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busk, george

(São Petersburgo, 1807 - Londres, 1886) Médico e naturalista, exerceu funções no Seamen’s Hospital Society (SMS), no Reino Unido, e fez importantes contribuições para as áreas da epidemiologia, da parasitologia e da paleontologia. Descobriu, em 1843, 14 vermes parasitários do duodeno, que foram denominados Fasciolopsis buski em sua homenagem e, como naturalista, dedicou-se ao estudo de invertebrados marinhos, tendo descrito 45 espécies de filo Bryozoa da Madeira, a partir de amostras que lhe foram enviadas James Y. Johnson Foi, também, o responsável pela observação do primeiro crânio adulto de Neandertal descoberto, em 1848, em Gibraltar. Trocou correspondência com Darwin, recebeu numerosos prémios de reconhecimento e foi membro fundador da Microscopical Society.   Palavras-chave: George Busk; Bryozoa da Madeira; Buskia; Fasciolopsis buski; crânio de Gibraltar; correspondentes de Darwin . Busk nasceu a 12 de agosto de 1807, filho de colonos ingleses, em São Petersburgo, Rússia. Completou todos os seus estudos no Reino Unido, primeiro na Dr. Hartley’s School, em Yorkshire e, depois, na Royal College of Surgeons, em Londres. Como médico, contribuiu para o conhecimento de diferentes epidemias. Em 1838, e.g., publicou, juntamente com o seu colega George Budd, um relatório sobre 20 casos de cólera (Report of Twenty Cases of Malignant Cholera that Occurred in the Seamen’s Hospital-Ship) e escreveu relatórios para a SHS sobre outras doenças, como o escorbuto e a varíola. Também no campo da parasitologia, fez valiosas descobertas, tendo, em 1843, descrito 14 vermes parasitários do duodeno. Estes trematodes foram depois chamados Fasciolopsis buski em sua honra. As suas aportações nesta área tornaram-no tão conhecido que, numa carta a Charles Darwin de 1863, Joseph Hooker descreve Busk como “o cérebro mais fértil que conheço em tudo o que diz respeito ao estômago” (“George Busk”, Darwin Correspondence…), facto que levou Darwin a escrever-lhe para pedir conselho sobre os seus próprios sintomas gástricos. Darwin também escrevera a Busk para pedir a sua opinião sobre outros assuntos, nomeadamente se haveria alguma relação entre a cor do cabelo e a suscetibilidade às doenças tropicais nos soldados britânicos, e sobre a evolução dos Bryozoa. Em 1864, Busk, na altura membro do conselho da Royal Society, foi um dos que persuadiram a Sociedade a outorgar a Darwin a Medalha Copley, a condecoração de maior prestígio no domínio das ciências. Durante a sua vida, especialmente após a sua reforma da SHS, em 1855, George Busk dedicou-se ao estudo dos Bryozoa (ou Polyzoa). Embora não haja registos de ter estado alguma vez na Madeira, recebeu muitas amostras de Bryozoa desta ilha enviadas por James Yate Johnson (1820-1900), e fez uma contribuição importante para o seu conhecimento, descrevendo no total – como se referiu – 45 espécies nos vários artigos que publicou no Quarterly Journal of Microscopical Science: “Zoophytology”, “On some Madeiran Polyzoa”, e “Catalogue of the Polyzoa, collected by J. Y. Johnson, Esq. at Madeira in the years 1859 and 1860”. A sua coleção foi depositada no Museu de História Natural de Londres. Um novo género de Bryozoa, Buskia, foi-lhe dedicado por Alder, em 1856. George Busk também se interessou pela paleontologia. Traduziu o trabalho onde Shaaffhausen descrevia os restos de esqueletos humanos descobertos no vale de Neander (“o homem de Neandertal”) e, em 1863, viajou até Gibraltar, para visitar a caverna onde tinha sido descoberto, em 1848, o primeiro crânio adulto de Neandertal. Foi o responsável por levar para Londres este “crânio de Gibraltar”, publicando o resultado das suas observações em 1864, no The Reader, com o título “Pithecoid priscan man from Gibraltar”. Casou-se, em 1843, com uma prima direita, Ellen, e teve duas filhas. Foi membro de muitas sociedades científicas e ganhou vários reconhecimentos. Por exemplo, foi um dos fundadores da Microscopical Society, em 1839, foi nomeado membro da Linnean Society em 1846, da Royal Society em 1850, da Zoological Society em 1856 e da Geological Society em 1859. Recebeu a Medalha Real em 1871, a Medalha Lyell em 1878 e a Medalha Wollaston em 1885. Faleceu na sua residência em Londres, a 10 de agosto de 1886. Obras de George Busk: Report of Twenty Cases of Malignant Cholera that Occurred in the Seamen’s Hospital-Ship (1838), com George Budd; “Zoophytology” (1858); “On some Madeiran Polyzoa” (1858 e 1859); “Catalogue of the Polyzoa, collected by J. Y. Johnson, Esq. at Madeira in the years 1859 and 1860” (1860 e 1861); “Pithecoid priscan man from Gibraltar” (1864).   Pamela Puppo (atualizado a 25.01.2017)

Biologia Terrestre Ciências da Saúde

azevedo, jaime boaventura de

Jaime Boaventura de Azevedo (1887-1944) nasceu no Funchal mas muito novo viajou para Lisboa, onde fixou residência. Licenciou-se em 1916 em Agronomia, foi responsável pela reconstrução do Horto de Química Agrícola, e integrou o Instituto Superior de Agronomia, onde foi docente das disciplinas de Química Geral e Análise e de Química Agrícola, esta última, a partir de 1929. Ao longo da sua carreira, desenvolveu investigação na área da análise química agrária, que era indispensável para o cálculo da adubação. Não desenvolveu de forma direta a divulgação dos adubos em Portugal mas contribuiu para o estudo científico destas substâncias. A sua investigação surgiu no momento do início do fabrico de superfosfatos em Portugal e do começo da comercialização de diversos adubos minerais elementares, que estavam a ser importados. Boaventura de Azevedo criou o Curso de Aperfeiçoamento de Química destinado a engenheiros agrónomos que exerciam a sua atividade no campo químico da investigação agronómica, cujo principal objetivo seria o de intensificar os conhecimentos de análise química. Os seus estudos permaneceram no mundo académico através das suas publicações: em 1933 publicou Apontamentos da Cadeira de Química Agrícola, o primeiro conjunto de textos de apoio aos seus alunos, onde contempla vários tópicos, desde a matéria orgânica do solo à fertilização e adubos químicos; em 1939, foi divulgada a obra Nitreiras sem Moscas. Outros ensaios estavam a ser preparados; contudo, o falecimento de Boaventura em 1944, aos 56 anos, impossibilitou a sua publicação. Jaime Boaventura de Azevedo teve ao longo da sua vida de docente e engenheiro agrónomo o objetivo de educar as novas gerações para o desenvolvimento agrário, principalmente na região portuguesa. Obras de Jaime Boaventura de Azevedo: Apontamentos da Cadeira de Química Agrícola (1936); Nitreiras sem Moscas (1939).   Joana Pinto Salvador Costa (atualizado a 23.01.2017)

Biologia Terrestre Física, Química e Engenharia

tetos de alfarge

Os tetos de alfarge ou de laçaria existentes na RAM constituem uma incontornável persistência do que terá sido uma rara e inovadora expressão artística de âmbito arquitetónico com forte componente estrutural experimentada em Portugal. O seu tempo áureo estará de forma muito particular ligado ao curto reinado de D. Manuel I (1496-1521), e a sua permanência enquanto processo construtivo terá superado as questões de estilo, ditado pelo gosto particular deste rei, resistindo inclusivamente ao seu desvanecimento e readaptando-se sem perder a sua identidade tecnológica. Importará, contudo, reter de forma breve os antecedentes que consubstanciaram este ciclo artístico. Desde logo o surgimento, difusão e persistência da cultura islâmica em Portugal continental. No último quartel do séc. XX, esta foi divulgada e contextualizada através do contributo científico da arqueologia, da antropologia e da história, entre outras disciplinas. A sua ligação aos califados da Andaluzia inscreve-a numa faixa territorial do Sul da Península em estreita ligação com o Norte de África e o Médio Oriente, em termos de ancestrais ligações culturais e religiosas, pelo que se perceciona uma vasta unidade sociocultural cujas naturais diferenças são articuladas por fatores de comunicação. Seria com estes territórios que as Ilhas Atlânticas, em particular a Ilha da Madeira, viriam a estabelecer, a partir do séc. XV, uma estreita relação comercial, política e cultural, na senda das ancestrais navegações que ousaram vencer as colunas de Hércules e prospetar as costas Norte e Sul do vasto Atlântico. O início do séc. XV inicia-se praticamente com a conquista cristã de algumas praças do Norte de África por parte dos portugueses, configurando-se uma nova realidade geoestratégica. Neste contexto, as descobertas da Ilha da Madeira e, de seguida, do arquipélago dos Açores favoreceram a construção de uma ideia de expansão, surgindo novos centros geográficos readaptados a entrepostos estratégicos. Os estreitos contactos com a cultura islâmica são, a partir de então, uma realidade incontornável, tanto em tempo de paz como de guerra, e mesmo quando em pleno reinado de D. João III (1522-1578) se percebe a impossibilidade de permanência em tantas praças africanas as trocas culturais já se terão consolidado de forma estruturada. O investigador Rui Carita, que dedicou especial atenção aos tetos mudéjares da Madeira, refere três potenciais razões para o facto de existir um tão forte e coeso núcleo destes tetos na ilha. A primeira relaciona-se com os contactos que teriam tido lugar no espaço continental até à fundação da nacionalidade, com presença de árabes e moçárabes, ou seja, cristãos submetidos à lei islâmica. A segunda liga-se à conquista de pontos estratégicos no Norte de África nos inícios do séc. XV, cuja cultura elegante e refinada observada nos palácios e casas nobres teria encantado alguns portugueses. A terceira relaciona-se com a subida ao trono de D. Manuel I, duque de Beja, que praticamente impôs o desenvolvimento e intensificação deste tipo de gosto de tradição islâmica a todo o país. Existem registos da admiração dos portugueses aquando da sua entrada nas residências de Ceuta, descrevendo Gomes Eanes de Azurara, cronista-mor, a perplexidade dos portugueses perante as “grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de desvairadas cores, e os tetos forrados de olival, com formosas açoteias cercadas de mármores muito alvos e polidos”. Acrescenta o cronista: “nós outros mesquinhos, que não temos outro repouso senão pobres casas que, em comparação destas, querem parecer choças de porcos.” (CARITA e CARDOSO, 1983, 23). O Arqt. Hélder Carita, na sua análise espaciotemporal de enquadramento da arquitetura portuguesa a propósito da Casa dos Bicos, sublinha a importância que os tetos de alfarge, conjuntamente com os azulejos, terão tido na distinção desta arquitetura quinhentista. Acompanhamos esta análise e interrogamo-nos se nesse período histórico de renovação e reabilitação da “arte” islâmica, agora numa prerrogativa mudéjar, não existiriam ainda vestígios significativos do palácio árabe, bem como de casas contíguas das famílias dominantes que terão sido apropriadas pela nova aristocracia católica sem procederem necessariamente ao seu desmonte. Coloca-se, assim, a questão de como terão sido esses interiores e, sobretudo, como terão enobrecido em função do enriquecimento dos seus proprietários. O processo acumulativo e/ou de ocultação é tradicionalmente uma constante, ao invés da demolição e integral substituição, pelo que consideramos a possibilidade de muitos dos tetos de alfarge terem permanecido até ao terramoto. Até 2015, não se conheciam testemunhos escritos sobre a existência desses tetos anteriores ou posteriores ao terramoto de 1755 e a outras calamidades. Apenas se conhecia a crónica de Fernão Silva, que terá contado com o testemunho do cruzado Osberno, na conquista de Lisboa: “Lanço estas regras ao papel já sob o teto mourisco de uma casa que pertenceu porventura a algum príncipe Sarraceno, ou onde um dia se albergou, recoberta de lhamas doiradas, a filha de qualquer capitão da Kssaba, ninho alto de pedras luminosas, esta hoje alcáçova cristã, onde, desde há horas, canta o imaginário Truão de Guimarães.” (ARAÚJO, 1993, 45). As identidades culturais ter-se-ão desenvolvido e apurado na continuidade de ciclos económicos estáveis, incorporando subtis inovações e mesmo eventuais ruturas que não apagaram necessariamente as anteriores, que persistiram em lentas transformações/adaptações. Os tetos de Alfarge, apesar da rutura cultural que aparentemente terão introduzido nos finais do séc. XV, terão reencontrado em Portugal um novo ciclo após a morte de D. Manuel I, precisamente o de simplificação resultante de um eficaz processo tecnológico a que estão associados. Tal facto será resultado de um certo contraciclo cultural imposto por D. João III, no qual a exuberância dá lugar a uma grande contenção formal, retirando do espaço arquitetónico o esplendor luminoso da arte manuelina e, por inerência, as referências luxuriantes de pendor islâmico/oriental. A historiografia, de um modo geral, não terá aprofundado a forma como a cultura andaluza terá sido influente e integrada na arquitetura portuguesa, talvez por nunca a ter considerado suficientemente relevante para a sua formação, filiando-a apenas na superficialidade decorativa e não na configuração arquitetónica, em particular na identidade espácio-funcional, de que destacamos a arquitetura civil, tanto no continente como nas regiões autónomas da Madeira e Açores. Para melhor nos enquadrarmos neste específico tema, importará desde logo registar o que determina o termo “alfarge”. A sua definição difere significativamente entre Portugal e Espanha. No país vizinho, é