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cais regional

O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da passagem pelo Funchal da princesa D. Leopoldina de Áustria, em setembro de 1817, quando se fez uma ponte para o seu desembarque junto ao palácio de S. Lourenço, tendo o espaço envolvente sido arranjado nos anos seguintes. A construção de um cais de pedra ensaiou-se em 1843, mas a breve trecho estava arruinado, e somente em 1879 se voltou a estudar o assunto, sendo as obras do cais iniciadas em 1889 e terminadas em 1892. O cais ainda foi ampliado entre 1932 e 1933, e a sua importância é patente na imensa documentação fotográfica existente. O seu interesse como cais perdeu-se com o aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e o advento dos transportes aéreos, no entanto, mantém-se como importante zona de lazer da cidade, tanto para visitantes como para residentes. Palavras-chave: Entrada da cidade; Molhe de acostagem; Porto; Transportes marítimos; Turismo. O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da determinação feita, quando da passagem pelo Funchal da princesa D. Maria Leopoldina de Áustria (1797-1826), em setembro de 1817, de que deveria ser feita “uma ponte para o cómodo e decente desembarque da mesma Augusta Senhora”, assim como preparar-se com o devido “asseio e arranjo na Casa do Governo” instalações para a princesa (ARM, Governo Civil, liv. 198, fls. 33-34v.; AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3965). Configurou-se, assim, o arranjo do espaço frente ao palácio e fortaleza de S. Lourenço para a entrada solene da arquiduquesa de Áustria no Funchal, então perene, mas a partir de 1839, demolidas as portas e casa da Saúde, onde até então a Câmara procedia ao controlo sanitário, foi a área transformada em entrada de honra da cidade (Entrada da Cidade). O cais de desembarque do porto do Funchal fora feito na base do ilhéu do forte de S. José, em 1756, pelo Eng. Francisco Tosi Colombina (1701-c. 1770), mas não só era então muito distante do centro da cidade, como muito acanhado. Em 1824, ensaiou-se um novo cais de desembarque, então nas baixas frente à fortaleza de S. Tiago, projeto da autoria do Brig. Francisco António Raposo e execução do Ten.-Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em cujos trabalhos se gastaram então 37 contos de réis, tendo tudo sido levado pelo mar. A 17 de fevereiro de 1829, inclusivamente, mandava-se retirar de S. Tiago os degraus de cantaria “que se destinavam ao cais que se projetara construir” para se utilizarem no molhe de cais da Pontinha (ARM, Governo Civil, liv. 798, fl. 51v.). A oportunidade da construção de um cais frente à entrada da cidade veio a surgir após a aluvião de 24 de outubro de 1842. Um mês depois, a 26 de novembro, foi despachado para o Funchal o então Maj. Manuel José Júlio Guerra (1801-1869), experiente militar liberal com larga folha de serviço nos Açores, Porto, Algarve e Setúbal, mas, em princípio, sem as capacidades científicas dos outros dois engenheiros na altura também presentes na ilha: António Pedro de Azevedo (1812-1889)  e Tibério Augusto Blanc (c. 1810-1875), mas um somente capitão e o outro tenente. O mais importante e inglório trabalho de obras públicas desenvolvido nestes anos pelo novo diretor das obras públicas, Maj. Manuel José Júlio Guerra, foi o cais em frente à entrada da cidade, mas a breve trecho viria a perder-se, como o ensaiado nos baixios de S. Tiago. A Câmara Municipal do Funchal, por resolução de 23 de abril de 1843, por certo após acordo com o Maj. Guerra, propunha a construção de um cais de pedra em frente à entrada da cidade, votando, para isso, a verba de 1200$000 réis. O assunto foi presente ao conselho do distrito em 6 de maio seguinte, ficando encarregado de dirigir a obra o Maj. de engenharia Manuel José Júlio Guerra, que a 24 do mesmo mês solicitava um reforço de mais um conto de réis para colocar depois as obras a coberto do inverno. O custo da obra não parava de aumentar, tendo-se já gasto em fevereiro de 1844 mais de quatro contos de réis, pedindo ainda o Maj. Guerra mais um reforço de 18 contos de réis, quantia que a Câmara não via maneira de poder satisfazer. Em sessão camarária de 6 de março de 1844, foi colocado o assunto, surgindo uma proposta de criação de uma comissão para dirigir as obras do cais, entregando-se a presidência ao Maj. Guerra, mas constituindo um corpo com um delegado camarário, o Dr. Manuel Joaquim Moniz, os engenheiros militares Cap. António Pedro de Azevedo e Ten. Tibério Augusto Blanc e o Eng. camarário Vicente de Paula Teixeira (1785-1855). A proposta acabou por não ser aprovada superiormente, continuando as obras sob a desastrosa direção do Maj. Guerra. Entretanto, assumindo a direção dos destinos da Ilha a Junta de Governo (Regeneração e Partido Regenerador), na sequência das revoltas da Maria da Fonte e da Patuleia, que afastou o Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891) e chegou a ter por presidente o já então Ten.-Cor. Eng. Manuel José Júlio Guerra, ainda viriam a ser desbloqueadas importantes verbas para as obras do cais da entrada da cidade. Com o regresso do governador ao palácio de S. Lourenço, as obras pararam e o Ten.-Cor. Guerra seria transferido para o continente, não voltando à Madeira. Mais tarde, em 1853, Isabella de França (1797-1880) descreveria que, “perto do sítio onde desembarcámos, notam-se vestígios de um cais, planeado há já alguns anos. Nele se gastaram quantias importantes e se desperdiçaram materiais e trabalho que bem poderiam ter sido úteis”. A autora cita ainda que as obras, não devidamente acauteladas, haviam sido praticamente desfeitas por um temporal. Acrescenta ainda que “em Portugal, como na maioria das nações, a utilidade pública é a razão que se alega para todas as obras; infelizmente trata-se só de um pretexto; o primeiro objetivo reside na glorificação pessoal, se não nos emolumentos que os funcionários auferem. Nestas condições iniciam-se obras de vulto; os que as projetaram deixam os seus cargos antes que elas terminem – e ei-las abandonadas, para darem lugar a outras, do mesmo modo superiores aos recursos do país”. As obras haviam sido planeadas pelo Maj. Guerra, acrescentando a autora que, “numa das efémeras revoluções que então desvairaram Portugal, colocou-se ele à frente de um movimento para destituir o governador e estabelecer uma junta, de que seria, é claro, presidente”. Reconduzido o governador, o Maj. Guerra fora “enviado para o continente e posto a meia-ração. Noutro país teria sido fuzilado!”. Com a sua saída, tinham paralisado “e ninguém se incomodou em garantir o que estava feito, pois as honras reverteriam para ele” (FRANÇA, 1970, 51-52). Desconhecia a atenta inglesa que o Maj. Guerra, colocado no polígono de Tancos, conseguiria ainda candidatar-se a deputado por Vila Nova da Barquinha e ser eleito, acabando os seus dias como general. O desenvolvimento do turismo, especialmente o terapêutico, começou a condicionar, a partir dos inícios e meados do séc. XIX, de uma forma cada vez mais determinante, a situação geral da ilha da Madeira, quer económica quer social. Esse caminho encontrava-se já perfeitamente definido na época da governação do Cons. José Silvestre Ribeiro, que a todo o momento evocava para as suas determinações “a presença de inúmeros estrangeiros que nos visitam” (Anais municipais), etc. Na época da sua governação, especialmente, encontram-se na Ilha três das mais altas figuras da aristocracia europeia: a rainha viúva Adelaide de Inglaterra (1792-1849), de origem alemã, nascida Saxe-Meiningen, o príncipe Maximiliano de Beauharnais, duque de Leuchtenberg (1817-1852), que seria pintado na Madeira por Karl Briullov (1799-1852) (Briullov, Karl), e a sua irmã, a imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Bragança (1812-1873), tendo todas essas visitas sido cuidadosamente preparadas e, também, aproveitadas para melhoramentos vários na Madeira. Quando da preparação da visita da imperatriz viúva D. Amélia e da sua filha, a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), em agosto de 1851, por exemplo, um ano antes da chegada dessas senhoras, determinou de imediato o governador ao Eng. Tibério Blanc “o maior desembaraço na construção do cais da Pontinha”, ou seja, na remodelação do mesmo, “para desembarque de Sua Majestade Imperial, a Senhora Duquesa de Bragança e filha”, recomendando que “a obra seja executada de forma a ficar para sempre”. Aproveitou ainda para determinar ao mesmo engenheiro que mandasse “os moradores da zona caiarem as casas e limparem os entulhos”, assim como determinou que fossem feitos alguns “trabalhos na estrada nova do Ribeiro Seco, de modo a ficar perfeita e que S. M. I., possa ir até à Praia Formosa”, determinações que de imediato foram publicadas nos jornais da época (A Época, 31 ago. 1851). Os portos e os cais de desembarque eram assim uma constante preocupação das autoridades locais. Na fase final da sua estadia na Madeira, ainda o encarregou José Silvestre Ribeiro, mais uma vez, da revisão de todos os cais da ilha da Madeira. O Eng. Tibério Blanc elaborou