno, não me mata (CALDEIRA, 1961): sobre ser fiel; não tocar; expressão que supõe a recusa em contactar com algo que se deve evitar; o mesmo que: “Se isso tinha veneno, não me matou”. Vai pr’ Argel (fonte oral, Madeira): expressão usada desde os tempos remotos da pirataria e dos saques, em que a população do arquipélago era levada como refém para a Argélia e mais tarde pedido o seu resgate; alguns idosos costumam usar esta expressão quando se sentem importunados por alguém ou por coisa que querem que vá para longe. Conselhos Amarrem as filhas que os cabritos andam à solta (CALDEIRA, 1961): expressão que se ouvia algumas vezes quando as raparigas eram imprudentes e queriam sair com rapazes (“cabritos”). Come o que te dão e não sejas refilão (PITA, 2003): exortação a aceitar com humildade o que se recebe. Destino A cara não pode esconder o qu’a gente sente cá dentro (GOUVEIA, 1976): a face espelha o sofrimento, a angústia. A terra alheia nunca foi má madrasta p’ra quem quer andar à boa vida (GOUVEIA, 1976): sobre aquele que quer andar na boa vida nos terrenos de terceiros. Esperteza Olho atrás, olho adiante (CALDEIRA, 1961): ter cautela, estar precavido; v.g., “Lá com aquele tipo é preciso ter olho atrás, olho adiante”. Inveja Que d’inveja se comia: a expressão perpetua-se no romanceiro e nos dizeres populares. Na literatura que faz o retrato do mundo rural, como acontece em Horácio Bento de Gouveia, diz-se que entre os madeirenses havia “muita imveja im riba do lombo”, e que a gente “arrepelava-se de inveja” (VIEIRA, 2016). Como refere Alberto Vieira, “na ilha, a inveja diz-se e a invejidade vive-se”: trata-se de uma maneira de ser e de estar; segundo o autor, é uma característica comportamental, também conhecida como “dor de cotovelo”, que se torna mais notada nos espaços pequenos, onde ninguém larga os seus hábitos, usos e costumes, atitudes e sentimentos (VIEIRA, 2016, 26). Este autor cita ainda o Re-nhau-nhau (10 abr. 1952): Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa (VIEIRA, 2016). Outros temas Andas vestida como uma rainha e descalça como uma galinha (fonte oral, Porto Santo): andar bem vestida, não tendo grandes posses. De rir e mijar gravetos (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): diz-se daquilo que desperta hilaridade; v.g., “Aquele estuporzinho diz coisas de rir e mijar gravetos”. Deixa-te de cramar (fonte oral, Madeira): expressão idiomática endereçada a quem está sempre a reclamar ou a queixar-se. Está um burro para cair pela rocha abaixo (CALDEIRA, 1961): diz-se quando acontece uma coisa boa de forma inesperada. Estar como o Belchior, cada vez pior (MILHANO, 2008; MOREIRA, 1996): expressão muito usada em Porto Santo, que faz alusão a Belchior Baião. “Belchior Baião, de linhagem nobre, foi o primeiro deste apelido que se estabeleceu na Madeira. Esta família teve um morgadio no Porto Santo e era padroeira duma capela na igreja paroquial, que ainda é conhecida pela capela da morgada” (SILVA e MENESES, 1998, 115). Maria, a “Atalaia”, tem o vestido mais comprido que a saia (CALDEIRA, 1961): diz-se à laia de crítica; quando se vê a roupa interior de alguém; v.g., “Olha-me pr’aquilo! Parece a Maria d’Atalaia!”. Para quem é, bacalhau basta (CALDEIRA, 1961): expressão que reflete menosprezo por alguém; diz-se quando não se quer dar a alguém mais do que aquilo que se julga que essa pessoa merece. O relógio da Sé é que se repete (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961), diz-se quando não se está disposto a voltar a dizer ou a fazer a mesma coisa. O mesmo que: O relógio da Sé é que dobra (CALDEIRA, 1961). A vida de João p’ra rua é comer, dormir e andar na rua (CALDEIRA, 1961): aplicado às pessoas que são mandrionas. Meteorologia e tempo Abril, manguil, canzil, maio, mamaio, marangaio, São João, São Joanás é o mês que nasce o nosso rapaz (PITA, 2003): dito de mulher grávida a explicar o estado adiantado da sua gravidez. Chuva em abril é a salvação da ilha (fonte oral, Porto Santo): sobre a importância da chuva para a subsistência. Sol e chuva, feiticeiras a se pentear (NUNES, 1965): diz-se quando simultaneamente ocorrem chuviscos, faz sol e aparece o arco-íris. Tenha calma. Antes da meia-noite não lhe vai dar o sono (fonte oral, Porto da Cruz): dar tempo ao tempo; não ter pressa. Profano e religioso Assim se canta na Sé. Uns assentados, outros de pé (SOUSA, 1950): sobre a ordem das coisas; o mesmo que dizer: “Ah! Assim, sim, está correto”. Dia de varrer os armários (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): referência ao dia 15 de janeiro, dia de S.to Amaro, Santa Cruz, Madeira, em cujos festejos, no mês de janeiro, se encerra o tempo natalício; e.g., “Venha a minha casa no dia de Santo Amaro, que é o dia de varrer os armários”. O mesmo que: Dia de S.to Amaro, varre os armários (fonte oral, Madeira). Sorte Criou fama e deitou-se na cama (fonte oral, Madeira): sobre quem teve êxito em alguma coisa e, depois disso, começou a levar uma vida ociosa. Desde que o mundo é mundo sempre houve ricos e pobres (GOUVEIA, 1976): sobre o destino. Livres de semear, prisioneiros das consequências (fonte oral, Madeira): sobre o uso da liberdade e as responsabilidades dele decorrentes. Não vejo moita por onde saia coelho (CALDEIRA, 1961): diz-se quando não há – ou não se vislumbra – qualquer possibilidade de se conseguir o que se quer. Quem falou pagou (NUNES, 1965): quem fala para desacreditar outrem, acaba por sofrer as consequências disso. Muitos dos provérbios e ditos populares apresentados, e atestados pelas recolhas orais realizadas, foram extraídos de obras publicadas, que constituem um património de grande valor. Convém salientar também que, no plano da linguística, esta amostra tem em consideração aquilo que especialistas de diversas épocas referiram. Em 1950, Cabral do Nascimento afirmava que, relativamente à língua, existia um “antepassado comum” (NASCIMENTO, 1950, 205), o que, anos mais tarde, foi aferido de igual modo por Lindley Cintra e Celso Cunha, que acrescentam: “os dialetos falados nas ilhas atlânticas […] são um prolongamento dos dialetos portugueses continentais” (CINTRA e CUNHA, 2005, 19). Muito antes, no séc. XVIII, Raphael Bluteau descrevera da seguinte forma a sua admiração pela língua portuguesa: “Da tua impaciência conheço, que és Português; como tal não podes deixar de estranhar, que se arrojasse um estranho a compor o teu idioma, o Dicionário. Entendamo-nos Amigo, e entende, que isto, que te parece arrojo, é veneração” (BLUTEAU, 1712, I, 33).   Manuel Justino de Freitas Rodrigues (atualizado a 15.02.2018)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares

prostituição

Define-se como troca de favores sexuais por dinheiro. Sendo o Funchal uma cidade portuária, cedo se tornou visível a prática desta atividade na ilha da Madeira. “Junto ao mar” se alimentava o negócio, sobretudo à conta das embarcações de passagem que aportavam à baía, havendo registos de “molheres”, “mancebas” e “meretrizes” desde o séc. XV. Por outro lado, documentos oficiais permitem-nos verificar a importância desta atividade para o entorno do porto. Apenas alguns exemplos: a propósito das estimativas das receitas para a construção da cerca do Funchal, em 1493, foi determinado que “toda a molher de partido que for achada na ylha paguara trecentos reaes e pode valer por anno seys mil rs” (SILVA, 1995, 705). Por esse tempo, estariam contabilizadas cerca de 20 meretrizes no Funchal e, em 1495, numa representação à Câmara, pedia-se que a mancebia “fosse tirada junto do mar, porque os de fora saltavam com as mancebas, faziam arruído e se acolhiam aos batéis e a justiça não os prendia” (ABM, Vereações, n.º 1301, fl. 78). As vereações da Câmara Municipal do Funchal referem ainda o facto de “ali terem acontecido mortes de homens”, o que indicia alguma violência naquele meio. Das outras referências a “mancebia”, destaca-se o facto de os homens bons terem dedicado algum tempo, nestas reuniões, a procurar o melhor lugar para a instalação de uma mancebia, mercê feita por El-Rei a Martim Mendes. É então decidido, na vereação de 12 setembro de 1496, que “Martim Mendez de Vasconcelos ffaça mancebia em Valverde, na rua Direita”, e “que a dicta rrua sse tape da banda da rua e lhe faça as portas contra a rribeira e que ffaça as casas na dicta mancebia” (COSTA, 1995, 540). Por outro lado, há referência a algumas casas que agasalhavam os escravos e que também funcionavam como antros de prostituição, ou lugares de jogo, ou de “desonestidades”. Aliás, roubos, furtos, jogos ilícitos e prostituição faziam parte do quotidiano dos escravos forros. No foral da capitania do Funchal, datado de 6 de agosto de 1515, o Rei D. Manuel estabeleceu, com clareza, que todo aquele que fosse apanhado na “mancebia com armas, assim de dia como de noite, perdesse as armas e pegasse de pena 500 reis, e que todo o homem casado que se provasse ter mancebia ‘theuda e mantheuda’ pagasse a quarentena de metade da fazenda que tivesse” (SILVA e MENESES, 1984, III, 158). Giulio Landi, na sua Descritione de l’Isola di Madera (1530), associou-lhe três pragas – ratos, pulgas e meretrizes. A Ilha parece, então, por este tempo, estar conotada com falta de higiene e desregramento de costumes: Giulio Landi conta de uma velha cortesã ali existente e de relações escandalosas entre uma mulher branca e um escravo negro. Nas posturas da Câmara, aprovadas em meados do séc. XVI (por volta de 1550), fica estabelecido que “nenhuma mulher solteira que ganhar dinheiro por seu corpo publicamente não viva entre as casadas sob pena de quinhentos reis viverão nos lugares limitados convém a saber Beco detrás da cadeia a Rua que vai ao longo da Ribeira da ponte da cadeia até à travessa de Pero Gonçalves cavaleiro e no cabo do calhau na Rua do Monteiro e Rua adiante e nos becos de Joham Seraiva e de dom Joam”, o que indicia alguma preocupação em preservar as famílias do contacto com esta prática, delimitando os locais das “mancebias”, muitas vezes designando o lugar de residência ou de serviço das prostitutas (ABM, Posturas, liv. 1685, fls. 10-14). As mulheres que se dedicassem à prostituição incorriam num pecado de tal modo grave que o sacramento da confissão não o absolvia. A devassidão conduzia à excomunhão, conforme o texto das Constituições Synodaes do bispado do Funchal: “ainda que as mulheres públicas por seus maus costumes, e impenitentes corações se não hajam de absolver, são todavia obrigadas pelo dito tempo da Quaresma a confessar inteiramente todos seus pecados, dos quais os confessores as ouvirão, declarando-lhes que não vão absoltas, e admoestando-as que se apartem do estado de condenação em que estão, e se convertam ao Senhor e não cumprindo assim, incorrerão nas ditas penas postas aos não confessados” (BARRETO, 1585). A questão da luxúria voltará a colocar-se, ao longo dos séculos, de forma mais ou menos evidente. Rui Carita cita uma ordem do prelado diocesano, datada de 1725, segundo a qual todo aquele que se “entregava ao vício”, muitas vezes pela miséria – e incluem-se aqui outros grupos para além das “meretrizes” da cidade, i.e., os escravos e escravas (“pretos e pretas cativos”), assim como as amas dos expostos –, estava obrigado a pagar 1050$000 réis “de condenação, cada uma [cada mulher] pelo seu trato”. A queixa da Câmara contra esta ordem de D. Fr. Manuel Coutinho, também citada pelo já referido autor, acrescenta que, para poderem pagar tal condenação, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus, como muitas declararam no palácio episcopal ao escrivão da câmara” (CARITA, 1999, 250). Um alvará de setembro de 1726 mostra a preocupação do bispo relativamente à entrada de “mulheres suspeitas” na Ilha, ordenando ao meirinho geral, escrivão de armas ou qualquer outro oficial que notificasse da resolução todos os capitães e proprietários de embarcações, sob pena de excomunhão e 50 cruzados. As Constituições Synodaes do Bispado do Funchal preconizavam três admoestações para as mulheres que publicamente viviam mal. Se não se emendassem, a pena podia ir até ao desterro. Sabe-se que, ao longo do séc. XVIII, com a cidade do Funchal cada vez mais aberta ao mundo, a prostituição aumentou. Houve, então, algum cuidado na delimitação das ruas públicas, sempre muito concorridas, numa cidade muito frequentada por marinheiros. Não sendo a prostituição exclusiva da cidade, era, porém, na baixa que mais prostitutas se encontravam, sobretudo nas ruas “da área do calhau”. Nas vereações de novembro de 1725, era “determinado a todas as mulheres mundanas e públicas, que se achassem a morar no centro da cidade, pelo muito escândalo que dão a esta República”, que se deslocassem para “o Valverde”, um quarteirão acima da R. do Bom Jesus. Sabe-se, ainda, de “furtos e desonestidades” num “bequinho” entre o beco do Forno e a ribeira, denunciado pelo P.e Manuel Rodrigues Faleiro, cura da Sé, em 1707. Sabe-se, ainda, que no beco da Malta “assistem as mulheres públicas” e se praticam “atos torpes” (CARITA, 1999, 250). Rui Carita refere, ainda, situações de ações que, nomeadamente ao longo do séc. XVIII, nos indicam uma das formas de angariação de clientes. Afirma o autor que uma das formas de se intrometerem com os passantes era cuspirem-lhes em cima, sobretudo quando aqueles não lhes prestavam a atenção desejada. Apresenta, como exemplo, o caso de Domingos Caetano Pereira de Melo (1776), que, à custa do processo que resultou do facto de ter ferido algumas mulheres com a sua espada, teve de “se passar” para Lisboa e daí para Espanha. Para que pudesse regressar à Ilha, duas das queixosas, cujos nomes são omitidos, de forma a que “pelo nome não percam”, comprometeram-se a perdoar-lhe as ofensas corporais, mediante determinada quantia (Id., Ibid., 250). De registar a expressão “que pelo nome não percam”, usada para que os nomes não figurassem nos documentos oficiais, o que nos leva a colocar duas hipóteses: a vergonha e/ou a mancha de quem os escrevesse ou o facto de as ditas queixosas não serem identificadas como “meretrizes”, sendo elementos da sociedade. Está ainda documentada a atitude paternalista do Gov. João António de Sá Pereira (1767-1777): em abril de 1770, pede ao vigário Bentos Gomes de Jardim “a diligência de reduzir ao matrimónio” Isabel de Melim, natural do Porto Santo, mas a levar uma vida dissoluta no Funchal, adiantando, para o efeito, 40$000 réis. Igual procedimento tem relativamente a Josefa Joaquina Rosa de Almeida, que “levava uma escandalosa vida e depravado procedimento”, presa na cadeia do Funchal e transferida para Santana, “para sossego daqueles que lhe frequentam a comunicação”, dadas as “muitas visitas” que recebia. Ainda relativamente ao séc. XVIII, um documento de um processo decorrido no Tribunal Eclesiástico fornece uma das muito poucas informações sobre os preços praticados: assim, quando se acusa um frade foragido das Canárias de procurar prostitutas, menciona-se o montante de um tostão atirado à prostituta em pagamento dos serviços, enquanto, um pouco mais adiante, se refere o valor de cinco tostões prometidos a uma escrava, caso ela aceitasse manter relações com o dito frade. Estes dados permitem verificar que as quantias atribuídas ao pagamento do ato variavam substancialmente de acordo com o estatuto da destinatária (TRINDADE, 2012, 106). Mais para o fim do século, a atitude da Igreja madeirense parece alterar-se: D. José da Costa Torres, num documento avulso de 1796, propõe a angariação de fundos para construção de um recolhimento de prostitutas, um lugar “em que possam viver cristãmente fazendo penitência de seus pecados, e ocupando-se em trabalho honesto. […] uma boa obra, muito meritória e agradável a Deus” (Id., 1999, 203). Este bispo do Funchal (1784-1796) apela à Rainha, no sentido de mandar retirar da Madeira o Corr. António Rodrigues Veloso de Oliveira, sob vários pretextos, entre os quais a sua falta de esforços para reprimir a prática da prostituição na cidade do Funchal. Nas devassas de 1794, 1795 e 1813 são acusados 18 crimes de prostituição, todos cometidos por mulheres, sendo um outro pecado contra o 6.