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Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

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arquitetura do turismo de lazer

A arquitetura do turismo de lazer levou algum tempo a implantar-se na Madeira, tendo-se recorrido, ao longo do séc. XIX, a habitações senhoriais urbanas e periurbanas, as chamadas quintas de aluguer, sumariamente adaptadas às novas funções, como ocorrera anteriormente com o turismo terapêutico. O quase domínio absoluto do turismo de origem britânica e dos empresários dessa nacionalidade levou a que a arquitetura do turismo de lazer, na Madeira, não ganhasse características especificamente locais. Salvo na proliferação dos jardins envolventes e no aproveitamento dos declives para miradouros, embora utilizando mão-de-obra local e um saber artesanal ancestral, os modelos foram, essencialmente, importados dos mercados internacionais. Palavras-chave: arquitetura civil; arquitetura do turismo terapêutico; guias turísticos; miradouros; quintas românticas madeirenses; urbanismo. Até meados do séc. XIX, não é possível encontrar, na Madeira, o estabelecimento efetivo de serviços e de instalações de habitação temporária onde, para além da dormida, fosse prestada aos utentes toda uma série de serviços de certa sofisticação, como posteriormente veio a acontecer (Turismo). A apologia do ameno clima madeirense, especialmente vocacionado para o tratamento de doenças pulmonares, que corria pela Europa desde os finais do séc. XVIII, levou a que, especialmente no inverno, a Madeira fosse procurada pelas classes mais abastadas, na busca de um melhor clima e da almejada cura (Arquitetura do Turismo Terapêutico). Escritores e poetas, assim como publicistas em geral (Literatura de viagens), divulgaram nestes anos o nome da Madeira como sanatório natural, enaltecendo a temperatura e o espaço, propício ao lazer e à contemplação da natureza, convidando os doentes pulmonares dos rigorosos climas europeus a uma viagem reparadora à Ilha. As condições do coberto vegetal, a calma e a comodidade de que poderiam usufruir os doentes colocavam a Madeira muito à frente de outros destinos, como a maioria das cidades portuárias italianas, francesas e espanholas do Mediterrâneo, todas com uma vida muito agitada de negócios e de trânsito. Acrescia ainda a pureza e a suavidade do ar, assim como a quase constância da temperatura, quer de dia quer de noite. Estas temperaturas também existiam nas costas do Norte de África, e.g. no Cairo, mas a formação contínua de poeiras era uma desvantagem para os tuberculosos. Outra vantagem da Ilha era a quase inexistência de animais perigosos para os doentes, havendo uma muito baixa incidência, e.g., de mosquitos, pelo que os doentes nem necessitavam de cortinas nas camas. Havendo toda uma ampla encosta a proteger a cidade do Funchal, o doente poderia, inclusivamente, escolher a altitude ideal para se instalar, conforme necessitasse de ar mais quente ou mais fresco e conforme fosse inverno ou verão, embora a alteração da temperatura entre uma e outra estação fosse mínima. Em meados do séc. XIX, os hábitos europeus foram mudando progressivamente e, consequentemente, o tipo de viagens e de lazer das sociedades mais abastadas. Se na primeira metade do século, o turismo para a Madeira era essencialmente terapêutico, a presença de importantes figuras da mais alta aristocracia europeia foi aproveitada para a criação de uma nova imagem para a Ilha. Os mecanismos de divulgação da Madeira, essencialmente direcionados para os doentes, passam a salientar outros aspetos, como um certo exotismo da paisagem, um clima mediterrânico em pleno Atlântico, uma excelente temperatura da água do mar, e uma vida urbana cosmopolita. A mudança é patente, entre outros exemplos, no título da obra de Edward Vernon Harcourt (1825-1891), A Sketch of Madeira: Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor (1851), com litografias da autoria de sua mulher, lady Susan (1824-1894) (Harcourt, lady Susan Harriet Vernon), filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876), que, no ano anterior, já havia editado um álbum de litografias sobre a Madeira (Litografias e litógrafos). A primazia já é dada assim ao “traveller” [viajante] e, em segunda prioridade, ao “invalid visitor” [visitante inválido]. Os anos 80 marcam outra forma de visitar a Madeira, muito mais rápida, deixando assim de tratar-se de meses para se tratar de semanas e, posteriormente, somente de alguns dias, o que é compensado por um número muito maior de visitantes e faz crescer uma série de serviços de apoio a essas rápidas estadias. Na década seguinte começam a ser editados guias turísticos ilustrados por fotografias (Guias turísticos), progressivamente alargados a informações económicas, sociais, políticas e artísticas. O desenvolvimento turístico e portuário da baía do Funchal constituiu um instrumento de novas políticas sociais, envolvendo grandes investimentos públicos e privados na área dos transportes, do saneamento básico, das redes de distribuição de água ao domicílio, da iluminação pública e até no arranjo urbanístico da baixa da cidade, com a construção de jardins e de parques. Esta transformação teria o seu ponto alto já nos inícios do séc. XX, com a encomenda ao arquiteto Miguel Ventura Terra (1866-1919), em 1913, de um plano de urbanização para a cidade do Funchal (Urbanismo). Se, numa primeira fase, as obras tinham sido pensadas em função dos visitantes estrangeiros, a operação acabou por beneficiar toda a população residente, produzindo serviços, criando novas oportunidades de emprego, mudando mentalidades e reformulando radicalmente a estrutura urbana da cidade, virando-a, ainda mais, para o mar. Os primórdios da instalação turística Nas primeiras décadas do séc. XIX, os viajantes ainda se queixam da dificuldade dos alojamentos, como refere em 1826 Charles Heineken, que começara por visitar a Ilha como doente, acabando por se fixar. Conforme escreve por sua informação Alfred Lyall (1796-1865), por esses anos não existiriam mais que 4 boarding-houses, ou seja, edifícios urbanos para instalação temporária, onde os enfermos e as famílias se pudessem acomodar, embora tal fosse colmatado, pontualmente, pelo aluguer de outras casas na periferia, pertencentes a famílias inglesas residentes e a madeirenses (Quintas românticas madeirenses). Referem estes autores, no entanto, que não se poderia esperar encontrar na Madeira o amplo leque de escolha e de comodidades que já era possível encontrar no Sul de Inglaterra. Na década seguinte, o publicista John Driver ainda se queixa de que, embora a dimensão da cidade já fosse outra, não se encontravam hotéis nem cafés, o que já era comum nas congéneres cidades europeias da dimensão do Funchal. Este autor refere várias casas para aluguer, ou partes de casas, dizendo que pertenciam quase todas ao perímetro urbano, e que eram quase todas propriedade de residentes britânicos. Esta comunidade que se dedicava essencialmente ao comércio iniciava, então, um negócio sazonal paralelo que não pararia de crescer nos anos seguintes. O aluguer era geralmente feito à semana e incluía, para além do quarto, uma sala de estar, o mobiliário e o equipamento, onde se incluía, curiosamente, algumas vezes uma garrafeira com vinho da Madeira, embora a lavagem de roupas fosse paga como um extra. Em 1840, William White Cooper (1816-1886), no Invalid’s Guide to Madeira, refere já a existência de um pequeno hotel, relacionando os vários tipos de alojamento possíveis na área do Funchal: as casas de família, ou quintas de aluguer; as casas de aluguer; e os hotéis familiares. As primeiras eram quintas nos arredores da cidade e as restantes, residências urbanas adaptadas, diferenciando-se, essencialmente, pelo serviço de refeições: numas eram servidas aos hóspedes e à família, mas separadamente, noutras já havia uma sala de refeições comum onde todos os hóspedes almoçavam e jantavam. Ao longo da déc. de 40 começam a aparecer referências à existência mais efetiva destas instalações, mas longe de conseguirem responder à procura, como se queixa, em 1840, sir William Robert Wills Wilde (1815-1876), pai de Óscar Wilde (1854-1900). Na sua descrição da passagem pela Madeira, entre 1837 e 1839, considera, inclusivamente, ser muito desagradável que os comerciantes britânicos ali radicados não tivessem, até então, preenchido essa lacuna, construindo pequenas habitações minimamente confortáveis, até porque a procura já era exponencial. Somente por volta de 1852, lady Emmeline Stuart Wortley (1806-1855) refere ter-se instalado no Hotel Miles, na R. da Carreira, e que já possuía as características de um pequeno hotel, embora ainda não fosse uma construção de raiz, mas a adaptação de uma residência senhorial urbana a essa função, como aliás vai acontecer à grande maioria dos restantes hotéis. O encanto da experiente viajante inglesa, entretanto, foi para a magnífica vista da janela do seu quarto e do de sua filha, sobre a montanha por detrás da cidade, e para o pitoresco dos terraços, torres e balcões das casas vizinhas, com os seus pequenos jardins com bananeiras, laranjeiras e as mais variadas plantas e flores. A descrição do que eram estas antigas residências urbanas adaptadas para hotel pode ser conhecida através do Diário de 1853 de Isabella Hurst França (1795-1880), filha do arquiteto Aaron Hurst. A autora tinha-se casado tardiamente com o morgado madeirense José Henrique de França (1802-1886) e, perante a perspetiva de extinção dos morgadios na Madeira (Morgadios), o casal foi à Ilha vender essas propriedades. Instalaram-se numa hospedaria da Rua da Carreira, que pertencera à viúva do poeta e político Manuel Pimenta de Aguiar (1765-1832), Micaela Antónia de Sá Bettencourt, e que a alugara, em 1831, a uma inglesa, Isabel French, que passou a geri-la. Em 1839, o contrato de aluguer foi feito com o hoteleiro Jacinto Hannibal de Freitas, talvez um dos mais antigos hoteleiros da Madeira, que possuía outros estabelecimentos similares, como na R. das Hortas, e este manteve Isabel French à frente do estabelecimento até 1863. Isabella de França descreveria a sensação que havia tido ao passear pelas ruas mais altas e ao observar a vista das janelas da residência onde estava hospedada, no final da R. da Carreira, dizendo que “a cidade do Funchal é muito maior do que eu esperava: será a terceira das terras portuguesas, depois de Lisboa e Porto. Estende-se por mais de uma milha ao longo da costa e sobe a considerável distância até aos montes” (FRANÇA, 1970, 56). Isabella refere que chegaram de carro de bois a um pátio coberto interior, estruturante do edifício, do qual partia uma escada que, circundando o pátio, dava acesso aos quartos dos vários pisos. O pátio calcetado era coberto por claraboia, sendo os quartos nos andares superiores e na torre, onde o casal ficou, e sendo o piso térreo destinado a arrecadações e serviços. Se a residencial de início a encantou, encostada à antiga muralha da cidade e sob a fortaleza do Pico, quando chegou a informação do falecimento da Rainha D. Maria II (1819-1853) e se iniciaram os três dias de salvas de luto, em que os canhões do Pico e do ilhéu disparavam de 5 em 5 minutos, dia e noite, calculando a autora terem sido feitos 1440 disparos, a situação terá sido dramática. Data dos anos seguintes a passagem de hospedarias como esta à designação de hotel, registando-se em 1865, como mais os caros, o Hotel Jervis e o Hotel Luscomb. Em 1863, registam-se as hospedarias Reids, na R. do Mercado de S. João, depois denominado Royal Edimburgo Hotel; Neal, na R. do Pinheiro; Miles, na R. da Laranjeira (que havia de ser denominada R. do Carmo); e o Hotel Hollway, na entrada da cidade (Entrada da Cidade). Em 1864, registam-se como hotéis o Giuliet e o Freitas, sem indicação da rua, o Hotel Jervis, na R. da Carreira, e o Hotel Francês, na entrada da cidade. Em 1865, registam-se ainda o Hotel Luscomb, na R. da Carreira e os hotéis Pios, Dressen, J. Payne e Madeira, sem indicação da localização. Em 1866, registam-se os hotéis Duhset e Bella Vista, também sem mais indicação, embora o último ficasse a montante do Hospício, na margem da ribeira de S. João, com acesso pela R. do Jasmineiro, edifício depois ocupado pelo Seminário Diocesano que, graças ao parque envolvente e a outras caraterísticas, se veio a tornar bastante conhecido e dos mais fotografados. Nestes quase finais de século, no entanto, não estamos no domínio de uma arquitetura do turismo de lazer, mas da adaptação de edifícios a essas funções. César Augusto Mourão Pitta (1837-1907), então agente consular de França na Madeira, no seu Madère, Station Medicale Fixe (1889), regista a existência de sete hotéis ingleses de primeira ordem, quatro dos quais pertencentes aos irmãos Reid, três portugueses e duas pensões, uma inglesa e outra portuguesa. No entanto, só pouco depois dessa data, em 1891, para efeitos de cobrança de taxas, se diferenciariam os hotéis das hospedarias, sendo comum classificar os ingleses numa categoria superior à dos portugueses. Ellen Taylor, entretanto, em 1882, não recomendava aos seus leitores nenhum dos hotéis portugueses, embora os irmãos Adriano (1862-1906) e Aníbal Trigo (1865-1944), no seu Roteiro e Guia do Funchal, de 1910, mencionassem o Hotel Universal, situado na esquina do antigo passeio público para a Pç. da Sé, como sendo “um hotel de 2.