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a madeira vista pelos ingleses

Os primórdios Não é possível afirmar com segurança quem foi o primeiro britânico a pisar a Madeira, mas dizem as lendas que Robert Machim, após um naufrágio, deu à costa da Ilha juntamente com a sua companheira, Anne d’Arfet, em 1344. A realidade historicamente documentada é bem mais prosaica: na sequência de uma expedição portuguesa às ilhas atlânticas, então desabitadas, em 1418, o infante D. Henrique reenviou os seus capitães ao território no ano seguinte a fim de o reivindicarem para a Coroa. Em 1425, a Madeira tinha-se tornado uma província de Portugal, sendo a produção de açúcar iniciada em 1452. Na verdade, é bastante provável que a Madeira tenha sido descoberta antes da data oficial do seu descobrimento, mas não teria sido do interesse dos Portugueses ou sequer dos Espanhóis dar crédito a pretensões de outras nações. Existem provas da existência da Madeira em mapas do séc. XIV, embora este conhecimento não fosse necessariamente do domínio público. Gomes Eanes de Zurara refere-se à descoberta da Madeira e de Porto Santo na sua Chronica da Descoberta e Conquista da Guiné 1434-1438, mas esta obra apenas ficou disponível em inglês entre 1896 e 1899, quando Charles Raymond Beazley e Edgar Prestage publicaram uma tradução em dois volumes da mesma. Infelizmente, os capítulos sobre a Madeira são pequenos. As relações anglo-madeirenses remontam ao mesmo século, de acordo com os dados citados em estudos sobre as viagens inglesas para fins de comércio e de exploração, e.g.: “A partir da documentação, é difícil saber que contactos tiveram os navios de Bristol, antes de 1480, com a Madeira, os Açores, Cabo Verde e as ilhas atlânticas, que os Portugueses descobriram e onde se instalaram no século XV” (HART, 2003, 56-57). Carus-Wilson, a organizadora de The Overseas Trade of Bristol in the Later Middle Ages, observa, com base numa série de fontes documentais, que Portugal era um dos “clientes mais assíduos” de Bristol (CARUS-WILSON, 1937, 14). Por exemplo, a 17 de março de 1463, foi concedida a John Jay, de Bristol, uma licença para “enviar 300 quartos de trigo de Bristol para Portugal, em qualquer navio” (Id., Ibid., 130); os registos alfandegários também evidenciam que, a 18 de maio de 1480, William Weston enviou um carregamento de têxteis na embarcação Mawdeleyn (de Quimperlé) de Bristol para a Madeira. Por outro lado, a primeira viagem da Madeira para Bristol de que há registo ocorreu em setembro de 1486, numa altura em que vários mercadores portugueses enviaram açúcar e peças de barris diretamente para Bristol (WILLIAMSON, 1962, 187). Os começos da modernidade O contacto entre os Ingleses e a ilha da Madeira nem sempre foi amigável ou reciprocamente benéfico. No final do séc. XVI, mais especificamente em 1595, durante o período de união das Coroas ibéricas, Amyas Preston, um dos principais lobos do mar de Isabel I, pilhou o Porto Santo enquanto se encontrava a caminho das Américas, onde depois saqueou Caracas (HARRISON, 1999, 46). Outros britânicos, comerciantes respeitáveis e cumpridores da lei, utilizavam regularmente a Madeira como porto de escala das longas viagens transatlânticas, reabastecendo ora aí, ora nas ilhas Canárias; alguns deles acabaram mesmo por se estabelecer na Madeira, contribuindo para o comércio de vinho, para o artesanato e para as plantações da Ilha. A mais significativa fonte de informação sobre a Madeira e outros territórios ultramarinos foi a literatura de viagens, entendida em sentido amplo e não raras vezes em traduções. Na verdade, como salienta Alison Yarrington, “a estreita relação entre as traduções e a promoção da expansão territorial está bem patente na carreira de Hakluyt” (YARRINGTON et al., 2013, 29-30). Apesar de tudo, havia alguma reserva em relação aos textos, devido ao intervalo entre a data original de publicação e a sua tradução para inglês, e porque nem todas as traduções eram fiáveis, conforme explica o próprio Hakluyt na sua Epistle Dedicatorie a Robert Cecil (HAKLUYT, 1862, VI-VII). Assim aconteceu com uma tradução