º mandamento, “não cometerás adultério”, a mancebia, praticado por 143 mulheres e 152 homens. Em 1813, duas devassas são claras quanto ao “grandíssimo número de públicas e escandalosas prostitutas” (Id., Ibid., 139). Uma outra questão surge ligada à prostituição: a colonização do Brasil. No princípio do séc. XVII, eram organizados embarques de pequenos grupos de jovens órfãs para casarem no Brasil e, deste modo, povoarem o espaço. Não sabemos, contudo, se havia jovens madeirenses nestas condições. Sabemos, apenas, que a Coroa terá apoiado um recolhimento para apoiar estas donzelas à chegada, evitando que a incerteza do futuro que as esperava as fizesse cair na indigência e na prostituição. O assunto “Brasil” volta a ser tratado no séc. XIX, num momento difícil, “uma crise medonha”, numa reunião da Junta Geral do Distrito, no dia 4 de maio de 1854, pela voz de António Gil Gomes. Nesta “malfadada terra sem governo que lhe dê vida”, onde se verificam “cenas dolorosas e de amarguras por que têm passado os Madeirenses, que desconsolados gemem no seu drama de agonia desde a fatal época de 1852”, apresenta algumas propostas no sentido da “salvação comum […] a salvação desta bela porção do território português, à qual estamos presos pelos vínculos mais sagrados”. A primeira proposta é de carácter moral e reporta-se ao tráfico da escravatura branca, “esse tráfico de sangue”. O deputado acusa a “vergonha das vergonhas” da emigração ilegal e refere-se especificamente a mulheres e ao Brasil, assim: “que trafica escandalosamente com as mulheres, convertidas em objetos comerciáveis, fazendo das cidades uns lupanares de abominável devassidão, como nós temos presenciado no nosso Funchal que deve ser limpo desta praga, e como temos notícia de estar acontecendo no Brasil onde a beleza da mulher imigrante é posta em hasta pública, para fins de brutal sensualidade!” (ABM, Governo Civil, liv. 269, fls. 98-101v.). Na verdade, e mesmo durante o séc. XX, sobretudo no princípio, a emigração clandestina foi um dos motores da prostituição de madeirenses no Brasil. Uma monografia sobre gentes de Gaula que embarcaram para a terra prometida indica-nos casos de moças que, para pagarem a passagem, se fizeram criadas de servir, e que sobreviveram graças à prostituição exercida nas baiucas e pensões da cidade de Santos (FREITAS, 2000, 248). Outros documentos, assim como notícias de jornal, dão conta de casos de prostituição em terras de acolhimento de emigração. É o caso de uma nota publicada no Diário de Notícias de 30 de julho de 1889, referente à colónia portuguesa das ilhas Sandwich, em que se transcreve o Luso Hawaiano, jornal que se publicava em Honolulu, que apresentava a “decadência moral” da comunidade, a perda de todas as noções de moralidade e o lançamento na prostituição das filhas pelos pais. Na Ilha, ao longo do tempo, continuou a ser à volta do porto que a prostituição se operava com maior relevância, sobretudo nas alturas de crise económica. Dizia-se que, na Madeira, havia gente a morrer de fome. Em 1847, muitos mendigos da cidade foram recolhidos, à força, num armazém da Fazenda Nacional, sito à R. dos Medinas, para onde também tinham sido afastadas as prostitutas por ordem da Câmara, de 1838. Sabe-se, porém, dos poucos resultados deste afastamento, na medida em que há registos de que elas continuaram a escandalizar as boas famílias, nomeadamente no teatro, que estavam proibidas de frequentar. Vários autores, efetivamente, relacionam o aumento do número de meretrizes com os momentos mais dramáticos da história do arquipélago: as primeiras décadas do séc. XVIII, quase todo o séc. XIX e os primeiros decénios do séc. XX. Por outro lado, e para além da necessidade de sobrevivência – um dos grandes móbiles da prostituição –, às crises económicas costumam juntar-se outras, nomeadamente de ordem moral e social, bem patentes na quantidade de expostos nas misericórdias e conventos e no engrossar das fileiras de mendigos e prostitutas. De acordo com António Loja, citado por Rui Nepomuceno, “as instituições ruem”, referindo-se ao momento da crise vitivinícola, o mesmo acontecendo em outros momentos. Essa é também a interpretação de Rui Nepomuceno, que associa falências, despedimentos, assaltos, furtos, violência ao aumento do número de prostitutas na Ilha (NEPOMUCENO, 1994, 209). Nas Pastorais do bispo Manuel Agostinho Barreto, prelado do Funchal entre 1877 e 1911, é clara a preocupação com este problema. Aí se critica o “vício que emurchece a flor da vida, arrancando a pudicícia da alma e o verniz das faces” e se afirma serem poucos aqueles que “estigmatizam a escandalosa e pública prostituição, os fundos golpes dados na moral dos esposos e dos filhos, a purulenta relaxação dos costumes” (BARRETO, 558). Depois da aluvião de 1856, as meretrizes começaram a estabelecer-se em ruas que, dantes, pertenciam a famílias ilustres da cidade, ou, mesmo, à Escola Lancastriana – as ruas do Ribeirinho de Baixo e dos Medinas. As crianças são, neste tempo, uma preocupação: “Acossados pela necessidade e dificuldade da existência, os proletários impelem os filhos para a rua muito antes que estes estejam preparados para o conflito da vida; e o resultado é a vagabundagem, a mendicidade e a prostituição em uma proporção assombrosa e deplorável” – pode ler-se no Diário de Notícias de 17 de agosto de 1889, sob o título “Protecção e educação ás creanças”, tema desenvolvido na rubrica “Assuntos gerais” (“Protecção e educação ás creanças”, DN, 17 ago. 1889, 1). O mesmo diário, datado de 5 de janeiro de 1896, num artigo sobre “Hygiene publica”, dirigido ao visconde de Cacongo, e a propósito da necessidade de melhorar as ruas da cidade, refere alguns dos “vícios sociais e físicos” da “população infeliz” do Funchal: “o crime da embriaguez, a prostituição, a escrófula e o raquitismo” (“Hygiene publica”, DN, 5 jan. 1896, 1). A questão sanitária é um dos aspetos que, desde o séc. XVI, preocupa as autoridades civis e religiosas. O contágio e a propagação de doenças como a sífilis tornam-se, desta forma, um problema de saúde pública. Parece, assim, que esta preocupação é a verdadeira razão pela qual surge, pela mão de Pina Manique, em Lisboa, a 27 de abril de 1781, a obrigatoriedade da inspeção das meretrizes. Na Madeira, porém, apesar das recomendações de Mouzinho de Albuquerque, em 1843, e do Cons. José Silvestre Ribeiro, em 1846, só em 1854 estas mulheres estão obrigadas a vigilância médica. A preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis foi, deste modo, uma constante, conforme se pode inferir das informações seguintes: a 5 de novembro de 1834, a Câmara terá recebido da parte do prefeito da província a decisão de pagar ao Hospital da Misericórdia o tratamento das mulheres públicas entre 21 de outubro e 4 de novembro daquele ano; em 1836, no dia 8 de março, o Governo mandou entregar 1:000$000 réis à Comissão da Misericórdia do Funchal, para ajudar o curativo das meretrizes afetadas por doenças venéreas, assim como os pobres que as tivessem apanhado, sugerindo mesmo que a referida Comissão se socorresse de subscrições para angariar os meios que fossem necessários para evitar a propagação das doenças (ABM, Governo Civil, liv. 1, 2.ª repartição). Em Lisboa, são produzidos regulamentos, em 1858 e 1865, que servirão de modelo a outras cidades do país. Esta regulamentação parece indiciar uma relativa compreensão pública pelas razões que teriam levado muitas mulheres à prostituição – sempre entendida como uma atividade feminina. O discurso legislativo, “tolerante”, reúne preceitos morais, preocupações sanitárias e um esforço de regular a atividade. É assim que, desde meados do séc. XIX, a prostituição, reconhecida como profissão, é permitida em casas “toleradas” – casas autorizadas pelo Estado, sujeitas a periódicas inspeções sanitárias. No entanto, há vozes que se levantam, não propriamente contra a regulamentação desta atividade, mas contra o imposto do consumo: nesse Estudo Offerecido à Comissão do Protesto Nacional na Reunião Popular Realisada em 9 de Outubro de 1906, fala-se na (falta de) lógica da moral oficial que consente, regula e tributa a prostituição, um “vício, e dos mais perigosos”, explicando o autor que o Estado considera esta prática um mal necessário, impossível de erradicar (LIGA DE DEFESA DOS INTERESSES PÚBLICOS, 1906, 18). Na Madeira, a 13 de fevereiro de 1908, o Diário de Notícias anuncia um crime de morte perpetrado contra M.ª Virgínia dos Passos, “mulher de fáceis costumes”, procurada na sua residência por mais de um homem. O teor da notícia lança algumas pistas sobre um dos motivos pelos quais algumas mulheres enveredavam pelo caminho da prostituição: “Dado o primeiro passo errado, a desgraçada não teve mão em si, deixando-se arrastar no caminho vicioso e desregrado que a levou à prostituição e à morte”. Consta que terá tido um filho, “fruto dos amores ilícitos da mísera, e que ela enjeitou para a freguesia da Ribeira Brava” (DN, 13 fev. 1908, 2). Vivia na mais completa miséria. Em 1900, o Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade de Lisboa segue o Regulamento de 1865 e inicia uma série de outros regulamentos para outras cidades do país. Conhece-se a referência a um para a cidade do Funchal, datado de 22 de março de 1886, que há de ser revogado por um novo, também específico, assinado pelo governador civil, o Cor. José Maria de Freitas, em 1931, e confirmado a 1 de julho de 1944. Este Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal está dividido em 7 capítulos e 76 artigos: “Toleradas”, “Registo”, “Cancelamento”, “Casas de tolerância”, “Inspeções sanitárias”, “Disposições penais” e “Disposições gerais”. O texto começa por definir o que são meretrizes: todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição. De entre estas, havia aquelas que se achavam inscritas no registo policial, denominadas toleradas, podendo viver em domicílio próprio ou em comum com outras, sob direção de uma “dona da casa”. Estas “casas” não poderiam ficar situadas nas proximidades das igrejas, das escolas, dos jardins públicos, das residências das “pessoas honestas”, nos largos, praças ou ruas de muito trânsito ou, ainda, em rés do chão ou lojas. Entre outras restrições, como ausentar-se de casa por determinados períodos ou mudar de casa sem informar o comissariado de polícia, estavam proibidas de sair à rua vestidas de forma indecente, abrir janelas para a rua, permanecer à porta ou à janela de casa, escandalizar o público com palavras, gestos, ou atos e provocar quem passasse, atentando ao pudor, demorar-se para além do tempo necessário nas tabernas, botequins ou em quaisquer outros estabelecimentos. O artigo 10.º deste regulamento reporta-se à interdição de ter, em casa, filhos ou menores com mais de dois anos, assim como de receber menores de 18 anos. Muitas vezes, quando isto acontecia, havia denúncia e eram instaurados processos às “diretoras das casas”. No arquivo do Tribunal da Comarca do Funchal, um processo de 17 de outubro de 1925 dá conta, ao presidente do Tribunal da Tutoria da Infância da Comarca do Funchal, de um caso destes, em que, nos termos do § 4 do art. 4.º e do art. 12.º do dec. n.º 10.767, de 15 de maio, se prova que a menor de 14 anos, Antonieta Corrêa, filha de Sara Correa, moradora à rua Alferes Veiga Pestana, n.º 49, frequenta a casa de passe de que é diretora Filomena de Freitas, de 65 anos, viúva, sita à rua Latino Coelho, n.º 4 desta cidade, levada por Maria das Neves, mais conhecida por “barbuda”. A participação foi feita por uma concorrente, Amélia Augusta, que acusou Filomena de Freitas de consentir a entrada, na mesma casa, de menores de 16 anos. Um outro processo dá-nos conta de uma denúncia similar. Da análise destes processos se infere o nível socioeconómico destas meretrizes, a avaliar pelo das diretoras. São analfabetas, pelo que são as testemunhas presentes no Tribunal que assinam as declarações e as duas têm, apensos aos processos, atestados dos regedores das suas paróquias de residência, afirmando a sua extrema pobreza, isentando-as de pagar os 200 escudos de multa a que foram condenadas, por se terem provado os factos. As toleradas estavam impedidas de exercer a prostituição em hospedarias, lugares públicos ou em casas clandestinas, não obstante termos encontrado, na Matrícula das Meretrizes, observações como: “Hotel Benfica”, “pensão Moderna” ou “foi viver para casa particular, sob proteção de um indivíduo”. Percebe-se, pois, que a grande preocupação deste controlo apertado era a transmissão de “moléstia sifilítica, ou venérea” (art. 14.º). As meretrizes eram, então, inscritas num livro do comissariado da polícia, voluntária ou coercivamente, depois de realizado um interrogatório acerca da sua identidade – nome, filiação, naturalidade, estado, profissão anterior, instrução, sinais característicos, causas da prática da prostituição, devendo estes dados ser assinados pela própria ou por duas testemunhas, no caso de esta não saber escrever. No entanto, vistos os livros, não encontramos qualquer referência à profissão anterior ou às causas que terão levado estas raparigas para a prostituição. Quanto à instrução, na linha das “Observações”, há, a lápis, a inscrição “analfabeta”. Nenhuma das meretrizes assina a sua matrícula, sendo todos os verbetes assinados pelo comissário da polícia. Fora desta inscrição, deveriam ficar as menores de 18 ou de 21 anos, quando reclamadas pelos pais, maridos ou tutores. Por este regulamento se sabe da existência de casas de regeneração, entendidas como lugares onde são internadas as menores de 21 anos de nacionalidade portuguesa. Um processo judicial datado de 1935 dá conta de um caso destes: uma menor de 17 anos confessou frequentar casas suspeitas “a fim de ter relações com homens para ganhar a sua vida”. Na sentença pode ler-se que, “de acordo com o art. 7.º foi aconselhada a procurar vida honesta e prometendo a mesma deixar de ser prostituta e ir viver para casa de sua mãe e que se voltasse ao exercício da prostituição seria julgada como desobediente e mandou que a mesma fosse posta em liberdade” (ABM, Juízo de Direito da Comarca do Funchal, Autos Crime de Corpo de Delicto, 1935, 1.ª vara, 1.ª secção). No livro das meretrizes, encontramos, entre 1914 e 1924, 21 mulheres com idades inferiores a 18 anos. Não conseguimos apurar a razão pela qual puderam ser matriculadas com idade inferior à que a lei preconizava. Quanto às estrangeiras, deveriam ser repatriadas e, caso regressassem e continuassem a atividade, deviam ser presas e julgadas como desobedientes. A verdade, porém, é que se encontram muitas estrangeiras nas listas de meretrizes que residem nas casas toleradas, sobretudo espanholas e francesas que nos parecem ser “cabeças de cartaz” das casas. São, muitas vezes, governantes e têm, na generalidade, idades superiores às portuguesas. Um olhar sobre as fotografias que alguns livros ainda possuem, apesar de muitos retratos terem desaparecido, sido descolados ou cortados – situação para a qual não encontramos explicação –, permite-nos também perceber que se trata de mulheres com um outro tratamento e com uma forma de vestir mais cuidada e, quiçá, mais arrojada: decotes maiores, plumas e adereços diferentes das portuguesas. Num universo de 792 inscritas, 73 são estrangeiras, sobretudo espanholas, 43, e francesas, 19. Esta inscrição era gratuita, assim como um livrete sanitário atestando o bom estado de saúde da tolerada. Um dado deste regulamento faz-nos acreditar que, em alguns casos, a situação destas mulheres podia ser alterada e os registos cancelados ou suspensos: em caso de casamento, de ausência do país, de reclamação por parte de algum parente, de menoridade, de prova do abandono da prostituição, de mudança de residência ou de passagem a “teúda e manteúda”, quando se tornavam exclusivas de um determinado homem, réplicas das verdadeiras esposas, muitas vezes com o conhecimento das mesmas, a quem era montada casa e de quem tinham filhos. Já há indicações desta situação nas devassas das visitações, nomeadamente a que foi feita à freguesia de Santa Maria Maior, em 1813 (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, Devassa…, 1813). Qualquer destas situações era suscetível de ser alterada e, se a mulher recaísse na prostituição, seria reinscrita, coercivamente, sem mais formalidades. Um outro aspeto destas regras diz respeito às casas de tolerância, divididas, por lei, em três: casas sob a direção de uma dona da casa; casas em que as toleradas viviam em comum; casas de passe, onde as toleradas iam exercer a prostituição. Essas casas podiam ser sujeitas a inspeções frequentes, de forma a verificar as condições higiénicas, “a mobília e os utensílios indispensáveis ao bom regime e asseio” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 22.º). Nessas casas, estava proibida a venda de bebidas alcoólicas. Entre 1888 e 1937, há registo, nos livros da Polícia, de 56 casas toleradas, com alvará, com o número de meretrizes que as dão como residência, fora outras casas, de menor dimensão, que têm o nome da dona da casa. Note-se que as casas mais importantes tinham nomes, sendo assim identificadas nos livros de registo: Casa da Varanda, Casa dos Envergonhados, Casa Nova, Casa Americana, Casa Encarnada, Palácio de Cristal, Casa do Cevada (ABM, Polícia de Segurança Pública, Registo de Alvarás de Casas Toleradas, liv. 47). As infrações eram punidas com multas pecuniárias que iam desde 10$00 a 100$00, podendo mesmo ir até à cassação das licenças e dos alvarás de funcionamento das casas. Para as casas de tolerância abertas sem as respetivas licenças, a multa ascendia aos 300$00. As casas eram dirigidas por uma governante que, em muitos casos, ia mudando de casa, o mesmo acontecendo com a maioria das mulheres que, geralmente, não permaneciam muitos meses no mesmo lugar. As “donas de casa”, ou “diretoras”, como aparece nos processos do tribunal, tinham a obrigação de zelar pela segurança das “suas toleradas”, não podendo explorá-las com empréstimos de dinheiro a juros ou com contratos que, de algum modo, as prejudicassem; não permitindo o acesso a “estranhas” ao serviço da casa ou de indivíduos alcoolizados; e visavam ainda o respeito pelos restantes habitantes da rua. Por isso, ficavam obrigadas a não consentir em jogos, danças, canto, toques de qualquer instrumento ou qualquer divertimento suscetível de produzir ruído, a não permitir o acesso a menores de 18 anos, de ambos os sexos, sob qualquer pretexto. Um dado interessante é relativo ao facto de ter de ser comunicada à polícia a tomada de criadas da parte das “donas” das casas: estas tinham de estar devidamente identificadas e não podiam ter menos de 45 anos de idade (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 61.º). O estabelecimento dos preços era, também, objeto de regulação, quer por parte do aluguer dos quartos das toleradas, quer dos serviços prestados, havendo, para o efeito, “em cada quarto uma tabela bem visível com os preços por visita ou dormida, sobre os quais não poderá ser exigida maior importância” (Ibid., art. 35.º). Todas as toleradas eram sujeitas a inspeções médicas. Uma ficha com fotografia ficava arquivada no dispensário, em dia, sendo nelas anotadas as informações relativas à saúde destas mulheres: baixas ao hospital, tratamentos, análises, etc. Eram obrigatórias e gratuitas, ficando apenas dispensadas as toleradas grávidas de sete ou mais meses, as convalescentes de doenças não contagiosas, as criadas e as donas das casas de tolerância que já tivessem completado 45 anos de idade. Podiam, ainda, ser solicitadas inspeções ao domicílio, custando, em 1944, 50$00 por cada mês de visitas, e 5$00 por cada visita do médico a casa, em caso de doença. Há informação de um dispensário ou posto médico, situado na R. Júlio da Silva Carvalho, que, no mesmo documento – um processo do Tribunal Judicial do Funchal (n.