ª ordem” recomendável “a todas as pessoas que desejem viver comodamente na cidade sem grande despesa” (MATOS, 2013, 173) Saliente-se, entretanto, a dificuldade de estabelecer as designações destas iniciais unidades hoteleiras, pois nem sempre os nomes de registo correspondiam aos nomes que se utilizavam correntemente, mudando de acordo com os proprietários e com as firmas e sociedades a que pertenciam, mas, por vezes, mantendo os antigos nomes, em oposição aos do registo, e utilizando os nomes da localização em relação às acessibilidades, etc. Entre muitos casos, e.g., numa das antigas fotografias do Jardim Municipal (Jardim Municipal), muito provavelmente ainda dos finais do séc. XIX, tirada por João Francisco Camacho (1833-1898) ou pelo irmão Augusto Maria Camacho (1838-1927) (Fotografia), aparece sobre o prédio onde depois se situou o restaurante Os Combatentes, na esquina das ruas de Roberto Ivens e S. Francisco, a indicação de Hotel Rosa, designação que não encontramos nos registos de licença, correspondendo à residencial que, em 1893 e em 1895, se encontrava em nome dos herdeiros de José Fernandes Rosa. A cadeia Reid A história da arquitetura hoteleira da Madeira e, inclusivamente do próprio turismo, são indissociáveis do nome Reid, ligado ao mais prestigiado hotel da Região e o primeiro construído efetivamente de raiz, nos finais do séc. XIX, dado que os anteriores utilizaram sempre construções preexistentes. O escocês William Reid (1822-1888) teria passado pela Madeira em 1836, então com 14 anos, mas parece só se ter fixado na Ilha por volta de 1844. Quarenta anos depois, com seus filhos William e Alfred Reid, teriam adquirido os mais importantes estabelecimentos hoteleiros do Funchal e preparava-se para construir de raiz o Reid’s New Hotel, depois Reid’s Palace Hotel (Reid’s Palace Hotel), eclipsando todas as restantes unidades, que passariam a hotéis de segunda categoria. O fluxo de visitantes e de passageiros em trânsito aumentava constantemente com os novos navios a vapor, que faziam a viagem para o Funchal, e.g., a partir de Liverpool ou de Southampton, em cinco dias, e de Lisboa em dois, havendo carreiras regulares desses três portos. Igualmente dos portos de Bordéus, Havre, Antuérpia ou Hamburgo era possível ter acesso à Madeira em carreiras mais ou menos regulares, com maior rapidez e por menor preço. Em 1874, ainda se montavam as comunicações telegráficas com o continente, através de cabo submarino, e tudo concorria para que a Ilha passasse a possuir capacidades para se equipar, dentro das suas dimensões, com um dos melhores parques hoteleiros europeus. Para a análise da arquitetura dos hotéis Royal Edinburgh e German Hotel, o antigo Schlaaff, que foram demolidos, teremos de recorrer ao amplo acervo cartográfico e fotográfico da Madeira, tal como às descrições de alguns dos seus hóspedes; no entanto, nem num caso nem no outro existem especiais novidades arquitetónicas, uma vez que se tratava de adaptações de construções já existentes. Deixando o antigo German Hotel para a secção seguinte, por se enquadrar no tema dos interesses alemães que a comunidade britânica soube, progressivamente, eliminar, importa referir que, tal como o Reid's Monte, noutro contexto, o interesse do Royal Edinburgh Hotel era muito reduzido. Instalado numa antiga residência senhorial no quarteirão a poente do Teatro Municipal (Teatro Municipal), sendo muito anterior a este, encontrava-se, na déc. de 80 do séc. XIX, ainda ligado ao então mercado de S. João (Mercados). Possuía um jardim a norte, que veio a desaparecer com a construção da Av. Arriaga, e, elevando-se sobre a R. das Fontes, uma muito boa relação com a baía do Funchal. O nome deste hotel adveio do patrocínio que lhe foi dado pelo duque de Edimburgo, título criado pela Rainha Vitória (1819-1901), em 1866, a favor do seu quarto filho, o príncipe Alfredo de Sax-Coburgo-Gota (1844-1900), que ao comando da fragata HMS Galatea, passara pelo Funchal em 1867. Se alguns utentes, como a jornalista norte-americana Charlotte Alice Baker (1833-1909), em 1882, embora reconhecendo que o pomposo nome estava longe de corresponder ao edifício, especialmente no seu aspeto exterior, consideravam que tal era compensado pelo agradável jardim murado por pedra de tufo de lava e se encantavam com a vista da sua varanda sobre o mar e com o silêncio noturno da cidade, outros utentes eram mais severos na sua apreciação. Um ano depois, e.g., o controverso sir Richard Francis Burton (1821-1890) queixava-se da informalidade do estabelecimento, que considerava ser mais próximo de uma taberna que de um hotel, com maus cheiros e pessoas que não seriam especialmente do seu agrado, o que também não deixa de ser interessante face à vida aventurosa e desbragada que este antigo militar e agente secreto havia tido. Em causa, por certo, estaria a qualidade do ar naquela área, como refere o médico Karl Mittermaier (1787-1867), que escreveu que os doentes não deveriam ali ficar, pois seriam obrigados a respirar “as poeiras de um armazém de carvão que lhe fica perto” (MATOS, 2015, 281-282). O Royal Edinburgh Hotel foi gerido pessoalmente pelo patriarca da família Reid, tendo sido um edifício de planta retangular com dois pisos, inserido num lote ajardinado virado para norte, como consta das várias plantas da cidade desses anos. O andar nobre tinha sete janelas de sacada de recorte clássico, dando sobre a R. das Fontes, então arborizada, como se parece verificar nas fotografias da época. Na propaganda que os Reid faziam da sua cadeia de hotéis, no entanto, este hotel quase nunca é apresentado em imagem, colocando-se sempre em destaque só as do Santa Clara e do Carmo. Em 1892, quando publicam o seu guia turístico da Madeira (1892), o seu nome já não consta, devendo assim ter encerrado antes dessa altura, conjetura que pode ser suportada pelo falecimento, em 1888, do patriarca da família, que o gerira pessoalmente. O Carmo Hotel, na rua do mesmo nome, cujo edifício subsistia nos começos do século XXI, embora profundamente alterado, era anteriormente propriedade da família Miles e foi adquirido nos finais da déc de 70 do séc. XIX pelos Reid. O portão lateral de acesso ao logradouro, em ferro forjado, ostenta a data de 1836, data provável de uma das suas últimas reconstruções. Apresenta à rua uma fachada clássica da arquitetura senhorial madeirense, com um piso térreo bastante alto e duas janelas laterais a enquadrar a porta principal encimada por lintel com balanço, um andar intermédio para serviços e, a servir de balanço às suas cinco janelas, a sacada da varanda do andar nobre, com o pormenor de ser corrida, apresentando as janelas remates por cornija relevada. O edifício, no entanto, era bastante profundo e complexo, devendo ter tido várias campanhas de obras, com uma larga e deselegante torre central de mais de dois pisos e as cozinhas no extremo noroeste do conjunto edificado. Numa das campanhas de obras o conjunto foi dotado de um corredor ao longo do piso superior, o que teria facilitado a sua adaptação a hotel, embora o tamanho das divisões fosse muito díspar. Os quartos, mesmo assim, tiveram fama de ser dos maiores e mais confortáveis da cidade. Este hotel teve um importante jardim – onde havia inclusivamente uma jaula com macacos – que contudo, nas fotos dos finais do séc. XIX ou inícios do XX, já não parece ter esse protagonismo, tal como teve um court de ténis, provavelmente o primeiro a ser instalado num hotel do Funchal e, no rés-do-chão, um restaurante aberto ao público. Ellen Taylor, em 1882, ainda o designando por Miles’s Hotel, regista-o como tendo sido durante muitos anos o melhor hotel do Funchal, não só pelo conforto, limpeza e atenção que dispensava aos hóspedes, como pela espaçosa varanda, torre-avista-navios, grande jardim, etc. Pelas palavras da norte-americana, no entanto, parece que nessa data já não era assim, tendo encerrando na segunda década do séc. XX e sido ocupado, pouco depois, pela sede do Grémio dos Industriais de Bordados da Madeira. O conjunto foi, em 2015, objeto de reabilitação para complexo habitacional, mas descaraterizado pelo aumento da área de construção envolvente. O maior hotel do Funchal, nas últimas décadas do séc. XIX, foi o Santa Clara Hotel, edifício adquirido pela família Reid em 1867 e objeto de inúmeras campanhas de obras. Ellen Taylor considera-o o “hotel par excellence” (TAYLOR, 1882, 15), o que não admira, uma vez que foi aí que se instalou, com o seu piano, na sua visita ao Funchal de 1882, tendo depois registado que o conjunto edificado seria muito complexo, com várias entradas independentes para os andares. O conjunto deve ter nascido de uma antiga residência senhorial dos finais do séc. XVIII, assente sobre uma forte sapata com jorramento, quase de feição militar, o que obrigou a construir um complexo piso de serviços nesse embasamento, inclusivamente rematado por cornija, e sobre o qual assentam os 2 pisos nobres, por sua vez igualmente rematados por forte cornija. No início do séc. XXI, esse conjunto ainda se articulava, mas mal, com outro corpo para nascente, sobre o qual existia uma torre trapezoidal, uma singularidade na arquitetura madeirense, e à frente do qual cresceu outro corpo. Ainda existia outro, quase perpendicular a estes dois, tudo indiciando diferentes etapas de construção. Ao nível da fachada principal do Santa Clara Hotel, com acesso pela Trav. das Capuchinhas e pela Calç. de Santa Clara – se é que o termo “fachada principal” se aplica ao conjunto –, para poente, ainda foi acrescentado outro corpo, sobre o qual assenta uma generosa varanda, com um alpendre sustentado por uma esbelta estrutura de ferro forjado. A vista da varanda, assim como dos quartos virados para sul, sobre a cidade e o mar, deslumbrou sempre os visitantes. Um deles, o pintor Edward John Poynter (1836-1919) (Poynter, Edward John), muito provavelmente de uma das janelas deste hotel, em 1877, executou uma excelente aguarela do Convento das Mercês (Convento das Mercês), que viria a ser demolido, sendo, por isso, o único elemento iconográfico que conhecemos desta construção religiosa. O edifício mantinha, no início do séc. XXI, toda a antiga volumetria, tendo deixado de funcionar como hotel na abertura da Primeira Guerra Mundial (I Grande Guerra) e vindo a ser adquirido pela Junta Geral (Junta Geral) para alojamento de serviços de assistência social, passando depois ao Governo regional com similares funções. O aumento exponencial do fluxo turístico no Funchal, na penúltima década do séc. XIX, levou a família Reid a equacionar a construção de raiz uma unidade de luxo, o Reid’s New Hotel, que seria, assim, o primeiro hotel madeirense a ter sido levantado mediante um projeto de arquitetura prévio. Até então, existia uma certa informalidade na organização deste tipo de espaços, criando complicadas disfunções nos circuitos de circulação dos hóspedes e dos funcionários, não havendo, e.g., serviços de receção, pois os hóspedes ou iam já por contactos anteriores, ou eram angariados na sua chegada ao porto, ainda no navio. Os funcionários do hotel encarregavam-se das diversas formalidades, inclusivamente, do despacho da bagagem, o que não seria fácil, pois muitos dos viajantes deslocavam-se com mobiliário e com pessoal. Outro aspeto, só então planeado, foi o das instalações sanitárias, quase sempre comuns até essa data. A família Reid contactou, para o projeto do novo hotel, o arquiteto Somers Clarke (1841-1926) (Clarke, Somers), sobrinho do também arquiteto George Somers Leigh Clarke (1822-1882), que trabalhara, em 1849, na reconstrução do palácio de Westminster. Somers Clarke encontrava-se associado, em Londres, a John Thomas Micklewaite (1843-1906), tendo ambos sido formados no ateliê de George Gilbert Scott (1811-1878), que já havia projetado unidades hoteleiras em Inglaterra. O ateliê de Somers Clarke e de J. T. Micklewaite tinha já ficado conhecido por vários projetos revivalistas góticos para igrejas e, tendo Clarke, por motivos de saúde, estado na Madeira, provavelmente num dos hotéis da cadeia Reid, acabou por ser escolhido para fazer o projeto do Funchal. Somers Clarke deslocou-se, inclusivamente, depois à Ilha para acompanhar a construção do hotel, pelo menos no inverno de 1889, e, no ano seguinte, forneceria à conceituada revista The Buiding News, em Londres, as principais características do seu edifício, com dois blocos delimitados por torres e articulados por um corpo de varandas. Todos os quartos eram iguais e servidos por corredores internos, todos com varandas, equipados com lareira e demais comodidades da época. O novo hotel mantinha uma muito especial relação com o mar, possibilitando um fácil acesso à zona de banhos, e era previsto que viesse a ser servido por um amplo jardim. Nas informações fornecidas por Somers Clarke, parece ter havido alguma dificuldade em caracterizar estilisticamente o edifício, assunto na ordem-do-dia em Inglaterra, parecendo terem sido considerados apenas os aspetos económicos da construção e a sua opção pelos métodos de construção locais e pelos materiais habituais nos edifícios da Ilha. O êxito do novo hotel foi imediato, eclipsando toda a restante rede e, num curto espaço de tempo, seria uma das construções emblemáticas da hotelaria internacional, sendo citado como obra de referência praticamente em todas as publicações da área desde então. Para este hotel trabalhou ainda o pintor Max Römer (1878-1960), com cartazes, menus e bilhetes-postais, colaborando para a criação de um verdadeiro mito. Pelo Reid’s Palace Hotel, como já era designado, passaram algumas das mais famosas figuras europeias, entre ex-Imperadores, ex-Imperatrizes, aristocratas, governantes e ex-governantes, antigos ditadores, escritores internacionais, fotógrafos, atores de cinema, artistas, entre outros, fazendo circular a imagem do hotel por todo o mundo. Sucessiva e cuidadosamente ampliado, integrando courts de ténis, rinques de patinagem, etc., passando por vários proprietários, houve sempre a preocupação de manter o seu legado histórico-cultural e, também um arquivo histórico, tendo o seu nome incorporado sempre a inicial designação “Reid’s”. Os hotéis alemães do Funchal A fama da Madeira, como estância de turismo terapêutico, fora também divulgada na Alemanha pelo Dr. Kämpfer, falecido pouco antes de 1856, que esteve na Ilha entre outubro de 1841 e abril de 1842, e por Karl Mittermaier, médico especialista de Heidelberga, que se deslocara à Madeira com seu irmão, tuberculoso, em finais do verão de 1851, regressando depois, pontualmente, para o acompanhar, até 1854. Deve-se ao Dr. Mittermaier o primeiro livro em língua alemã a defender a Madeira como estância ideal para as doenças pulmonares. Em meados de novembro de 1866, o médico e zoólogo alemão Richard Greeff (1829-1892), e.g., constatou em Lisboa que, no Hotel Central, hotel muito bem situado à beira do Tejo, não só os empregados de mesa, mas também a maior parte das pessoas presentes na sala de jantar, eram alemães. Não eram, no entanto, comerciantes nem cientistas, mas sim doentes, que com os seus companheiros, e como o próprio Greeff, aguardavam embarcação para passarem o inverno na Madeira. A Madeira encontrava-se ainda muito bem equipada para responder a este tipo de doenças. O Dr. Mittermaier mencionava a presença no Funchal de seis médicos portugueses formados em França ou em Inglaterra e de seis médicos ingleses, estando, geralmente no verão, mais alguns médicos alemães. Nessa época, estava na Madeira, e.g., o Dr. Bahr, de Rendsburgo que, após ter curado a sua tuberculose durante quatro invernos passados na Ilha, tencionava radicar-se nela, a exercer clínica. O Funchal encontrava-se também muito bem apetrechado de farmácias, assim como de hospitais, aptos a fazer face a qualquer eventualidade das doenças pulmonares. O Dr. Mittermaier, refere ainda que, por volta de 1840, raramente se encontrava um alemão, mas que, nos anos seguintes, se registara um aumento anual de quase 15 a 20 doentes, calculando que no inverno de 1853 para 1854 estivessem na Madeira mais de 40 doentes alemães. A hegemonia dos interesses britânicos ao longo