inglesa anónima do Tratado dos Descobrimentos de António Galvão, concluída em 1550 e publicada em 1563, que foi corrigida e publicada por Hakluyt em 1601. Esta obra contém bastante mais informação do que a publicação anterior de Hakluyt, datada de 1599, que só dedicava quatro páginas à descoberta da Madeira, às características físicas da Ilha e à sua produção agrícola, incluindo o dragoeiro. A Madeira é mencionada por Camões em Os Lusíadas, cuja primeira tradução inglesa, de Fanshawe, foi publicada em 1655. No cômputo geral, o séc. XVII representou um período de consolidação das relações anglo-lusas, incluindo naturalmente as ilhas atlânticas e o comércio de vinho da Madeira. Nas palavras de David Hancock, “A exportação de vinho da Madeira para a América era diretamente moldada pela geografia e pela diplomacia” (HANCOCK, 2000, 109). Com efeito, as relações comerciais entre a Grã-Bretanha e a Madeira foram reguladas por vários tratados e diversas leis, que geralmente serviam os interesses britânicos: o Tratado de Paz de Cromwell e a Aliança entre Inglaterra e Portugal (1654), e a Lei da Navegação (1660). Todavia, uma grande parte das proibições impostas pelos Ingleses às importações e exportações foi simplesmente ignorada, pelo que os bens eram enviados da Europa diretamente para as colónias inglesas da América sem passarem pelos portos ingleses, onde seriam taxados. Na sequência do casamento de Charles II com Catarina de Bragança, e graças às disposições de uma Lei de Navegação de 1663, também conhecida como Lei para a Promoção do Comércio, a Madeira e os Açores foram isentados das proibições constantes na legislação anterior, tornando-se um dos principais fornecedores de vinho das colónias britânicas. O Tratado de Methuen, de 1703, não só reforçou a exportação de vinhos da Madeira para Inglaterra e para as colónias inglesas, como posicionou a Ilha na rede comercial britânica, conforme atestado em The Bolton Letters, que fornece informações preciosas sobre o comércio britânico com a Madeira. O período abrangido pelo primeiro volume desta obra coincide com a visita de Edmund Halley à Madeira a bordo do Paramore, de caminho para o Atlântico Sul no quadro de uma expedição científica que decorreu entre 1698 e 1701. O porto do Funchal, com a sua Feitoria Britânica, assumiu-se como peça de relevo da estratégia colonial de Inglaterra, de tal modo que as embarcações militares inglesas patrulhavam regularmente o perímetro marítimo das ilhas – que eram consideradas quase como um posto avançado do Império Britânico –, protegendo os seus interesses. “Durante as Guerras Napoleónicas, a Grã-Bretanha ocupou duas vezes a ilha da Madeira” (NEWITT, 1999, 70), que chegou a ter o estatuto de colónia da Coroa britânica entre 24 de dezembro de 1807 e 24 de abril de 1808, com o pretexto de a proteger dos iminentes ataques franceses. Se, por um lado, encontramos homens de negócio astutos que tiraram partido da posição geográfica estratégica da Madeira e do seu potencial agrícola, por outro, também havia autores que, talvez com objetivos específicos, promoveram intencionalmente os mitos fundacionais da Ilha. O Descobrimento da Ilha da Madeira Anno 1420, de Francisco Manuel de Melo, obra escrita com base na Relação de Francisco Alcoforado, foi publicado em inglês em 1750, com o título as An Historical Relation of the Discovery of the Island of Madeira, Abridged from the Portugueze Original. To Which Is Added, an Account of the Present State of the Island ... etc. No mesmo volume encontram-se outras duas obras. A primeira é An Account of the Present State of the Island, in a Letter to a Friend, com data de 7 de abril de 1748; independentemente de o título ser genuíno ou mera convenção, esta interessante descrição da sociedade e dos costumes madeirenses fornece abundante material aos investigadores de história social e económica. A segunda obra consiste numa série de excertos de A Voyage to Surat, de J. Ovington, nomeadamente o seu Account of Madeira, de 1689, onde o autor descreve a sua partida de Inglaterra, narra a descoberta das ilhas — novamente o mito de Machim —, e