º 638/1935) –, aparece localizado na R. do Carmo. De referir que uma das testemunhas deste processo de agressão de uma tolerada, “pensionista do chamado Palácio de Cristal, à Rua dos Medinas”, a uma outra, tolerada também, era um criado do posto médico onde se deu a agressão, “por ocasião da Inspeção Sanitária feita semanalmente às meretrizes” (Tribunal Judicial do Funchal, proc. n.º 638/1935). Do registo policial, percebemos que a algumas meretrizes era concedida a possibilidade de serem revistadas no seu domicílio, pagando, para isso, 11$25, em selos constantes da respetiva folha. Quando grávidas, ficavam isentas de “revista” e os filhos eram entregues à ama geral dos expostos, que os dava a criar, conforme deliberação da Câmara; e.g., em sessão de 2 de julho de 1896, a filha da meretriz Maria Lasly, nascida a 23 de junho de 1896, “foi dada a uma ama para criação”, sendo este apenas um dos casos referidos (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, n.º 1385). Uma multa de valor semelhante, acrescida de pena de prisão, acontecia quando qualquer mulher “não prostituída” ia para uma casa de tolerância “com falsas promessas de ser empregada noutro mister”. Nestes casos, a mulher era enviada à terra da sua origem e quem a recebera ou, de alguma maneira, tivesse sido responsável por tal facto, pagaria as despesas, a multa e a pena de prisão estabelecida pelo Código Penal, sendo, para esse fim, remetida ao juiz competente. O mesmo acontecia a qualquer indivíduo que procurasse lançar “no caminho da prostituição, qualquer mulher por coisas independentes da sua vontade, ou ainda por outra circunstância” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art.º 61.º). Estas multas eram enviadas ao Governo Civil do Distrito. Por outro lado, os indivíduos – homens ou mulheres – que auferiam lucros da prostituição eram julgados como vadios e entregues ao Governo. As casas de prostituição estariam concentradas na zona urbana – no Funchal, portanto. Por outro lado, os números oficiais das prostitutas registadas não representariam a totalidade do conjunto. Um estudo da época apresentou uma estimativa de 5276 prostitutas e 485 casas situadas sobretudo em Lisboa, no Porto, em Coimbra e em Évora. No caso da Madeira, e tendo apenas os dados constantes da Matrícula das Meretrizes da Polícia de Segurança Pública, sabemos que, entre 1914 e 1931, foram matriculadas cerca de 760 mulheres, provenientes de várias freguesias da ilha da Madeira, mas sobretudo de Portugal continental, faltando, assim, livros respeitantes aos outros anos, não nos permitindo uma contabilização mais apurada. No dito regulamento, há algumas ruas indicadas como “lugares exclusivamente habitados por toleradas”: R. dos Medinas – quase todas as casas –, Trav. da Malta, R. do Monteiro, Trav. João d’Oliveira, R. do Ribeirinho de Baixo, R. do Anadia, R. da Figueira Preta, tendo, de acordo com estudo de Abel Marques Caldeira, algumas dessas artérias desaparecido, por efeito da urbanização (CALDEIRA, 1964, 35). As casas toleradas detinham um alvará, havendo delas registo em alguns livros da Polícia. Dos dados disponíveis, registamos, entre 1918 e 1936, 226 licenças para casas toleradas. Em pleno Estado Novo, houve, então, a necessidade de ordenar, sistematizar e funcionalizar uma atividade com que era necessário conviver, pelo que regressou, ao menos em termos oficiais, o discurso moralista e higienista de Oitocentos. Por outro lado, os pagamentos de licenças, multas e inspeções sanitárias eram mais uma contribuição para o erário público. Isto depois de, nos anos 20, alguns sectores político-sociais se erguerem contra aquilo que consideravam ser a dissolução dos costumes, associando o jogo, a prostituição e o crime. Em 1949, uma lei sobre a propagação das doenças infetocontagiosas (lei n.º 2036, de 9 de agosto) veio impor restrições à prostituição, fechando as casas que podiam ser um perigo para saúde pública e proibindo a abertura de novas casas de prostituição, o que apenas veio contribuir para o aumento da prostituição clandestina. Até 1963, a prostituição era, deste modo, regulamentada, e incluía consultas e exames médicos às prostitutas. Foi a lei n.º 44.579, de 19 de setembro de 1962, que tornou ilegal a prostituição a partir de 1 de janeiro, tendo sido encerrados os bordéis e outros lugares similares. No entanto, a lei teve pouco efeito prático e, no novo Código Penal de 1983, foi parcialmente alterada. O art. 6.º do dec.-lei n.º 400/82, de 29 de agosto, que revogou o art. 1.º do dec.-lei n.º 44.580, fez desaparecer a criminalização das prostitutas. De acordo com a revisão de 2005 da legislação europeia, Portugal foi considerado abolicionista, no sentido em que não apresenta proibição ou regulamentação nesta área, quer para a atividade particular quer para a pública, apesar de existirem restrições alfandegárias controladas pela Polícia: há zonas onde a atividade não pode ser exercida e restrições relativamente aos locais onde a prostituição pode ocorrer, não podendo nenhuma casa ser arrendada para negócio de prostituição, incorrendo os seus proprietários no crime de lenocínio (art. 169.º do Código Penal). A prostituição individual feminina (a masculina só foi reconhecida muito mais tarde) era permitida, apesar de se proibir a sua exploração. Era possível acusar as prostitutas de ofensas à moral e à decência públicas, o que raramente acontecia, e o cumprimento da lei estava na mão das autoridades locais. Geralmente em Portugal, tal como noutros países onde a atividade sexual das mulheres antes do casamento não era bem vista, sobretudo antes dos anos 70, era prática comum os rapazes, muitas vezes acompanhados pelo pai, iniciarem a sua vida sexual com uma prostituta, “evitando que os jovens rapazes caíssem em fantasias e experiências homossexuais entendidas como perversas, viciosas e doentias”, como explicou Isabel Freire (FREIRE, 2013, 57). Nos anos 60, um caso veio abalar a sociedade madeirense. O “caso Sandra”, ainda no resguardo da lei, ficou conhecido como o “ballet rose” do Funchal, envolvendo, segundo testemunhos de indivíduos ligados ao Tribunal Judicial do Funchal, gente da alta sociedade funchalense. Depois de 1974, com a liberalização dos costumes, encontramos referências a prostituição em algumas ruas do Funchal, nomeadamente em prédios abandonados e devolutos: é o caso de uma denúncia na última página do Diário de Notícias do dia 5 de outubro, sob o título “Rua do Sabão: prostituição ao ar livre!”. O que esta notícia nos traz de novo é o facto de (d)escrever o modo de angariar os clientes: “Frente à desembocadura da Rua dos Murças, no esqueleto dum prédio incendiado e seus anexos (sem tapume) recebem os seus clientes, angariados normalmente por menores (rapazitos a quem oferecem uma comissão sobre a receita angariada)”. Por outro lado, descreve a falta de condições e higiene verificada “nos covis imundos de lixo desse prédio derrubado, onde fazem ‘o leito do amor’ com palha e cartões de caixas que antes embalaram mercadorias que não o seu corpo”. Em 1995, 1998 e 2001, a lei foi alterada, de forma a abranger a prostituição infantil e o tráfico humano. O mês de março de 1998 traz a lume uma série de informações sobre pedofilia na Madeira: estudos, denúncias, ligações a redes pedófilas estrangeiras; questões sociais; envolvimentos de personalidades da Ilha. Por entre as páginas de jornais, alguns relatos permitem localizar em Câmara de Lobos a origem de grande parte das crianças que se prostituem no Funchal, muitas com idade inferior a 12 anos e com conhecimento dos pais. As causas apresentadas ligam-se, sobretudo, a fatores de ordem socioeconómica: famílias numerosas, má gestão do orçamento familiar, consumismo excessivo, falta de valores. Dos locais assinalados para a prática ou o aliciamento dos jovens, destacam-se: o Funchal, algumas artérias e jardins da cidade, Câmara de Lobos, o bairro da Nogueira, na Camacha, e o Caniçal. Encontraram-se referências a boîtes ou casas de alterne, que o tempo foi fechando: o Fugitivo, o Campolide, o Royal, o Mambo, o Executive Club. Explica Lília Bernardes, num artigo sobre as noites da Madeira, que a realidade da prostituição tem novos contornos: “Faz-se em apartamentos com contactos por telemóvel. Mas a rede está montada” (BERNARDES, DN, 19 ago. 2009). Faz-se com madeirenses e com gente do mundo inteiro. A atividade é, ainda, exercida em diversos lugares da cidade: em determinadas ruas e praças, em casas de massagens e bares, em discotecas, residenciais e pensões que, de forma mais ou menos discreta, servem de bordéis. Em 2013, a resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 24/2013/M (publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, 1.ª sér., n.º 176, de 17 de dezembro de 2013) vem deliberar sobre a prostituição e a abolição da escravatura do séc. XXI, no seguimento do 63.º aniversário da Convenção das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração de Outrem (1949). Num dos considerandos, afirma-se com clareza que “em Portugal, e, em especial, na Região Autónoma da Madeira, a prostituição é um fenómeno de dimensão nacional e transnacional que vitimiza, por forma dramática, muitas mulheres e crianças, havendo múltiplas redes de tráfico atuando no território nacional”. Sendo manifestamente reconhecido que as principais causas da prostituição são a pobreza e a discriminação social das mulheres e das crianças, mais vulneráveis, deliberou-se a tomada de medidas de apoio às prostitutas e às vítimas de tráfico para efeitos de exploração sexual, nomeadamente linhas de atendimento, criação de redes de apoio e abrigo, adoção de estratégias de integração social das vítimas de prostituição.   Graça Alves (atualizado a 15.02.2018)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

portão dos varadouros

Antiga entrada da cidade, o portão foi construído em 1689, no tempo do governador D. Lourenço de Almada, na muralha defensiva do Funchal. A partir do séc. XIX, sobretudo quando a entrada da cidade passou para junto do palácio e fortaleza de S. Lourenço, foi perdendo progressivamente o interesse. Foi demolido, entre abril e maio de 1911, na sequência da implantação da República e das questões de poder entre os novos e os velhos grupos de republicanos. Acabou por ser reposto no mesmo local, quase 100 anos depois, em setembro de 2004, no quadro do início das celebrações dos 500 anos da cidade do Funchal. Palavras-chave: defesa; muralhas; República; anticlericalismo.   O portão dos Varadouros, antiga entrada da cidade, foi construído em 1689, no tempo do Gov. D. Lourenço de Almada (1645-1729) e encerrou aparatosamente a muralha defensiva do Funchal. Deixou de ter interesse, progressivamente, a partir dos inícios do séc. XIX, sobretudo dos meados da centúria, quando a entrada da cidade passou para junto do palácio e fortaleza de S. Lourenço, na sequência das obras do cais regional. Com a implantação da República e as questões de poder entre os novos e os velhos grupos republicanos, foi demolido, entre abril e maio de 1911. Acabou por ser reposto no mesmo local, quase 100 anos depois, em setembro de 2004, no quadro do início das celebrações dos 500 anos da cidade do Funchal. Portão dos Varadouros. Arquivo Rui Carita O regimento de fortificação de 1572, logo após o preâmbulo, definia muito concretamente a espessura das muralhas, a maneira de as fazer (de forma a resistirem ao clima marítimo) e o número de portas que a cintura deveria ter (Muralhas da cidade). Assim, o número de portas estabelecido era cinco: duas para serventia do mar, entre a fortaleza existente e a da Pç. do Pelourinho, e três para serviço da cidade, uma junto à ponte de N.ª Sr.ª do Calhau, outra junto às casas de Gaspar Correia, a poente da fortaleza, e a última junto a S. Paulo, na entrada da R. da Carreira, por onde haviam surgido os corsários franceses. O regimento remata com a indicação: “E não haverá mais portas” (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 2, fl. 140v.). A muralha estaria sumariamente levantada na primeira metade do séc. XVII, com as portas indicadas em cima. Citando o cronista Gaspar Frutuoso, por volta de 1590, “no muro da banda do mar tem uma porta de serventia, junto de Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto dos açougues, e outra, que é a mais principal, aos Varadouros, defronte da rua dos Mercadores” (FRUTUOSO, 1968, 111), mais tarde, da Alfândega. Mas nem a muralha nem a porta estavam prontas, concluindo-se quase 100 anos depois. Ao longo da segunda metade do séc. XVII, terminou-se, com dificuldade, o troço da frente mar da muralha, entre as fortalezas de S. Filipe do Lg. do Pelourinho e de S.to António da Alfândega (Reduto da Alfândega). Embora ao longo desse século vários governadores e provedores da Fazenda, como António Nunes Leite (em referência ao ano de 1621), escrevessem que “toda a cidade estava murada” (ANTT, Corpo Cronológico, parte I, mç. 118, doc. 151), a verdade é que não foi bem assim. O espaço compreendido entre as fortificações mencionadas, onde se situava o cabrestante, os açougues e o mercado municipal de peixe, não possuía muro de defesa na verdadeira aceção da palavra. A muralha era então constituída pelos muros das próprias casas, com uma ou outra obra mais ou menos improvisada, como se veio a afirmar. Com efeito, em carta enviada em 1664 pelo provedor Ambrósio Vieira de Andrade, considerando o emprego do dinheiro atribuído às fortificações, o autor refere que quando o Gov. Diogo de Mendonça Furtado (c. 1620-c. 1680) chegara ao Funchal, em 1660, não havia muralha alguma na frente mar, tendo-se até enviado um rascunho do que deveria ser feito para Lisboa, documento que não chegou até nós. Portão dos Varadouros. Arquivo Rui Carita Não sabemos qual foi a resposta enviada ao pedido de 1664, pois só temos informações a esse respeito mais de 20 anos depois. Com efeito, em setembro de 1688, a corte insistiu para que fossem concluídos os “fortes e com boa posição” (ANTT, Provedoria..., liv. 968, fl. 61), iniciando-se então as obras, sob o Gov. João da Costa de Brito (c. 1640-c. 1700), com a indicação de que fossem auscultados os oficiais de guerra mais práticos no assunto. Nesse documento, foi ainda feita uma chamada de atenção para os vários redutos e plataformas que necessitavam de reparo e outros elementos que poderiam precisar de ser revistos ou totalmente reconstruídos. Durante a vigência do governador seguinte, D. Lourenço de Almada, houve uma nova insistência de Lisboa no sentido de se concluírem as intermináveis obras da fortificação do Funchal. Terá sido neste contexto que, em março de 1689, certos técnicos continentais aportaram à cidade: o Cap. de engenheiros António Rodrigues Ribeiro e um ajudante, o estudante de engenharia Manuel Gomes Ferreira, que completaram finalmente a muralha da frente mar da cidade e construíram um portão dentro do gosto maneirista internacional, justamente, o portão dos Varadouros. Este portão representa um certo empolamento para a cidade do Funchal, embora tenha um desenho muito simples, em comparação com os inúmeros portões congéneres levantados por essa época nas praças-fortes continentais. Apresenta dois pares de colunas meias-colunas de cada lado da porta, esta com um arco de volta perfeita e as armas do Funchal ao centro; tem ainda cornija e um largo frontão redondo, encimado pelas armas reais. Sob estas, encontra-se uma inscrição em latim: “Perfecta haec varii praefecti / maenia frusta, praeteriti cu / piunt tempore quisque suo, sed / domino Laurentio ea est seruata / voluptas. D. Almada qui istud fi / ne coronat opus. Anno 1689”, que pode ser traduzir por: “Cada um dos antecedentes governadores de balde se esforçou por concluir estas muralhas; ao senhor Lourenço de Almada estava reservada a satisfação da sua conclusão. Ano de 1689” (SILVA e MENESES, II, 1998, 467). Portão dos Varadouros, 1909. Arquivo Rui Carita O Elucidário Madeirense indica que era por este portão que os governadores e prelados faziam a sua entrada solene na cidade e que tal cerimónia se “revestia sempre de extraordinário luzimento, com a presença do elemento oficial, todas as tropas da guarnição, as pessoas mais gradas da terra, o clero, fidalgos, cavaleiros e muito povo” (Id., Ibid., 468), algo repetido depois por outros autores. Não encontrámos, no entanto, registo coevo de tais cerimónias, nomeadamente na correspondência dos governadores e dos bispos alusivas à sua chegada à Ilha. Assim, a terem acontecido nos moldes descritos, terão sido entradas de carácter excecional. Com a implantação da República, o portão foi alvo de complicada polémica, pretendendo os mais novos a sua demolição imediata, alegando a necessidade de limpeza da área. Efetivamente, grassava na cidade uma epidemia de cólera, mas as razões para esse ato iconoclasta eram essencialmente políticas. O portão ostentava as armas reais e possuía, em anexo, uma pequena capela dedicada a N.ª Sr.ª do Monte dos Varadouros, tudo elementos que os republicanos mais novos queriam fazer desaparecer rapidamente. Os mais velhos, como era o caso do Gov. civil Manuel Augusto Martins (1867-1936), aconselhavam alguma contenção, mas, entre abril e maio de 1911, na preparação das primeiras e polémicas eleições republicanas, efetuadas a 28 de maio daquele ano, o portão foi demolido. As pedras foram guardadas nas arrecadações camarárias, transitando depois para as arrecadações do palácio de S. Pedro (Palácios) e, mais tarde, para o parque arqueológico do Museu Quinta das Cruzes. O recheio da capela, com o retábulo e a imagem de N.ª Sr.ª do Monte, foi entregue à Sé do Funchal, encontrando-se a capela remontada na antiga sacristia desta Catedral, sob a sua torre sineira (Sé do Funchal). Rua da Praia e Varadouros. Arquivo Rui Carita A ideia de remontar o portão foi ensaiada várias vezes pela Câmara Municipal do Funchal, tendo-se iniciado o estudo da recolocação dos materiais e executado os desenhos prévios em junho de 1993. O projeto levantou então alguma polémica, pelo que, somente em setembro de 2004, em parceria com entidades privadas, foi levada a cabo a remontagem, no âmbito e no início das celebrações dos 500 anos da cidade do Funchal.     Rui Carita (atualizado a 18.02.2018)