assim uma extensa lista dos cais que necessitavam de obras de melhoramento e reformulação, como eram os casos do cais do Pesqueiro, na Ponta do Pargo; Paul do Mar; Ponta da Galé; Ponta do Sol; Câmara de Lobos; Ponta da Cruz; Gorgulho; Ponta da Oliveira; Ponta do Guindaste e Ponta Delgada, assim como um novo ancoradouro na baía de Machico. As décs. de 80 e 90 do séc. XIX apresentaram o progressivo aumento do turismo, já não especificamente terapêutico, mas essencialmente de lazer, que já começava a representar algum peso na economia nacional, pelo que passou a despertar um certo interesse nas secretarias do Governo de Lisboa. A repartição das obras públicas distritais conheceu mesmo algum incremento, por ela passando os Caps. Júlio Augusto de Leiria (c. 1838-1878) e Henrique de Lima e Cunha (1843-1915), tendo cabido a este último os primeiros trabalhos conducentes à execução do novo cais da entrada da cidade. Com o aumento da circulação de passageiros no porto do Funchal, por portaria de 17 de setembro de 1879, voltava a estudar-se, finalmente, o que fazer do amontoado de ruínas em que se transformara o cais da entrada da cidade. Foi então encarregado do estudo o Cap. de artilharia Henrique de Lima e Cunha, voltando a propor-se a execução de um cais idêntico e no mesmo local, com toda uma outra solidez, claro, à frente da Entrada da Cidade, proposta aprovada em Lisboa, em 17 de julho de 1881, mas que só avançaria em 1886, quando já se encontrava aprovado a prolongamento do molhe da Pontinha através da união dos dois ilhéus. O projeto teve ainda alterações, pelo Eng. José Bernardo Lopes de Andrade, em 1887, e veio a ser adjudicado pelos Engs. franceses Fréderic Combemale, Jules Michelon e Arthur Mury, que já em 1885 haviam conseguido a execução das obras do molhe da Pontinha (Molhe da Pontinha). As obras do cais regional iniciaram-se a 18 de janeiro de 1889, envolvendo um montante de 87.000$000 réis e – vindo a ser depois reconhecido a estes empreiteiros, na ocasião do ajuste de contas, vários trabalhos executados fora do projeto inicial ajustado, ainda receberam mais 92.005$485 réis – demonstrando a complexidade do projeto. A obra ficou concluída a 27 de abril de 1892, sendo recebida provisoriamente nessa data, mas a receção definitiva só teve lugar a 27 de abril de 1895. Por parecer da Junta Consultiva das Obras Públicas, de 30 de maio do mesmo ano, foram os empreiteiros julgados quites para com o Estado de todas as obrigações que haviam contraído, o que consta da portaria de 10 de julho de 1895. Ao longo destes anos, decorreram assim igualmente as obras do molhe do porto do Funchal, cuja iniciativa se ficou a dever ao governador civil, António de Gouveia Osório (1825-c. 1905), visconde de Vila Mendo (Vila Mendo, Visconde de), que, no seu ofício de 15 de outubro de 1881, voltara a chamar a atenção para as vantagens que a baía do Funchal ganharia com a construção de um cais e porto de abrigo, ação saudada pelos comerciantes do Funchal. O molhe proposto, no entanto, era insatisfatório, sendo “apenas um ponto de partida para a futura construção de uma doca regular” e que devia completar-se pelo seu prolongamento em direção a leste, como refere a direção da Associação Comercial do Funchal (Ibid., 25 abr. 1884, 16 jun. e 19 out. 1885), chegando, inclusivamente, a colapsar com o grande temporal ocorrido no último dia de fevereiro e nos primeiros dias de março de 1892, que arruinou de forma drástica uma grande parte da obra já feita e a destrui quase por completo. As obras seriam recomeçadas em 1893, estando prontas em 1895, porém, as condições de acostagem dos grandes navios sempre foram deficientes nesta fase do molhe, acabando os paquetes por ficar ao largo e os passageiros a ser transferidos por lancha para o cais da entrada da cidade. Assim que, até à ampliação do molhe de acostagem, nos meados do séc. XX, para leste da fortaleza do Ilhéu, o movimento de passageiros do porto do Funchal foi feito pelo cais frente à entrada da cidade, ou cais regional. Com o aumento do movimento de passageiros, impôs-se o aumento deste cais, tendo a Junta Autónoma das Obras do Porto aberto concurso para essa realização, que terminou a 30 de outubro de 1930, sendo a construção adjudicada à casa Nederlandsche Maatschappij Voor Havenwerken pela importância de 4763.000$00 escudos. O acrescentamento do cais seria feito pela colocação de cinco grandes módulos de 3337 m3, tendo o primeiro sido colocado a 25 de junho de 1932 e o quinto e último em janeiro de 1933. A inauguração oficial ocorreu a 28 de maio desse ano, data especialmente comemorada pelo Governo da Ditadura. A importância deste cais é patente na imensa documentação fotográfica existente, que, graças aos novos meios de comunicação, não deixa de aumentar. O aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e, muito especialmente, o advento e a democratização dos transportes aéreos roubaram protagonismo e interesse ao cais em frente à entrada da cidade, como aliás também à mesma. No entanto, todo este espaço se mantém como importante zona de lazer da cidade até aos dias de hoje, tanto para visitantes como residentes.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património História Económica e Social

berredo, antónio pereira de

O governador António Pereira de Berredo ficou cativo em Alcácer Quibir e participou depois na Invencível Armada, onde foi cabo de 10 galeras. No entanto, embora fosse  um militar experiente, teve grandes problemas com o pessoal do presídio do Funchal, sobretudo devido às dificuldades de pagamento, a que se acrescentam vários pequenos problemas com corsários ingleses e franceses. Os problemas do presídio de S. Lourenço ficaram patentes na visitação do Santo Ofício, a primeira que ocorreu na Madeira e que o governador acompanhou de perto, mas de que não resultaram especiais processos. Data da sua vigência como governador a instalação da fundição em S. Lourenço. Palavras-chave: corso; governo filipino; Invencível Armada; organização militar; Santo Ofício. O reinado de Filipe II (1527-1598) foi marcado, na sua última fase, pelo desastre da Invencível Armada, funesto acontecimento que deixou profundas marcas na Península Ibérica e comprometeu ainda mais a manutenção e a defesa do Império português, então em franco declínio. O Rei, ainda príncipe, tinha-se casado em 1553 em Inglaterra, mas, com o falecimento da Rainha Maria Túdor (1516-1558), não foi possível juntar as duas Coroas. A situação religiosa da Inglaterra era uma profunda afronta ao catolicismo hermético da Península Ibérica, pelo que Filipe II queria, a todo o custo, representar a voz e o poder capazes de abater o foco protestante que ali se instalara e pretendia difundir-se. Essas razões, bem como a atuação dos corsários ingleses, principalmente de Francis Drake (1540-1596) e de John Hawkins (1532-1595), que constantemente atacavam a navegação portuguesa e espanhola no Atlântico e ambas as faixas costeiras do mesmo oceano, levavam a que a Inglaterra fosse uma das preocupações da Coroa filipina. Aumentava o poderio naval inglês e o refúgio de D. António, prior do Crato (1531-1595) (Crise sucessória de 1580), em Inglaterra, a partir de 1585, que ainda aumentavam mais os receios da Coroa filipina. Por outro lado, o suplício infligido à Rainha católica Maria Stuart da Escócia (1542-1587), que a Rainha Isabel (1558-1603) mandou executar a 8 de fevereiro de 1587, deu ao Monarca ibérico o pretexto final para uma intervenção alargada contra o poderio britânico. Neste quadro, o Rei organizou a mais poderosa Armada do séc. XVI, crendo-a invencível, mas à qual o destino, e não só, reservou um estrondoso fracasso. Em maio de 1588, concentrou-se em Lisboa uma Armada que possuía 130 naus, cujo comando foi entregue ao duque de Medina-Sidónia (1550-1615), que não tinha grande experiência marítima, encontrando-se nos restantes postos de comando nobres sem quaisquer conhecimentos de guerra naval. A Armada largou a 27 de maio de 1588, com nevoeiro e mau tempo, para o canal da Mancha, onde defrontou uma Armada inglesa mais ligeira e com navios muito mais manobráveis. Na noite de 6 para 7 de agosto, após uma semana de desgaste, os ingleses, aproveitando ventos fortes e desfavoráveis para os grandes galeões ibéricos, lançaram uma série de pequenas embarcações carregadas de combustível inflamado. Esta ação obrigou os principais navios da Armada ibérica a dispersar e provocou incêndios noutros, fracionando todo o conjunto. Aproveitando a situação, os pequenos e rápidos navios ingleses infligiram uma memorável derrota à dita Invencível Armada. O cronista Pero Roiz Soares, em Lisboa, refere que “desta maneira se perdeu tão grande máquina, sem se salvar quase nada, nem dela tornar galeão, nau, nem navio, nem coisa que prestasse” (SERRÃO, 1979, 36-37). A Madeira concorreu com pessoal para esta aventura, embora não haja na documentação madeirense coeva dados sobre a mesma participação. Em Ensaios Históricos da Minha Terra: Ilha da Madeira, escreveu Artur Alberto Sarmento (1878-1953) que D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), descendente de Zarco (Melo, D. Francisco