dos sécs. XIX e XX dificulta a pesquisa dos primórdios da implantação dos Alemães na Madeira. A rede de casamentos das famílias reais europeias igualmente dificulta a construção dessa perceção; assim, e.g., quando, em 1861, chegou à Madeira a Imperatriz Sissi de Áustria (1837-1898) (Áustria, Sissi de) deslocou-se num iate disponibilizado pela Rainha Vitória (1819-1901), instalando-se na Qt. Vigia (Quinta Vigia), onde uns anos antes tinha estado a Rainha viúva Adelaide de Inglaterra (1742-1849), de origem alemã. O aumento dos viajantes alemães e oriundos do centro da Europa na Madeira regista-se após a visita da Imperatriz Sissi e do seu séquito, curiosamente deslocando-se para Santana, no Norte da Ilha, o que justifica também a edição de duas litografias do Funchal, do pintor e litógrafo Joseph Selleny (1824-1875), em Viena, em 1862, por Leopold Theodor Neumann (1832-1875), uma das quais com a Imperatriz frente à Sé do Funchal (Sé do Funchal) e outra, com o título Brück über den Ribeiro Seco, mas que representa a ponte junto ao fontanário do Torreão, logo a ponte do Torreão da Ribeira de Santa Luzia e não a do Ribeiro Seco (Litografias e litógrafos). O primeiro hotel alemão, em princípio, teria sido o de M. Schlaaff, referido, em 1880, pelo tisiólogo alemão Julius Goldschmidt (c. 1840-1924), que exercera clínica na Madeira, pelo menos de 1867 a 1884, como de “primeira ordem” (WILHELM, 1993, 119), mas que já então também tinha sido adquirido pelos irmãos Reid, embora os mesmos tenham mantido à sua frente o anterior encarregado, Francisco Nunes (1831-1907). Francisco Nunes, um homem muito viajado e conhecedor da cultura alemã, era igualmente fluente na língua e proprietário da Qt. Nunes, na Camacha. A importância da comunidade viajante alemã levou a que os irmãos escoceses Reid mudassem a designação para German Hotel, embora localmente também fosse designado por Hortas Hotel, dado ficar localizado na R. das Hortas. Mantiveram ainda, no seu interior, uma pequena biblioteca naquela língua, à qual se refere Paul Langerhans (1847-1888) (Langerhans, Paul) no seu Handbucch für Madeira, de 1885. O German Hotel era um imponente edifício dos finais do séc. XVIII a inícios do XIX, situado a norte da R. do Bom Jesus, entre a R. da Conceição e a das Hortas, de que se conhece fotografia, com uma frente de três pisos e de oito janelas cada, tendo o corpo sul sete janelas. A fachada apresentava ao seu nível uma forte torre-avista-navios com mais dois pisos, com duas janelas por piso, viradas para nascente, e três para sul. Tratava-se, por certo, de uma antiga residência urbana senhorial, sumariamente ampliada para hotel e sem especial qualidade arquitetónica. O German Hotel deixou de funcionar nos primeiros anos do séc. XX e, na sua área, veio a ser levantado um complexo de edifícios da Caixa de Previdência do Funchal, entre 1960 e 1970, projeto do arquiteto Raúl Chorão Ramalho (1914-2001). Os viajantes alemães, no entanto, também frequentaram os restantes hotéis, em princípio, como teria sido o caso do grupo em que se integrou o investigador médico Carl Passavant (1854-1887), o seu amigo Wilhelm Retzer (1856-1883), o seu tutor Traugott Paulit e a família Tropenhelm, que nos inícios de 1883, saindo do porto de Hamburgo, passaram pelo Funchal com destino às colónias alemãs de África, mas chegando, pelo menos o investigador e o seu tutor, a Angola. Fizeram-se então fotografar no Funchal, por certo com outros alemães, numa fotografia de grupo perfeitamente hierarquizada e onde parece reconhecer-se Francisco Nunes. O local, no entanto, não parece de forma alguma ser o German Hotel, mas os anexos do parque do Hotel da Bela Vista. Os Hotéis do Monte A freguesia do Monte era, desde os meados do séc. XVIII, local de veraneio das famílias abastadas do Funchal. A primeira construção de lazer foi a chamada Qt. do Prazer, levantada pelo cônsul inglês Charles Murray (c. 1730-1808) em terrenos que tinham pertencido à confraria de N.ª S.ra do Socorro da igreja do Colégio dos Jesuítas do Funchal (Igreja do Colégio) e que haviam sido doados pelos irmãos João e José Saldanha. Com a extinção da Companhia de Jesus e o confisco de todos os seus bens, essas propriedades foram compradas, em 1770, pelo comerciante Francisco Theodor e, em 1773, vendidas a Charles Murray. A Qt. do Prazer também passou a ser conhecida como Belo Monte e Belmonte, aí tendo sido recebida, e.g., a 13 de setembro de 1817, a futura Imperatriz do Brasil, a arquiduquesa Leopoldina de Áustria (1797-1826), pelo comerciante inglês Robert Page (1775-1829). Com a construção do caminho-de-ferro do Monte (Caminho-de-ferro do Monte), e especialmente com a inauguração do troço final de ligação do Funchal ao Monte, em 1894, vão proliferar os hotéis nesta freguesia. O primeiro teria sido o Hotel Bello Monte, reformulando muito pontualmente a antiga residência dos finais do séc. XVIII, de que se conhecem algumas fotografias dos últimos anos do séc. XIX ou dos primeiros anos do séc. XX. A fachada aparece com portal rematado por lintel e cornija, encimado pelo que parece poder ter sido o brasão de armas do 1.º e único visconde de Monte Belo, João de Freitas da Silva (1849-1922) (Monte Belo, visconde de). Em 1896, a quinta já funciona como hotel, registado por Hilário da Silva Nunes, registo esse que se mantém até 1898, mas que, em 1900, passa a ser de William Reid, e, em 1901, de John Payne, confirmado pelo Brown’s Guide desse ano, onde aparece como proprietária deste hotel a firma John Payne & Son. Alguma influência alemã nesta área ainda se mantinha nesses anos, sendo o Hotel Belmonte referido no guia dos irmãos Trigo, em 1910, como Deutsches Hotel Restaurant, que era “mais especialmente frequentado por alemães, sendo muito conhecido e apreciado pela sua magnífica cozinha” (TRIGO, 1910, 30). Na primeira década do séc. XX houve a tentativa alemã de entrar no mercado turístico madeirense, com investimento no caminho-de-ferro do Monte e constituição de um projeto de construção de sanatórios, hotéis e casinos, através da Sociedade dos Sanatórios (Sociedade dos Sanatórios e Arquitetura do turismo terapêutico), que a comunidade britânica conseguiu inviabilizar. A situação de conflitualidade europeia levou ao deflagrar da Primeira Guerra Mundial e, com a entrada de Portugal no conflito, ao lado de Inglaterra, a memória da presença alemã na Madeira foi quase totalmente apagada. Entre 1915 e 1916, José Sotero e Silva, casado com Maria Augusta de Ornelas Frazão, filha natural mas herdeira do 2.º conde da Calçada, entretanto proprietário do hotel, efetua a reconstrução do imóvel. A propriedade veio a ser adquirida por volta de 1920 pela Companhia de Caminhos de Ferro do Monte e com a reativação do caminho-de-ferro, a 1 de fevereiro desse ano, procedia-se a importantes obras, inauguradas em 1926, como Grande Hotel Bello Monte, com uma zona de serviços a montante, um grande bloco central edificado e ainda uma casinha de prazer para Sul, rematando o jardim. A Segunda Guerra Mundial (II Grande Guerra) levaria ao encerramento do Grande Hotel e à extinção da Companhia em 1943 e, em 1958, instalava-se aí o Colégio Infante D. Henrique dos sacerdotes italianos do Sagrado Coração de Jesus. O edifício reflete o gosto que nas primeiras décadas do séc. XX inspira a maioria das restantes construções da freguesia do Monte, com três pisos e um andar de águas furtadas, grandes varandas a percorrer as fachadas ao longo dos dois pisos inferiores e as coberturas por empenas agudas, ressalvadas por decorações ao gosto dos lambrequins, genericamente designadas por chalés alpinos, gosto que proliferou então por toda a Europa. Em 1901, também o Brown’s Guide anunciava o Reid’s Mount Park Hotel, que, pelas fotografias que dele conhecemos, não passava de uma simples residência tradicional madeirense sumariamente dotada de alpendre para um pequeno bar exterior. Pelo contrário, algumas residências levantadas de raiz nos últimos anos do séc. XIX, como a do comerciante Alfredo Guilherme Rodrigues (1862-1942), a partir de 1897, data em que adquiriu a parte sul da antiga Qt. do Prazer, ganharam um espírito totalmente diferente. Alfredo Guilherme Rodrigues ter-se-ia inspirado nos palacetes que observara nas margens do Reno, numa viagem à Alemanha que fizera poucos anos antes, construindo um dos mais emblemáticos edifícios da freguesia, com a cobertura muito inclinada e rematada por pináculos, que, aliada às altas chaminés, ainda aumentava mais a elegância e verticalidade da construção. O edifício assenta numa larga plataforma com uma fantástica vista sobre a cidade do Funchal, articulando-se ainda com outra varanda adossada ao corpo principal e assente em arcaria. Os jardins dispõem-se em socalcos e possuem uma das mais românticas lagoas da Madeira, inclusivamente dotada de um fontanário inspirado num baluarte redondo militar. Em 1904 já estava adaptado a hotel, o então Monte Palace Hotel, e nos anos seguintes seria uma das imagens mais divulgadas da Madeira. O Monte Palace Hotel era muito procurado por estrangeiros na déc. de 20, assim como o local ideal de casamentos e outras festas, tendo ali ficado instalado António de Oliveira Salazar (1889-1970) (Salazar, António de Oliveira) na sua visita à Madeira, em abril de 1925, quando, juntamente com Mário de Figueiredo (1890-1969), e a convite de elementos do Centro Católico, foi apresentar as suas ideias de Governo para Portugal. O local tinha-se tornado igualmente lendário com as festas da Escola Laical de O Vintém (Escola Laical), entrando em dificuldades no final da déc. de 40, face à Segunda Guerra Mundial e às partilhas entre os herdeiros. Ainda veio a ser adquirido pela Companhia de Caminhos de Ferro do Monte, em 1957, numa efémera tentativa de relançamento da Companhia. Somente nos finais da déc. de 80 é que o edifício viria a adquirir o seu anterior esplendor, com a aquisição por Joe Berardo (1944-), para doação à fundação que tem o seu nome, tendo-se os seus jardins tornado igualmente um dos cartazes turísticos mais importantes da freguesia. Com o prolongamento da linha do caminho de ferro, em 1910, até ao Terreiro da Luta, a Companhia ali levantou, também, um Restaurante Esplanada, num local que, pela sua situação, se tornou igualmente emblemático, sendo internacionalmente divulgado, em especial através das reproduções das aguarelas do pintor Max Römer. O edifício não se afasta dos padrões de gosto dos chalés europeus dos inícios do século, embora de um só piso aparente, sendo equipado para nascente com uma torre ao gosto dos castelos medievais, encimada por ameias e merlões, de profundo sentido romântico. Foi dos poucos edifícios que conseguiu resistir às alterações de gosto e de mercado, ainda funcionando como restaurante e esplanada nos começos do séc. XXI. O mesmo não aconteceu com o enorme chalé do banqueiro Manuel Gonçalves (1867-1919) (Gonçalves, Manuel), o polémico homem forte dos interesses alemães na Madeira. O edifício inspira-se nos castelos medievais do Norte da Europa e é coroado por uma interessante torre com coruchéu sextavado de idêntica inspiração, sendo a fachada, virada para sul, totalmente percorrida por uma varanda corrida, tanto no piso térreo como no superior. O banqueiro faleceu neste chalé que, pouco tempo depois, foi adaptado a The Mount Royal Hotel, assim vindo publicitado no Power’s Guide de 1930. O início da época dos Grandes Hotéis O espaço entre as duas guerras mundiais marca já um volume exponencial do tráfego marítimo e a correspondente necessidade de aumento da capacidade hoteleira da área do Funchal. Assiste-se então a sucessivas ampliações dos anteriores edifícios e a uma progressiva apropriação da orla marítima pelas principais unidades hoteleiras, aspeto que, uns anos antes, já era patente na construção de raiz do New Reid’s Hotel, mesmo antes de passar a Reid’s Palace Hotel, o que também foi quase imediato. A cidade do Funchal vai expandir-se para poente, tendência geral das grandes cidades europeias, numa apropriação dos espaços de fim de tarde como horário privilegiado de lazer. As acessibilidades tinham começado com a construção da Est. Monumental, unindo a cidade do Funchal a Câmara de Lobos, o que obrigara à construção de uma série de pontes sobre as inúmeras ribeiras existentes e junto das quais iriam nascer as principais unidades hoteleiras. Em 1898, a fazer fé no Power’s Guide de 1914, foi estabelecido a Este da foz do Ribeiro Seco o Atlantic Hotel, ampliado em 1913. A edificação original não se afastava das anteriores quintas de aluguer, mas a reconstrução desse último ano já apresentava um andar nobre com varanda corrida para Sul e um andar superior em mansarda. Possuía ainda corpos adossados, sendo o corpo para poente dotado de terraço, e incorporava na área duas ou três residências preexistentes. Já possuía, assim, um importante jardim com terraço com vista sobre o porto e, em breve, apropriar-se-ia da praia, construindo aí instalações balneárias, divulgadas através das aguarelas promocionais de Max Römer, embora o edifício representado – dadas as fotografias que conhecemos – em princípio não fosse o do Atlantic Hotel. Em julho de 1936, entrava na Câmara Municipal do Funchal um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares (1892- 1983) (Tavares, Edmundo), que no ano anterior executara um projeto semelhante para o vizinho Savoy Hotel. O projeto não alterava a volumetria, limitando-se a reformular a entrada, dotando-a de um pórtico neoclássico exterior; no interior, criava um átrio de entrada com receção, que não existia. Por 1970, o conjunto seria totalmente demolido e, no seu local, levantado um importante edifício, então entregue à cadeia internacional Sheraton, inaugurado a 20 de novembro de 1972. O conjunto foi ainda prolongado pouco depois, descendo ao longo da falésia com novos apartamentos e piscinas e, alguns anos depois, foi adquirido pelo Grupo Pestana, que nele instalou o Pestana Carlton Hotel. Muito próximo e para nascente da margem do Ribeiro Seco, pelas últimas décadas do séc. XX, era construído o Royal Hotel, ainda dentro da tradição do turismo terapêutico, constituído por 2 corpos e uma torre central, sendo o 1.º andar totalmente preenchido por uma varanda de repouso, que recorria a uma armação estrutural de ferro fundido. O edifício parece ter recorrido a uma residência anterior, sendo a entrada no 1.