Património

radiodifusão portuguesa / rdp - madeira

A 28 de maio de 1941, o Diário de Notícias da Madeira, citando o Diário dos Açores, com uns dias de atraso, compreensível para a época, anunciava na 1.ª página que “um emissor regional da Emissora Nacional está a ser instalado na cidade de Ponta Delgada”. O matutino da rua da Alfândega acrescentava que “a Madeira também espera igual melhoramento’’. Estava então em marcha um plano do Ministério das Obras Públicas e Comunicações “para remodelar amplamente os serviços de radiodifusão”, que incluía a Madeira entre as terras que vão ser dotadas com um emissor regional. ‘‘Embora ainda nada conste sobre essa instalação” – adianta a notícia –, “é de admitir que ela venha a ser um facto palpável num próximo futuro, tanto mais que a Madeira representa um alto valor no quadro dos domínios da soberania portuguesa” (“Um Emissor…”, DNM, 28 maio 1941, 1). Só que o futuro, que se desejava breve, tardou 26 anos. Na costa norte, com o auxílio de grandes antenas, era possível ouvir a Emissora Nacional e o Rádio Clube Português com alguma qualidade, o que não acontecia no sul e sudoeste. Face à deficiente eletrificação nos concelhos rurais, os poucos aparelhos de rádio (telefonias) aí existentes eram, em muitos casos, alimentados por baterias de automóveis. Mais tarde, com a regionalização da Empresa de Eletricidade da Madeira (EEM), através do dec.-lei n.º 31/79, de 24 de fevereiro, ‘‘são lançadas as grandes obras com vista à completa eletrificação da ilha da Madeira’’ que só se veio a atingir nos anos 80. Sem rádio nem televisão, e com imensas carências de múltipla ordem, nomeadamente ao nível da rede rodoviária, a Madeira sentia-se limitada pela sua secular insularidade. A chamada “pérola do Atlântico” dividia-se de forma vincada em cidade e campo; dê-se como exemplo o aeroporto, inaugurado apenas a 8 de julho de 1964, com uma pista de 1600 metros e sem capacidade para receber voos intercontinentais. A grande porta dos madeirenses era o mar, mas o alargamento do porto só ficou concluído em 1961, 48 anos depois de ter sido criada a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal, a 13 de agosto de 1913. A Emissora Nacional de Radiodifusão (EN), inaugurada oficialmente a 4 de agosto de 1935, instalou o Emissor Regional da Madeira a 22 de outubro de 1967, quase 26 anos depois do início da radiodifusão nos Açores que ocorreu a 28 de maio de 1941. Um ano antes, fora publicada a primeira Lei Orgânica da EN (dec.-lei n.º 30.572), que consagrou a criação dos emissores regionais do Porto, Coimbra e Faro. O Funchal ficou esquecido durante quase três décadas até que, finalmente entrou em funcionamento um emissor de 1 kW em onda média (OM), na frequência de 1332 quilociclos por segundo, na Escola do Tanque, na freguesia do Monte, para a cobertura da cidade durante um período experimental. Rui Ivo Nunes Pereira foi o primeiro diretor (designado por Intendente), tendo sido empossado, em Lisboa, com mais de dois anos de antecedência, a 28 de maio de 1965. A abertura da primeira emissão coube ao locutor Virgílio Gonçalves. Os estúdios ficavam na rua dos Netos, n.º 27, havendo dois pequenos períodos diários de emissão: de segunda-feira a sábado das 11.30 h às 14.00 h e das 19.00 h às 23.00 h; e aos domingos, entre as 12.00 h e as 23.00 h. Na altura, o país ouviu pela primeira vez a reportagem em direto da passagem do ano na Madeira. A 24 de março de 1968, assistiu-se à transmissão do primeiro relato de um jogo futebol (entre o Marítimo e o Lusitânia dos Açores) por Artur Agostinho e Armindo Abreu, no Estádio dos Barreiros, a contar para a Taça de Portugal. Em 1969, teve lugar a ampliação dos estúdios e entrou em funcionamento uma Central Técnica, procedendo-se ao aumento da potência para 10 kW, na Estação do Monte. Fez-se a primeira emissão em frequência modelada (FM) (na frequência de 96.0) para o Funchal com um emissor de 50 W, instalado nos estúdios. Em 1971, alargou-se ligeiramente o tempo de programação, normalmente preenchido com gravações vindas em bobinas do Serviço de Intercâmbio de Lisboa, passando-se a emitir um espaço regional de produção própria, apresentado por Armindo Abreu, entre as 10.00 h e as 11.30 h, de segunda a sexta-feira. Em 1974 a EN consegue outro estatuto, abrindo-se a antena entre as 07.00 h e as 24.00 h. No dia 25 de abril de 1974 (o dia da Revolução dos Cravos), e igualmente no dia seguinte, o responsável pelo Emissor Regional da Madeira da EN, revelando incerteza ou desconfiança sobre o que se passava na capital, mas que já se refletia bastante nas ruas do Funchal, não aderiu prontamente ao Movimento das Forças Armadas (MFA), para o que lhe bastava transmitir em cadeia com a emissão a nível nacional. Em consequência dessa tomada de posição, e depois de os funcionários terem enviado um telegrama ao MFA, alertando para a situação, verificou-se o afastamento do Intendente, António Vermelho Corral, substituído pelo locutor de 2.ª classe Duarte Manuel da Câmara Brito Gomes (Duarte Canavial), conforme noticiou, na abertura, o Diário Sonoro das 20.00 h do dia 27 de Abril. Tempos depois, no decorrer do chamado Verão Quente de 1975, período de grande tensão política entre a esquerda e a direita, houve um atentado bombista no centro emissor do Monte, a 22 de agosto, que provocou a interrupção da emissão em OM durante dez dias. A 7 de outubro, os estúdios são ocupados durante cerca de quatro horas por um grupo que se intitulou de “retornados” (portugueses regressados das antigas províncias ultramarinas) que exigia uma emissora livre, fora do controlo de fações esquerdistas, e a readmissão dos locutores Armindo Abreu, Duarte Canavial e Juvenal Xavier; horas depois, deu-se uma contrainvasão por um grupo do Sindicato da Construção Civil, que ficava nas traseiras do prédio do Emissor Regional. O Comando Militar da Madeira ordenou a desocupação das instalações, garantindo a sua vigilância durante um mês. A 2 de dezembro de 1975, o governo de Pinheiro de Azevedo nacionalizou a rádio “no território continental” (decreto-lei n.º 674-C/75) e foi constituída uma empresa pública de radiodifusão (EPR), depois denominada Radiodifusão Portuguesa, EP (RDP), com o objetivo de “reconduzir a atividade de radiodifusão às dimensões e características de um serviço público que sirva o povo e a Revolução”. Por não haver qualquer referência às ilhas adjacentes por parte do legislador (era ministro da Comunicação Social Almeida Santos), não são abrangidos pelo diploma o Posto Emissor do Funchal e a Estação Rádio da Madeira. A 24 de maio de 1980, a delegação da Madeira tornou-se um Centro Regional (dec.-lei n.º 155/80), funcionando como representação descentralizada, dotada de autonomia de gestão e financeira. Segundo o artigo 6.º, o diretor era nomeado pelo conselho de gerência da RDP, precedendo acordo do governo regional que, por sua vez, através do departamento competente, poderia propor, também, a sua exoneração. A 1 de julho de 1982, com a inauguração do centro emissor do Arieiro, atingiu-se a cobertura total do arquipélago em OM (10 kW) e em FM (5 kW). Em 1983, principiaram as emissões em estereofonia. Data de 1984 a construção de um estúdio que possibilitou o desdobramento da programação em OM e FM. Em 1986, ocorre a ampliação da rede de FM com a estação do Paul da Serra, estendendo-se o sinal a parte da costa oeste. Com a instalação da estação do Porto Santo, em 1987, reforçou-se a penetração nesta ilha e também na costa norte da Madeira. Com a entrada em atividade de um estúdio auto-operado, em 1988, foi criado o 2.º Canal, com a designação de Super FM, que emitia entre as 10.00 h e as 02.00 h. Em 1989, prossegue a ampliação da rede de FM com a estação de Gaula (300 kW). Em 1990, houve novo aumento da potência do Monte para 500 W e do Paul da Serra para 200 W. Em 1991, arrancaram as obras do novo centro de produção do Funchal, na rua tenente-coronel Sarmento, num terreno com 1 265 m2 que fora adquirido em 1977. Em 1992, leva-se a efeito a ampliação da rede de FM do Canal 2, através das estações do Cabo Girão, Ribeira Brava, Pico do Facho (Machico) e Achadas da Cruz. Em dezembro, o mesmo sucedeu com a rede de FM do Canal 1, com as estações do Cabo Girão e do Monte. Em 1993, coloca-se um novo feixe hertziano em direção ao Pico do Arieiro e amplia-se a rede de FM do Canal 1, a partir do centro emissor do Monte e das estações do Paul da Serra, Achadas da Cruz, Ponta do Pargo, Pico do Facho (Machico), Porto Santo e Ribeira Brava. Em 1994, são montadas as estações de Gaula e da Encumeada. A abertura de um novo centro de produção era uma grande aspiração do Centro Regional da Madeira, sob a direção de Manuel Correia. A rádio pública funcionava num edifício da baixa da cidade, sem qualidade e sem condições, que sofreu uma série de obras de adaptação para se obter uma maior funcionalidade. O processo iniciou-se em maio de 1987, quando a RDP apresentou uma candidatura ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) para a edificação do novo centro. Em dezembro de 1988, a Comissão das Comunidades Europeias aprovou a concessão de um financiamento para o projeto, da autoria dos arquitetos Pedro Santos Costa e José Calheiros, celebrado a 9 de abril de 1990 (a primeira pedra foi lançada a 1 de setembro) e concluído no início de 1991. O edifício compunha-se de dois elementos contíguos de quatro e cinco pisos, interligados por uma galeria e terminando numa torre na zona oposta à entrada, para a colocação de antenas de feixes hertzianos. A área total de construção correspondia a 2985 m2. O centro foi equipado com três estúdios auto-operados, dois convencionais e um de média produção, além de uma central técnica de programas automática, programável e de comutação digital. A inauguração do primeiro centro de produção de rádio em Portugal construído de raiz registou-se a 14 de abril de 1993. A 28 de maio de 2011, e uma vez que se tinha efetivado, em 2004, a incorporação da RTP e da RDP na Rádio e Televisão de Portugal, a rádio transferiu-se para o edifício do Centro Regional da Televisão. A 5 de dezembro de 2012, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, “legítima representante dos cidadãos da Madeira e do Porto Santo, recomenda ao Governo da República que a verba referente à alienação das antigas instalações da RDP-M, à rua Tenente Coronel Sarmento, no Funchal, que se encontram encerradas desde 28 de Maio de 2011, reverta inteiramente em favor do reequipamento da RTP-M e da RDP-M”. A resolução n.º 2/2013/M da Assembleia Legislativa da Madeira foi publicada no Diário da República, I Série, n.º 6, de 9 de janeiro de 2013. A rádio do Estado mudou de residência pela terceira vez, passando a coabitar com a televisão, em Santo António. Com o aparecimento da televisão, a rádio deixou de ser a protagonista dos serões que reuniam a família à sua volta, embora na Madeira, onde as novidades demoravam muito mais tempo a entrar na moda, a sua idade da fama tenha sido mais prolongada, atingindo e porventura ultrapassando os anos 80 do séc. XX ainda com considerável vigor e penetração no tecido social. O transístor das grandes vozes foi perdendo audiências, mas continuou a ser uma força fundamental e indispensável no campo da nova informação, sobretudo pela sua inegável mobilidade e rapidez. Com o mundo novo da internet, a rádio mundializou-se, globalizou-se, deixou a aldeia e ganhou outra gama de ouvintes, que redescobriu a intimidade de um som antigo. No caso tipicamente madeirense, devido à orografia bastante acidentada que dificulta a propagação das ondas, a RDP teve de transformar-se, lançando uma vasta rede de emissores de FM para garantir a cobertura, que é assegurada na sua totalidade por 31 frequências MHz: Antena 1 (13 frequências): 90.2 (Ponta do Pargo), 92.0 (Massapez), 93.1 (Encumeada/Pico do Facho), 95.5 (Pico do Arieiro), 96.7 (Cabo Girão), 98.5 (Gaula), 100.5 (Porto Santo), 101.6 (Caniço), 101.9 (Paul da Serra), 104.3 (Achadas da Cruz), 104.6 (Monte/Santa Clara/Funchal), 105.4 (Calheta), 105.6 (Ribeira Brava); Antena 2 (5 frequências): 99.0 (Caniço), 99.4 (Cabo Girão), 102.4 (Funchal), 103.3 (Porto Santo), 106.3 (Gaula); Antena 3 (13 frequências): 89.3 (Caniço), 89.8 (Monte/Santa Clara/Funchal), 90.8 (Encumeada/Pico do Facho), 91.3 (Gaula), 93.3 (Paul da Serra), 94.1 (Pico do Arieiro), 94.6 (Ponta do Pargo), 94.8 (Cabo Girão), 95.7 (Massapez), 96.5 (Porto Santo), 103.1 (Ribeira Brava), 105.0 (Achadas da Cruz), 107.5 (Calheta). Mesmo com toda esta substantiva rede de emissores por vales e serras, a rádio deparou com uma grande e intransponível “parede” à sua transmissão com a construção, a partir de 1989, de 116 túneis rodoviários, que atingiram uma extensão de quase 80 km. Em setembro de 1997, o Serviço Técnico da RDPM, chefiado por Paulo Brazão, elaborou um estudo técnico-científico para a cobertura radiofónica do túnel da via rápida entre o Funchal e a Ribeira Brava. O projeto contemplava spotes (pequenas antenas de emissão) e traçados de cabos radiantes, capazes de difundir vários programas de FM e comunicações de um ou mais operadores. A administração da RDP autorizou a sua instalação nos túneis de Santa Clara, do Cabo Girão e da Ribeira Brava. Depois de autorizado pela Câmara Municipal do Funchal, em 22 de outubro de 1999, teve início a instalação desse sistema, que começou a funcionar a 5 de maio de 2000, sendo o túnel de Santa Clara o primeiro a possuir este tipo de cobertura no país. Alguns programas da rádio pública, sobretudo das décs. de 80 e 90 do séc. XX, têm um lugar especial no baú das recordações dos madeirenses que os ouviam: “Quotidiano”, “Duche da Manhã”, “Interferências de Verão”, “Quatro Linhas”, “AZERT” e a radionovela “Neto Herói”.   Estação Rádio da Madeira CSB 90 A Estação Rádio da Madeira (ERM), que teve origem no Rádio Clube da Madeira, calou-se definitivamente no dia 6 de agosto de 2000; a sua casa, no Pico dos Barcelos, foi demolida em agosto de 2013, encerrando a história de mais de meio século da chamada “emissora do cambado”. O seu fundador, Mário de Sousa Portela Ribeiro, vivera o aparecimento, em 1930, do Rádio Clube Português (RCP), propriedade de Botelho Moniz, onde exercera o cargo de diretor técnico; a mulher, Isabella Ferreira, fora locutora nas emissões da noite em inglês, em 1936, no início da Guerra Civil em Espanha. Contudo, divergências com Botelho Moniz fizeram-no partir para a Índia em 1940, regressando à Madeira depois da Segunda Guerra Mundial. Influenciado pelo facto de a Emissora Nacional não ser ouvida nas melhores condições, Mário de Sousa Portela Ribeiro pôs em marcha a ERM juntamente com o filho, Manuel Dayrell Marrecas Portela Ribeiro. Começaram pela construção artesanal de um pequeno emissor tecnicamente rudimentar em casa, depois mudaram-se para uma vivenda ali perto. As emissões experimentais dão os primeiros passos no dia 6 de janeiro de 1946, com Portela Ribeiro, Isabella Ferreira e os filhos, Edgar e Manuel. A cabina de locução era forrada com sacas de serapilheira para melhorar as condições de acústica. Mas havia um grave problema – não tinham licença dos Serviços Radioelétricos. Na resolução da situação, empenhou-se o governador do distrito autónomo do Funchal, João Abel de Freitas, que aprovara os estatutos do Rádio Clube da Madeira a 31 de dezembro de 1947, em conformidade com o parecer do Conselho Permanente da Ação Educativa, homologado pelo subsecretário de Estado da Educação Nacional. O Rádio Clube da Madeira tinha como fim “reunir os amadores que se interessam pela radiotécnica, promovendo assim o desenvolvimento da radiodifusão em Portugal”. Segundo a alínea b) do art. 2.º dos Estatutos, um desses fins seria “construir ou adquirir uma estação emissora de amador no Funchal e todas as outras que as circunstâncias aconselharem e permitirem” (ARM, GC, “Estatutos…”, cx. 3, 57, 1947). De início, funcionaria na referida sede do RCM, com 300 W. O alvará foi entregue a 3 de janeiro de 1948 e a tomada de posse sucedeu a 30 de março, na Associação Protetora dos Estudantes Pobres do Funchal. A primeira Assembleia Geral, sob a presidência do capitão Carlos Silva, realizou-se no Ateneu Comercial do Funchal a 14 março de 1948, tendo sido eleita a seguinte direção: Mário Portela Ribeiro, José Rafael Basto Machado, Vasco Paiva Brites, Mário Matos, Carlos Silva, Jaime Albuquerque Gonçalves e Luís Sacadura. Como suplentes, Pedro Pires e Carlos Santos. Em dezembro de 1959, começaram as obras de construção da nova sede, no Pico dos Barcelos. Para financiar o investimento, em grande parte suportado pelas economias da família, surgiu a ideia de transmitir um programa de discos pedidos que ocupava uma grande fatia da programação entre as 10.00 h e as 24.00 h, pagando os ouvintes 2$50 por cada vez que a música tocasse. Chegavam a ser 200 por dia, sendo as mais conhecidas para várias pessoas ao mesmo tempo. O rei dos discos pedidos era o brasileiro Teixeirinha – um gaúcho que não parava de cantar “Coração de Luto” e “Canarinho Cantador”. O auditório pedia cantigas para celebrar aniversários, casamentos e batizados; e muitas vezes os emigrantes dedicavam discos à família. Outra fonte de receita era, sem dúvida, os anúncios publicitários, a 15$00 por cada leitura. A programação procurou ter um papel de relevo na defesa dos interesses locais, com ênfase na divulgação de temas sobre agricultura, a cargo da revista Frutas da Madeira e da Junta Nacional dos Lacticínios. A história da Estação Rádio da Madeira CSB 90, comprimento de onda de 202 m e frequência de 1484 quilociclos por segundo, foi marcada por vários diferendos familiares entre Mário de Sousa Portela Ribeiro e os filhos. Mais tarde, com a legalização das rádios locais e a consequente distribuição de novas licenças, a ERM, que já possuía a frequência 96.0, motivou o interesse de José Paulo Ribeiro Moura e de Pedro Cirílio Freitas Gonçalves, que adquiriram o respetivo alvará e todos os meios técnicos. Porém, a nova empresa não conseguiu encontrar uma sede no Funchal, pelo que a Rádio Madeira – como era conhecida na sua fase final – acabou por desligar o seu emissor a 6 de agosto de 2000. Ficará lembrada como a estação jovem que abriu os seus microfones a estudantes e a produtores particulares. Na memória permanecerão programas como “Funchal-65”, “Quando o Telefone Toca”, “Comboio da Noite” e “Rádio Totobola” – o mais antigo em Portugal (com início em 1974).   