praticamente consensual para os investigadores que a palavra se reporta a um teto plano de onde se destacam as vigas transversais planas, por vezes com incisões ou arestas sutadas, sob as quais pousa o tabuado. Entre essas vigas é comum observar-se uma decoração designada de laço. Al-farx, em árabe, significará “cobrir com ornato”. Em Portugal, terá sido Joaquim de Vasconcelos, no Guia de Portugal (1983), quem identificou e caracterizou esses tetos hispano-mouriscos, designando o alfarge numa perspetiva mais abrangente ao associá-lo a outras formas artísticas ditas de alfarge. Contudo, o mais corrente na época era referir-se esses tetos como hispano-mouriscos, de laço ou carpintaria de laçaria em aproximação à designação espanhola. Segundo Joaquim de Vasconcelos o “lavor do alfarge ou almoçarabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a conquista árabe até ao primeiro terço do século XVIII” (VASCONCELOS, 1983, 38). Raul Proença, referindo-se a este autor, propôs: “que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço (em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicutado. A etimologia que se dava à palavra alfarge (...) era al-farash, que alguns traduziam por assoalhado” (PROENÇA, 1983, 38-39). Pedro Dias, na sua obra Arquitetura Mudéjar Portuguesa: Tentativa de Sistematização, incorpora de forma inovadora o mudejarismo na historiografia nacional. A contextualização das diferentes expressões artísticas no ambiente arquitetónico são agora parte integrante do processo e não simples revestimento ou adorno. No caso dos tetos, este autor, tal como Rui Carita, procura salientar a sua relevância na fábrica da arquitetura, revelando inclusivamente o importante carpinteiro da obra-mestra dos Paços de Sintra: “O carpinteiro João Cordeiro era ‘...mestre das ditas obras dos paços nos ditos Serviços e em fazer rosas para a Capela e Estrelas e Rezimbros para a dita Capela.’". Prossegue o autor com uma nota da maior relevância por ter data: "um documento mais antigo, datado de 1450, referente a um crime cometido em Évora por um jovem, alude a que este era bom carpinteiro ‘... de obra de laço e coisas subtis de carpintaria...’, o que a nosso ver, é uma alusão aos tetos mudéjares” (DIAS, 1994, 55). Esta datação revelará sobretudo uma prática conhecida e em uso no período do reinado de D. Manuel I, época em que esta arte atingiu o seu maior esplendor. Dos diversos núcleos que este autor reporta, apoiando-se no trabalho da historiadora Luísa Clode e especialmente na incisiva investigação de Rui Carita, destacamos o Mudéjar Madeirense. Rui Carita procurou identificar os tetos madeirenses numa perspetiva integradora da história da arte no contexto alargado, ou seja, para além do fenómeno regional. Neste sentido, considera que "teremos de filiar o conjunto de tetos mudéjares da Madeira no conjunto geral de trabalhos provenientes da área e dos artifícios de Sevilha, como foi entre nós o caso das importações de azulejos para a Sé, Santa Clara, Santa Cruz”. Dada a qualidade impar dos tetos da Sé, “efetivamente bastante acima de todos os outros exemplares, ainda se poderá avançar com a hipótese de se ter deslocado ao Funchal uma equipa específica para esse trabalho, em princípio, a mando de D. Manuel I e que localmente terá formado e divulgado este tipo de gosto" (CARITA, 1989, 180). Esta possibilidade não só nos parece verosímil como terá pelo menos potenciado o interesse por parte do corpo eclesiástico e da elite local em aceder a tão elaborada e nobre arte. De outro modo, como explicar a profusão destes tetos em igrejas, capelas e casas nobres madeirenses? Também o arquipélago dos Açores acolhe um importante núcleo de tetos de alfarge, muito embora os sucessivos terramotos e tremores de terra tenham destruído a sua grande parte. Importa contudo salientar que consideramos a possibilidade de nos Açores se ter edificado, no período filipino, um segundo ciclo de tetos de Alfarge, reconstruções e construção de novos por via da instalação de famílias castelhanas associadas ao tráfego comercial com a América Latina, situação que terá tido menor importância na Madeira. Do mesmo modo que se dá conta da existência de tetos de alfarge no Continente, anteriores ao período Manuelino, também nos parece plausível ter sucedido o mesmo na Madeira, com a particularidade de se ter estabelecido um roteiro marítimo estratégico com as Praças Africanas. São diversos os testemunhos que dão conta de se terem transportado dessas Praças diversos elementos estruturais e artísticos para Portugal, mas também para a Madeira, e, se os homens da elite portuguesa se deixaram deslumbrar pelo requinte e conforto dos cómodos da aristocracia muçulmana, de que se destacariam os tetos pela sua exuberância e influência nas espacialidades, com alguma probabilidade os mestres e artesãos que trabalharam nesses lugares terão percecionado e, quiçá, aprendido essas técnicas e efeitos artísticos, independentemente da sua condição sociorreligiosa. Cidades como o Funchal e Angra do Heroísmo, entre outras, terão recorrido a técnicos de elevada qualidade e experiência, a título individual ou integrados em contratos integrais de empreitadas de obras reais, da Igreja ou mesmo privadas, da aristocracia local, originando porventura uma continuada prática iniciada no séc. XV. Tais técnicos provavelmente terão origem na Andaluzia, nas Praças Africanas ou nas Ilhas Canárias, e terão sido os primeiros mestres de carpinteiros portugueses da carpintaria de laçaria. O forte núcleo de tetos de alfarge existentes na Madeira, bem como a sua qualidade, sugere que esta arte terá sido muito apreciada durante um largo período de tempo, mesmo depois de, no Continente, já se ter iniciado outro ciclo estético de tetos, o terá permitido a fixação de um número considerável de artífices e respetivos aprendizes. A Sé e a Alfandega distinguem-se precisamente pela magnificência dos tetos de alfarge, com especial relevância para a primeira, de que se destaca o excelente programa pictórico que cobre pranchas de forro, bem como traves, frisos e tirantes. Também no teto do coro alto do Convento de Santa Clara podemos observar uma elaborada pintura, reforçando a tese de que a Madeira terá tido um ciclo de grande erudição na construção de tetos de alfarge. Admitimos que as principais igrejas matrizes construídas ou renovadas neste período terão integrado estes tetos, que seguramente terão procurado distinguir-se entre si, ainda que mantendo a base canónica, principalmente por via da pintura e dos motivos geométricos da carpintaria, alguns notáveis. São exemplos as matrizes da Ponta do Sol, da Calheta e do Loreto. Ter-se-ão perdido o de Santa Cruz e o de Machico, como provavelmente os de outras igrejas desta época. Esta realidade será em tudo semelhante à identidade das capelas públicas e privadas, bem como das que terão sido instituídas por famílias da aristocracia nas comunidades de sua influência, integradas nos solares ou isoladas nas propriedades dos morgados. O seu isolamento e as partilhas conflituosas terão dificultado a sua manutenção, sobretudo a do património integrado e dos tetos de alfarge. As Capelas que mantiveram o teto de alfarge resumem-se à dos Reis Magos, na Calheta, à Capela da Glória, no Campanário, e à de São Paulo, na rua da Carreira, no Funchal. Esta última terá sido mandada construir pelo 1.º capitão donatário em 1426, em madeira, sendo apenas alterada para pedra e cal algumas décadas depois. Este teto de alfarge denota um certo “arcaísmo”, ou seja, a sua expressão revela um inusitado “experimentalismo”, quiçá por via de uma deficiente interpretação das formas, medidas e proporções canónicas. Admitimos estar na presença de um teto executado por uma “interpretação de memória” de alguém com uma prática e um saber insuficientes face ao que esta arte exige, provavelmente um aprendiz. Presumimos que terão existido outras capelas com tetos de alfarge, alguns tardios, que terão introduzido a sua “simplificação”, tal como, em idêntico período e processo, terá ocorrido com a arquitetura tradicional solarenga, de que a capela constituía uma parte indissociável. As denominadas casas de Quinta da tradição madeirense (que antecederam o período da renovação introduzido pelos ingleses no séc. XVIII) constituíram, durante séculos, a expressão da erudição da arquitetura solarenga na região. Salões, câmaras e capelas incorporavam, provavelmente, tetos de linhagem na arte do alfarge. Os pequenos mirantes, nalguns casos, refletiam também a memória do alfarge, como é o caso particular do teto do mirante e da casa de Dona Guiomar, posterior Quinta da Vigia, que foi remontado em 1770, embora já figurasse na planta de Mateus Fernandes de 1567/70. Cidades e Vilas exibiam Capelas como a de São Luís de França, na rua do Bispo no Funchal, e a Capela da Glória, no Campanário (Ribeira Brava), com localizações distintas: uma urbana, de identidade erudita, e outra rural, isolada. Em ambas, podemos observar a “memória” do alfarge na armação simplificada, despojadas de ornamentos geométricos ou de pinturas. Contudo, podemos observar, no caso de São Luís, as incisões do graminho nas traves, bem como a meia-cana no tabuado e sobretudo a passagem do ângulo dos planos inclinados com o “espaço de espera”, de transição, para o plano central. A Capela da Glória será o paradigma de tetos simplificados nesta tipologia, tal como o Solar Welsh (1685) em relação à arquitetura tradicional solarenga. Este pequeno teto apresenta uma armação simplificada, mantendo contudo a proporção dada pelo ângulo dos planos inclinados e, naturalmente, pela transição para o plano central, direito. Curiosamente, e apesar da sua reduzida dimensão, integra cantoneiras com apoios em tudo semelhantes aos que observamos na Ilha do Pico, nos Açores, especialmente o da Casa do Ouvidor, na estrada da Ribeira Seca, em São Roque. Esta “simplificação” dos tetos de alfarge em espaços religiosos surge também em algumas sacristias e/ou espaços de apoio e transição, como será o caso da sacristia do Convento de Santa Clara no Funchal, entre outras de ambos os arquipélagos. Nos Açores, registámos, em diferentes Ilhas, tetos de alfarge implantados em distintos programas tipológicos e em diferentes estados de originalidade e conservação. Contudo, os sucessivos terramotos, de que se destacam o de 1614 e o de 1 de janeiro de 1980, para nomear os mais aparentemente devastadores, terão contribuído para o seu quase total desaparecimento. Este último terá inclusivamente destruído um conjunto de tetos de alfarge que ainda persistiam, apesar de muito alterados, localizados nos grandes edifícios religiosos, como os da Sé de Angra e também dos principais edifícios governamentais, de que é exemplo o Palácio dos Capitães Generais, igualmente em Angra. Mas também conventos e outros edifícios de menor porte, de que destacamos solares, capelas e igrejas paroquiais, tiveram o mesmo infortúnio. Porém, permanecem ainda “memórias” em vários edifícios do núcleo histórico de Angra, destacando-se também um significativo número de tetos de alfarge de média e grande qualidade integrados em alguns dos principais solares da aristocracia terceirense. Destacamos, na Ilha Terceira e na cidade de Angra, as casas das famílias Reis Leite, Pamplona do Couto, Anes do Canto e Cortes Reais, bem como a casa urbana de D. Violante do Canto, posterior Sport Clube, que, com o sismo de 1980, viu o seu último piso derrocar, perdendo-se o teto que teria sido de alfarge, embora o Museu de Angra tivesse recolhido dois escudos de armas de famílias provavelmente com ligações espanholas. Para além destas casas nobres, assinalamos os tetos das casas onde se veio a situar a delegação de turismo. Fora de Angra, registamos o notável teto no solar conhecido como Quinta do Carvão no Caminho de Baixo, datado de 1634, os tetos de pequena dimensão da Quinta da Estrela ou os de quintas dispersas, como a de Santo António e do Espanhol, cuja tipologia de casa quadrada se distingue por ser única. Na Ilha Graciosa, em Santa Cruz, registamos a casa da família Brum do Canto, que, durante as obras de reabilitação, ao se derrubarem os tetos de estuque dos princípios do séc. XX, deixou expostos seis tetos de alfarge praticamente intactos que corresponderão ao modelo generalizado de tetos de alfarge simplificados que se terão vulgarizado nas casas solarengas dos Açores e da Madeira. No piso térreo, no átrio de entrada, o teto é de alfarge de “estrado”, apresentando os barrotes estruturais um conjunto de linhas incisivas e formando uma composição geométrica. Os guarda-pós laterais, ligeiramente inclinados, as meias-canas, que cobrem as juntas do forro, e um friso esculpido no perímetro da parede reforçam o desenho de alfarge. Dos três arquipélagos, serão as Canárias o núcleo mais dominante em termos de tetos de alfarge, quer pela quantidade, quer sobretudo pela diversidade de tipos e execução excecional. A sua forte ligação à Andaluzia através do porto de Sevilha terá sido determinante para o seu surgimento e implementação, pois terá sido de lá que partiu o maior número de arquitetos, mestres e artistas, havendo ainda, porém, a assinalar uma forte ligação à cultura portuguesa e, em particular, à muito apreciada classe profissional dos carpinteiros, nos primórdios do povoamento. Desde praticamente a ocupação das ilhas Canárias que aí se fixaram portugueses, provavelmente os seus primeiros “ocupantes”, para além da misteriosa população local conhecida por Guanches. Já sob domínio castelhano por força do Tratado de Tordesilhas, estes