º andar ladeada por dois óculos de cantaria aparente, dentro da tradição local. A entrada efetuava-se pela R. Imperatriz D. Amélia e, nos seus jardins, contava também com um court de ténis. No final da última década do séc. XIX foi adquirido por José Dias do Nascimento (1868-1934), passando a designar-se Savoy Hotel e, em 1912, já tinha 24 quartos. Nos meados da déc. de 20 do séc. XX , seria totalmente demolido, levantando-se no seu local uma enorme estrutura, para a época, com uma fachada voltada para sul de cinco pisos e integrando ainda duas torres de mais dois pisos. Em 1928, abria, assim, com 220 camas, tendo o espaço até à R. Imperatriz D. Amélia sido de novo ajardinado. Em abril de 1935, entrava na Câmara Municipal do Funchal um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares, mas que não alterava significativamente o que estava construído e que se limitava à construção de um anexo para salão de jantar. Cerca de 10 anos depois, à semelhança do Reid’s Palace Hotel e Atlantic Hotel, o Savoy Hotel conseguiria também acesso ao mar, construindo uma nova estrutura na falésia, então independente do edifício principal, que chegou a ter a designação de Savoy Hotel Lido. As instalações balneárias do Savoy Hotel não pararam de crescer e, na déc. de 60, o edifício principal seria parcialmente demolido, construindo-se, no mesmo local, um dos maiores hotéis da cidade, que, em 1970, abria com 750 camas. O edifício tinha já entrada pela nova Av. do Infante e apresentava oito pisos em dois blocos compactos, rematados no piso superior por um restaurante panorâmico e uma boîte. Em 2002, a área das piscinas reformulava-se como Royal Savoy, num mega projeto de luxo, e o edifício superior dos finais da déc. de 60 era objeto de idêntico mega projeto, sendo demolido em 2011, mas acabando o projeto por ficar pelas fundações. Em 2013, um dos herdeiros do fundador e dos últimos gestores desta unidade hoteleira, António Drumond Borges, editou uma coleção de memórias destes três emblemáticos hotéis madeirenses. Alguns pequenos hotéis foram resistindo à concentração nas grandes cadeias, mantendo-se quase privados, como ocorreu com o Hotel da Bela Vista, situado atrás do Hospício da Princesa D. Maria Amélia e com acesso pela R. do Jasmineiro, que foi crescendo nos últimos anos do séc. XIX. O hotel teve por base uma residência dos meados do séc. XIX, com um bom parque envolvente e uma situação invejável que lhe deu o nome de Bela Vista ou Bella Vista. Este hotel é mencionado no guia de Paul Langerhans, em 1885, como Falkner’s Private Hotel, embora, entre 1891 e 1901, esteja registado em nome de Eugénio Jones. A construção da aparatosa e enorme varanda de repouso deverá ter sido feita pouco depois, ocupando o espaço que foi depois a sala de jantar do Seminário Diocesano, entidade que viria a ocupar o imóvel. Este hotel deveria ter gozado de uma certa independência em relação às estruturas turísticas e deveria ter captado uma especial clientela, pois é, porventura, uma das unidades turísticas mais fotografadas nos finais do séc. XIX e nos inícios do séc. XX, especialmente a base das escadas de acesso ao jardim, onde os vários turistas aparecem fotografados em redes e em carro de bois. Com a expansão da cidade para poente, a construção do complexo desportivo do Lido (Complexo desportivo do Lido), do Clube Naval (Clube Naval) e do Clube de Turismo (Clube de Turismo), entre outros, ainda na déc. de 30 do séc. XX , surgia no caminho velho da Ajuda, mais um hotel, o New English Hotel, adaptando uma anterior residência ao modelo dos velhos hotéis do turismo terapêutico, com a justaposição à fachada de um corpo de varandas apoiado em colunas de ferro forjado, a que se acrescentou, para poente, idêntico corpo mais pequeno. O esquema repetia quase o do inicial Royal Hotel, que tinha dado origem ao Savoy Hotel, transformando somente em torre aparente a anterior janela de mansarda, num esquema tradicionalista e já perfeitamente retrógrado para a época. Nos finais do século, o edifício viria a ser adaptado para sede da Fundação Cecília Zino (Fundação Cecília Zino). A construção do aeroporto e o aumento do porto Os meados do séc. XX foram marcados, na Madeira, pela emergência do grande turismo internacional, com a montagem da primeira empresa privada britânica de transporte aéreo a operar um serviço internacional regular, em 1949, com os chamados “barcos voadores” da Aquila Airways (Aquila Airways), a que se seguiu a ampliação do porto do Funchal (Porto do Funchal), então capaz de receber, com cais de acostagem, os grandes paquetes internacionais e, na déc. de 60, a construção do aeroporto do Porto Santo e, mais tarde, do aeroporto de Santa Catarina, em Santa Cruz, na Madeira, sucessivamente Aeroporto da Madeira e Aeroporto Cristiano Ronaldo (Aeroportos). A adaptação, evidentemente, não foi imediata, voltando-se, para o efeito, a reformular anteriores residências, como foi o caso da inicial residência levantada por Salomão da Veiga França (1893-1961), na Est. Monumental, que já aparece no Power’s Guide de 1930 como Miramar Hotel. O Miramar Hotel foi objeto, em julho de 1938, de um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares, que alterou significativamente a volumetria, acrescentando um amplo corpo de dois pisos para poente, tendo sido utilizado para apoio às tripulações da Aquila Airways, tal como, na Segunda Guerra Mundial já tinha sido utilizado para a comunidade refugiada britânica de Gibraltar (Gibraltinas). Este antigo hotel, profundamente ampliado e reinterpretado, deu origem, em 1990, ao Pestana Miramar Hotel. Idêntico percurso teve a antiga residência de Francisco Conceição Rodrigues, que fora diretor do Diário de Notícias, junto da ponte do Ribeiro Seco, na R. do Favila, cuja construção foi interrompida em 1927 com a saída do proprietário do Funchal. O edifício de dois pisos, com uma ampla varanda corrida ao longo da fachada, viria a albergar o Casino Monumental, assim chamado dada a proximidade da Est. Monumental e, ainda na déc. de 30, seria ampliado para poente com mais dois pisos, dando origem, na déc. de 40, ao Hotel Nova Avenida, ou New Avenue Hotel, em homenagem à ampliação da Av. do Infante. Sem especiais alterações, nos finais do século, viria a albergar o Conservatório e Escola Profissional das Artes Engº Luiz Peter Clode. As décs. de 50 e 60 abriram perspetivas totalmente novas à Madeira, com as novas ligações aéreas da Aquila Airways, que a 1 de janeiro de 1950 trouxeram à Madeira o chefe do partido conservador inglês, sir Winston Leonard Spencer Churchill (1874-1965), que se instalou no Reid’s Palace Hotel, onde permaneceu 11 dias, embora regressando a Londres de navio; tal como, no final do ano seguinte, a jovem Margaret Thatcher (1925-2013) que, em lua de mel, se hospedou no Savoy Hotel. O novo ciclo económico, especialmente vocacionado para o turismo, é patente, e.g., na diversificação dos investimentos da Casa Hinton, essencialmente vocacionada para a moagem, que, ao longo desses anos, diminui a atividade, passando a Fábrica do Torreão a funcionar sazonalmente. O comendador Harry Hinton (1857-1948) (Hinton, Harry) falece a 16 de abril de 1948 e, num curto espaço de dois anos e pouco, o herdeiro, George Welsh (1895-1981), investe igualmente na indústria hoteleira, abrindo o Hotel Santa Isabel, junto ao Savoy, na Av. do Infante, em frente ao então recente Hotel Nova Avenida, pouco depois ampliado e pronto para a abertura no outono de 1960. Em termos de política económica nacional, a déc. de 50 iniciou-se com o I Plano de Fomento (1953-1958) que, entre vários objetivos, apontava para um plano de realizações no campo da agricultura, privilegiando a colonização interna e tentando assim fixar as populações no campo, de onde cada vez mais fugiam. Tal como no continente, o plano, na Madeira, era essencialmente direcionado para o aproveitamento hidroelétrico e para os aspetos gerais dos transportes, onde o país apresentava um franco atraso. O projeto vinha da Lei de Reconstituição Económica de 1935 e deu origem, na Madeira, à reformulação do sistema de levadas (Levadas) e ao seu aproveitamento para o fornecimento de energia elétrica à cidade do Funchal e ao respetivo parque hoteleiro. A cidade expandiu-se, então, decididamente para poente, sendo na área do Lido que vão surgir progressivamente novos hotéis, cuja construção, ao longo da déc. de 60, chega quase à praia Formosa, com o Hotel Madeira Palácio, em cujo capital chega a participar a TAP, transportadora aérea portuguesa. Com a abertura do aeroporto de Santa Catarina, inaugurado a 8 de julho de 1964, a empresária Fernanda Pires da Silva (n. 1926), presidente do Grupo Grão-Pará, iniciou os trabalhos para a montagem na área do complexo turístico da Matur, em Água de Pena (1972-1999). A 20 de novembro de 1972 eram assim inaugurados os grandes hotéis construídos de raiz na época, a saber, o Sheraton, no Funchal, onde se havia levantado o antigo Hotel Atlântico, e o Atlantis Holiday Inn, junto ao aeroporto, como os restantes hotéis dessa cadeia internacional. Para a inauguração, deslocou-se, mais uma vez, à Madeira, o chefe de Estado, Alm. Américo Thomaz (1894-1987), que ainda inauguraria o bairro social do Grémio dos Bordados (Grémio dos Bordados), acima da Qt. do Til, no Funchal. O complexo da Matur representava uma inovação no contexto da hotelaria insular, afastando-se do Funchal algumas dezenas de quilómetros. Era filosofia da cadeia hoteleira Holiday Inn, com a qual o Grupo Grão Pará trabalhava, procurar novos espaços e localizar-se nas imediações de aeroportos, permitindo uma rápida instalação dos utentes e, igualmente, uma rápida saída. O complexo possuía outro aspeto mais ou menos inovador à época, que era a articulação com pequenos apartamentos de férias, independentes da unidade hoteleira-mãe, o que, na área do Lido, no Funchal, igualmente se ensaiava com os apartotel. A Matur encontrava-se dotada também de um amplo parque ajardinado, com instalações para congressos, clube de bridge, restaurantes, piscina olímpica, etc. As alterações do mercado turístico, nos anos seguintes, colocaram em causa o projeto e a ampliação do aeroporto levou à necessidade de demolição do Atlantis, que, com os seus 17 pisos, levantava questões de segurança ao tráfico aéreo, o que veio a acontecer, por implosão, a 22 de março de 2000. A grande obra de arquitetura desta época foi o complexo do Casino Parque Hotel (Casino Parque Hotel), posteriormente Pestana Casino Park, projetado sumariamente pelo arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer (1907-2012), em 1966, e executado pelo arquiteto português Alfredo Viana de Lima (1913-1991) que, tal como Niemeyer, fora discípulo do arquiteto francês Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido como “Le Corbusier” (1887-1965). A atuação de Niemeyer foi muito limitada, não passando de esquiço e, depois, de um anteprojeto na escala de 1:500, tendo o desenho definitivo, de 1970, os detalhes e o acompanhamento sido feitos pelo arquiteto português. Teria havido, inclusivamente, divergências ao longo da execução do projeto, e.g. em relação a parte da estrutura ficar assente em pilares, uma vez que o Casino Parque Hotel era construído nos terrenos da antiga Qt. Vigia, que eram terrenos públicos, tendo Viana de Lima sido inflexível no respeito do anteprojeto, enquanto Niemeyer, então em Paris, chegara a condescender. O resultado é uma obra-prima de desenho e de arquitetura brutalista dessa época, acrescida ainda da participação, no desenho da arquitetura de interiores, do arquiteto Daciano Costa (1930-2005). Uma das poucas características da arquitetura do turismo de lazer na Madeira parece ser a sua muito especial relação com a paisagem envolvente, através da contínua criação de possibilidades múltiplas de observação e de usufruto da mesma, através de miradouros. Nos inícios do séc. XX, quando o arquiteto Ventura Terra elabora o seu plano de urbanismo para o Funchal, o acesso e a construção de miradouros foi uma das diretivas mais expressas. Nos anos seguintes, estas estruturas situadas nas encostas da cidade serão uma das prioridades camarárias, e, a partir da déc. de 40, uma das preocupações da Delegação de Turismo da Madeira (Delegação de Turismo da Madeira). O domínio quase absoluto do turismo de origem britânica e dos empresários dessa nacionalidade levou a que a arquitetura do turismo de lazer, na Madeira, não ganhasse características especialmente locais, embora utilizando mão de obra local e um saber artesanal ancestral, que informara de uma forma geral a arquitetura insular como uma arquitetura sem arquitetos. Os modelos vão ser, assim, importados, como os chalés do norte e centro da Europa e, depois, os modelos internacionais ensaiados nos grandes centros turísticos internacionais. Nem o recurso a arquitetos de gosto nacionalista, como o caso de Edmundo Tavares, que fez pelo menos três projetos de reforma em hotéis nos meados da déc. de 30 do séc. XX, permitiu criar alguma coisa que lembrasse muito especialmente esse tipo de gosto, até por estar a trabalhar para uma clientela internacional. Nas décadas seguintes, e dada a circulação exponencial dos modelos internacionais, também serão esses a ser levantados na Madeira, tendo sempre em vista que o turista só muito raramente poderia ser nacional. Acresce que, sendo o mercado turístico altamente competitivo e sujeito às constantes alterações do gosto internacional, a tendência para a constante reformulação dos edifícios e dos seus equipamentos leva à eliminação de quase todas as preexistências em nome da novidade e do moderno. Mesmo em casos de indiscutível e internacional qualidade, como o do Reid’s Palace Hotel e do Casino Park Hotel, a tendência e a necessidade de inovação representam sempre um alto risco para o património arquitetónico edificado e, mais ainda, para a arquitetura de interiores. O desenvolvimento da cidade para poente, como acontece nas principais congéneres portuárias do Sul da Europa, levou à criação de uma zona de lazer especialmente vocacionada para parque hoteleiro, a área do Lido, a par de uma zona de montanha, a freguesia do Monte. No entanto, se a zona do Lido preservaria essas características, embora mesclada de parque habitacional, tal parece, de certa forma, ter-se gorado no Monte. A construção de acessibilidades múltiplas e, especialmente, a construção do teleférico, associada a uma cada vez mais rápida passagem do turista, tem dificultado a manutenção, no Monte, de determinado tipo de serviços, tais como a restauração e o alojamento, face à sua pouca rentabilidade. A passagem do séc. XX para o séc. XXI apresentou alguns aspetos inovadores, com uma nova apetência de alguns segmentos do turismo nacional e internacional para outros tipos de lazer, fora das grandes cidades e com outro género de ocupação do tempo. Tal permitiu a execução de projetos arquitetónicos de raiz muito inovadores, tal como a reabilitação de antigas quintas e propriedades rurais, que se afastam profundamente dos pressupostos gerais que nortearam o turismo ao longo da segunda metade do séc. XX, especialmente o de massas.     Rui Carita (atualizado 14.12.2016)

