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posturas

Regulamentos provindos dos corpos administrativos locais, as câmaras municipais, no sentido de adaptar a legislação geral às condições específicas do espaço municipal, visando sempre o benefício da conservação da Ilha. A primeira informação que temos sobre a sua existência na Madeira resulta de uma recomendação feita pelo infante D. Fernando ao capitão do Funchal, a 3 de agosto de 1461, com a indicação de que não interferisse nas posturas e de que estas fossem impostas a todos os funchalenses. Palavras-chave: município; legislação; administração. Ocupam o lugar mais baixo da hierarquia da legislação; são regulamentos locais, provindos dos corpos administrativos, as câmaras municipais, que se faziam “na forma da lei”, no sentido de adaptar a legislação geral às condições específicas do espaço municipal e tinham sempre, como princípio fundamental, o “benefício da conservação da Ilha” (PACHECO, 2002, 96), como se afirmava em 1724. Tal como se dizia em 1524, a todos acometia a obrigação de guardar a ordenação régia e as posturas da câmara. A primeira informação que temos sobre a existência de posturas na Madeira resulta de uma recomendação feita pelo infante D. Fernando ao capitão do Funchal, a 3 de agosto de 1461, no sentido de este não interferir nas posturas e de todos os funchalenses as cumprirem. Depois, em 1468, o infante D. Fernando refere as posturas que Dinis Anes de Grãa, ouvidor do duque, dera aos moradores de Câmara de Lobos. Acrescente-se que, em 21 de junho de 1481, foi feita uma postura para apregoar as posturas. As posturas eram aprovadas em vereação, tombadas em livro próprio e depois divulgadas em público, pelo porteiro da Câmara, através de pregão. A 1 de abril de 1598, fez-se reunião da nobreza e do povo para ler as posturas, que foram depois apregoadas em praça pública. Foram também publicitadas através de edital ou na imprensa, a partir do séc. XIX. Até ao regime liberal, as mesmas eram lidas na praça do pelourinho pelo porteiro da câmara, como referimos, fazendo-o este com alguma frequência e por determinação da vereação. A primeira ordem nesse sentido é de 21 de julho de 1481. Esta faculdade manteve-se sempre como uma prerrogativa fundamental do direito e poder municipais. As alterações de regime, nos sécs. XIX e XX, não retiraram ao município esta capacidade de elaborar as suas posturas e regulamentos. A novidade mais significativa prende-se, certamente, com a sua impressão. Com a República, estas passaram a ser destinadas a regulamentar as situações de polícia urbana e rural, atendendo especialmente às medidas de salubridade pública. A Madeira usufruía, no séc. XV, de condições particulares, com o senhorio e as capitanias, que diferenciavam a sua administração da das demais partes do reino. Todavia, as cartas de doação definem a precariedade deste processo e a capacidade de mandar e julgar, e nunca de legislar. Neste último aspeto, deveriam os capitães sujeitar-se aos forais ou regimentos gerais do reino. A capacidade de legislar surgiu apenas com a afirmação do município. As posturas são a materialização desse anseio, sendo os seus capítulos uma tentativa de dar voz às aspirações de uma região, no caso, o município. A ela se reconhece, assim, o caráter autónomo da administração, sendo o poder assente na jurisdição local (foral e posturas) e no exercício dos magistrados eleitos, destes últimos, os juízes com alguma capacidade jurisdicional. As posturas municipais, mercê da sua dupla fundamentação, refletem, no enunciado, as ordenações régias, reescritas de acordo com as particularidades de cada município e os sentimentos comunitários do justo e do conveniente. A par disso, de acordo com as ordenações afonsinas, o legislador deveria atender “ao prol e bom regimento da terra”. Deste modo, o seu articulado era o espelho da vivência quotidiana do município e da adequação das ordenações e regimentos do reino às novas e particulares condições políticas e económicas locais. Tais condicionantes justificam o seu caráter precário e a permanente mudança desse código, o que conduziu a diversas compilações e originou constantes alterações do articulado; a reforma das posturas sucedeu-se com frequência, como se poderá verificar pela leitura das atas das vereações. Talvez, por isso, em muitos municípios, não se fez a necessária compilação em livro, ficando as posturas apenas lavradas nas atas das vereações em que foram aprovadas. Por outro lado, o facto de serem, por vezes, medidas legislativas de ocasião promovia a sua rápida inadequação e a necessidade da sua reformulação ou revogação. Note-se que, em 18 de julho de 1738, o município do Funchal reuniu em sessão para reformar as posturas, “por não se poderem observar em parte as posturas antigas” (Id., Ibid., 66). As posturas são a fonte mais importante para o estudo do direito local. A circunstância de refletirem, no seu enunciado, as preocupações e domínios de intervenção locais leva-nos a valorizá-las fortemente como fonte para o estudo e conhecimento da realidade municipal. Ao surgirem como normas reguladoras dos múltiplos aspetos do quotidiano do município, são o indício mais marcante da mundividência local. De acordo com as ordenações e regimentos concedidos, o município tinha atribuições legislativas particulares resultantes, nomeadamente, da necessidade de adaptação das disposições gerais do reino às condições do espaço a que seriam aplicadas; por um lado, tínhamos as disposições gerais, estabelecidas pela Coroa e, por outro, as normas de conduta institucionalizadas no direito consuetudinário, que impregna e define as particularidades da vivência local. O município português, nos sécs. XVI e XVII, dispunha de uma ampla autonomia e de uma elevada participação das gentes na governança. Todavia, com o decorrer da prática municipal, essa autonomia acabou por revelar alguns atropelos, que levaram a Coroa a limitar a sua alçada por meio da intervenção de funcionários régios como o corregedor. Tendo em consideração essa ambiência, os monarcas filipinos, aquando da união das coroas peninsulares (1580-1640), procuraram cercear os poderes dos municípios portugueses, procedendo a algumas alterações na sua orgânica. A intervenção e alçada dos cargos municipais definidas nas ordenações e regimentos régios não careciam de uma redefinição no código de posturas e, deste modo, o código das posturas apenas estabelecia normas para a intervenção dos funcionários municipais empenhados na sua aplicação: os rendeiros do verde e os almotacés. As normas para serviço destes funcionários municipais eram da exclusiva competência da vereação e homens-bons e surgem nas posturas. Aos almotacés competia a fiscalização do normal cumprimento das posturas. No ato de juramento deste ofício, insistia-se na necessidade de guardar as posturas e proceder a pregões. Por outro lado, os almotacés davam juramento aos jurados dos lugares para as fazerem cumprir. A partir da República, esta função de fiscalização passou para os guardas cívicos. No Antigo Regime, o município, representado através dos vereadores, eleitos de entre os homens-bons, detinha amplos poderes. Através do código de posturas, normas gerais de conduta aplicáveis a toda a jurisdição, o município intervinha na economia, por meio da regulação do abastecimento local, do aproveitamento das terras e das águas, da definição dos locais de compra e venda dos produtos, do controlo do armazenamento, transporte e distribuição de bens essenciais, como os cereais, do controlo dos preços, pesos e medidas. São poucos os registos e códigos de posturas para os municípios madeirenses. Muitos se perderam ou as compilações não aconteceram na forma da lei. De uma maneira geral, estes encontram-se avulsos em atas das vereações, sendo impressos, como referimos antes, apenas a partir da segunda metade do séc. XIX. Eis as posturas que estão disponíveis em compilações: para o Funchal, posturas, contas e taxas para contas, relativas aos anos de 1481, 1512, 1550, 1572, 1587, 1598, 1598, 1599, 1620, 1625, 1627, 1631, 1649, 1675, 1738, 1745, 1746, 1755, 1769, 1780, 1869-1885, 1920; e registo de regimentos e posturas, relativas a 1789-1851; para Câmara de Lobos, as respeitantes aos anos de 1852, 1855, 1859, 1860, 1863, 1864, 1865; para Machico, as posturas de 1598, 1627, 1780; para o Porto Santo, as de 1780, 1791, 1796. Desde o séc. XIX que a sua publicação é obrigatória, porém, só temos conhecimento da impressão das do Funchal (1849, 1856, 1890, 1895, 1912, 1954), Machico (1598, 1627, 1780, 1856), Porto Moniz (1859, 1890), Santana (1837, 1841), Calheta (1842), Porto do Moniz (1890), São Vicente (1897) e Ponta do Sol (1900). Recorde-se que, na República, a lei n.º 88 de 7 de agosto de 1913 (art. 100.º, n.os 3, 4, 5, 6 e 7; art. 104.º, n.os 1, 3 e 4) determina a obrigatoriedade da comissão executiva municipal proceder à sua publicação. O texto das posturas estabelece as normas que regulam o funcionamento dos cargos municipais e da administração da fazenda municipal, como já indicámos, as atividades económicas, desde a mundividência rural, oficinal e mercantil, às condutas de sociabilidade, através da regularização dos costumes e dos comportamentos de alguns grupos marginais, como as meretrizes, escravos e mancebos, e ainda as regras de salubridade dos espaços públicos. As caraterísticas ou vetores das sociedades e economias insulares refletem-se no articulado das posturas, vale a pena referi-lo de novo. Deste modo, a maior ou menor valoração de determinado tópico é, sem dúvida, resultado da sua premência no quotidiano insular. De acordo com a divisão em sectores de atividade económica, constata-se o predomínio do sector terciário. Esta tendência para a terciarização da realidade socioeconómica deverá resultar, por um lado, do facto de o meio urbano gerar um maior número de situações que carecem da intervenção do legislador e, por outro, da expressão plena do seu domínio na vida económica. É necessário ter em consideração que esta realidade varia nos diversos municípios. No Funchal, os sectores secundário e terciário encontram-se numa situação muito próxima, ao contrário do que sucede com Angra, onde o último tem uma posição dominante. O predomínio dos sectores secundário e terciário poderá resultar de diversos fatores. Em primeiro lugar, convém referenciar que as posturas incidem preferencialmente sobre a urbe, espaço privilegiado para a afirmação do sistema de trocas e oferta de serviços, reanimado pelo seu carácter atlântico e europeu. Além disso, a animação oficinal e comercial do burgo, pelo seu ritmo acelerado, implicava uma maior atenção, mercê também do maior número de situações anómalas. A mundividência rural perpetuava técnicas e relações sociais ancestrais, sendo a sua atividade regulada pela rotina e ritmo das colheitas e estações do ano. De facto, no meio rural, pouco ou nada mudava com o decorrer dos anos. Deste modo, o legislador municipal canalizou a sua atenção para o quotidiano do burgo, marcado pela sucessão de mudanças. Para as sociedades em que a faina rural se tornou importante e definidora dos vetores socioeconómicos, esse espaço não poderia ser menosprezado. A ocupação e exploração do espaço insular fez-se de acordo com os componentes da dieta alimentar do íncola (o trigo e o vinho) e dos produtos impostos pelo mercado europeu para satisfação das necessidades das praças europeias (o açúcar e o pastel). Todavia, o primeiro grupo agrícola, pela sua importância na vivência quotidiana das populações insulares, solicitava maior atenção do município, pelo que 58% das posturas relacionadas com a faina rural incidiam sobre esses produtos, enquanto o grupo sobrante merecia atenção de apenas 15%. A distribuição dos referidos produtos obedecia às orientações da política expansionista da Coroa e dos vetores de subsistência e condições climáticas de cada ilha. Tais condicionantes implicaram uma ambiência peculiar dominada pela complementaridade agrícola das ilhas ou arquipélagos. Deste modo, as posturas organizar-se-ão de acordo com essa característica do mundo insular atlântico, refletindo, no seu articulado, a importância desses produtos na vivência de cada burgo. A abundância ou carência do produto em causa definia situações diversas na intervenção do legislador. No primeiro caso, essa intervenção abrangia todos os aspetos da vida económica do produto. No segundo, incidia preferencialmente sobre o abastecimento do mercado interno, definindo aí normas adequadas ao normal funcionamento desses circuitos de distribuição e troca. Assim se justifica a similar importância atribuída às posturas sobre o vinho. A pecuária assumia, em todo o espaço agrícola insular, uma dimensão fundamental, graças à sua tripla valorização económica (faina agrícola, dieta alimentar e indústria do couro). O seu incentivo conduziu a uma valorização da intervenção municipal na venda de carne nos açougues municipais, bem como das indústrias de curtumes e calçado. Note-se que, ao nível da intervenção do legislador local, essa situação é apresentada na inversa, uma vez que a sua carência implicava uma regulamentação mais cuidada e assídua do senado do que a sua abundância. O desenvolvimento da indústria de couro tinha implicações ao nível da salubridade do burgo, pelo que o senado sentiu a necessidade de regulamentar rigorosamente esta atividade, definindo os locais para curtir e lavar os couros e o modo de laboração dos mesteres ligados a essa indústria. A par disso, procurava-se assegurar a disponibilidade desta matéria-prima para a indústria do calçado, proibindo-se a sua exportação. Esta situação, aliada a outras medidas tendentes à defesa da salubridade do burgo, revela que a pecuária tinha uma importância fundamental nestas ilhas; era daí que se extraiam a carne para a alimentação, os couros para a indústria de curtumes e o estrume para fertilizar as terras, além do usufruto da sua força motriz no transporte ou lavra das terras. Na realidade, era uma grande fonte de riqueza. Uma das mais destacadas preocupações dos municípios insulares resultava dos danos quotidianos do gado solto, não apastorado, sobre as culturas, nomeadamente nas vinhas, searas e canaviais. Daí a necessidade de delimitação das áreas de pasto e a obrigatoriedade de cercar as terras cultivadas. Além disso, um conjunto variado de pragas infestava, com frequência, as culturas, o que obrigava a uma participação conjunta de todos os vizinhos. No domínio agrícola, a atenção do município variava segundo as culturas predominantes. Assim, no Funchal, que abarcava uma das mais importantes áreas de produção açucareira da ilha da Madeira, essa preocupação incidiu sobre os canaviais e engenhos, definindo a cada um o complexo processo de cultura e transformação. Os componentes da dieta alimentar insular adquiriram uma posição relevante na intervenção dos municípios madeirenses, o que demonstra as grandes dificuldades no assegurar dessa necessidade vital. Tal preocupação, no entanto, era muito variável no tempo e no espaço, adequando-se à realidade agrícola de cada urbe e à sua conjuntura produtiva. Deste modo, o seu articulado, para além de refletir a dupla dimensão espaciotemporal, evidencia uma das componentes mais destacadas da alimentação das gentes insulares. Tudo isto resultará, certamente, do facto de a dieta alimentar manter a sua ancestral origem mediterrânica, sendo, deste modo, pouco variada, o que colocava inúmeras dificuldades no abastecimento do meio urbano e justificava o consumo reduzido de legumes e peixe, potenciando o consumo abusivo de pão e vinho. Sendo os mares insulares ricos em peixe e marisco, e toda a vivência dessas populações dominada pelo mar e extensa costa, não se percebe bem o desinteresse pelas riquezas alimentares marítimas em favor da carne. Note-se que as posturas referentes à carne são praticamente o dobro das que referem o peixe. Apenas no Funchal o peixe merece a atenção do legislador; aí regulamenta-se não só a sua venda, mas também a pesca. A importância relevante do pão e da carne na alimentação insular implicou uma redobrada atenção das autoridades municipais sobre a circulação e venda destes produtos, pelo que o código de posturas acompanha todo o processo de criação, transformação, transporte e venda dos mesmos. De igual modo, é atribuída particular atenção ao quotidiano que envolve a atividade das azenhas, dos fornos e do açougue municipal. O moleiro deveria ser habilitado e diligente no seu ofício, tornando-se obrigatório o exame e o juramento anual em vereação. Na sua ação diária, atribuía-se particular atenção ao peso do cereal e da farinha, bem como ao ato de maquiar; na Madeira, essa tarefa estava a cargo de um rendeiro dos moinhos. No Funchal, este domínio mereceu uma cuidada atenção nas posturas. A necessidade de precaver danos na farinha e farelo levou o legislador a proibir a existência de pocilgas e capoeiras nas imediações dos moinhos. Além disso, a animação do espaço circundante tornava necessária a intervenção do município na definição de normas de conduta social, no sentido de moralizar e disciplinar o comportamento dos frequentadores habituais do moinho. Deste modo, não era permitido às mulheres casadas ou mancebas permanecerem aí, ao mesmo tempo que lhes era vedada a prestação de qualquer serviço na moenda. Ao moinho sucedia o forno, coletivo ou privado, que assegurava a cozedura do pão consumido no burgo. A afirmação pública deste espaço resultava da existência das condições do ecossistema insular; na Madeira, após uma fase inicial em que estes eram privilégio do senhorio, assistiu-se a uma excessiva proliferação de fornos no burgo e arredores. Todavia, a maior parte do pão aí consumido era oriundo dos fornos públicos. Deste modo, o município procurava exercer um controlo rigoroso sobre o peso e preço do pão; ambos eram fixados em vereação, de acordo com as reservas de cereais existentes nos celeiros locais. Além disso, em momentos de penúria, era a vereação que procedia à distribuição dos cereais pelas padeiras. A preocupação com o abastecimento de pão surgiu apenas no Funchal, onde foi ativa a intervenção dos almotacés sobre o fornecimento dos cereais e farinha, fabrico do pão, verificação do seu peso, e estabelecimento do preço de venda ao público. Tenha-se em consideração que este município foi pautado, desde finais do séc. XV, por uma extrema carência de cereais, o que gerou, como é óbvio, esta especial atenção por parte da vereação. O açúcar, ao invés, afirmou-se na economia insulana como o principal incentivo para a manutenção e desenvolvimento do sistema de trocas. Tal situação, associada ao caráter especializado da safra do açúcar, tornou necessária a sua coordenação pelo código de posturas na Madeira. A intervenção municipal não se resumiu apenas aos canaviais e ao complexo processo de laboração do açúcar, mas também integrou outros domínios que contribuíam, de modo indireto, para o desenvolvimento da indústria em causa. Assim se justifica a extrema atenção concedida às águas e madeiras, elementos imprescindíveis para a cultura e indústria açucareiras. Neste domínio, a intervenção municipal adequou-se às condições mesológicas de cada área produtora, variando as suas iniciativas de acordo com a maior ou menor disponibilidade de ambos os fatores de produção. Na Madeira, desfrutando a Ilha de um vasto parque florestal e de abundantes caudais de água, não houve necessidade de intervir exageradamente neste domínio, reservando-se a atenção para a safra do engenho. As posturas definem os cuidados a ter com a cultura dos canaviais, o transporte da cana e lenha pelos almocreves, bem como a ação dos diversos mesteres no engenho. A esse numeroso grupo de agentes de produção que asseguravam a laboração do engenho era exigido o máximo esforço para que o açúcar branco extraído apresentasse as qualidades solicitadas pelo mercado consumidor europeu. Deste modo, concedeu-se especial atenção à formação dos mestres de açúcar, refinadores e purgadores, ao mesmo tempo, exigiu-se ao senhor uma seleção criteriosa dos seus agentes, que deveriam prestar juramento em vereação, todos os anos. Essa atuação era reforçada com a intervenção do lealdador, um oficial concelhio que tinha por missão fiscalizar a qualidade do açúcar laborado. O uso abusivo, por parte dos seus agentes, levou o município a estipular pesadas coimas para o roubo de cana, socas, mel e bagaço. Além disso, procurava-se evitar a existência de condições que apelassem ao furto, definindo-se a proibição de posse de porcos a qualquer agente que laborasse no engenho ou a impossibilidade do pagamento dos serviços ser feito em espécie. O processo de laboração e transformação de artefactos era um sector destacado de animação do burgo, ocupando um numeroso grupo de mesteres com assento em áreas ou arruamentos estabelecidos pelo município. A necessidade de um apertado sistema de controlo sobre a classe oficinal, no sentido de promover a qualidade dos artefactos produzidos, e de tabelar os produtos e as tarefas, condicionou essa enorme atenção do legislador insular, ocupando cerca de 20 % das posturas em análise. De acordo com as posturas do séc. XVI, podia-se adquirir potes, alguidares, panelas, tigelas, vasos, púcaros, fogareiros, luminárias, canjirões, mealheiros, talhas. As posturas do séc. XVI referem a prática corrente de alagar o linho nas ribeiras da cidade, com muito dano das águas, pelo que se recomendava o uso de poços separados. A sua cultura espalhou-se por toda a Ilha, ganhando uma posição de destaque nas freguesias do norte, como foi o caso de São Jorge e Santana. Os alfaiates localizam-se na cidade do Funchal, o que poderá significar que, no meio rural, o corte do vestuário era caseiro. Aliás, é aqui que encontramos maior informação sobre esta atividade nas posturas municipais. O município não só regulamentava o feitio das diversas peças de vestuário, como também determinava os preços do produto. É necessário ter em consideração que essa expressão da vida oficinal do burgo não é igual em todas as posturas dos municípios estudados. Apenas no Funchal é patente a sua maior incidência e a variedade dos ofícios abrangidos, sendo menor nos municípios açorianos. A maioria dos ofícios referenciados pertence ao sector secundário e terciário, tendo o primário fraca representatividade. Tal situação expressa a importância que ambos os sectores de atividade assumiam nos municípios e resulta do facto de estes domínios serem mais vulneráveis às mudanças do devir histórico e propiciadores da fraude e furto. Os ofícios são o esqueleto em que assenta a vivência do burgo, pois vivificam e animam toda a atividade dos arruamentos e praças. Donde o grande empenhamento demonstrado pelo código de posturas, onde se destaca a atividade transformadora e o sector da alimentação, sendo maior, no primeiro caso, na indústria do calçado e, no segundo, na moenda do cereal e venda de carne. Também nos sécs. XVI e XVII, os ofícios indicados nas posturas incidem sobre os sectores secundário e terciário, com especial destaque para a atividade transformadora e sector alimentar. O facto vai ao encontro da visão geral do articulado das posturas, mantendo-se, aqui, o predomínio do sector terciário. Apenas no Funchal o secundário se aproxima deste, mercê do elevado desenvolvimento da estrutura oficinal, situação contrastante com a exígua referência e sobriedade dos municípios açorianos, por exemplo. A intervenção do legislador municipal na faina oficinal orientava-se no sentido da regularização dessa atividade. Aí se definia, de modo rigoroso, o processo de laboração e a tabela de preços para as tarefas e artefactos. A qualidade do serviço e produto não resultava apenas da concorrência na praça, mas, fundamentalmente, da vigilância das corporações e da exigência do exame ao aprendiz. O juramento anual associado à necessidade de prestação de fiança completava o controlo municipal. Todavia, na Madeira, os ourives e tanoeiros deveriam apresentar, em vereação, a sua marca, para que constasse nos livros da câmara. A oficina dá lugar ao mercado ou praça, espaço privilegiado para a distribuição e escoamento dos artefactos. Aí, o município redobrava a sua atenção, de modo a estabelecer regras regulamentares do sistema de trocas. Esta surge como uma das suas principais preocupações, pois das posturas que consideramos, cerca de 28% incidem sobre o mercado, repartindo-se essa atuação entre o abastecimento de bens alimentares e artefactos. Nesse domínio, é dada particular atenção aos pesos, medidas e preços. A praça domina o espaço urbanizado, estabelecendo uma peculiar compartimentação dessa área, de acordo com as exigências dos vetores internos e externos da vida económica. Aos edifícios da fiscalidade sucedem-se os armazéns e lojas de venda, orientados a partir desse centro. A importância deste espaço no quotidiano está justificada por uma dupla intervenção, primeiro, submetendo os diversos ofícios à prestação anual de juramento e fiança, depois, por meio de uma intervenção permanente dos almotacés. À vereação estava acometida também a tarefa de estabelecer os preços de venda ao público dos diversos géneros de produção local. Todos os anos, entre outubro e janeiro, eram estabelecidos preços para os produtos colhidos no concelho: vinho, cereais, cebolas, feijão, favas, batata, carne, laranjas, limões, inhame, vimes, cana doce. As atas das vereações e as posturas municipais revelam-nos muitos dos problemas resultantes do abastecimento de bens alimentares e artefactos no mercado madeirense. As posturas são a face visível da intervenção reguladora do município no mercado e comércios interno e externo. Para o mercado local, a intervenção assentava num apertado sistema de vigilância, como antes afirmámos, incidindo sobre os preços de venda de mais bens alimentares e artefactos, fixados em vereação. Já para o mercado externo, a intervenção ia no sentido de limitar as trocas com o exterior aos excedentes ou produtos a isso destinados, de forma a evitar situações de rotura com o abastecimento local, mas quase sempre com grande insucesso, pois, num edital da Câmara do Funchal de 1784, refere-se “o abuso inveterado e a extraordinária relaxação que praticam infinitas pessoas em fraude das posturas deste senado, estabelecidas contra os que exportam para fora da terra géneros que a ela são precisos” (ARM, Câmara Municipal..., Editais, lv. 235, fls. 27-28v.). Mas, porque as posturas e regulamentos protecionistas entravam em conflito com os interesses dos comerciantes e até do próprio Estado, as câmaras perderam estas prerrogativas, em 1836. A ação do município delineava-se de acordo com o nível de desenvolvimento socioeconómico de cada cidade. Os espaços de grande animação comercial necessitavam de maior atenção e de uma regulamentação exaustiva do movimento de entrada e saída, orientada de diferentes formas. A defesa da produção interna implicava, necessariamente, condicionamentos no movimento de entrada. Por outro lado, a carência, nomeadamente de bens alimentares, conduziu ao estabelecimento de medidas incentivadoras da sua entrada e de um controlo rigoroso do seu transporte e armazenamento. Estas últimas posturas estavam apoiadas na limitação imposta à sua saída ou reexportação. Estão incluídos neste caso: cereais, vinho, azeite, pescado, gado, carne, biscoito, linho e couro. Todavia, a intervenção dos municípios insulares foi variável, em consequência de uma situação socioeconómica diversa. Pela importância que têm na vivência das populações insulares, os cereais merecem redobrada atenção no código de posturas. Com efeito, as posturas adaptaram-se à conjuntura cerealífera municipal e insular, o que conduziu a uma permanente mobilidade do seu articulado: de