terão continuado a afluir, sendo as profissões de canteiros e carpinteiros as predominantes. Deste facto nos dá conta Maria del Carmen Fraga González em La Arquitetura Mudéjar en Canárias, onde identifica pelo nome e assinala a proveniência e a data da estadia destes profissionais através do respetivo registo notarial. Destacamos, entre um número considerável: “Alvaro Fernández. – Portugués, ‘estante’ en la isla de Tenerife, en 1508 cede, el 17 de octubre de 1508, a su compañero, también lusitano, Diego Alvarez la parte que le corresponde de trabajo y cobro en las casas de Guillén Castellano, en La Laguna [Álvaro Fernández. – Português, ‘fixado’ na ilha de Tenerife, em 1508 cede, a 17 de outubro de 1508, a seu companheiro, também lusitano, Diego Alvarez a parte que lhe corresponde de trabalho e ganho nas casas de Guillén Castellano, em La Laguna]” (FRAGA GONZÁLEZ, 1980, 46). Curiosamente, alguns traços da cultura arquitetónica portuguesa ter-se-ão enraizado neste arquipélago, como deste terão partido para os Açores e a Madeira, fenómeno perfeitamente natural num circuito regional de “torna-viagem” e, consequentemente, “torna-cultura” entre arquipélagos que iam adquirindo especificidades. Maria del Carmen González ilustra estas influências no livro citado, reforçando que existe um tipo de casas nas Canárias que caracteriza como “viviendas urbanas de influência portuguesa”, que “abundaban en Santa Cruz de la Palma en la segunda mitad del siglo XVI [habitações urbanas de influência portuguesa que abundavam em Santa Cruz de la Palma na segunda metade do séc. XVI]” (Id., Ibid., 71). Esta autora refere ainda outras influências dos portugueses, dando o exemplo da construção da porta da antiga sacristia da Paroquial del Realejo Bajo (Tenerife) executada pelos portugueses Duarte Báez e seu filho Simón Gómez, e continua reportando-se a Pérez Embib, que, no seu livro El Mudejarismo en la Arquitetura Portuguesa de la Época Manuelina, assegura: “conjuntos onubense y canário seria la influencia del morisco lusitano, que halla cumplida representación, en este sentido, en la Torre del Castillo de Alvito, la Quinta ‘Sempre Noiva’ en Arraiolos, etc. [conjuntos onubense e canário seria influência do mourisco lusitano, que encontra representação definitiva, neste sentido, na Torre do Castelo de Alvito, na Quinta ‘Sempre Noiva’ de Arraiolos, etc.]” (Id., Ibid., 75). Fica-nos como reflexão que artistas, artífices e arquitetos transitavam entre países, bem como entre novas realidades geográficas que se iniciaram nos arquipélagos atlânticos, para continuarem por outras e longínquas paragens, com especial relevo para o mundo ibero-americano, onde se destacam o Brasil, Cuba, o México, a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Esta realidade vem sobretudo reforçar a tese de que a arte mudéjar é um fenómeno hispânico. Para Enrique Nuere Matauco, dever-se-ão investigar estas ligações: “El estudo de nuestra carpentería debería extenderse a todo lo realizado en América, fundamentalmente por carpinteros salidos de España. También será muy interesante estudar la carpintaría portuguesa, con sus similitudes y discrepancias [O estudo da nossa carpintaria deveria alargar-se a tudo o que foi feito na América, essencialmente por carpinteiros idos de Espanha. Também será muito interessante estudar a carpintaria portuguesa, com as suas semelhanças e discrepâncias]” (NUERE MATAUCO, 2000, 18). O caminho que Portugal traçou no Brasil, em África ou no Oriente não terá, pois, despertado o mesmo interesse que nos territórios hispânicos no que respeita aos tetos de alfarge, mantendo-se, no entanto, em algumas vilas e cidades, parte desta gramática mudéjar associada às carpintarias que atrás reportámos. Como já referimos, a maioria dos tetos de alfarge que identificámos em território português integra-se numa armação simples, abatida à “maneira portuguesa”, provocando um abatimento do ângulo de inclinação e baixando a zona central denominada, em Espanha, almizate (“plano sob as tesouras”). Supomos que esta realidade esteja associada a uma certa simplificação do alfarge em Portugal. Em Espanha, o ângulo de elevação da cobertura parece-nos maior, empinando um pouco mais a respetiva cobertura, em virtude do ângulo estabelecido pelos pares, como se pode verificar no exemplo da Igreja do Convento de São Francisco, em Ayamonte. Estes tetos seguem a tratadística da carpintaria de alfarge espanhola. Em Portugal, o alfarge corrente, associado à casa, parece ter sido assimilado pela proporção dos telhados abatidos portugueses, não se distinguindo de forma evidente dos de origem hispânica. No entanto, importa registar que alguns tetos, nomeadamente de alguns palácios e igrejas portugueses, aparentemente terão seguido regras distintas, aproximando-se de outros de possíveis origens filiadas nas coberturas quase verticais góticas, como as coberturas múltiplas das grandes mesquitas peninsulares ou, ainda, como as coberturas dos palácios compactos, com pátio-claustro, da Andaluzia. Serão casos específicos com essa linhagem os Paços Reais de Coimbra e Sintra e das grandes naves da Sé do Funchal e das Matrizes de Caminha, Ponta do Sol e Calheta, entre outros. De um modo geral, no caso dos solares e pequenos templos, os tetos de alfarge em Portugal, incluindo os da Ilha da Madeira e dos Açores, estarão relacionados com a métrica dos telhados abatidos. Naturalmente que a complexidade de um teto de alfarge, ou de um teto de um telhado de tesouro(a), nada terá de semelhante a uma armação comum. Contudo, se nos abstrairmos da complexidade do alfarge, sobretudo das figuras geométricas decorativas localizadas no núcleo central horizontal (almizate), constatamos que se suprimiram as peças de transição nos quatro ângulos e de descarga para o frechal, razão principal para confirmarmos a simplificação do sistema. Consideramos que estas armações se inscrevem na genealogia da arquitetura tradicional mudéjar portuguesa e que terão na sua filiação múltiplos “contágios” resultantes da continuidade de diversas práticas construtivas de armações comuns. Por vezes, o que verificamos é a separação da armação do telhado, enquanto suporte de telha da armação do teto de alfarge, embora nalguns casos, e inclusivamente no plano geométrico, sejam quase coincidentes, como podemos observar no Palácio de Valeflores, em Santa Iria da Azóia, onde as varas são toscas e o varedo sem forro suporta a telha-vã, enquanto a armação de alfarge apresenta o rigor do cânone tanto nas secções e acabamentos como nas assemblagens dos motivos geométricos. Podemos observar uma situação semelhante na ilha da Madeira, em construções torreadas como a armação do Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, no Caniço, ou a armação quadrangular do teto da pequena Capela do Claustro do Convento de Santa Clara, no Funchal. Numa seleção de exemplos mais eruditos, em termos de tetos de alfarge, anotamos também os mais simples, nos quais a armação do teto e do telhado é coincidente, como o da Capela dos Reis Magos, no Estreito da Calheta, o do Salão Nobre da Misericórdia de Santa Cruz ou ainda o da Capela da Glória no Campanário; e, no caso das casas, assinalamos o teto simplificado do Solar Welsh, na Madeira, e a Casa Brum do Canto, na Graciosa, nos Açores. Retomando os tetos de alfarge em Portugal, diríamos que estes terão evoluído para uma simplificação dos processos construtivos relacionados com a complexidade dos motivos geométricos, o que se denomina por laçaria, em associação com as armações de suporte do telhado. As nossas observações levam-nos a supor que as armações dos tetos de alfarge se terão assim simplificado, sem perder, contudo, as regras de proporção, ou seja, a base do “cânone” imposto pelo processo construtivo e tecnológico e pela “memória” do geometrismo dado pela laçaria, enquanto métrica construtiva, resumindo-se agora ao “troço de espera” entre o plano inclinado (pano) e o plano horizontal (almizate). Os tetos comuns da arquitetura tradicional madeirense que observámos, principalmente no âmbito da arquitetura tradicional, mas também erudita, são compostos por uma sucessão de vigas de secção quadrangular denominados correntemente “varas” (no alfarge, serão os nodilhos), dispostas a partir do frechal até à linha e sobre as quais se aplica o forro, completam-se com os tirantes altos, ou tesouras (no alfarge, serão os pares), e os triângulos, ou tirantes de canto (no alfarge, serão os quadrais). Simples incisões de linhas retas nos bordos das varas dos tirantes/tesouras e nos tirantes de canto serão ainda a memória da laçaria (linhas obtidas através do graminho). O guarda-pó entre varas é constituído por tábuas inclinadas e integradas por rasgos verticais nas faces laterais das varas. Junto ao frechal, ligeiramente elevado para formar uma linha de composição, instala-se o friso de madeira trabalhado em cordão ou simples, definindo este o fim da parede e o início do teto. Por vezes, e em alternativa, recorre-se a uma ripa de meia-cana pregada às juntas do forro entre as varas de construções mais correntes, quer urbanas quer rurais. Todos estes elementos são as “memórias” que permaneceram do alfarge “canónico”, numa nova simplificada identidade filiada nos padrões ancestrais. Alguns destes procedimentos de simplificação já teriam, em parte, sido subtilmente integrados em tetos completos que terão iniciado a transição para a simplificação através de uma “matriz portuguesa”. Entre diversos exemplos, destacamos o teto de alfarge do coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal. A carpintaria desenvolvida a partir dos tetos de alfarge, nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde se terá efetuado um último estágio de simplificação, ter-se-á “propagado” nas arquiteturas das cidades portuguesas do espaço ultramarino. A sua influência terá perdurado durante séculos, não só na sua expressão erudita, mas sobretudo no domínio completo de uma arte que também produzia mobiliário, portas, janelas, varandas, proteções de vãos conventuais em reixa e muxarabis. Uma continuada linhagem de famílias de carpinteiros terá assegurado o saber coevo que se escalonava em aprendiz, oficial e mestre, categorias que chegaram ainda ao séc. XX. Esta terá sido uma das profissões mais valorizadas ao longo dos séculos. A ilha da Madeira, detentora de uma densa floresta rica em madeiras de todo o tipo, cedo terá beneficiado de licenças régias, atribuídas pelos capitães donatários para a construção de serras de água, realidade também comum aos Açores. Nascia assim uma outra linhagem de artesãos, os serradores, que forneciam a madeira em prancha ou em viga, segundo medidas-padrão controladas pelo grémio dos carpinteiros e confirmadas administrativamente por posturas municipais com os respetivos «livros dos regimentos oficiais mecânicos». As medidas eram então em palmos, pés, varas, tosas, provavelmente em tudo idênticas às praticadas no arquipélago das Canárias, que acolheu diversos carpinteiros provenientes da ilha da Madeira, estabelecendo uma relação inter-arquipélagos. Observamos a constância das secções e dos comprimentos das madeiras que compõem as armações, denotando uma assinalável regularidade própria de um fornecimento padronizado de madeiramentos, que, talvez por conveniência de transporte e otimização de paus, no corte na floresta e na serração, se mantinham dentro de medidas padrão para todos os componentes de uma armação mas também por ser mais fácil comercializar e tributar um produto padronizado. Uma das particularidades das armações de alfarge é precisamente a regularidade e rigor das peças que formam um intrincado e eficaz sistema estrutural. A qualidade tecnológica constitui, para além da expressão artística, a sua identidade, a sua distinção, sobretudo por possibilitar superar grandes vãos, mantendo secções esbeltas dos madeiramentos. Desafortunadamente, as casas madeirenses que incorporaram tetos de alfarge terão sido as que menos resistiram ao passar dos séculos. Chegaram-nos fotografias do Solar de Dona Mécia e da casa nobre dos Herédia, e pouco mais, mas seguramente muitos outros terão acolhido salas e câmaras de solares e mesmo de pequenas casas solarengas, muitas delas denotando armações simplificadas de alfarge. António Aragão revelou a nobreza das casas das famílias nobres, nacionais e estrangeiras, que se estabeleceram na Rua dos Mercadores e que terão incorporado nos seus confortáveis aposentos a expressão cultural das famílias originárias de Génova, da Flandres, da Andaluzia e das vizinhas Canárias, entre outras. A casa conhecida como de Colombo, construída ainda no séc. XV, poderá ter sido um dos exemplos. Pela qualidade dos seus vãos de cantaria, denota ter sido uma casa de grande riqueza. As suas câmaras terão provavelmente tido um ou mais salões com armação de alfarge integrados, tal como outros motivos decorativos associados ao mudejarismo, como os tradicionais azulejos hispano-árabes e os pavimentos de tijoleira. Para além das casas urbanas, registamos também algumas casas nobres rurais, como os Solares do Esmeraldo, na Ponta do Sol, ou a Quinta do Morgado, no Arco da Calheta, bem como algumas casas solarengas da nobreza de S. Jorge, na costa Norte, que terão tido provavelmente alguns tetos que se filiavam nas técnicas construtivas dos tetos de alfarge, ainda que com uma grande probabilidade de serem simplificados. Nesse tempo histórico, quase todas estas casas teriam tido, direta ou indiretamente, uma intensa ligação ao comércio marítimo, estabelecendo-se, nesse sentido, relações culturais e político-económicas entre os arquipélagos atlânticos e a Andaluzia, bem como outros territórios. Formou-se, assim, uma comunidade recetora e difusora que, de Portugal e Espanha e respetivos arquipélagos atlânticos, alargou a sua geografia de influência para os territórios ibero-americanos. Através da sua observação in situ, e numa análise comparativa, compreenderemos melhor o fenómeno da sua dispersão e permanência nesses territórios, bem como o seu continuado trânsito em torna-viagem e respetivas transferências. Ao contrário das Ilhas Canárias e de uma parte significativa do mundo hispânico na América, em que esses tetos não só permaneceram como se manteve a arte e a técnica da sua construção durante séculos, na ilha da Madeira tal não ocorreu. A renovação do gosto e a perda da tradição desta carpintaria específica fizeram com que se tivesse perdido grande parte destes tetos. Nalguns casos, o fogo terá sido a sua principal causa de desaparecimento. Desse facto nos dá conta António Aragão, ao relatar o grande fogo ocorrido em 26 de julho de 1593, que terá consumido, em 4 h, 154 casas: “moradas de casas, as melhores e mais principais de toda a cidade” (ARAGÃO, 1979, 175). Infelizmente, assim sucedeu, em pleno séc. XX (1957), com o Solar de Dona Mécia, datado no lintel da porta exterior de 1606, mas aparecendo já na planta de 1567/70, pelo que deve ter sido levantado, dadas as armas que ostenta, por João de Ornelas de Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal. Um outro solar, este de grandes dimensões, terá igualmente perdido os seus tetos, com grande probabilidade, no séc. XX. Reportamo-nos ao Solar da Quinta da Lombada na Ponta do Sol, residência do fidalgo flamengo João Esmeraldo, que o ampliou e enobreceu em 1493, após aquisição a Rui Gonçalves da Câmara, filho do 1.