Arquitetura Património História Económica e Social

área(s) marinha(s) protegida(s)

As áreas marinhas protegidas (AMP) correspondem, numa aproximação jurídica de carácter genérico, à aplicação de um regime jurídico específico e reforçado de proteção ambiental a um espaço marítimo delimitado. Quando o âmbito de aplicação espacial é o oceano circundante ao território terrestre da RAM (nos termos do art. 3.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira – EPARAM: o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus”), uma adequada compreensão do seu regime jurídico implica que se tenha simultaneamente em consideração uma multiplicidade de fontes de direito, dado que o enquadramento jurídico-internacional aplicável aos oceanos condiciona a regulamentação proveniente de fontes internas. Assim sendo, no que respeita às AMP existentes na RAM, a sua regulamentação é o resultado da conjugação das fontes aplicáveis de direito regional, de direito interno português, de direito da União Europeia e de direito internacional, com destaque para o direito internacional aplicável aos espaços marítimos. Com efeito, as AMP, ao determinarem quais são os usos permitidos e proibidos num espaço marítimo delimitado e ao pretenderem simultaneamente conformar os comportamentos de todos os potenciais utilizadores do mar, sejam estes nacionais ou estrangeiros, devem respeitar o direito internacional relevante, na medida em que este é o fundamento último de legitimação da atuação do Estado costeiro e das suas divisões ao nível da organização política e administrativa. A qualificação de uma determinada zona de oceano como AMP é recente na prática dos Estados, coincidindo com a progressiva relevância dada às questões ambientais a partir da déc. de 70 do século passado. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), comummente designada como a Constituição dos Oceanos, não fornece um conceito jurídico-internacional para este instituto jurídico, nem contém identicamente um regime jurídico-internacional dedicado especificamente às AMP, não obstante a sua parte XII ser dedicada à “[p]roteção e preservação do meio marinho” e o art. 192.º proclamar expressamente que os “Estados têm obrigação de proteger e preservar o meio marinho”. O n.º 5 do art. 194.º, com a epígrafe “medidas para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho”, estabelece que os Estados devem tomar as medidas “necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros e frágeis, bem como o habitat de espécies e outras formas de vida marinha em vias de extinção, ameaçadas ou em perigo”, o que tem sido utilizado como o fundamento jurídico para a evolução que se deu neste domínio no final do séc. XX e no princípio do séc. XXI. Importa salientar que, ao nível do direito internacional geral, as AMP não constituem um espaço marítimo específico, em paralelo aos restantes espaços marítimos reconhecidos pelo direito internacional do mar (tal como o mar territorial, a zona contígua, as águas arquipelágicas, a zona económica exclusiva, a plataforma continental, o alto mar e a Área [veja-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, art. 1.º d, n.º 1, 1)]), mas antes a sujeição de áreas do mar com uma qualificação jurídica-internacional específica a um regime jurídico particular distinto daquele que é normalmente aplicável ao espaço marítimo em questão, nomeadamente ao nível do reforço da proteção ambiental. Nestes termos, a criação de uma AMP pela RAM num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição do Estado português, como na zona económica exclusiva, deve ter simultaneamente em consideração os direitos e os deveres do Estado costeiro e os direitos e os deveres que são reconhecidos aos terceiros Estados, nomeadamente pela parte V da CNUDM e pelo direito internacional costumeiro. Embora o direito internacional geral não forneça um conceito de AMP, podem ser encontradas definições em outros documentos de direito internacional, nomeadamente naqueles que têm vindo a ser produzidos no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992), no âmbito da Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste, também denominada Convenção OSPAR (1992), e nos trabalhos que foram sendo desenvolvidos sobre a matéria no seio da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Sendo os “parques naturais” uma matéria de interesse específico da RAM, nos termos da alínea jj) do art. 40.º do EPARAM, a regulamentação aplicável às AMP é, na sua base, de natureza regional. Em 2016, existiam cinco AMP na RAM, sendo duas de carácter exclusivamente marinho e três com áreas mistas, marinhas e terrestres. As AMP cujo âmbito de proteção é exclusivamente marinho são a Reserva Natural Parcial do Garajau e a Reserva Natural do Sitio da Rocha do Navio. As AMP cujo âmbito de proteção é simultaneamente marinho e terrestre são a Reserva Natural das Ilhas Selvagens, a Reserva Natural das Ilhas Desertas e a Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo. A Reserva Natural Parcial do Garajau, que foi a primeira área exclusivamente marinha a ser criada em Portugal, é regulada pelo dec. leg. regional n.º 23/86/M, de 4 de outubro, com modificações introduzidas pelo dec. leg. regional n.º 38/2006/M, de 4 de agosto. Em conformidade com o n.º 1 do seu art. 2.º, a “área da Reserva Natural Parcial do Garajau tem como limites: a) A oeste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta do Lazareto até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; b) A leste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta de Oliveira até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; c) A norte, a linha definida pela máxima preia-mar de marés vivas; e d) A sul, o plano definido pela vertical da linha batimétrica dos 50 m e, em caso de dúvida, uma linha a uma distância nunca inferior a 600 m do limite norte”. O corpo do n.º 4 do art. 1.º do Regulamento do Plano Especial do Ordenamento e Gestão da Reserva Natural Parcial do Garajau, aprovado pela resolução n.º 882/2010, de 5 de agosto, esclarece que a “área de intervenção (…) é o leito do mar, com uma dimensão total de 376 hectares, e uma linha de costa de aproximadamente sete quilómetros”. O n.º 1 do art. 3.º antes citado estipula que na área do Reserva Natural Parcial do Garajau é proibido: “a) Exercer quaisquer atividades de pesca, comercial ou desportiva, incluindo a caça submarina; b) Colher exemplares animais e vegetais, exceto para fins científicos, quando devidamente justificados e autorizados; c) Extrair areias e outros materiais de origem geológica; d) Vazar quaisquer tipos de sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; e) Instalar condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e f) Navegar dentro dos limites da reserva, com exceção da abicagem de pequenas embarcações às praias, aplicando-se, neste caso, a legislação em vigor”. Concretizando a alínea a) do n.º 3 do art. 3.º, o dec. reg. regional n.º 1/97/M, de 14 de janeiro, regula o exercício do mergulho amador na área da Reserva Natural Parcial do Garajau, entendido como a atividade prosseguida por “um amador, quando se desloca, submerso ou à superfície, equipado com um aparelho respiratório de mergulho”. A Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio foi criada pelo dec. leg. regional n.º 11/97/M, de 30 de julho, e abrange uma área de 1822 ha, sendo 1820 ha de área marítima e 2 ha correspondentes ao Ilhéu da Viúva (de acordo com a informação disponibilizada pelo Programa de Medidas de Gestão e Conservação do Sítio da Rede Natura 2000 do Ilhéu da Viúva). Em conformidade com o seu art. 2.º, a Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio está “definida e delimitada […] no sítio da Rocha do Navio, entre a ponta do Clérigo a leste e a ponta de São Jorge a oeste e entre a linha definida pela preia-mar máxima e a batimétrica dos 100 m, incluindo os seus ilhéus e respetivas áreas marítimas” (sendo a batimétrica uma linha que une pontos da mesma profundidade no mar). O art. 4.º estabelece que na área da Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio é expressamente proibido: “a) O uso de redes de emalhar ou outras, exceto as empregues na captura de isco vivo e o peneiro, empregue na captura da castanheta; b) A colheita, captura, detenção e ou abate de quaisquer espécies de aves ou plantas; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; e f) A caça submarina”. Através da resolução n.º 751/2009, de 2 de julho, o Conselho do Governo regional determinou a classificação do Ilhéu da Viúva como Zona Especial de Conservação (ZEC), ao abrigo da legislação da União Europeia sobre a conservação das aves selvagens e a preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens. A Reserva Natural das Ilhas Selvagens foi inicialmente estabelecida pelo dec. n.º 458/71, de 29 de outubro, como reserva, ao abrigo da lei n.º 9/70, de 19 de junho, e representou o primeiro exemplo de AMP em Portugal. Nos termos do seu art. 1.º, passou a “constituir uma reserva toda a área das Ilhas Selvagens e também a orla marítima que as rodeia até à batimétrica dos 200 m”. Posteriormente, foi classificada como reserva natural pelo dec. regional n.º 14/78/M, de 10 de março. Ao abrigo do n.º 2 do seu art. 1.º, a “reserva natural é definida pelo território das ilhas e pelos fundos marinhos até à batimétrica dos 1000 m.” O limite exterior da reserva natural foi reduzido à linha dos 200 m de profundidade, pelo dec. regional n.º 11/81/M, de 15 de maio, tendo uma área total de 9455 ha, em conformidade com a resolução n.º 1408/2000, de 19 de setembro. Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º estabelecia que na área da Reserva Natural das Ilhas Selvagens eram proibidos: “g) A colheita de material geológico ou arqueológico ou a sua exploração sem autorização do Governo Regional; h) A caça submarina; i) A pesca de arrasto e outras artes que colidam com o fundo até à batimétrica fixada pela reserva, ressalvando-se as artes de anzol e rede”. Em conformidade com o art. n.º 11, com a epígrafe “atividades condicionadas” do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. Pelo edital n.º 15/2011, de 29 de novembro, da Capitania do Porto do Funchal, está “interdita toda a atividade de pesca na faixa litoral das Ilhas Selvagens até à batimétrica dos 200 (duzentos) metros, por período indeterminado”, em razão da “suspeita da eventual presença de uma microalga produtora de uma biotoxina suscetível de provocar alterações ao nível da saúde humana”. As Ilhas Selvagens são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Selvagens, com uma extensão de 124.530 ha), estando inscritas na categoria 1.a de gestão de áreas protegidas da União Internacional da Conservação da Natureza como “área de reserva natural integral gerida prioritariamente para fins de pesquisa científica, assegurando que os habitats, ecossistemas e as espécies nativas se mantenham livres de perturbação, tanto quanto possível”. A Reserva Natural das Ilhas Desertas foi criada pelo dec. leg. regional n.º 14/90/M, de 23 de maio, como Área de Proteção Especial das Ilhas Desertas, sendo posteriormente o seu estatuto jurídico alterado pelo dec. leg. regional n.º 9/95/M, de 20 de maio. Nos termos do art. 2.º, a Reserva Natural das Ilhas Desertas é “delimitada pela linha batimétrica dos 100 m em volta das Ilhas Desertas, incluindo todas as suas ilhas e ilhéus e a respetiva área marítima”, tendo uma área total de 9455 ha (em conformidade com a informação disponível no Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens). Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º, após as alterações introduzidas pelo segundo dos diplomas antes citados, estabelece que nos locais a sul “do marco geodésico da doca e da Ponta da Fajã Grande, nela se incluindo o ilhéu Chão” são proibidos: “a) A pesca comercial e a pesca sem fins comerciais, designadamente a desportiva; b) A prática de caça submarina; e c) A colheita de exemplares vegetais e animais, exceto para fins científicos, desde que devidamente autorizada; e d) O acesso de pessoas e embarcações, salvo as que hajam sido autorizadas e credenciadas pelo Parque Natural da Madeira”. Em conformidade com o art. 5.º, na sua versão alterada, aplicável a toda à área protegida, é ainda proibido: “a) O uso de artes de redes de emalhar, cercar e arrastar, com exceção das que são empregues na captura de isco vivo; (…), c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e e) A prática de caça submarina”. Em conformidade com o art. 11.º, com a epígrafe “atividades condicionadas”, do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Desertas, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. As Ilhas Desertas são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Desertas, com uma extensão de 76.462 ha). A Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo foi criada pelo dec. leg. regional n.º 32/2008/M, de 11 de agosto. Nos termos do n.º 1 do art. 2.º, é “constituída pela parte terrestre de todos os seus ilhéus e pelas zonas marinhas circundantes do Ilhéu da Cal ou de Baixo e do Ilhéu de Cima, incluindo a zona onde se encontra afundado o navio O Madeirense”, sendo ainda acrescentado no número seguinte, relativamente às áreas marítimas, que integra, em conformidade com a alínea b) a “área marinha limitada a oeste pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 315º a partir da extremidade oeste da Ponta do Focinho do Urso, a sul pela batimétrica dos 50 m, a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e a este pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 135º a partir do enfiamento do Pico de Ana Ferreira” e, nos termos da alínea c), pela “área marinha limitada a oeste pelo azimute verdadeiro 160º a partir da extremidade oeste do Porto de Abrigo, a sul e este pela batimétrica dos 50 m e a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e pelo azimute verdadeiro 90º a partir da Ponta das Ferreiras”. Em toda a área da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo, em conformidade com o n.º 1 do art. 5.º, é interdito: “a) O exercício da pesca para fins comerciais, exceto a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos (…); b) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; d) A instalação de condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e) A extração de areias ou de outros recursos geológicos; f) As atividades náuticas, com exceção das necessárias ao exercício das atividades autorizadas […]; g) A colheita, captura, abate ou detenção de exemplares de quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas ou não a medidas de proteção legal ou efetuar outras atividades intrusivas ou perturbadoras do seu desenvolvimento”. Em contraponto, no art. 6.º, relativo a “atos ou atividades sujeitos a autorização”, está previsto que, desde que devidamente autorizados pela entidade gestora, são permitidos: “a) A pesca marítima sem fins comerciais ou lúdica, com exceção do Ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca (…); b) A apanha de lapa e caramujo no calhau; c) O mergulho de escafandro; d) Caça submarina, com exceção da área do ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca; (…); e f) As atividades marítimo-turísticas (…) que não sejam suscetíveis de pôr em risco a proteção ambiental da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo”. O n.º 3 do artigo citado ainda prevê que é “permitida a travessia de embarcações pelos boqueirões do Ilhéu de Cima e do Ilhéu de Baixo ou da Cal, incluindo a passagem, com esse fim, das respetivas áreas da Rede de Áreas Marinhas Protegidas de Porto Santo”. O n.º 3 do art. 7.º determina que “poderá ser dada prioridade às comunidades locais dependentes da pequena pesca” quando sejam “estabelecidas condições específicas para o exercício da pesca lúdica e para a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos”. Os Ilhéus do Porto Santo são uma área classificada de Zona Especial de Conservação. No que concerne especificamente ao espaço marítimo, importa realçar que uma adequada compreensão do regime jurídico aplicável às AMP implica que tenham em consideração três questões de natureza jurídico-internacional, na medida em que os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos mares e nos oceanos não são equivalentes aos poderes de soberania que os Estados exercem no âmbito do seu território terrestre, em razão de estes serem por natureza exclusivos e excludentes. Em primeiro lugar, deve ser posto em destaque que os mares e os oceanos, apesar da sua unidade física, estão divididos em espaços marítimos com estatutos jurídico-internacionais diferenciados. Em termos gerais, importa distinguir entre espaços marítimos sujeitos à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros (com destaque para o mar territorial, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) e os espaços marítimos internacionais (alto mar) ou com um regime jurídico de internacionalização (Área). Os poderes dos Estados variam em função dos espaços marítimos em questão, pelo que a apreciação de qualquer comportamento levado a cabo por um Estado ou pelos seus nacionais, seja pelo Estado costeiro, seja por terceiros Estados, importa uma prévia localização geográfica no espaço em que ocorrem. Daqui resulta que as referências às batimétricas nas zonas marítimas abrangidas pelas AMP na RAM, como forma de delimitação das áreas especialmente protegidas do ponto de vista ambiental, não tenham de estar necessariamente compatibilizadas com os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos espaços marítimos sob a sua soberania ou jurisdição, tendo em consideração os diferentes poderes que são reconhecidos aos Estados nas águas interiores, no mar territorial, na zona económica exclusiva e na plataforma continental. Em segundo lugar, importa salientar que a atuação dos Estados nos mares e nos oceanos se encontra genericamente enquadrada pelo princípio da liberdade dos mares, em conformidade com o qual todos os Estados, sejam ou não costeiros, podem prosseguir atividades nos diferentes espaços marítimos, sujeitos às limitações que decorrem do direito internacional. As utilizações específicas que podem ser prosseguidas pelos diferentes Estados e pelos seus nacionais estão dependentes do espaço marítimo em questão, mas a ideia básica que subjaz à atuação nos mares e nos oceanos é a de conciliação entre os diversos usos possíveis. Assim, a título de exemplo, embora os Estados costeiros exerçam poderes muito alargados no mar territorial, com a extensão máxima de 12 milhas marítimas (ou milhas náuticas, equivalentes a cerca de 22,22 km), os navios com a bandeira de terceiros Estados podem circular pelas suas águas ao abrigo do direito de passagem inofensiva, sem a necessidade de obterem a anuência ou a autorização desses Estados (arts. 17 a 19 da CNUDM). Finalmente, em terceiro lugar, deve ser tido em consideração que, salvo em situações muito circunscritas, como a colocação de instalações para a exploração de petróleo ou de gás natural ou a construção de ilhas artificiais, os usos dos mares e dos oceanos são temporários e prosseguidos por navios. Daqui decorre a necessidade de se autonomizar os usos que estão reservados para os Estados costeiros, nos casos em que estes tenham lugar num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros, como nos casos do mar territorial, das zonas económicas exclusivas ou das plataformas continentais, e daqueles outros usos, como a navegação, que constituem uma prerrogativa de todo e de qualquer Estado, seja ou não um Estado costeiro, podendo ser prosseguidos em qualquer lugar, com a exceção das águas interiores do Estado costeiro. A necessidade de ser respeitada a liberdade de navegação dos navios com o pavilhão ou bandeira de um terceiro Estado é particularmente relevante em algumas das AMP existentes na RAM, em razão da sua dimensão, com particular destaque para a Reserva Natural das Ilhas Selvagens.   Fernando Loureiro Bastos (atualizado a 14.12.2016)