faz observações sobre o clima, a produção de vinho, a escassez de cereais e as plantações de frutas da Ilha. Aparentemente, já havia mercadores ingleses a viver na Ilha, que plantavam groselha; a terra era menos fértil do que já tinha sido, e o clero era permeável à indolência que atingia os homens mais corpulentos, custando-lhes levantar-se às 04.00 h para a leitura do ofício divino. Como Tony Claydon salienta em Europe and the Making of England, 1660-1760, a literatura de viagens era “um empreendimento coletivo no qual os autores contribuíam conscientemente para um conjunto partilhado de factos e de opiniões. Os exemplos mais evidentes de cooperação entre escritores são as frequentes referências a comentadores anteriores” (CLAYDON, 2007, 20). Assim, A New General Collection of Voyages and Travels (1745-1747) inclui uma breve história e justificação da literatura de viagens, reportando-se explicitamente a Galvão e a Alcoforado para os capítulos sobre os Descobrimentos portugueses; o “compilador”, como se autointitula o autor desta obra, repete os habituais lugares-comuns, incluindo a informação sobre a praga de coelhos no Porto Santo. Esta prática será retomada vezes sem conta ao longo dos registos de viagens do séc. XIX, nos quais os autores se referem habitualmente aos seus antecessores e pares. An Historical Account também aparece num livro publicado em Londres por R. Griffiths, em 1756, com o título The Affecting Story of Lionel and Arabella, Who, by a most Unhappy Accident, first Discover'd the Island of Madeira, and Perish'd there. To Which Is Added, the Dangerous Voyage of Juan Gonsalvo Zarco, a Portuguese Commander, Who Compleated the Discovery. Não há dúvida de que o apetite por estas leituras continuava voraz. Do Iluminismo ao século XIX Por volta deste período, parece surgir uma nova geração de britânicos com um interesse um tanto diferente pela Madeira, nem exclusivamente comercial nem certamente literário, mas antes inclinado para o saber científico, botânico ou médico – por outras palavras, homens (e mulheres) do Iluminismo. Por exemplo, Thomas Heberden (1703-1769), um cirurgião, médico e botânico residente na Ilha, remeteu a seu irmão vários artigos científicos decorrentes das suas observações na Madeira, para que este os lesse na Real Sociedade de Londres. Em 1768, o Endeavour partiu de Plymouth com destino à Madeira numa expedição científica patrocinada pela Real Sociedade de Londres, a fim de observar o trânsito de Vénus no hemisfério sul no ano seguinte, conforme previsto por Edmund Halley; a outra missão da expedição, esta secreta, era tomar posse da Austrália. O Endeavour esteve atracado na Madeira entre 13 e 18 de setembro. Para além do Cap. Cook, o navio transportava Joseph Banks, da Real Sociedade de Geografia, Daniel Solander, um estudante sueco, e Sydney Parkinson, o artista responsável pelos desenhos das descobertas botânicas. O Endeavour Journal de Banks, escrito entre 25 de agosto de 1768 e 12 de julho de 1771, descreve novas espécies de peixes, a flora e os microclimas da Ilha, a produção vinícola, bem como os hospitaleiros residentes britânicos e os Portugueses, que caracteriza como indolentes: “Durante a nossa estadia neste local, muito devemos ao Dr. Heberden, o principal médico da ilha, e irmão do médico com o mesmo nome de Londres, que viveu longos anos nas Canárias e nesta Ilha, e fez várias observações, predominantemente filosóficas, embora algumas fossem de natureza botânica, descrevendo as árvores da Ilha: destas, facultou-nos de imediato uma cópia, juntamente com alguns espécimes que tinha em sua posse, não poupando esforços para nos arranjar espécimes vivos em flor. [...] Os habitantes locais são, no geral, ociosos, ou antes, incultos como eu nunca vi; todos os seus instrumentos, mesmo aqueles com que produzem o vinho, o único artigo de comércio da ilha, são perfeitamente simples e básicos. [...] Estivesse [a Ilha] nas mãos de qualquer outro povo do mundo e o seu valor facilmente duplicaria, graças à excelência do seu clima, capaz de amadurecer qualquer tipo de produto, uma circunstância da qual os