facto, foram das poucas posturas que se alteraram com uma periodicidade mensal ou anual. A fragilidade do plano económico insular, associado à sua extrema dependência do mercado europeu e atlântico, condicionou o nível de desenvolvimento do sistema de trocas, marcado por múltiplas dificuldades no abastecimento. Deste modo, as autoridades municipais fizeram incidir a sua ação sobre o sistema de trocas, de maneira a assegurar a subsistência das populações insulares. Como referimos, o articulado das posturas frumentárias ia ao encontro da conjuntura particular de cada município e, no geral, do mundo insular. Aí definiam-se medidas compatíveis com as reservas de cereais existentes nos granéis públicos e privados, dando-se particular atenção ao preço, peso do pão e contingentes para exportação. É de salientar que, em todos os municípios, quanto ao fabrico da farinha e à necessária intervenção do moleiro, era comum a preocupação dos munícipes e governantes. O vinho faz parte do grupo de culturas ou produtos atingidos por este tipo de medidas protecionistas, mercê da sua importância na dieta e sistema de trocas insulares. As posturas estipulavam medidas de proteção da cultura, nomeadamente em face da depredação do gado nos vinhedos e dos furtos de uvas, bem como normas para a venda do vinho atavernado. No primeiro caso, fixaram a proibição da venda de uvas sem indicação ou licença do dono. No segundo, procuraram evitar os processos fraudulentos na sua venda, com a fuga ao pagamento da imposição e à baldeação de vinhos de diferentes qualidades. Assim, cada taberna só podia dispor de duas pipas de vinho (branco e tinto) e ambas varejadas e abertas por um oficial concelhio, o rendeiro do vinho. A época de abertura do vinho novo, que, de acordo com a tradição, se celebrava pelo S. Martinho (patrono dos alcoólicos, em parceria com S. Plácido e S.ta Bebiana), tinha também expressão nas posturas municipais, definindo, desde tempos recuados, a proibição de beber e vender vinho novo antes desta data (11 de novembro). A carne e o peixe, produtos cuja venda e manuseio exigiam especiais cuidados, ocupam também um lugar de destaque nas posturas. Estabeleceram-se normas reguladoras de todo o processo de circulação e venda. Assim, não era permitida a sua venda fora da praça e, mesmo aí, teria que ser feita por agentes habilitados pela vereação. Deste modo, aos proprietários de barcos, arrais ou pescadores estava vedado o comércio a retalho. Ambos os produtos deveriam ser almotaçados e, depois, postos à venda. A carne, para além do seu corte obrigatório no açougue pelo marchante, que arrematava semanalmente o seu fornecimento ao concelho, tinha a venda permanentemente vigiada por um oficial concelhio. A venda por peso ou medida facilitava o dolo dos vendedores pouco honestos que falsificavam os meios de medição. Deste modo, o município era obrigado a redobrar a sua vigilância sobre o retalhista, sendo o seu alvo principal as vendedeiras. Daí o estipular-se o uso obrigatório de pesos e medidas aferidos pelo padrão municipal, em todas as ilhas, sendo a respetiva conferência anual e a cargo do almotacel. A preocupação do legislador insular incidia mais sobre as questões económicas, que, pela sua importância na vivência quotidiana, justificavam redobrada atenção. A sociabilidade, no acanhado espaço insular, não implicava uma intervenção permanente do município. Além disso, a marginalidade não era preocupante, mercê da coação exercida pela limitação espacial, que impossibilitava uma fácil evasão e proliferação. Em certa medida, essa relativa mobilidade das sociedades insulares, abertas às influências do meio exterior, contribuiu para que se desvanecessem as cambiantes típicas. A urbe, espaço compartimentado da realidade insular, era animada com a ação dos diversos agentes económicos nos domínios da produção, transformação, transporte e comércio. Essa múltipla sociabilidade, resultante de uma escala de estratos socioprofissionais, de forasteiros, vizinhos e marginais, implicava a necessária definição de convivência social adequada à normalidade do quotidiano e relacionamento social. A marginalidade, em terras onde a mão de obra detém uma importante componente escrava, resulta deste grupo social ou daqueles que a ele já pertenceram, os libertos. A eles associam-se os vadios, os mancebos de soldada e as meretrizes. Enquanto os escravos estavam relacionados, preferencialmente, à safra do açúcar, as meretrizes abundavam nas cidades portuárias como o Funchal. Os escravos constituíam, todavia, a principal preocupação dos municípios no domínio social. Deste modo, no articulado das posturas, estabeleceram-se minuciosamente os padrões de comportamento do grupo, estipulando-se os limites da sua sociabilidade, além de outras formas de delimitação ou segregação social. Assim, ao escravo era vedado o acesso a casa própria e mesmo a possibilidade de coabitar na urbe: deveria residir nos anexos da fazenda ou quinta do senhor, não podendo ausentar-se sem a anuência do mesmo. Fora do seu apertado circuito de movimentação, o escravo deveria ser identificável pelo sinal e não podia usar arma, nem permanecer fora de portas após o toque para recolher. Em face disto, o seu quotidiano deveria restringir-se ao serviço da casa e terras do senhor. Acresce que ninguém, nem mesmo os libertos, poderia acolher, alimentar ou esconder qualquer escravo foragido. A defesa da moral pública, devidamente regulamentada nas ordenações do reino, mereceu as necessárias adaptações nas sociedades atlânticas, definindo o espaço e as formas de convívio social locais. Com a finalidade de proteger a reputação da mulher casada, delimitou-se a área de intervenção e convívio da mancebia e coagiu-se o sexo oposto a manter um comportamento regrado com as mulheres na fonte, ribeira e via pública. A promoção das necessárias condições de vida do burgo completou-se com a já referida procura de um nível adequado de salubridade do espaço de convívio e de labor social. A premência das doenças, nomeadamente a peste, colocava a obrigação de o município intervir com medidas sanitárias. Estas acentuaram-se em determinadas áreas, de acordo com o nível de salubridade e de ruralidade associado à animação da atividade oficinal predominante. Da intervenção do município nesse domínio, é de destacar o facto de as preocupações sanitárias resultarem, em parte, da presença considerável de animais no burgo e da sua circulação no local, do uso abusivo da água das fontes, poços, levadas e ribeiras para lavar ou beber e para o uso industrial, mais o necessário asseio das ruas e praças públicas. Daí a necessidade de pôr termo a essa tendência exacerbada de ruralização do meio urbano, delimitando a área de circulação e, no caso da Madeira, a construção de abrigos para os animais, conhecidos como palheiros. A água doce, elemento vital do quotidiano e faina agrícola, particularmente nas ilhas, mereceu atenta regulamentação por parte dos municípios, onde se procurou regularizar o uso do bem, de modo a evitar o seu furto e dano com as atividades artesanais, sobretudo, aquelas que trabalhavam com o linho e o couro. A fonte, espaço privilegiado do quotidiano da urbe, teve especial atenção neste contexto, restringindo-se o seu uso como bebedouro para animais ou estendal de roupa. O Funchal era, sem dúvida, de todos os municípios, aquele que desfrutava de melhores condições de salubridade. A sua situação geográfica, talhada por três ribeiras, associada à delimitação do espaço agrícola, assim o permitem afirmar. Note-se que, nas atas das vereações, bem como no código de posturas, a preocupação com o asseio das ruas e praças é pouco relevante. A adesão da população a estas normas de conduta é atestada pelas infrações, prontamente combatidas pela vereação através das coimas. Por um lado, esta fiscalização repressiva e, por outro, a assídua divulgação das regras, através dos pregões do porteiro da câmara, fizeram com que estas medidas fossem do conhecimento dos munícipes. Aos infratores das normas era imposta uma coima, que consistia em açoites, na prisão ou numa pena pecuniária, que revertia como receita para a câmara. O rendeiro e o alcaide tinham o encargo de aplicar as penas. A coima estabelecida no código de posturas reforçava o articulado da postura, mercê da relação existente entre o valor da mesma e a importância atribuída pelo município a cada aspeto regulamentado. Este regime penal municipal estava a cargo dos rendeiros e do alcaide, procedendo o primeiro à cobrança e o segundo à captura do transgressor, com a prisão estipulada. Note-se que a coima não se resumia apenas ao pagamento pecuniário, podendo ser um misto de moeda e prisão, perda do produto em causa ou, ainda, pagamento dos danos. Com o Estado Novo, as multas aplicadas aos transgressores das posturas passaram a ser partilhadas com o Estado, que arrecadava 25 % do seu valor. Ainda ao nível das sanções, no caso das posturas sobre os danos provocados pelo gado, acumulava à pena o pagamento dos danos. A partir do séc. XIX, com o aparecimento da imprensa periódica, a lista dos infratores, como as posturas, passou a ser publicada nos jornais. A intervenção do município, a este nível, era implacável, conforme se poderá verificar, consultando o resumo das receitas municipais e das intervenções assíduas da vereação. O código de penalizações variou com o decorrer dos tempos, de acordo com as áreas em questão, adequando-se à realidade socioeconómica que lhe servia de base. A taxa era estabelecida de acordo com o grau de gravidade e transgressão. As penas assumiam uma forma diversa na sua aplicação, que podia ser, como antes, o pagamento em dinheiro, variando entre 50 a 6000 reis; uma pena de prisão, que podia ir até 30 dias e era complementada pela indemnização pelos danos causados, nomeadamente, pelo gado nas culturas agrícolas, implicando a perda do produto ou artefacto produzido ou transacionado. A primeira reincidência dos infratores podia conduzir à oneração da coima. Usualmente, a primeira vez era punida com pena dobrada e a segunda podia implicar açoites, desterro perpétuo ou temporário. O valor da pena pecuniária, bem como o número de dias de prisão eram estabelecidos pela vereação, segundo uma tabela ou matriz que deveria existir em cada município. Esta oscilava entre os 500 e os 2000 réis, podendo, em situações excecionais, atingir um valor superior a 1500 réis. As penas extraordinárias incidiam preferencialmente sobre os aspetos que assumiam maior importância para a vivência do burgo ou que eram suscetíveis de fácil infração. Assim, os ofícios de moleiro, vendeiro, carniceiro e boieiro situam-se entre os mais onerados pela coima. O mesmo sucedia com a regulamentação do comércio externo, sobretudo, em relação à saída do vinho, cereais, linho e couro. A eficácia da aplicação e arrecadação das coimas dependia, em certa medida, do empenho do denunciante, mercê do usufruto de parte da coima. Em todas as localidades, o denunciante recebia parte significativa da pena, entre 1/3 e 1/2. As frações sobrantes eram aplicadas de modo diverso: quando em três partes, essa quantia era dividida pelo acusador, cativos e concelho; quando em duas, atribuía-se metade ao acusador e a restante ao concelho. A formulação destas posturas não é original, uma vez que tem o seu fundamento na legislação do reino, por um lado, e no código de posturas de Lisboa, por outro, tendo-lhe servido ambos, de certo modo, como matriz. As ordenações régias definiram os parâmetros de atuação do legislador insular. O facto de o modelo institucional do município de Lisboa ter sido a base para a constituição do madeirense e de este ter, por sua vez, influenciado o articulado institucional da nova sociedade madeirense que teve repercussão nos Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Brasil, conduziu a essa influência em cadeia. A partir daqui, conclui-se que o município de Angra foi o que manteve maior fidelidade ao postulado das ordenações do reino, embora se tenha afastado do articulado das posturas de Lisboa, ao invés do que sucedeu nos municípios do Funchal e Ponta Delgada. Tendo em conta a anterioridade do processo de ocupação madeirense e o facto de o código de posturas funchalense ser o mais antigo, é natural que este tenha influenciado, de forma importante, a elaboração das de Angra e Ponta Delgada. Confirma-se assim que a influência do modelo institucional madeirense foi decisiva para a organização da estrutura institucional açoriana e que essa não se limitou aos aspetos formais. É de salientar o número significativo de posturas específicas de cada município que, a par da maior incidência em alguns domínios, se diferenciam dessa realidade. Estas situam-se maioritariamente no domínio da agricultura e da produção artesanal, aspetos típicos do múltiplo processo de desenvolvimento socioeconómico de cada município ou ilha. Um dos seus traços mais peculiares assenta nos sectores da faina açucareira, do pastel, do pascer do gado e do aproveitamento dos recursos do meio. As situações resultantes dessas formas variadas de exploração dos recursos implicavam uma maior atenção do legislador local, até porque não se encontravam situações similares em Lisboa. Nesta última cidade, insistia-se mais no asseio do espaço urbano e na atividade oficinal e de troca do que na faina agrícola. Os códigos de posturas das novas sociedades do Atlântico português resultaram de uma simbiose das ordenações régias com os usos e costumes de cada burgo, como ficou exposto. A influência das posturas do reino ter-se-á verificado nos primórdios da criação destas novas sociedades, mercê da transplantação das normas de sociabilidade continental e dos usos e costumes dos locais de origem dos primeiros povoadores. Naturalmente, o devir do processo histórico condicionou uma evolução peculiar destas sociedades, o que conduziu a uma sistematização original deste direito nas ilhas, algo evidente nas posturas insulares, sobretudo, quinhentistas e seiscentistas. De facto, o código de posturas insulares dos sécs. XV e XVI surge como a expressão mais lídima do direito local do novo mundo. A sua elaboração fez-se, pois, de acordo com as condições subjacentes à criação das novas sociedades insulares e atlânticas. Convém referenciar, ainda, que, se considerarmos as posturas como reflexo das manifestações multiformes da vivência socioeconómica, será lógico admitir uma diversa formulação em relação ao articulado das cidades litorais e interiores do continente. Assim, as cambiantes peculiares da mundividência insular definem, como vimos, o código e articulado das posturas insulares. Confrontadas as posturas das ilhas portuguesas com as das Canárias, neste domínio, surgem algumas diferenças pontuais, pois o direito municipal não se adequa à relativa autonomia definida pelos alvarás e regimentos régios. Deste modo, na Madeira e nos Açores, onde as autoridades locais usufruíam de amplos poderes e a sua capacidade legislativa estava entravada pela insistência das ordenações régias e regimentos, o legislador (açoriano-madeirense) foi forçado a afinar pelo mesmo diapasão peninsular, submetendo-se ao articulado das posturas de Lisboa. Ao invés, nas Canárias, os munícipes beneficiavam de ampla capacidade legislativa, elaborando o código de posturas de acordo com as solicitações da vida local. Esse rasgo de originalidade acentuou-se, em todos os municípios, apenas no domínio socioeconómico.   Alberto Vieira (atualizado a 15.02.2018)

Direito e Política

provérbios e outros ditos populares

Não existindo nenhum dicionário de provérbios madeirenses, mas apenas algumas recolhas avulsas, este texto procura contribuir para um melhor conhecimento do património linguístico e cultural da Madeira. Pretende-se ainda participar na discussão sobre a questão colocada por Cabral do Nascimento, em 1950, acerca da “existência de palavras e locuções madeirenses”, através da análise de exemplos concretos de usos proverbiais atestados no arquipélago da Madeira e de reflexões provenientes de vários estudiosos madeirenses. Palavras-chave: Cabral do Nascimento; gentílicos; regionalismos; topónimos; variações madeirenses do português. Não havendo dicionários específicos sobre os provérbios e outros ditos populares em uso no arquipélago da Madeira, foram analisados vários dos trabalhos publicados sobre vocábulos madeirenses (v.g., monografias dialetais), alguns dos quais remontam a 1916, e também estudos de especialistas em linguística que se têm debruçado sobre os vocábulos regionais. Outros dados foram reunidos na ilha do Porto Santo, junto de fontes orais, após a seleção de pessoas de faixa etária muito avançada. Durante o processo de recolha, e por não haver conhecimento de qualquer registo proverbial referente a esta ilha, começou por se contactar Manuel Avelino Melim, cantor repentista de 90 anos, conhecido como “o peru”. Quando questionado, não sabia o significado do termo “provérbio”, mas posteriormente veio a dar dele a definição de “falar por tabela”, adiantando que aquilo que se pretendia saber poderia ser resumido naquela expressão, cuja referência também se encontra na obra Dizeres da Ilha da Madeira, de Luís de Sousa, que define “falar por tabela” como “referir-se indiretamente” a algo (SOUSA, 1950, 74). Foram igualmente realizadas recolhas orais em várias localidades da ilha da Madeira, junto de pessoas com idades superiores a 60 anos. Estas recolhas permitiram atestar o uso dos provérbios e dos ditos populares selecionados, muitos dos quais se encontram registados em monografias dialetais sobre o arquipélago. Na freguesia do Porto da Cruz, v.g., um ancião afirmou, com o sentido de dar tempo ao tempo ao assunto que ali nos tinha levado: Tenha calma. Antes da meia-noite não lhe irá dar sono. Assim, aplica-se às recolhas orais realizadas no arquipélago da Madeira o que disse Raphael Bluteau: “Recolhi Palavras anticadas, como relíquias de Portugal o velho e acrescentei vozes modernas, como enfeites de Portugal o novo” (BLUTEAU, 1712, I, 33). Após esta fase preliminar de pesquisa, em que nos questionámos sobre a existência de provérbios madeirenses, seguiu-se um processo muito importante do ponto de vista metodológico: confrontar os dados coligidos com os que se encontram publicados em dicionários da especialidade, a fim de aferir, através do método da comparação, a sua especificidade madeirense (no caso de não se encontrar atestado o uso dos provérbios e dos ditos populares em outras partes do país). António Carvalho da Silva considera esta questão muito importante e refere que: “A grande questão é que trabalhos anteriores ao de Luís de Sousa (Emanuel Ribeiro, Antonino Pestana, Jaime Vieira dos Santos ou Urbano Canuto Soares) já consideravam madeirenses alguns termos usados em todo o território nacional” (SILVA, 2008, 65). Neste trabalho, foram excluídos muitos dos provérbios recolhidos, pelo facto de também se encontrarem citados em dicionários de provérbios nacionais, como estando em uso noutras regiões de Portugal. Sobre este critério de seleção – o vínculo do uso proverbial às comunidades insulares do arquipélago da Madeira –, já Cabral do Nascimento questionava, a propósito do referido trabalho de Luís de Sousa, a existência de palavras e locuções madeirenses. Relativamente às 140 páginas por ele analisadas, referia que o autor não teria tido o tempo suficiente para saber se os vocábulos por ele recolhidos seriam também utilizados no território nacional. O próprio Luís de Sousa o admitia: “Quero fazer sentir a enorme dificuldade com que se depara quem, tendo nascido na Madeira e sempre na Madeira vivendo, só em rápidas e trabalhosas digressões pelo continente português e pelos Açores, teve ensejo de entrar em contacto com os naturais dessas paragens, faltando-lhe, portanto, o tempo para averiguar se determinada palavra ou locução é original desta ilha ou só aqui empregada, pois a consulta dos nossos dicionaristas e a leitura dos nossos escritores, mesmo daqueles que, como Aquilino, mais se comprazem com os dizeres do povo, não são, em muitos passos, o suficiente para a elucidação de um curioso, às voltas com um trabalho deste género” (SOUSA, 1950, 7-8). Este é um trabalho do qual se irá encarregar o próprio Cabral do Nascimento, ao comparar alguns dos vocábulos de Sousa com outros semelhantes, usados em certas regiões de Portugal continental, muitas vezes, como o próprio afirma, com desvios semânticos. A amostra de provérbios e de ditos populares atestados na Madeira, que a seguir se apresenta, tem em conta esta questão central: a sua originalidade insular. Para além deste condicionamento metodológico, que leva a reter apenas o uso atestado de um provérbio ou de um dito popular numa comunidade linguística situada num determinado território, é de salientar a opção pela descrição linguística, indo de encontro ao que referem Gabriela Funk e Matthias Funk: “Após mais de um século de estudo sobre o Provérbio, seria de esperar que este género da Literatura Oral se encontrasse devidamente caracterizado. No entanto, nas publicações da especialidade, não encontramos nem uma definição global nem uma caracterização consensual de Texto Proverbial” (FUNK e FUNK, 2008, 15). No seu dicionário, Bluteau regista algumas obras que tratam da definição de “provérbio”; descreve o adágio como “sentença comum popular e breve com alusão a alguma coisa”, acrescentando que o licenciado António Delicado reduziu a lugares-comuns os adágios portugueses, e que “os adágios são as mais aprovadas sentenças, que a experiência achou nas ações humanas, ditas em breves e eloquentes palavras” (BLUTEAU, 1712, I, 237). O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Editora Objetiva, 2001) define “provérbio” como sendo uma “frase curta, ger. [geralmente] de origem popular, freq. [frequentemente] com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral (p. ex.: Deus ajuda a quem madruga) […] na Bíblia, pequena frase que visa aconselhar, educar, edificar; exortação, pensamento, máxima”. Em Adagios, Proverbios, Rifãos e Anexins da Lingua Portugueza… encontramos a seguinte definição: “Ora todas as Nações têm ajuizado, que os Provérbios ou Adágios, são de grande utilidade para os Homens […]. Muitas cerimónias, e costumes antigos se encerram nos Provérbios. Eles são o depósito de toda a Antiguidade” (ROLLAND, 1780, 6). Este trabalho visou essencialmente selecionar os provérbios e os ditos populares usados na Região Autónoma da Madeira (RAM), registados ou não, que são verdadeiramente insulanos, ou seja, que mencionam características do arquipélago ou que a ele se referem, bem como às suas gentes e aos seus costumes. Na opinião de Manuel Nóbrega, “a cultura popular nunca pode competir com a erudita. Desaparecendo a atividade agrícola, desaparece a eira, o forno, a matança dos porcos, a lareira de aquecimento, a lenha, bem como o serão que se concentra em volta da televisão em vez de ser em volta da lareira. Por isso mesmo, a preservação da riqueza e cultura popular perde-se de modo irreversível. Perde-se a cultura popular dos provérbios, sobrepondo-se a cultura escrita à oral” (NÓBREGA, 2005-2006, 74). Esta observação leva-nos a pensar se – dado que não existe nenhum dicionário específico de provérbios e ditos populares insulanos, como inicialmente referido – será possível assegurar que determinado provérbio ou dito usado na ilha da Madeira ou de Porto Santo tem efetivamente aí a sua origem, apesar de existirem obras, exclusivamente dedicadas a adágios, ditos e provérbios nacionais, que não o afirmem. Trata-se de uma tarefa muito difícil e complexa. Relativamente a esta exigência metodológica, vale a pena referir de novo o clérigo Bluteau, que, em 1712, escreveu que estava há 30 anos a recolher vocábulos portugueses e lhe disseram que a língua portuguesa não merecia tanto trabalho, pois a maioria dos estrangeiros considerava-a como uma corruptela do castelhano, mas que ele próprio considerava isso um disparate: “Também houve, quem com rústica simplicidade me disse, que não merecia a língua Portuguesa tanto trabalho. A razão desse disparate é, que na opinião da maior parte dos estrangeiros, a língua Portuguesa não é língua de per si, como é o francês, o italiano e Cia mas língua enxacoca e corrupção do castelhano, como os dialetos, ou linguagens particulares das províncias, que são corrupções da língua” (BLUTEAU, 1712, I, 35). Na crítica publicada no Arquivo Histórico da Madeira, em 1950, Nascimento comunga da opinião de Sousa, ao referir a importância de “não nos fiarmos nos dicionários, porque atualmente alguns deles registam (como o de Cândido de Figueiredo) certos termos colhidos por estes monografistas, sem lhes aditar o pormenor da sua origem, o que determina ainda maior confusão” (NASCIMENTO, 1950, 207). V.g., são de salientar termos como “vilão”, vocábulo tipicamente madeirense, e “balalau”, tipicamente porto-santense, ambos em uso nas duas ilhas, mas porventura com diferentes conotações consoante os dicionários. Emanuel Ribeiro dizia: “Desde o primeiro dia em que desembarquei na Madeira resolvi tomar nota dos diversos e variadíssimos vocábulos que têm o uso aqui e para mim, forasteiro, formavam uma linguagem estranha e extravagante” (RIBEIRO, 1929, 10). A classificação da amostra selecionada a partir do corpus de provérbios e ditos populares recolhidos fez-se de acordo com o critério “marcador de regionalidade”, ou de “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010, 210-226), o que permitiu formar dois conjuntos. De um primeiro conjunto, de forte grau de regionalidade, fazem parte os dois subconjuntos a seguir especificados: os provérbios e ditos populares que contêm um topónimo (Toponímia) ou um gentílico (Gentílicos), cujo nome de lugar e nome de origem sejam identificados como existentes no espaço do arquipélago, e aqueles provérbios e ditos que recorrem a regionalismos e que, a nível semântico, estão relacionados, direta ou indiretamente, com usos e costumes, com diversos aspetos culturais e sociais insulanos (alguns deles já se encontram registados desde 1950). Neste conjunto, é de salientar, v.g., o uso dos termos “vilão” e “palheiro”. Um segundo conjunto, com grau de regionalidade mais fraco, cuja classificação (autenticidade local) se prende com o facto de ter sido registado, nas obras consultadas, como sendo de carácter regional, ou de estar atestado como estando em uso na região, decorre de recolhas orais efetuadas em 2013. Este grupo contém provérbios ou ditos populares – por vezes carregados de ironia, ou com o intuito de admoestação ou de conselho – ligados a vários aspetos da condição humana e insular (meteorologia, festividades e costumes religiosos, etc.). Na mostra, os provérbios e ditos populares são apresentados com indicação da sua fonte e do seu sentido. Nem sempre a sua significação foi retirada da respetiva fonte, como é o caso das expressões que constam dos trabalhos de João da Cruz Nunes (Os Falares da Calheta…, de 1965), de Horácio Bento de Gouveia (A Canga, de 1976) e de Gabriel de Jesus Pita (A Freguesia dos Canhas, de 2003), uma vez que estes autores não fornecem os significados das expressões por si registadas. Provérbios Provérbios com topónimos e gentílicos regionais De São Vicente, nem bois nem gente (MOREIRA, 1996; RIBEIRO, 2007): antigo, em desuso; nem uma coisa nem outra. De São Vicente, nem bom vento nem bom casamento (MOREIRA, 1996): conselho; o vento de Norte significa mau tempo (São Vicente localiza-se no Norte da Madeira, sendo outrora dificilmente acessível); aplicado ao matrimónio contraído com naturais de São Vicente e à necessidade de prudência a esse respeito. Deserta descoberta, chuva certa (fonte oral, Madeira): referência a uma das ilhas que faz parte do conjunto de ilhas desabitadas que são área de reserva natural do arquipélago; quando a ilha Deserta está extremamente visível e o mar calmo, pode ser sinal de chuva. Onde está um machiqueiro, está um engenheiro (fonte oral, Madeira): capacidade de vencer obstáculos, atribuída aos habitantes de Machico. Porto Santo alerta, bonança certa (SANTOS, 1995): referência à segunda ilha do arquipélago; calmaria no mar, boa viagem marítima, sinal de bom tempo. Provérbios com regionalismos e referências diretas ou indiretas à Madeira Do Leste à chuva vai um salto de pulga (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965; PITA, 2003): indica que o tempo é imprevisível; do vento Leste (que está associado ao tempo quente e seco) à chuva pode ser uma mudança brusca. É como o vilão, que dá o pé e toma a mão (NUNES, 1965): João da Cruz Nunes não regista a definição; no entanto, poderá exprimir o facto de alguém que tenta vincar a sua importância; exprime o facto de o vilão (o colono, o trabalhador) não respeitar o seu senhor (o dono da terra). Ao vilão dá-se o pé para ele dar a mão (CALDEIRA, 1961): diz-se quando alguém se impõe na troca de cumprimentos, para evitar que o vilão abuse; neste uso, parece existir um sentido de superioridade, uma tentativa de demonstrar ao vilão quem é mais importante. Filho de balalau, balalau é! (fonte oral, Porto Santo): o vocábulo “balalau” é tradicional da ilha do Porto Santo; este adjetivo avalia ou qualifica alguém com menos capacidade, alguém com dificuldades, que não é rápido nem eficaz nas decisões que toma; v.g., “Ah, rapaz! Tás ficando balalau?”; “Bem disse que filho de balalau, balalau é!”