Posto Emissor do Funchal C.S.3U.A. Em 1946, Eduardo António Santos Pereira propôs ao Conselho Diretivo da Sociedade de Concertos da Madeira que se criasse no Funchal uma emissora regional, proposta que foi aprovada por unanimidade, tendo-se dado todos os passos para se obter a respetiva autorização. A Direção dos Serviços Radioelétricos, entidade que concedia a licença para o funcionamento dos postos emissores, sugeriu que, uma vez que se encontrava pendente outro pedido feito no mesmo sentido pela firma Ramos & Ramos, se juntassem, criando-se uma só estação de radiodifusão particular no Funchal e evitando-se a dispersão de despesas. A 4 de julho de 1947, o projeto mereceu a aprovação do ministro das Comunicações; seria a primeira estação de rádio devidamente autorizada. Assim – depois de um período experimental –, em 28 de maio de 1948, às 18.00 h, com a presença de autoridades civis e militares da Madeira, eram oficialmente lançadas para o éter as palavras: “Aqui Funchal, Posto Emissor C.S.3U.A. a transmitir na frequência de 1529 quilociclos dos seus estúdios no Teatro Baltazar Dias” (CLODE, 2000, 154). Nascia assim o Posto Emissor do Funchal C.S.3 U.A. (PEF). No entanto, segundo a imprensa do dia 30, a data e a hora desta primeira emissão não foram as referidas. Com efeito, O Jornal (antecessor do Jornal da Madeira) escrevia que “fazendo parte das comemorações da data gloriosa da Revolução Nacional, realizou-se ontem às 12 horas a inauguração solene do Emissor Regional do Funchal, propriedade da Sociedade de Concertos da Madeira e da firma Ramos & Ramos” (O Jornal, 30 maio 1948,). Para o Diário de Notícias, a cerimónia teve lugar no dia 29, “integrada no programa comemorativo da data do 28 de maio, constituindo, sem dúvida, um dos números de maior audiência para o público” (“O acto inaugural…”, DN, 30 maio 1948, 6). Após a cerimónia, houve a transmissão de um concerto por Wera da Cunha Teles (canto), Lizetta Zarone (piano) e Pedro Lamy dos Reis (violino), professores da Academia de Música da Madeira. A insuficiente cobertura da Madeira pela Emissora Nacional, que “a maioria das vezes, transmitia mais ruídos do que novidades” (CLODE, 2000, 153), provocava o descontentamento dos ouvintes. Era preciso fazer alguma coisa para acompanhar a evolução da nova tecnologia da rádio. Impunha-se congregar esforços, conhecimentos e técnicas. Corriam então os primeiros meses de 1947. Um encontro de quem se dedicava à música e à sua divulgação (William Edward Clode e Luís Peter Clode) com quem estava ligado pelo saber e pelo comércio à eletrotecnia (Herculano Ramos e Arlindo Ramos) propiciou o nascimento do Posto Emissor de Radiodifusão do Funchal. Um técnico de rádio e rádio amador de reconhecido mérito nacional e internacional (João Higínio Acciaioly Ferraz) deu uma apreciável colaboração a esta iniciativa, à qual se juntou também, com entusiasmo, um apaixonado homem de teatro (Mário Basílio de Abreu), que foi o primeiro locutor. A primeira locutora do PEF, Maria Guida Gonçalves Câmara, era estudante da Escola Industrial e Comercial António Augusto Aguiar tendo sido “notada pela sua bela dicção” numa festa de alunos no Teatro Municipal. Guida Câmara “achava mais difícil falar ao microfone do que em palco em frente de toda a gente” (ANA MARIA, 1952, 14). Durante três anos, estúdios e emissor (este com a potência de150 W) estiveram localizados num dos camarins do Teatro Baltazar Dias. As emissões eram às terças, quintas e sábados das 20.00 h às 23.00 h, e aos domingos das 16.00 h às 19.30 h. Em 1952, os estúdios foram transferidos para a rua Fernão de Ornelas e a potência aumentou para 500 W. A 27 de abril de 1958, assinalou-se a primeira transmissão direta de um relato de futebol do Continente para a Madeira, por Joaquim Santos: tratou-se do encontro entre o Futebol Clube do Porto e o Club Sport Marítimo, no Estádio das Antas, para a 2.ª mão dos quartos de final da Taça de Portugal. Em 1959, o PEF instalou-se na rua da Ponte São Lázaro, subindo a potência para 1 KW e emitindo do centro instalado no Livramento, na freguesia do Monte. Em Lisboa já tinham começado as emissões regulares da RTP e o PEF tornou-se seu acionista, sendo depois eleito Presidente da Assembleia Geral. Em 1964, foi outorgada a escritura pública da Sociedade. Em 1967, formou-se a primeira estação de FM com 250 W, matrícula CSB 220, na frequência de 91.9 MHz, colocando-se o emissor no mesmo local dos estúdios. Com o aumento da potência para 1 KW (quatro vezes mais), saltou no quadrante para 92.0 MHz Em 1972, abriu novo centro nas Encruzilhadas (Santo António), onde foi montado o emissor de OM, substituído por outro de 10 KW em 30 de abril de 1987. O emissor de FM esteve no sítio da Barreira (Santo António), com a potência alterada para 2 KW. A 23 de abril de 2013, operou-se a concentração destes emissores no Chão da Lagoa. No seu Estatuto Editorial, constante do art. 34.º da lei 54/2010, o PEF, sob a direção de Teresa Clode, John Ramos, Luís Clode e António Ramos, define-se como “uma rádio privada, independente de quaisquer poderes políticos, económicos ou sociais, inspirando a sua atividade no quadro de valores e princípios da doutrina cristã”. Segundo o ponto 4 do mesmo Estatuto, “procura informar de forma isenta, rigorosa e pluralista, com respeito pelos princípios da ética e da deontologia, privilegiando os factos, os temas e as questões próprias da Região Autónoma da Madeira ou os que a ela se referem, sem prejuízo da restante informação de caráter nacional e internacional” (“A Rádio”, Posto Emissor do Funchal). Dezenas de programas enriqueceram a sua existência, como: “A Semana Passada Aconteceu”, “Enciclopédia Sonora”, “Paralelo 32”, “Vamos Todos Cirandar”, “Meia Hora dos Estudantes” e “Ao Cantar do Galo”. Membro da Associação de Rádios de Inspiração Cristã, o PEF passou a ser uma sociedade por quotas, com um capital social de 115.500 euros, distribuído pelo Seminário Maior de Nossa Senhora de Fátima (50.000), a Diocese do Funchal (50.000), Maria Francisca Teresa Clode (15.000) e a Sociedade de Concertos da Madeira (500).   Das rádios piratas às rádios locais A Rádio SOLMAR – Cooperativa de Radiodifusão CRL, fundada por Luís Ornelas Vasconcelos, surgiu como primeira “rádio pirata” da Madeira a 16 de junho de 1987, tendo o seu Conselho de Administração informado o diretor regional dos Serviços de Radiocomunicações, a 14 de outubro desse ano, de que passava a emitir na frequência de 88.8 MHz, todos os dias, com caráter experimental, utilizando um equipamento da marca RVR, modelo PTX 20. A 9 de janeiro de 1988, a SOLMAR solicitou o licenciamento de uma estação de radiodifusão em FM e estereofonia. Com um pequeno emissor de 15 W, emitiu inicialmente entre as 19.00 h e as 24.00 h e depois entre as 08.00 h e as 24.00 h, na freguesia do Imaculado Coração de Maria, no concelho do Funchal. Mas, por imperativos legais, as emissões terminaram a 24 de dezembro, durante o XI Governo Constitucional de Cavaco Silva, que mandou encerrar todas as «piratas» – um movimento que acabara com o monopólio do Estado. Escreveu-se uma breve história somente com 18 meses, porque a SOLMAR foi excluída dos concursos. Com a lei n.º 87/88, de 30 de julho (a lei da rádio), foram legalizadas as rádios locais, cabendo à Região Autónoma da Madeira 13 frequências. A 6 de março de 1989, são atribuídas apenas 8, 3 das quais para o Funchal – Estação de Rádio/Jornal da Madeira (88.8), Clube Desportivo Nacional/Rádio Clube (106.8) e Estação Rádio da Madeira FM (96.0) – e 5 aos concelhos rurais de Câmara de Lobos (Grupo Desportivo do Estreito/Rádio Girão 98.8), Machico (Rádio Zarco 89.6), Ponta do Sol (Rádio Sol 103.7), Ribeira Brava (Rádio Brava 98.4) e Santa Cruz (Rádio Palmeira 96.1). Em 2000, foram legalizadas as 5 restantes: Rádio S. Vicente (89.2), propriedade dos Bombeiros Voluntários de São Vicente e do Porto Moniz; Rádio Porto Moniz (102.9) da Associação de Desenvolvimento da Costa Norte da Madeira-IPSS (ADENORMA); Rádiourbe (91.6/Calheta), da Empresa de Produção e Comércio de Publicidade Lda.; Rádio Santana (92.1), da Empresa de Radiodifusão e Publicidade Lda; e Rádio Praia (91.6/Porto Santo), da Betamar Lda/Grupo Porto Santo Line. A Estação Rádio da Madeira, que já transmitia em OM desde 6 de janeiro de 1947, arrancou com as emissões em FM a 1 de setembro de 1989. Seguiram-se a Girão, no dia seguinte (a primeira fora do Funchal); a 6, a Jornal da Madeira; e a 9 de dezembro, o Rádio Clube. A 30 de maio de 1990, foi a vez da Rádio Zarco e da Rádio Palmeira; e a 15 de janeiro de 1993, da Rádio Brava e da Rádio Sol. A lei “sobre o exercício de atividade de radiodifusão” estabelece, no seu art. n.º 2, que a mesma pode ser exercida, também, por entidades privadas ou cooperativas. No entanto, o art. n.º 3 proíbe essa atividade aos “partidos ou associações políticas, organizações sindicais, patronais e profissionais, bem como autarquias locais, por si ou através de entidades em que detenham participação de capital”. Aprovado em 31 de maio de 1988, o concurso público para a atribuição das frequências foi lançado em janeiro de 1989. Passados 25 anos, observavam-se várias alterações em relação ao panorama inicial. A Girão, do Grupo Desportivo do Estreito, foi adquirida, em setembro de 1997, pelo Diário de Notícias e pela TSF, sendo autorizada a alteração da frequência 98.8 para 101.0. Com o decorrer das emissões, a Rádio Diário/TSF, verificando que a cobertura do Funchal, através de uma frequência de Câmara de Lobos, não tinha a qualidade desejada, vendeu a 101.0 ao Rádio Clube e comprou a 96.0 à Estação Rádio da Madeira, tendo sido alterada para 100.0. A Comunicamadeira-SGPS, SA adquiriu a totalidade do capital social do operador Brum Pacheco e Filhos, Unipessoal, Lda e a SPN-Sociedade Produtora de Notícias, Lda., detentora da Rádio Popular da Madeira (101.0), em Câmara de Lobos. A frequência 98.4 (ex-Rádio Brava) mudou para a Girão, que se tornou a Rádio Festival do Grupo RMV (Ramos, Marques & Vasconcelos, Lda.), dono da Zarco, Palmeira e Sol. Numa nova vaga de concursos, Manuel Pedro da Silva Freitas, utilizando a denominação Rádio Girão, de que foi diretor e um dos seus fundadores, ganhou a Rádio Santana FM (92.5), com o objetivo de colocar estrategicamente a antena no Pico do Arieiro (concelho de Santana) e deste modo chegar ao Funchal e a Câmara de Lobos. A Rádio do Clube Desportivo Nacional (106.8) passou para o Rádio Clube (Madeira), Lda., com a denominação de Rádio Clube, pertencendo a totalidade do capital social à Comunicamadeira que tem uma participação no Grupo RMV e assim atinge o limite das seis licenças. A 11 de maio de 2001, principiam as emissões da Rádio Porto Moniz e a 14 da Rádio S. Vicente, com microcoberturas para Boaventura e Ponta Delgada (99.2). A Rádiurbe, cujo capital social pertencia à SOSOL, passou para o Grupo AFA (AFAVIAS - Engenharia e Construções, SA), que fundou a Rádio Calheta a 10 de agosto de 2001, com três microcoberturas para Ponta do Pargo e Fajã de Ovelha (107.1), Paul do Mar e Jardim do Mar (104.3) e a zona baixa do concelho (102.7). No ano seguinte, este Grupo comprou a Santana FM, fundada por Manuel Pedro da Silva Freitas, que havia formado uma sociedade com Filomena Pereira Pestana Figueira de Freitas e João da Silva de Azevedo Freitas, que era titular do alvará desde 1 de setembro de 2001. A Santana FM, de 4 de maio de 2002, possui uma microcobertura para o Arco de São Jorge, São Jorge e Ilha (105.5 MHz).   Rádio Renascença Por causa da necessidade da ocupação legal de duas frequências na Madeira, propriedade da Rádio Renascença, as suas emissões – RR (88.0) e RFM (93.6) – tiveram início, a 19 de julho de 2010, através do centro emissor do Pico da Silva, na Camacha. Para o presidente do Grupo r/com, Cón. João Aguiar Campos, foi o culminar de um projeto antigo, “que vai permitir servir melhor os madeirenses que querem acompanhar as emissões da Renascença” (“Madeira: Renascença…”, Diário Digital, 21 jul 2010). Acrescente-se que o Posto Emissor do Funchal e a Rádio Jornal da Madeira já transmitiam, em simultâneo, alguns programas da Emissora Católica Portuguesa.   TSF-Madeira 100 FM A Rádio DIÁRIO-TSF, mais tarde TSF-Madeira, abriu os microfones no Funchal, no dia 4 de novembro de 1977, sob a direção do ex-jornalista da RDP-Madeira António Ivo Caldeira. Posteriormente, a Telefonia Sem Fios passou a ser dirigida por Ricardo Miguel Oliveira, também diretor do Diário de Notícias do Funchal, tendo como sócios José Bettencourt da Câmara, membro executivo do Conselho de Gerência da Empresa do Diário de Notícias, Lda., e Carlos Alberto Batalha de Oliveira, que possui a participação total no capital social da Rádio Comercial dos Açores, Lda., em Ponta Delgada. A Notícias 2000 FM – Atividade de Radiodifusão Sonora, Lda. – possui o alvará para a cobertura local desde 6 de março de 1989, estando o serviço de programas registado sob a denominação Rádio Notícias TSF Madeira, frequência 100.00 MHz, no concelho do Funchal. Em 2015, os estúdios estavam integrados nas instalações do Diário de Notícias. A emissão da TSF é preenchida, na segunda década de 2000, com produção regional e simultâneos com a TSF nacional, desenvolvendo um projeto centrado mais no jornalismo do que no entretenimento.   Juvenal Xavier (atualizado a 17.13.2017)

Sociedade e Comunicação Social

quotidiano e sociabilidades

Tudo o que se prende com o quotidiano da sociedade madeirense tem de ser encontrado de forma indireta na documentação, tendo em conta que, no que respeita a épocas recuadas, faltam testemunhos que nos permitam descobrir como as pessoas ocupavam as 24 horas do dia e os escassos anos de vida que as condições sociais e materiais da sociedade do seu tempo lhes propiciavam. Um dos recursos mais comummente usados são os diários pessoais e os retratos do quotidiano traçados por visitantes, alguém que, em busca de um clima ameno capaz de curar as suas doenças ou de passagem fugaz rumo a outros destinos, em missão política ou científica, fica impressionado com a realidade com que se depara, diferente da sua. Mas em que medida estes testemunhos referentes à nossa sociedade são fiéis? Muitos destes testemunhos resumem-se quase só ao espaço urbano, sendo raros os que apontam para um retrato, ainda que fugaz, do mundo rural, pois que a sua observação era feita de passagem e apenas durante os percursos, mais ou menos estabelecidos, pelo interior da Ilha. No Funchal, a presença era mais demorada, mas circunscrevia-se às quintas, depois aos hotéis, às casas, quase sempre mais abastadas, aos clubes, casinos e cafés e, raras vezes, se cruzavam com a maioria da população funchalense; apenas uma parte da sociedade e do quotidiano de alguns que, certamente, não se confundiam com a maioria dos madeirenses. São poucos os testemunhos de madeirenses sobre a sua realidade quotidiana e espelham, quase sempre, uma leitura a partir da sua posição social. Neste quadro, importa refletir sobre o quanto o olhar apresentado por Horácio Bento de Gouveia, considerado o retratista da vivência madeirense, a partir de 1948, com a publicação de Ilhéus, depois renomeado para Canga, em 1975, poderá ser o retrato fiel do mundo rural madeirense ou apenas um olhar enviesado de um filho de senhorio, das bandas de Ponta Delgada. Perguntamos, assim, em que momento esta personagem se alheia da sua posição social e se integra, de forma participante, no quotidiano dos caseiros e demais homens do meio rural madeirense. A Madeira estava longe dos progressos da Revolução Industrial e o analfabetismo dominante conduzia aqueles que atuam no processo produtivo, uma intervenção apenas por força da tradição e nunca fruto de uma sabedoria acumulada e vivenciada. A orografia da Ilha tanto dificultava qualquer tarefa produtiva como condicionava a criação de condições que favorecessem a valorização do magro resultado do trabalho do madeirense, por falta de vias de comunicação e de meios de transporte adequados. A situação não favorecia qualquer mudança, nem tão pouco o progresso técnico e o conhecimento batiam à porta de muitos destes protagonistas. Havia muito pouco para inventar no quotidiano deste ilhéu, que se pautava quase sempre pelo ritmo das estações do ano, do calendário religioso e de um ou outro acontecimento de índole política, cuja repercussão era mais acentuada no meio urbano. Ao madeirense que foi obrigado a construir a sua casa e sustento sobre um penhasco e a viver em permanente sobressalto à beira do abismo, faltaram tempo e meios para que o quotidiano se pudesse dividir entre os momentos de lazer e de trabalho e que, entre ambos, fosse visível uma interação. O descanso e o trabalho são repartidos e definidos pela própria natureza, como o nascer e o pôr do sol, a chuva e o tempo soalheiro. As tarefas são árduas, os meios técnicos reduzidos e pouco eficazes, pelo que não sobrava tempo para além daquele indispensável e imposto com a chegada da noite ou algo de anormal que acontecesse e obrigasse a uma paragem forçada. A Igreja impôs o seu ritmo do tempo através do relógio do campanário dos templos, que ecoava por todos os recantos da Ilha. Definiu a regra para o ócio e para o lazer, impondo-o relativamente ao encontro do ritual de evocação dos