Biologia Marinha Ciências do Mar Ecologia

archais, associação de arqueologia e defesa do património da madeira

A ARCHAIS nasceu a 15 de abril de 1998. A sua atuação engloba a área da arqueologia e luta pela defesa do património cultural. Como obra fundamental de arranque, realizou o projeto cultural do Solar do Ribeirinho, em Machico, distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Realizou inúmeros encontros, seminários e publicações diversas. Palavras-chave: arqueologia; associações culturais; defesa do património; inventários; recriações históricas.   A ARCHAIS, acrónimo da Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira, inspirado na palavra grega Arkhais que significa “antigo”, nasceu a 15 de abril de 1998, data em que formalmente registou os seus estatutos, então com sede no Sítio do Povo, em Gaula, Santa Cruz. A ARCHAIS surgiu na sequência de uma série de associações deste âmbito que proliferaram em Portugal continental e na ilha da Madeira durante as décs. de 80 e de 90, mas quase sempre, por razões de ordem vária, quer políticas quer sociais, de duração efémera. Os sócios fundadores foram Arlindo Quintal Rodrigues, Richard da Mata e Élvio Sousa. A associação assumiu-se desde logo como sociedade sem fins lucrativos, apartidária e não religiosa, visando desenvolver na RAM uma série de atividades de forma a defender os valores relacionados com a arqueologia e com o património, e a enriquecer o espírito de grupo e a cidadania. Os elementos fundadores já se encontravam a trabalhar desde 1997 pelo menos, procurando fazer um diagnóstico da situação do património cultural a nível regional. Foi com base nesse diagnóstico que vieram a assumir intervenções em várias frentes, especialmente na promoção de campanhas e de trabalhos na área da arqueologia, criando, inclusivamente, não só uma escola de arqueologia para o ensino, a formação e a promoção das campanhas a efetuar, e a promoção de cursos técnicos de introdução e de iniciação à arqueologia, à conservação e ao restauro, mas também visitas de alerta para a preservação geral do património cultural material do passado. No final da primeira década do séc. XXI, foi lançado o Portal do Arqueólogo, dedicado a todos os profissionais da área da arqueologia. Este serviço pretendia facilitar e agilizar os procedimentos decorrentes da prática profissional da arqueologia no território continental e promover a dinâmica entre a tutela do património arqueológico e o trabalhador/investigador. A obra fundamental de arranque do projeto cultural da ARCHAIS foi o trabalho de arqueologia desenvolvido a partir do Solar do Ribeirinho, em Machico, coordenado pelo Prof. Arlindo Rodrigues, que se estendeu a outros locais da cidade, tendo depois o solar sido transformado em museu, com projeto do arquiteto Vítor Mestre, que, em 2016, foi distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Solar do Ribeirinho. Tapete.     Escavação Junta de Freguesia de Machico   Foi no projeto de escavação da área do solar que se alicerçaram, de imediato, outras iniciativas, tal como a realização do I Encontro Regional de Arqueologia e Património, no Funchal, a 26 e 27 de abril de 2000, cujos conteúdos foram depois publicados no Livro Branco do Património (2003). Outros encontros seguiram-se, e.g.: Legislação e Património, Arqueologia e História e Mesa-Redonda sobre a Nova-Lei de Bases do Património. Partindo da premissa de que publicar seria a melhor forma de defender e de valorizar o património e o trabalho desenvolvido, foram sendo dados à estampa não só vários estudos temáticos, tais como A Propósito do Solar do Ribeirinho (2000) e Iluminação Pública em Machico (2001), mas também inventários gerais de património de cidades e de freguesias da Região, com o apoio fundamental das Câmaras Municipais e de outras instituições.   As atividades de defesa do património da ARCHAIS estenderam-se ainda ao património cultural e ao imaterial, tendo-se tais ações integrado especialmente nos chamados mercados quinhentistas (recriações históricas muito divulgadas por toda a Europa desde os finais do séc. XX, de que o mercado de Machico se tornou paradigmático na Região). Estes eventos começaram com vários elementos ligados à Associação, com o apoio da Câmara de Machico e da Escola Básica e Secundária de Machico, quer na orientação dos professores quer na participação dos alunos, tendo-se alargado progressivamente. Naqueles mercados quinhentistas organizaram-se também colóquios sobre o património cultural imaterial que, embora não surgissem com a chancela da ARCHAIS, tinham a sua marca de origem. A atividade da ARCHAIS é indissociável da revista Ilharq, cujo n.º 0 apareceu em 2000 e o n.º 1, em 2001,e que abarca um amplo leque de temas, especialmente na área do património arqueológico. A partir do seu n.º 8, a revista começou a apresentar uma periodicidade bianual com o apoio da Câmara Municipal de Machico, e a ARCHAIS começou a ter a sua sede na antiga escola do Sítio dos Maroços, em Machico. O n.º 11 foi apresentado no Solar do Ribeirinho, a 11 de dezembro de 2015, reunindo um conjunto de artigos sobre o concelho de Machico, e revelando temáticas tais como a história regional e local, o património arquitetónico, a arte, a azulejaria, a etnografia, as tradições e as vivências quotidianas. Desde o nascimento da ARCHAIS, em 1998, foram sendo publicados também boletins informativos, acompanhados de imagens das atividades da Associação, tendo os primeiros boletins começado com uma periodicidade quadrimestral, evoluindo para uma periocidade semestral, e acabando, finalmente por se tornar anuais. A atividade da Associação, embora gozando do apoio de inúmeras personalidades nacionais ligadas à arqueologia, pretendendo intervir em toda a Ilha e arvorando-se de valores da cidadania participativa, encontrou alguma dificuldade no Funchal, devido a também existirem naquele local outras estruturas regionais e concelhias relacionadas com a área da arqueologia. Acresce que, embora assumindo-se como não partidária pelos seus estatutos, teria sido no seio desta associação, ou pelo menos com elementos ligados à mesma, que surgiu a formação partidária Juntos pelo Povo (Partidos políticos), que conquistou rapidamente representação autárquica e regional. Nesse sentido e torneando essas dificuldades, a ARCHAIS e os elementos ligados à mesma apostaram na diversificação de polos de desenvolvimento, fundando, por exemplo, o Centro de Estudos em Arqueologia Moderna e Contemporânea (CEAM), que, em união com outras entidades, desenvolveram projetos alternativos e apostaram em interessantes iniciativas vocacionadas para as camadas mais jovens (e.g., os chamados Giro de Património e os roteiros juvenis), com bastante sucesso. Estas ações, que pretendiam divulgar a realidade patrimonial local numa perspetiva de sensibilização para a necessidade de proteger, de preservar e de valorizar a mesma, conseguiram assim estender-se a quase toda a Ilha, inclusivamente às várias freguesias do Funchal, com o apoio das respetivas juntas de freguesia. O primeiro Giro, intitulado Património Histórico de Machico, editado com o apoio da Câmara Municipal de Machico, com textos de Isabel Gouveia e de Virgínia Nóia, e com design de Ricardo Caldeira, teve edição em abril de 2000; seguiu-se-lhe o Giro pelo Património Edificado de Santa Cruz, em 2001, com o mesmo design, texto de João Lino Pereira Moreira e fotografias de Élvio Duarte Martins Sousa. O sucesso da iniciativa levou a que ambos estes giros tivessem nova edição, seguindo-se, ainda em 2001, o Giro pelo Património Edificado da Ponta do Sol, com texto de Emanuel Gaspar e com o apoio da respetiva Câmara. Seguiram-se o Giro pelo Património Cultural de Santana, em 2002, e o Património Edificado da Ribeira Brava e Histórico-Arquitetónico da Calheta, em 2004, tendo sido depois promovidos, nas freguesias do Funchal, o Histórico de Santa Maria Maior, em 2005, o Histórico da Sé, em 2006, o Histórico de São Pedro, também em 2006, e o Histórico do Monte, em 2007. A ARCHAIS lançou ainda, em formato de livros de bolso, facilmente consultáveis em caminhadas, vários roteiros culturais das freguesias da zona leste da Madeira: o do Caniçal, o do Santo da Serra, o da Água de Pena, o do Porto da Cruz, o de São Jorge, e o de Gaula e de Caniço, entre outras.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