Manuel de), nas suas Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa (1660), refere a participação do galeão S. Filipe, com 28 peças de artilharia, nesta Armada, sob o comandado de Manuel Dias de Andrade (1580-1638), que foi depois mestre-de-campo, aditando que a guarnição era composta por grande número de madeirenses. Referia ainda este autor que muitos nobres da Ilha embarcaram na Armada, como António Gonçalves da Câmara, filho de João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620) (Eça, João Fogaça de), que fora governador da Madeira, mas que não tinha os seus nomes tão presentes como desejava (SARMENTO, 1946, 177). No entanto, a ação do S. Filipe e de Manuel Dias de Andrade refere-se ao desastre da Armada portuguesa de D. Manuel de Meneses (c. 1540-1628), relatado na “Epanáfora Trágica” de 1627 (MELO, 1660, 153-272). Não conhecemos diretamente as implicações deste desastre na Madeira. No entanto, uma informação dos livros do cabido da Sé atesta o facto de se ter passado por um mau momento na Ilha. Assim, em 1589, ordenou o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) a transferência “desta cidade para a serra, de toda a prata e demais ornamentos da Sé, por esperar a chegada dos ingleses que tinham ido a Lisboa. E foi a prata para Nossa Senhora do Monte e por não parecer estar segura, a tornaram a trazer aqui e foi para o Estreito de Câmara de Lobos com os ditos ornamentos. E depois para a vila da Calheta em seis arcas encoiradas e dali se tornou a trazer. E se despendeu em tudo com as bestas, carretos, fretes e outras despesas com a ida e a vinda e conserto das arcas ao todo” 3$495 reis (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fl. 178v.). Desta Armada de triste memória, foi para a Madeira o novo Gov. António Pereira de Berredo (c. 1550-c. 1614), que tinha ficado cativo em Alcácer Quibir e participara depois na “armada da perdição, onde fora cabo de dez galeras” (NORONHA, 1996, 49). Este experiente militar tinha prestado serviço como fronteiro em Tânger, onde estava em 1573, quando ali perdeu a vida o Cap. Rui de Sousa de Carvalho e ele uma vista, sendo depois comendador de Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cristo. Era filho de António Lopes Homem e de Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura próxima do secretário Miguel de Moura (1538-1600), que viria depois a integrar o Conselho de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao cardeal e arquiduque Alberto de Áustria (1559-1621) quando este saiu para se tornar governador dos Países Baixos. Não descortinámos, no entanto, os ascendentes familiares aos quais foi buscar o apelido Berredo. António Pereira de Berredo assumiu Governo da ilha da Madeira por patente de 30 de dezembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto do seguinte ano de 1591. A carta vem transcrita com a data de posse na Câmara Municipal do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Senhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pereira”, informando: “Eu mando ora Antonio Pereira do meu concelho para ora me servir de geral dessa Ilha e superintendente das coisas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.), sendo o registo da provisão do capitão geral na Provedoria da Fazenda da mesma data. As coisas não lhe correriam muito bem no Funchal, como largamente se haveria de queixar para Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos os seus haveres tinham sido tomados por corsários, daí que os 2000 cruzados com que fora dotado para o Governo não lhe tenham chegado para as despesas. Depois, chegado à fortaleza, descobriu que os soldados do presídio não eram pagos há mais de um ano, acabando por fazer face às suas necessidades com roubos à população, pelo que pouco lhe obedeciam. Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frouxidão do desembargador António de Melo, que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que desempenhava igualmente as funções de provedor da Fazenda, não ajudava. O governador, que já então não gozava de muito boa saúde, o que também se passava com sua mulher, Mariana de Portugal, queixava-se amargamente para Lisboa da situação do presídio, dos capitães castelhanos e portugueses. Refere numa carta que, em todo o tempo que fora militar, “não houve algum que me perdesse o respeito e que hoje, sem fundamento, me têm assim maltratado” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão desconsiderado, que temia francamente o futuro. Cita então um fidalgo recentemente chegado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e depois escrivão de guerra, com quem já teria tido problemas em Tânger, e o próprio capitão castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o governador que tinha sofrido “alguns desatinados termos e muitas desordens, a que se com brevidade não acudira, seriam causa de muitos males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa alguma e confesso a Vossa Majestade, que me receio dele pela grande natureza que tem de fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). Por outro lado, dava as melhores referências do tenente do presídio, Luís de Benevides, embora com a situação vigente dos pagamentos pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, o governador propõe nesta carta “que destas duas companhias se fizesse uma só, e sendo assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria menos gasto, e os donos das casas que ora servem de quartel receberiam nisso grande esmola e mercê” (Ibid.). Nesta carta, o governador conta também o sucedido com a Armada que se deslocava para a Índia e que incluía o célebre galeão S. Pantaleão. Os navios tinham passado na Madeira um pouco dispersos, o que levou a que uma urca fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Índia, que os corsários colocaram em terra, na ilha do Porto Santo. Os corsários tinham tentado negociar com o governador da Madeira a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal como as mercadorias e a restante gente que seguia no navio, ameaçando levar tudo para o Norte de África (Berberia, como se cita) se não acedessem aos seus pedidos. O governador recusou-se a negociar, com base na gente do Porto Santo, que se encontrava em armas, pronta a defender a ilha, e por ter sido informado de que essas naus inglesas deveriam fazer parte dos navios de Francis Drake e do conde de Cumberland (1558-1605), que em 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que António Pereira conhecia da Invencível Armada. A carta termina por, mais uma vez, solicitar a “mercê de licença para me poder ir a minha casa” (Ibid.), no que não foi atendido. A 5 de setembro do mesmo ano de 1592, o governador voltou a escrever para Lisboa, dando conta da maneira como se resolvera o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo e das aquisições de pólvora e de mosquetes. A pólvora destinava-se aos exercícios de barreira efetuados todos os domingos e controlados pelo governador, sargento-mor e capitães entertenidos, ou seja, sem comando de companhia (Comando militar). Nesta carta, descreve alguns incidentes ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera um exercício de fogo de barreira no dia 28 de agosto. O governador tinha ido acompanhado de Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para assuntos militares que, na Madalena, tinha tentado prender os vários negligentes do serviço de vigias e alardos. Os populares tinham então apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus criados, o qual “feriram muito mal, de cima dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá ainda parte do movimento de navios no mar da Madeira, com a passagem de vários navios do porto de Marselha, que tinham ido comerciar açúcar em Cabo de Gué (Marrocos) e que haviam informado da presença de cerca de 12 navios ingleses também nesse comércio. O governador tinha apresado, a 23 de agosto, um desses navios de Marselha, uma setia, barco comprido, afilado de boca aberta, de velas e remos, extremamente rápido. Para que não pudesse sair do porto, apreendera-lhe as três velas grandes, pensando que assim não se poderia fazer ao mar. Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o governador e as duas companhias do presídio. Assim, D. António Pereira, como começa a ser referido, teve de reformular a Junta Militar criada pelo conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598) (Lançarote, conde de), também chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio e só reunindo com dois capitães de cada vez. Este órgão era formado pelos quatro capitães das ordenanças, para além do comandante da guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís de Benevides, dada a saída em finais de 1588, ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aranda. Este órgão não tinha sido muito desenvolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da), se é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, parece que teria tido razões para isso, pois com o novo governador estes elementos acabaram por se envolver em intrigas várias, que incluíram o próprio D. António Pereira e que levaram a uma alçada do licenciado Pero de Alfaro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 de agosto de 1594, presidida por Miguel de La Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e arbitrariedades dos capitães castelhanos com os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a segunda deve ter-se deslocado à Ilha também motivada pelo escândalo causado pela visitação de 1592, que envolvera alguns dos militares da guarnição castelhana, embora por razões que posteriormente seriam consideradas ridículas. O Funchal foi visitado pela primeira vez por um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, visitação que ocorreu em 1591. A visitação envolveu um prolongado processo contra os cristãos-novos e acabou por envolver também um quantitativo populacional importante, principalmente do Funchal. Assim, acabaram por se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos militares do presídio castelhano estacionado na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamente alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, da companhia do Cap. Luís de Benevides, e o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra companhia. Nesta visitação, foram ainda envolvidos os soldados Alonso de Vila Real, natural de Castro Monte; Belchior Simões; Francisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia, no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodrigues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da companhia de Luís de Benevides. Da companhia do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Francisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque de Penafiel, também de Valhadolid. No entanto, tratou-se tudo de pequenos delitos incluídos nas preposições, geralmente denunciados por camaradas da mesma companhia, que alguns – como Belchior Simões – nem confessaram, acabando todos por ver os seus processos despachados no Funchal. Passando em revista estes processos, ressalta, essencialmente, o isolamento então vivido por esses soldados do presídio castelhano e até uma certa má vontade contra os mesmos por parte da população civil. O principal processo envolve o soldado Pedro Sans, já citado, e uma série de companheiros. Em linhas gerais, estando alguns soldados na igreja do Colégio, no Funchal, a assistir a uma prédica do P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visitação, estes murmuraram ao ouvir o pregador referir que os soldados eram maus porque haviam feito mal a Jesus. Teriam então murmurado os soldados que maus eram os soldados romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bastou para de imediato serem presos no aljube da Sé. No complicado processo que se seguiu, foram chamadas, ou apareceram a depor, as mais diversas pessoas, algumas das quais, para além de se identificarem, quase não disseram mais nada. Depuseram alguns dos assistentes à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel Fernandes, cristão velho, o ourives de prata Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate Simão Gonçalves, entre outros. O processo acabou por ser despachado no Funchal e por não levar a especiais penas. Outro processo, praticamente só envolvendo soldados do presídio, roda à volta de uma partida de dados, jogada na casa da guarda da fortaleza Velha (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), em meados de 1591. O soldado Francisco Velasco, cansado de não ter sorte aos dados, disse num determinado momento, na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso bastou para ser acusado do crime de proposição herética, ou seja, renegação da fé, pelos seus camaradas de jogo e para dar origem a mais uma série de processos. A notícia da partida do inquisidor foi dada pelo governador em carta de 29 de abril de 1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem “bem negociada, da qual o capitão ficou aqui em terra, e é homem conhecido, segundo me dizem, e o preço foi muito moderado porque foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 106). Com os pedidos do governador e os casos da Inquisição, que não devem ter deixado de pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou com as alçadas que se deslocaram nesses anos à Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem os pagamentos das companhias do presídio do Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de Alencastre, na menoridade do filho, Fernando Martins Mascarenhas, mas que não seria o então bispo do Algarve (1548-1628) – que não era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de câmbio foram passadas por João de Valdavesso Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador do exército. No ano seguinte, 1593, há mandados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), 4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de Aranda fazer diversos pagamentos, nomeadamente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e a António Bocarro. Nestes anos, há igualmente registo de pagamentos pontuais a diversos soldados que devem ter acabado o seu serviço na Madeira. Encontrámos elementos sobre Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, porque culpado duma morte, não teve direito a soldo algum, e Fernando de Torres. Um dos pagamentos mais interessantes foi o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, recebido por Manuel Bocarro a 8 de janeiro de 1592 e sancionado por mandado do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitativo é francamente elevado para ser um simples soldo, devendo tratar-se de uma obra de empreitada e envolver mesmo aquisições importantes de material. A família Bocarro foi uma das principais famílias de fundidores portugueses, tendo tido o seu expoente máximo em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625-1652), na fundição de Macau. Descendente de várias gerações de fundidores, o seu avô materno, o fundidor Francisco Dias, era irmão de João Dias e tio de Baltazar Gomes e António Gomes Feo, todos fundidores de artilharia nos inícios e meados do séc. XVI. Este António Bocarro, a ser membro da mesma família, em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal em finais do 1591 para preparar a fundição de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns anos depois, embora, tanto quanto temos conhecimento, esta não tenha chegado a fundir bocas de fogo. O Gov. D. António Lopes Pereira de Berredo, como também depois aparece referido, entregou o Governo a 20 de abril de 1595, data em que tomou posse o novo Gov. Diogo de Azambuja de Melo (c. 1530-1599) (Melo, Diogo de Azambuja de). António Pereira, que, em 1592, no Funchal, se queixava de falta de saúde e desejava voltar para a sua casa no continente, ainda assumiria o lugar de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substituindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou até setembro de 1605, quando foi substituído por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em 1613, foi também enviado a Marrocos como inspetor das fortificações e com instruções para reformar parte das mesmas, intento localmente muito pouco aceite. Teria ainda sido nomeado para a Índia com o governo da parte do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras mercês, mas nada aceitou, dada a avançada idade. Deve ter falecido em 1614.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

blanc, tibério augusto

Tibério Augusto Blanc nasceu em Santarém, cerca de 1810, entrando para o Real Colégio Militar em 1822, onde teve o número 34 e já se não encontra registado com os últimos apelidos. Terminado o curso, ingressou como cadete, a 9 de setembro de 1828, na Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho, onde “foi o primeiro em todos os exames” (SANTOS, 1991). Seria depois promovido a 2.º tenente, a 24 de julho de 1833, e a 1.