santos e dos passos mais significativos da intromissão do ritual religioso na vivência e quotidiano. É o preceito religioso de que o domingo é “o dia do Senhor” que implica esta paragem semanal, mas que impõe a obrigação de longas caminhadas do seu local de assentamento até às igrejas e capelas para que o ritual seja cumprido. Depois, serão as festas dos oragos a definir outras paragens, quase sempre na época estival, após as colheitas, momentos em que o trabalho é menor e a natureza impõe uma pausa para descanso das terras à espera de novo momento de lavra e sementeira. Na cidade, por exemplo, as procissões dos Passos do Senhor, do Corpo de Deus e do Santíssimo Sacramento são consideradas um misto de manifestação de fé, espetáculo e diversão para todos os madeirenses e motivo de espanto para os forasteiros. Fora do controlo da Igreja, estavam os carnavais, tempos de grande folia e liberdade, aos quais apenas a política conseguiu impor regras. Os desfiles de Terça-feira de Carnaval ficaram célebres e transformaram-se num momento de grande animação da cidade. A isto juntam-se os saraus e bailes em diversos clubes e associações que atraíam as classes mais abastadas, na medida em que o Carnaval do povo era na rua. Tudo é uma imposição que amordaça o ilhéu a um quotidiano e a uma forma de vida, deixando pouco ou nenhum espaço para descobrir o ócio e o lazer. Na verdade, nesta sociedade pré-industrial, trabalho e lazer misturavam-se nas atividades de colheita e plantação. O trabalho fazia parte do ritmo e ciclos das estações e dos dias, sendo alterado por pausas para repouso, descanso, jogos, competições, danças e cerimónias, que, em momento algum, constituíram um tempo determinado para o lazer. São muitos os estrangeiros que testemunham esta situação. Quanto nos embrenhamos na Ilha, no sentido de estabelecer os ritmos que pautaram o lazer, a primeira ideia que importa reter é a da necessidade de diferenciar os ritmos que comandam o quotidiano nos espaços urbano e rural. No meio rural, tudo acontece de forma cadenciada e de acordo com os ritmos da própria natureza e da intervenção formal do homem, melhor dizendo da Igreja, através do calendário religioso. As estações do ano, as atividades do campo e as festividades religiosas moldam e expressam o quotidiano do homem rural. Já a cidade estava sujeita a outros fatores que determinavam um compasso distinto para o quotidiano. Para além disso, no caso do Funchal, pelo facto de ser uma cidade portuária, esses ritmos estarão, muitas vezes, alinhados de acordo com o movimento do porto. Em muitos aspetos, o porto comanda a vida do burgo. A cidade vive de olhos postos nele e na linha do horizonte. Qualquer movimento que a retina alcançasse gerava, de imediato, um burburinho desusado nas ruas e no calhau. Em pouco tempo, as ruas da cidade ganhavam outra animação, com a chegada dos forasteiros e os residentes em permanente rodopio. O porto dominava quase por completo as expectativas dos funchalenses e das lojas comerciais que se anichavam nas proximidades da alfândega e do cais. São os barcos de comércio que movimentam o calhau e o cabrestante com a carga e descarga de produtos que se trocam por vinho ou outras riquezas da terra. São os navios das rotas coloniais, que ligam as capitais europeias às principais cidades das colónias respetivas, com passageiros em trânsito e turistas de temporada, que trazem o movimento e animação ao comércio e às ruas da cidade. São as esquadras militares que fazem aumentar as expectativas do negócio, nas lojas ou nas casas de diversão e ainda transportam a animação para as ruas, com demonstração ou desfile das suas fanfarras. São os navios de expedições científicas que fazem desembarcar cientistas sedentos de descobertas no campo da botânica e demais ciências e que por isso se embrenham, no pouco tempo de estadia, pelo interior da Ilha, em cavalgadas de descoberta dos segredos infindáveis que esta natureza, quase virgem, lhes reservava. Parece que todos eles alteram a pacatez do quotidiano do burgo e arredores. Na visão de muitos visitantes, a cidade acorda para um burburinho inusitado. As lojas de comércio, os cafés, os restaurantes, os hotéis abrem as suas portas para os receber e, muitas vezes, venerar. As casas das vilas e quintas arejam os seus quartos para receber os novos hóspedes. Os carreiros e quadrilhas de cavalos andam em permanente rodopio para poder satisfazer a demanda de serviço. É nesta altura que a animação se volta para os espaços interiores das quintas e vilas. Os salões de dança, os clubes e os casinos são os locais mais usuais para quebrar a monotonia e o tédio desta sociedade e daqueles que permanecem por longas temporadas. Desta forma, a presença destes navios e forasteiros trazia a vida ao burgo, dando novo colorido à cidade e aos arredores. Os salões de dança, os clubes e os casinos serão o meio mais usual de quebrar a chamada monotonia e o tédio. Tudo isto até que, na linha do horizonte, se vislumbre um outro navio com novidades, mais gentes e a tão desejada animação para o burgo. Será assim, para estes, o ritmo quotidiano de uma sociedade portuária como o Funchal. Contudo, para quem vivencia este quotidiano desde o momento que vê a luz do dia as impressões são distintas. O quotidiano não para, dia e noite. Apenas diminui o movimento de pessoas e viaturas. É certo que o Funchal se constituiu, desde o séc. XV, como uma cidade portuária. Abriu as portas do calhau às gentes e aos produtos de fora, franqueou as casas do burgo, das quintas e das vilas da encosta e fez construir altaneiras torres avista-navios e mirantes, com o propósito de alcançar o mais distante da linha do horizonte e de reencontrar, de novo, o barco que traz a mercadoria de que necessita, ou os porões vazios e disponíveis para o embarque do seu açúcar, vinho ou outro produto qualquer. Ao longo do processo histórico do espaço atlântico, apercebemo-nos que as ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e laboratórios da ciência. Os cientistas cruzaram-se com mercadores e seguiram as rotas delineadas pelos aventureiros e descobridores desde o séc. XV. Juntaram-se, depois, os turistas, que afluíram desde o séc. XVIII em busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta da sua natureza. A Madeira pode muito bem ser considerada uma das mais destacadas salas de visita do espaço atlântico, pois foi, desde os primórdios da ocupação europeia, um espaço aberto à presença quase assídua de forasteiros. A chamada hospitalidade madeirense, que muitas vezes se confunde com servilismo, é considerada uma constante da História que os aventureiros, marinheiros, mercadores, aristocratas, políticos, artistas, escritores e cientistas nunca se cansam de assinalar. Na verdade, na perspetiva de quem chega, todos os inusitados mimos podem ser considerados como hospitalidade, mas para quem está e tem de oferecer os seus préstimos e serviços é apenas uma questão de oportunidade e de sobrevivência. Os momentos de lazer, diversão ou ócio são definidos pelos acontecimentos, já programados anualmente, por força do calendário litúrgico (as festas do santos populares e dos oragos das freguesias, o Natal, o Carnaval e a Semana Santa), aos quais se juntam as efemérides relacionadas com alguma data significativa, como o nascimento, a morte e a aclamação dos monarcas, e, também, por força destas circunstâncias, algumas eventuais festividades ou acontecimentos que mobilizam toda a cidade e a Ilha. A visita do Rei D. Carlos, em 1901, foi um dos acontecimentos mobilizadores de toda a sociedade madeirense, dando azo a múltiplas manifestações populares com desfiles, espetáculos, bailes e banquetes associados a luminárias e decorações nas principais artérias próximas do cais da cidade. Todos, residentes e forasteiros, participaram a seu modo nestes eventos. Entretanto, entre 29 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923, celebraram-se as Festas do quinto centenário do descobrimento da Madeira, também com espetáculos, recitais, desfiles, desfiles, iluminações e decorações, jogos hípicos e desportivos, no Campo de Almirante Reis. Outro momento de grande interesse foi as Festas das Vindimas, celebradas em 1938 e 1940, no Campo de Almirante Reis, onde as tradições e cantares populares fizeram, pela primeira vez, parte do programa, por iniciativa de Carlos Maria dos Santos. Outros momentos aconteceram na Ilha que implicaram uma grande mobilização popular e, por isso, a quebra da rotina diária. Assim, entre fevereiro e maio de 1931, aconteceram as Revoltas da Farinha e da Madeira que atraíram multidões ao centro do Funchal, facilmente manipuladas para assaltos a moagens ou para “gritar vivas” ao novo Regime. As manifestações públicas, desde desfiles, procissões e fanfarras de música, estavam franqueadas a todos os presentes, na cidade e no meio rural, que, muitas vezes, vinham de propósito para assistir a tais eventos. Já os espetáculos, os bailes, as receções e banquetes estavam limitados a um grupo restrito da sociedade e aos forasteiros. O movimento desusado de passageiros, em trânsito e turistas, obrigou as autoridades a cuidar das ruas e praças da cidade, de forma a criar as condições de conforto adequadas a estes transeuntes. O calcetamento das ruas principais e, depois, a melhoria dos espaços públicos, como as Praças da Rainha (em frente ao Palácio de S. Lourenço), da Constituição (que posteriormente se tornou parte do espaço da Restauração) e da Académica (posteriormente Campo de Almirante Reis), criaram as condições espaciais para inúmeras manifestações de diversão. Alguns estrangeiros queixam-se do tédio permanente das estadias no Funchal, por falta de locais de diversão, pela má qualidade dos músicos e pela pouca variedade dos repositórios musicais. Disso se queixava, em 1853, Isabella de França: “Não posso dizer muito em louvor da música destes bailes, porque só há uma no Funchal e o público não fica mais bem servido do que noutro monopólio qualquer. Outra consequência é que, durante a temporada, se tocam sempre os mesmos números. São eles, como em toda a parte, uma ou outra quadrilha, por mera formalidade, e muitas polcas, valsas, mazurcas, etc. - tantas quanto possível” (FRANÇA, 1969, 173). Outros ainda, como Dennis Embleton, em 1882, apontavam a pouca veia musical dos madeirenses. Talvez por isso a presença de uma banda a bordo de um navio de passagem era motivo de interesse e curiosidade, providenciando-se a sua participação em bailes oficiais ou organizados pelos clubes. Em 1853, a banda de um barco americano foi convidada a atuar num baile no Palácio de S. Lourenço, como conta de novo Isabella de França: “Na mesma sala dos quadros tocava a banda do navio americano surto no porto e cujo comodoro tivera a gentileza de a ceder para aquela ocasião. A música, de que o instrumento mais importante era o bombo, devia soar bem no mar alto mas ensurdecia muito debaixo de um teto” (Id., Ibid., 203). A noite era um momento importante para o convívio e animação nas casas das principais famílias da Ilha e da comunidade britânica. Todos, nos seus solares apalaçados do espaço urbano ou quintas dos arredores da cidade, dispunham de amplos aposentos servidos com sala de jantar e de dança para muitos convidados. Entre estes, contavam-se sempre estrangeiros de diversas nacionalidades, que ocupavam o tempo de estadia na Ilha, pulando de festa em festa. Estes saraus eram marcados por grande animação de música e dança para servir os diversos convidados em que se incluíam sempre muitos forasteiros. Disso nos dá conta de novo Isabella de França: “A reunião não teve muita concorrência, mas incluiu várias nações. Havia uma dama russa, três ou quatro alemães, além de ingleses, franceses e portugueses. Depois do chá, houve música nacional, para nossa distração: machete primorosamente tocado, viola e cavaquinho (machete de seis cordas em vez de quatro, peculiar ao Porto). Estes instrumentos foram todos bem tangidos e harmonizaram-se na perfeição em músicas que lhes são próprias. Gostei bastante” (Id., Ibid., 182). O quadro dos espaços de lazer completava-se com os cafés e restaurantes, lojas comerciais e quiosques. Assim, de acordo com um roteiro de 1910, as ruas do Aljube e praças da Constituição e da Rainha reuniam o maior número de cafés, restaurantes e lojas de venda de artefactos da Ilha. A entrada da cidade era, assim, servida pelos cafés do Rio, Mónaco, Golden Gate e Restaurante Central, que estavam de portas abertas para receber todos os que desembarcavam no cais. Em muitos destes cafés e clubes (Ritz Café, Kit Cat, Theo’s Capitolio, Club Restauração, Club Inglês, Monte Stranger Club), a música ao vivo marcava presença para gáudio de forasteiros e de muitos residentes a quem estavam franqueadas as portas. Muitos dos hotéis da cidade ofereciam, igualmente, aos seus clientes animação musical com a organização de saraus dançantes animados por orquestra própria. Era este ambiente de animação que se oferecia, na déc. de 30, aos hóspedes e a alguns residentes, nos hotéis Savoy, Atlantic, Continental, Miramar e Golden Gate. Para além de toda esta animação de rua que acontecia de forma calendarizada ou eventual e que concentrava as atenções de todos, temos, ainda, que considerar aquela que acontecia em recintos fechados e que não permitia a entrada de todos. Neste caso, temos as representações dramáticas, os espetáculos, saraus dançantes e concertos de música. Durante muito tempo, as representações dramáticas foram públicas e abertas a todos, pois faziam-se nas igrejas e durante as procissões religiosas. A Misericórdia do Funchal celebrava o seu dia, a 1 de julho, com representações de comédias e autos retirados da Bíblia. O mesmo sucedia em muitas das igrejas e conventos da Ilha. Já o séc. XIX pode ser considerado o grande momento do teatro, do circo e da ópera. Surgiram novas casas de espetáculo que mantiveram uma atividade permanente, trazendo à Ilha personalidades de destaque do belo canto, concertos, récitas, festas de beneficência, circo e teatro. A aposta das autoridades foi sendo, no entanto, adiada e mantinha-se a insistente reclamação da imprensa e dos forasteiros pela falta de uma casa de espetáculos. O Funchal era uma cidade cosmopolita que fervilhava com forasteiros de passagem ou doentes em busca da cura para a tísica, como referimos anteriormente. Alguns lamentavam-se, mesmo assim, mencionando que as diversões eram poucas; a falta de teatro, de ópera ou de outras diversões europeias eram substituídas pelos passeios a pé ou de barco e pelos piqueniques. Perante isto, foi preocupação de vários governadores, desde José Silvestre Ribeiro, avançar com este projeto. Todavia, só na déc. de 80, a pertinácia de João da Câmara Leme venceu a inércia das autoridades centrais. Assim, em 25 de fevereiro de 1880, constituiu-se a Companhia Edificadora do Teatro Funchalense, mas a decisão da sua construção, por parte da Câmara, só ocorreu em 9 de fevereiro de 1882, tendo este aberto as suas portas ao espetáculo cinco anos depois com o nome de Teatro D. Maria Pia. Com a República, passou a ser chamado, em 1911, “Manuel de Arriaga”, mas, face à recusa do mesmo, ficou como “Teatro Funchalense” até à sua morte, em 1917. Já na déc. de 30, com Fernão Ornelas, presidente da Câmara do Funchal, passou para “Baltasar Dias”, como forma de homenagear o maior dramaturgo madeirense do séc. XVI. Os momentos mais destacados de representações teatrais, no Funchal, aconteceram nas décs. de 20 e de 30, tendo sido nesta última década que começaram as chamadas “Revistas” que deram muita animação à cidade. A partir dos anos 30, o Teatro passa a funcionar como uma sala regular de projeção de cinema. A arte cinematográfica havia vencido as artes dramáticas. Tudo aconteceu, em 1863, com o cosmorama universal, o antecedente do animatógrafo. Note-se que a primeira apresentação do animatógrafo ocorreu, na Madeira, em 1897. A partir dessa, outras experiências se seguiram com o cinema mudo, que foi ganhando a adesão do público. Os filmes eram exibidos a par de outros espetáculos musicais. Só a partir de 1907 ocorre o lançamento do cinema em termos comerciais. A sua popularidade levou à construção de pavilhões e novas salas de projeção que vieram juntar-se ao Teatro Municipal e ao Teatro Circo. No primeiro quartel do séc. XX, as sessões de cinema intercalam com os espetáculos de variedades, mas, paulatinamente, o fascínio do cinema acaba por conquistar o público. No primeiro quartel do séc. XX, o Funchal estava servido por diversos espaços para o cinema (Cine Jardim, Almirante Reis, Victoria, Pavilhão Paris, Sallão Central, Salão Ideal, Salão Teatro Variedades, Teatro Águia de Ouro, Teatro Canavial, Teatro Circo) que atraíam a atenção dos entusiastas da sétima arte, certamente um público urbano. Aos poucos, esta animação chegou ao meio rural, com a criação de casas de espetáculos: Teatro Gil Vicente em S. Vicente (1931), Salão Cultural de Câmara de Lobos (1931) e Cinema da Ponta de Sol (1932). A animação e o lazer encontraram novas formas de expressão para as elites locais. Os clubes de diversão e de recreio são uma realidade a partir da déc. de 30 do século XIX. Entre estes, destacaram-se o Clube União (1836-1879) e o Clube Funchalense (1839-1899). Este último ficou célebre pelos bailes e soirées, afirmando-se, ainda, como um dos principais espaços de receção aos visitantes. Algumas das homenagens prestadas a personalidades de passagem tinham lugar aí. Assim, em 1885, a Câmara do Funchal homenageou Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que estavam de visita à cidade, com um baile neste clube. Outros clubes animaram a cidade, como o Clube Recreio Musical (1900), Turt Club (1900), Sports Club (1910), Clube Republicano da Madeira (1911), Club Naval Madeirense (1917), Clube Recreio e Restauração, Novo Clube Renascença, Clube Funchalense, Commercial Rooms. Em todos, a animação e a diversão eram constantes. Mas quem afluía a estes espaços, muitas