Portugueses não tiram o mínimo proveito.” Por seu turno, as freiras de S.ta Clara eram excessivamente faladoras: “durante a nossa visita, de cerca de meia hora, não deve ter havido uma fração de segundo durante a qual as suas línguas não se movessem a um ritmo extraordinário” (BANKS, The Endeavour Journal of Sir Joseph Banks …). Era frequente os exploradores e os cientistas registarem e publicarem as suas experiências e observações. A Madeira oferecia uma infinidade de possibilidades de estudo para botânicos, entomologistas, meteorologistas, conquiliologistas e especialistas de todo o género de disciplinas. Também se podem encontrar memórias marítimas e militares com informação cientificamente relevante, escritas por marinheiros de passagem ou em serviço militar. Com efeito, estas duas esferas de interesse convergem em “An Account of a Barometrical Measurement of the Height of the Pico Ruivo, in the Island of Madeira”, de Edward Sabine; o grupo do Cap. Sabine incluía outros oficiais da marinha, o cirurgião do navio, George Don, o primeiro coletor profissional de plantas para a Sociedade de Horticultura de Londres, e ainda um prestável residente inglês, de nome Veitch, que ocupava o cargo de cônsul-geral, e que lhes serviu o pequeno-almoço na sua residência. Não é inverosímil supor que os botânicos e naturalistas aproveitariam todas as oportunidades que se lhes oferecessem para viajar, em tempo de paz e presumivelmente sem grandes custos, até à Madeira e outros laboratórios naturais. Não era incomum encontrar médicos britânicos, como Thomas Heberden, a exercer medicina na Madeira, já que a Ilha se afirmava como um apetecível destino para o turismo de saúde. “Para os finais do século XVIII, a Madeira assumia-se cada vez mais como um local propício ao tratamento da tuberculose. Começaram a circular brochuras elogiando o clima da ilha, registando-se um conjunto de médicos britânicos que ali se fixaram” (NEWITT, 1999, 73). A título de exemplo, Joseph Adams publicou The Superiority of the Climate of Madeira e Guide to the Island of Madeira; with An Account of Funchal, and Instructions to Those Who Resort thither for Their Health. Foram publicados artigos de especialistas nas revistas médicas da época, incluindo The Lancet, e os guias de saúde para a Madeira constituíam uma subcategoria da literatura de viagens. William Gourlay, médico da Feitoria Britânica, escreveu as suas Observations on the Natural History, Climate, and Diseases of Madeira, during a Period of Eighteen Years. Em An Historical Sketch of the Island of Madeira, o mesmo autor aborda os benefícios do clima para o tratamento da tísica e da asma, referindo ainda que três dos quatro médicos portugueses da Ilha se tinham formado na Universidade de Edimburgo. Na sequência da morte de T. E. Bowdich em África, devido à malária, a viúva publicou o seu Excursions in Madeira and Porto Santo. Com exceção de uns breves comentários sobre a situação política, esta obra é um verdadeiro reflexo do interesse do autor por diferentes aspetos da história natural – peixes, pássaros, plantas, formações geológicas, conchas. Apesar de ser feita uma breve referência a Machim, Bowdich interessa-se muito mais pela flora e pela fauna das ilhas, com destaque para o dragoeiro de Porto Santo, conforme descrito pelas fontes portuguesas. Por entre as suas observações científicas, descreve a vida social da Ilha, comparando os habitantes de Porto Santo com os camponeses do País de Gales, admira o sentido português de beleza, e menciona os cálculos de Gourlay e do Dr. Heineken. Alfred Lyall, autor de Rambles in Madeira, and in Portugal, in the Early Part of MDCCCXXV, dedicado ao cônsul George Stoddard, destaca a escassez de livros com informação sobre a Madeira, que é um local de interesse especial para os britânicos, sobretudo os inválidos. Lyall faz referência às Excursions de Bowdich apenas para as descartar porque “se dedica quase exclusivamente a questões científicas” (LYALL, 1827, ix). Os capítulos do texto de Lyall descrevem a paisagem e a população da Ilha; no que às mulheres diz respeito, “a superioridade das mulheres