º capitão donatário Gonçalves Zarco, e que, seguramente, teria tido tetos de alfarge. João Esmeraldo construiu quase em simultâneo, mais precisamente em 1495, uma casa no Funchal, a que já nos reportámos como sendo a Casa de Colombo, que foi demolida. O seu construtor foi identificado pelo historiador António Aragão (ARAGÃO, 1979, 114) como tendo sido Garcia Gomes, pedreiro. A sua qualidade arquitetónica e a condição social do seu proprietário levam-nos à possibilidade de aquela ter tido teto(s) de alfarge, tal como os teriam a do mercador castelhano João de Valdavesso e a de Francisco de Salamanca, ambas no Funchal, que eram, segundo António Aragão, “ricas casas e aposentos” (Id., Ibid., 114). Outras causas estarão relacionadas com a perda destas casas, em particular a grande mobilidade da sociedade madeirense e, sobretudo, os grandes aluviões, sendo de especial gravidade o que ocorreu em 1803. Estas calamidades cíclicas ocorreram em praticamente todas as cidades ribeirinhas, desde logo no Funchal, mas também em Santa Cruz, Machico, Ponta do Sol, Calheta ou mesmo São Jorge, e noutras localidades de menor dimensão na costa Norte. Estas levaram seguramente para o mar partes significativas destas urbanidades e com elas edifícios religiosos e da nobreza que ocupavam os melhores terrenos planos. Como exemplo, entre tantos, referimos o claustro e respetivas dependências do Convento de São Bernardinho em Câmara de Lobos. Registamos ainda o forte tremor de terra de 1748, que danificou muitas igrejas e terá destruído muitas construções. Parece-nos possível que esta arte se tenha prolongado durante todo o séc. XVI em ambos os arquipélagos (Madeira e Açores) e, apesar das calamidades e do abandono da sua reparação e conservação, um novo incremento terá ocorrido durante o séc. XVII devido, provavelmente, à ocupação filipina, particularmente nos Açores. Contudo, consideramos que as sucessivas simplificações se terão iniciado ainda em finais do séc. XVI, mantendo-se assim os indispensáveis conhecimentos para o seu (hipotético) recrudescimento no referido período filipino, com recurso a mestres locais, e reintroduzindo-se a arte com o reforço de artífices recrutados nas colónias espanholas e/ou nas Canárias, onde tal arte se terá mantido coerente até praticamente aos finais do séc. XIX. Registamos ainda a inesperada (re)construção de um conjunto de tetos de alfarge no Solar dos Herédia, erigido nos finais do século XVIII na Vila da Ribeira Brava, na Madeira, posteriores Paços do Concelho. Esta família, há muito radicada na região, provavelmente reconstruiu este solar recuperando os tetos de uma anterior casa. Fica, no entanto, a dúvida sobre se estes tetos serão integralmente originais do séc. XVI, altura em que esta família de origem castelhana se radicou na Madeira, e, naturalmente, se os seus autores teriam sido igualmente oriundos de Castela, tal como seria interessante saber se teriam sido os mesmos a integrarem uma potencial campanha de obras de melhoramentos da casa de Dona Mécia, no Funchal. A coerência das armações simples à vista que observámos na arquitetura tradicional rural e urbana (aldeias e vilas) em todo o território português, com particular incidência nas Ilhas Atlânticas, parece-nos resultar de uma prática ancestral, aplicada sobretudo nas casas de “transição” social, ou de tipologia de sobrado, ainda que por vezes de piso térreo, mas de “volume expressivo”. Parte significativa da identidade tipológica das casas a que nos reportamos será consequência da tradição do alfarge e da identidade mudéjar associada, introduzida no séc. XVI em Portugal, ainda que esta, na realidade, já se tivesse enraizado discretamente nos séculos anteriores.   Victor Mestre (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património

calçada madeirense: bordados de pedra a preto e branco

No séc. XVI, Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra, trata com admiração e elogio as “calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, II, 117). De acordo com Sainz-Trueva, a utilização de seixos pretos e brancos na calçada madeirense atingiria o apogeu nos sécs. XVIII e XIX. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofrerá um grande declínio motivado, essencialmente, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa tradição, falta de mão de obra e de motivação da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos salários, menor disponibilidade da pedra natural local e utilização de novos tipos de materiais para pavimentação. Ainda segundo Sainz-Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da cidade e arredores ajudaram a apagar os traços mais característicos da Madeira antiga, cada vez mais confrontada com ventos do progresso, que nem sempre contemplam da melhor forma os testemunhos de uma herança secular” (SAINZ-TRUEVA, 1991, 132 e 133). A calçada madeirense é muito anterior à chamada calçada portuguesa, dela distinta, a qual utiliza pedra facetada, de morfologia aproximadamente cúbica ou paralelepipédica, de cores preta (identificada como sendo basalto) e cinzenta-escura, branca ou rosada (identificada como sendo calcário). A calçada portuguesa, nacional e internacionalmente prestigiada, foi criada em 1842 pelo Ten.-Cor. e Eng.º Eusébio Pinheiro Furtado, quando no comando do Batalhão de Caçadores 5, que, querendo combater o ócio dos seus soldados, os pôs a revestir a parada do quartel com pedrinhas pretas e brancas. A calçada madeirense constitui uma autêntica referência histórica e patrimonial do arquipélago e é um símbolo da geodiversidade litológica local, sendo por vezes confundida com a calçada portuguesa propriamente dita. Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram um conjunto de investigações com os seguintes objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada na calçada madeirense dos pontos de vista textural, petrográfico, químico, mineralógico e físico-mecânico; identificar os locais de proveniência da pedra natural; homenagear os profissionais com um papel ativo na preservação do secular trabalho que envolve a aplicação de pedra de seixo ou de calhau rolado, contribuindo desta forma para a preservação dos ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pedagógica de divulgação da calçada madeirense junto da população e das entidades competentes, sensibilizando-as para a importância da preservação desta técnica, em vez de se proceder à substituição da pedra natural por outros materiais; valorizar o património edificado e dignificar a arte dos trabalhos concebidos com pedra natural, pequena e rolada. Materiais e amostragem A pedra natural local, de origem vulcânica e sedimentar, potencialmente adequada à aplicação na calçada madeirense, e que foi objeto da referida investigação, foi amostrada em depósitos de praia, em pequenos afloramentos de rocha carbonatada e em obras de recuperação de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto Santo. Nos textos consultados e nos diálogos mantidos com alguns estudiosos e profissionais do sector é frequente referir-se serem os seixos brancos feitos de calcário originário de Portugal continental, tendo provavelmente servido de lastro em navios que outrora aportavam ao Funchal. Foi propósito da já mencionada investigação referir os locais de proveniência da pedra natural utilizada nas calçadas; tendo em conta, quer o levantamento já efetuado, quer a extensão da sua aplicação em todo o arquipélago, admite-se que a pedra aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, a recolha dos materiais está restringida a depósitos de algumas praias (figs. 1 e 2) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa Cruz), Madalena do Mar (Ponta de Sol) e Calhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de Dentro (Porto Santo) –, devidamente autorizada pelas autoridades regionais competentes (Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus da Região Autónoma da Madeira e capitania do Porto do Funchal). A amostragem dos materiais nas praias foi feita na baixa-mar, por duas razões (fig. 1): a primeira, porque a secção da praia é mais ampla; a segunda, porque a recolha de material é feita em maior segurança durante a maré baixa.   Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem entre as cotas 0-165 m, correspondendo-lhes idades compreendidas entre os 13,5 e os 18 milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo sido neles identificados foraminíferos, celentrados, briozoários, equinodermes, crustáceos, anelídeos e grande variedade de espécies de lamelibrânquios e de gastrópodes – isto é, nos calcários figuram quase todos os grandes grupos de invertebrados, bem como restos de seláceos e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzindo Silva atribui aos calcários da ilha do Porto Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edificada sob clima tropical a profundidade que não devia exceder os 40 m; normalmente, este tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa e/ou cor branca amarelada.No que diz respeito às rochas carbonatadas, identificadas como sendo calcários recifais marinhos, elas apresentam as cores seguintes: castanha-avermelhada, branca leitosa, branca amarelada ou branca avermelhada. Trata-se de materiais com origem no concelho de São Vicente, na ilha da Madeira (fig. 3), no ilhéu da Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra de Dentro, ilha do Porto Santo (fig. 4). No caso dos calcários que ocorrem no afloramento do sítio dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicente, eles são, essencialmente, recifais, associados a tufos de cor castanha-avermelhada, e aglomerados, cujos fósseis marinhos identificados correspondem a várias espécies de lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes, coraliários, crustáceos e foraminíferos. Dados de geocronologia isotópica apontam a idade de sete milhões de anos (Miocénico Superior) para os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do séc. XXI, puderam ser observados alguns dos antigos depósitos de calcário recifal no sítio do Furtado da Achada do Barrinho, Lameiros, ao percorrer o itinerário turístico-geológico denominado Rota da Cal (fig. 3).   No Museu de História Natural do Jardim Botânico da Madeira pode ser observado um rico e diversificado espólio de exemplares de fósseis marinhos originários das ilhas da Madeira e do Porto Santo. No conjunto, destacam-se, entre os fósseis mais representativos, lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes e algas coralinas, fósseis que apresentam, na generalidade, um elevado grau de preservação, situação que permite a fácil identificação das respetivas espécies. Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada aplicada na calçada madeirense observam-se os exo-esqueletos de várias espécies de fósseis marinhos (fig. 5). Aspetos texturais A população designa vulgarmente a pedra aplicada na calçada madeirense por seixo, calhau ou cascalho rolado – mas, em termos técnicos e científicos, as denominações seixo e calhau não têm o mesmo significado. Efetivamente, em termos técnicos e científicos, os referidos nomes correspondem a designações que estão intimamente relacionadas com aspetos texturais, isto é, com a dimensão e a forma das peças individuais do material pétreo. A escala granulométrica de Chester K. Wentworth, utilizada em sedimentologia, estabelece designações e limites dimensionais para as partículas constituintes dos sedimentos. Nesta escala, a designação calhau é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 256 mm e 64 mm, e a designação seixo é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 64 mm e 4 mm (fig. 6). Por outro lado, o estudo morfométrico dos materiais pétreos – isto é, o estudo das diferentes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na calçada – permite, de acordo com a classificação de Theodor Zingg, definir que eles apresentam, normalmente, forma oblata ou discoidal. Os seixos e calhaus de rocha vulcânica apresentam-se lisos, polidos, entre arredondados e bem arredondados, e a cor escura que exibem é normalmente devida à patine que vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da poluição e da sujidade acumulada. Tipologias e propriedades No âmbito da referida investigação, a caracterização petrográfica, mineralógica e química dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amostrados nas calçadas madeirenses foi realizada no departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das tipologias relevantes. No que diz respeito às rochas vulcânicas, utilizando a relação entre a percentagem de sílica (SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O) adotada no sistema classificativo das rochas vulcânicas proposto por Peter Francis, foi possível definir as litologias seguintes: traquibasalto, traquiandesito e traquito, que apresentam tonalidades que vão desde o cinzento-escuro até ao cinzento-claro (fig. 6); basalto, hawaiíto e representantes do grupo minor varieties, que inclui diversos tipos de rochas vulcânicas menos comuns; normalmente, estes tipos litológicos apresentam cor preta. Os resultados da análise química obtidos por fluorescência de raios X indicam que as amostras estudadas de seixos ou calhaus de calcário do arquipélago da Madeira apresentam teores muito baixos de sílica (SiO2) e de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200 ppm. Diferentemente, no caso das amostras de calcário utilizado em calçada portuguesa (técnica também presente no arquipélago da Madeira), provenientes das localidades de Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa, em Portugal continental, os teores de sílica (SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40 % e 3,19 %. Assim sendo, os resultados analíticos obtidos permitem identificar a origem do seixo e do calhau de calcário aplicado na calçada madeirense, a qual está relacionada com rochas carbonatadas locais (calcário recifal muito puro). De facto, as investigações realizadas mostram que a pedra calcária aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte das ilhas da Madeira e do Porto Santo (figs. 3, 4 e 5). Por sua vez, as propriedades físico-mecânicas dos principais tipos de pedra natural utilizados na calçada madeirense foram avaliadas no Laboratório de São Mamede de Infesta (Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (posteriormente, Laboratório Nacional de Energia e Geologia). A determinação da resistência ao desgaste por abrasão em vários provetes de pedra natural foi realizada através do método de desgaste de Capon. Os resultados obtidos permitem concluir que a rocha traquibasáltica é a que apresenta menor desgaste (0,6 mm), e que o calcário recifal é a rocha que apresenta maior desgaste (4,2 mm). Se observarmos alguns pavimentos pelos quais há grande circulação de pessoas, verificamos facilmente que a superfície superior e exposta da pedra calcária se apresenta plana, ou seja, com maior grau de desgaste, quando comparada com a superfície superior e exposta da pedra vulcânica contiguamente aplicada, que se apresenta abaulada ou convexa (fig. 7). Aplicação da calçada madeirense A calçada madeirense é uma manifestação do património insular madeirense, sendo também testemunho da atividade desenvolvida por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita na maior parte das vezes por mãos anónimas, revela a sensibilidade naïve dos seus autores (e.g., fig. 20) e é um testemunho cultural que merece ser divulgado e preservado. Na feitura da calçada madeirense, a aplicação dos materiais pétreos no terreno poderá realizar-se diretamente sobre uma camada de solo silto-argiloso (designado localmente por cerro). Caso contrário, a aplicação dos materiais passa por diversas etapas: preparação do fundo de caixa com aplicação de tout venant sobre o terreno e colocação de pó de pedra sobre o tout venant e tirada de pontos (fig. 8); colocação da pedra segundo o seu eixo maior (isto é, para um sistema de eixos XYZ, em que X representa o comprimento máximo, Y a largura máxima e Z a espessura máxima) (fig. 9); betonagem das juntas entre as pedras, com uma mistura líquida de calda de areia e cimento, numa proporção de três partes de areia para cinco de cimento (fig. 10); calcamento e nivelamento do pavimento com calcão mecânico e acabamento com maço de madeira de plátano (fig. 11); colocação de areia fina sobre o pavimento, com o objetivo de remover o excedente da calda de cimento e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o varrimento (fig. 12). Para se ter noção do grau de exigência que esta arte de pavimentação implica, marcou-se no chão, com motivo em espinha, a área de 1 m2. Verificou-se que em cada metro quadrado foram aplicados, em média, 1023 seixos. Este valor é elucidativo dos milhares de seixos que foram utilizados para fazer o pavimento de calçada madeirense que existe no jardim municipal do Funchal (fig. 13). Tendo em conta a proveniência dos materiais, pode dizer-se que se assemelham a praias que foram transferidas para o espaço urbano e rural. Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos Pessoa introduziu uma alteração à calçada madeirense tradicional – a variante de calçada madeirense com pedra partida; trata-se de um pavimento menos escorregadio e que oferece maior atrito ao calçado, permitindo melhor andamento e mais conforto (fig. 14).   Motivos A calçada madeirense pode ser construída utilizando unicamente calhaus e seixos de rochas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais ou menos escura, cuja monocromia é quebrada devido às diferentes orientações conferidas pela disposição dos materiais (figs. 14 e 17). Quando são utilizadas rochas vulcânicas e sedimentares, a policromia a preto e branco apresenta uma grande diversidade de padrões e temas geométricos e florais estilizados que ornamentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, palácios, casas, quintais e jardins (figs. 15-22). Muitos dos motivos dos pontos do bordado da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, corda, granitos e richelieu – foram aproveitados pelos calceteiros para serem representados na decoração da calçada madeirense. O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, é talvez o local que reúne a maior diversidade de padrões e de motivos geométricos e florais estilizados, com vários pontos de bordado da Madeira.   No pavimento, predomina geralmente o material mais abundante, isto é, calhaus e seixos de rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas rochas sedimentares para realçar alguns aspetos florais, brasões de armas, monogramas, datas e a cruz de Cristo (figs. 23 e 24). Os pavimentos de calçada madeirense apresentam pouca reflexão da luz e são facilmente limpos utilizando a tradicional vassoura de urze.   Preservação Em meados da segunda déc. do séc. XXI, a calçada foi modificada e adulterada em alguns espaços, com a aplicação de materiais estranhos a esta técnica e com a remoção de motivos. A pedra rolada foi substituída por cubos e paralelepípedos de mármore e coberta por argamassas de areia, cimento e material betuminoso, ou por alcatrão (figs. 25 e 26).   Na requalificação urbana que ocorreu no núcleo histórico de Câmara de Lobos, o antigo brasão do concelho – que estava colocado no adro da igreja de S. Sebastião, fazendo parte de um tapete de pedra rolada – deu lugar a um pavimento de “calçada madeirense” de blocos e calhaus partidos; perdeu-se, assim, o único exemplo de heráldica municipal em calçada madeirense construída no arquipélago, restando dela apenas registos fotográficos (fig. 27).Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na zona velha do Funchal, foi observada a existência de diferenças cromáticas entre as argamassas em algumas obras de recuperação, viu-se serem muito diferentes as dimensões dos seixos utilizados e serem os espaços entre pedras roladas – porque grandes – preenchidos por argamassa.  Nas travessas da Malta e do Redondo, o pavimento de calçada madeirense foi coberto por tapete betuminoso. Noutros locais, verificou-se ser total o abandono da calçada, como no caso dos passeios na estrada do João Abel de Freitas e na estrada da Boa Nova, e advir grande perigo – tanto para peões como para utilizadores de viaturas motorizadas – das pedras, encontrando-se estas soltas entre a estrada e o passeio (fig. 28).   O desenvolvimento das raízes das árvores de grande porte destruiu e só ergueu por vezes o pavimento – como aconteceu na capela de N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria Amélia –, carente de trabalhos de manutenção regulares.No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na ilha do Porto Santo, observou-se a presença de grandes manchas de cera, com origem no pagamento de promessas feito por alguns fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior remoção. Durante a referida investigação, teve-se oportunidade de acompanhar diversas obras de recuperação de antigas calçadas e de construção de novas pavimentações. Exemplos disso mesmo são o antigo palacete dos Zinos, posteriormente palacete do Lugar de Baixo, recuperado em 2004 pelo Governo Regional da Madeira (GRM) (fig. 29); os jardins de Santa Luzia, recuperados em 2004 pela Câmara Municipal do Funchal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma menção honrosa na categoria de espaços exteriores de uso público, no quadro do Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista, em 2005) (fig. 30); o pavimento onde está representado o cronograma dos vários Batalhões de Infantaria e dos Caçadores na Universidade da Madeira, recuperado por calceteiros da Câmara Municipal do Funchal, em 2008 (figs. 31 e 32).   A preservação da calçada madeirense, nas antigas quintas e jardins públicos e privados, casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste-se de uma importância crucial, especialmente para os núcleos e zonas históricas das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a profissão e a formação do calceteiro é imprescindível para a manutenção dos referidos espaços. Além disso, o património material da calçada madeirense constitui um legado de grande valor, sob os vários aspetos da sua composição, da diversidade dos materiais geológicos utilizados, com presença de fósseis marinhos, e da diversidade de padrões construídos e desenhados.   João Baptista Pereira Silva Celso de Sousa Figueiredo Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património Geologia

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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urbanismo do estado novo

A arquitetura em Portugal sofreu alguma estagnação entre o final do século XIX e a Primeira República, em parte motivada por um certo isolamento da sociedade da época e, neste caso particular, pelo frequente aproveitamento e adaptação dos edifícios das comunidades religiosas extintas para alojar serviços e repartições públicas. Para tal, muito terá contribuído a crescente contestação à governação monárquica e a afirmação dos ideais republicanos, que preconizavam o afastamento da Igreja do poder político, bem como a cativação de muitos dos seus bens, que passaram para a posse do Estado. Cumulativamente, podia constatar-se que os arquitetos, como classe profissional, tinham então também escassa relevância social e cultural, por um lado devido à escassez de projetos, mas também à concorrência com os engenheiros civis, que lhes disputavam as encomendas. Entre arquitetos e engenheiros travou-se um contínuo debate, pois considerava-se que aos primeiros se associavam, fundamentalmente, as questões formais e estéticas, minimizando os problemas construtivos, meramente técnicos ou estruturais. Deste modo, inicialmente os arquitetos não exploraram devidamente as potencialidades dos novos materiais e sistemas construtivos, dando oportunidade aos engenheiros de ensaiarem e concretizarem nas obras públicas e utilitárias os novos elementos como o ferro, o vidro, o aço e o betão armado. Assim, os engenheiros assumiram particular importância, pois a aposta estava na criação de um mundo moderno, baseado nas potencialidades e inovações da máquina. Em Oitocentos o contributo para o aparecimento de obras, sobretudo utilitárias, deveu-se ao avanço da industrialização no país, onde se evidenciou a arquitetura do ferro. Este material, conjugado com materiais tradicionais e trabalhado com desenhos e formas revivalistas, contribuiu para a expansão de uma arquitetura eclética, sendo gradualmente substituído pelo betão armado. A diversidade que se podia observar na arquitetura portuguesa de então traduzia bem as incertezas estilísticas da época. A esse ecletismo o arquiteto Raul Lino (1879-1974) soube contrapor, com grande intuição cultural, o seu princípio de casa portuguesa. Ao apelar para um romântico ruralismo e até mesmo eclético nacionalismo, a casa portuguesa de Raul Lino procurou a definição do sentido da cultura e da alma portuguesas. Lino baseava-se, sobretudo, na nostalgia e na procura metafísica das raízes culturais e mentais do nosso país, sendo contra a importação de modas estrangeiras, nomeadamente francesas, protagonizadas pelos arquitetos Ventura Terra (1866-1919) e Marques da Silva (1869-1947). O singular modo de Raul Lino abordar a arquitetura, bem diferente das ideias que Marques da Silva e Ventura Terra tinham adquirido em