vezes, reservados? Quem teria condições materiais e tempo disponível, nesta época, para o ócio? Aos clubes e aos hotéis, juntam-se os casinos como locais privilegiados de diversão e de jogo. O Casino da Quinta Vigia (1895), sobranceiro ao porto, era um dos mais visitados e conhecidos pelos saraus dançantes que se faziam todos os dias. A música tinha uma expressão elitista, nos concertos à porta fechada, nos bailes dos casinos e nas quintas, e uma outra, popular, através de filarmónicas que desfilavam ou tocavam em espaços públicos para todos. A primeira banda de música surgiu, no Funchal, em 1850 e ficou conhecida como a Filarmónica dos Artistas Funchalenses. A segunda de que temos conhecimento foi a Filarmónica Recreio União Faialense, que surgiu, no Faial, em 1855. A déc. de 70 marca o incremento de novas bandas em toda a Ilha: Câmara de Lobos (1872), Calheta (1874), S. Jorge (1877), Camacha (1873) e Ribeira Brava (1875). O interesse por este tipo de música ganhou a adesão da população madeirense. Na cidade, os desfiles e os assaltos de Carnaval não dispensavam a sua presença, os domingos e os dias festivos contavam com exibições no passeio público e as tradicionais romarias ganharam mais animação. Deste modo, o período de finais do séc. XIX e princípios do seguinte é definido por um aumento do número de bandas em toda a Ilha. Neste período, assinalam-se mais no Funchal (1898, 1913, 1920, 1923, 1933), em Câmara de Lobos (1910), Calheta (1923), na Ponta do Pargo (1911), em Santana (1926), no Arco de São Jorge (1933), na Camacha (1887, 1922), na Ribeira Brava (1912) e no Campanário (1923). Desta forma, estamos perante uma significativa divulgação da cultura musical no espaço rural, fazendo com que o colorido sonoro das notas não se fique apenas pelo rajão, braguinha ou machete. As festas dos oragos das freguesias tornaram-se os principais palcos de atuação, não havendo festa sem um ou mais coretos que, à sua volta, acolhiam inúmeros populares de ouvido bem atento às novas marchas populares que o reportório das bandas ia revelando. Ao visitante de passagem ou de estadia temporária restavam, ainda, outras diversões. As atividades desportivas são assinaladas no decurso do séc. XIX e afirmam-se, de forma clara, na primeira metade do séc. XX, como a corrida de cavalos, o futebol, o ténis, o criquet e o bilhar. Este último foi o mais popular de todos e transformou-se numa das principais atrações dos clubes de receio da cidade. Por fim, para os mais destemidos, restava, ainda, a caça à codorniz, ao coelho, à galinhola e à perdiz, que tanto poderia ter lugar no Santo da Serra, no Caniçal, no Paul da Serra, ou no Porto Santo e nas Desertas. A prática de diversas modalidades desportivas começa por ser uma criação dos ingleses, para seu usufruto e dos seus hóspedes. Desta forma, em 1875, Harry Hinton está ligado à prática de futebol, na Camacha. O cricket foi, igualmente, uma modalidade de grande impacto, com dois grupos, The Madeira Cricket Club e Excelsior Madeira Cricket Club, de renome, onde se destacavam os ingleses. Outra modalidade de elite foi a esgrima, que atraia muitos praticantes e público à Quinta Pavão, Casino Victoria e Reid’s Hotel. Outra forma de prática desportiva, também de elite, prende-se com o automobilismo, no quadro das festas do fim do ano, entre 1935 e 1937. O Campo de Almirante Reis foi palco de diversos festivais desportivos: em 24 de fevereiro de 1911, teve lugar um para comemorar o fim da cholera morbus; entre os dias 7 e 8 de dezembro desse mesmo ano, realizaram-se os Jogos Olímpicos; a 27 de julho de 1924, conta-se um jogo de futebol entre os banqueiros e os doutores para angariar fundos para o Asilo de Mendicidade e os Órfãos do Funchal. A popularização da atividade desportiva acontece com a República. O futebol acabou por tornar-se na modalidade mais popular e naquela que cativava maior número de adeptos. Talvez tenha sido, de entre todas as modalidades, a mais democrática, por acolher, nas suas fileiras, gentes de diversos estratos sociais. O primeiro clube surgiu a 5 de novembro de 1909, sob a designação de Club Sport Madeira. Nas vésperas da República, foi criado o Clube Sport Marítimo (18 de setembro de 1910) e, depois, o Club Desportivo Nacional (8 de dezembro de 1910), União Futebol Club (1 de novembro de 1913) e o Sports Club Madeira (9 de junho de 1934). Desta forma, em 1925, desaparece o cricket como modalidade por falta de praticantes, mas o futebol havia já conquistado um lugar cimeiro na prática desportiva, fazendo do Campo de Almirante Reis o centro desta modalidade na Ilha. Não sabemos, porque não há estudos sobre a composição social dos dirigentes e dos atletas destes clubes, qual o grau de participação dos diversos estratos sociais, sendo, no entanto, certo que, aos poucos, tal desporto se transformou naquele que abrangeu um leque maior da sociedade de então. Na Madeira, a segunda metade do séc. XIX foi marcada por uma conjuntura difícil para as diversas classes socioprofissionais, mas foi o momento do despoletar de uma consciência das mesmas para o associativismo ou da busca de soluções que propiciassem a assistência e a proteção aos trabalhadores nos acidentes, na doença e na velhice. A tudo isto acresce o filantropismo social de ajuda aos mendigos, crianças e viúvas. Deste modo, a partir de meados da centúria, o mutualismo, o cooperativismo e o associativismo socioprofissional foram a solução capaz de minorar as dificuldades com que se debatia a população. Às associações de classe, juntaram-se as filantrópicas e as de diversão. Foi, então, nessa altura que se generalizou a criação de clubes destinados ao recreio e à distração dos sócios. Constituíam uma forma de quebrar a monotonia do quotidiano e enquadravam-se no espírito de associativismo que marcou o século. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber, nas suas instalações, as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses, entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Novo Clube Restauração (1908), Clube Washington (1882), Clube dos Estrangeiros (1897), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Turf Club (1900), Clube Internacional do Funchal (1896), Stranger's Club-Casino Pavão (1906), The Sports Club (1901), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). De entre todas as atividades de animação do burgo, aquela que podemos considerar mais elitista surge a partir de 1880 com as esquadras de navegação terrestre, uma novidade na diversão que veio animar as ruas da cidade e as amplas quintas dos arredores do Funchal. Estas esquadras acabaram por monopolizar o lazer dos proprietários das principais quintas. Organizaram-se esquadras militares, fardadas a rigor, que, em momentos determinados, realizavam assaltos entre si. Mas estas eram formas de entretenimento das chamadas gentes da sociedade, os boémios de dominó dos subúrbios do Funchal, que viviam em quintas. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois, desde a déc. de 40 da referida centúria, sucediam este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base as disputas entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, sobranceiras ou não, ao mar ergueram-se os mastros engalanados com “bandeirinhas” e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados, em atos públicos, fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé, por vezes ao longo da costa, e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos, em 1901, aquando da visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra conduziram ao refrear da iniciativa das esquadras até ao seu desaparecimento. Acabou o aparato de rua e o movimento, em torno dos mastros e miradouros, transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este caráter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e os jogos de fortuna e azar que ajudavam a passar os fins de tarde e a noite. A Nau sem Rumo, cuja data de aparecimento não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo a mesa como palco e o bacalhau como o inseparável amigo. Não dispomos de documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau Sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a Associação existia há muito tempo. Note-se que era costume que a data dos estatutos oficiais não coincidisse com o início de funcionamento. Senão vejamos: o Clube União foi fundado em 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral em 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil em 7 de fevereiro de 1879. O Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876 e só foram aprovados pelo Governador Civil em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a Nau Sem Rumo. A História testemunha que o grupo inicial de boémios que, sem rumo, deambulavam pelos bancos da avenida Arriaga rapidamente encontrou a Nau. Durante muito tempo, esta não teve poiso certo, nem a adequada posição de relevo na vida boémia madeirense. Em 1945, parece ter-se encontrado o rumo. A uma sede, juntou-se um novo fulgor para a Nau que a projetaria para uma posição de relevo na sociedade funchalense dos anos 50 e 60, tendo os momentos áureos da tertúlia gastronómica ficado como a única memória herdeira das esquadras de navegação terrestre. Oficialmente, a data de fundação foi atribuída à data do primeiro registo da associação, a 27 de maio de 1935, tal como poderá constatar-se pelo regulamento de 1950, ficando o dia 27 de maio como o «Dia do Aniversário da Nau Sem Rumo». Contudo, a Nau continuou a manter o espírito errante que esteve na sua origem. A primeira sede foi no edifício do posterior Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com “os Artistas”, passando, depois, em 1928, com o Almirante Dr. Agostinho de Freitas, para a Rua da Carreira. A partir daqui “vagueou” por algumas ruas da cidade: Rua dos Murças, Travessa do Nascimento e, finalmente, a Rua 31 de Janeiro, onde “varou”, definitivamente, em 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede à Rua 31 de Janeiro, onde permaneceu, em prédio construído por Raul Câmara em 1940. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão de Ornelas, Presidente da Câmara do Funchal, Dr. Félix Barreira, Secretário-geral do Governo Civil, Comandante João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do Porto, Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, Vice-presidente da Junta Geral, Dr. Humberto Pereira da Costa, Diretor da Alfândega e Fernando Rebelo Andrade, Diretor da PIDE. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Sendo esta uma associação de boémia masculina, só eram admitidos candidatos do sexo masculino. As mulheres tinham entrada apenas como convidadas ou na condição de sócios honorários. Esta categoria estava reservada a individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à Nau Sem Rumo, adquiriam esta possibilidade, mediante proposta do Almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa.   Festas e arraiais Os arraiais são a componente mais evidente das festas e romarias madeirenses: Nossa Senhora do Monte, Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, Nossa Senhora do Loreto, Nossa Senhora do Rosário, Senhor dos Milagres, entre muitos outros. A devoção popularizou-se ao longo dos últimos cinco séculos, de modo que estas romarias são momentos de grande movimentação das gentes, primeiro a pé, pelos caminhos íngremes que ligavam a Ilha de norte a sul. Para apoio destes romeiros, abriram-se caminhos e construíram-se casas de romeiros junto dos templos de devoção. Havia, entre todos, um espírito de solidariedade para com estes. O bispo, nas suas visitações, recomendava ao município a recuperação dos caminhos e proibia os pastores de manter o gado na serra sobranceira. Esta é, pelo menos, a ideia que retemos da romaria da Ponta Delgada. Os moradores acolhiam os romeiros, dando-lhes, por vezes, guarida. Depois, com o avanço da rede de estradas, a partir da déc. de 40, estes deram lugar aos excursionistas e às filas intermináveis de “horários” e “abelhinhas”, como eram designados alguns transportes públicos. A abertura de estradas facilitou o contacto e acabou com o isolamento, mas, em contrapartida, veio retirar o bucolismo aos romeiros, que calcorreavam a Ilha de norte a sul para honrar o santo de sua devoção ou para retribuir a graça concedida. Não mais se ouviu ecoar as cantorias dos romeiros. O rajão, o machete e as castanholas emudecerem e, nas serras da Encumeada e do Paul, apenas se ouvirá o murmúrio do vento. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros, como é o caso do folclore, que preservou muitos dos seus despiques e cantorias. O folguedo ou arraial no espaço vizinho da igreja/capela do orago é efémero. Dura 48 horas. Mas, para que isso aconteça, há todo um trabalho engenhoso e arte na criação das flores ou dos tapetes para a procissão. Os enfeites, de alegra-campo e loureiro, contrastam com o garrido das flores e o vermelho da Cruz da Ordem de Cristo que flutua nas bandeiras. O progresso trouxe a ambiência feérica da luz e da cor, fazendo-os prolongar pela noite fora. A luz elétrica, a partir da déc. de 40, veio revolucionar o arraial. Para além da oferta de um variado conjunto de barracas de comes e bebes, onde se destaca a espetada, encontramos aí a feira para venda dos produtos da terra ou de fora. Este é um momento de encontro, devoção e partilha da riqueza arrancada à terra. A festa do orago era um momento importante na vida das gentes da localidade. Ao divertimento e devoção juntam-se os contratos, negócios e, mesmo, as aventuras. Afinal, o arraial era um momento único em que todos se encontravam irmanados pela devoção ao santo padroeiro. A romaria de Ponta Delgada assume especial significado. Primeiro, porque o lugar se situa lá longe, na encosta norte, obrigando o madeirense ao grande esforço de calcorrear a Ilha para expressão da sua devoção. Depois, pela dimensão que assumiu em toda a Ilha, uma vez que, no princípio de setembro, todos estavam virados para o norte, por serem aí as terras das vindimas e onde estas movimentavam mais pessoas. As longas caminhadas por entre as montanhas reforçam o caráter lúdico destas manifestações e apresentavam-se como momentos de grande animação, de encontro de gentes, de troca de amizades. A devoção ao senhor Bom Jesus começou por ser particular e resultou da origem de um dos principais povoadores do lugar de Ponta Delgada. Foi Manuel Afonso Sanha, oriundo de Braga, quem para ali levou o culto ao Senhor Bom Jesus, ao construir, em 1470, nas suas terras, uma capela da mesma invocação. O culto ao senhor Bom Jesus espalhou-se rapidamente por toda a Ilha. A sua invocação em momentos de dificuldade e a necessidade de agradecer a benesse alcançada através do "pagamento da promessa" conduziram paulatinamente à sua afirmação. Assim, nos sécs. XVI e XVII, é manifesta a importância desta romaria no calendário religioso da Ilha, levando o bispo a recomendar medidas no sentido de reparar os caminhos que de toda a Ilha davam acesso ao local de Ponta Delgada. Na Madeira, o calendário das festas é estabelecido de acordo com o ano litúrgico e agrícola, sendo no primeiro que esta realidade tem a sua máxima expressão. Enquanto as primeiras celebram os principais momentos da vida da igreja e dos santos, as segundas demarcam o período das colheitas de um determinado produto, que cativava a vinda das gentes da Ilha ou da localidade em que têm lugar. As últimas são de criação recente, tendo algumas surgido nas duas últimas décadas do séc. XX, como as festas da cereja, vindimas, do pero e da maçã, enquanto as primeiras remontam aos primórdios da ocupação da zona. Os iniciais povoadores da Madeira, maioritariamente do Norte de Portugal, trouxeram impregnadas no corpo as tradições religiosas e festividades do calendário litúrgico. Foi desta forma que se delinearam os arraiais e romarias, que preenchem o tempo de lazer ao madeirense, expressos na afirmação dos santos populares (S.to António, S. João, S. Pedro) e importantes romarias (Bom Jesus, Braga/Ponta Delgada; Nossa Senhora do Loreto, Itália/Arco da Calheta; Nossa Senhora dos Remédios, Lamego/Quinta Grande), a que se vieram juntar as festividades genuinamente madeirenses (Nossa Senhora do Monte, Senhor dos Milagres, Nossa Senhora do Rosário). Estas últimas emergiram, de um modo geral, envoltas num misto de lenda e fervor religioso, o que contribuiu para a sua perpetuação e transmissão às gerações vindouras. Para o madeirense, o momento festivo mais importante e de maior significado é sem dúvida o Natal, que se demarca como o ponto de chegada e partida do calendário litúrgico. A prova disso está patente na afirmação de que o Natal madeirense é a Festa. Num lugar secundário, surgem as restantes festividades que têm lugar ao longo do ano, com particular incidência na época estival; note-se que a sua maioria tem lugar nos meses de junho a setembro. O clima favorece essa concentração na época estival e era preocupação da Igreja concretizá-las antes das primeiras chuvas, de modo a que fosse numeroso o grupo de romeiros. Assim sucedia, em meados do séc. XIX, com a romaria do Santo da Serra, deslocada da data habitual por causa do medo das primeiras chuvas de setembro. Mas aqui é necessário distinguir as romarias das demais festas aos oragos. Enquanto estas últimas assumem uma dimensão vivencial restrita à localidade, as demais são vividas por toda a população. Há um misto de devoção na igreja e os folguedos ou arraial, no espaço circunvizinho. As promessas, com todo o seu ritual martirológico, a ação intercessora junto do santo são os elementos devedores desta manifestação. A romaria, para além do tradicional pagamento da promessa ao patrono, expressa em valor pecuniário ou numa homenagem fervorosa, é um momento decisivo para o encontro das gentes da Ilha, aproveitado por muitos para o estabelecimento de contratos, troca e venda de produtos e, por vezes, uma fugaz aventura amorosa. Deste modo, as principais romarias da Ilha