. Variante: Filho de balalau é balalau em cheio! (fonte oral, Porto Santo). O Leste nunca morreu à sede (CALDEIRA, 1961): diz-se quando há estiagem e, a certa altura, sopra vento de Leste; v.g., “Isto é que é um Leste para queimar as plantas! Mas, como se costuma dizer, o Leste nunca morreu à sede”. As primeiras chuvas de verão são para enganar o vilão (fonte oral, Madeira): o vocábulo “vilão” tem uma conotação específica na RAM, sendo tanto o vilão que baila (sentido etnográfico), como aquele que usa de esperteza em determinadas alturas, que trabalha na agricultura ou ainda aquele que usa o tradicional barrete de orelhas, feito de lã de ovelha; no passado, o termo “vilão” servia para diferenciar socialmente o camponês do habitante da cidade; significa que as primeiras chuvas de verão não regam nada, servem apenas para enganar o agricultor. Quem quer ver vilão, ponha-lhe o mando na mão (NUNES, 1965): exibir-se; determinadas situações revelam a natureza das pessoas. Com o mesmo sentido, Bluteau regista: Se queres saber quem é o vilão, mete-lhe a vara na mão (BLUTEAU, 1720, VII, 541). Relativamente ao termo “vilão”, Bluteau tem ainda vários provérbios, e.g.: Se o vilão soubesse o sabor da galinha em janeiro, nenhuma deixaria no poleiro (BLUTEAU, 1721, VIII, 512). O vocábulo “vilão”, em Bluteau (BLUTEAU, 1721, VIII, 512), apresenta a seguinte definição: “Homem do campo, dedicado aos mais humildes ofícios da agricultura”. Quem quiser ver o vilão confiado, dê-lhe a chave da retrete (CALDEIRA, 1961): diz-se das pessoas que, sem motivo, se tornam petulantes; v.g., “Ah! Ele fala assim agora… pois é… quem quiser ver o vilão confiado, dê-lhe a chave da retrete”. Provérbios sem marcador lexical explícito de “madeirensidade” atestados na Madeira (registados e/ou em uso) Existem outros provérbios relacionados com várias realidades e atividades do quotidiano, muitas delas interligadas, como é o caso da meteorologia e da agricultura, ou ainda da alimentação e da agricultura. Da lista a seguir apresentada, apenas alguns provérbios se encontram registados. Agricultura Alqueire muito cheio é mexer no que é alheio (fonte oral, Porto Santo): alguém tirou mais do que devia. Ciúmes a sudoeste, se lavraste bem no cedo, bem fizeste (fonte oral, Porto Santo): indícios de que irá chover, o que será bom para a agricultura, se a terra tiver sido cultivada a tempo. Enquanto há água na fazenda é que se rega (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que enquanto se tem o artigo na mão é que se deve aproveitá-lo. O trabalho faz cansar, mas o descanso não faz alterar (fonte oral, Porto Santo): sobre a relação trabalho-descanso; o descanso não é suficiente para recuperar do cansaço. Quando ameaça mijar, o campo vai regar (fonte oral, Porto Santo): emprega-se quando a previsão é de chuva. Quando há água na fazenda é que se rega (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que quando há ocasião é que se faz, ou se diz. Vermelho ao nascente, é picar os bois e andar sempre (NUNES, 1965): com o nascer do sol, é andar depressa para a lavoura. Outros provérbios, de estrutura semelhante, fazem referência à vida no campo e à ocupação do dia, desde a aurora até ao entardecer, com diversas atividades: Vermelho ao nascente, é amassar e trazer gente (PITA, 2003): quando está a nascer o sol, é hora de começar a trabalhar. Vermelho ao poente, é amassar e trazer gente (NUNES, 1965): quando está a anoitecer, é hora de fazer o pão. Vermelho ao poente, é picar os bois e andar sempre (PITA, 2003): quando está a anoitecer, é hora de guardar os bois. Existe uma particularidade em cada um destes provérbios. Alimentação Nem sempre é pão com fel, nem sempre é pão com mel (CALDEIRA, 1961): nem sempre mau, nem sempre bom. Pão e vinho fazem o velho menino (PITA, 2003): expressão popular que manifesta dois fatores de satisfação na vida – o pão alimenta e o vinho dá alegria e rejuvenesce. Para a serra leva pão e gabão (PITA, 2003): espécie de alerta; recomendação de que para a serra se leve comida e agasalho. Uns comem os figos, outros arregalam os beiços (NUNES, 1965): uns comem, outros não; aplicada quando, na mesma circunstância, uns saem beneficiados e outros prejudicados; v.g., “Ah! Então é assim? Uns comem ui figues, outros arregalam ui beiços”. Aviso/ameaça Alto vareta, quem não quer dar não prometa (SANTOS, 1995): advertência a quem promete e não cumpre. Burro velho é melhor matar que ensinar (fonte oral, Camacha): diz-se de quem não consegue aprender nada. Variante: Burro velho não aprende línguas. Cachorro macho só é capado uma vez (CALDEIRA, 1961): refere-se à pessoa que nem se deixa levar por intrigas nem permite ser vigarizada; o mesmo que dizer: “Enganado, só uma vez”. Há muita maneira de matar pulgas (CALDEIRA, 1961): diz-se a alguém que duvida da forma como aconteceu ou se fez alguma coisa; v.g., “Ah! Não acreditas nisso? Olha que há muita maneira de matar pulgas”. Homem que bate muito com a mão no peito, é fugir dele como o diabo da cruz (fonte oral, Madeira): incitação a desconfiar de quem muito se queixa; v.g., “Não acredites nele nem nas suas cantigas [falas/queixumes], porque homem que bate muito com a mão no peito, é fugir dele como o diabo da cruz”. Os piores venenos guardam-se nos frascos mais pequenos (SANTOS, 1995): as pessoas são capazes de atitudes inesperadas e drásticas; a maldade revela-se, muitas vezes, onde menos se espera. Pragas sem razão nem sequer ao maior cão (CALDEIRA, 1961): conselho que se dá a quem roga pragas. Variante: Praga sem razão não se pede nem ao maior cão. Quem dá e tira, quando morrer, nasce-lhe uma tira (NUNES, 1965; CALDEIRA, 1961): aviso a quem dá e depois se arrepende de o ter feito; servia como forma de assustar as crianças, para não pedirem a devolução daquilo que davam umas às outras; v.g., “Ah, menino! Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira”. Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira (CALDEIRA, 1961): aplica-se a quem dá e depois se arrepende. Quem diz o que quer ouve o que não quer (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre os que censuram outros; diz-se quando alguém dirige insultos ou palavras insinuadoras e se mostra melindrado se a outra pessoa retribui da mesma maneira; o mesmo que dizer: “Se não querias ouvir, não dissesses”. Quem fala no barco é que quer embarcar (CALDEIRA, 1961; PITA, 2003): sobre a revelação implícita de um desejo; alguém fala num assunto que lhe interessa, mas de forma indireta; o mesmo que dizer: “Estás falando nisso, faz tu ou paga tu”. Quem não tem que fazer, descosa a saia e torne a coser (CALDEIRA, 1961): velho aforismo que se usa quando alguém maça ou perturba outra pessoa; diz-se da pessoa que nada faz e que incomoda, com insistência, os outros. Quem quiser empobrecer sem Deus querer, chame gente e não vá ver (PITA, 2003): aplica-se a quem perdeu os seus bens por não os saber administrar e que por isso poderá receber comentários negativos a seu respeito. Quem tem rabo não se assenta (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se pisa o rabo de um gato ou de um cão e eles emitem sons de dor; diz-se de quem foi castigado por ter prejudicado alguém; v.g., “Oh, diabo! Quem tem rabo não se assenta!”. Conselhos A rico não devas e a pobre não prometas (SANTOS, 1995): conselho para que se não fique a dever a pessoas abastadas, porque se ficará dependente delas, e para que se não prometam bens a um pobre, porque ele ficará dependente deles. Boca calada não entra moscas (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se aconselha alguém a estar calado; v.g., “O melhor que tens a fazer é ficar calado, porque boca calada não entra moscas”. Casa quanto caibas e bens que não saibas (PITA, 2003): conselho para se ser feliz – ter uma vida modesta e não pôr os bens materiais em primeiro lugar. Fala pouco e bem e ter-te-ão por alguém (PITA, 2003): estímulo à boa educação. No mesmo sentido: Fala pouco e bem e ter-te-ás por alguém (MILHANO, 2008; RIBEIRO, 2007). Mulher desconfiada vigia-se como gavião (fonte oral, Camacha): é necessário ter uma visão apurada; é necessário vigiar muito bem a reação de terceiros perante os próprios atos. Mulher santeira não queiras à tua beira (fonte oral, Porto Santo): sobre a importância de se ter uma mulher honesta e sensata. Para quem tem boa ideia não há mulher feia (fonte oral, Madeira): expressão que exorta a ter apreço pelos valores e pelas qualidades humanas. Quem casa com mulher bonita tem o diabo à porta (fonte oral, Madeira): diz-se do facto de a beleza atrair pretendentes. Quem tem olhos, tem abrolhos (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer “quem tem olhos tem o direito de ver”; sobre o dever de observar as coisas tal como são. Se queres um bom conselho, toma com quem é mais velho (PITA, 2003): sobre a importância da experiência de vida. Sim ou não duas coisas são (CALDEIRA, 1961): incitamento à resolução imediata, afirmativa ou negativa, de algum assunto; v.g., “Então, vais ou não vais? Sim ou não, duas coisas são!”. Destino Boa romaria faz quem em casa fica em paz (PITA, 2003; MILHANO, 2008; MOREIRA, 1996): é melhor ficar em casa que envolver-se em confusões; v.g., “Ah, rapaz! O que é aquela romaria? Vão todos para a tasca?! Aquilo vai acabar mal. Boa romaria faz quem em casa fica em paz”. Cada um rega com a água que tem (NUNES, 1965): cada um sabe de si. Casa acrescentada, morte chegada (PITA, 2003): expressão que se usa quando os idosos investem na recuperação das suas habitações. Variante: Casa nova, velho para a cova. Esta vida é mais larga que comprida (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se comentam factos da vida de outras pessoas, quando as coisas não correm bem. Meninos feitos à pressa saem cabeçudos (CALDEIRA, 1961): diz-se das coisas que são realizadas de forma precipitada e não se concluem com perfeição. Nem sempre o que diz a boca o coração sente (GOUVEIA, 1976): não revelar o que se sente ou pensa; esconder a verdade; ser precipitado nas observações. Quem caçoa também morre (SANTOS, 1995): expressão dirigida a quem ri de algo que se passou com outrem, sem perceber que lhe pode acontecer a mesma coisa. Quem chora menos urina (SANTOS, 1995): forma popular de se endereçar às crianças quando choram. Quem dá o que tem fica no caminho do concelho (CALDEIRA, 1961): sobre a necessidade de prudência para não se ficar pobre; não se deve doar os bens antes de morrer. Quem morre nã volta a este mundo (GOUVEIA, 1976): acerca do destino e da importância da vida. Quem nasce prove nunca espera sê rico (GOUVEIA, 1976): sobre a fatalidade. Quem o seu cu aluga não se senta quando quer (fonte oral, Porto da Cruz): sobre a situação de dependência de algo ou de alguém. Ter uma no coiro, outra no lavadoiro (fonte oral, Madeira): sobre aquele que tem poucas posses; v.g., “Ah! Aquele só tem uma no coiro e outra no lavadoiro”. Esperteza Bezerrinho manso mama a sua e mama a alheia (SANTOS, 1995): sobre aqueles que usam do silêncio e da calma quando querem lucrar com alguma situação. Bezerro manso mama a sua e mama a alheia (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre o jeito para negociar; v.g., “Olha p’ra ele, já viste o que tem? Sempre caladinho, é assim mesmo, bezerro manso mama a sua e mama a alheia”. O mesmo que: Bezerro manso mama o seu e o alheio; Boi manso mama o seu e o alheio (PITA, 2003). Burro dado não se olha para os dentes (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): coisa dada aceita-se prontamente. O mesmo que: Burro dado não se olha para as orelhas (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965). O cão ladra, é a porta do dono (CALDEIRA, 1961): quando alguém provoca outrem, estando protegido. Outros temas A noivos e a batizados só vai quem é convidado (PITA, 2003): sobre as formalidades; v.g., “Então, não vais c’a gente? – Não fui convidado e, ademais, a noivos e a batizados só vai quem é convidado”. Atrás de maio vem S. João (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): depois de uma coisa, vem outra. Cachorro que aveza a sangue de ovelhas nunca mais larga (fonte oral, Madeira): sobre os indivíduos que têm vícios; pode ser também aplicado a homem mulherengo. Comer e coçar, o mais é começar (NUNES, 1965): equiparação entre a fome e a comichão. Dia de S. Tomé, quem mata o porco amarra a mulher pelo pé (CALDEIRA, 1961): aforismo caído em desuso; dizia-se quando havia discussões por ocasião da matança do porco. Dum poço sujo não se tira água limpa (CALDEIRA, 1961): ditado de uso comum; define as qualidades de alguém; v.g., “Não devia meter-me contigo; dum poço sujo não se tira água limpa”. Mijo e urina são a mesma coisa (NUNES, 1965): forma de se referir depreciativamente a alguém; duas coisas iguais. Muita festa para a festa e nada para a véspera (CALDEIRA, 1961): sobre quem ostenta ser melhor do que, na realidade, é. Ouve-se cantar o galo, mas não se sabe aonde ou adonde (CALDEIRA, 1961): sobre quem não é frontal, não tendo a coragem de assumir o que diz, não se conseguindo saber dessa pessoa a verdade dos factos. Para quem não tem vergonha, todo o mundo é seu (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): expressão que manifesta uma forma de apreciação das pessoas indiscretas e atrevidas. As primeiras mulheres são trapos, as segundas guardanapos (CALDEIRA, 1961): provérbio antigo, aplicado a algum tipo de doença que vitimava as mulheres. Quando os porcos bailam adivinham chuva (CALDEIRA, 1961): expressão muito usada no caso de crianças que estão eufóricas e têm gestos chamativos, maliciosos ou travessos; muito utilizado também no caso dos adultos, quando há grande entusiasmo numa determinada situação de natureza pouco clara. Santos que cagam e mijam não são santos, ou não merecem devoção (SANTOS, 1995): classificação, de sentido pejorativo, de determinado comportamento. Tu não sabes da missa metade (fonte oral, Madeira): diz-se quando determinada pessoa julga saber tudo sobre determinado assunto, mas, na realidade, não sabe. Meteorologia e tempo Abril chuvoso, maio ventoso, S. João calmoso faz o ano bondoso (CALDEIRA, 1961): sobre o estado do tempo nos meses do ano. Cerco na Lua, sinal de chuva (NUNES, 1965): previsão popular do tempo. Céu pedrado, mau tempo e mar bravo (fonte oral, Madeira): diz-se quando as nuvens se apresentam fragmentadas, sendo isso sinal de tempestade. Chovendo dia de S. Braz, chove quarenta dias e mais (CALDEIRA, 1961): previsão popular do tempo. Chuva de maio nem sequer no rabo de um gato (CALDEIRA, 1961): menção do facto de que a chuva deste mês estraga as culturas. Chuva que no mar faz alvarinho com bom vento de terra se avizinha (fonte oral, Porto Santo): referência aos chuviscos que, do mar, serão arrastados até à costa pelo vento. Chuvinha de Ascensão, até das pedras se faz pão (SANTOS, 1995): sobre a importância da chuva pela Páscoa no fortalecimento das culturas. Conceição enxuta, Festa molhada (NUNES, 1965): previsão popular do tempo, segundo a qual, quando não chove pela festa da Imaculada Conceição, irá chover no Natal. Diferente de: Senhora da Conceição, dai-me sol e chuva não. Dia de Santa Luzia, minga a noite e cresce o dia (CALDEIRA, 1961): indica a data em que os dias começam a crescer. Dos Santos ao Natal, é inverno natural (PITA, 2003; RIBEIRO, 2007; MILHANO, 2008): diz-se para indicar que, entre o dia de Todos os Santos (1 de novembro) e o Natal, sendo fim de outono e início de inverno, é normal que chova. Em abril vai a velha aonde tem de ir e volta ao seu covil (fonte oral, Madeira): significa que em abril ainda está muito frio para sair de casa a não ser para coisas mesmo necessárias. Em abril, a velha queima o canzil (fonte oral, Madeira) e Em março, a velha está no espinhaço (fonte oral, Porto Santo): sobre a doença e a idade; exprimem o presságio de que alguma coisa grave irá acontecer. Fevereirinho quente traz o diabo no ventre (SANTOS, 1995): expressão regional definindo o clima, possivelmente também usada noutras paragens. Fevereirinho é garotinho (NUNES, 1965): alusão ao facto de se tratar do mês com menor número de dias. Gaivotas na serra é sinal de mau tempo (CALDEIRA, 1961): expressão de presságio usada pelo povo, quando vê gaivotas voarem em direção à serra. Janeiro, mete ombreiro (NUNES, 1965): sobre a necessidade andar bem agasalhado. O Leste de S. Braz, não vindo adiante, vem sempre atrás (PITA, 2003): mais tarde ou mais cedo, chega o calor. Março é cachorrinho (NUNES, 1965): alusão ao facto de que neste mês há, por vezes, grande variação de temperaturas. Natal com chuva, Páscoa com sol (CALDEIRA, 1961): previsão popular do tempo. Profano e religioso Ave-marias em casa, meia-noite na rua (CALDEIRA, 1961): diz-se de alguém que encobre o hábito de chegar a casa tarde; antigamente, ao anoitecer, os sinos da torre das igrejas tocavam as ave-marias, indicando que eram horas de recolher. Bem com Deus, mal com o diabo (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que devemos estar bem com quem mais nos interessa; devemos estar voltados para o bem e de costas para o mal. Deus não castiga nem com pau nem com pedra (CALDEIRA, 1961): aplica-se quando acontece alguma infelicidade a alguém, depois de ter praticado uma má ação. Deus não fecha uma fonte que não abra outra (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer: vai uma coisa mas vem outra; apelo a que se não perca a fé e se tenha esperança. Deus o deu, o diabo o levou (CALDEIRA, 1961): alusão ao carácter mutável da existência; tão depressa se ganha como se perde. Em dia de S. João toda a água é benta (fonte oral, Madeira): existe a crença de que as águas são purificadas no dia deste santo popular. Variante: Em noite de S. João, a água é lampa: nesta ocasião, há o costume de as pessoas se deslocarem até ao mar, ou para se banharem, ou para tocarem na água. Outra variante: Em noite de S. João, todas as ervas são bentas (SANTOS, 1995): sobre a fé sanjoanina; as ervas são purificadas, ficam benzidas pelo santo popular. Não há romaria sem cambado (CALDEIRA, 1961): aplica-se quando, em qualquer festa, reunião ou ocasião social, aparece uma pessoa a cambalear. Nunca se é velho para pagar pecados (NUNES, 1965): o castigo pelo mal cometido tarda, mas sempre chega. Quem pela murta passou, o seu raminho não apanhou, de Nossa Senhora não se lembrou (FREITAS e MATEUS, 2013): alusão ao sentido do gesto de apanhar um ramo de murta para oferecer a Nossa Senhora na igreja. Quem se emenda agrada a Deus (GOUVEIA, 1976): sobre a importância do arrependimento de coisa mal feita. Rata de sacristia, difícil ficar na ratoeira (fonte oral, Madeira): diz-se de mulher experiente e discreta. Santo da casa não faz milagres (NUNES, 1965): sobre quem, apesar dos seus esforços, nada consegue fazer para modificar a conduta e os costumes dos que lhe são próximos. Santo que não conheço, não lhe rezo nem ofereço (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se quer mostrar que não se tem interesse em falar com pessoa a quem não se conhece ou deve atenções. Saúde e doença Chá de alfavaca, se não morrer escapa (FREITAS e MATEUS, 2013): o chá de alfavaca é aconselhado em determinado tipo de doenças. Quem está doente vai ao médico (NUNES, 1965): sobre quem se queixa mas não procura solução para o seu problema. Sorte Dar sem proveito faz mal ao peito (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): diz-se quando alguém oferece com algo com boa intenção e não lhe é dado o devido valor. Debaixo dos pés se levantam os trabalhos (SANTOS, 1995): os problemas aparecem quando menos se espera. Donde menos se espera é que saem os coelhos (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que conseguiu obter-se algo de forma inesperada; outro sentido será: alguém assume a culpa de alguma coisa, causando espanto. Filho de aselha não dá carreira certa (fonte oral, Porto Santo): prenúncio de insucesso na vida por falta de formação. Fui de balde e vim de celha (fonte oral, Porto Santo): Celha significa a bandeja que os vendedores de peixe usavam antigamente à cabeça, por cima da molhelha, para transportar o peixe (mais tarde, surgiu a canastra); refere-se a quem fez algo inutilmente, ou de que não obteve proveito. Furtar a quem tem não é pecado (CALDEIRA, 1961): diz-se como resposta a alguém que lamenta furtos feitos a pessoas com haveres. Nem todos os dias são dias de festa (CALDEIRA, 1961): não se faz sempre a mesma coisa. Nem todos têm sorte longe da sua terra (GOUVEIA, 1976): sobre a emigração. Quem espera, mais tarde ou mais cedo sempre alcança (GOUVEIA, 1976): sobre a importância de se ser paciente. Quem mata um gato ladrão tem sete anos de perdão (CALDEIRA, 1961): em desuso; aplicado a quem mexe no que é alheio. Quem não pode queixa-se da molhelha (NUNES, 1965): sobre o servir-se de desculpas; diz-se de quem fala muito, mas depois nada faz, arranjando para isso muitas justificações. Quem não sabe vender fecha a loja (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre a arte de ser comerciante. Trabalho Barco parado (varado) não ganha frete (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965; MOREIRA, 1996; PITA, 2003; MILHANO, 2008): o mesmo que: “Quem não trabalha não ganha”. Contas feitas, barco lavado (PITA, 2003): acabado o trabalho, é hora de fazer a limpeza; aplica-se também aos negócios concretizados. Moleiro que carrega na maquia não tem freguesia amiga (fonte oral, Madeira): sobre o valor a cobrar; quem cobra montantes excessivos, perde a clientela. O mesmo que: “É muito caro, não volto lá para comprar”. Quem faz um cesto faz um cento (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): quem aprende a fazer um trabalho pode voltar a fazê-lo; provérbio que evoca o artesanato regional, em particular a obra de vimes, com forte ligação à Camacha. Quem lava um prato, lava dois (CALDEIRA, 1961): quem lava um prato, facilmente lava dois, dispensando ajuda; a expressão tem também um sentido não literal. Trabalhas como um preto e gastas como um fidalgo. O provérbio remonta ao tempo da escravatura no arquipélago, pode ter dois sentidos: trabalhas muito e não poupas, ou trabalhas pouco e gastas muito. O vendeiro tem de beber para o cliente não desconfiar (fonte oral, Madeira): conselho sobre como vender; quando o vendeiro bebe, demonstra que o produto é bom, é genuíno, não está adulterado, de modo que gera a confiança dos clientes. Outros ditos Outros ditos com topónimos e gentílicos regionais Boa para pregar no Pilar de Banger (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): expressão que se empregava quando uma história não era completamente verdadeira e, por esse motivo, deveria ser afixada no Pilar de Banger, de forma a ser conhecida por toda a gente. O Pilar de Banger, com 30 m de altura e 3 de diâmetro, foi mandado construir por John Light Banger. Concluído em 1798 na marginal da cidade do Funchal, servia essencialmente para ajudar a transportar carga do mar para terra e vice-versa. Mais tarde, tornou-se um posto de vigia e de sinais. Em 1939, foi demolido. Em 1990, a base foi reposta. Os ceguinhos morreram no Caniçal (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): não se deixar intrujar; não ir no logro; modismo que exprime “não ir nessa”. Enxergar um mosquito nas Desertas, Ser capaz de (PITA, 2003): diz-se de alguém que tem a capacidade de ver a grande distância. Também pode ser dito com ironia, nesta variante: És capaz de enxergar um mosquito nas Desertas. Justiça da Ponta do Sol (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): ficar sem os haveres e sem apelo; com sentido de expressão idiomática, é uma referência a uma forma de justiça popular referenciada como sendo daquela localidade da Madeira. Na freguesia da Ponta Delgada, sê colono é sê digraçado (GOUVEIA, 1976): alude à situação de dependência de algo; referência à Lei da Colonia, segundo a qual o colono teria de entregar parte da produção ao senhorio; segundo Fernando Augusto da Silva, colonia é um regime agrícola de propriedade em que as terras pertencem ao chamado “senhorio e as benfeitorias ao colono, fazendo este toda a cultura com direito à dimidia da produção” (SILVA, 1950). Peru velho da Calheta quer casar não tem jaqueta (CALDEIRA, 1961): expressão antiga, utilizada nos tempos em que se vendiam perus pelas ruas da cidade, podendo referir-se a alguém que, tendo uma certa idade, quer contrair matrimónio mas não tem bens nem dinheiro. Variante: Peru velho do ilhéu quer casar não tem chapéu (CALDEIRA, 1961). Ribeira Tem-Te Não Caias (fonte oral, Madeira): nome, em forma de apelo, atribuído a uma ribeira existente no Porto da Cruz; consoante o seu caudal, é necessário ter atenção ao atravessar (“Tem-te”) e manter o equilíbrio (“Não Caias”); este nome foi atribuído à estrada que circunda a montanha onde está situada a ribeira; espécie de alerta. São Braz do Arco (Calheta) matou sete e afogou quatro (CALDEIRA, 1961): rifão popular de origem desconhecida; usado como gracejo. São Vicente, boa gente (fonte oral, Madeira): alude à existência de boas pessoas em São Vicente, com as quais vale a pena fazer amizade. O Senhor dos Milagres aceita a brincadeira (CALDEIRA, 1961): referente a Machico; a propósito de promessa não cumprida. Valha-me São Braz do Arco (Calheta) (SANTOS, 1995): vocativo implorando a ajuda divina. Valha-me o Senhor dos Milagres (SANTOS, 1995): referente a Machico; vocativo implorando a ajuda divina. Outros ditos com regionalismos e referências diretas ou indiretas à Madeira As camacheiras estão abanando as saias (CALDEIRA, 1961): diz-se quando o vento, vindo da direção nordeste, é bastante agreste; as camacheiras são na realidade as habitantes da freguesia da Camacha, na ilha da Madeira, apesar de haver também um sítio denominado Camacha na ilha do Porto Santo; a população do Funchal proferia este provérbio sempre que soprava o vento de Nordeste; de realçar que as saias das camacheiras, aqui referidas, são as saias coloridas das floristas e das bailarinas, de cariz etnográfico. Camacheiro (SIMÕES, 1984; SILVA, 1950): é um regionalismo pelo qual se designa o vento de Leste, vento frio e agreste que sopra dos lados da freguesia da Camacha; apesar de este vocábulo identificar também o habitante da freguesia da Camacha, o seu sentido proverbial atribui-lhe a referência ao vento; Guilherme Augusto Simões, em Expressões Populares Portuguesas…, texto publicado em 1984, regista este provérbio, referindo que Artur Bivar já o tinha mencionado no Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, em 1948; estamos perante um vocábulo da RAM registado fora da Ilha. És como o vilão, não vê nada sem tocar com a mão (CALDEIRA, 1961): diz-se quando uma pessoa toca numa coisa em que outra não quer que se mexa; v.g.: “Não toques nisso! És como o vilão, que não pode ver nada sem tocar com a mão?”