Arquitetura Património Madeira Cultural

zona franca ou centro internacional de negócios da madeira

A criação da Zona Franca da Madeira (ZFM), que veio também a ser designada por Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), resultou de um conjunto de circunstâncias e causas de natureza diversa, sendo umas remotas e outras próximas: por um lado, as aspirações ancestrais dos madeirenses, fundadas na existência de um porto franco de consumo existente nas ilhas Canárias, e, por outro, o movimento que, sob a égide da Associação Comercial e Industrial do Funchal (ACIF), conduziu, face à situação da economia da Madeira na década de 70 do séc. XX, à reflexão do modelo de zona franca mais adequado e consentâneo com as características geográficas, geológicas, morfológicas, económicas e sociais da Madeira. Este desiderato havia já sido ensaiado através da lei n.º 265, de 24 de julho de 1914, que autorizou o Governo a adjudicar a construção e a exploração duma zona franca na Madeira que seria instalada no local julgado mais conveniente por uma comissão técnica, durante 60 anos. Na zona franca, seriam permitidas todas as operações de beneficiação, empacotamento e transformação dos géneros do arquipélago da Madeira em outros produtos comerciáveis, com a exceção do vinho, beneficiando de isenção de direitos para embarcar, desembarcar e depositar aqueles géneros, isenção que não abrangia o cacau e o azeite não destinado a conservas. A zona franca ficava sujeita ao regime fiscal dos armazéns gerais francos, aprovado pelo dec. de 27 de maio de 1911, e a sociedade adjudicatária garantia as suas obrigações legais e contratuais nos termos previstos pela lei de 13 de junho de 1913, que havia autorizado a construção e a exploração de um porto franco em Lisboa. Esta iniciativa legislativa não foi prosseguida e, na déc. de 1970, a ACIF levou a cabo as providências necessárias ao apuramento e à definição do modelo da zona franca mais adequado à Madeira com base nesta dicotomia: uma zona franca comercial ou de consumo, como a das Canárias, ou uma zona franca empresarial, como na Irlanda e nas ilhas do Canal. Para esse efeito, a ACIF promoveu, em 1974, a realização de um estudo da viabilidade e oportunidade da criação de uma zona franca, sustentado em inquérito destinado a recolher a opinião de largos sectores da população sobre o projeto, tendo sido consultados todos os organismos oficiais, os representantes dos vários sectores da vida económica da Região, bem como outros profissionais de diversas atividades. Neste inquérito, a área abrangida pela zona franca admitia três hipóteses: um porto franco, uma zona franca extensiva a toda a ilha da Madeira, ou uma zona abrangendo todo o arquipélago da Madeira. Assente em participação ativa e relevante das entidades consultadas e nos resultados desse inquérito, a ACIF assegurou a elaboração de um estudo prévio, cujo texto provisório foi colocado à apreciação e discussão em 1975, através da consulta às entidades e aos profissionais já auscultados no inquérito anteriormente realizado. O texto preliminar e provisório desse estudo foi publicado na íntegra na imprensa diária, tendo, assim, o debate sido alargado a toda a população. O texto definitivo do estudo prévio resultou da inserção dos contributos obtidos através das diligências efetuadas, contendo uma análise das vantagens advenientes da criação da zona franca – então referenciada como regime de franquia aduaneira –, bem como um projeto de diploma legal e respetivo regulamento atinentes ao correlato regime. Este estudo foi apresentado, em 1975, à então Junta de Planeamento da Madeira, a qual entendeu que, dada a natureza e a importância de que o projeto se revestia, devia o mesmo ser objeto de aprofundamento através de uma entidade internacional especializada na matéria. A ACIF, tendo em consideração que o estudo em causa devia abranger uma perspetiva global, integrada e de longo prazo da economia regional, obteve propostas de três empresas especializadas: a americana International Finance Consultants, a britânica M. L. H. Consultants Ltd e a alemã Agrar und Hydrotechnik, cujos representantes se deslocaram à Madeira para a prestação de esclarecimentos sobre as propostas apresentadas, em reuniões em que também participaram os vogais para o Planeamento e Finanças e para a Indústria, Agricultura e Pescas da então Junta Regional da Madeira. Em 1976, a realização do estudo foi adjudicada à sociedade International Finance Consultants, a qual apresentou o estudo em 1977, tendo o mesmo sido objeto de ajustamentos face ao pedido formulado em 1978 pelo Governo da República de adesão do país à então Comunidade Económica Europeia. Com base neste estudo e nas diligências efetuadas junto do Governo da República, foi, em 1980, criada a Zona Franca da Madeira visando satisfazer uma velha aspiração dos Madeirenses e tendo como pressupostos a especial situação geoestratégica da Madeira, onde se conjugam as características específicas da economia regional com a sua peculiar configuração sócio-política, de molde a facultar o aparecimento de novos sectores voltados para o desenvolvimento económico e social da Região. Na iminência da criação da zona franca, o conselho do Governo regional procedeu à definição da localização e demarcação da área onde a mesma seria instalada, tendo a escolha recaído na freguesia do Caniçal, em território que se delimitava, devido aos princípios e orientações do ordenamento territorial da zona litoral, entre o Garajau e a Ponta de São Lourenço, pela pertença de imóveis afetáveis da Região na referida freguesia, pela localização do aeroporto, pela melhoria do eixo rodoviário que o liga ao Funchal, e pela previsível construção de viadutos previstos sobre as ribeiras em Santa Cruz e no Porto Novo. Em 1988, o Governo regional voltou a pronunciar-se sobre os critérios de implementação da Zona Franca Industrial, tendo em consideração os interesses legítimos do agregado populacional do Caniçal, a localização definitiva das instalações escolares e desportivas, a existência de um porto de pesca e os campos agrícolas experimentais do Governo. Nessa primeira data, ficou assente que seriam definidos posteriormente o regime jurídico-fiscal aplicável, a natureza, o âmbito territorial e as características da zona franca, bem como a regulamentação da atividade nela desenvolvida, tendo em consideração os condicionalismos resultantes das negociações encetadas para a adesão de Portugal à então CEE. Essa definição foi efetuada em 1982, ficando determinado que poderiam ser autorizadas, na zona franca, todas as atividades de natureza industrial, comercial ou financeira, sendo os pedidos de instalação das empresas apreciados e decididos com base em dois parâmetros fundamentais: a idoneidade da firma impetrante e o interesse económico da atividade a desenvolver. Nessa mesma data, ficou a zona franca industrial definida como um enclave territorial onde as mercadorias que nele se encontram são consideradas como não estando no território aduaneiro para efeito de aplicação de direitos aduaneiros, de restrições quantitativas e de mais imposições ou medidas de efeito equivalente. A zona franca deveria ser exteriormente resguardada por uma vedação, de harmonia com o disposto no Código da Reforma Aduaneira, e disporia de uma estância aduaneira e de um posto fiscal próprios, que vieram a ser criados em 1990. A regulamentação operada teve em atenção as normas comunitárias concernentes ao funcionamento de zonas francas e ao denominado regime de aperfeiçoamento ativo, em subordinação ao princípio de conformação das disposições legais aplicáveis à zona franca ao ordenamento jurídico comunitário. Nesse mesmo ano, foi constituída a comissão instaladora da ZFM, composta por dois representantes do Governo regional da Madeira e dois representantes – um efetivo e um suplente – da ACIF. O período compreendido entre 1982 e 1985 foi dedicado à conceção e definição do regime fiscal da zona franca e da sua administração e exploração em regime de concessão. Assim, em 1985, foi aprovado um regime fiscal que se traduziria num sistema contratual de usufruição dos benefícios fiscais, fortemente inspirado pelo regime constante do Código de Investimento Estrangeiro então vigente, mas, que, por não corresponder à proposta apresentada pelo Governo regional ao Governo da República, foi substituído, seis meses depois, por novo decreto-lei, que consagrou o princípio da usufruição automática dos benefícios e incentivos fiscais e financeiros pelas empresas, logo após o seu licenciamento no âmbito da zona franca. Na conceção do regime de incentivos foi tido em consideração o disposto no Tratado de Roma relativamente ao desenvolvimento regional e as regras de salvaguarda da distorção da concorrência no seio da Comunidade Económica Europeia. Paralelamente, a Assembleia Regional da Madeira aprovou o regime de administração e exploração da ZFM, autorizando o Governo a adjudicar, em regime de concessão e com dispensa da realização de concurso, a sua gestão a uma entidade privada nacional ou estrangeira, na qual a Região Autónoma da Madeira (RAM) viesse a participar ou à qual viesse a associar-se. A previsão da existência de uma comissão para assegurar uma simplificação dos procedimentos administrativos, bem como um desburocratizado acompanhamento e fiscalização das atividades licenciadas, foi uma antevisão do gabinete da Zona Franca criado no ano seguinte com esse escopo e essa missão funcional, com a concomitante extinção da comissão instaladora da Zona Franca. O prazo da concessão foi estabelecido em 30 anos, sem prejuízo da sua eventual renovação ou prorrogação, ficando o Governo regional autorizado a regular as condições de exercício das atividades, quer da concessionária quer dos utentes da zona franca. Nesse mesmo ano de 1986, foi regulado o exercício de atividades financeiras através das denominadas sucursais financeiras exteriores, tendo o Governo regional procedido, em 1987, à regulamentação das condições de instalação e funcionamento daquelas sucursais. O exercício destas atividades foi alargado, em 1994, quer às instituições constituídas de raiz quer às sucursais financeiras internacionais, as quais podiam realizar operações com residentes, faculdade que se encontrava vedada às sucursais financeiras exteriores. Em 1987, o Governo regional da Madeira adjudicou a administração e a exploração da zona franca à Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, S.A., e aprovou o Regulamento das Atividades Industriais, Comerciais e de Serviços Internacionais no âmbito institucional da ZFM. No reconhecimento da proeminência económica e social, contributiva do desenvolvimento da Região, e da concomitante necessidade de uma gestão célere, proficiente e atempada, considerada como pressuposto e condição essencial para uma maior simplicidade e eficiência do processo decisório, o Governo regional não só rejeitava e removia os processos de antanho, os quais recorriam a desnecessárias complexidades e delongas processuais, desencorajadoras do investimento prosseguido por entidades caldeadas em regimes mais simplificados, como também fundamentava a opção por uma gestão empresarial em termos privados da zona franca. O diploma em causa estabeleceu o regime de licenciamento das atividades em consideração, as competências da concessionária nesse licenciamento, na aprovação dos projetos de instalação e funcionamento das empresas industriais e na fiscalização das obras com base em licença emitida pela concessionária, assim como o regime de uso dos imóveis por via da subconcessão do domínio público em autoconstrução ou de direito de uso em pavilhões construídos pela concessionária, os quais, finda a concessão, revertem gratuitamente para a RAM. Em 1988, os princípios de simplificação, desburocratização e de celeridade fundamentaram a criação da Conservatória do Registo Comercial Privativa da Zona Franca da Madeira e do Cartório Notarial também privativo da zona franca, cujo início de funcionamento foi fixado para o dia 1 de abril de 1989, tendo sido estabelecido que os atos praticados por aqueles serviços privativos se encontravam isentos de qualquer taxa ou emolumento. Os mesmos princípios determinaram, em 1989, a criação da IV Série do Jornal Oficial, destinada exclusivamente às empresas licenciadas na zona franca – cujas publicações, não exigidas em regimes europeus congéneres, foram também isentas de pagamento de taxas –, a autorização da constituição, em 1994, das sociedades comerciais por quotas e anónimas unipessoais e, em 1995, o reconhecimento da faculdade de as sociedades licenciadas usarem palavras ou parte de palavras estrangeiras ou de feição estrangeira na composição das suas firmas ou denominações. Estes princípios, pioneiros no país quer em relação à autorização das sociedades unipessoais, mais tarde autorizadas só para o tipo por quotas, quer em relação à simplificação administrativa e à prática e objetivos empresariais, permitiram que, na sua conceção, a ZFM constituísse o primeiro exercício unitário, integrado e coerente de internacionalização da economia portuguesa. Nesse mesmo sentido, em 1988, tendo em consideração que muitos dos investidores seriam oriundos de países com ordenamentos jurídicos diversos do sistema português, designadamente dos países da common law, e reconhecendo a necessidade de dotar a ZFM de instrumentos mais eficazes na captação do investimento direto estrangeiro, foi autorizada a instituição de instrumentos de trust, instituto jurídico até à data inexistente no ordenamento jurídico português. Este regime de propriedade fiduciária, envolvendo uma relação tripartida entre o settlor ou instituidor, o trustee e os beneficiários ou a causa específica por eles prosseguida, que nos regimes romano-germânicos encontram fronteiras com as fundações, o usufruto, o mandato sem representação e o fideicomisso ou a fidúcia, permitiu à zona franca disponibilizar aos seus utentes um meio jurídico que lhes era facultado noutros regimes e jurisdições congéneres. Em 1989, foi criado o quarto sector de atividades, acrescentando-se à Zona Franca Industrial, aos serviços financeiros e aos serviços internacionais o Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), o qual foi criado visando a prossecução de dois fins: em primeiro lugar, estancar os processos de saída de navios do registo convencional português para registos de conveniência (flagging-out) e, em segundo lugar, atrair novos armadores e navios, oferecendo condições de custos semelhantes às apresentadas pelos registos mais competitivos. Nesse sentido, o MAR foi dotado de uma somissão técnica, composta por um representante do membro do Governo responsável pelo sector dos transportes, um representante da RAM e um representante da Inspeção Geral de Navios. Adentro das condições indispensáveis à atratividade do MAR, a Lei do Orçamento do Estado para 1989 procedeu à consagração da isenção do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) para os tripulantes embarcados nos navios matriculados no MAR e o próprio diploma que procedeu à sua criação não só aplicou aos navios o regime fiscal da zona franca, como também permitiu às partes que designassem a lei que regula a constituição das hipotecas, tendo o aprofundamento do regime de graduação dos privilégios creditórios determinado o recesso da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos, assinada em Bruxelas em 10 de abril de 1926, que se havia tornado um impedimento à adesão dos armadores devido às objeções colocadas pelos credores hipotecários em relação à graduação dos seus créditos. Paralelamente, foi facultado aos tripulantes dos navios o acesso ao regime do seguro social voluntário. A reforma fiscal operada em 1989, com a extinção da contribuição predial e industrial, da sisa e do imposto profissional, e a concomitante criação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do Imposto Municipal sobre os Imóveis (IMI) e do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas (IMT), determinou que o regime fiscal da ZFM ficasse, em grande parte, plasmado no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), então aprovado. Nesse sentido, o primeiro regime fiscal (regime i) da zona franca, que vigorava desde 1986, passou a constar do EBF e permitiu o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2000, usufruindo as empresas que as desenvolvessem da isenção de IRC até 31 de dezembro de 2011. O regime ii, com uma taxa de tributação em IRC de 1 %, 2 % e 3 %, respetivamente nos anos de 2003-2004, 2005-2006 e de 2007 a 2011, entrou em vigor a 1 de janeiro de 2003, permitindo o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2006, com o usufruto desse benefício pelas entidades que as prosseguissem até 31 de dezembro de 2011. O regime iii, com uma taxa de tributação em IRC de 3 %, 4 % e 5 %, respetivamente nos anos de 2007-2009, 2010-2012 e de 2013 a 2020, entrou em vigor a 1 de janeiro de 2007, permitindo o licenciamento de atividades até 31 de dezembro de 2013, prazo que, de acordo com a legislação comunitária adrede posta em vigor, foi prorrogado, por duas vezes, até 31 de dezembro de 2014, com usufruição dos benefícios fiscais até 31 de dezembro de 2020. As empresas licenciadas no CINM são contribuintes fiscais portugueses para todos os efeitos, pendendo sobre elas as obrigações gerais a que se encontram adstritos os contribuintes em geral, e pagam uma taxa de instalação aquando do licenciamento, e uma taxa anual de funcionamento, através de depósito nos cofres da concessionária nos termos previstos na lei e no contrato de concessão. Os resultados obtidos pela aplicação destes regimes são de natureza qualitativa e quantitativa. Os primeiros, já referidos, permitiram que o CINM constituísse o primeiro exercício político-económico de internacionalização da economia portuguesa, rasgando novos rumos para o ordenamento jurídico português, introduzindo princípios e regras de simplificação administrativa e desburocratização do processo decisório e de licenciamento e exercício de atividades no âmbito do CINM. Do ponto de vista quantitativo, pela aplicação do regime i, constata-se que, em 2000, se encontravam licenciadas cerca de 5900 entidades, congregando 2900 empregos diretos e indiretos, e com o registo de 264 embarcações no MAR. A remuneração média dos quadros qualificados que trabalhavam no CINM era superior em cerca de 60 % à média da Região. Os capitais sociais agregados das sociedades ascendiam ao equivalente a 8600 milhões de euros e os investimentos efetuados pela concessionária na construção e manutenção das infraestruturas internas da ZFI eram de cerca de 18,7 milhões de euros, tendo os utentes investido mais de 143 milhões de euros nas suas unidades industriais. Nesta data, o CINM erigia-se já como um dos pilares fundamentais da economia da Região com um contributo de cerca de 20 % para a formação do respetivo PIB. Em 2000, com o procedimento formal de investigação instaurado pela Comissão Europeia, por força da entrada em vigor das Orientações sobre os Auxílios de Fiscalidade Regional, cujo início de prazo não coincidia com o fim da vigência do regime i, e com a aprovação do regime ii, que só entrou em vigor a 1 de janeiro de 2003 e que introduziu limites máximos (plafonds) ao benefício fiscal usufruído em IRC pelas entidades licenciadas no CINM, verificou-se não só um hiato de dois anos sem licenciamento de atividades, como um retrocesso na atratividade do regime e na adesão dos investidores. Esse retrocesso foi acelerado pela interrupção, em 2010, do processo negocial para revisão e aumento dos plafonds, que havia sido iniciado em 2009, junto da Comissão Europeia, o qual veio a ser retomado em 2011, com conclusão favorável em 2013. Também contribuiu para o agravamento desse retrocesso a revogação do benefício da isenção de dividendos aos sócios e acionistas das empresas licenciadas, benefício que, de acordo com a Comissão Europeia, não se encontrava sujeito a limitação temporal. O referido retrocesso foi reconhecido em 2012 pela Assembleia Legislativa da Madeira que, tomando as suas questões como causas e fundamentos, solicitou ao Governo da República a reabertura do processo negocial dos plafonds, no cumprimento dos deveres para-constitucionais que impendem sobre os órgãos de soberania para assegurarem a rentabilidade e competitividade internacional do CINM. Desse modo, em finais de 2014, encontravam-se licenciadas 1868 entidades, com a criação de cerca de 3000 empregos diretos, estando matriculadas 323 embarcações no MAR. Os capitais sociais agregados das entidades licenciadas ascendiam a 6,4 mil milhões de euros e os investimentos em infraestruturas e equipamentos na ZFI eram de 24 milhões de euros pela concessionária e de 200 milhões pelos utentes. José António Câmara (atualizado a 11.10.2016)