º tenente, a 5 de setembro de 1837, sendo colocado nesse mês na ilha da Madeira. Fixou residência no Funchal na rua de Santa Maria, onde veio a conhecer a futura esposa, Marta Carolina de Abreu Rego, da família dos capitães de Ponta Delgada, com quem se casou a 16 de fevereiro de 1838. Passou depois a residir na antiga rua das Portas Novas, atual rua do Carmo, e, depois, junto à ponte do Ribeiro Seco, quando foi colocado à frente daquelas obras. Tibério Augusto Blanc parece ter ido para a Madeira a pedido do administrador-geral António Gambôa e Liz (1778-1870) e, provavelmente, por indicação do futuro barão de Lordelo, que fora nomeado para o Funchal em 1835, embora só se tenha aqui apresentado em setembro de 1838. Tibério Blanc casar-se-ia no Funchal em fevereiro de 1838 e, em abril do ano seguinte, nascer-lhe-ia uma filha, da qual em agosto foram padrinhos de batismo os barões de Lordelo, José da Fonseca e Gouveia, administrador-geral do Funchal, e Maria Leopoldina, sua esposa, demonstrando as boas relações que mantinha com as mais altas autoridades do distrito. Tibério Blanc terá ido para a Madeira trabalhar na canalização das ribeiras do Funchal, monumental obra que fora iniciada pelo brigadeiro Oudinot em 1804, após a aluvião do ano anterior. Integrou assim a comissão nomeada para superintender na inspeção e direção dos trabalhos de limpeza das ribeiras da cidade em 1839 e, no mesmo ano, ainda foi encarregado do conserto da igreja de São Lourenço da Camacha. Em 1840 seria encarregado de verificar o estado da igreja matriz de Machico e orçamentar os reparos necessários, assim como igualmente o estado das muralhas da ribeira daquela vila, indicando os melhoramentos urgentes de que necessitava, “visto recear-se qualquer desastre” (ABM, Governo Civil, liv. 132, fls. 104 e 131v.), o que viria a acontecer dois anos depois, com uma nova e destrutiva aluvião. Nesse ano de 1840 ainda veio a ser encarregado de vistoriar se os cemitérios de Machico, Água de Pena, Santo António da Serra e Caniçal estavam de acordo com as determinações dos decretos de 21 de setembro e de 8 de outubro de 1835, vindo, no final desse ano de 1840, a vistoriar também um terreno em Machico, no sentido de avaliar se tinha condições para servir de cemitério àquela vila, embora a sua autorização para ser destacado para o serviço do Governo Civil só tivesse vindo no ano seguinte. Em 1841, o tenente Tibério Blanc procedeu à medição das águas da levada do Furado e orçamentou os reparos de que a mesma necessitava, vindo a ser o trabalho das levadas um dos aspetos mais relevantes da sua atividade na Madeira. No final do ano de 1842, face à importante aluvião, era chamado à Comissão Central de Auxílio, encarregada de avaliar os trabalhos a ser feitos. Nas reuniões e na presença do então administrador-geral, o Dr. Domingos Olavo Correia de Azevedo (1799-1855), estavam presentes os engenheiros militares da ilha: o então novo diretor das obras públicas, Manuel José Júlio Guerra (1801-1869), e os engenheiros Tibério Augusto Blanc, António Pedro de Azevedo (1812-1889), recentemente regressado à Madeira, e o velho e experiente Vicente de Paula Teixeira (c. 1790-c. 1850), como representante das obras camarárias do Funchal. A aluvião ocorrera a 24 de outubro de 1842, tendo sido despachado para o Funchal, a 26 de novembro, o então major Manuel José Júlio Guerra, experiente militar liberal, com larga folha de serviço nos Açores, no Porto, no Algarve e em Setúbal, mas, em princípio, sem as capacidades científicas dos outros dois engenheiros na altura também presentes na ilha. A sua colocação à frente das obras públicas não deve ter agradado a Tibério Blanc que, até certo ponto, se apaga nos anos seguintes, assim como a António Pedro de Azevedo, que pouco tempo depois volta para o continente, embora regressasse, também em pouco tempo, à Madeira. Entre as mais importantes obras públicas da Madeira dos meados do séc. XIX encontram-se a ponte do Ribeiro Seco, a Estrada Monumental para Câmara de Lobos e as várias pontes para tal construídas, assim como a levada do Rabaçal. Este conjunto de obras teve a direção do Eng. Tibério Augusto Blanc e, dados os interesses políticos e económicos que envolveu, foi objeto de ampla discussão nos periódicos da época. Não lograram assim estes trabalhos, durante a sua execução, face aos sucessivos encargos que todos tiveram e que quase duplicaram os orçamentos iniciais, a larga aceitação que viriam a conhecer após a sua conclusão. Em fins de 1846, já o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) iniciara as consultas sobre o modo de levar a efeito a obra da ponte projetada pelo seu antecessor Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1847), mas só em 1848 se pôde dar começo aos trabalhos, depois de o conselheiro ter obtido a promessa de donativos que chegassem para satisfazer a quarta parte das despesas em que haviam sido orçados os trabalhos. A arrematação das obras da ponte teve lugar no dia 27 de fevereiro de 1848, e, no dia 6 de março seguinte, começaram os trabalhos, tendo pouco antes o governador aberto uma subscrição para os gastos da ponte. Em junho desse ano, José Silvestre Ribeiro partiria de licença para o continente, não deixando de, antes de partir, louvar Tibério Blanc pelos trabalhos já desenvolvidos na ponte e no traçado da futura Estrada Monumental. As obras da ponte do Ribeiro Seco foram arrematadas pela quantia de quase 6 contos de réis, sendo arrematantes o mestre-de-obras José Pereira e seus sócios António Joaquim Marques Basto, João António Bianchi e Francisco Luís Pereira. Os trabalhos ficaram acabados em fevereiro de 1849, altura em que Tibério Blanc comunicou ao governador civil interino, Sérvulo Drumond de Meneses (1802-1867), em ofício de 5 de dezembro do mesmo ano, estar concluída a grandiosa obra com toda a “solidez e perfeição” requeridas, tendo o governador interino louvado a forma como tinha “dirigido a execução do plano que habilmente traçara da mesma obra”. Mais tarde, toda a documentação respeitante à obra seria publicada em volume independente, integrada nas várias obras respeitantes à atuação da administração de José Silvestre Ribeiro (MENEZES, 1848). Tibério Blanc, talvez para poder acompanhar mais de perto a obra da Estrada Monumental, tinha adquirido um terreno junto à ponte do Ribeiro Seco, onde fizera construir uma residência. Assim, em breve era atacado pelo jornal O Archivista, insinuando-se que na execução dessa casa se servira dos materiais do Estado destinados à Estrada Monumental. Face às insinuações, o engenheiro enviou um ofício ao governador dando conta do andamento dos trabalhos e, ao mesmo tempo, demonstrando que nada de censurável havia feito. Acrescenta ainda que entretanto resolvera vender a dita casa e regressar à que adquirira anteriormente, em setembro de 1848, no Salto de Cavalo. O Archivista viria a publicar os esclarecimentos de Tibério Blanc, mas acrescentaria que, apesar de tudo, o engenheiro deveria de futuro fazer a sua residência um pouco mais afastada das obras que dirigia. O incidente não deve ter afetado a ação e aceitação institucional de Tibério Blanc, que desde o ano de 1850 integrava a direção da Sociedade Agrícola Madeirense, composta por quase 30 pessoas, dando nesse ano orçamento para umas obras a executar na cadeia da cidade para a construção de uma lareira e respetiva chaminé a fim de evitar que os presos fizessem lume ao longo dos muros, provocando fumos. Também no final desse ano se deslocara a Santa Cruz para escolher o terreno para o futuro cemitério. No ano seguinte, continuaria os seus trabalhos e, inclusivamente, responderia, por indicação também do Gov. José Silvestre Ribeiro, aos quesitos apresentados pela Câmara Municipal do Funchal sobre a iluminação a gás da cidade. O problema mais grave viria a ocorrer, entretanto, em relação à levada do Rabaçal. O Eng. Tibério Blanc foi colocado em agosto de 1848 à frente dos trabalhos da construção da levada, cujos primeiros estudos datavam dos meados do século anterior, de outubro de 1768, do tempo do sargento-mor Francisco de Alincourt (1733-1816), do ajudante Salustiano da Costa (c. 1745-c. 1820) e do governador João António de Sá Pereira (1719-1804). Os trabalhos de perfuração do importante túnel decorreram nos dois anos seguintes, comunicando o engenheiro, a 5 de novembro de 1850, em ofício escrito do lugar do Rabaçal, a finalização daquela fase dos trabalhos. No mesmo documento ainda dava conta de ter informado os vigários da Calheta, Estreito, Prazeres, Fajã da Ovelha e Ponta do Pargo, localidades que mais tarde haveriam de beneficiar dos trabalhos em curso. Acrescentava, também que encarregara os portadores das cartas de, nos adros das respetivas igrejas, darem girândolas de foguetes pela consumação do importante túnel de ligação das partes norte e sul do monte das Estrebarias. As questões entre Tibério Blanc e António Pedro de Azevedo, no entanto, datavam de, pelo menos, os inícios de 1848. Tibério Blanc fora nomeado por despacho régio de 23 de janeiro de 1839, em comissão de serviço civil, como encarregado da direção das obras públicas civis do distrito, ou seja, passara para a dependência direta do governador civil. Ora, com o afastamento de Júlio Ribeiro Guerra, passara o capitão António Pedro de Azevedo a chefiar o Comando da Engenharia da 9.