francesas […] é incontestável” (Id., Ibid., 26-27). Lyall não acredita na lenda de Machim, mas não vê proveito em a contestar, dado que os locais a acolhem com grande estima. James Clark, doutor em medicina, recordado pela história como médico da corte e autor de um tratado de tísica, também escreveu uma obra sobre The Influence of Climate in the Prevention and Cure of Chronic Diseases, que incluía “indicações para inválidos em viagem ou que vivam no estrangeiro”. Clark considerava Lisboa “um local de residência inadequado para tísicos” (CLARK, 1830, XII), opondo-se fortemente à prática de enviar os doentes terminais para o estrangeiro (Id., Ibid., 196). Também discute os benefícios do clima da Madeira, citando Gourlay e as Rambles de Lyall. John Driver visitou a Madeira em 1834, por indicação médica, tendo depois publicado as cartas que escreveu aos amigos em 1838, dando resposta aos muitos pedidos que lhe eram endereçados de informações sobre a Ilha: “Obtive informações atualizadas sobre a melhor forma de viajar, a escolha de residência, o custo de vida, etc.” (DRIVER, 1838, VI). Os capítulos principais descrevem a Ilha e a sua população, incluindo Henry Veitch (1782-1857), que também é mencionado noutros livros de viagem do mesmo período. A Carta V refere a capela de Machim, mas sobretudo a presença das forças miguelistas na Ilha; e faz uma descrição das corridas no Funchal, e de uma exposição floral e hortícola organizada por Webster Gordon. A Carta VIII descreve as melhoras que sentiu desde que se encontra na Ilha. As informações práticas (navios que viajam para a Madeira, hotéis, médicos, o preço da alimentação, estatísticas sobre exportações, etc.) estão contidas no apêndice, juntamente com a obrigatória repetição da história de Machim, narrada por Alcoforado. Muitos dos detalhes coincidem com os que autores anteriores já haviam fornecido, sendo Bowdich e Lyall explicitamente citados. Driver contribuiu ainda com “An Historical Account of the Island”, que dedicou a James Clark, para um volume editado por James Sheridan Knowles, onde é identificado como cônsul da Grécia na Madeira; este texto baseia-se na sua publicação anterior. Fig. 1 – Reprodução da gravura “O Funchal visto de São Lázaro”.Fonte: PICKEN, 1840. Entre os Ingleses que ajudaram a promover a Madeira como estância terapêutica, encontra-se o artista Andrew Picken, autor de Madeira Illustrated. Picken especializou-se na ilustração de livros de viagens e passou algum tempo na Madeira porque tinha uma saúde precária, acabando por perecer com uma doença pulmonar após regressar em definitivo a Inglaterra, em 1845. O livro é dedicado à Sr.ª Webster Gordon e nele são mencionados Alcoforado, Barros, Galvão e Frutuoso. Picken descreve as Rambles de Lyall como “uma das melhores e mais completas descrições da ilha publicadas em Inglaterra”. O esboço histórico transporta os leitores para o séc. XIX, e a descrição que faz da Ilha oscila entre o geográfico e o pitoresco, com uma série de observações sobre os nativos: “os Portugueses da Madeira são um povo excelente”; “a aparência e o carácter dos camponeses são universalmente elogiados” (PICKEN, 1840, 4); e considera que a distância entre os Ingleses e os Portugueses, em termos sociais, está a tornar-se cada vez mais curta. Picken faculta informações sobre os navios e os respetivos preços, desaconselha o uso de letras de crédito e recomenda o ouro espanhol em vez dos soberanos ingleses, entre outras sugestões úteis. Nesse mesmo ano de 1840, William White Cooper, cirurgião da Honourable Artillery Company, publicou The Invalid's Guide to Madeira, with a Description of Teneriffe, Lisbon, Cintra, Mafra, etc and a Vocabulary of the Portuguese and English Languages. Aparentemente, a obra baseia-se na sua própria experiência, enquanto recuperava de um ferimento. Curiosamente, Cooper afirma que não encontrou qualquer informação sobre a Madeira pelo que, adotando o registo de diário, embarca numa jornada “tanto para descrever as paisagens das ilhas da Madeira e de Tenerife, como para fornecer uma panóplia de informações para orientação daqueles que