Paris, terá, certamente, provindo da sua educação repartida por Portugal, Inglaterra e, especialmente, a Alemanha. Ali, Raul Lino frequentou a Handwerker und Kunstgewerbeschule e a Technische Hochshule de Hannover tendo praticado no atelier de Albrecht Haup (1852-1932), arquiteto conhecedor e apreciador da arte portuguesa da Renascença. Com ele, certamente, terá aprendido que a reinvenção da arquitetura deveria basear-se no conhecimento da mais brilhante época de cada país, que em Portugal se situava por volta dos séculos XVII e XVIII. Na sua obra sente-se a procura constante por uma perfeita integração no meio, que o levou a adotar técnicas e materiais das regiões às quais se destinavam os projetos. Deste modo valorizou, por um lado, o nacionalismo, por outro, uma arquitetura de caráter regional. Miguel Ventura Terra e Marques da Silva, arquitetos da mesma geração, protagonizavam um outro modo de ver e projetar. De regresso a Portugal, ambos em 1896, fixaram-se o primeiro em Lisboa e o segundo no Porto. Ventura Terra, republicano convicto, ganha nesta data o concurso internacional de adaptação do velho convento de S. Bento a Palácio das Cortes e inicia assim o seu percurso de arquiteto em Portugal projetando a transformação de um espaço religioso às suas novas funções. Estes dois arquitetos cosmopolitas desenvolveram os seus projetos numa linha mais conforme com o gosto dos grandes centros europeus, aliando-os a uma prática eclética dominante na arquitetura portuguesa de inícios do século XX. Da sua produção destaca-se essencialmente a introdução de um racionalismo e de um sentido europeizante numa arquitetura que passara por um período de pouco desenvolvimento. À volta destes pressupostos construía-se o percurso da arquitetura moderna em Portugal. Foi um percurso com avanços e recuos, numa adesão formal a vários revivalismos historicistas ou ecletismos mais académicos, que se articulavam com uma progressiva utilização de novos materiais. Num país política e culturalmente conturbado, a aprendizagem parisiense não pôde ser plenamente exercida, apesar dos esforços por encontrar caminhos de prosperidade para a sua implantação. A burguesia que se afirmava nos grandes centros urbanos não se revia numa arquitetura de feição europeia nem se ajustava ao gosto parisiense. Nos inícios da década de 20 de Novecentos alguns fatores contribuíram para relativas mudanças no domínio da arquitetura portuguesa. Por um lado, o registo de uma ligeira recuperação no setor económico português, que originou algum investimento na arquitetura, especialmente na de caráter particular. Por outro lado, a acompanhar este desenvolvimento esteve um fator de ordem política, mais concretamente a substituição do governo republicano pelo governo do Estado Novo, que apoiou a construção de alguns edifícios modernistas, apostou nas obras públicas e contribuiu para a crescente relevância e ascensão da classe dos arquitetos. A progressiva utilização do betão armado, inicialmente em paralelo com processos tradicionais de construção, favoreceu a assimilação de novas formas arquitetónicas ligadas a uma estética modernista. O betão armado permitiu uma grande flexibilidade na construção de elementos com maior simplicidade formal, numa clara adesão à art deco de características internacionais. Assistimos, nesta fase, a uma renovação técnica e estilística da arquitetura, a que correspondem edifícios que ainda ostentam uma estrutura convencional, com linhas verticais nas fachadas, paredes de alvenaria e tijolo, pavimentos de madeira e uso esporádico do betão. A decoração adotada é geometrizante e de alguma forma sublinha o abandono do gosto barroquizante, característico dos finais de século XIX. Ao longo dos anos 20 inicia-se a atuação da primeira geração de arquitetos modernistas, conhecida por Geração do Compromisso e constituída pelos cinco grandes: Cassiano Branco (1897-1970), Pardal Monteiro (1897-1957), Cristino da Silva (1896-1976), Carlos Ramos (1897-1969) e Jorge Segurado (1898-1990). As suas propostas deram o arranque para uma nova mentalidade arquitetural que se afirmou nos anos 30, sobretudo associada a programas fomentados pelo Estado Novo, que se caracterizou por um forte investimento em obras públicas, como programa de melhoramentos materiais e estratégia de absorção do desemprego. O engenheiro Duarte Pacheco (1900-1943) foi o grande impulsionador deste vasto programa, até à sua inesperada morte em 1943, tendo sido criadas novas oportunidades para os jovens artistas e arquitetos que foram chamados a intervir. Segundo José Manuel Fernandes, é evidente a apropriação de uma estética vanguardista com conotações diversificadas, que passam pelo futurismo italiano e o nacionalismo funcionalista alemão, se algumas vezes de forma superficial, noutras já bem eclética (OLIVEIRA, 2000, 10). Este programa estético encontrou obstáculos nos autores que pugnavam por uma arquitetura mais conservadora e nacionalista, que deveria mostrar a especificidade portuguesa com referências genuinamente retiradas dos chamados estilos nacionais. Em 1933, Raul Lino defendia que «o internacionalismo na arquitetura devia ser proibido superiormente, se não houvesse já razões de ordem técnica e material para ser condenado». E afirmava mesmo que deveria ser imposta a máxima: «Façam-se casas portuguesas em Portugal» (Ibid.). A discussão iria gerar ainda mais polémica nos anos 40, quando Arnaldo Ressano Garcia (1880-1947), presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes e seguidor das teorias estéticas nazis, se opôs determinantemente aos modernismos suspeitos de internacionalismo marxista e preconizou uma arte de regime celebrativa, monumental e fortemente académica. Com esta atitude, nos anos 40 ganharam força o gosto revivalista e um certo retrocesso estilístico que foi ao encontro de encomendas estatais de obras de representação com a sua monumentalidade, algo bem patente na arquitetura dos pavilhões da Grande Exposição do Mundo Português, de 1940. Esta iniciativa concretizou-se em Lisboa, na zona de Belém, junto ao Mosteiro dos Jerónimos, tendo reunido trabalhos dos principais arquitetos, artistas e decoradores portugueses e obedecendo plasticamente a um estilo português de 1940. É um estilo oficial, de cariz historicista e monumentalista, que associa elementos representativos da arquitetura nacional com elementos de tendências clássicas. Com este evento, sobressaiu não apenas o aspeto retrospetivo, mas também a celebração da política do Estado Novo. Duarte Pacheco [Campo] e António Ferro (1895-1956) foram os grandes mentores deste acontecimento, incluído num vasto programa de comemorações centenárias que aconteceram por todo o país. É a fase da exaltação do portuguesismo, em que a arquitetura é chamada a expressar os valores da tradição, ordem e autoridade, com António Ferro no Secretariado da Propaganda Nacional. Surgem assim projetos urbanísticos de grandes espaços, como o Parque Eduardo VII e a Fonte Luminosa, e nas cidades portuguesas os prédios de habitação dos anos 40 a 50 seguem este modelo. No caso de Lisboa, «A Câmara fornecia as plantas, convidava certos projetistas e obrigava à inspiração em fachadas de três ou quatro imóveis do século XVIII existentes em Lisboa» (FERNANDES, 1990, 279). Também na construção da habitação individual se recorre a uma gramática decorativa de cariz regionalista e ruralizante, bem como no equipamento das províncias, em escolas primárias ou edifícios dos correios. Muitas das intervenções dos primeiros anos da década de 40 espelham a busca do rigor clássico, da monumentalidade, de estádios e alamedas, de uma retórica de poder. São de assinalar, como núcleos de excelência, a construção da Cidade Universitária (1940 a 1953), da Biblioteca Nacional (finais da década de 50) ou do Estádio Nacional (1943-1944) de Miguel Jacobetty Rosa (1901-1970). Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a condenação internacional dos fascismos, instala-se um clima de agitação cultural e afirma-se um grupo de arquitetos oposicionistas liderados por Keil do Amaral (1910-1975). Forma-se o grupo ICAT (Iniciativas Culturais Arte e Técnica) e constitui-se no Porto a Organização dos Arquitetos Modernos (ODAM). Com a realização do I Congresso Nacional de Arquitetura, em 1948, que coincide com a Exposição Quinze anos de Obras Públicas, dá-se o ponto de viragem, pois são feitas ácidas críticas à arte oficial e exige-se a liberdade de criação e a valorização da modernidade. A década de 50 irá ser confrontada com a resistência dos modelos da Europa pós-guerra e de Brasília, que tiveram grande peso, enquanto se mantém o estilo oficial na construção dos hospitais escolares de Lisboa e Porto, do alemão H. Distel, ou da Cidade Universitária de Coimbra, de José Ângelo Cottinelli Telmo (1897-1948). Como sinais de uma certa renovação, são de salientar o plano de urbanização de Alvalade, do arquiteto urbanista João Guilherme Faria da Costa (1906-1971), também com obra no Funchal, em 1945, o cinema S. Jorge, em 1947, e o cinema Império, de 1949 a 1951, de Cassiano Branco. Na Madeira, no campo da arquitetura, poder-se-ão constatar idênticas facetas na evolução da arquitetura urbana de 1900. Tal como no Continente, poucas obras de vulto se edificaram nas duas primeiras décadas. Na cidade do Funchal, surgiram projetos de menor vulto, sobretudo de adaptação de edifícios urbanos a estabelecimentos comerciais ou pequenos projetos de habitação civil, que ficavam a cargo de mestres-de-obras ou desenhadores técnicos com formação adquirida na antiga Escola António Augusto de Aguiar, que passou a designar-se por Escola Francisco Franco. Fernando Augusto Câmara (1880-1949), nascido na freguesia de Santa Luzia, e António Agostinho Câmara (1872-1949), nascido em Machico, eram então desenhadores técnicos da edilidade funchalense que se ocupavam daquele tipo de projetos. No Funchal já os autores do Elucidário Madeirense referiam, em pleno Estado Novo, que «o número dos seus moradores vai diminuindo consideravelmente, porque o movimento comercial tende sempre a desenvolver-se e as casas de habitação vão-se transformando em estabelecimentos de comércio» (SILVA e MENESES, 1998, I, 183). Estes profissionais respondiam às solicitações do mercado regional traçando o panorama regional da arquitetura urbana. Eram escassos os edifícios de utilidade pública construídos para a função a que se destinavam, apesar das necessidades sentidas pela população. Com a visita dos reis de Portugal, D. Carlos e D. Amélia, ao Funchal, em 1901, surgiram novas promessas e no ano seguinte foi criado o Auxílio Maternal do Funchal. Ganhou força também a necessidade de construir sanatórios de altitude para tratamento de tuberculosos, constituindo-se no ano de 1904 a Companhia dos Sanatórios da Madeira. Foram adquiridos terrenos para esse efeito e no ano seguinte foi lançada a primeira pedra do edifício do Sanatório dos Marmeleiros, na freguesia do Monte. Já no ano de 1906 foi criado em São Gonçalo o Manicómio Câmara Pestana, cujos doentes do sexo masculino foram transferidos para a Casa de Saúde de João de Deus, no sítio do Trapiche, em 1924. No centro da urbe funchalense, tem lugar, em 1906, a demolição de edifícios na embocadura da Rua dos Ferreiros, para permitir o prolongamento da Rua do Príncipe, posteriormente chamada Rua 5 de Outubro, até à Ponte do Bettencourt e a conclusão do prolongamento da Rua do Bom Jesus, desde a Rua das Hortas até ao Campo da Barca, troço que passou a designar-se por Avenida João de Deus. Também nesse ano, efetuaram-se obras junto ao Forte de São Filipe do Pelourinho, ao lado do qual se ergueu um estabelecimento de moagem denominado Fábrica de São Filipe, e foi demolido o Portão da Rua dos Aranhas, localizado na confluência desta artéria com a Rua da Ponte de São Lázaro. Em 1911, um ano após a implantação da República, a Câmara do Funchal procedeu à demolição do Portão dos Varadouros e do Mercado da União, erguido em 1835 no local onde se levantava a Igreja de Nossa Senhora do Calhau, para alargamento da rua. Na sequência das alterações introduzidas pelos republicanos, o edifício do Paço Episcopal, situado na Rua do Bispo, e a respetiva cerca foram cedidos à Direção-Geral de Instrução Secundária no ano de 1913, para ali ser instalado o Liceu do Funchal, que funcionava na Rua dos Ferreiros desde 1881.  