ª Divisão Militar, pelo que entendeu dever Tibério Blanc dar-lhe conhecimento dos trabalhos em que andava. A questão entre os dois chegou a Lisboa e teve como despacho a suspensão de ambos em 31 de março desse ano de 1848, nomeando-se mesmo um capitão engenheiro, de nome Cunha, para substituí-los, como consta do processo arquivado no Arquivo Histórico Militar. A suspensão acabou por não ter efeito com a chegada de José Silvestre Ribeiro a Lisboa, no mês de junho, e ambos se mantiveram em serviço na Madeira nos anos seguintes. No governo de José Silvestre Ribeiro, em meados de 1849, ainda se havia iniciado um interessante trabalho, que era o de classificar as várias acessibilidades, atribuindo-se depois as responsabilidades de conservação às várias autoridades concelhias e distritais. A iniciativa começou pela publicação de um edital convocando a Junta Geral para a discussão de um projeto sobre as estradas, apelando-se à participação dos cidadãos interessados no assunto. A junta veio a nomear uma comissão para a elaboração de um Projeto para as Estradas e Caminhos da Ilha da Madeira e do Porto Santo, que propôs então a sua classificação em estradas, caminhos do concelho, caminhos vizinhais e caminhos rurais, propondo ainda a constituição de uma Junta das Estradas e de um inspetor das estradas. O trabalho foi publicado na tipografia do palácio de S. Lourenço, mas parece que as contingências políticas posteriores o deixaram cair no esquecimento. O Eng. Tibério Blanc desenvolveu uma espantosa atividade durante o governo de José Silvestre Ribeiro, visitando toda a ilha e, especialmente, as antigas levadas, dando parecer sobre os melhoramentos a efetuar e as novas obras a empreender nas mesmas. Em outubro de 1848, receberia na levada do Rabaçal o então tenente de engenharia António Maria Fontes Pereira de Melo, que chegou no bergantim Mariana, a caminho de Cabo Verde, tal como em meados de 1849 receberia o príncipe Maximiliano de Beauharnais (1817-1852), duque de Leuchtenberg e irmão da ex-imperatriz do Brasil, D. Maria Amélia de Bragança (1812-1873), empreendimento que o príncipe muito apreciou, vindo a contribuir monetariamente para o mesmo. Com a montagem do novo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria de Fontes Pereira de Melo, Tibério Augusto Blanc foi mantido à frente das obras públicas do distrito do Funchal, situação que se conservou na vigência do novo governador, o visconde de Fornos de Algodres, João Maria de Abreu Castelo Branco Cardoso e Melo (1789-1878). As obras da levada do Rabaçal continuavam, entretanto, com a abertura de novo túnel, o das Levadinhas, para aumentar o caudal das águas. A época corresponde a uma nova inflexão política da regeneração, proclamando-se o major António Pedro de Azevedo adversário político do anterior governador José Silvestre Ribeiro, considerado localmente pelos “novos regeneradores” pouco dialogante e até autoritário. Com a nova situação, e não tendo sido nomeado diretor-geral das obras públicas do distrito, António Pedro de Azevedo consegue ser nomeado inspetor das mesmas obras, oficiando então a Tibério Blanc a comunicar-lhe as suas novas funções, solicitando-lhe vários elementos sobre as obras do Rabaçal e, alojamento no local para proceder à sua inspeção, ofícios depois divulgados nos periódicos do Funchal. O assunto foi acompanhado pelos periódicos do Funchal, que protestavam contra o atraso com que decorria a inspeção, a primeira a efetuar-se àquela obra, uma das mais importantes obras públicas da Madeira, chegando a alvitrar-se não estar o major António Pedro de Azevedo a cumprir cabalmente as suas funções, colocando-se mesmo a hipótese de não ter sido a pessoa certa para proceder à inspeção. A questão arrastou-se pelos meses de outubro e novembro de 1852, embora Tibério Blanc tivesse logo colocado toda a obra à disposição de António Pedro de Azevedo, incluindo os serviços do apontador-geral, José Maria Passos. Os resultados acabaram por revelar que tudo se encontrava a decorrer conforme os projetos iniciais definiam, havendo perfeita consonância entre os trabalhos desenvolvidos pelo Maj. Tibério Blanc e a inspeção efetuada pelo Maj. António Pedro de Azevedo, como consta na carta de 20 de novembro do apontador-geral (A Ordem, 25 set., 13 nov., 4 e 18 dez. 1852). O Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, em Lisboa, no entanto, parece não ter entendido assim a situação, passando a encarregar logo António Pedro de Azevedo de vários projetos na área das obras públicas e determinando a Tibério Blanc que entregasse o projeto final das obras da levada do Rabaçal. Na sequência disso, em fevereiro de 1853, exonerava Tibério Blanc do cargo da direção das obras públicas, indicando que deveria entregar a comissão a António Pedro de Azevedo. A passagem dos diversos materiais, e especialmente o arquivo, levantou inúmeros problemas, patentes em vários ofícios trocados entre o Governo Civil e o Ministério. O visconde de Fornos de Algodres encarregou de superintender à passagem de funções o administrador do concelho do Funchal, e, face à dispersão dos materiais pelas várias frentes de obras, os arquivos de plantas e projetos levaram imenso tempo a ser entregues. O assunto levou à intervenção do Ministério, que questionava se Tibério Blanc se recusava a entregar o arquivo, como se deduzia dos ofícios de António Pedro de Azevedo. O problema só se encontrava encerrado nos finais de março de 1853, com a entrega do relatório e do inventário do arquivo, assim como com a resposta taxativa do administrador do Funchal de desconhecer se o major Tibério Blanc se recusara a entregar o arquivo em causa, e dizendo que a elaboração do inventário final levara algum tempo a entregar por causa da acumulação de serviço no Funchal. Tibério Augusto Blanc acabou por ser destacado para diretor das obras públicas de Ponta Delgada, nos Açores, entendendo Fontes Pereira de Melo que dado existirem dois engenheiros no Funchal, e não havendo nenhum nos Açores, um deveria seguir para ali. A ordem para um dos oficiais engenheiros da Madeira passar a São Miguel foi assinada a 31 de outubro de 1853, mas sobre o ofício o ministro dos Negócios da Guerra informou que já a 14 de outubro se determinara o envio para os Açores do major Tibério Augusto Blanc. A sua atuação nos Açores deve ter sido bem aceite, pois a 19 de janeiro de 1861 era nomeado inspetor-geral das obras públicas dos Açores e do Funchal. Tibério Blanc optara, entretanto, por se radicar definitivamente no continente, vindo em 1854 à Madeira recolher a família, embarcando então para Lisboa no Galgo, acompanhado da esposa, da mãe, três filhas, uma irmã e a criada. No entanto, não teria sido impunemente que passara 17 anos ao serviço das obras públicas da Madeira, e, nos anos seguintes, regressaria pontualmente ao Funchal para a assinatura de uma escritura com o 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) e Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), em 1858, subscrevendo uma sociedade para execução de uma levada em Boaventura destinada a regar a Ponta Delgada, altura em que vende algumas propriedades que ainda possuía na Madeira. Voltaria ainda em 1860 e em 1862, neste último ano como inspetor das obras públicas, altura em que publica um artigo defendendo a sua obra da Levada Nova do Rabaçal, então atacada pelo jornal Voz do Povo. Ainda voltaria em 1866 e 1867, esta última vez para vistoriar aspetos da construção de uma “docka” no porto do Funchal, assim como em 1873 e 1875, quando a sua saúde já se encontrava bastante abalada, falecendo em Lisboa, em setembro desse último ano. O major António Pedro de Azevedo teria idêntico percurso, também se retirando para Lisboa em meados de 1865, onde foi promovido a general a 13 de dezembro de 1869, passando depois a diretor do arquivo da Engenharia. Reformado a 31 de dezembro de 1878, manteve-se à frente daquele arquivo até falecer em Lisboa, a 10 de agosto de 1889. Salvo melhor opinião, a ele se deve não ter ficado uma única planta assinada por Tibério Blanc nos arquivos militares, das inúmeras que do Funchal para ali foram enviadas ao logo de quase 20 anos.   Mapa de gastos da Pontinha. Out. 1847. Arquivo Rui Carita.   [gallery order="DESC" columns="4" size="medium" ids="3569,13460,13463,13466"] O único documento assinado por Tibério Blanc que resta é um mapa de gastos das obras da Pontinha, de outubro de 1847, e, se restam algumas plantas da sua autoria, como as da fortaleza do Ilhéu, do forte de S. José da Pontinha ou dos estragos da aluvião de 1842, só escaparam porque não estão assinadas. Inclusivamente desapareceu quase todo o conteúdo do seu processo individual nos arquivos de pessoal do exército, só dali constando seis documentos soltos provenientes de outros fundos.   Mapa dos estragos da aluvião de 1842     [gallery order="DESC" size="medium" ids="13487,13484,13481,13478,13475,13472"]   Rui Carita Imagens: Arquivo Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património Personalidades

azevedo, joão da costa e ataíde