as procuram, seja para uma curta visita ou para uma estadia mais prolongada” (COOPER, 1840, III). Este autor não difere grandemente de outros escritos de viagens ingleses, na medida em que também refere detalhes sobre a logística da viagem e das acomodações, os nomes dos médicos locais e a separação entre residentes portugueses e ingleses. À semelhança de vários registos de viagens do mesmo período sobre Portugal continental, os comentários sobre as mulheres portuguesas e os seus hábitos de higiene pessoal são muito pouco lisonjeiros. O autor anota tudo o que considera ser de interesse para os viajantes britânicos, mencionando também o reverendo R. T. Lowe, “um cavalheiro altamente distinto enquanto naturalista, e que está prestes a publicar uma elaborada obra sobre os peixes da Madeira” (Id., Ibid., 40), obra que viria à luz entre 1843 e 1860. Cooper descreve Maria Clementina, “a linda freira do Convento de Santa Clara” (Id., Ibid., 41), lista os vinhos que se podem encontrar na Ilha, e descreve o Clube do Funchal, bem como o baile que o cônsul George Stoddard organizou em honra do casamento da Rainha Victória. Não se mostra impressionado com a aparência e o comportamento dos soldados britânicos estacionados na Ilha, embora considere – o que não é surpreendente, dada a sua filiação – que “a artilharia constitui um corpo mais viril e militar” (Id., Ibid., 57), ainda que não treinem o suficiente. Os inválidos devem levar consigo os seus medicamentos e cadeiras confortáveis, bem como uma sineta. O facto de o conselho de Cooper sobre a melhor moeda para levar para a Madeira coincidir com o de Picken, a par de outras observações, leva-nos questionar se alguma vez se terão cruzado. Pouco tempo depois, William Samuel Pitt Springett (1818-1860) dedicou as suas Recollections of Madeira à Sr.ª George Stoddard, que era irmã da sua esposa. Um ano mais tarde, Edward Vernon Harcourt escreveu A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitorı, publicado por J. Murray, que também publicou The Diary of an Invalid, de Henry Matthew, e a versão definitiva do Handbook for Portugal (1855). Harcourt pretendia que o seu livro fosse útil, pelo que dá uma série de conselhos práticos, desde informações sobre os transportes (a liteira de rede) e os locais a visitar (refere que passou pela casa de campo da Sr.ª Penfold), até esclarecimento sobre rotas de navegação, bagagem, acomodações e moeda. Talvez numa tentativa de sossegar os mais doentes, explica que a desagradável cena retratada por Ovington em Voyage to Surat, de recusa de um funeral cristão a um protestante inglês, não se repetiria, uma vez que havia mais tolerância religiosa e que os visitantes estrangeiros tinham agora o seu próprio cemitério, onde aqueles “que procuravam saúde numa terra estrangeira encontraram o repouso eterno. O cipreste debruça-se sobre a campa do estrangeiro, e o seu túmulo solitário está adornado de flores” (HARCOURT, 1851, 33). Na verdade, Susan Vernon Harcourt também fez um retrato dos cemitérios ingleses. À semelhança de outros escritores, Edward Harcourt informa os seus leitores sobre a vida social na Madeira; aconselhando os inválidos a não saírem à noite – algo que os seus antecessores também recomendam –, deixa escapar um comentário bastante elucidativo: “Os ingleses e os portugueses não se costumam misturar, de modo que o leitor não terá a sensação de viver entre estrangeiros” (Id., Ibid., 35); não lhe ocorreu que os estrangeiros eram os Ingleses. Harcourt preenche muitas páginas do seu livro com tabelas de dados sobre as condições meteorológicas, a demografia, a história da Madeira (o mito de Machim), as instituições judiciárias e religiosas, o sistema educativo, a agricultura, as plantas, a produção vinícola, a ornitologia – por outras palavras, tudo o que pudesse interessar ao cavalheiro inglês no estrangeiro. Narrative of a Voyage to Madeira, Teneriffe and along the Shores of the Mediterranean, da autoria de William Wilde, inclui o material habitual, e menciona Picken, Macaulay, Clark, Bowdich, Combe e o cônsul Henry Veitch. À imagem de muitos outros visitantes da