demarcavam o ritmo de vida dos nossos avoengos e atuaram como mecanismo unificador da vivência religiosa e do quotidiano, dada a dispersão populacional, resultante da orografia da Ilha. Em face disto, para além da sua importância na expressão da religiosidade do madeirense, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade que conduzira a definição uniformizadora deste modo de ser que carateriza o madeirense. Estas romarias tinham lugar na época estival, após as colheitas da cana-de-açúcar, do cereal ou do vinho, o que permitia essa ventura, por terra e por mar, ao encontro do orago protetor. Estas festividades estavam devidamente calendarizadas: em agosto era a festa de Nossa Senhora do Monte; em setembro, Nossa Senhora do Loreto, no Arco da Calheta, e o Bom Jesus da Ponta Delgada; e, em outubro, encerravam-se as romarias, com o Senhor dos Milagres, em Machico. Para além das casas de acolhimento, conhecidas como as casas dos romeiros, estas manifestações deixaram marcas na toponímia da Ilha, estando os caminhos dos romeiros, o curral dos romeiros, a atestar essa frequência. As dificuldades de comunicação, nomeadamente na vertente Norte da Ilha, não impediram que os romeiros afluíssem em grande número às festividades do Senhor Bom Jesus. Desde o séc. XVII que este santuário ao norte ficou a marcar a nova aposta da reforma tridentina, ganhando uma dimensão particular na religiosidade do madeirense. Deste modo, no primeiro domingo de setembro, a pequena povoação de Ponta Delgada recebia inúmeros romeiros do sul e do norte, que para ai se dirigiam a cumprir as suas promessas. A sua passagem era anunciada pelos cantares e músicas apropriadas que davam ao Norte da Ilha uma animação inaudita. A própria igreja tomou algumas medidas no sentido de facilitar esse movimento, aconselhando as autoridades municipais sobre os necessários cuidados na manutenção dos caminhos ou punindo os proprietários de gado com excomunhão, pois, conforme refere o bispo, em 1706, sucediam-se, por vezes, desastres mortais, devido à queda de pedras provocadas pelas cabras que pastavam nos precipícios sobranceiros aos caminhos do lado de São Vicente e Boaventura. A partir da segunda metade do séc. XIX, o emigrante regressado do Havaí, Demerara, Brasil, Venezuela, África do Sul e Austrália reforça a animação destas festividades, dando-lhe uma nova dimensão; este era o festeiro que, reconhecendo a proteção do santo, lhe prestava a sua farta homenagem. Estas passaram a ser o momento para a visita aos familiares ou o regresso dessa promissora aventura; a animação festiva passou para o exclusivo controlo do emigrante, dependendo o seu brilhantismo da disponibilidade financeira: é o emigrante quem paga as despesas dessa realização, assumindo, aqui, este ato uma forma de devoção ao santo patrono do sucesso alcançado. A ostentação da riqueza amealhada manifesta-se, por vezes, no número de lâmpadas acesas, no fogo queimado, nas bandas de música e, mais recentemente, nos conjuntos de ritmos modernos. Na verdade, a realidade passou a ser outra e ao madeirense são oferecidas inúmeras formas de diversão que colocam em plano secundário as festas e romarias: primeiro, a rádio (1948), depois a televisão (1972) e as hodiernas formas de diversão urbana com as discotecas (1973). Uma breve incursão ao processo histórico da Ilha revela-nos que os nossos avós não reservavam a sua alegria apenas para as festividades religiosas. O madeirense, na sua labuta diária, soube manter-se em perfeita harmonia com o meio que o rodeava, expressando uma natural alegria, patente nas danças e cantares que animaram o seu quotidiano. Todos os momentos eram aproveitados, sendo o árduo trabalho amenizando com os diversos cantares – canção da erva, da ceifa, dos borracheiros, entre outras – repetidos nas romarias. O ritmo desses cantares foi trazido pelo batuque dos escravos africanos que vieram para a Ilha, desde meados do séc. XV, para o trabalho na safra do açúcar. Muitas destas manifestações surgem na Ilha com os primeiros colonos, resultando a sua variedade da sua múltipla origem. Dominante é, porém, a presença das manifestações rituais do norte de Portugal, local de origem do maior grupo de povoadores: as danças e os nomes das principais romarias têm aí a sua origem. Assim sucedeu com a devoção do Senhor Bom Jesus e com a Nossa Senhora dos Remédios que se implantou na Quinta Grande. A par disso, os santos populares mantêm a tradição lusíada, o mesmo acontecendo com as demais festividades que demarcam o calendário litúrgico: Corpus Christi e Natal. Não é fácil definir a data precisa em que as principais romarias madeirenses tiveram o seu início, pois faltam-nos comprovativos. As romarias que chegaram ao séc. XXI – Monte, Loreto, Ponta Delgada, Rosário e Machico – são muito antigas, ligando-se aos principais povoadores. Os venerados são os seus principais intercessores. Marcadamente rurais, as romarias desviavam os romeiros do burburinho urbano e conduziam-nos ao encontro da natureza. Eram elas que estabeleciam o ritmo de vida e quotidiano das gentes, atuando como elos de ligação e convergência das diversas freguesias. Neste contexto, alguns dos contratos tinham como prazo a data dos santos populares ou as mais destacadas romarias. Note-se que o S. João foi, durante o séc. XV, a data de início dos mandatos no município funchalense, mantendo-se a tradição nos Açores até época tardia. Gaspar Frutuoso refere, a este propósito, que em São Roque do Faial se realizava, a 8 de setembro, uma das mais importantes romarias da Ilha, na qual, para além da imprescindível devoção e folgares, se aproveitava o momento para a troca de produtos numa feira improvisada. Aliás, esta tradição de associar as feiras e mercados às romarias não é novidade, tendo sido trazida pelos colonos oriundos do norte de Portugal, onde eram frequentes. Em 1853, Isabella de França descreve-nos, de forma sucinta, a romaria de Santo António da Serra através da animação e devoção do arraial e da presença dos romeiros, que descreve como uma "palhaçada". Deste modo, as romarias, para além da dimensão religiosa, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade, definidora do modo de ser que define o madeirense. Com o tempo, algumas das romarias, como esta de São Roque do Faial, ficaram esquecidas e outras apareceram a disputar a sua posição, pois apenas as do Monte, Ponta Delgada, Loreto e Machico continuaram a pautar o ritmo das festividades e devoção madeirenses. A romaria de Nossa Senhora do Monte, a 15 de agosto, foi, sem sombra de dúvida, a maior festividade da Ilha, atraindo a devoção de todos os madeirenses, mercê da eficaz proteção que lhes deu quando estes a solicitaram. Ao longo do séc. XVII, o madeirense colocou-se sob a sua proteção, implorando a sua intercessão para fazer cessar a seca (1627 a 1695) ou a peste (1686). Em 1803, em face da aluvião que assolou a cidade, recorreu-se mais uma vez à sua proteção, passando, a partir de então, à condição de padroeira menor da cidade. Tais condições favoreceram a perpetuação e afirmação do seu culto e a sua passagem à diáspora madeirense: desde o planalto de Cubango, em Angola (1885), às ilhas do Havaí (1902), passando, mais tarde, pelos EUA, África do Sul e Austrália, esta festa manteve-se como um dos poucos elos à terra de origem. Em síntese, o madeirense fez transbordar a sua alegria nessas manifestações festivas, distribuídas ao longo do ano. O período estival era definido como o momento de maior atividade no campo e na cidade; era a época das colheitas que ocupava todos sem exceção e que quase paralisava o burgo. Esta situação é muito antiga e tem origem no período de interrupção das atividades administrativas e judiciais, para que as gentes se pudessem dedicar inteiramente às colheitas. Já nas Sete Partidas de Afonso X de Castela e, depois, nas Ordenações Régias, ficou estabelecida a paragem por um período de dois meses. Os vereadores abandonavam a vereação e iam para o campo fazer as suas colheitas; na realidade, toda a animação estava aí, onde se concluía a safra do açúcar e se iniciavam as ceifas que depois davam lugar às vindimas. O verão era sinónimo de redobradas canseiras, para uns, e mudança de atividade, para outros. Todavia, este movimento apresentava ocasiões propícias ao lazer; era nessa época que se realizavam as tradicionais romarias, cujo roteiro coincidia, amiudadas vezes, com o processo de transmigração da mão de obra braçal para as colheitas. Essas atividades agrícolas eram sempre acompanhadas de folias, com ativa participação dos senhores, escravos e jornaleiros. Lembremo-nos que inúmeras manifestações do nosso folclore têm aí as suas origens. Era também no período estival que tinham lugar as festividades mais representativas que se realizavam na Ilha: primeiro, a procissão do Corpus Christi no Funchal, com participação das gentes de toda a Ilha, e, depois, as romarias das freguesias rurais. Estas últimas eram, segundo Isabella de França “o único divertimento da gente do campo” (FRANÇA, 1969, 132). A sua realização estava ordenada de acordo com o calendário religioso e agrícola, estabelecendo um roteiro em toda a Ilha; primeiro as da vertente sul a culminar a safra do açúcar e o período da ceifa, depois as do norte a concluir as vindimas. A dança e o canto eram os aspetos mais fulgurantes destas manifestações lúdicas dos dias santificados e dos oragos, únicos momentos de repouso para as gentes da Ilha. Era a Igreja quem estabelecia os momentos de lazer e de trabalho, sendo os primeiros definidos como os domingos e dias santificados. Nestes dias, livres e escravos estavam libertos do trabalho e disponíveis para orar a Deus. Apenas havia permissão para se fazer um conjunto limitado de ofícios e de tarefas. Ao madeirense, restavam ainda as festas civis, consideradas no segundo caso, estabelecidas pelo capitão e demais autoridades da Ilha. Comemorava-se o nascimento de um príncipe, a coroação de um rei ou o regresso à Ilha do capitão. Estas eram as festividades profanas, de raiz urbana sem data estabelecida, que consistiam em jogos de canas, touradas e lutas corpo a corpo em que participavam gentes de toda a Ilha. Mas, aos poucos, essa tradição foi-se perdendo e essas manifestações deram lugar a outras, como o teatro e a ópera. Apenas o clero tinha a possibilidade de passar um período de férias. Tal como o referem as constituições sinodais do Funchal de 1578, o beneficiado ou ecónomo tinha direito a quarenta dias de ausência aos ofícios para sua "recreação", enquanto o bispo poderia ausentar-se por dois meses do seu episcopado. Esta situação foi estabelecida nos primórdios do catolicismo, tendo sido confirmada pela sessão XXIV do Concílio de Trento.   Férias e descanso Um outro aspeto a ter em conta na diferença entre as férias desses tempos e aquelas que hoje conhecemos tem a ver com a exposição do corpo desnudo que não era admitida nesta sociedade; a indumentária não serve apenas pela moda, mas também pela necessidade de cobrir o mais possível o corpo. Às interdições estabelecidas pela Igreja relativamente à exposição e higiene do corpo vieram juntar-se as posturas camarárias proibitivas dos banhos na praia e ribeiras do Funchal, Machico e Porto Santo; de acordo com a postura da Câmara do Funchal de 26 de julho de 1839, estava proibido aos funchalenses o banho de mar nus, só se permitindo em calças ou camisa até abaixo do joelho. Os seus infratores sujeitavam-se a uma pesada coima de mil réis. Mais tarde, ao invés, tornou-se moda o topless e as praias de nudismo. Diz-se que os primeiros que se banharam nas águas límpidas da Ilha foram João Gonçalves Zarco e seus companheiros quando, em 1420, se refugiaram nas águas refrescantes do mar, para fugir ao calor infernal do incêndio que se ateou na floresta da Ilha. Mas o banho foi a preceito, com todas as vestes que traziam no corpo. Já em 1850 se referia, nos anais do município da Ilha do Porto Santo, que as suas praias eram propícias aos banhos de mar, mas que não atraiam forasteiros por falta de condições, estando os naturais limitados pelas posturas. Na realidade, a sua revelação como uma estância balnear é do nosso século. Num texto de Giulio Landi, de cerca de 1530, pode ler-se que os naturais do Norte da Ilha da Madeira tinham por hábito “ir à praia” (ARAGÃO, 1981, 84). Não sabemos se com isso o autor se referia ao ir a banhos ou a um mero passeio para desfrutar da aragem marinha e contemplar o imenso mar.   Assistência e saúde Uma das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de serviços de assistência aos cristãos e cativos. Para isso, existia um conjunto variado de instituições que foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos populacionais. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem. Por outro lado, os problemas resultantes da fome, mendicidade e peste levaram à criação de inúmeras instituições de beneficência por iniciativa de particulares, que depois passaram para a alçada da igreja. Na Madeira, é de referir o empenho de Zargo em fazer construir, em 1454, um hospital junto à capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A isto, juntam-se referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo um na Rua de Boa Viagem. A partir de 1485, com a bula de Inocêncio VIII Iniunctum Nobis, a estrutura assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito, a coroa criou, em 1498, o hospital de Lisboa, que veio a congregar todos os menores aí existentes. O mesmo espírito foi seguido em todas as vilas do reino, por autorização papal de 23 de outubro de 1501, expresso na carta régia de 4 de maio de 1507. De acordo com as ordenações régias, cabia aos bispos a sua superintendência. É neste contexto que surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira, existiu, primeiro no Funchal (1507) e depois em Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo, o hospital da Misericórdia. A função assistencial completa-se com as confrarias, autênticas associações de solidariedade social e espiritual, sendo os irmãos recrutados pela sua situação socioprofissional ou pela sua devoção ao santo patrono. É de salientar o caso da dos pescadores, que, na Ilha, não tiveram o mesmo patrono, e a dos mesteres, como a de S. Jorge (1562) e de S. Miguel, de S. Crispim e de S. Crispiniano (1572). Realçamos, ainda, as confrarias ligadas às misericórdias, onde os irmãos tinham assegurado a sua assistência hospitalar e espiritual. O Funchal, cidade portuária, estava aberta ao contágio das doenças. Deste modo, para precaver a urbe desta infeção estabeleceram-se espaços onde as mercadorias e passageiros suspeitos eram mantidos em quarentena. Este espaço situava-se, primeiro, em Santa Catarina, tendo sido depois transferido para a outra ponta da cidade, no chamado Lazareto. A vereação da cidade estava atenta aos anúncios de peste nas principais áreas de ligação à Ilha. Porém, isto era considerado pouco numa terra onde a importação de géneros é fundamental, sendo, ao mesmo tempo, a principal via de transmissão de doenças contagiosas e dermatológicas. Deste modo, em 1787, o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho avançou com a casa da saúde, com o objetivo de vistoriar os navios entrados e os produtos alimentares de importação à venda no mercado local. As condições de vida no Norte da Ilha não eram diferentes das do resto do seu território, sendo a sua evolução igualmente pautada por um significativo progresso. Uma das medidas mais importantes a ter em conta nesta época prendia-se com a prevenção. As condições sanitárias das habitações e, acima de tudo, dos aglomerados como a Vila não eram as melhores. Neste último caso, a época invernosa tornava as ruas da Vila num palco de imundice, sendo constante o apelo à limpeza das regadeiras e ao seu calcetamento. As melhorias significativas nas condições de vida dos munícipes são apenas visíveis a partir da déc. de 30. A cobertura de palha cede lugar ao barro e adiciona-se, nas proximidades, um novo compartimento, que depois passará a fazer parte dos planos da casa. Note-se que, quer na construção da retrete quer do palheiro para gado, o médico municipal deveria informar da sua conveniência e localização. A Câmara assumiu o compromisso de pagar todas as despesas com os doentes pobres, que incluíam os medicamentos, o transporte ao hospital da misericórdia no Funchal e a diária do período de internamento. Para que isso acontecesse, o doente deveria ser acompanhado de um atestado de pobreza passado pela Câmara. A vereação sentia-se obrigada a apoiar as famílias pobres através de subsídios fixos ou eventuais. Noutras circunstâncias, as famílias pobres eram acudidas com milho ou então géneros alimentícios de mercearia. Às crianças reservava o município dedicados apoios. Primeiro, com o apoio e acolhimento indispensáveis à sobrevivência das crianças expostas. Depois, no apoio às mães solteiras ou àquelas que não tinham posses para alimentação dos filhos recém-nascidos. As crianças expostas surgem neste período nas mais diversas circunstâncias. Ao município, mediante verba concedida pelo governo civil, estava atribuído o encargo de assegurar a sobrevivência destas crianças. Após o batismo, eram entregues a uma ama, sendo conhecidas pelo número de registo no livro de expostos. Nem todas as crianças que nasciam no seio de famílias constituídas tinha assegurada a sua sobrevivência. Ameaçada pelo estado de miséria, tal sobrevivência só poderia ser assegurada mediante um apoio do município para a lactação. Este subsídio poderia ir até dois anos e contemplava os filhos de mães solteiras ou outras que viviam em estado de pobreza ou a quem tinha secado o leite. Este subsídio era atribuído caso a caso mediante requerimento dos interessados à vereação. A Vereação estava responsável pela gerência deste apoio, podendo retirá-lo a quem não oferecesse as condições exigidas.     Alberto Vieira (atualizado a 15.12.2017)

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