João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704) tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e mais tarde do terço da Armada, tendo tido patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira em março de 1701. Uma das principias preocupações desta época era a das salvas, face a alguma anarquia que havia nas inúmeras armas estrangeiras que entravam no porto do Funchal, que foi um dos assuntos especificamente regulado. Este governador teria tido problemas com o bispo D. José de Sousa Castelo Branco, que o cronista Henrique Henriques de Noronha depois tentou distorcer. Por razões que desconhecemos, veio a ocorrer uma sedição em S. Lourenço, onde teriam tentado assassinar o governador e o juiz de fora da câmara, estando envolvidos um dos capitães de artilharia e o provedor da Alfândega. Foi enviado um desembargador para investigar a situação, mas o governador faleceu antes do desembargador chegar. Palavras-chave: Alçadas; Armadas; Devassas; Relações institucionais; Salvas; Sedição. João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704), de seu nome completo, era filho de Gonçalo da Costa Coutinho – que servira na armada da Costa e tinha participado na fatídica armada de D. Manuel de Meneses (Meneses, João de, e Pereira, Manuel), de 1637 – e de D. Isabel de Ataíde e Azevedo, filha única e herdeira de D. João de Ataíde e Azevedo, capitão de cavalos e comissário da cavalaria da província do Alentejo. O novo governador tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e depois do terço da Armada. Teve patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira a 1 de março de 1701, tomando menagem a 6 de abril e posse, no Funchal, a 12 de junho desse mesmo ano, substituindo o mestre de campo dos auxiliares de Lisboa, D. António Jorge de Melo (c. 1645-1703) (Melo, António Jorge de). Nesta época, um dos principias assuntos de preocupação dos governadores – e que foi um dos especificamente regulados – era o das salvas, face ao aumento quase exponencial de armadas de outras nacionalidades no porto do Funchal. Nesse quadro, quando o novo governador veio para a Ilha, trouxe, com data de 25 de janeiro de 1700, o regulamento de salvas que tinha sido enviado ao seu antecessor e que, entretanto, não teria sido registado. O regimento começa por referir a obrigatoriedade de salvas, mesmo em relação às embarcações inglesas e francesas, “que por vezes não usam” esse tipo de cumprimento. Responder-se-ia com igual número de salvas aos navios de capitanias reais, com menos uma aos navios almirantes e com menos duas aos restantes. Aos navios suecos e dinamarqueses, que não salvavam com números certos, “pois tanto salvam com um tiro, como com quatro ou seis” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.), responder-se-ia sempre, mas com menos um tiro, caso salvassem com vários. As boas relações entre os governadores e os bispos do Funchal eram essenciais para o funcionamento geral das instituições insulares, como aliás referira um alto funcionário da corte de Lisboa, que pensamos ter sido António de Freitas Branco (1639-c. 1700), madeirense e desembargador da Casa da Suplicação, quando o anterior governador, António José de Melo, solicitara informações “de como se devia portar o governador [...], para fazer bem a sua obrigação, e dos interesses que tinha”. Especificava o informador que o novo governador deveria, logo à chegada, visitar o bispo, com quem, em princípio, deveria manter as melhores relações possíveis, pois nisso “consiste todo o sossego da terra e a sua quietação” (BNP, Coleção Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). Deveria mesmo haver uma específica atenção a tudo o que se relacionasse com o prelado diocesano, não permitindo que na sua presença se murmurasse a seu respeito e, no caso de isso acontecer, deveria repreender-se asperamente quem o tivesse feito. Acontece, porém, que terá havido alguma desarmonia entre estas duas autoridades e, tendo o bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740) (Castelo Branco, José de Sousa), solicitado que o governador colocasse homens da milícia das companhias de ordenanças do Funchal às suas ordens, João da Costa de Ataíde recusou-se a aceder ao pedido e, depois de enviar o assunto ao Rei D. Pedro II (1648-1706), teve o seu apoio expresso em alvará régio, emitido a 15 de janeiro de 1703. As posições devem ter-se extremado e para isso deverá ter contribuído o arcediago da Sé do Funchal, António Correia de Bettencourt (1664-1725), sucessivamente promovido por este prelado e irmão do cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de). Assim se explica a defesa do bispo e, acrescente-se, do irmão, que levou Noronha a escrever que, em 1703, D. José de Castelo Branco, “em razão do ofício de bom Pastor, teve algumas dissensões com o governador João da Costa de Ataíde e com o provedor da fazenda real, o desembargador Manuel Mexia Galvão, de cujos procedimentos se queixou a el-rei D. Pedro II”. O Rei enviou então um sindicante ao Funchal, “para que chamando o dito Provedor à Câmara, lhe estranhara corretivamente os seus procedimentos, fazendo-o assim saber ao dito Prelado. Tudo consta da provisão passada a sete de janeiro de 1704” (NORONHA, 1996, 127-128). Ora, o que consta da provisão datada de 7 de janeiro de 1704 não é, contudo, isso – e envolve inclusive algo mais grave: os Noronha passam a estar explicitamente envolvidos nos quesitos a serem investigados pelo desembargador. Em finais de 1703 terá havido uma sedição “no salão da Índia da fortaleza de S. Lourenço”, salão de que não temos qualquer outra informação, “e uma conspiração que intentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a vida” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.) ao governador e ao juiz de fora da câmara, então António de Macedo Velho. No atentado ao governador teria estado envolvido o capitão de artilharia António Nunes, que imediatamente a seguir à sedição se ausentou do Funchal (Artilharia), tal como o provedor da Alfândega. Por causa desta sedição, deslocou-se ao Funchal, com poderes excecionais, o desembargador Diogo Salter de Macedo (1654-c. 1730), com provisão passada em Lisboa, a 7 de janeiro de 1704, que se apresentou na Madeira a 9 de junho desse ano (Alçadas). Em prol da correção das suas averiguações, dever-se-ia fazer sair da cidade o governador, João da Costa de Ataíde, “em distância de dez léguas, para que não fosse, com a sua presença e poder, assistindo” às averiguações, interferir nas mesmas. Nas ordens do desembargador vinha expresso: “e na mesma embarcação em que fores tirar esta devassa, voltará o provedor da fazenda Manuel Mexia, por não ser conveniente que fique na Ilha depois da vossa chegada, para se não dar tempo a negociações, e por ser o dito Provedor da Fazenda envolvido em mais suspeições” (Ibid.). As questões em causa terão tido uma significativa gravidade e envolvido também o bispo, pois ficou escrito no regimento do desembargador: “E a queixa contra o Bispo deverá ser queimada, para dela não ficar nada, nem memória, e disso deverá ser dado conhecimento ao Bispo, para o mesmo saber como o Rei e as suas Justiças tratam semelhantes casos” – o que não foi aquilo que Henrique Henriques de Noronha acabou por escrever. Neste caso, havia ainda queixas contra a família Noronha, a que pertencia o arcediago, e contra a família do vigário geral da Diocese, e ainda se encontrava envolvido o juiz de fora da câmara do Funchal, “a quem [os soldados] fizeram uma sátira difamatória” (Ibid.). Os autores do Elucidário Madeirense seguem de perto as opiniões de Noronha, embora não deixando de salientar ter sido este bispo “estrénuo defensor dos privilégios e regalias de que gozava a Igreja” (SILVA e MENESES, 1998, I, 260). Sobre o governador limitam-se a dar a sua posse e falecimento. As ordens dirigidas ao desembargador e corregedor Salter de Macedo foram passadas em janeiro, mas o mesmo só se apresentou na Ilha em junho, pelo que desconhecemos totalmente o que teria conseguido averiguar. Entretanto, já tinha falecido no Funchal o Gov. João da Costa Ataíde, a 8 de março, e já tinha tomado posse Duarte Sodré Pereira (1666-1738) (Pereira, Duarte Sodré). O novo governador tinha sido nomeado em novembro de 1703, “havendo respeito a desobrigar” João da Costa de Ataíde, referindo-se os merecimentos dos anteriores serviços e ainda “por [ser] quem ele é”, conforme vem expresso na carta patente de Sodré Pereira (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fls. 233-253v.), conforme vem expresso na sua carta patente, parecendo que em Lisboa ainda se não havia tido notícia da sedição. No entanto, o Gov. Duarte Sodré Pereira demorou-se algum tempo em Lisboa, decerto por questões oficiais, pois só em março de 1704 foi nomeado para o Conselho de Estado, chegando ao Funchal quando o anterior governador já tinha falecido. O Gov. João da Costa de Ataíde foi sepultado na igreja do Colégio da Companhia de Jesus, como aconteceu sempre que um governador faleceu no Funchal e “foram depois levados os seus ossos a Lisboa” (NORONHA, Ibid., 58). Não se casou nem deixou descendência, sucedendo na casa de seus pais o irmão Gaspar da Costa de Ataíde, sucessivamente capitão de mar e guerra, sargento-mor de batalha, fiscal da Armada, alcaide-mor de Sortelha, que tinha passado à Índia em 1701, por capitão-mor das naus daquele Estado, mas não constando também descendência do mesmo. Duas das irmãs foram freiras em S.ta Clara de Lisboa, outra morreu ainda jovem e D. Leonor Maria de Ataíde casou-se com Sebastião de Carvalho e Melo (c. 1625-1719), sendo avó do futuro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), sucessivamente conde de Oeiras e marquês de Pombal.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Antropologia e Cultura Material História Económica e Social Literatura Personalidades

artilharia