No âmbito urbanístico, as obras que se implementaram na cidade do Funchal nas duas primeiras décadas de 1900 seguiram o modelo de crescimento ditado na capital portuguesa. Ao conceituado arquiteto Miguel Ventura Terra, as entidades regionais solicitaram um Plano de Melhoramentos para o Funchal. Em 1915 a Câmara acusou a receção de uma das cópias; a segunda ficou com a então Junta Agrícola. Nos primeiros anos da República, se em Lisboa houvera a abertura da Avenida da Liberdade, assente na destruição do Passeio Público, no Funchal procedeu-se à demolição do velho edifício que servira de Cadeia, possibilitando o prolongamento do Largo da Sé até à Rua da Praia, dando origem à então Avenida António José de Almeida. Esta Avenida beneficiou de novo prolongamento em 1920, altura em que, com a necessária autorização do Ministério da Guerra, se procedeu à demolição de um troço da muralha da cidade. Neste arquipélago, o gosto pelas grandes vias públicas prosseguiu com a construção da Avenida Elias Garcia e de parte da Avenida de Oeste, projetada por Ventura Terra no seu Plano de Melhoramentos. Na primavera de 1914, a edilidade funchalense colocou-se em acordo com a Junta Geral do Distrito, tendo decidido destacar do projeto apenas a construção da parte compreendida entre a Sé e o Jardim Pequeno, troço que se concluiu em maio de 1916 e que foi designado por Avenida Dr. Manuel de Arriaga, altura em que a Junta Geral oficiou ao comandante militar da Madeira pedindo para que a banda regimental ali atuasse, visto «se acharem concluídos os trabalhos» (VASCONCELOS, 2008, 35). A instabilidade política da época, com sucessivas quedas de governo e a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra, a partir de março de 1916, fez agravar as dificuldades já sentidas no arquipélago madeirense, deixando para trás a concretização do plano de Ventura Terra que se revelou «demasiado luxuoso» para a época (Id., Ibid., 40). As circunstâncias da época arrastariam no tempo a concretização parcial de um projeto demasiado arrojado e megalómano que não foi capaz de reunir as condições para a sua efetivação, e que por isso, não passaria de uma intenção, tal como foi projetado. Precisamente no ano em que Ventura Terra conclui o seu Plano de Melhoramentos, que propunha uma profunda remodelação urbana do Funchal, a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal, criada em 1913, solicitou ao engenheiro Furtado de Mendonça a elaboração de um projeto para o prolongamento e alargamento do cais da Entrada da Cidade. Enquanto se projetavam estas ideias, vão realizar-se no Funchal imponentes festejos e um cortejo histórico comemorativo do V Centenário do Descobrimento da Madeira, que se prolongou até janeiro de 1923. Numa fase de amplo debate acerca do alargamento da autonomia insular e de grande instabilidade republicana, diversas personalidades difundiram na imprensa local a sua opinião, destacando-se o fundador do Jornal da Madeira, Luís Vieira de Castro (1898-1954), que defendia que a Madeira deveria “poder impor a sua vontade às orelhas demasiadamente surdas do Terreiro do Paço” (GUERRA, 2010, 194). Sobretudo, contestavam-se as precárias condições do porto do Funchal, os reduzidos recursos financeiros da Junta Geral e a excessiva carga tributária, acrescida de um adicional de 5% sobre os direitos de exportação para custear as obras do porto de Leixões. Muitas publicações de periódicos animavam as discussões em torno das questões políticas da época e faziam eco da visita ao Funchal do Presidente da República, António José de Almeida, bem como da participação de António de Oliveira Salazar (1889-1970), que visitou o Funchal, na qualidade de conferencista, por convite de Juvenal Henriques de Araújo (1892-1976), presidente da Juventude Católica do Funchal, em abril de 1925. Após o golpe militar de maio de 1926, chefiado pelo general Gomes da Costa, foi assinado o decreto que aprovou a reparação dos estragos causados no molhe do porto de abrigo da pontinha e seus cais, sendo a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal autorizada a negociar, com a Fumasil Company, de Londres, um contrato para a construção do porto do Funchal. No ano seguinte, foi inaugurado o primitivo Estádio dos Barreiros, construído por iniciativa do Clube Desportivo Nacional, e foram publicados vários decretos do Governo com disposições específicas sobre diferentes setores da vida dos madeirenses. Surgem assim novas determinações sobre o regime do açúcar, do álcool e da aguardente, e extinguem-se as administrações do concelho, revogando legislação anterior. Determina-se nessa altura a ligação do Caminho do Til com a Levada de Santa Luzia e o edifício do Sanatório dos Marmeleiros, que era pertença do Estado, é concedido à Misericórdia do Funchal. Os acontecimentos da época fizeram nascer, em 1929, o humorístico Re-Nhau-Nhau, com a promessa de deixar como grande obra a capacidade de acompanhar e criticar, com sabedoria e sentido de humor, tudo o que estivesse relacionado com a vida dos funchalenses. Nesse mesmo ano, a Câmara do Funchal pretendeu transformar a Quinta Vigia num jardim público com campos de jogos, tendo sido autorizada a contrair um empréstimo de 7000 contos destinados às diversas obras de saneamento da cidade. A vontade de transformar fazia-se sentir e a Junta Geral do Distrito deliberou o prolongamento da Avenida Dr. Manuel de Arriaga, desde a confluência com a Rua de São Francisco até à Ribeira de São João. Estas obras implicavam um corte na parte sul do Jardim Municipal para possibilitar o crescimento da nova avenida. No seguimento desta importante obra e no mesmo ano de 1930, a Junta Geral do Distrito, em parceria com a Câmara Municipal do Funchal, pretendeu ainda proceder à abertura da Avenida Zarco para norte. O projeto suscitou uma imensa polémica, pois implicava a demolição parcial do edifício seiscentista da Misericórdia, pelo que não se concretizou de imediato. A falta de verbas para o efeito serviu também de argumento, numa fase de crise generalizada com que se debatia o arquipélago, e que iria prolongar-se pelos anos 30. Logo em finais de 1930, com efeito, faliram as duas principais casas bancárias desta Ilha, Henrique Figueira da Silva e o Banco Sardinha & Ca. Foi criada uma Comissão Liquidatária e determinou-se que a liquidação da casa bancária de Henrique Figueira da Silva (1868-1956) se efetuasse no prazo de dois anos. O vasto património do banqueiro foi arrematado em praça e incluía a Fábrica de São Filipe do Pelourinho. Os ingleses Harry Hinton (1859-1948) e John Ernest Blandy (1866-1940) foram comprando o que puderam, não só do seu espólio mas também de algumas firmas que o banco financiava. No início do ano seguinte, entre 4 e 8 de fevereiro, surgiram perturbações de ordem pública que ficaram conhecidas pela Revolta da Farinha e associadas ao decreto que concedia aquele monopólio a um grupo específico de moageiros. Dois meses mais tarde, surgia novo levantamento, então um pronunciamento militar, conhecido pela Revolta da Madeira, levando o governo a declarar o estado de sítio na Madeira e a determinar o encerramento do porto a toda a navegação e comércio até ao final do ano. Em 1936, nova perturbação que ficou conhecida pela Revolta do Leite. Perante estes acontecimentos, e considerando o descontentamento acumulado, as vozes de mudança falaram mais alto. A Câmara do Funchal pretendia a modernização da cidade e, em parceria com a Junta Geral do Distrito, encarregou o arquiteto Carlos Ramos, após a sua passagem pela Madeira, em dezembro de 1930, de elaborar um projeto de embelezamento da cidade. Carlos Ramos fora aluno de Ventura Terra e não é de estranhar que tenha retomado algumas propostas do seu mestre e as tenha aplicado no Plano de Urbanização para o Funchal de 1931-1932. Os vários trabalhos que constituíam este plano de 1931-1932, de Carlos Ramos, ficaram expostos, no início de fevereiro de 1932, primeiramente no atelier do arquiteto, em Lisboa, e, logo a 29 do mesmo mês, nos Paços do Concelho, no Funchal. O plano de Carlos Ramos para o Funchal deu seguimento à linha de atuação do novo regime que, sobretudo na sua fase de desenvolvimento e consolidação (1933-1938), já Estado Novo, utilizou o Ministério das Obras Públicas, liderado pelo engenheiro Duarte Pacheco, como veículo de propaganda ideológica, com uma série de realizações que apoiaram e desenvolveram uma política de combate ao desemprego e de fomento económico do país. Este Ministério constituiu, desde logo, a grande aposta do novo poder, em tantos aspetos comparável ao fontismo oitocentista. Mas, enquanto naquele período a política de obras assentou sobretudo em investimentos particulares e na iniciativa privada, no novo regime estas obras foram, acima de tudo, um investimento do Estado e uma forma de combate ao desemprego. Faziam parte do plano de Carlos Ramos o estudo de fontenários para a cidade e a construção de um Pavilhão para Tuberculosos, destinado a construir-se no terreno junto aos Marmeleiros, pertencente à Misericórdia do Funchal. O Plano contava, igualmente, com a abertura de avenidas, onde o arquiteto retomou algumas propostas do seu mestre Ventura Terra quando pretendeu fechar a Ribeira de João Gomes, cobrindo-a de betão, assim como a de S. João e de Santa Luzia, transformando-as em avenidas. Apontava o prolongamento da Avenida Arriaga, para a qual projetou um conjunto de quatro moradias modernistas, tendo-se iniciado o processo de expropriações para o efeito. Tratava-se aqui da Avenida Oeste do projeto de Ventura Terra, reformulado por Carlos Ramos em 1931. Para dar continuidade a esta avenida, em 1934 são concedidos 293 contos à Junta Geral do Distrito para os trabalhos do segundo lanço da obra, entre a Rua do Jasmineiro e a Rua do Favila. Por via do mesmo plano iniciam-se também os trabalhos preliminares para as obras da Avenida Marginal, na Rua da Praia, cuja proposta inicial surgira com Ventura Terra, realizando-se levantamentos topográficos nessa área da cidade e mandando retirar as barracas da praia fronteira à Praça do Marquês de Pombal, antiga Praça da Rainha. Nesta data, iniciaram-se ainda as obras do porto do Funchal com a perfuração do Ilhéu de Nossa Senhora da Conceição e foi apresentado na Junta Geral o projeto de prolongamento da Avenida Zarco até ao Largo da Igrejinha, da responsabilidade do arquiteto Edmundo Tavares (1892-1983) e do engenheiro Abel Vieira (1898-1972) tendo a mesma Junta, devido às polémicas em torno desta obra, oficiado ao ministro das Obras Públicas e Comunicações a vinda ao Funchal de uma comissão para que emitisse em definitivo a sua opinião sobre a abertura ou não desta artéria no prolongamento da entrada da cidade. Determinou, igualmente, esta comissão da Junta Geral que no cruzamento destas duas avenidas seria colocada a estátua de Gonçalves Zarco, da autoria do escultor madeirense Francisco Franco (1885-1955), vindo a inaugurar-se nos inícios de setembro de 1937 esta nova avenida, que seguiu a direito, não obstante implicar a demolição da parte oeste do frontispício do edifício da Misericórdia do Funchal. Enquanto isto, o engenheiro Aníbal Augusto Trigo (1865-1944) procedia a uma revisão do projeto da rede geral de esgotos elaborado por ele e seu irmão Adriano Augusto Trigo (1862-1926), em 1899. Para rever o projeto, foi chamado também o diretor das obras públicas municipais, em março de 1933. O plano de Carlos Ramos previa outros melhoramentos, como a plantação de árvores no Largo do Socorro e a colocação de bancos de jardim. Previa ainda um jardim público do litoral entre o Savoy e o Hotel Atlantic, até ao Largo António Nobre, com miradouros, relógios de sol, relvados, bar e espaços destinados às crianças. Integrado também neste plano de urbanização de Carlos Ramos estava o projeto, de pesado gosto neopombalino, para a Câmara Municipal de S. Vicente, que nunca chegou a realizar-se. A crise generalizada que persistiu no arquipélago ao longo dos anos 30 teve reflexos no bem-estar da população madeirense. No campo da saúde, perante o crescente número de casos de tuberculose, a Direção da Assistência Nacional aos Tuberculosos resolveu estender à Madeira a sua ação, deliberando mandar edificar no Funchal um dispensário cuja planta foi da autoria do arquiteto Carlos Ramos, que obteve o primeiro lugar no concurso. Com efeito, se analisarmos as características formais do Dispensário Antituberculoso, chamado depois Dr. Agostinho Cardoso (1908-1979), situado no Campo da Barca, no Funchal, concluído em abril de 1933, verificaremos que o mesmo obedece ao estilo adotado para todos os dispensários da Associação Nacional de Tuberculosos. Ali observam-se elementos típicos da arquitetura regional, numa adesão aos conceitos do português suave, de Raul Lino, apoderados pelo Estado Novo, como a utilização de alpendres e floreiras, mas também o uso sistemático de cantaria rija, material abundante na Ilha. O estudo da arquitetura na Madeira nos anos 30 de 1900 passa também por uma análise à obra do professor e arquiteto Edmundo Tavares que, em 1932, se fixou no Funchal após ter sido nomeado professor efetivo na antiga Escola Industrial e Comercial de António Augusto de Aguiar, depois Francisco Franco. Aquela nomeação estará certamente relacionada com a criação, por parte do engenheiro Duarte Pacheco, então ministro das Obras Públicas, de delegações nas diversas regiões do país para cuidarem da introdução do novo figurino oficial do Estado Novo. A obra de Edmundo Tavares é relevante no Funchal, nomeadamente no que respeita ao desenvolvimento da arquitetura moderna, pois são dele os primeiros exemplares arquitetónicos ao gosto moderno construídos na Ilha. O seu percurso no arquipélago reflete uma larga amplitude de opções estilísticas, que traduz uma procura constante e uma oscilação de gosto que então caracterizava o panorama da arquitetura nacional. Tavares assinou alguns exemplares dentro do gosto português suave, dos quais se destaca o Liceu Jaime Moniz, tendo privilegiado uma linguagem mais historicista, ou revivalista, no edifício da agência do Banco de Portugal, inaugurado em 1940, e na Capela de Nossa Senhora da Conceição, de 1936. Por outro lado não deixou de atender ao gosto art deco, com o qual assinou alguns exemplares de habitação doméstica, como a Vivenda Fátima, implantada na Avenida Infante, e o Mercado dos Lavradores, inaugurado em 1940. Edmundo Tavares publicou vários livros de carácter técnico-construtivo e outros sobre temas da arquitetura portuguesa dos quais se destaca a sua participação na obra de Reis Gomes (1896-1950) Casas Madeirenses, com ilustrações de modelos de habitações. Trata-se de uma publicação que coloca em debate a problemática da existência de uma arquitetura madeirense através da apresentação de elementos