. Estar como o vilão na casa do sogro (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): diz-se do indivíduo que está comodamente recostado, refastelado, à-vontade. Caldeira regista o seu sentido: aplica-se “quando um indivíduo está à vontade, bem encostado de perna estendida” (CALDEIRA, 1961, 59). Março marçagão, de manhã dente de cão, ao meio-dia sol de alegria e à tarde escapa vilão (NUNES, 1965): sobre a esperteza; comer bem, apanhar sol e passear. Ser galo do palheiro ou galinho do palheiro (CALDEIRA, 1961): pessoa esperta, atrevida; pessoa que fala muito. As canelas de João Blandy ou do senhor Blandy (SOUSA, 1950): no jogo do loto, aquele a quem sai o 77 grita, em vez do número, “as canelas de João Blandy” ou “as canelas do senhor Blandy” (de forma semelhante, quando se diz “boca da peça” os jogadores sabem imediatamente que se trata do número 1, e quando se profere “duas irmãzinhas” identificam logo ter saído o número 66); a família Blandy reside na Madeira há centenas de anos, onde se dedica ao comércio e serviços. Outros ditos sem marcador lexical explícito de “madeirensidade” atestados na Madeira (registados e/ou em uso) Agricultura É mais fácil o céu produzir abóboras, e a terra estrelas, do que virar o nosso feitor (“Provérbios populares”, 1969): forma de se expressar por meio da qual os agricultores se referiam ao modo de ser do feitor da quinta. Mijai, senhor, que a terra está seca (SANTOS, 1995): não é certo que esta expressão seja do arquipélago; de cariz jocoso, é um comentário perante uma situação inesperada; referência à necessidade de chuva. Santa Isabel está a abanar as saias (fonte oral, Camacha): diz-se sobre o vento no verão; em tempos, o povo queria que houvesse vento em julho, mês de S.ta Isabel, para ajudar a ajoeirar o trigo, depois de passar pelo mangual e antes de o guardar; v.g., “Parece que Santa Isabel já está a abanar as saias”. São Pedro bem-disposto, campo regado com gosto (fonte oral, Porto Santo): referência à chuva pelo mês deste santo popular. Alimentação Casca fora, inhame dentro (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): comer com grande apetite, com sofreguidão; v.g., “Isto cá é assim. Casca fora, inhame dentro”. Castanhas com carepa faz o cú tocar rebeca (fonte oral, Camacha): alusão à flatulência provocada pela ingestão de castanhas cruas. Comer formigas faz bem à vista (CALDEIRA, 1961): velho adágio que se pronuncia quando alguém se queixa de ter engolido uma formiga; v.g., “Estava a comer uma maçã e engoli uma formiga! Não faz mal, fez bem à vista”. Meio-dia, panela cheia, barriga vazia (SANTOS, 1995): diz-se para referir a hora da refeição. Aviso/ameaça O diabo quis cuidar de cem cabras e não quis cuidar duma só mulher (fonte popular, Porto Santo): diz-se a mulher que fala muito e continuamente; o mesmo que: “Vai lá p’Argel, o diabo quis cuidar de cem cabras e não quis cuidar duma só mulher”. Do coiro te sai as correias (CALDEIRA, 1961): sobre sofrer as consequências dos próprios atos. Ele com uma mão, eu com duas (CALDEIRA, 1961): usado para se alegar que, na celebração de um negócio, se foi mais sério do que a outra parte nele envolvida. Também se pode dizer: “Ele com duas mãos e eu com uma”. Fecha o aparelho que a burrinha espanta (fonte oral, Porto Santo): incitamento a fechar o guarda-chuva; v.g., “Ah, rapaz! Fecha o aparelho que a burrinha espanta”. Guarda o rir para quando chorares (CALDEIRA, 1961): conselho que se dá a quem ri de escárnio; v.g., “Olha, tás a rir? Guarda para quando chorares!”. A madeira onde o diabo se sujou (SANTOS, 1995): referência ao mau cheiro da madeira de til; era uma expressão muito usada pelos carpinteiros. Não dar cópia nem mandado (SOUSA, 1950): não dar notícia; estar em parte incerta. Não me venhas tirar o inhame da porta (SOUSA, 1950): aviso; frase que indica não ter medo de qualquer ameaça que vise os próprios bens ou bem-estar. Nem que te mates, nem que te esfoles (CALDEIRA, 1961): menção de algo de irreversível ou relativamente ao qual é inútil insistir; v.g., “Olha, eu já te disse que não te dou isso, nem que te mates e esfoles”. Variante: Nem que me mate nem que me esfole. Olho vivo, Santa Luzia (CALDEIRA, 1961; SOUSA, 1950): locução que indica ser preciso ter cautela. Quem me pica num dedo veja em que dedo me pica (CALDEIRA, 1961): admoestação, em tom de ameaça, no sentido de evitar qualquer ofensa; v.g., “Olha, toma cuidado, porque quem me pica no dedo veja em que dedo me pica, ouviste?”. Variante: Quem me pica num dedo, pica-me em dois: forma de alguém fazer sentir que não admite ofensas, que fica melindrado; v.g., “Já sabes. Quem me pica num dedo, pica-me em dois. Então vê lá como me tratas, ouviste?”. Se isso tem veneno, não me mata (CALDEIRA, 1961): sobre ser fiel; não tocar; expressão que supõe a recusa em contactar com algo que se deve evitar; o mesmo que: “Se isso tinha veneno, não me matou”. Vai pr’ Argel (fonte oral, Madeira): expressão usada desde os tempos remotos da pirataria e dos saques, em que a população do arquipélago era levada como refém para a Argélia e mais tarde pedido o seu resgate; alguns idosos costumam usar esta expressão quando se sentem importunados por alguém ou por coisa que querem que vá para longe. Conselhos Amarrem as filhas que os cabritos andam à solta (CALDEIRA, 1961): expressão que se ouvia algumas vezes quando as raparigas eram imprudentes e queriam sair com rapazes (“cabritos”). Come o que te dão e não sejas refilão (PITA, 2003): exortação a aceitar com humildade o que se recebe. Destino A cara não pode esconder o qu’a gente sente cá dentro (GOUVEIA, 1976): a face espelha o sofrimento, a angústia. A terra alheia nunca foi má madrasta p’ra quem quer andar à boa vida (GOUVEIA, 1976): sobre aquele que quer andar na boa vida nos terrenos de terceiros. Esperteza Olho atrás, olho adiante (CALDEIRA, 1961): ter cautela, estar precavido; v.g., “Lá com aquele tipo é preciso ter olho atrás, olho adiante”. Inveja Que d’inveja se comia: a expressão perpetua-se no romanceiro e nos dizeres populares. Na literatura que faz o retrato do mundo rural, como acontece em Horácio Bento de Gouveia, diz-se que entre os madeirenses havia “muita imveja im riba do lombo”, e que a gente “arrepelava-se de inveja” (VIEIRA, 2016). Como refere Alberto Vieira, “na ilha, a inveja diz-se e a invejidade vive-se”: trata-se de uma maneira de ser e de estar; segundo o autor, é uma característica comportamental, também conhecida como “dor de cotovelo”, que se torna mais notada nos espaços pequenos, onde ninguém larga os seus hábitos, usos e costumes, atitudes e sentimentos (VIEIRA, 2016, 26). Este autor cita ainda o Re-nhau-nhau (10 abr. 1952): Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa (VIEIRA, 2016). Outros temas Andas vestida como uma rainha e descalça como uma galinha (fonte oral, Porto Santo): andar bem vestida, não tendo grandes posses. De rir e mijar gravetos (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): diz-se daquilo que desperta hilaridade; v.g., “Aquele estuporzinho diz coisas de rir e mijar gravetos”. Deixa-te de cramar (fonte oral, Madeira): expressão idiomática endereçada a quem está sempre a reclamar ou a queixar-se. Está um burro para cair pela rocha abaixo (CALDEIRA, 1961): diz-se quando acontece uma coisa boa de forma inesperada. Estar como o Belchior, cada vez pior (MILHANO, 2008; MOREIRA, 1996): expressão muito usada em Porto Santo, que faz alusão a Belchior Baião. “Belchior Baião, de linhagem nobre, foi o primeiro deste apelido que se estabeleceu na Madeira. Esta família teve um morgadio no Porto Santo e era padroeira duma capela na igreja paroquial, que ainda é conhecida pela capela da morgada” (SILVA e MENESES, 1998, 115). Maria, a “Atalaia”, tem o vestido mais comprido que a saia (CALDEIRA, 1961): diz-se à laia de crítica; quando se vê a roupa interior de alguém; v.g., “Olha-me pr’aquilo! Parece a Maria d’Atalaia!”. Para quem é, bacalhau basta (CALDEIRA, 1961): expressão que reflete menosprezo por alguém; diz-se quando não se quer dar a alguém mais do que aquilo que se julga que essa pessoa merece. O relógio da Sé é que se repete (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961), diz-se quando não se está disposto a voltar a dizer ou a fazer a mesma coisa. O mesmo que: O relógio da Sé é que dobra (CALDEIRA, 1961). A vida de João p’ra rua é comer, dormir e andar na rua (CALDEIRA, 1961): aplicado às pessoas que são mandrionas. Meteorologia e tempo Abril, manguil, canzil, maio, mamaio, marangaio, São João, São Joanás é o mês que nasce o nosso rapaz (PITA, 2003): dito de mulher grávida a explicar o estado adiantado da sua gravidez. Chuva em abril é a salvação da ilha (fonte oral, Porto Santo): sobre a importância da chuva para a subsistência. Sol e chuva, feiticeiras a se pentear (NUNES, 1965): diz-se quando simultaneamente ocorrem chuviscos, faz sol e aparece o arco-íris. Tenha calma. Antes da meia-noite não lhe vai dar o sono (fonte oral, Porto da Cruz): dar tempo ao tempo; não ter pressa. Profano e religioso Assim se canta na Sé. Uns assentados, outros de pé (SOUSA, 1950): sobre a ordem das coisas; o mesmo que dizer: “Ah! Assim, sim, está correto”. Dia de varrer os armários (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): referência ao dia 15 de janeiro, dia de S.to Amaro, Santa Cruz, Madeira, em cujos festejos, no mês de janeiro, se encerra o tempo natalício; e.g., “Venha a minha casa no dia de Santo Amaro, que é o dia de varrer os armários”. O mesmo que: Dia de S.to Amaro, varre os armários (fonte oral, Madeira). Sorte Criou fama e deitou-se na cama (fonte oral, Madeira): sobre quem teve êxito em alguma coisa e, depois disso, começou a levar uma vida ociosa. Desde que o mundo é mundo sempre houve ricos e pobres (GOUVEIA, 1976): sobre o destino. Livres de semear, prisioneiros das consequências (fonte oral, Madeira): sobre o uso da liberdade e as responsabilidades dele decorrentes. Não vejo moita por onde saia coelho (CALDEIRA, 1961): diz-se quando não há – ou não se vislumbra – qualquer possibilidade de se conseguir o que se quer. Quem falou pagou (NUNES, 1965): quem fala para desacreditar outrem, acaba por sofrer as consequências disso. Muitos dos provérbios e ditos populares apresentados, e atestados pelas recolhas orais realizadas, foram extraídos de obras publicadas, que constituem um património de grande valor. Convém salientar também que, no plano da linguística, esta amostra tem em consideração aquilo que especialistas de diversas épocas referiram. Em 1950, Cabral do Nascimento afirmava que, relativamente à língua, existia um “antepassado comum” (NASCIMENTO, 1950, 205), o que, anos mais tarde, foi aferido de igual modo por Lindley Cintra e Celso Cunha, que acrescentam: “os dialetos falados nas ilhas atlânticas […] são um prolongamento dos dialetos portugueses continentais” (CINTRA e CUNHA, 2005, 19). Muito antes, no séc. XVIII, Raphael Bluteau descrevera da seguinte forma a sua admiração pela língua portuguesa: “Da tua impaciência conheço, que és Português; como tal não podes deixar de estranhar, que se arrojasse um estranho a compor o teu idioma, o Dicionário. Entendamo-nos Amigo, e entende, que isto, que te parece arrojo, é veneração” (BLUTEAU, 1712, I, 33).   Manuel Justino de Freitas Rodrigues (atualizado a 15.02.2018)

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avifauna

As aves são animais vertebrados com o corpo coberto de penas; possuem bico e membros anteriores transformados em asas. Tem sido grande o interesse manifestado por numerosos naturalistas e investigadores pela avifauna do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens. No entanto, tendo em conta esse facto, a bibliografia existente tem ficado um pouco aquém do esperado. Na realidade, faltam estudos de ecologia, de sistemática e de outros aspetos biológicos. As primeiras referências às aves da Madeira são de Ca’ da Mosto (1455) e de Frutuoso (1590), às quais se acrescentam, bastantes anos mais tarde, as de Sloane (1707), em que são apresentadas pequenas listas de aves observadas. Em 1851, surge a primeira lista, propriamente dita, de aves do arquipélago da Madeira, elaborada por Harcourt. Do séc. XIX, há ainda a referir o trabalho de Hartwig, “Die Voegel der Madeira Inselgruppe” (1891). Na transição do séc. XIX para o séc. XX, surgem vários trabalhos do P.e Ernesto Schmitz, provavelmente um dos estudiosos que mais contribuiu para o conhecimento da avifauna madeirense (Zoólogos e Naturalistas Zoólogos). Já em pleno séc. XX, foram vários os trabalhos publicados, entre os quais se destaca o livro, em quatro volumes, escrito por David Bannerman e Winifred Mary Bannerman, intitulado Birds of the Atlantic Islands; esta obra, dedicada à avifauna da Macaronésia, aborda as aves das ilhas Selvagens no primeiro volume (do ano de 1963 e da autoria de David Bannerman apenas) e as aves das ilhas da Madeira, Desertas e do Porto Santo no segundo volume (do ano de 1965); ultrapassa, de longe, em termos de conteúdo, os trabalhos anteriores, que consistiam essencialmente em listas de aves e em referências a locais de observação; nela, além da listagem das espécies nidificantes e visitantes ocasionais, são incluídos aspetos relevantes referentes à distribuição, à taxonomia e à ecologia. Após este trabalho de referência, aumentou o número de publicações sobre aves (e de autores nesta área), os quais abordam vários aspetos da biologia, do comportamento, da distribuição, da taxonomia e da conservação das aves no arquipélago da Madeira (e.g., o Guia de Campo das Aves do Parque Ecológico do Funchal e do Arquipélago da Madeira, publicado em 1997 pela Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal, da autoria de Duarte Câmara, e A Conservação e Gestão das Aves do Arquipélago da Madeira, publicado pelo Parque Natural da Madeira (PNM) em 1999, da autoria de Paulo Oliveira). Vários outros trabalhos foram publicados na segunda metade do séc. XX e nos inícios do séc. XXI (v.g., o artigo “Birds of the Archipelago of Madeira and the Selvagens. New Records and Checklist”, publicado por Francis Zino, Manuel Biscoito e Paul Alexander Zino e pelos seus colaboradores, em 1995, que veio atualizar a lista das aves nidificantes de Bernstrom, de 1957). Esta lista, por sua vez, é atualizada, em 2010, num trabalho de Hugo Romano, Catarina Correia-Fagundes, Francis Zino e Manuel Biscoito. Importante é também o livro Aves do Arquipélago da Madeira, de Manuel Biscoito e Francis Zino, publicado em 2002. The EBCC Atlas of European Breeding Birds (Atlas das Aves Nidificantes na Europa), publicado em 1997 pelo European Bird Census Council, referia as aves dos arquipélagos da Madeira e Selvagens. Em 2011, o ornitólogo Garcia-del-Rey publicou o livro Field Guide to the Birds of Macaronesia. Azores, Madeira, Canary Islands, Cape Verde, relevante para o conhecimento e a divulgação da avifauna macaronésica. Outro livro a referir é o da autoria de Tony Clarke, intitulado Birds of the Atlantic Islands, publicado em 2006. Existe uma página na Internet, Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, que é mantida pelo Serviço do PNM e pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves. O número de espécies de aves nidificantes nos arquipélagos da Madeira e Selvagens ronda as quatro dezenas, mas, se considerarmos as espécies migradoras e as ocasionais, o número ultrapassa as 300 espécies. Destacam-se quatro espécies pelo seu carácter endémico: Pterodroma madeira, Pterodroma deserta, Columba trocaz e Regulus madeirensis. As aves marinhas são, nalguns casos, difíceis de observar junto à costa durante o dia. Geralmente, aproximam-se da costa ao anoitecer e durante a nidificação, sendo que pelo menos um dos progenitores está escondido no ninho durante este período. Durante a sua evolução, estas aves escolheram ilhas como locais de nidificação por não existirem predadores nelas. Com a chegada do Homem a muitas destas ilhas, chegaram também com ele vários predadores, entre os quais se destacam as ratazanas e os murganhos. Desde então, são inúmeras as espécies e populações de aves marinhas que enfrentam o perigo de extinção. As aves marinhas mais comuns nos arquipélagos da Madeira e das Selvagens são: Freira-da-madeira (Pterodroma madeira (Mathews, 1934)), também conhecida como alma-penada do-cidrão, devido aos sons que emite, semelhantes a uivos, inclui-se na família Procellariidae, ordem Procellariiformes. É muito parecida com a freira-do-bugio e com o gongon das ilhas de Cabo Verde. É uma ave endémica da ilha da Madeira e encontra-se em perigo de extinção. Já o P.e Ernesto Schmitz referia a sua presença na Ilha em 1903; no entanto, posteriormente, e durante muito tempo, foi dada como extinta, sendo “redescoberta” em meados do séc. XX. Vários aspetos da sua biologia são ainda pouco conhecidos. Com um comprimento total entre 32 e 34 cm e envergadura entre 80 e 86 cm, é mais pequena, mais leve, e possui bico e asas menores do que a freira-do-bugio. É uma ave com bico curto, grosso e escuro. É cinzento-escura no dorso e mais clara na fronte. Em voo, nota-se que a região ventral é clara e os bordos da cauda são escuros. A cauda é clara. As asas formam um V pronunciado e a parte inferior e interna das asas é escura. Isto diferencia-a de outras aves, exceto da freira-do-bugio (Pterodroma deserta). Nidifica essencialmente no maciço montanhoso central da Madeira, uma zona de proteção especial (ZPE) integrada na Rede Natura 2000. Chega a esta zona normalmente em fevereiro ou março; entre março e abril, limpa o ninho, volta em seguida ao mar, e só depois retorna para fazer a postura – este fenómeno é designado por êxodo pré-postura. Um único ovo é posto em maio, em túneis geralmente não retilíneos com mais de 1 m de comprimento, construídos em solo fofo nas encostas escarpadas dos picos mais altos. Nesta espécie, os machos e as fêmeas alternam na incubação. Deixa o ninho em setembro ou outubro. As crias nascidas nesse ano só atingem a maturidade ao fim de seis anos. O efetivo é muito baixo – 60 a 75 casais reprodutores (de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira) –, tendo eventualmente ocorrido alguma redução do mesmo aquando dos incêndios de 2012. É uma das aves mais ameaçadas de extinção, tendo o estatuto de conservação “em perigo” (nos termos da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), de setembro de 2012). Têm sido realizados vários esforços com vista à proteção da ave – Alexander Zino e João Gouveia, juntamente com Gunther Maul e Francis Zino, deram os primeiros passos neste sentido com o Freira Conservation Project. Programas LIFE e outros projetos têm decorrido e envolvido a recuperação do habitat, a eliminação de vertebrados exóticos (gatos, ratos, coelhos) e a compra de terrenos nos picos mais altos. As principais ameaças à sobrevivência da freira-da-madeira são a predação de ovos e de juvenis pelos gatos e ratos e a destruição do coberto vegetal pelos herbívoros introduzidos (que leva à erosão dos solos e, consequentemente, à redução da área potencialmente apropriada à construção dos ninhos). No passado, os colecionadores de ovos e de aves constituíam uma ameaça de peso. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. O seu habitat consta do anexo I da diretiva “Habitats”. O local onde nidifica está inserido no PNM e é uma zona da Rede Natura 2000. Apesar dos avanços no conhecimento da espécie, muito há ainda por conhecer, nomeadamente sobre a distribuição espacial da ave ao longo do ano, principalmente no outono e no inverno. Freira-do-bugio (Pterodroma deserta (Mathews, 1934)). Ave da família Procellariidae, ordem Procellariiformes. Nidifica apenas nas Desertas (na ilha do Bugio e, possivelmente, na extremidade sul da Deserta Grande). É muito semelhante à freira-da-madeira. Tem entre 33 e 36 cm de comprimento total e entre 86 e 94 cm de envergadura. É cinzento-escura no dorso e mais clara na região ventral e na fronte. Em voo, as asas formam um V pronunciado e nota-se que a parte inferior e interna das asas é escura – isto diferencia-a de outras aves, exceto da freira-da-madeira. Nidifica entre junho e dezembro, em ninhos escavados no solo, formando túneis não retilíneos, alguns com mais de 2 m; ocasionalmente, pode nidificar em cavidades nas rochas ou em zonas com pedras soltas. Outrora, as populações nidificantes da ilha do Bugio e de algumas ilhas de Cabo Verde (Santo Antão, São Nicolau, Santiago e Fogo) eram incluídas na mesma espécie (Pterodroma feae); durante anos, considerou-se existirem duas subespécies, a Pterodroma feae feae, nidificando em Cabo Verde, e a Pterodroma feae deserta, no Bugio. Em 2009, no âmbito do Projeto LIFE SOS Freira-do-Bugio, foram realizados estudos, utilizando marcadores genéticos moleculares, que demonstraram não haver indícios de cruzamento entre as formas do Bugio e de Cabo Verde e que a distância genética conseguia ser maior do que a existente entre alguns pares de outras espécies definidas. Por isto, as duas formas passaram a ser consideradas espécies distintas, Pterodroma feae e Pterodroma deserta. Segundo o Atlas das Aves das Aves do Arquipélago da Madeira, existirão entre 160 e 180 casais reprodutores e a população é aparentemente estável. Este número é muito baixo. Tendo em conta a área muito reduzida de nidificação (<20 km2 numa única localização), esta ave é, provavelmente, tal como a freira-da-madeira, uma das espécies que apresenta maior risco de extinção na Macaronésia e na Europa. O estatuto de conservação é “vulnerável”, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. As principais ameaças à sobrevivência da espécie são, além da reduzida área de nidificação, a degradação do habitat e a perturbação das aves por animais introduzidos (como os murganhos, as cabras e os coelhos). O aumento da população de cagarra poderá constituir um perigo (dado que esta espécie poderá competir com a freira-do-bugio pelos lugares de nidificação), bem como a poluição em alto mar. Até à criação da Reserva Natural das Desertas em 1990, a captura ilegal constituía um risco significativo. Após esta data, as ameaças a esta espécie têm sido progressivamente debeladas pelo Serviço do PNM por meio de programas específicos focados na conservação da espécie e do seu habitat. Em 2006, foi iniciado o Projeto SOS Freira-do-Bugio, do Programa LIFE-Natureza, que envolveu, entre outras tarefas, a retirada dos herbívoros introduzidos e a colocação de ninhos artificiais. A ave consta do anexo II da Convenção de Berna e do anexo I da diretiva “Aves”. O local onde nidifica é reserva integral e é uma zona da Rede Natura 2000. Tal como acontece no caso da freira-da-madeira, apesar dos avanços no conhecimento da espécie, muito há ainda por saber acerca dela (designadamente sobre a sua distribuição espacial ao longo do ano, principalmente no outono e no inverno). Cagarra ou pardela-de-bico-amarelo (Calonectris diomedea borealis (Cory, 1881)). Em algumas obras, como no já mencionado Field Guide to the Birds of Macaronesia, de Eduardo Garcia-del-Rey, e na base de dados Avibase, disponível online, há uma alteração de nome, sendo considerada como Calonectris borealis. Inclui-se na família Procellariidae e na ordem Procellariiformes. É a ave marinha mais avistada entre março e novembro nos mares do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens, nidificando em todas as suas ilhas. Tem cerca de 50 cm de comprimento total, sendo a ave marinha de maior porte dos arquipélagos da Madeira e das Selvagens, e é facilmente identificável pelo seu voo rápido e planado, rente às ondas. As asas longas diferenciam-na da gaivota; outra característica que a diferencia de outras aves marinhas que nidificam nestes arquipélagos é a cor amarela do seu bico. Esta ave é branca nas superfícies inferiores e acastanhada nas superiores. Nidifica em cavidades de rochas e por baixo de grandes pedras, nas falésias rochosas ou nos planaltos; nas ilhas Selvagens, nidifica também no solo, entre a vegetação rasteira. A postura compreende apenas um ovo, do qual eclode uma ave que só atingirá a maturidade ao fim de nove anos. Entre dezembro e fevereiro encontra-se no hemisfério Sul, perto da costa nordeste do Brasil. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira existem, no mínimo, 40.000 indivíduos, amplamente concentrados nas ilhas Selvagens (38.000 indivíduos). Embora não seja considerada uma ave ameaçada, a captura ilegal, a destruição do habitat e a predação por gatos e ratos constituem fatores limitantes da espécie. De acordo com o Livro Vermelho e a IUCN, o seu estatuto é “pouco preocupante”. Na Madeira, alguns locais de nidificação da cagarra estão em áreas do PNM e são zonas da Rede Natura 2000. Esta ave faz parte do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. Durante muito tempo, a cagarra foi caçada, principalmente nas ilhas Desertas e nas Selvagens; segundo o Elucidário Madeirense, eram capturados, por homens de São Gonçalo e do Caniço, cerca de 18.000 indivíduos por ano nas Selvagens. A cagarra era salgada e levada para a Madeira para ser vendida às classes mais desfavorecidas; as suas penas eram utilizadas sobretudo no fabrico de colchões. A última expedição para a captura de cagarra nas ilhas Selvagens partiu do Funchal a 15 de setembro de 1967. A caça à cagarra foi proibida. Patagarro (Puffinus puffinus puffinus (Brunnich, 1764), ou simplesmente Puffinus puffinus (Brunnich, 1764)). Também conhecido como fura-bucho, pardela-sombria, estapagado, papagarro e boieiro; alguns destes nomes são designações onomatopeicas, que imitam os sons característicos desta ave. Pertence à família Procellariidae, ordem Procellariiformes. Distribui-se pelos arquipélagos da Madeira, das Canárias e dos Açores, ilhas Britânicas, costa da Bretanha, Islândia e ilhas Faroé. No arquipélago da Madeira, o patagarro nidifica apenas na ilha da Madeira, em particular nas encostas da ribeira de Santa Luzia, mas também noutras regiões do interior, em vales profundos, em zonas húmidas e cobertas de vegetação, podendo atingir altitudes muito elevadas. O patagarro é negro no dorso e branco nas partes ventrais; o seu bico é longo, preto e direito. O patagarro é frequentemente confundido com o pintainho (Puffinus baroli), diferindo dele pela plumagem preta da cabeça, que desce até abaixo dos olhos (a pelagem que rodeia os olhos do pintainho é branca). Normalmente, o patagarro chega à ilha da Madeira em fevereiro ou março, altura em que começa a escavar e a limpar as tocas (chegando estas a ter mais de 1 m de comprimento). Às vezes, mal chega, parte novamente (êxodo pré-postura). Julga-se que o principal objetivo deste comportamento é a acumulação de reservas para os períodos de incubação do ovo, alternados, entre macho e fêmea, de quatro ou cinco dias de jejum. Por regra, parte em agosto. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existirão entre 2500 e 10.000 indivíduos. Um dos perigos para o patagarro é a predação por ratos e gatos. No passado, a captura e a perseguição ilegais representavam uma ameaça importante. Segundo a crença popular, era uma ave de mau agoiro: haveria uma morte entre os moradores de uma habitação sempre que um patagarro pousasse sobre ela. Alguns locais onde esta subespécie ocorre fazem parte de zonas da Rede Natura 2000 e do PNM. Alguns dos habitats constam do anexo i da diretiva “Habitats”; a ave está no anexo II da Convenção de Berna. Fig. 1 – Fotografia de patagarro (Puffinus puffinus puffinus). Funchal. Fonte: © José Jesus Pintainho (Puffinus baroli (Bonaparte, 1857)). Considerado por alguns cientistas como a subespécie Puffinus assimilis baroli, é uma ave da familia Procellariidae, ordem Procellariiformes. É uma ave endémica da Macaronésia, sendo que nos arquipélagos da Madeira e das Selvagens nidifica nas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas e Selvagens. Tem patas azuis, dorso muito escuro e ventre claro. O pintainho poderá ser confundido com o patagarro; no entanto, diferencia-se dele pelo facto de a plumagem preta da cabeça não rodear os olhos e por estes serem no pintainho mais pequenos. O voo caracteriza-se por batimentos frequentes das asas. Nidifica entre janeiro e junho em cavidades de rochas ou por baixo de pedras soltas, nas falésias de pequenas ilhas e ilhéus. Geralmente, está presente na área durante quase todo o ano, não se afastando muito dos locais de nidificação. Ocorre em maior número nas ilhas Selvagens (estima-se que haja mais de 2000 casais) e em muito menor número nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. O seu estatuto de conservação é “vulnerável” no arquipélago da Madeira. A predação por espécies introduzidas pelo Homem poderá representar a principal ameaça à sua sobrevivência; no entanto, em alguns dos locais onde existe (e.g., nas Selvagens) essa ameaça foi debelada pela erradicação de vertebrados introduzidos. A proteção do pintainho é garantida pelo facto de ocorrer em áreas de reserva integral e da Rede Natura 2000 e por estar sob vigilância permanente nas ilhas Desertas e Selvagens. Esta ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. Alma-negra (Bulweria bulwerii (Jardine & Selby, 1828)). Ave da família Procellariidae, ordem Procellariiformes, apresenta uma ampla distribuição mundial, ocorrendo desde a Macaronésia ao Havai. Na Macaronésia, nidifica nos arquipélagos da Madeira, das Selvagens, dos Açores, das Canárias e de Cabo Verde. Trata-se da ave marinha de menor porte do arquipélago da Madeira. Completamente negra e com asas pontiagudas (de grande envergadura em relação ao tamanho do corpo), apresenta um voo rápido e planado. Entre abril e setembro nidifica em pequenas ilhas, ilhéus e falésias costeiras. A postura consiste em apenas num ovo, que é posto no chão, em buracos no solo ou em cavidades nas rochas, por baixo de grandes pedras e em muros artificiais. Nas ilhas Desertas e Selvagens, existem mais de 10.000 casais, sendo provavelmente as Desertas o lugar com a maior concentração mundial de indivíduos (no entanto, pouco se sabe sobre o número de aves que poderá ocorrer na Madeira e em Porto Santo). Antes dos programas de recuperação de habitats das Desertas e Selvagens, os ratos constituíam um sério perigo para a sobrevivência da espécie, assim como a captura de juvenis para servirem como isco (prática entretanto extinta). Os ratos, os gatos e as gaivotas constituem ameaças em algumas áreas não sujeitas a programas de recuperação. Já em finais do séc. XX, inícios do séc. XXI, uma ameaça, a formiga-argentina, cresceu e começou a tornar-se preocupante, principalmente nas Desertas. A elevada pressão turística, a degradação do habitat e a erosão dos solos constituem também importantes fatores de risco. O maior número de aves que ocorre e nidifica no arquipélago da Madeira concentra-se em zonas de reserva integral e da Rede Natura 2000. Esta espécie consta do anexo I da diretiva “Aves” e anexo II da Convenção de Berna. Roque-de-castro, paínho-da-madeira, roquinho ou angelito (Hydrobates castro (Harcout, 1851)). Ave da família Hydrobatidae, ordem Procellariiformes. A nível mundial, distribui-se entre as regiões tropicais do Pacífico e do Atlântico, ocupando áreas como o arquipélago da Madeira, o arquipélago das Selvagens e outros arquipélagos da Macaronésia, as ilhas de Ascensão e de Santa Helena, os arquipélagos das Galápagos e do Havai. Trata-se de uma ave de pequeno porte, de coloração negra e com uma faixa branca no uropígio, sendo a cauda ligeiramente bifurcada. No arquipélago da Madeira, existem duas populações com tempos de nidificação diferentes (verão e inverno) e este facto poderá corresponder à coexistência de duas espécies, a exemplo do que acontece nos Açores. No arquipélago dos Açores, o grupo que nidifica no verão tem a designação de Hydrobates monteiroi (Bolton et al., 2008), sendo que o outro se denomina Hydrobates castro. A população total nos arquipélagos da Madeira e das Selvagens poderá ser superior a 10.000 indivíduos. A postura (de um ovo), em ninhos, é efetuada em pequenas ilhas, ilhéus e falésias costeiras e muros de pedra artificiais; nas Selvagens, o roque-de-castro utiliza também ninhos de calcamar abandonados. As principais ameaças à sobrevivência da espécie são a iluminação artificial existente ao longo a costa (principalmente na ilha da Madeira), a predação por animais exóticos (como os ratos) e a perda do habitat em algumas áreas da sua ocorrência. Boa parte da área em que ocorre é reserva integral e corresponde a zonas da Rede Natura 2000. A espécie está incluída no anexo I da diretiva “Aves” e anexo II da Convenção de Berna. Calcamar (Pelagodroma marina hypoleuca (Webb, Berthelot & Mouquin-Tandon, 1841)). Esta ave, da família Hydrobatidae, ordem Procellariiformes, é uma subespécie endémica da Macaronésia e ocorre no arquipélago das Canárias e no arquipélago das Selvagens (as ilhas Selvagens constituem o extremo norte da sua distribuição geográfica). É a ave que nidifica em maior número no arquipélago das Selvagens, fazendo-o na primavera, em ninhos profundos escavados no solo. Chega geralmente após o fim do inverno, abandonando as ilhas entre junho e agosto. A postura é constituída por um ovo apenas. Trata-se de uma ave de pequeno porte com o dorso muito escuro e ventre claro. A plumagem do topo superior da cabeça é escura; já as penas em redor dos olhos são brancas, apresentando uma marca linear escura “transversal” ao olho. As patas são amarelas e longas. O seu nome deve-se ao seu voo característico (a ave parece calcar o mar). O efetivo populacional deverá ser superior a 36.000 indivíduos na Selvagem Grande e a 25.000 na Selvagem Pequena, o que representa a quase totalidade da população europeia da espécie. No passado, antes da recuperação dos habitats terrestres da Selvagem Grande, que incluiu a erradicação dos murganhos e coelhos, a predação pelos ratinhos constituía uma ameaça muito importante à sobrevivência da espécie. As áreas de nidificação no arquipélago são reservas integrais e constituem zonas da Rede Natura 2000. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. Apesar da sua abundância e da sua importância, as aves marinhas são muito menos observadas durante o dia do que as aves terrestres. Efetivamente, quem está nas ilhas da Madeira e do Porto Santo observa muito mais aves terrestres do que marinhas. Entre as aves terrestres, destacam-se as seguintes: Pombo-trocaz ou pombo-da-madeira (Columba trocaz Heineken, 1829). Trata-se de uma ave da família Columbidae, ordem Columbiformes, endémica da Madeira. De aspeto corpulento, tem entre 38 e 45 cm de comprimento, sendo maior do que pombo-das-rochas. É facilmente identificável pela cor cinzento-azulada, tendo o peito tons de cor de vinho, bico vermelho-vivo, patas de cor carmim (com dedos bastante compridos) e barra clara na cauda (visível à distância). As penas do pescoço apresentam um brilho metálico esverdeado. A fêmea é ligeiramente mais pequena e menos corpulenta do que o macho. Tem como espécies próximas a Columba junoniae, a Columba bollii (ambas das ilhas Canárias) e a Columba palumbus (Europa). Habita essencialmente a laurissilva, mas desce com frequência até aos campos agrícolas, onde provoca grandes danos. Fósseis encontrados na Ponta de São Lourenço sugerem que tinha maior área de distribuição no passado. A sua dieta é muito variada, consistindo em partes de pelo menos 40 espécies de plantas (v.g., bagas de loureiro e de til, agrião selvagem) e ainda em várias plantas cultivadas (e.g., couves). O facto de várias sementes se manterem viáveis, i.e., com capacidade germinativa, após passarem pelo trato digestivo sugere uma ação importante do pombo na dispersão de plantas. Esta espécie nidifica durante todo o ano, sobretudo em alturas em que há alimento suficiente no período entre março e junho. No ninho, camuflado ou escondido numa laje de uma rocha ou numa árvore, é posto geralmente um ovo por casal. Em 2009, existiam entre 8500 e 10.000 indivíduos. Em 2005, o estatuto de conservação desta espécie era “vulnerável”, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal; no entanto, como em 2011 foi confirmada a diminuição do grau de ameaça, o estatuto de conservação passou a “pouco preocupante”. O envenenamento, a captura ilegal e a destruição do habitat da laurissilva constituem riscos para a sua sobrevivência. Esta espécie foi caçada legalmente até 1989, ano a partir do qual passou a ter proteção integral. De acordo com o relato da obra Ilhas de Zargo, a espécie era, no passado, vendida no mercado, sendo a sua carne de excelente qualidade. O Instituto das Florestas e Conservação da Natureza realiza sessões de abate com o objetivo do controle populacional, pois de vez em quando a população aumenta de tal forma que se torna uma praga nos campos agrícolas. Do ponto de vista da proteção, a espécie consta do anexo I da diretiva “Aves” (ao abrigo desta diretiva, o seu habitat, a laurissilva, foi proposto para zona de proteção especial (ZPE)). Grande parte da sua área de distribuição está incluída nas reservas naturais integrais e parciais do PNM e abrange sítios da Rede Natura 2000. O pombo-trocaz foi espécie-alvo de dois projetos LIFE: “Medidas para a Gestão e Conservação da Floresta Laurissilva da Madeira” e “Recuperação de Espécies e Habitats Prioritários da Madeira”. Fig. 2 – Fotografia de pombo-trocaz (Columba trocaz). Espécie endémica da ilha da Madeira. Ribeiro Frio. Fonte: © Carlos Góis-Marques Pombo-claro ou pombo-torcaz (Columba palumbus maderensis, Tschusi, 1904). É uma subespécie endémica que é dada como extinta. Ainda existia no início do séc. XX, tendo o P.e Ernst Schmitz capturado alguns indivíduos. Habitava as montanhas da Madeira, onde fazia ninho nas árvores. Era semelhante às populações europeias da espécie, Columba palumbus, mas um pouco mais escura dorsalmente e com a mancha púrpura do peito maior. Uma das causas de extinção terá sido a caça intensa. Pombo-bravo (Columba livia atlantis, (Bannermann, 1931)). (Espécies cinegéticas e caça). Galinhola (Scolopax rusticola, (Linnaeus, 1758)). (Espécies cinegéticas e caça). Codorniz (Coturnix coturnix confisa, (Hartert, 1917)). (Espécies cinegéticas e caça). Bis-bis (Regulus madeirensis, (Harcourt, 1851)). Trata-se de uma ave da família Regulidae, ordem Passeriformes. É endémica da ilha da Madeira. Existem dúvidas sobre a sua presença e nidificação no Porto Santo. É a ave nidificante mais pequena do arquipélago da Madeira, medindo aproximadamente 8,5 cm de comprimento total. É facilmente identificável pelo tamanho, mas também por ter cabeça listada e pelo seu trino característico (nota aguda e curta, repetida várias vezes). O macho tem a lista da cabeça alaranjada, ao passo que a da fêmea é amarela. Habita essencialmente áreas de maior altitude. Na costa Norte, onde parece ser mais abundante, pode ser encontrada a altitudes menores; aparece com frequência em zonas de floresta indígena, mista e exótica, por vezes em terrenos agrícolas ou áreas rurais; mas é mais comum em zonas de urzais. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população deverá exceder os 10.000 indivíduos. Nidifica em arbustos, em ninhos formados por musgo e líquenes, geralmente nos meses de maio e junho. É essencialmente insectívora. Esta ave consta do anexo II da Convenção de Berna; algumas das áreas onde ocorre são zonas da Rede Natura 2000 e/ou do PNM. Fig. 3 – Fotografia de bis-bis (Regulus madeirensi). Espécie endémica da ilha da Madeira. Bica da Cana, Paúl da Serra, dez. 2011. Fonte: © José Jesus Pardal-da-terra (Petronia petronia madeirensis (Erlanger, 1899)). É uma ave da família Passeridae, ordem Passeriformes. Petronia petronia petronia é a designação atribuída por alguns cientistas à subespécie na Madeira. Em razão desta indefinição de nomes, discute-se o seu estatuto de subespécie endémica da Macaronésia (Madeira, Porto Santo e Canárias). Tendo entre 15 e 17 cm de comprimento, esta ave apresenta cabeça larga e bico relativamente grosso. É de plumagem pardo-acastanhada, com regiões de castanho e branco-sujo no corpo, exibindo uma mancha amarela debaixo da garganta (observável em especial nos machos). Observam-se também listas escuras na zona da cabeça e manchas brancas nas penas exteriores da cauda, bem visíveis durante o voo, as quais lhe são características. Outrora abundante, nos começos do séc. XXI está representada por uma população muito reduzida (entre 250 e 2500 aves, de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira). Mesmo em pequeno número, avistam-se alguns bandos, nomeadamente nas freguesias dos Prazeres e da Ponta do Pargo e na ilha do Porto Santo. Distribui-se por áreas abertas com vegetação rasteira, zonas rochosas, falésias sobre o mar e áreas cultivadas, sendo mais frequente nas regiões costeiras e nalguns pontos mais altos das ilhas. Nidifica entre os meses de fevereiro e junho. Alimenta-se essencialmente de sementes e insetos. Devido à sua dieta, esta ave poderá ter tido um impacto negativo sobre os campos agrícolas (ao nível dos grãos) – foi por este motivo que algumas câmaras tentaram combater a espécie. Assim, todos os anos, a Câmara Municipal do Porto Santo obrigava cada chefe de família a apresentar 25 cabeças de pardal durante o mês de junho. Estima-se que as principais ameaças sobre esta subespécie sejam a competição com outras espécies (como o pardal-espanhol) e a predação. O estatuto de conservação é “vulnerável”, segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. Lamentavelmente, desconhece-se o seu verdadeiro estatuto taxonómico, assim como vários aspetos da sua biologia, e não existe um plano de conservação dirigido a esta ave. A sua proteção é garantida pelo facto de algumas das áreas onde ocorre estarem incluídas no PNM e em áreas da Rede Natura 2000. A ave consta do anexo II da Convenção de Berna. Fig. 4 – Fotografia de pardal-da-terra (Petronia petronia madeirensis). Porto Santo. Fonte: © José Jesus Pardal-espanhol (Passer hispaniolensis hipaniolensis (Temminck 1820)). Trata-se de uma ave da família Passeridae, ordem Passeriformes. A subespécie ocorre no Sul da Europa, no Norte de África, nas Canárias e em Cabo Verde. Nas ilhas da Madeira e do Porto Santo, tem uma distribuição descontínua, vivendo em grupos. Prefere os habitats humanizados (jardins, praças urbanas, zonas agrícolas) e as áreas onde se misturam campos abandonados com vegetação rasteira. Esta ave apresenta dimorfismo sexual: o macho tem cabeça castanha, com partes laterais inferiores brancas e com a parte anterior do pescoço e peito negros, enquanto a fêmea é de coloração mais discreta, mais ou menos uniforme e castanha. O seu comprimento total situa-se entre os 14 e os 16 cm. Entre o final do séc. XX e os começos do séc. XXI, a população de pardal-espanhol decresceu significativamente na ilha da Madeira; no entanto, o Porto Santo manteve uma população numerosa, que deve superar largamente a estimativa de 250 a 2500 indivíduos do Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. Corre-caminhos (Anthus berthelotii madeirensis, (Hartert, 1905)). De acordo com o Elucidário Madeirense, é também chamado carreiró, carreirote, melrinho de Nosso Senhor, melrinho de Nossa Senhora, em certos locais da Madeira, e pode ser conhecido por bica, no Porto Santo. É uma subespécie da família Motacillidae, ordem Passeriformes, endémica das ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. Nas Selvagens, ocorre a subespécie Anthus berthelotii bertheloti (Bolle, 1962), que também se encontra nas Canárias. A subespécie Anthus berthelotii maderensis tem um bico mais longo do que a subespécie típica das Canárias e Selvagens; no entanto, a sua plumagem é muito semelhante à daquela. Na Madeira, é mais frequente na Ponta de São Lourenço, no Pico do Arieiro e na Ponta do Pargo, facto que se deve à sua preferência por terrenos secos e por zonas com vegetação rasteira, desde a costa às cotas mais elevadas. Nas Selvagens, a subespécie Anthus berthelotii bertheloti ocorre essencialmente nos locais de planalto, e menos nas falésias. O corre-caminhos nidifica no chão, no outono e na primavera, e é facilmente identificável pelo seu comportamento. Costuma correr e faz voos curtos, facto que está na origem do seu nome vulgar. Em voo notam-se as retrizes externas brancas. A população de Anthus berthelotii madeirensis situa-se entre as 2500 e as 10.000 aves e parece estável. Faz ninho no solo, entre fevereiro e agosto, pondo cerca de quatro ovos. A população existente nas Selvagens é considerada “vulnerável” devido ao número reduzido de indivíduos que a constitui. Ambas as subespécies podem ocorrer em áreas de reserva integral e parcial do PNM e em zonas da Rede Natura 2000. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Fig. 5 – Fotografia de corre-caminhos (Anthus berthelotii madeirensis). Ponta de São Lourenço, abr. 2011. Fonte: © José Jesus Lavandeira (Motacilla cinerea schmitzi (Tschusi, 1900)). De acordo com a obra Elucidário Madeirense, era chamada papamoscas em certos locais do Porto da Cruz. É uma subespécie endémica do arquipélago da Madeira, da família Motacillidae, ordem Passeriformes. Ocorre na Madeira e no Porto Santo. Esta ave é facilmente identificável pela sua forma “esguia”, pelo peito amarelo e pelo movimento característico, vertical e cadenciado, da cauda, quando a ave está assente no solo. Apresenta um voo ondulado acompanhado de chamamento agudo e metálico. Tem entre 17 e 20 cm de comprimento total e encontra-se sobretudo na proximidade de cursos de água e de poços, desde cotas mais baixas até zonas de maior altitude. Põe entre três e cinco ovos em ninho construído em cavidades de paredes ou barrancos. Diferencia-se das outras formas da espécie por ter o dorso mais escuro. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, o efetivo populacional situa-se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. Boa parte da população ocorre em sítios da Rede Natura 2000 e do PNM, o que lhe confere alguma proteção. A espécie consta do anexo ii da Convenção de Berna. Fig. 6 – Fotografia de lavandeira (Motacilla cinerea schmitzi). Subespécie endémica do arquipélago da Madeira. Ribeira Brava. Fonte: © José Jesus Papinho (Erithacus rubecula rubecula (Linnaeus, 1758)). É uma subespécie da família Muscicapidae, ordem Passeriformes, que se distribui por Marrocos, pelos Açores, pelo Oeste das Canárias, pela ilha da Madeira e pela ilha do Porto Santo (onde é rara). Na Madeira, pode ocorrer desde a beira-mar até aos 1700 m de altitude. É facilmente identificável pelo seu peito ruivo. O adulto é castanho no dorso e castanho-claro no abdómen e nos flancos; os juvenis são claros com peito manchado. Mede entre 12,5 e 14 cm de comprimento total. A ave tem um canto melodioso. Ocorre essencialmente em zonas de floresta indígena, floresta exótica, floresta de transição, urzais, áreas agrícolas e jardins urbanos. Alimenta-se de insetos, caracóis e minhocas. Nidifica em arbustos, entre março e julho, pondo dois ou três ovos (raramente quatro ou cinco). O efetivo populacional deverá ser superior a 10.000 indivíduos, segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. Algumas zonas onde ocorre são áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. Consta do anexo II da Convenção de Berna. Melro-preto (Turdus merula cabrerae Hartert, 1901). Subespécie endémica da Macaronésia da família Turdidae, ordem Passeriformes. Distribui-se pela Madeira, pelo Porto Santo (onde é rara) e pelas Canárias (existe em algumas ilhas). É facilmente identificável pelo seu tamanho – é o maior passeriforme nidificante (tendo entre 19 e 23,5 cm de comprimento total) –, pelo seu bico (amarelo no macho e acastanhado na fêmea) e pela sua coloração (o macho é uniformemente preto e a fêmea é castanho-escura com algumas manchas). Encontra-se por toda a ilha da Madeira, numa grande variedade de habitats, desde áreas de floresta indígena, floresta exótica, até zonas urbanas e áreas de cultivo. É muito rara nas áreas secas com vegetação rasteira do litoral. Nidifica em pequenas árvores, bananeiras, jardins e campos agrícolas. A postura ocorre geralmente em maio e junho; a época de reprodução pode estender-se entre janeiro e agosto. Alimenta-se de minhocas, insetos, bagas e sementes. O efetivo populacional da Madeira poderá exceder as 10.000 aves. Algumas áreas do seu habitat estão incluídas em zonas de reserva integral e parcial do PNM e em áreas da Rede Natura 2000. O melro-preto da Madeira consta do anexo II da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. Cigarrinho (Sylvia conspicillata orbitalis (Wahlberg 1854)). Sylvia conspicillata bella (Tschusi, 1901) é outro nome científico dado à subespécie (caído em desuso). Alguns cientistas atribuíram-lhe o nome de Curruca conspicillata orbitalis. Há dúvidas sobre se constitui uma subespécie endémica da Macaronésia. Ocorre nas ilhas da Madeira e do Porto Santo, nas Canárias e em Cabo Verde. É uma ave da família Sylvidae, ordem Passeriformes. Mede cerca de 12 a 13 cm de comprimento total e tem dimorfismo sexual (a fêmea tem, em geral, uma tonalidade mais acastanhada, sendo efetivamente castanha na cabeça e no dorso, e o macho tem cabeça cinzenta, garganta esbranquiçada, abdómen claro e rosado e dorso castanho). As formas da subespécie da ilha Madeira são mais escuras do que as das Canárias. O cigarrinho ocorre em núcleos espalhados pela ilha da Madeira, em zonas arbustivas densas com pouca perturbação humana. No Porto Santo, é frequente em áreas com alguma vegetação arbustiva, mas também em terreno aberto. O efetivo desta subespécie “tímida” ou pouco conspícua rondará os 2500 indivíduos (no entanto, esta estimativa deve ser considerada com alguma reserva por faltarem estudos sobre esta ave). A população de cigarrinhos do arquipélago da Madeira, embora apresente um estatuto de conservação “vulnerável”, não é alvo de medidas de conservação. Alguns dos locais em que ocorre são sítios da Rede Natura 2000 e do PNM. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Toutinegra (Sylvia atricapilla heinecken (Jardine, 1830)). Trata-se de uma ave da família Sylvidae, ordem Passeriformes. É uma subespécie que ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Canárias e em algumas zonas da península Ibérica (principalmente no Sudoeste). Possui um típico barrete – preto nos machos e vermelho-escuro (ou acastanhado) nas fêmeas –, sendo também possível encontrar algumas aves melânicas em que a cor preta do barrete do macho desce abaixo da nuca (pelo que recebem, em alguns locais, a denominação de toutinegras de capelo). O comprimento total no adulto varia entre 13,5 e 15 cm. Pode ser observada em vários habitats (áreas com arbustos densos, clareiras, zonas florestais de transição e jardins), sendo rara na laurissilva. Não ultrapassa os 1400 m de altitude, sendo pouco frequente a partir dos 800 m. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélagos do Madeira, deverão existir mais de 10.000 indivíduos. Entre março e junho, constrói o seu ninho nos ramos das árvores e nos arbustos e põe até cinco ovos. No passado, devido aos seus dotes canoros (o típico “tac-tac”), eram capturadas e aprisionadas em gaiolas; nos começos do séc. XXI, esta prática está proibida. Algumas áreas onde ocorre são zonas da Rede Natura 2000 e do PNM, o que confere alguma proteção à subespécie. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Tentilhão (Fringilla coelebs maderensis (Sharpe, 1888)). Trata-se de uma subespécie pertencente à família Fringillidae, ordem Passeriformes, endémica da ilha da Madeira. Tendo entre 14 e 16 cm, possui faixas alares e parte externa da cauda brancas. O dimorfismo sexual é evidente: os machos são mais vistosos, têm tonalidades mais vivas (o peito é rosado ou cor de tijolo, o dorso verde-acastanhado e a cabeça azulada); a fêmea é menos colorida, tendo geralmente tonalidade verde-acastanhada e sendo castanho-clara no peito e na região ventral. Existe apenas na ilha da Madeira, sendo observada em toda a sua extensão, exceto a mais baixa altitude. É frequente em zonas arborizadas, com vegetação indígena ou exótica, em áreas agrícolas e rurais habitadas e em regiões com vegetação arbustiva ou mesmo rasteira; também se observa com regularidade em zonas de merenda (onde “petisca” os restos de comida deixados pelas pessoas). Alimenta-se de sementes e insetos. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população é numerosa (superior a 100.000 indivíduos). Algumas das áreas em que ocorre pertencem à Rede Natura 2000 e ao PNM. Faz parte do anexo III da Convenção de Berna. Tal como acontece relativamente a outras aves do arquipélago da Madeira, são necessários estudos para conhecê-la melhor. Fig. 7 – Fotografia de tentilhão (Fringilla coelebs maderensis). Subespécie endémica da ilha da Madeira. Macho. Ribeiro Frio, abr. 2016. Fonte: © José Jesus Canário-da-terra ou canário (Serinus canaria (Linnaeus, 1758)). É um endemismo macaronésico da família Fringillidae, ordem Passeriformes. Tem entre 12,5 e 13,5 cm de comprimento. Apresenta dimorfismo sexual: os machos são mais coloridos e têm cores mais vivas – são mais amarelados – e definidas do que as fêmeas, que são mais discretas (têm cores menos vivas e mais acastanhadas). Distribui-se pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. É também encontrada nos arquipélagos dos Açores e das Canárias. O habitat da espécie é variado, compreendendo zonas rurais agrícolas, jardins, áreas urbanas, zonas com vegetação rasteira ou arbustiva. Pode ser observada desde o nível do mar, nas proximidades da zona entremarés, como é frequente nas Desertas, até aos picos mais elevados da ilha da Madeira. É frequente observar-se bandos de canários; de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, o efetivo populacional deverá ser superior a 10.000 indivíduos. A nidificação inicia-se em janeiro (ou fevereiro) e a época prolonga-se provavelmente até junho. Num ano, pode fazer duas ou três posturas. O seu canto é melodioso e muito variado. Algumas áreas de ocorrência e de nidificação estão incluídas em zonas da Rede Natura e do PNM. A espécie consta do anexo III da Convenção de Berna. Aparentemente, desloca-se entre as várias regiões de uma mesma ilha, o que leva à ocorrência de flutuações locais. Fig. 8 – Fotografia de canário (Serinus canaria) fêmea. Deserta Grande, jun. 2011. Fonte: © José Jesus Pintassilgo (Carduelis carduelis parva (Tschusi, 1901)). Esta ave, da família Fringillidae, ordem Passeriformes, distribui-se pelas ilhas da Madeira e do Porto Santo, pelos Açores, pelas Canárias, pela península Ibérica, pela região ocidental do Mediterrâneo e pelo Noroeste de África. É inconfundível pela sua coloração, tendo cabeça vermelha (ao redor dos olhos e do bico), negra e branca. Possui uma barra alar amarela e larga nas asas pretas. A cauda é preta com manchas brancas. Não tem dimorfismo sexual e o seu comprimento total varia entre os 12 e os 13,5 cm. Os juvenis são mais discretos, sem mancha facial. Pode ser encontrada desde a beira-mar até às grandes altitudes, em áreas cultivadas, abertas ou com vegetação rasteira, com gramíneas e compostas, em jardins, na floresta exótica e indígena degradada. Devido à forma como usa o habitat, sofre grandes flutuações a nível local, verificando-se uma forte sazonalidade. Pode formar bandos e a sua população na Região Autónoma da Madeira situa-se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. No passado, esta ave era capturada e mantida em gaiolas; no entanto, nos começos do séc. xxi esta prática está proibida. Alguns habitats onde ocorre estão incluídos em sítios da Rede Natura 2000 e em áreas do PNM. A ave consta do anexo II da Convenção de Berna. Pintarroxo (Carduelis cannabina guentheri (Wolters, 1953)). Na base de dados Avibase, o pintarroxo tem o nome científico de Linaria cannabina guentheri. Subespécie endémica do arquipélago da Madeira, pertence à família Fringillidae, ordem Passeriformes. Esta ave mede entre 12,5 e 14 cm de comprimento total e tem uma cauda relativamente comprida e bico curto, cinzento. Nesta subespécie, ocorre dimorfismo sexual: o macho apresenta peito e fronte avermelhados, nuca cinza e dorso de um castanho homogéneo; a fêmea é de coloração mais discreta, tendo uma tonalidade mais acastanhada do que o macho. Habita em áreas com vegetação rasteira ou com poucos arbustos (onde predominam as gramíneas e as compostas), em terrenos cultivados, jardins e outras áreas humanizadas, tanto em zonas de baixa como de elevada altitude. Pode ser observada em bandos igualmente formados por canários e pintassilgos. As estimativas indicam a existência de 2500 a 10.000 indivíduos, de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. Boa parte dos indivíduos desta subespécie relativamente pouco conhecida ocorre em áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. A ave faz parte do anexo II da Convenção de Berna. Verdilhão (Chloris chloris (Linnaeus, 1758)). Tem sido muitas vezes referido que o verdilhão da Madeira pertence à subespécie Chloris chloris aurantiiventri (Cabanis, 1850). Trata-se de uma ave da família Fringillidae, ordem Passeriformes. A espécie distribui-se pelo Sul da Europa e pelo Norte de África, tendo sido introduzida em vários outros locais (e.g., Açores, Nova Zelândia, Sul da Austrália e Argentina). Não se sabe se terá sido introduzida no arquipélago da Madeira, tendo-se conhecimento de que aí nidifica a partir da déc. de 60 do séc. XX, exclusivamente na ilha da Madeira. Aparece em áreas de floresta exótica pouco densa, em regiões marginais de floresta, perto de áreas de cultivo, ou em zonas abertas com arbustos, eventualmente em áreas urbanas, em parques e jardins. Esta ave amarelo-esverdeada tem entre 14 e 16 cm de comprimento total; o corpo, a cabeça e o bico são mais robustos do que os de espécies que lhe são próximas. Há dimorfismo sexual: a fêmea tem uma coloração bastante mais discreta do que o macho. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população deverá ser superior a 2500 indivíduos. Tem-se pouco conhecimento do modo como a espécie ocorre no arquipélago da Madeira. Lugre (Carduelis spinus (Linnaeus, 1758)). É-lhe também atribuído o nome científico de Spinus spinus (Linnaeus, 1758). É uma ave da família Fringillidae, ordem Passeriformes. Encontra-se na região paleártica, nomeadamente entre a Europa Ocidental e a Rússia Meridional, até à costa do Oceano Pacífico. Só em 2002 foi confirmada a sua nidificação na Madeira, e desde então tem-se assistido a um incremento do efetivo populacional, sendo frequente observá-la na região do Poiso e na dos Estanquinhos (Paúl da Serra), entre outras. Este fringilídeo, que mede entre 11 e 12,5 cm de comprimento total, distingue-se pelas suas asas escuras, com marcas branco-amareladas, e pelos lados da cauda, amarelos essencialmente na base (como no verdilhão). A coroa e o babete são pretos. Tem cabeça pequena e cauda curta. Poupa (Upupa epops (Linnaeus, 1758)). Trata-se provavelmente da subespécie Upupa epops epops. É uma ave da família Upupidae, ordem Upupiformes. No arquipélago da Madeira, é frequente no Porto Santo e ocasional na ilha da Madeira (onde ocorre principalmente na Ponta de São Lourenço) e nas ilhas Desertas. A espécie distribui-se pela Europa, pelo Noroeste de África e pela Ásia. Vive em áreas secas, com vegetação rasteira herbácea ou arbustiva pouco densa, e em zonas agrícolas. É inconfundível pela sua silhueta e pelo padrão preto e branco das asas, pelo bico comprido e curvo e pela crista bastante evidente, mesmo quando em voo. Tem um comprimento total que varia entre os 25 e os 29 cm. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existem entre 250 e 2500 indivíduos. Alimenta-se de invertebrados, como insetos e minhocas. Ocorre em algumas áreas da Rede Natura 2000. Andorinhão-da-serra, andorinha-da-serra ou andorinha (Apus unicolor (Jardine, 1830)). Trata-se de uma ave da família Apodidae, ordem Apodiformes, endémica da Macaronésia, ocorrendo na ilha do Porto Santo, na ilha da Madeira e nas ilhas Canárias. Nidifica em falésias, a qualquer altitude. É observada sobretudo no verão. A maioria dos indivíduos parece migrar, no inverno, para o Norte de África. Esta ave, medindo entre 14 e 15 cm de comprimento total e tendo coloração negra, apresenta um voo rápido bastante característico e uma silhueta em meia-lua (por analogia com fases da lua, parece um quarto crescente ou um quarto minguante). Come essencialmente insetos, pelo que o uso de inseticidas pode constituir uma ameaça para a espécie. Distingue-se de Apus pallidus por ter uma coloração mais homogénea e escura. Ocorre em vários locais, incluindo em áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existem entre 2500 e 10.000 indivíduos. Andorinhão ou andorinha-do-mar (Apus pallidus brehmorum (Hartert, 1901)). Trata-se de uma ave da família Apodidae, ordem Apodiformes, que ocorre nas ilhas da Madeira e do Porto Santo e também em algumas ilhas das Canárias, podendo ser igualmente observada nas costas da Europa Meridional (entre a península Ibérica e a Turquia) e no Norte de África. Com um comprimento total que varia entre os 16 e os 18 cm, distingue-se do andorinhão-da-serra (Apus unicolor) por ser um pouco maior do que ele, pela mancha clara na garganta e pela sua coloração menos homogénea. No inverno, parece migrar para regiões situadas a sul do Saara. Embora haja algum desconhecimento quanto à sua distribuição e abundância, sabe-se que esta ave ocorre em vários habitats, desde falésias e ilhéus (onde nidifica) a zonas de interior, entre as quais as regiões de montanha, áreas rurais ou áreas suburbanas. É menos abundante do que a Apus unicolor. A exemplo do que acontece noutras ilhas oceânicas, as aves de rapina estão representadas por um baixo número de espécies, quando comparado com o existente em áreas continentais com características semelhantes. No arquipélago da Madeira e no arquipélago das Selvagens nidificam a manta, o francelho, o fura-bardos e a coruja-das-torres. Manta. Alguns madeirenses conhecem-na como milhafre. Trata-se de uma ave da família Accipitridae, ordem Accipitriformes. Durante muito tempo, foi considerada como a subespécie Buteo buteo harterti (Swan, 1919); no entanto, é considerada por alguns cientistas como Buteo buteo buteo (Linnaeus, 1758). Se considerarmos esta ave de rapina como Buteo buteo harterti, podemos afirmar que a subespécie ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas, sendo endémica do arquipélago da Madeira. No entanto, se considerarmos a ave como Buteo buteo buteo, então a população do arquipélago deixa de ser tida como endémica, havendo que considerar as populações ocidentais da região paleártica e da África Ocidental como constituintes da mesma subespécie (Buteo buteo buteo). Independentemente das dúvidas taxonómicas quanto ao estatuto da manta, esta é a maior das aves de rapina que nidificam no arquipélago da Madeira, tendo um comprimento total que poderá superar os 50 cm e uma envergadura que poderá chegar aos 130 cm. É frequente observá-la voando, com batimentos de asa lentos, ou planando em círculos, aproveitando as correntes matinais de ar ascendente (pode também efetuar voos curtos e picados). Ocorre em vários habitats: falésias costeiras e interiores, zonas com pouca vegetação rasteira, áreas florestais indígenas e exóticas, áreas agrícolas e suburbanas. A parte superior do corpo é geralmente castanho-escura; o peito é uniformemente castanho-escuro, listado ou manchado de creme-amarelado. Em voo, as asas mostram cinco rémiges primárias soltas (que parecem dedos) e manchas claras e orlas escuras na parte inferior. A cauda é relativamente curta e a cabeça de pequena dimensão. Esta ave alimenta-se de roedores, coelhos, algumas aves (como a perdiz), lagartixas e insetos. Nidifica a média ou elevada altitude, em precipícios e em árvores de grande porte. A construção do ninho começa em fevereiro ou março. Os pintos deixam o ninho nos meses de julho e agosto. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população é superior a 2500 indivíduos, essencialmente localizados na ilha da Madeira. No entanto, em 2006 a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves tinha uma estimativa distinta (cerca de 300 aves nas ilhas da Madeira e do Porto Santo). As ameaças que pairam sobre a manta são o envenenamento secundário por pesticidas, a captura e o abate ilegais. No passado, era perseguida e caçada, pelo facto de predar galinhas (e outras aves domésticas) e coelhos. Parte da sua área de ocorrência está incluída em zonas da Rede Natura 2000 e em algumas regiões com estatuto de reserva integral e parcial do PNM. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. A manta desapareceu das Desertas em 1996, provavelmente vítima de envenenamento secundário, por predação de coelhos envenenados. De facto, nessa altura decorria o projeto Recuperação dos Habitats Terrestres da Deserta Grande, que envolvia a erradicação de coelhos através do envenenamento. No entanto, posteriormente foram feitos alguns avistamentos da manta nas Desertas. Francelho (Falco tinnunculus canariensis (Koenig, 1980)). Na Madeira, há pessoas que os chamam de milhafres. Ave da família Falconidae, ordem Falconiformes, é uma subespécie endémica da Macaronésia que ocorre sobretudo nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Canárias. Na Madeira e no Porto Santo, podemos observar francelhos desde o nível do mar até às altas montanhas, em diversos habitats (como falésias, espaços urbanos e suburbanos, zonas florestais, superfícies com pouca vegetação ou com vegetação rasteira, e áreas agrícolas). É a ave de rapina nidificante mais abundante e a mais pequena do arquipélago da Madeira, facilmente identificável em voo pelas suas longas asas, pontiagudas e arqueadas em forma de foice, e pela sua longa cauda, assim como pelo seu típico “peneirar”, ou seja, pelo bater de asas em voo sem deslocamento (o chamado “parado no ar”). No geral, possui dorso e região ventral malhados; porém, as fêmeas, de maior porte, são castanhas na parte superior e têm listas escuras na cabeça, possuindo cauda listada e dorso mais malhado do que o do macho; o macho tem cabeça e cauda cinzentas, uma barra preta subterminal na cauda, parte inferior de tonalidade acastanhada e clara e asas escuras nas extremidades. O comprimento total dos indivíduos da espécie varia entre 31 e 37 cm e a envergadura entre 68 e 78 cm. O francelho é mais pequeno e mais escuro do que os seus congéneres europeus. Devido ao projeto Recuperação dos Habitats Terrestres da Deserta Grande, e a exemplo do que aconteceu com a manta, o francelho desapareceu da Deserta Grande em 1996, mas voltou a ser posteriormente detetado na Deserta Grande e no Bugio. A sua dieta é variada e condicionada pela disponibilidade das presas principais (a qual, por sua vez, depende do habitat). Come essencialmente roedores, lagartixas, insetos e pequenas aves. Põe quatro a seis ovos em buracos ou fendas de escarpas rochosas. A estimativa do efetivo varia entre 2500 e 10.000 indivíduos, de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. As principais ameaças à sobrevivência do francelho são o envenenamento secundário por pesticidas e a perseguição humana (e.g., por meio da captura ilegal). Parte da região da ocorrência da espécie está incluída em zonas que integram a Rede Natura 2000 e em algumas áreas com estatuto de reserva integral e parcial do PNM. A ave consta do anexo i da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. No passado, a caça a estas aves era uma realidade habitual: o povo temia-as, pois predavam os pintos de galinha que andavam à solta. Fura-bardos (Accipiter nisus granti (Sharpe, 1890)). Ave da família Accipitridae, ordem Accipitriformes. No arquipélago da Madeira, ocorre apenas na ilha da Madeira, com uma distribuição dispersa. Esta subespécie macaronésica também ocorre nas Canárias. A espécie a que pertence, Accipiter nisus, é conhecida como gavião no continente português e tem vasta distribuição europeia. Por ter hábitos discretos, é difícil de observar. Esta ave habita áreas florestais densas (exóticas ou indígenas), mas também pode ser observada em campos agrícolas. Nidifica nas árvores. Apresenta um porte intermédio entre o do francelho e o da manta e asas arredondadas e relativamente curtas. A fêmea é maior e mais acinzentada do que o macho, tendo o peito e abdómen listados; o macho apresenta tons rosa no peito e no abdómen, cor cinza-azulada no dorso e barras finas e avermelhadas na parte inferior do corpo; ambos os sexos têm corpo estreito, pernas longas e cauda comprida. É a ave de rapina menos conhecida do arquipélago madeirense, pelo que qualquer apreciação a seu respeito deve ser considerada com o devido cuidado. O Elucidário Madeirense refere que é “indígena mas pouco frequente, não tendo sido mencionada na lista de Harcourt” (SILVA e MENESES, 1978, II, 158). Contudo, segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existem entre 1000 e 2500 fura-bardos. As principais ameaças à sobrevivência da subespécie são a caça (o abate ilegal) e a destruição do habitat por incêndios e corte de árvores. Parte da área de ocorrência da subespécie está incluída em sítios da Rede Natura 2000 e em algumas zonas com estatuto de reserva integral e parcial do PNM. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. O projeto LIFE Fura-Bardos, compreendendo os anos de 2013 a 2017, tem como fito a conservação da espécie e dos habitats em que ocorre. Coruja ou coruja-das-torres (Tyto alba schmitzi (Hartert, 1900)). Trata-se de uma ave da família Tytonidae, ordem Strigiformes. É uma subespécie endémica do arquipélago da Madeira, ocorrendo nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. É a única ave de rapina noturna que nidifica no arquipélago da Madeira, sendo facilmente identificada pela sua silhueta durante o voo, pelo disco facial conspícuo e pelo chamamento agudo e estridente. Mede entre 33 e 39 cm de comprimento e tem entre 80 e 95 cm de envergadura. Apresenta um corpo relativamente delgado, asas para o longo e patas compridas. Embora seja mais escura do que as outras formas da espécie, apresenta uma significativa variação na sua coloração, sendo mais invulgar ter aparência clara. A face é pálida, em forma de coração, e os olhos são rodeados de penas escuras. Ocorre em vários tipos de habitat, desde zonas urbanas a áreas de floresta com clareiras, desde o litoral aos vales profundos do interior. Nidifica essencialmente entre abril e junho, em falésias costeiras e interiores. A coruja alimenta-se essencialmente de roedores, insetos e, eventualmente, de algumas pequenas aves. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, o seu efetivo situa-se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. Embora esta subespécie não conheça sérias ameaças à sua sobrevivência, a poluição do ambiente por pesticidas, a perseguição e o abate ilegal, bem como as crenças e as superstições em torno dela (são consideradas por muita gente como aves de mau agoiro – segundo a crença, sempre que uma delas passa por cima de uma casa, algo de mau irá acontecer, v.g., o falecimento de uma pessoa) constituem sem dúvida potenciais riscos para ela. No passado, o maior perigo era a perseguição pelas pessoas que as consideravam animais de mau agoiro. Esta ave consta do anexo II da Convenção de Berna e ocorre em muitas áreas do PNM e da Rede Natura 2000. Devido ao projeto Recuperação dos Habitats Terrestres da Deserta Grande, a coruja desapareceu da Deserta Grande em 1996 (tal como aconteceu com a Manta e o francelho). Posteriormente, voltou, porém, a ser detetada. Gaivota ou gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahellis michahellis (Naumann, 184)0). “Gaio” ou “gaivoto” são os nomes atribuídos aos indivíduos juvenis, que se distinguem dos adultos pela plumagem escura. Trata-se de uma ave da família Laridae, ordem Charadriiformes. A atribuição de nome científico a estas gaivotas tem sido polémica, e a sua classificação tem variado ao longo do tempo. De todo o modo, vamos considerar que as gaivotas do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens pertencem à subespécie Larus michahellis michahellis. Esta ave ocorre nas várias ilhas dos dois arquipélagos, em todo o tipo de terreno próximo do mar, em locais desabitados, falésias costeiras, zonas de lixeiras e de despejos de resíduos orgânicos e perto de áreas de descarregamento de peixe (lotas). As áreas preferenciais de nidificação são o ilhéu dos Desembarcadouros e o ilhéu de Fora. A postura, até três ovos, dá-se nos meses de abril e maio. Esta gaivota caracteriza-se por ser branca. O dorso e a parte superior da asa são cinzentos (com um pouco de cor branca na extremidade da asa). As patas são amarelas. O anel orbital é vermelho e há uma mancha vermelha no bico. Esta ave alimenta-se de grande variedade de presas, como peixes (muitos obtidos nos desperdícios da pesca, pelo que é considerada oportunista em termos de dieta), micromamíferos, aves marinhas, passeriformes, e de lixo orgânico, etc. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas o número de casais é superior a 3900; nas Selvagens, não ultrapassa os 30. As populações desta gaivota têm crescido devido à sua associação com o Homem. Excetuando nas Selvagens, não está ameaçada. Garajau ou garajau-rosado ou gaivina-rosada (Sterna dougallii dougallii (Montagu, 1813)). Trata-se de uma ave da família Sternidae, ordem Charadriiformes. Ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Selvagens, no arquipélago dos Açores, na Europa, na América do Norte, nas Índias Ocidentais e em África. O seu habitat preferido são as falésias localizadas a baixa altitude e os ilhéus situados em zonas remotas. Esta ave possui o peito ligeiramente rosado na primavera, bico de ponta preta; quando pousada, as penas da cauda ultrapassam as asas estendidas para trás. Nidifica essencialmente na Ponta de São Lourenço, nas Selvagens, nos ilhéus rochosos ou arenosos dos arquipélagos da Madeira e das Selvagens, e longe da perturbação humana. Provavelmente, as principais ameaças à sua sobrevivência são a destruição do seu habitat e os predadores introduzidos. Quanto ao estatuto de conservação, a população regional desta subespécie é “vulnerável”; apesar desta classificação, não há qualquer programa de conservação dirigido à espécie. A sua proteção é conferida pelo facto de algumas zonas em que ocorre constarem de áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. A ave encontra-se no anexo I da diretiva “Aves” e anexo II da Convenção de Berna. Garajau ou gaivina (Sterna hirundo hirundo (Linnaeus, 1758)). Trata-se de uma ave da família Sternidae, ordem Charadriiformes. Ocorre em todas as ilhas do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens, com maior incidência nas zonas costeiras, a baixa altitude, e em pequenos ilhéus, onde nidifica. Na Selvagem Pequena e no ilhéu de Fora nidifica em praias de areia. Nestes arquipélagos, ocorre essencialmente entre os meses de março e setembro, em colónias de dimensão reduzida. Com um comprimento total entre os 34 e os 37 cm e uma envergadura entre os 70 e os 80 cm, o bico é vermelho e robusto e o peito é branco. Distingue-se do garajau-rosado, entre outros aspetos, pelo facto de, quando pousada, a sua cauda não ultrapassar a ponta das asas compridas e estreitas. Esta ave de patas curtas alimenta-se essencialmente de pequenos peixes, crustáceos e insetos. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existirão entre 250 e 2500 aves. As principais ameaças à sua sobrevivência são a ocupação, a alteração e a destruição do litoral. Segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal do ano de 2005 tem o estatuto de conservação “vulnerável”. Esta ave ocorre e nidifica em áreas do PNM e em áreas da Rede Natura 2000. Encontra-se no anexo I da diretiva “Aves” e no anexo II da Convenção de Berna. Galinha-de-água (Gallinula chloropus (Linnaeus, 1758)). Trata-se provavelmente da subespécie Gallinula chloropus chloropus. É uma ave da família Rallidae, ordem Gruiformes. Esta espécie ocorre na Europa, na Ásia, na África e na América. Na Macaronésia, podemos observá-la nos Açores, na Madeira, nas Canárias e em Cabo Verde. No arquipélago da Madeira, a ave nidifica nas ilhas da Madeira e do Porto Santo. O habitat desta ave inclui charcos e lagoas com vegetação densa nas margens, e ela pode ser ocasionalmente vista na foz de algumas ribeiras. Podemos observá-la na lagoa do Lugar de Baixo (ilha da Madeira), na lagoa do Dragoal e na lagoa da Serra de Dentro (ilha do Porto Santo). Também poderá ser observada noutras massas de água com características semelhantes às anteriores. Ave de médio porte, com cerca de 37 cm de comprimento total, facilmente identificável pela plumagem em tons de castanho, azulado e preto, fronte vermelha – tal como o bico, de ponta amarela – e patas claras e esverdeadas. A parte inferior da cauda é branca. Os dedos são bastante compridos. É omnívora, tendo uma dieta à base de plantas aquáticas e suplementada com pequenos animais e ovos de outras aves. Existem poucos indivíduos na Madeira e no Porto Santo, provavelmente menos de 50. Essencialmente pelo reduzido efetivo, mas também pelo baixo número de potenciais locais de nidificação no arquipélago da Madeira, a espécie apresenta o estatuto “em perigo”, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal na sua edição de 2005. Galeirão-comum (Fulica atra (Linnaeus, 1758)). É uma ave da família Rallidae, ordem Gruiformes. A espécie distribui-se pelas regiões paleártica, indo-malaia e australo-asiática. No arquipélago da Madeira, nidifica, pelo menos, na lagoa do Lugar de Baixo, na Foz da Ribeira do Faial e no Porto Santo. É uma ave de 36 a 42 cm de comprimento total e é facilmente identificável pelo bico e placa da fronte brancos e pelo corpo largo de cor cinzenta fuliginosa (parece preta). A cauda é curta e pequena e a cabeça arredondada e preta. No arquipélago da Madeira, o habitat disponível escasseia e é geralmente intervencionado pelo homem, pelo que o efetivo populacional deverá ser muito reduzido. Há ainda a referir a nidificação frequente da rolinha-da-praia ou borrelho-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus (Linnaeus, 1758)) no Porto Santo, onde a espécie tem o estatuto “em perigo”. As construções sobre dunas e a circulação de veículos sobre elas constituem as principais ameaças. Outra ave nidificante do arquipélago da Madeira, não referida acima, considerada na listagem de Romano e colegas do ano de 2010 (mas não considerada noutras fontes, como o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira), é o pato-real (Anas platyrhynchus (Linnaeus, 1758)). Há algumas espécies nidificantes ocasionais, como é o caso do garajau-escuro (Onychoprion fuscatus (Linnaeus, 1766)) e do pato mandarim (Aix galericulata (Linnaeus, 1758)). Fig. 9 – Fotografia de galeirão-comum (Fulica atra). Espécie com uma população reduzida na Madeira e Porto Santo e com distribuição restrita a pequenas massas de água. Lagoa do Lugar de Baixo, jan. 2014. Fonte: © José Jesus   Rola-turca (Streptopelia decaocto (Frivaldszky, 1838)). Trata-se de uma ave da família Columbidae, ordem Columbiformes. Provavelmente introduzida no arquipélago da Madeira, a espécie é originária do subcontinente indiano. Ocorre nas regiões paleárticas ocidental e oriental. O primeiro registo de nidificação na ilha da Madeira (na Ponta de São Lourenço) data de 2009. É uma ave de média dimensão, de 31 a 34 cm de comprimento total, e elegante. A cauda é longa. A plumagem é pálida; no entanto, existe uma barra preta estreita, delineada a branco, nos lados do pescoço. Alimenta-se essencialmente de matéria vegetal, como grãos. Foram já registados casos de nidificação de outra espécie do género, a rola-comum (Streptopelia turtur), possivelmente também introduzida pelo Homem. Não se conhecem os efeitos da introdução destas duas espécies de rolas. Para prevenir possíveis impactos graves, seria necessário o controlo destas aves e, eventualmente, a sua erradicação. Outras aves nidificantes, presumivelmente introduzidas pelo Homem, são o bico-de-lacre (Estrilda astrild (Linnaeus, 1758)), o pato-mudo (Cairina moschata (Linnaeus, 1758)) e o periquito-de-colar (Psittacula krameri (Scopoli, 1769)). Há ainda outras espécies, possivelmente introduzidas, cuja nidificação na ilha da Madeira não está confirmada, como a caturra (Nymphicus hollandicus (Kerr, 1792)) e o papagaio-do-senegal (Poicephalus senegalus (Linnaeus, 1766)). Fig. 10 – Fotografia de pato-mudo (Cairina moschata). Espécie provavelmente exótica e em plena expansão da área de distribuição. Lagoa do lugar de Baixo, dez. 2011. Fonte: © José Jesus   Muitas espécies de aves foram introduzidas para a caça, mas algumas foram depois dadas como extintas, como é o caso da galinha-d’Angola (Numida meleagris (Linnaeus, 1758)), da perdiz-moura (Alectoris barbara (Bonnaterre, 1792)), do faisão (Phasianus colchicus (Linnaeus, 1758)) e do pavão (Pavo cristatus (Linnaeus, 1758)). Outras espécies, de que existem referências, encontram-se extintas no meio selvagem do arquipélago da Madeira. Têm sido encontradas e descritas espécies fósseis, especialmente encontradas nas dunas da Piedade e no Porto Santo, tais como o mocho (Otus mauli (Rando et al., 2012)), o ralídeo, (Rallus lowei (Alcover et al., 2015)), uma espécie robusta que possuía asas pequenas e não voava, ambas encontradas na ilha da Madeira, e o Rallus adolfocaesaris (Alcover et al., 2015), uma espécie menos robusta do que a anterior e encontrada na ilha do Porto Santo. Muitas outras espécies fósseis das dunas da Piedade e do Porto Santo poderão estar por descobrir ou descrever. A organização BirdLife International tem um programa cujo objetivo é identificar, proteger e gerir uma rede de áreas relevantes para a viabilidade, a longo prazo, de populações naturais de aves, mediante critérios estabelecidos internacionalmente. Estas áreas recebem a designação de Important Bird and Biodiversity Areas [Áreas Importantes para as Aves e Biodiversidade] (IBAs). As IBAs do arquipélago da Madeira e as principais espécies em cada uma delas encontram-se a seguir referidas: Laurissilva (código: PT083, área: 15.242 ha): alma-negra, cagarra, fura-bardos, pombo-trocaz, andorinhão-da-serra e canário-da-terra. Maciço montanhoso oriental (código: PT084, área: 3411 ha): freira-da-madeira, fura-bardos, pombo-trocaz, andorinhão-da-serra e corre-caminhos. Ilhas Desertas (código: PT085, área: 1384 ha): freira-do-bugio, alma-negra, cagarra, pintainho, roquinho, andorinhão-da-serra, corre-caminhos e canário-da-terra. Ilhas Selvagens (código: PT086, área: 265 ha): alma-negra, cagarra, pintainho, calcamar, roquinho, corre-caminhos. Ponta de São Lourenço (código: PT087, área: 321 ha): alma-negra, pintainho, roquinho, gaivina-rosada, gaivina, andorinhão-da-serra, canário-da-terra e corre-caminhos. Ponta do Pargo (código: PT088, área: 1161 ha): roquinho, fura-bardos, andorinhão-da-serra, corre-caminhos e canário-da-terra. Ilhéus do Porto Santo (código: PT089, área: 204 ha): pintainho, andorinhão-da-serra, corre-caminhos, canário-da-terra. Porto Santo-Oeste (código: PT090, área: 929 ha): roquinho, gaivina, gaivina-rosada, andorinhão-da-serra, corre-caminhos, canário-da-terra. [table id=101 /] [table id=102 /]   *Registos dúbios ou não confirmados **Possibilidade/indícios de nidificação   José Jesus (atualizado a 23.01.2017)