O armamento pesado de fogo foi fulcral na expansão portuguesa, chegando Portugal a produzir do mais evoluído material de artilharia entre os meados do séc. XVI e os meados do seguinte, não só em Lisboa, mas também no Oriente, nomeadamente Cochim, depois em Goa, Campanel, Jafanapatão e em Macau. Temos poucas informações sobre a sua inicial existência e possível produção na Madeira, que não teria passado de experiência; no entanto, Fernão Lopes de Castanheta refere que, com a chegada das armadas portuguesas ao golfo Pérsico e o desenvolvimento das primeiras instalações construídas, ou seja por volta de 1507, houve que recorrer não só a artífices estrangeiros, mas também a um madeirense, citando-se nos primeiros trabalhos da fortaleza de Ormuz “quatro fundidores de artilharia, dois de artilharia de metal e dois de artilharia de ferro, e três eram gregos e um português mulato e natural da ilha da Madeira” (CASTANHETA, II, 1933, 362). A passagem contínua das armadas portuguesas pelo porto do Funchal, inclusivamente com especialistas de outras nacionalidades, e.g., em 1547, o lendário aventureiro e artilheiro alemão Hans Staden (c. 1525-c. 1579), levou à circulação pela Madeira de todo esse tipo de armamento e de pessoal com o mesmo relacionado. A primeira referência à presença de artilharia na Madeira aponta para o último quartel do séc. XV, citando Gaspar Frutuoso que João Gonçalves da Câmara (c. 1417-1501), 2.º capitão do Funchal, entre outras façanhas bélicas, fez frente a “uma grande armada de castelhanos de muitas velas, com muita gente”, que tentou atacar a praia da vila. Mesmo tendo em conta que se tratava de um cronista açoriano a escrever em Ponta Delgada 100 anos depois dos acontecimentos, e sem nunca ter ido à Madeira, Frutuoso faz notar que “não havendo naquele tempo mais artilharia na terra que um trabuco”, com essa bombarda somente e “com o seu esforço, com que animava a gente”, não só defendeu a Ilha, mas antes “fez muito dano aos navios dos castelhanos e os afugentou, sem ousar nenhum deitar gente em terra” (FRUTUOSO, 1968, 222). Estas bombardas devem ter vindo para a Madeira depois de 1477, quando a infanta D. Beatriz ordenou a montagem dos postos alfandegários, pois existem informações do envio de idêntico armamento para a capitania de Machico, que, mais de 100 anos depois, em 1595, segundo se queixa o mestre-das-obras reais Mateus Fernandes (c.1520-1597), ainda não estava sequer montado. Também há referências a outras bocas-de-fogo na ilha, como a artilharia utilizada, em 1531, nas complicadas questões da Lombada do Arco da Calheta entre elementos das famílias Câmara, Abreu e Esmeraldo (um dos elementos da família Câmara assediou uma das irmãs Abreu, que vivia com a irmã na Lombada dos Esmeraldos, tendo-se as três famílias envolvido em conflito aceso), onde aparecem referidos dois falcões pedreiros e algumas bombardas. Quando do ataque corsário francês de 1566, temos também informação quanto ao equipamento da fortaleza: oito grandes peças de bronze, por certo as enviadas em 1529. O cronista Gaspar Frutuoso refere que algumas delas teriam cerca de 1500 quilos, “145 quintais” e que eram “das maiores que havia no reino”; ainda nesse ataque, existem referências a falcões pedreiros. Um dos pormenores curiosos deste texto de Gaspar Frutuoso é a descrição dos trabalhos de Gaspar Borges, “engenhoso artífice em metais”, que desencravou duas das grandes peças da fortaleza, “grandes e grossas e que nenhumas havia maiores no reino”, como voltou a escrever. No dizer do cronista, os corsários tentaram arrastar as peças para o calhau da praia, mas dado o seu peso e não as podendo levar, deram-lhes a mesma sorte das restantes, “atupindo-as e encravando-as pelos buracos das escorvas” (Ibid., 327-386). A organização da artilharia começou por ter alguma independência, dado ser constituída por artífices especialmente contratados que muitas vezes eram também fundidores e construtores e que, localmente, tinham outras profissões. Nesse quadro, a instituição da Nómina dos Bombardeiros deve datar de 1515; a organização manteve-se mesmo depois de 1675, quando a função passou ao foro exclusivamente militar e os bombardeiros passaram a ser soldados regulares e designados por artilheiros. As primeiras bocas-de-fogo do séc. XVI devem ter sido transportadas em 1529 para o Funchal, com o fim de equipar a futura fortaleza (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), quando era provedor da alfândega Cristóvão Esmeraldo. As designações das várias peças de artilharia (“peças”, no sentido em que na época moderna começam a ser fundidas por inteiro, enquanto até então o eram por partes), como culatra, tubo, etc., também são muito díspares, tendo-se perdido, inclusivamente o significado de algumas designações. Começaram por ser simplesmente bombardas e canhões pedreiros, quando disparavam bala de pedra, passando depois a ter designações de animais mais ou menos fantásticos: e.g., as grandes peças foram nomeadas basiliscos, dragões, serpes, etc., as médias, falcões e falconetes, e as de longo alcance, com tubo mais longo, colubrinas. As de grande calibre e que faziam tiro curvo, quase sempre se designaram por morteiros. A progressiva sistematização da designação através do tamanho e relação do calibre e comprimento do tubo data dos meados do séc. XVII, passando as colubrinas a ser designadas por peças, e as de médio e curto alcance por canhões ou meios canhões e, depois, obuses. Obus. Bartolomeu da Costa. 1770. MM Madeira A reformulação da situação dos bombardeiros, civis de profissões várias, que pontualmente exerciam essa função, aparece a partir de 1640, com a aclamação de D. João IV e a progressiva e lenta constituição dos novos corpos militares permanentes.             Boca de fogo naval inglesa - 1780. GAG2 Funchal     Boca de Fogo inglesa do Porto Santo   A primeira ordem veio logo a 15 de setembro de 1641, com a reforma da companhia do presídio e com a indicação para se proverem as fortalezas “dos necessários artilheiros, para serem todos pagos à maneira das fortalezas do reino” (BNP, Index Geral…, fl. 11). De 1648 foi depois a ordem geral de reforma do material de artilharia existente, ordenando-se ao Gov. Manuel Lopo da Silva que se enviassem para Lisboa todas as peças e falcões das fortalezas da Madeira que estivessem rebentadas, para se fundirem novamente e então serem reenviadas para a Ilha. Em setembro de 1689, foi nomeado o Cap. António Nunes como capitão da artilharia da ilha da Madeira, referindo-se que até então fora condestável dos bombardeiros do Funchal. A artilharia para a Madeira foi sendo enviada de Lisboa, embora sempre com alguma dificuldade, chegando os governadores a optar pela sua aquisição em Londres, como aconteceu, pelo menos com o Gov. Duarte Sodré Pereira, nos primeiros anos do séc. XVIII, de acordo com o que o mesmo escreveu e mandou lavrar nas lápides das fortificações construídas durante o seu governo (Fortes) Este processo manter-se-ia com os governadores seguintes, como José Correia de Sá, que idêntica inscrição mandou colocar na fortaleza de S. Tiago, tendo mandado ir de Londres, em 1767, 50 peças de artilharia para a mesma. A possibilidade de reutilização do bronze das bocas-de-fogo fez com que quase nenhuma peça de artilharia nesse material chegasse ao séc. XXI, ao contrário das de ferro, cujo material não é suscetível de reutilização. Tal facto ocasionou que pelas praias do arquipélago, e.g., como também por outras das ilhas e das costas do Atlântico, etc., existam milhares de antigas bocas-de-fogo de ferro abandonadas, algumas das quais foram reunidas no forte de S. José do Porto Santo ou no do Amparo, em Machico. Segundo as ordenações navais, estas bocas-de-fogo deveriam ser obrigatoriamente lançadas borda fora após 400 tiros, pois a sua manutenção a bordo poderia levar a que, em caso de perigo, pudessem vir a ser utilizadas, o que constituía um perigo maior para a guarnição que para o inimigo. A partir desse número de tiros, o ferro ficava propenso a estilhaçar-se, atingindo toda a guarnição. As peças incapazes para combate eram muitas vezes recuperadas para tiros de salva, utilizando cargas de pólvora muito mais baixas, o que, no entanto, não deixou de causar acidentes, como chegou a acorrer na fortaleza do Ilhéu, a 23 de fevereiro de 1731, quando se deu o rebentamento de uma das peças de ferro, “que se fez em migalhas”, matando um dos artilheiros (ARM, Governo Civil, liv. 418, fls. 17-19). Existe um Livro de Carga da Fortificação das fortalezas da Madeira, entre 1724 e 1733 e, em 1754, o Gov. Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771), depois 1.º conde da Ega e vice-rei da Índia, informava existirem 18 peças de bronze, 16 nas fortalezas do Funchal 2 nas de Machico, 125 de ferro “todas de diferentes calibres”, 7 “pedreiros de bronze e ferro para balas de pedra”, todos no Funchal, e 36 peças inúteis “que só servem para salvas”, também no Funchal. Existiam, entretanto mais de 7000 balas de artilharia “de diferentes calibres” nas fortalezas e mais de 20.000 nos armazéns (AHU, Madeira, doc. 47). No Museu Militar da Madeira (Museu Militar da Madeira), instalado na fortaleza de S. Lourenço, existe uma amostragem das mais expressivas peças de bronze de artilharia, quer de fabrico português, como do célebre engenheiro brigadeiro Bartolomeu da Costa (1731-1801), autor da fundição da estátua equestre do Rei D. José, em 1775, quer dos vários arsenais estrangeiros de que o país se subsidiou para a o seu abastecimento.   Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

História Militar