Direito e Política Economia e Finanças História Económica e Social

arquitetura militar

A consciência da necessidade de fortificação das ilhas atlânticas com vista às alterações do quadro estratégico do Atlântico Norte foi tardia, ao contrário do que sucedeu no Norte de África, onde uma população islamizada nunca aceitou de bom grado a presença portuguesa, obrigando à rápida construção de estruturas defensivas. No entanto, o termo arquitetura militar envolve outros pressupostos, inclusivamente teóricos, pelo que a sua incipiente instalação na Ilha, ao longo do séc. XV e perante a inexistência de um inimigo imediato, dificulta a escrita sobre o tema. Claro que se construíram estruturas defensivas, como a torre do Capitão, em Santo Amaro, no Funchal ou a torre dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol, mas foi principalmente por questões de prestígio (Arquitetura senhorial). Mesmo o pedido de construção de uma fortaleza feito à infanta D. Beatriz, em 1475 e a construção do chamado baluarte do Funchal (a fortaleza e palácio de São Lourenço), em 1540, resultaram mais em edificações senhoriais do que militares, numa época em que já se começava a equacionar outro tipo de construções, mas não a entendê-las totalmente. Nos meados do séc. XV, começou a ser introduzido em Portugal armamento de fogo, o que, a par das novas bestas com tração mecânica, por exemplo, alterou os pressupostos das construções defensivas. A utilização de armamento de fogo pesado obrigou ao reforço das antigas muralhas com sapatas e, progressivamente, foram desaparecendo as altas torres de menagem, alvos facilmente reconhecíveis à distância e também facilmente derrubáveis. A primeira fortificação construída na Madeira, pedida em 1528, determinada em 1529, mas só levantada entre 1540 e 1541, dirigindo a obra o pedreiro Estêvão Gomes, era uma fortificação de transição, não sendo ainda aquilo que se denominaria posteriormente “fortificação moderna”, “regular”, divulgada pelos novos tratados internacionais. O baluarte do Funchal implicou a construção de uma torre semioval, assente nos afloramentos rochosos da praia, ostentando os emblemas e as armas reais, articulada com uma muralha a correr sobre o chamado altinho das fontes de João Dinis, que envolvia as casas do capitão. Ao lado das fontes, o baluarte ou fortaleza tinha um torreão-cisterna que, flanqueando a muralha, protegia a aguada dos navios e a população na praia do Funchal. A fortaleza do Funchal e a organização geral defensiva militar mostrou-se assim totalmente incapaz perante o ataque corsário francês de outubro de 1566. A fortaleza foi atacada por terra, onde não possuía qualquer proteção e, não sendo possível movimentar as pesadas bocas de fogo em direção ao mar, não resistiu ao ataque, sofrendo a cidade um pesado saque de cerca de 15 dias a que quase nada escapou. A partir de então, a atenção da corte de Lisboa virou-se para as ilhas atlânticas e, logo na armada de socorro enviada à Madeira, terá viajado um arquiteto militar altamente habilitado, o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), ligado à família dos arquitetos do mosteiro da Batalha, alguns militares continentais para reverem a organização das companhias de ordenanças e das vigias, ainda vindo alguns meses depois, dois técnicos militares italianos para o apoiarem. Data desta época a instalação em Lisboa de uma provedoria das obras reais, que passou a controlar a documentação expedida para o vasto império ultramarino português e à qual ficaria depois ligado o arquiteto mor do reino. O novo mestre das obras reais da Madeira, Mateus Fernandes, recebeu, nos primeiros dias de 1567, ordens várias, enviadas pela provedoria das obras, em Lisboa, entre as quais o Regimento das Vigias, datado de 22 de abril de 1567. Este documento serviu de ensaio ao regimento geral promulgado em todo o reino a 10 de dezembro de 1570. O Regimento das Vigias de 1567, dirigido ao capitão do Funchal, mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tomo 2, fl. 142v.). Este regimento avança ainda com outras diretivas respeitante à artilharia, tendo sido a base de muitos dos pequenos fortes ou fortins depois levantados pela Ilha. Assim, no reconhecimento que o capitão e os restantes elementos deveriam fazer dos lugares para “guarda do mar”, “surgidouros e desembarcadouros”, também deveriam ser contemplados os lugares “para guarda da terra” (Id., Ibid., fls. 109-112v.). Nesses lugares, deveriam ser levantadas estâncias para colocar artilharia, cuja praça deveria ser “chã e calçada como convém”, para que o pessoal depois ali em serviço se pudesse movimentar bem e as “rodas dos reparos estarem sempre enxutas, sem humidade de água ou lama” (Id., Ibid.). Deveria ainda ser montada uma casa sobradada para a pólvora, tal como uma guarita para observação e vigia. Em março de 1567, Mateus Fernandes recebeu a visita e o apoio de dois arquitetos italianos, Pompeo Arditi (c. 1520-1571) e Tomás Benedito (c. 1520-1567), ambos de Pézaro, que lhe entregaram um primeiro regimento de fortificação para o Funchal, datado de 14 de março desse ano. Estes italianos, com quem o mestre das obras reais já teria contactado no Norte de África, ficaram na Ilha cerca de um mês e seguiram depois para os Açores, onde aquele último reformulou e dirigiu a nova fortaleza de S. Brás, em Ponta Delgada. Com esta colaboração, o mestre das obras do Funchal levantou uma planta da cidade, algo que poderá também ter feito antes, hoje na Biblioteca Nacional do Brasil e imaginou uma enorme fortaleza para o morro da Pena, a descer até à praia do Funchal, ocupando toda a zona velha, conforme a entendemos no começo do séc. XXI, ou bairro de Santa Maria Maior. Fortaleza da Pena-1567. Arquivo Rui Carita.   A fortaleza do morro da Pena previa a construção de um importante complexo fortificado sobre esse morro, descendo parcialmente sobre o bairro de Santa Maria com dois núcleos defensivos abaluartados, sendo a fortaleza parcialmente rodeada por fosso e tendo o total do conjunto uma dimensão que só veio a ter paralelo em Portugal durante o séc. XVII e com as guerras da aclamação de D. João IV. Mateus Fernandes ultrapassou francamente a sua época com um planeamento desta envergadura, o mais antigo que conhecemos em Portugal e que poderia recolher no seu interior toda a população da cidade do Funchal em caso de perigo. A existirem algumas semelhanças, somente com a fortaleza de S. Filipe, planeada dez anos depois para Setúbal pelo italiano Jacomo Palearo, el Fratin (c. 1520-1586) e levantada sob a direção de Filipe Terzi (1520-1597), ou com a congénere da Ribeira Grande, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, em princípio, projetada pelo mesmo Filipe Terzi, sendo que nenhuma delas tinha a dimensão da delineada para a do Funchal. O planeamento compreendia dois núcleos abaluartados: um sobre o morro da Pena e outro na baixa do bairro de Santa Maria, que desapareceu totalmente com a construção da monumental fortaleza. O núcleo mais alto, sobre o morro, era dotado com dois terraplenos, tendo o de cima quatro baluartes pentagonais e o de baixo dois baluartes retangulares, com canhoneiras a flanquearem as muralhas de união dos dois terraplenos. Indicam-se no projeto as diferenças de altura das várias áreas para o leito da ribeira de João Gomes, que chegavam aos 140 palmos, ou seja, quase 30 m. Um corredor murado sobre a ribeira ligava os dois núcleos, com canhoneiras a flanquearem os muros a norte e a sul, utilizando-se a ribeira ainda como fosso. O núcleo inferior possuía uma enorme esplanada, delimitada por um baluarte pentagonal e dois meios baluartes. Mas o planeamento não foi aceite em Lisboa, optando-se por um esquema mais tradicional e reduzido para a futura fortaleza de S. Lourenço, articulado com panos de muralhas (Muralhas do Funchal). D. Sebastião enviou, assim, um novo regimento de fortificação, em 1572, no qual a cidade era envolvida, na frente mar e ao longo das ribeiras de João Gomes e de São João, por panos de muralhas que fechariam nos morros da Pena e de São João com pequenas posições fortificadas. A fortaleza central da cidade foi ampliada com o planeamento feito por Mateus Fernandes para o núcleo superior do morro da Pena, mas reduzida a menos de um terço das dimensões iniciais. Ficou com dois baluartes pentagonais gémeos virados a norte e um quadrangular, a proteger a zona ocidental, mantendo a nascente o baluarte joanino de 1541. Mais tarde, por volta de 1600, veio a ser dotada de um novo baluarte pentagonal, projeto de Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), para proteger a porta. Como apoio da fortaleza principal, foi executada uma pequena estância fortificada, a ocupar a foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes, a futura fortaleza de S. Filipe da Pç. do Pelourinho, havendo um pano de muralha a unir ambas, mas do qual quase nada ficou. A cidade considerada por D. Sebastião era já um pouco maior do que a de D. Manuel, isto é, o limite oriental passou da ribeira de Santa Luzia para a de João Gomes. No entanto, o primitivo bairro de Santa Maria do Calhau continuou a não ser considerado cidade, só vindo a possuir o seu troço amuralhado alguns anos depois e num outro enquadramento histórico. No verão de 1582, face à ameaça das armadas de D. António, prior do Crato, com base no arquipélago dos Açores, Filipe II mandou avançar, das Canárias, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598). As primeiras preocupações do conde de Lançarote foram para a segurança interna e externa da Ilha, começando por visitar as duas fortalezas com o mestre das obras reais Mateus Fernandes, inteirando-se do seu estado e das suas necessidades. Conforme informa a 18 e 26 de junho, a fortaleza velha era essencialmente um bom palácio residencial, mas encontrava-se cercada de edificações muito próximas e mais altas, pouco valendo, assim, como defesa. A nova ainda se encontrava em piores circunstâncias, pouco havendo a fazer para melhorar as suas condições, pois não só estava mal localizada como também se encontrava mal construída. Perante o conflito que opunha as forças de Filipe II às de D. António, prior do Crato, com franceses e ingleses, envolvendo muitas centenas de homens de parte a parte, a pequena estância “nova” da Pç. do Pelourinho do Funchal era mínima para as necessidades e a de S. Lourenço também oferecia muitas reservas face ao seu envolvimento. As fortalezas e o seu autor, o mestre das obras reais Mateus Fernandes, receberam as mais duras críticas dos governadores e técnicos desses finais de século, dado não estarem previstas para fazer frente a um conflito como o que se desenrolava. O problema de ampliação da muralha do Funchal à frente mar foi resolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), quando, em 1585, tomou posse da capitania do Funchal, determinando o prolongamento da muralha para nascente. Este troço de muralha ao longo do calhau chegou parcialmente ao séc. XXI, confrontando com o que é, no começo do segundo milénio, a entrada do hotel levantado no antigo arsenal de Santiago ou de S.ta Maria Maior. As obras do novo troço de muralha confinavam com os arrifes por de baixo da antiga igreja de Santiago Menor, justificando a construção de uma fortaleza nessa baixa. A fortaleza de Santiago deve ter tido projeto de Mateus Fernandes, mas terá sido reformulado depois por Jerónimo Jorge, enviado de Lisboa em 1595, até então a trabalhar nas obras de S. Julião da Barra e do forte do Bugio.   Penha de França. Arquivo Rui Carita.   Desde a união das duas coroas que se discutia no Funchal a muralha poente e a edificação de uma fortaleza no Pico dos Frias, “padrasto”, ou seja, mais alto que toda a cidade e, inclusivamente, com comandamento sobre a fortaleza de S. Lourenço, tendo sido elaborado, de imediato, um projeto da autoria de Mateus Fernandes (Fortaleza do Pico). A situação foi ultrapassada pelo governador Cristóvão Falcão de Sousa, que após tomar consciência das necessidades da defesa do Funchal, em finais de 1601, enviou a Lisboa o sargento-mor da cidade, Roque Borges de Sousa, com uma planta da nova fortificação, por certo, a que fora executada por Mateus Fernandes, pois só nessa altura voltou à Ilha o fortificador Jerónimo Jorge. Regressado o sargento-mor ao Funchal, logo a fortaleza foi levantada, mas somente em madeira, encontrando-se já guarnecida nos inícios de 1602 e sendo passada a pedra e cal ao longo do século. Durante a mesma centúria, ainda seria levantada a bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega), constituída por um baluarte triangular avançado ao mar, construído sobre a cortina da cidade e a fortaleza do Ilhéu, no meio do porto do Funchal, ambas com projeto e direção do mestre das obras reais Bartolomeu João, (João, Bartolomeu). Consolidava-se, assim, uma rede de fortalezas modernas, constituídas por conjuntos de baluartes pentagonais, de paredes inclinadas e reforçados nos cunhais, como a fortaleza do Pico, quase de traçado regular, sendo a artilharia colocada nas esplanadas dos mesmos. As novas fortificações adaptavam-se ao terreno e às restantes estruturas defensivas, como os muros da cidade, podendo ser apenas quase estâncias de tiro e formando um conjunto articulado, cruzando fogos obrigatoriamente entre si. O centro de comando era a fortaleza de S. Lourenço e, dada a sua localização, a do Pico funcionava como cidadela ou seja, de recurso e refúgio para o caso de invasão da baixa da cidade. A defesa e a fortificação da Madeira foram revistas várias vezes no séc. XVII, mas os elementos produzidos não chegaram até nós. Nos finais da centúria, por exemplo, deslocaram-se à Madeira o capitão de engenheiros António Rodrigues Ribeiro e o engenheiro Manuel Gomes Ferreira, mas apenas sabemos que teria sido então executado o portão dos Varadouros, datado de 1689. Mais tarde, em 1705, Manuel Gomes Ferreira, citaria que haviam feito um levantamento quase total das costas da Ilha, mas do qual nada conhecemos. Tudo leva a crer que estes trabalhos tivessem ido com os seus autores para Lisboa e aguardassem aí despacho favorável, perdendo-se no curso do tempo. A primeira grande campanha de obras de fortificação do séc. XVIII decorreu no governo de Duarte Sodré Pereira, um fidalgo mercador que tomou posse a 29 de abril de 1704. Como ficou exarado no demolido forte novo de S. Pedro (Forte novo de S. Pedro), na praia do Funchal e onde se construiu mais tarde o campo do Almirante Reis, o governador mandou levantar esse forte, juntamente com os de Machico (Fortes de Machico), Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz) e Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), que se guarneceram de artilharia, tendo-se concluído todos os trabalhos em 1707. A data é referente ao forte novo de S. Pedro, pois a campanha geral de obras só foi terminada entre 1708, data limite das lápides e 1711, ano das últimas nomeações para os mesmos fortes. As estruturas levantadas não se afastam especialmente das do século anterior, embora tenham definido um novo modelo de fortificação triangular de uma só bateria, em que o lado virado a terra, em algumas, aparece dotado de torreão de gola, como no de S. Bento da Ribeira Brava, datado de 1708, ou no de S. João Batista do Porto Moniz, mais tardio, datado de 1758 (Forte do Porto Moniz). Nos finais do séc. XVIII procedeu-se a novo estudo de defesa da Ilha, determinado por D. Maria I, com data de 11 de junho de 1797, como vem referido na cartografia então levantada, pois não conhecemos registos no governo local. Para cumprir o plano determinado por D. Maria I, deslocou-se no ano seguinte para a Ilha o major do regimento de artilharia da corte, Inácio Joaquim de Castro, nomeado cavaleiro da Ordem de Cristo a 4 de dezembro de 1778, depois governador da ilha de São Miguel, nos Açores e da torre de S. Julião da Barra, em Lisboa. A instabilidade política dos anos seguintes não permitiu qualquer obra de fortificação e o que fora proposto em nada alterava o que estava feito. Os acontecimentos dos inícios do século seguinte, com a saída da corte para o Brasil, as ocupações inglesas do Funchal e mesmo a terrível aluvião de 1803, não só alteraram profundamente estes estudos como os levaram a outras resoluções, onde houve que equacionar não apenas a defesa imediata contra um ataque exterior. Com a referida aluvião, ocorrida a 9 de outubro, foi destacada para o Funchal uma equipa de engenheiros militares chefiada pelo brigadeiro, de origem francesa, Reinaldo Oudinot (1747-1807) e da qual fazia parte o então tenente Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), cujo primeiro trabalho foi o levantamento da planta do Funchal e dos estragos causados pela aluvião, porventura a melhor peça cartográfica efetuada na Madeira até essa data. A equipa foi para a Madeira, essencialmente, para colmatar os estragos da aluvião de 1803, mas num curto espaço de tempo alargou o trabalho à reforma da carta topográfica da Ilha e à defesa do Funchal, não só das intempéries, mas também numa perspetiva militar propriamente dita. Ao longo do ano de 1805, em abril, por exemplo, o brigadeiro Oudinot e Paulo Dias de Almeida ainda executaram as plantas da nova bateria das Fontes, que representa toda uma outra forma de entender a defesa e a arquitetura militares. A ideia já não era construir fortificações adaptadas ao terreno, mas grandes esplanadas capazes de receber as novas bocas de fogo, muito maiores do que as anteriores, necessitando assim de todo um outro campo de manobra. A bateria das Fontes veio a receber grande parte da guarnição da fortaleza e palácio de S. Lourenço, que a partir dos últimos anos do século anterior passara, essencialmente a palácio. Mais tarde, em 1824, sob a direção do brigadeiro engenheiro Raposo, o então tenente-coronel Paulo Dias de Almeida planeou uma estrutura idêntica de bateria rasante para a frente da velha fortaleza de Santiago, integrada então no novo molhe do cais do Funchal e que o mar rapidamente destruiu. Nos anos seguintes, Paulo Dias de Almeida dirigiu uma ampla campanha de obras militares nos pequenos fortes e vigias, desde o Funchal até Machico, motivada pela possibilidade de desembarque dos absolutistas, o que veio a acontecer a 22 de agosto de 1828, na baía daquela vila. A mais importante estrutura defensiva desta área era o forte novo do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), reforçado com forças mercenárias inglesas, porém, a explosão do paiol do mesmo levou à debandada das forças liberais, entrando os absolutistas no Funchal sem qualquer resistência. Os meados do séc. XIX assistiram à emergência dos engenheiros militares, aliás, e ao longo de décadas, à frente do governo português, verificando-se o mesmo, embora apenas pontualmente, na Madeira. Mas o seu domínio revelou-se essencialmente nas obras públicas, sendo necessário esperar pelos alvores da Primeira Grande Guerra para se fazerem obras especificamente militares no Funchal, de certa forma improvisadas, com as novas baterias de costa da antiga Q.ta Vigia e a bateria da Cancela, que dotadas com material do século anterior, pouco efeito tiveram nos dois bombardeamentos alemães sofridos pela cidade. Os trabalhos levados a efeito, tal como os seguintes, de 1940, com o deflagrar da Segunda Grande Guerra, no entanto, não se enquadram já bem na área da arquitetura militar, mas sim na da defesa. Nos finais do séc. XX houve um especial interesse pela arquitetura militar na ilha da Madeira, dadas as caraterísticas, de certa forma inovadoras, que a mesma possuía. Assim, foi objeto de uma exposição, efetuada nas comemorações nacionais do Dia de Portugal no Funchal, em 1981 e, no ano seguinte, remontada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa e, ainda depois, na Casa do Infante, no Porto e em Vila Viçosa. Em sequência e dentro do processo autonómico, muitas dessas edificações, já então sem específico interesse militar, vieram a transitar para a tutela da RAM.       Rui Carita (atualizado a 10.10.2016)

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