Biologia Terrestre

serviço de estrangeiros e fronteiras

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) é um serviço de segurança que depende do Ministério da Administração Interna, tem autonomia administrativa e se integra no quadro da política de segurança interna do país. O controlo de estrangeiros, no que respeita à sua entrada, permanência e saída de território nacional, foi desde os anos 40 do século XX uma tarefa cometida à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, depois designada por Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e, após 1968, por Direção Geral de Segurança (DGS), a qual esteve sedeada durante muitos anos na rua da Carreira n.º 155, no Funchal. A PIDE/DGS tutelou os estrangeiros e fiscalizou a sua estadia em Portugal desde os anos 40 do século XX até ao dia 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos. Nos finais de abril, tal incumbência e os seus ficheiros passaram para a tutela da Guarda Fiscal (GF). Existiriam nessa altura cerca de 30.000 processos de cidadãos portugueses e estrangeiros, devidamente organizados e arquivados; o número de processos de cidadãos portugueses ultrapassava os 10.000. Sobre os portugueses, existia um ficheiro pormenorizado referente às viagens, quer internas, isto é, para o Continente e Açores, quer para o estrangeiro, fosse em férias, fosse por emigração, com um número de fichas individuais muito superior aos 10.000 processos acima referidos. Nessas fichas eram anotados os movimentos de cidadãos na condição de passageiros, quer por via marítima quer, posteriormente a 1964, por via aérea, uma vez que a mesma organização controlava as fronteiras portuguesas e, por tal razão, as da Madeira. A PIDE/DGS era dirigida, à altura da sua extinção na Madeira, pelo inspetor Anatólio, que tinha sob a sua direção cerca de 12 agentes da polícia política, os quais foram enviados para Lisboa nos finais de abril de 1974 sob escolta da PSP, sendo presos, após julgamento, por um período indeterminado e variável, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre. Nessa altura, estariam domiciliados na Madeira com processos ativos cerca de 400 cidadãos estrangeiros, muitos deles nascidos na Madeira ou nela residentes de longa data. Em 1976, existiriam legalizados na Madeira cerca de 700, sendo as mais importantes comunidades a inglesa, a alemã, a venezuelana – muitos de cujos membros eram de origem portuguesa – e a nórdica; nos anos 80, juntaram-se-lhes angolanos, cabo-verdianos e guineenses e, já nos anos 90 e inícios do século XXI, ucranianos, russos, romenos, moldavos e brasileiros, que foram legalizados em três processos de regularização extraordinária, respectivamente em 2001, 2003 e 2005, este último exclusivamente para cidadãos brasileiros. As fichas que se encontravam na posse da PIDE/DGS foram mandadas queimar, cerca de um mês após a revolução de abril, à ordem da PSP, a quem o controlo de cidadãos estrangeiros foi cometido no dia 28 de maio de 1974; por essa razão, todo o acervo referente a estrangeiros passou da tutela da GF para a da PSP, tendo ficado sedeado no comando desta polícia, sito na rua do Carmo da cidade do Funchal, com a designação interna de Serviço de Estrangeiros (SE) e sob a autoridade do Ministério de Interior, posteriormente designado por Ministério da Administração Interna. Desse acervo referente a cidadãos nacionais não restou uma única ficha, ou um simples processo, escapando apenas os documentos de identidade ou de viagem que haviam sido apreendidos pela PIDE/DGS, nomeadamente bilhetes de identidade e passaportes, alguns dos quais foram devolvidos aos seus legítimos titulares. Os documentos que não foi possível devolver, por impossibilidade de localização do seu titular foram devolvidos à Conservatória dos Registos Centrais (os bilhetes de identidade) e entregues no Palácio de São Lourenço (os passaportes), ficando à guarda do Governo Civil da Madeira. Os processos de cidadãos estrangeiros da PIDE/DGS que transitaram para o novo serviço mantiveram-se até 2005 sob a jurisdição e guarda do Serviço de Estrangeiros, depois Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Este acervo incluía peças documentais únicas, muitas delas referentes a cidadãos estrangeiros nascidos na Madeira e ligados por sangue e nome a muitas das principais e mais influentes famílias da Região, como os Blandy, os Hinton, os Welsh, os Garton ou os Gesch. A estes processos juntaram-se também documentos estatísticos, carimbos, selos brancos, chancelas e demais parafernália administrativa e de controlo de fronteiras da PIDE/DGS, cuja destruição foi ordenada, em 2005, pelo Diretor Regional, ficando na sede do serviço, sita à rua Nova da Rochinha, apenas os designados processos ativos. O SE esteve sedeado na PSP de 28 de maio de 1974 até ao verão de 1977. A partir de 1977, passou à tutela direta do MAI, ganhando autonomia administrativa e funcional e uma nova designação: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) Enquanto esteve na PSP, o SE foi chefiado administrativamente por Gabriel Oliveira, coadjuvado, na qualidade de oficial de diligências, por Manuel Abreu. Na qualidade de operacionais, na fiscalização de estrangeiros e de instalações hoteleiras trabalhavam 5 agentes e subchefes da PSP. A partir de 1977, o SE foi dirigido por um diretor, o primeiro dos quais foi o capitão França Machado, originário do Porto da Cruz. O controlo de fronteiras manteve-se, nos postos de fronteiras, sob a tutela da GF até agosto de 1992 em Portugal continental e até 7 de outubro desse mesmo ano no aeroporto do Funchal, data em que se deu a transferência desse comando para o SEF. Foi nomeado Inspetor Responsável desse Posto de Fronteira, designado por PF004, o inspetor SEF José Felisberto de Gouveia Almeida e como adjunta de comando a inspetora SEF Fátima Teixeira, com 24 inspetores-adjuntos SEF. A fronteira aérea do Porto Santo, PF007, passou para a tutela SEF em 1997, sob o mesmo comando, e o mesmo aconteceu pouco depois com as fronteiras marítimas, tanto a do Porto do Funchal, PF 208, quanto a da Marina do Porto Santo, PF223, todas unificadas sob o mesmo comando. O SE, depois SEF, tem também uma delegação no Porto Santo; teve uma delegação em Machico, a qual foi extinta no final de 1980. A partir de 2004, o SEF na Madeira ocupou um balcão duplo na Loja do Cidadão do Funchal, local onde a partir de 2006 se passaram a fazer todos os atendimentos de cidadãos estrangeiros que solicitavam os seus serviços. Os diretores da Direção Regional do SE/SEF na Madeira entre 1977 e 2015 foram: de 1977 a 1979, o capitão França Machado; de 1979 a 1983, o capitão Fonseca Ferreira; de 1983 a 1993, o major Renato Trindade; de 1993 a 2004, o inspetor SEF José Felisberto de Gouveia Almeida; de 2004 a 2007, o inspetor SEF César de Jesus Inácio; de 2007 a 2009, o inspetor SEF Luís Frias; de 2009 a 2012, a inspetora SEF Fátima Teixeira; de 2012 a 2015, o inspetor SEF Paulo Torres. O SEF Madeira é um Serviço com tutela directa do SEF e, por via deste, do Governo Central, via Ministério da Administração Interna.     José Felisberto Almeida (atualizado a 30.12.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

segurança social

De acordo com a Lei de Bases da Segurança Social (LBSS), lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, o sistema de Segurança Social português encontra-se estruturado em três sistemas: o sistema de proteção social de cidadania (que se decompõe nos subsistemas de ação social, de solidariedade e familiar), o sistema previdencial e o sistema complementar. O sistema de proteção social de cidadania tem por objetivos garantir direitos básicos dos cidadãos e a igualdade de oportunidades, bem como promover o bem-estar e a coesão sociais. Ele inclui, em primeiro lugar, o subsistema de ação social, cujos objetivos centrais são os da reparação e prevenção de situações de carência e desigualdade socioeconómica, de dependência, de disfunção e de vulnerabilidade sociais, designadamente de crianças, jovens, pessoas com deficiência e idosas, bem como a integração e promoção comunitárias das pessoas e o desenvolvimento das respetivas capacidades. A sua concretização faz-se sobretudo mediante o desenvolvimento de um conjunto de serviços e equipamentos sociais, bem como de programas de combate à pobreza, disfunção e marginalização sociais. Em segundo lugar, o sistema de proteção social de cidadania integra o subsistema de solidariedade, que visa assegurar, a partir de um princípio de solidariedade nacional, direitos essenciais de forma a prevenir e erradicar as situações de pobreza e exclusão, e garantir prestações em situações de comprovada necessidade pessoal ou familiar, não incluídas no sistema previdencial. E, de facto, este subsistema garante a atribuição aos beneficiários, desde que cumprindo condições de residência e de recursos, de prestações de carácter não contributivo, num conjunto de eventualidades sociais, a saber: falta ou insuficiência de recursos económicos dos indivíduos e dos agregados familiares, invalidez, velhice e morte, e situações de insuficiência dos rendimentos de trabalho ou da carreira contributiva dos beneficiários. Das prestações deste subsistema (que grosso modo equivale ao anterior regime não contributivo), destacam-se três: as pensões sociais (de velhice e invalidez); o Rendimento Social de Inserção (constante da lei n.º 13/2003, de 21 de maio, alterada); e os complementos sociais, estes destinados a completar o valor da pensão estatutária quando este se situe abaixo do valor fixado para a pensão mínima do regime geral da Segurança Social. Finalmente, o sistema de proteção social de cidadania integra ainda o subsistema de proteção familiar, que tem por objetivo assegurar a compensação de encargos familiares, garantindo o pagamento de prestações nesta eventualidade (v.g., abono de família, cujo regime consta da conjugação de vários diplomas: dec.-lei n.º 176/2003, de 2 de agosto, alterado, dec-lei n.º 70/2010, de 16 de junho, alterado, dec.-lei n.º 77/2010, de 16 de junho e dec.-lei n.º 116/2010, de 22 de outubro) e, bem assim, nas situações de dependência e de deficiência. O sistema previdencial visa garantir, na base de um princípio de solidariedade de base laboral, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas (doença, parentalidade, desemprego, acidentes de trabalho e doenças profissionais, invalidez, velhice e morte). Voltaremos a este sistema, mais à frente. Por último, o sistema complementar, marcado pela sua natureza facultativa, concretiza-se num regime público de capitalização e em regimes complementares de iniciativa coletiva e individual. O regime público de capitalização foi uma novidade da LBSS (art. 82.º). Tratou-se de instituir, numa base facultativa (a adesão por parte dos contribuintes/beneficiários da Segurança Social é voluntária), um esquema complementar de reforma que, em contrapartida das contribuições adicionais feitas pelo subscritor, concede, logo que verificados os requisitos de acesso mormente quanto à idade de acesso à pensão, complementos de reforma, sob a forma de pagamentos únicos (devolução integral do capital aplicado mais rendibilidade) ou de rendas vitalícias. As taxas contributivas a pagar, a incidir sobre o valor de remuneração referente, resultam de uma opção do subscritor, entre três hipóteses: 2 %, 4 % ou 6 %. O regime público de capitalização foi efetivamente instituído e regulamentado com a aprovação do dec.--lei n.º 26/2008, de 22 de fevereiro, que regulou ainda o respetivo Fundo de Certificados de Reforma. A esta diferença de estrutura no sistema da Segurança Social correspondem formas diferentes de financiamento. Por força do princípio da adequação seletiva (art. 89.º da LBSS), enquanto o sistema de proteção social de cidadania é financiado através de transferências do Orçamento do Estado (OE) para o orçamento da Segurança Social ou pela consignação de receitas fiscais (fundamentalmente o chamado IVA social), o sistema previdencial financia-se a partir de contribuições sociais (vide também art. 90.º da LBSS, desenvolvido pelo dec.-lei n.º 367/2007, de 2 de novembro, o qual concretiza as formas de financiamento da Segurança Social). Pela sua razão de ser histórica e utilidade – a necessidade de garantir que o Estado cumpra a suas responsabilidades em matéria de financiamento das áreas não contributivas da Segurança Social –, poder-se-á afirmar que o princípio da adequação seletiva tem um significado unidirecional. Quer isto dizer que, se é certo que ele pretende evitar que as contribuições sociais (fonte de financiamento primacial das prestações garantidas no sistema previdencial) sejam desviadas para financiar as despesas com as prestações de natureza não contributiva e assentes num princípio de solidariedade nacional (é o caso das prestações e apoios na área da Ação Social e do subsistema de solidariedade), já a inversa é questionável. Pois que, se é verdade que o n.º 1 do art. 90.º da LBSS manda financiar o sistema de proteção social de cidadania por transferências do OE e por consignação de receitas fiscais, isso não quer (não pode) significar que estas mesmas fontes de financiamento não possam ser utilizadas para financiar o sistema previdencial, especialmente se e quando a situação financeira deste o reclamar. Defender o contrário significaria aceitar que o Estado, enquanto tal, se mantivesse totalmente alheio e não responsável perante a proteção social garantida no sistema previdencial (que é um sistema público) – i.e., perante a proteção na ocorrência dos riscos sociais –, designadamente em situações de dificuldade financeira ou de défice deste. Esta possibilidade é aceite no dec.-lei n.º 367/2007, o qual prevê, de forma expressa que, sem prejuízo das receitas próprias do sistema previdencial (elencadas no n.º 1 do art. 14.º), possam ser efetuadas, em favor deste sistema, transferências do OE, sempre que a sua situação financeira o justifique (cf. n.º 3). Este mesmo dec.-lei, concretizando o disposto no art. 91.º da LBSS, estabelece ainda a distinção entre sistema previdencial de repartição, aquele que genericamente assegura a cobrança de receita (das contribuições sociais) e o pagamento das prestações sociais, e o sistema previdencial de capitalização, encarregue de gerir, em regime de capitalização coletiva, os saldos excedentários do orçamento da Segurança Social (do sistema previdencial repartição) e, bem assim, o montante equivalente a dois a quatro pontos percentuais da quotização devida pelos trabalhadores por conta de outrem, com vista a formar um “bolo” financeiro capaz de assegurar o pagamento de pensões ao longo de dois anos (em caso de necessidade financeira). A capitalização faz-se no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, cuja gestão compete ao Instituto de Gestão dos Fundos de Capitalização da Segurança Social. Este regime coletivo, intitulado também de capitalização pública de estabilização, não se confunde com o supra mencionado regime público de capitalização. Neste, está em causa uma capitalização individual que visa assegurar aos subscritores, e apenas a estes, complementos de reforma. Naquele, pelo contrário, a capitalização é coletiva e tem em vista criar uma folga financeira com intuitos de estabilização do sistema previdencial, na sua globalidade. Além do princípio da adequação seletiva, releva ainda, no domínio financeiro, o princípio da diversificação das fontes de financiamento (art. 88.º da LBSS). O princípio permite assegurar que o sistema de Segurança Social possa ser financiado não apenas através de contribuições sociais, mas também através de outras fontes de receita, maxime de natureza fiscal. Por ora, no caso português, ao contrário do que sucede em outros ordenamentos, essa possibilidade confina-se ao chamado IVA social (uma percentagem do IVA resultante do aumento das taxas deste imposto em 1996), o qual é afeto ao financiamento do sistema de proteção social de cidadania e, dentro deste, preferencialmente, ao subsistema de proteção familiar. A redação do art. 88.º da LBSS sugere contudo que possam ser equacionadas outras fontes de financiamento no próprio sistema previdencial, na medida em que objetivo assumido do princípio é o de assegurar a redução dos custos não salariais da mão-de-obra. Tratar-se-á assim de desonerar o fator trabalho, encontrando-se, em alternativa, outras formas de incidência (consumo, património, capital) e de tributação. O epicentro do sistema de Segurança Social está no sistema previdencial. Este sistema baseia-se num princípio de contributividade (art. 54.º da LBSS), que significa, por um lado, que o sistema é autofinanciado (financiando-se nas contribuições dos trabalhadores e das entidades empregadoras) e, por outro lado, que existe uma relação sinalagmática entre a obrigação de contribuir e o direito a receber prestações sociais, nas eventualidades típicas, verificadas estas e cumpridos os demais requisitos legais. No entanto, tal princípio sofreu uma dupla entorse: por um lado, o sistema vai sendo cada vez menos autofinanciado, na medida em que as receitas próprias do sistema (as contribuições sociais) tendem a crescer a um ritmo menor do que a despesa (sobretudo a despesa com pensões); por outro lado, a relação sinalagmática a que se refere o preceito legal é cada vez menos evidente, na medida em que, relativamente a diversas prestações (desde logo, quanto às pensões), não existe já hoje uma integral proporção entre aquilo com que se contribui e aquilo que se recebe em contrapartida. O sinalagma é incompleto e imperfeito. A análise do sistema previdencial implica olhar com atenção para os seus dois domínios financeiros primaciais, as receitas e as despesas. Sobre as receitas – as contribuições sociais – rege o Código Contributivo (CC), aprovado pela lei n.º 110/2009, de 16 de setembro (alterada). As contribuições sociais são prestações monetárias pagas pelos trabalhadores e, se for caso disso, pelas respetivas entidades empregadoras, destinadas a financiar a atribuição, pelo sistema público de Segurança Social, de um conjunto de prestações sociais, mas também a prossecução de algumas políticas nas áreas laboral e do emprego. Sobre a natureza jurídica das contribuições sociais, muito se tem discutido entre nós e no estrangeiro, divergindo as opiniões). Todos reconhecem, porém, a sua natureza ambivalente e ambígua, a qual resulta de uma oscilação ontológica entre uma fisionomia bilateral, fundada no princípio do benefício (que a levaria a aproximar-se mais de uma taxa ou de uma contribuição financeira) e uma fisionomia unilateral, assente numa lógica de capacidade contributiva (que a aproximaria mais de um verdadeiro imposto). Mas essa ambivalência resulta também da bicefalia própria deste tributo, resultante de ser suportado por trabalhadores e por entidades empregadoras. Entre nós, para lá da discussão, e no que diz respeito ao regime aplicável, o Tribunal Constitucional tem defendido a aplicação às contribuições sociais, nos mesmos termos dos impostos, do princípio da legalidade fiscal (art. 103.º, n.º 2, em articulação com a alínea i) do n.º 1 do art. 165.º, ambos da Constituição da República Portuguesa). De acordo com este princípio, os impostos são criados por lei (lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo precedido de autorização legislativa), à qual compete definir também os respetivos elementos essenciais: incidência, taxas, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. Por outro lado, e agora já numa ótica económica, importa notar que as contribuições sociais constituem encargos não salariais sobre a mão de obra, cujo efeito financeiro se repercute a montante e a jusante. Na verdade, os custos induzidos por esta tributação são repercutidos pelas empresas que os suportam, a montante, nos salários pagos aos trabalhadores e a jusante, nos preços praticados, designadamente junto dos consumidores. Sobre a matéria contributiva dispõe o CC. Dele resultam reguladas as principais relações jurídicas da Segurança Social, a saber: i) Relação jurídica de vinculação ao sistema de Segurança Social. Traduz o estabelecimento de um elo estável entre as pessoas interessadas e o sistema de Segurança Social, mediante a sua identificação pessoal, através do ato de inscrição dos beneficiários ou registo das entidades empregadoras (vejam-se os arts. 6.º a 8.º do CC). O objetivo fundamental da vinculação é o de determinar o titular do direito à Segurança Social, bem como o respetivo conteúdo; com a inscrição o beneficiário ou contribuinte obtém o Número de Identificação na Segurança Social. ii) Relação jurídica de enquadramento nos regimes de Segurança Social (art. 9.º do CC). Os regimes de segurança social podem ser de vários tipos (vide art. 53.º da LBSS), destacando-se os regimes gerais dos trabalhadores por conta de outrem (TCO) e dos trabalhadores independentes (TI), sendo que o enquadramento dos trabalhadores num ou noutro dependerá naturalmente da qualificação do respetivo vínculo e, existindo mais do que um, daquele que prevalece. iii) Relação jurídica contributiva. Esta recai sobre trabalhadores e, se for caso disso, suas entidades empregadoras. Traduz-se em dois tipos de obrigações: a) por um lado, no pagamento das contribuições e quotizações (vulgarmente tratados como descontos para a Segurança Social); b) obrigações declarativas diversas, tais como a declaração dos tempos de trabalho e das remunerações devidas aos trabalhadores. A obrigação de declarar remunerações cabe às entidades empregadoras no caso do regime geral dos TCO (cf. art. 40.º), a quem cabe também o pagamento quer das contribuições próprias, quer da quotização dos seus trabalhadores – neste caso através de retenção na fonte (cf. art. 42.º). No regime geral dos TI, estes são equiparados às entidades empregadoras (cf. n.º 2 do art. 150.º), cabendo-lhes inteiramente o cumprimento da obrigação contributiva: pagamento de contribuições e cumprimento de obrigações declarativas (art. 151.º). As contribuições sociais são tributos assentes em taxas proporcionais, cuja base de incidência são os rendimentos do trabalho. Do CC resultaram importantes novidades, quer ao regime geral dos TCO, quer no regime geral dos TI. Em relação ao regime geral dos TCO, assinale-se, antes de mais, o alargamento da base de incidência contributiva, passando o conceito de remuneração relevante para efeitos de segurança social a aproximar-se do conceito de remuneração que encontramos no Código do IRS (CIRS) (sobretudo prestações remuneratórias da categoria A de rendimentos, a que se refere o art. 2.º do CIRS) e, bem assim, do próprio conceito jus-laboral de remuneração. Assim, diversas prestações remuneratórias, sobretudo de natureza variável (fringe benefits), que estavam fora do conceito de remuneração em sede de Segurança Social foram objeto de inclusão (cf. arts. 46.º e 46.º-A do CC). Para além disso, o mesmo Código introduziu alterações importantes a nível das taxas das contribuições sociais. A TSU é de 34,75 %, sendo paga numa parte pela entidade empregadora (23,75 %), noutra parte pelo trabalhador (11 %). Esta taxa contributiva destina-se a pagar o custo técnico das diferentes eventualidades sociais que aparece devidamente desagregado no próprio CC (cf. art. 51.º). Depois, estão previstas taxas contributivas mais favoráveis, as quais podem ficar a dever-se a diferentes razões, tais como: redução do âmbito material de proteção (em certo de tipo trabalho, não há lugar, por exemplo, à proteção no desemprego, pelo que, nesse casos, a taxa se reduz em conformidade – o caso do trabalho no domicílio); natureza não lucrativa da entidade empregadora (v.g., trabalho prestado para instituições particulares de solidariedade social; serviço doméstico); natureza débil da atividade económica (o caso da agricultura e das pescas); promoção do emprego junto de certas camadas especialmente frágeis (v.g., desempregados de longa duração, jovens à procura do primeiro emprego, portadores de deficiência). O CC ficou ainda marcado por uma previsão inovadora (a qual, todavia, até ao momento, não foi objeto de regulamentação, nem de concretização prática): tratou-se de proceder à adequação das taxas contributivas à modalidade de contrato de trabalho; assim, a taxa é reduzida, em um ponto percentual (pp) por cada trabalhador contratado, se a modalidade for o contrato de trabalho por tempo indeterminado, e a taxa é aumentada, em três pp por cada trabalhador, se a modalidade for o contrato de trabalho a termo resolutivo (cf. art. 55.º). Em relação ao regime geral dos TI, também resultaram do CC diversas novidades. Em primeiro lugar, a aproximação do âmbito material de proteção do regime do TCO. Isto desde logo em virtude da supressão, já na primeira versão do CC, da distinção, que resultava da legislação anterior (dec.-lei n.º 328/93, de 25 de setembro), entre regime obrigatório (proteção nas eventualidade velhice, invalidez, morte e parentalidade) e regime alargado de proteção (que incluía, além daquelas, também os encargos familiares, a doença e as doenças profissionais). As taxas eram diferentes, consoante os regimes (25,4 % no primeiro caso, 32,5 % no segundo). No novo quadro, o âmbito material de proteção no regime dos TI é único e inclui todas as eventualidades, com exceção do desemprego. Tratando-se de prestação de serviços, a cessação de atividade não é reconduzível a uma situação de desemprego. No entanto, reconhecida a existência dos falsos recibos verdes, situações que materialmente se aproximam de um verdadeiro contrato de trabalho, não o sendo formalmente, justificou-se mais tarde garantir, para essas situações, e na base de determinados indícios, a proteção no desemprego. Assim, na sequência da aprovação do dec.-lei n.º 35/2012, de 15 de março, o CC foi alterado pela lei n.º 20/2012, de 14 de maio (alteração à lei do OE para 2012), contemplando-se a possibilidade de atribuição de subsídio de desemprego (melhor, subsídio por cessação de atividade), aos TI (prestadores de serviços), considerados economicamente dependentes (vide novo art. 141.º do CC). E assim sendo, o âmbito material de proteção no caso destes TI coincide integralmente com o âmbito definido para os TCO. Em segundo lugar, assistimos no CC a uma mudança tendencial e progressiva do conceito de remuneração relevante: da remuneração convencional à remuneração real. Assim, o escalão de rendimento, para efeitos de tributação, deixou de ser escolhido livremente pelo trabalhador, antes resulta da conversão do duodécimo do rendimento obtido e declarado fiscalmente, numa percentagem do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), com o limite de 12 IAS (o último escalão). Finalmente, assinalamos como novidade do CC, o novo regime aplicável às entidades contratantes: a previsão de que as pessoas coletivas e singulares que beneficiem da prestação de serviços de um TI são também entidades contribuintes da Segurança Social (art. 140.