típicos regionais recolhidos a partir da observação de edifícios existentes na cidade do Funchal. O arquiteto deixou também as suas impressões sobre a Ilha no artigo «Quadros, Presépios e Lapinhas», de 1948. Liderado pelo dinâmico autarca Fernão de Ornelas (1908-1978), este programa de obras contribuiu para a renovação dos edifícios públicos da cidade do Funchal e nele estiveram também incluídos, entre outros, vários edifícios destinados a escolas primárias, o Liceu do Funchal, Bairros Económicos, o edifício do Banco de Portugal, erguido na esquina do novo troço da Avenida Zarco com a Avenida Arriaga, e o Sanatório Dr. João de Almada, edificado na antiga quinta de Santa Ana, no Monte. Foi também a oportunidade para alargamento da rede de água potável, com a construção de fontenários nas freguesias suburbanas, cujo modelo seguiu o projeto-tipo de Carlos Ramos, enviado à edilidade funchalense e redesenhado por Tavares, considerado, então, o arquiteto da Câmara do Funchal. Aproveitou-se o programa para se levarem a efeito importantes obras no porto do Funchal, que passa a ter um molhe com 464 m, e para se efetuarem reparações no Palácio de S. Lourenço, na Avenida Marginal e Avenida do Infante. Procedeu-se à demolição da antiga praça do peixe, denominada Praça de São Pedro, do antigo Matadouro e do Mercado de D. Pedro V, transferindo-se para o átrio dos Paços do Concelho Leda e o Cisne, escultura que remata o chafariz ali existente. Este conjunto de obras destaca-se de entre as muitas iniciativas levadas a cabo por toda a Ilha como forma de mostrar que o Estado Novo respondia às reivindicações da população, tendo sido disponibilizados todos os recursos materiais e humanos disponíveis para a sua efetivação. No âmbito cultural, aproveitaram-se as comemorações centenárias para lançar a obra As Ilhas de Zargo, de Eduardo Clemente Nunes Pereira (1887-1976), depois com várias edições e de excecional importância na cultura madeirense. A Madeira seguia assim, efetivamente, a tendência nacional e, com Fernão de Ornelas na presidência da Câmara Municipal do Funchal, e ao serviço do regime de Salazar, Raul Lino é convidado, em março de 1941, a dar o seu parecer sobre novas alas a edificar a norte e a sul do corpo principal do edifício camarário, que se encontrava em profundas remodelações, com vista a uma integração harmoniosa. Para dar lugar a estas obras, foi expropriado, a norte, o antigo Palácio Torre Bela, permitindo a abertura de nova rua e, mais tarde, em 1962, a construção do Palácio da Justiça do Funchal, da autoria de Januário Godinho Sousa. As preocupações urbanísticas levam a que Raul Lino seja convidado a visitar novamente o Funchal em novembro do mesmo ano, a fim de se pronunciar sobre diversos problemas de estética citadina, designadamente no que respeita às obras das fachadas laterais do edifício dos Paços do Concelho. Aproveitando a nova passagem do arquiteto pela Madeira, em janeiro de 1942, acompanhado pelo engenheiro agrónomo Francisco Caldeira Cabral (1908-1992) e respetivas famílias, por ocasião dos estudos para a Praça do Município, a Junta Geral encarregou-o de efetuar o anteprojeto para o edifício que daria continuidade ao Palácio da Junta, a edificar na Avenida Zarco. Todavia, em dezembro do mesmo ano, Raul Lino escusou-se, oficiando à Junta que os serviços oficiais de que já ficara encarregado o ocupariam durante vários meses, não podendo deslocar-se à Madeira. A Junta lastimou a situação, tendo pedido de imediato à Direção dos Monumentos Nacionais a indicação de outro arquiteto, que veio a ser Januário Godinho. Em abril de 1943, este apresentou à Junta Geral ofício com as condições pretendidas para prosseguir a tarefa. Decorridos dois anos, o arquiteto esteve na Madeira a fim de assinar o contrato para a realização do projeto das novas instalações e assistir à execução das obras. A Câmara Municipal do Funchal resolveu, no entanto, a 11 de novembro de 1943, autorizar o presidente a assinar o contrato com o arquiteto urbanista João Guilherme Faria da Costa, tendo em conta o plano de urbanização desta cidade e as deliberações de 15 de julho e 5 de agosto respeitantes ao projeto de alinhamento da Rua dos Ferreiros, troço entre as Ruas dos Netos e Severiano Ferraz. Mais tarde, já em abril de 1945, é aprovado o projeto de urbanização da cidade do Funchal da autoria de Faria da Costa, que apresenta o seu estudo do arranjo da Praça do Município e sua zona imediata. O contributo deste arquiteto iria deixar a sua marca numa das principais praças da cidade, transformando toda a área entre a Igreja do Colégio, o edifício da Câmara Municipal e o Paço Episcopal numa das zonas mais privilegiadas da urbe funchalense. As obras de transformação deste quarteirão central são visíveis desde 24 de julho de 1941, data em que foi aprovada a terraplanagem e o calcetamento do largo do município, mas continuam depois de, a 23 de abril de 1942, se ter resolvido adjudicar o trabalho de forrar a parede da escada da Igreja do Colégio e demais trabalhos de arranjo da mesma escadaria. No seguimento destas transformações, em julho de 1942 foi resolvido aprovar e abrir concurso para a execução do projeto de uma Fonte Pelourinho no Largo do Município, da autoria de Raul Lino, obra que foi adjudicada a 17 de setembro do mesmo ano, depois de o chefe de gabinete do Ministro das Obras Publicas e Comunicações ter solicitado, uma cópia do referido projeto, que lhe foi enviada. Trata-se de um chafariz em cantaria rija, considerado uma bela peça de arquitetura civil ao gosto Estado Novo, onde se manifesta uma boa integração dos materiais regionais. Para que a transformação desta ampla praça fosse possível, foi pedida autorização à Junta Geral para ocupar a cerca do edifício do antigo Paço Episcopal, onde funcionava então o liceu Jaime Moniz. Esta obra de Raul Lino, datada de 1942, foi construída no centro da Praça do Município projetada por Faria da Costa em fevereiro de 1945. A planta da nova organização da Praça do Município e o projeto da Fonte Pelourinho deixam perceber as modificações que se pretendiam introduzir na nova praça, como espaço central do município e verdadeiro retrato da vereação de Fernão Ornelas. Outra obra emblemática da vereação camarária que ficou associada a Faria da Costa foi a nova rua de ligação entre a Ponte do Bettencourt e o Mercado dos Lavradores, rua que constava do seu projeto de urbanização para a cidade do Funchal, pensada para ser denominada Rua dos Mercadores e posteriormente conhecida como Rua Fernão Ornelas. Em abril de 1945, o presidente da Câmara foi autorizado a outorgar e assinar, com os respetivos proprietários, os contratos referentes às expropriações, demolições, reconstruções, indemnizações e vendas de terrenos sobrantes para ratificação dos alinhamentos dos prédios, não só nesta rua mas também no alargamento da Rua do Aljube, no Largo do Chafariz, na Rua do Bettencourt, na Rua do Phelps, na Rua do Monteiro e na Rua dos Medinas, e respetivas imediações. Para execução do plano de urbanização da cidade, foi necessário demolir o edifício onde estava instalado o Banco da Madeira, no Largo do Chafariz, levando a edilidade a adquirir o prédio da rua João Gago n.º 16, n.º 18 e n.º 20 de polícia, para demolição e posterior entrega do terreno ao Banco da Madeira, a fim de, conjuntamente com o sobrante do seu edifício, se proceder à sua reconstrução. Dada a importância e localização deste prédio, junto da Sé, torna-se conveniente a aplicação de cantarias que guarnecerão o edifício. A Câmara compromete-se a pagar o custo orçamentado das cantarias e o Banco da Madeira obriga-se a requerer imediatamente o projeto da obra, que será fornecido pela Câmara mediante o pagamento de 2% sobre o orçamento das obras, devendo a reconstrução iniciar-se em junho e estar concluída no prazo de um ano, tudo em harmonia com as indicações da Câmara, designadamente quanto a alinhamentos. Faria da Costa ficaria associado a diversas obras da cidade do Funchal aprovadas sob a presidência de Fernão Ornelas, mas concretizadas já depois do seu afastamento da governação camarária, em finais de outubro de 1946. As muitas obras de urbanização e modernização que se sucederam ao longo dos seus mandatos permitiram uma transformação sem precedentes na organização do espaço citadino do Funchal. Permitiram também a vinda de importantes figuras da arquitetura e da engenharia portuguesa, que deixaram na ilha as marcas do seu conhecimento e da sua arte, construindo com base nos ideais do regime. A continuidade das grandes obras de urbanização do Funchal vai ser uma realidade, apesar da saída do presidente que ficou conhecido como “o terramoto”, porque destruiu para reconstruir, erguendo uma nova cidade, moderna e virada para o progresso. Na tomada de posse do seu último mandato, a 2 de janeiro de 1946, e que se prolongaria até 1949, a equipa camarária propunha-se intensificar ainda mais a sua ação. Para além da conclusão da Rua dos Mercadores, do arranjo e alargamento do Chafariz, da Rua do Bettencourt e do Largo do Phelps, iria retomar as obras interrompidas da Avenida do Mar, concluir a Praça do Infante e sua ligação à Avenida do Mar e a parte municipal do Parque da Cidade. A nível social propõe-se iniciar a construção de mais um bairro para as classes pobres da Madalena em Santo António, propõe-se instalar o Posto Clínico Central em novos edifícios a construir, onde funcionará também a Sede do Serviço de Saúde Municipal. Será também construído um novo edifício para instalação dos Bombeiros Municipais, vários edifícios para instalação de escolas e o novo Cemitério Oriental, e concluído o estudo do abastecimento completo de água ao Funchal e freguesias suburbanas, bem como o estudo da urbanização dos Ilhéus até à Cruz de Carvalho e o estudo do bairro da Ajuda. Nos novos projetos, foi apresentado o da cobertura da Ribeira de Santa Luzia, da Avenida do Mar ao Torreão, onde era construído um largo, que seria o topo desta avenida e da Avenida Zarco. Como complemento das obras de urbanização da parte central do Funchal, estudava-se uma artéria que delimitava a parte baixa da cidade, sendo a continuação da Rua Elias Garcia até ao Torreão e daí pelas Capuchinhas e pelas Cruzes até São Paulo. Com estas ações devem considerar-se concluídas as grandes obras de urbanização do Funchal, reforçando-se a grandeza dos melhoramentos que marcam uma época na história da cidade. Alguns desses melhoramentos destacam-se quer pela sua grandeza e significado, quer pela importância e dimensão dos seus autores. O arquiteto Adelino Nunes (1903-1948) foi o responsável pelo projeto do edifício dos correios na Avenida Zarco, inaugurado em 1942, enquanto Januário Godinho elabora em 1945 um projeto de remodelação do edifício da Junta Geral do Distrito, na sequência da abertura do troço norte da Avenida Zarco. Este projeto englobava também as novas instalações adjacentes à antiga Misericórdia, com entrada pela mencionada avenida. Moreira da Silva (1909-2002), arquiteto urbanista do Porto, envia a sua proposta para a elaboração do projeto do Parque de Santa Catarina em março de 1944, mas após ponderada apreciação, a Câmara classifica de inaceitável o anteprojeto apresentado, desinteressando-se do mesmo. Todavia, em julho de 1946, o engenheiro Raul Andrade de Araújo (1918-1957) propõe a contratação de um técnico especializado para orientar a preparação dos terrenos e plantações do Parque de Santa Catarina. Este mesmo engenheiro é encarregado de ir a Lisboa adquirir o material necessário para a repartição de obras e contratar o pessoal técnico necessário para os serviços de urbanização do Funchal e plano complementar do abastecimento de águas ao concelho. Em 1949, é elaborado novamente um anteprojeto para o mesmo Parque de Santa Catarina, desta vez da autoria de Miguel Jacobetty (1901-1970). A 28 de maio de 1947, é inaugurado o monumento ao Infante D. Henrique, na rotunda do Infante, e, no ano seguinte, o fontenário da mesma rotunda. Já em 1951, é inaugurada a Ponte do Mercado, estabelecendo-se a ligação entre as obras pensadas ao tempo de Fernão Ornelas e a sua efetiva concretização nos anos posteriores à sua saída. Na verdade, nem todas as obras acabariam por ser realizadas mas a transformação do Funchal, essa ficaria manifesta aos olhos dos seus habitantes. Quando, em 1934, se nomeou Fernão de Ornelas para a presidência da Câmara Municipal do Funchal, abria-se uma nova era no município, colocando na praça pública a discussão das grandes obras de arquitetura e urbanismo, dos grandes projetos e dos seus autores, que moldaram a cidade do Funchal na primeira metade do século XX, com uma assinalável transformação da malha urbana do Funchal que teve a colaboração de importantes personalidades. Com a afirmação do Estado Novo e a nomeação de novos dirigentes à frente dos principais destinos da Madeira, vamos assistir, de facto, a um controlo da ação política local e a um estreitar do relacionamento entre a região e o continente. Para essa aproximação muito contribuíram as ideias políticas, mas também a visão de personalidades como Duarte Pacheco e Fernão Ornelas. O primeiro criou condições para o aparecimento de grandes obras de arquitetura e urbanismo que se destacaram a nível nacional, enquanto o segundo teve a dinâmica e ousadia necessárias para implementar no Funchal programas de modernização da arquitetura e do urbanismo que redesenharam a imagem da cidade para o século XXI.   Agostinho Lopes Teresa Vasconcelos (atualizado a 04.01.2017)

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