º do CC). Assim, passam a considerar-se entidades contratantes de serviços as pessoas coletivas e singulares com atividade empresarial que, no mesmo ano civil, beneficiem de pelo menos 80 % do valor da atividade independente, caso em que o TI é, portanto, nos termos supra, considerado trabalhador economicamente dependente. Na verdade, esta medida está intimamente relacionada com aqueloutra antes referida, a da concretização da atribuição de subsídio de desemprego aos TI (constante da lei n.º 20/2012, de 14 de maio). A taxa contributiva a suportar pelas entidades contratantes é de 5 % sobre o valor dos rendimentos resultantes de prestações de serviços, e esses 5 % correspondem precisamente ao custo do desemprego. iv) Relação jurídica sancionatória. Repare-se que no CC apenas é regulada a parte contraordenacional e, dentro desta, a parte contraordenacional respeitante ao incumprimento das regras impostas pelo CC relativas às demais relações jurídicas de segurança social, antes aqui mencionadas (vide a regulação desta matéria, nos arts. 221.º e seguintes do CC). Assim sendo, não são objeto de regulação no CC os aspetos sancionatórios que tenham a ver com contraordenações no seio da relação jurídica prestacional (pois as prestações sociais não são tratadas no CC), nem a matéria relativa aos crimes contra a Segurança Social. Quanto àquelas, regulam desde logo os diplomas específicos aplicados a cada uma das prestações (por exemplo, contraordenações em virtude do recebimento indevido de prestações no desemprego são reguladas pelos arts. 64.ºss do regime geral da proteção no desemprego, dec.-lei n.º 220/2006, de 3 de novembro e suas alterações). Quanto aos crimes contra a Segurança Social, regula o Regime Geral das Infrações Tributárias (lei n.º 15/2001, de 5 de junho, e suas alterações) e aqui se tipificam dois tipos de crimes nesta matéria, um tanto podendo respeitar à relação jurídica contributiva como à relação jurídica prestacional (o crime de fraude contra a Segurança Social – art. 106.º), outro apenas relacionado com a obrigação contributiva e, concretamente, com a obrigação, da parte da entidade empregadora, de proceder à retenção na fonte da quotização do trabalhador, garantindo o pagamento desta junto da Segurança Social (crime de abuso de confiança – art. 107.º). Repare-se que, no seio da obrigação contributiva, o Direito valora diferentemente, de um lado, o desrespeito pelas obrigações declarativas ou obrigações tributárias acessórias (incluindo a obrigação de proceder à retenção na fonte) e que constituem, no caso do regime geral dos TCO, basicamente obrigações das entidades empregadoras e, do outro lado, o incumprimento pontual da obrigação de pagamento de contribuições próprias (para as entidades empregadoras no regime geral dos TCO e para os trabalhadores no regime dos TI). No caso do desrespeito por obrigações declarativas, o domínio é, como vimos, o do Direito Contraordenacional ou do Direito Penal. No caso do incumprimento da obrigação de pagamento, a situação é de mora (havendo lugar à cobrança de juros), pelo que estamos no âmbito do Direito Civil. As dívidas à Segurança Social podem ser regularizadas através de processos de execução cível ou de execução fiscal (n.º 1 do art. 186.º do CC), prevendo-se ainda a verificação de situações excecionais de regularização de dívidas (cf. art. 190.º), nos termos das quais pode haver lugar à isenção ou redução de juros de mora. O prazo de prescrição das dívidas à Segurança Social é de cinco anos contados da data em que a obrigação deveria ter sido cumprida (art. 187.º). Para além da área contributiva, o sistema previdencial é composto pelo domínio das prestações sociais. Tais prestações são pagas nas eventualidades típicas previstas, desde logo, na LBSS (velhice, invalidez, morte, desemprego, parentalidade, doença, incluindo doenças profissionais). Os acidentes de trabalho integram também o âmbito material de proteção neste sistema, se bem que a Segurança Social pública externaliza para as seguradoras privadas a responsabilidade pela provisão do risco social: é junto das seguradoras que as entidades empregadoras são obrigadas a subscrever um seguro de acidentes de trabalho. As prestações sociais distinguem-se entre prestações imediatas (nas eventualidades desemprego, parentalidade e doença), cujos períodos de formação são curtos (aferíveis ao mês) e prestações diferidas ou pensões, cujos períodos de formação são longos, reportados ao ano. Trata-se de pensões de velhice, de invalidez e de sobrevivência. Seguindo o ensinamento de Ilídio Neves, podemos diferenciar, como requisitos de acesso às prestações sociais, os seguintes: i) requisitos relativos ao cumprimento da obrigação contributiva (matéria que vimos no ponto anterior); ii) requisitos relativos ao período de tempo contributivo, havendo que considerar aqui a noção de prazo de garantia (período mínimo de contribuição para se poder beneficiar da abertura do direito), que, como dissemos, é curto nas prestações imediatas e longo, nas pensões; iii) requisitos relativos aos eventos típicos e que são as eventualidades supra mencionadas – repare-se que falamos de verdadeira tipicidade legal; o sistema previdencial de Segurança Social não garante proteção para lá destes eventos; iv) requisitos relativos a características específicas dos beneficiários, e que relevam particularmente em relação a esta ou aquela prestações sociais, tais como: idade (mínima, máxima ou ambas); situação escolar; estatuto laboral ou profissional (v.g., índice de profissionalidade); requisitos médicos; requisitos de natureza económica (v.g., condição de recursos – se bem que neste caso, apenas ainda para as prestações do sistema de proteção social de cidadania, não para o previdencial); v) requisitos relativos ao cumprimento de exigências administrativas, de que se destacam a necessidade e apresentação de requerimento (as prestações sociais são sempre requeridas) e a apresentação de certos meios de prova (v.g., prova de que se está grávida ou de que se teve um filho). Na Segurança Social, importa diferenciar entre abertura do direito à proteção social e cálculo ou apuramento do valor das prestações. Só depois de verificado que o beneficiário tem direito à prestação, é que se passa à determinação do valor da mesma. Quanto à abertura do direito, ele depende, como vimos antes, da verificação do prazo de garantia, determinado em meses para as prestações imediatas (no caso por exemplo de atribuição do subsídio de desemprego é de 450 dias de trabalho por conta de outrem, com o correspondente registo de remunerações, num período de 24 meses imediatamente anterior à data do desemprego – art. 22.º do dec.-lei n.º 220/2006) e aferido em anos, para as pensões (é de três ou cinco anos, para a invalidez, consoante seja absoluta ou relativa – art. 16.º do dec.-lei n.º 187/2007, de 10 de maio – e é de 15 anos para a velhice – art. 19.º do mesmo diploma). Relativamente ao cálculo ou apuramento do valor das prestações, as regras tendem a ser mais complexas quando se trate de calcular pensões, do que no cálculo das prestações imediatas. Nestas, o apuramento do valor da prestação começa por fazer-se a partir da determinação da remuneração de referência. Determinada essa remuneração (que na verdade é uma média de remunerações registadas ao longo de um determinado período), procede-se ao apuramento da prestação, o qual dependerá da aplicação, àquela remuneração, de uma taxa de substituição. No caso das prestações de maternidade, e para o gozo pelo período de 120 dias, a taxa de substituição é de 100 % (ou seja, o valor da prestação equivale inteiramente ao valor da remuneração de referência previamente apurada) – veja-se o art. 30.º do dec.-lei n.º 91/2009, de 9 de abril, que estabelece o regime de proteção na parentalidade. Noutros casos, a taxa de substituição é menor: por exemplo, no subsídio de doença, a taxa é progressiva e aumenta em função da duração da situação de incapacidade temporária. Assim, nos termos do 16.º do dec.-lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, alterado (regime jurídico da proteção na doença), as percentagens de substituição são: a) 55 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração inferior ou igual a 30 dias; b) 60 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração superior a 30 e que não ultrapasse os 90 dias; c) 70 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração superior a 90 e que não ultrapasse os 365 dias; d) 75 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária que ultrapasse os 365 dias. O cálculo das pensões é mais complexo. Regula aqui fundamentalmente o já referido dec.-lei n.º 187/2007, que é o regime jurídico das pensões. O cálculo destas (pensamos fundamentalmente no cálculo das pensões de velhice) atende sobretudo a três tipos de fatores, que consideramos fatores estáticos de determinação da pensão, a saber: i) determinação da remuneração de referência, de acordo com as regras legais aplicáveis; ii) aplicação da taxa anual de formação, definida também por lei; iii) dimensão da carreira contributiva (considerando-se carreira completa, a de quarenta anos). Existem duas formas de cálculo da chamada pensão estatutária. Uma primeira aplicável aos beneficiários inscritos no sistema até 2001 e que é uma fórmula proporcional: a remuneração de referência resulta quer das regras antigas (10 melhores salários dos últimos 15 anos), quer das regras novas (média de salários de toda a carreira contributiva), ponderadas em função do número de anos de carreira em que o contribuinte conviveu com cada uma dessas regras. Além disso, a taxa anual de formação, aplicável à determinação da remuneração de referência, é também diferente: 2 % ao ano quando se aplique à parcela antiga (P1); entre 2 % e 2,3 % (em função quer da dimensão da carreira, quer do próprio valor da remuneração de referência) quando aplicável à parcela nova (P2). Uma segunda forma de cálculo é aplicável aos inscritos no sistema após 2002. Quanto a estes, as regras de cálculo são apenas as regras novas, as regras antes vistas para o P2. Mas para além destes fatores estáticos, há a considerar um fator dinâmico de cálculo da pensão, o fator de sustentabilidade (FS). Ao contrário dos anteriores, este é dinâmico porque se relaciona com a evolução da esperança média de vida: pretende internalizar no valor da pensão os efeitos da evolução demográfica, e em particular o efeito do envelhecimento. É um fator de evolução incerto, pelo que introduz alguma volatilidade no cálculo da pensão. Este fator foi previsto na atual LBSS de 2007 e regulado no referido dec.-lei n.º 187/2007. Recentemente, os termos da sua aplicação foram significativamente alterados, juntamente com a alteração da idade de acesso à pensão de velhice (que passou dos anteriores 65 para 66 anos). As novidades constam do dec.-lei n.º 167-E/2013, de 31 de dezembro, que alterou aqueloutro decreto-lei. Assim, o FS passou a aplicar-se: a) às pensões iniciadas até 31 de dezembro de 2014 e b) às pensões iniciadas após 1 de janeiro de 2015, mas desde que requeridas antes dos 66 anos. As regras são diferentes consoante os casos. Para pensões iniciadas até 31 de dezembro de 2014, valem as regras iniciais do FS, a saber: resulta do rácio entre a esperança média de vida (EMV) no ano de 2006 e a EMV verificada no ano anterior ao requerimento de pensão (n-1). Este rácio multiplicará pelo valor da PE apurado de acordo com as regras supra, obtendo-se assim o valor da pensão final. Diversamente para as pensões iniciadas após 1 de janeiro de 2015 e nas condições antes indicadas (requeridas antes dos 66 anos), o rácio será EMV2001/EMVn-1. Ainda a propósito do regime de pensões, importa recordar que um dos princípios que esteve presente na reforma do sistema de pensões em 2007 foi o princípio do envelhecimento ativo. Tratava-se de criar incentivos para assegurar a permanência na vida ativa dos trabalhadores mais velhos. Penalizou-se assim, de forma mais pesada do que antes sucedia, a antecipação da idade de reforma no âmbito da flexibilização. A crise financeira que se seguiu e a intervenção da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) acentuaram a necessidade de evitar, tanto quanto possível, o recurso ao expediente das reformas antecipadas. Por isso, em 2012 foram suspensas, para só voltarem a ser admitidas a partir de 2015, e com limites. A crise, de resto, e a austeridade subsequente reavivaram o debate em torno das questões da reforma da Segurança Social. Nos anos noventa, a questão demográfica e o problema da sustentabilidade de longo prazo dos sistemas de pensões levaram alguns estudiosos e políticos a defender a substituição dos sistemas de repartição por sistemas de capitalização. Esta substituição implicava tendencialmente, de igual modo, a privatização parcial da Segurança Social. Para isso, deveriam os países que o não tivessem ainda feito (o caso de Portugal), fixar um teto superior ao valor da remuneração (plafonamento contributivo), acima do qual os contribuintes deixariam de descontar para o sistema público, passando antes a financiar segundas pensões obrigatórias, geridas em capitalização, pelo sistema segurador privado. O objetivo deste plafonamento contributivo seria o de garantir, a longo prazo, poupanças na despesa pública, pois o Estado – a Segurança Social pública –, ficaria apenas responsável por pagar uma pensão de montante limitado, e limitado em função daquele mesmo plafond. A este tipo de reformas, reformas estruturantes, podemos qualificar de reformas sistémicas de primeira geração. O assunto foi muito debatido na sequência do Livro Branco da Segurança Social (1998), mas só viria a ser assumido, como vontade política, em 2002, na Lei de Bases aprovada durante Governo liderado por Durão Barroso. Tal intenção não vingou: esbarrou, já nessa altura, com oposições de natureza ideológica e problemas de eficácia. Na verdade, ao contrário do que se poderia pensar, os modelos de capitalização não são imunes, antes pelo contrário, aos efeitos do envelhecimento demográfico. É no prémio de seguro que esses mesmos efeitos, desde logo, se fazem sentir. Para além disso, uma mudança deste tipo conhecia importantes entraves financeiros. O problema fundamental estaria em como financiar a Segurança Social no período de transição, o período durante o qual esta perderia receita desviada para o sistema de capitalização privado, não se fazendo ainda sentir as poupanças de despesa a longo prazo desejadas. De facto, a Segurança Social teria de continuar a fazer face aos compromissos quotidianos assumidos perante pensionistas em curso. Assim, por causa destas dificuldades, tais intenções foram abandonadas, para se optar, nos Governos seguintes, por introduzir medidas de cariz paramétrico, ou seja, medidas que, não alterando a fisionomia e a filosofia do sistema, procurariam incrementos na receita e poupanças na despesa, reforçando assim a sustentabilidade da Segurança Social. Medidas como a alteração das regras de cálculo das pensões (em 2002 e 2007), a maior penalização das reformas antecipadas e a introdução do fator da sustentabilidade (em 2007) inserem-se nesse catálogo, embora esta última preanunciando reforma de outro calibre. Em 2014-2015, a alteração da idade de acesso à pensão para os 66 anos constituiu também exemplo de medida paramétrica. Agudizados os problemas demográficos e económicos, problemas que a crise mencionada exacerbou, voltou a estar na ordem do dia a reforma da Segurança Social. Ainda que a hipótese de substituição dos modelos de repartição pelos de capitalização não esteja arredada, a verdade é que, dadas as dificuldades financeiras sentidas no período de transição – a que antes fizemos referência – e que podem inviabilizar no limite a eficácia pretendida, outras hipóteses de reformas sistémicas podem ser equacionadas. Serão reformas sistémicas de segunda geração. Trata-se aqui de substituir os modelos de benefício definido, como é o caso português, por modelos de contribuição definida. Aliás, esta é uma tendência que se desenhou em alguns países europeus, antes mesmo da crise. O exemplo sueco costuma ser apontado como o mais emblemático. O grande problema dos modelos de benefício negativo, conquanto sejam bons estabilizadores de direitos e expectativas, reside na sua rigidez, mormente em contextos demográficos negativos. Isto porque, em virtude das regras de cálculo aplicáveis, as pensões, uma vez definidas, não podem ser ajustadas à evolução de vicissitudes relevantes. O modelo português é de benefício definido, porque o montante de pensão fica dependente dos fatores estáticos, de cálculo de pensão, supra. A pensão é, diríamos, automaticamente determinada em função destes elementos, pelo que o contribuinte/beneficiário pode saber com alguma precisão qual vai será o valor da sua pensão, mesmo antes de se reformar, já que eles são conhecidos ou antecipáveis. No modelo de contribuição definida, pelo contrário, os fatores que concorrem para o cálculo da pensão são também fatores dinâmicos, em certo sentido voláteis, podendo ser de natureza demográfica (v.g., evolução da esperança média de vida), económica (taxa de crescimento da economia) ou financeira (saldo do sistema previdencial). Assim, neste modelo, uma pensão que se esteja a formar vai recebendo, como inputs, não apenas aqueles fatores estáticos, dotados de previsibilidade, mas também estes, instáveis e de comportamento menos previsível. Entre nós, a introdução do fator de sustentabilidade no cálculo da pensão (2007) deixou antever essa deriva do modelo de benefício definido para o de contribuição definida, mas ele é ainda um mero embrião. A Suécia foi ainda mais longe, pois incorpora estes elementos voláteis não apenas na fase de formação da pensão, mas também na fase em que as pensões já estão a pagamento, em curso de atribuição, podendo a todo o momento ser recalculadas. Para terminar, uma nota apenas relativa aos aspetos relativos à administração do sistema de Segurança Social. Conquanto da Constituição (art. 63.º) e da LBSS resulte um princípio de unidade na gestão do sistema de Segurança Social; conquanto seja esta uma área tipicamente da responsabilidade do Estado central; conquanto a legislação fundamental esteja uniformizada (veja-se o CC), a verdade é que na prática, em termos de gestão financeira, existe uma boa dose de ‘regionalização’ do sistema de Segurança Social – nas Regiões Autónomas portuguesas. Os Institutos da Segurança Social dos Açores e da Madeira (regulados respetivamente pelos Decretos-Legislativos Regionais nºs. 14/2013/A, de 3 de outubro, e 34/2012/M, de 16 de novembro) têm importantes competências quer no domínio da arrecadação de receita própria da Segurança Social, quer no pagamento de prestações, quer enfim na preparação do orçamento e da conta da Segurança Social regional respetiva. E estão evidentemente sob a tutela dos Governos regionais respetivos, não do Estado central.   Nazaré da Costa Cabral (atualizado a 30.12.2017)

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secretário regional

O Secretário Regional é o membro do governo de uma Região Autónoma que, nomeado sob proposta do Presidente do Governo Regional, está encarregado de dirigir um departamento regional, em termos políticos e administrativos, tendo assento permanente no Conselho de Governo Regional. O Secretário Regional mostra-se, ao invés do que sucede com os Subsecretários Regionais, uma categoria essencial da formação e composição do Governo Regional: sem Secretários Regionais não há Governo Regional, uma vez que o Presidente do Governo Regional não pode acumular o exercício das pastas referentes a todos os departamentos regionais, nem o pode fazer com a ajuda ou coadjuvação apenas dos Subsecretários Regionais. Sendo certo que sem Presidente do Governo Regional também não se pode falar em Governo Regional ou, pelo menos, em governo em plenitude de funções, deve concluir-se que o conceito constitucional e estatutário de Governo Regional se baseia na conjugação simultânea ou coexistência de duas categorias de membros: um Presidente e vários Secretários Regionais. Num outro sentido, o Secretário Regional assume uma particular posição jurídica intragovernamental: os Secretários Regionais são os principais colaboradores do Presidente do Governo Regional, participando com ele na definição da orientação geral da política regional em Conselho do Governo Regional, contando também, por sua vez, com a colaboração e coadjuvação, num plano estatutário de exercício apenas de poderes delegados, dos Subsecretários Regionais. Numa derradeira nota de recorte conceitual, pode dizer-se que os Secretários Regionais, ao contrário dos Subsecretários Regionais, são os únicos membros do Governo Regional que podem exercer funções substitutivas do Presidente do Governo Regional. Os Secretários Regionais são nomeados pelo Representante da República, sob proposta do Presidente do Governo Regional, num exemplo perfeito de poderes entrecruzados ou partilhados: nem o Presidente do Governo Regional consegue incluir no seu elenco governativo pessoas que sejam vetadas pelo Representante da República como membros do Governo Regional, nem o Representante da República pode nomear membros do Governo Regional que não lhe tenham sido propostos pelo Presidente do Governo Regional. Uma vez que a Constituição e o Estatuto Político-Administrativo exigem que a nomeação de cada Secretário Regional assente num acordo entre quem propõe o nome (o Presidente do Governo Regional) e quem aceita proceder à sua nomeação (o Representante da República), pode bem dizer-se que os Secretários Regionais gozam de uma dupla legitimidade política: beneficiam da legitimidade de quem faz a proposta e de quem aceita essa proposta. É essa dupla legitimidade política, sem tomar em consideração a possibilidade de também a pessoa em causa ter sido eleito deputado regional, que cada Secretário Regional deverá expressar junto do Conselho do Governo Regional e difundir no interior do respetivo departamento regional. O início das funções de cada Secretário Regional começa no momento da respetiva posse, cessando o seu exercício de funções verificando-se uma das seguintes situações: Ocorrendo exoneração do Presidente do Governo Regional ou, em caso de morte deste, a posse do novo Presidente do Governo Regional e do inerente Governo; Demissão voluntária junto do Presidente do Governo Regional ou de proposta nesse sentido deste último junto do Representante da República, tendo ocorrido a respetiva exoneração e consequente posse de um novo Secretário Regional que substitua o demitido; Verificando-se a morte ou impedimento permanente do Secretário Regional; Demissão forçada pela condenação definitiva do Secretário Regional por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções (Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, artigo 31.º). No caso de demissão do Secretário Regional por efeito de condenação penal, deve entender-se, à semelhança do que sucede com o Presidente do Governo Regional, que existe um impedimento imediato que obsta à continuação do exercício de funções, devendo o Secretário Regional ser imediatamente substituído por um novo Secretário Regional ou, não sendo isso possível, proceder-se à substituição temporária. Em termos idênticos aos aplicáveis ao Presidente do Governo Regional, se for movido um procedimento criminal contra um Secretário Regional (ou um Subsecretário Regional), sendo ele acusado definitivamente, deve aplicar-se o regime de suspensão do exercício de funções traçado a propósito de idêntico cenário com o Presidente do Governo Regional (Ibid., Presidente do Governo Regional, n.º 4.3.). Configurados juridicamente os Secretários Regionais como órgãos que exercem funções de natureza política e administrativa, desenvolvendo por via individual ou colegial os poderes atribuídos ao Governo Regional, sempre sujeitos à coordenação e orientação do Presidente do Governo Regional, verifica-se que possuem cinco tipos distintos de competência: Competência de execução: aos Secretários Regionais pertence implementar a política definida para os respetivos departamentos regionais, significando isto, antes de tudo, que não possuem autonomia de definição da política da sua própria Secretaria Regional, funcionando como órgãos de execução da política definida pelo Conselho do Governo Regional e dirigida pelo Presidente do Governo Regional; Competência de coordenação e orientação: assim como os Secretários Regionais se encontram sujeitos a tais poderes de garantia da unidade de ação intragovernamental por parte do Presidente do Governo Regional, igualmente gozam de idênticas faculdades de coordenar e orientar a ação dos respetivos Subsecretários Regionais (e funcionários da Secretaria Regional); Competência de participação: os Secretários Regionais integram o Conselho do Governo Regional, competindo-lhes, nessa qualidade, participar na formação da vontade colegial do Governo Regional que, sob o impulso e a condução do Presidente do Governo Regional, define as linhas gerais da política governamental; Competência de representação: os Secretários Regionais asseguram, no âmbito dos seus departamentos regionais, as relações de carácter geral entre o Governo Regional e as restantes estruturas integrantes da Administração da Região Autónoma, integrando-se neste contexto as suas tarefas de participação nos trabalhos da Assembleia Legislativa; Competência de substituição: nas ausências ou impedimentos do Presidente do Governo Regional, os Secretários Regionais encontram-se investidos da faculdade de substituir o Presidente do Governo Regional, salvo existindo um vice-presidente ou tratando-se de um caso vacatura em que as funções são exercidas pelo Presidente da Assembleia Legislativa. Os Secretários Regionais encontram-se sujeitos a uma dupla responsabilidade política formal ou institucional: São individualmente responsáveis perante o Presidente do Governo Regional, devendo prestar contas de toda a atividade desenvolvida no âmbito dos diferentes tipos de competência, podendo ser, a qualquer momento, demitidos pelo Presidente do Governo Regional, apresentando junto do Representante da República a proposta da respetiva exoneração e imediata substituição por um novo Secretário Regional; São ainda responsáveis politicamente perante a Assembleia Legislativa, no contexto da responsabilidade coletiva do Governo Regional decorrente do princípio da solidariedade, tendo o direito e o dever de comparecer no parlamento regional, apesar de este não poder votar moções de censura a Secretários Regionais individualmente considerados, sem embargo de a gravidade da conduta de um único deles poder fundamentar uma moção de censura a todo o Governo. Note-se, porém, que, em sistemas de governo de base parlamentar, a responsabilidade política concentrada dos membros de um governo maioritário obedece a um verdadeiro paradoxo: perante governos alicerçados numa maioria absoluta parlamentar, o resultado de todas as votações efetivadoras da responsabilidade política parlamentar encontra-se antecipadamente determinado, tornando inúteis ou débeis os mecanismos parlamentares de controlo, isto quando, precisamente, mais importantes e necessários seriam para limitar os riscos de abuso do poder. Não se pode ignorar que, por efeito de um modelo de sociedade política aberta e participativa, os Secretários Regionais (e os restantes membros do Governo) se encontram sempre sujeitos a mecanismos de responsabilidade política difusa junto da opinião pública, exercendo aqui particular importância os meios de comunicação social e as redes sociais no controlo e na denúncia de situações de ilegalidade, inconveniência ou inoportunidade do agir governamental.   Paulo Otero (atualizado a 30.12.2017)

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