Ilha, o autor adquire nos conventos “bens de luxo” como flores artificiais e confeitaria; e, tal como outros turistas ingleses, recorda a triste história da irmã Maria Clementina, “a bela reclusa”, que compara a Cinderela, embora à primeira não tenha sido destinado o final feliz do conto de fadas (WILDE, 1844, 92-93). Caption   Outro escritor frequentemente citado é Robert White, autor de Madeira, Its Climate and Scenery Containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a Tour of the Island, etc. O autor viveu 15 anos na Ilha, pelo que o livro se tornou uma obra de referência, que contou com mais duas edições, atualizadas com a inclusão de novo material. O conteúdo não é original, sendo na sua maior parte derivado de anteriores publicações; mas, apesar de os autores anteriores fornecerem informações sobre as paisagens, a variedade de castas, os vinhos e o comércio, bem como dados estatísticos, White salienta que “há uma grande confusão sobre estes tópicos nas obras publicadas até agora” (WHITE, 1851, v). Robert White principia com a lenda da descoberta, os factos históricos da mesma, e uma breve história da Ilha até ao séc. XIX; onde diverge dos seus antecessores é na acutilância da sua crítica aos governos portugueses, que saquearam e negligenciaram a Madeira: “A situação melhorou muito durante o breve período em que foi governada pelos Britânicos, sob a competente administração do General Beresford, em 1808” (Id., Ibid., 10). Os detalhes não são novos; mas o tempo passou e a bela Ir. Maria Clementina “está avançada em anos e restam-lhe poucos, ou nenhuns, traços daquela beleza que o nosso poeta tão calorosamente descreveu” (Id., Ibid., 21). Com efeito, a fama desta mulher alastrara para além da Madeira e das ilhas Britânicas, chegando aos Estados Unidos da América. Maria Clementina também fora descrita em termos extraordinariamente românticos pelo Rev. Walter Colton, capelão naval e autor de Ship and Shore, primeiramente publicado sob anonimato em 1835 e reeditado em 1851, com um desenho da freira nas páginas preliminares. Publicado entre a segunda e a terceira edições do guia de White, The Climate and Resources of Madeira, as regarding chiefly the Necessities of Consumption and the Welfare of Invalids, de Michael Comport Grabham, foi presumivelmente ao encontro de uma necessidade sentida neste nicho de mercado; com efeito, uma vez que ainda não existia um tratamento eficaz para a tuberculose, os pacientes deslocavam-se à Madeira em busca de repouso. Para além da sua competência de médico, Grabham também publicou artigos no The Lancet, partilhando as suas experiências, e escreveu sobre botânica, sobre a vida animal e sobre geografia; o seu tratado de medicina foi considerado relevante já bem entrado o séc. XX. Michael Grabham não se demora em detalhes descritivos nem nos temas sociais, uma vez que esses já tinham sido abordados “em muitos tratados existentes e […] no excelente e exaustivo ‘Guide-Book’ do Sr. R. White” (GRABHAM, 1870, X); ao invés, foca-se em assuntos meteorológicos e médicos. Apesar disto, não consegue escapar inteiramente ao tipo de conteúdos que mais interessam aos leitores: os pormenores científicos e técnicos, apresentados sem mais, poderiam afastar os espíritos menos graves, pelo que o autor introduz o mito de Machim, aborda a história dos princípios da Ilha, e descreve os edifícios, as instalações e os passatempos locais ou, pelo menos, os passatempos praticados pelos residentes ingleses. Tal como os seus antecessores, informa os leitores sobre a paisagem e os meios de locomoção; e dedica um longo capítulo às condições meteorológicas, assim como às questões médicas e aos tratamentos. Conforme seria de esperar numa obra desta natureza, explica como chegar à Madeira, qual a melhor moeda a usar, e como enviar cartas para a Ilha. Grabham é extremamente preciso – cirúrgico, até –, sendo a sua obra isenta de alguns dos preconceitos presentes noutras publicações, talvez porque se casou com um membro da aristocracia da Ilha e valorizava o que a Madeira tinha de bom. J. M. Rendell seguiu as pisadas de White e de Grabham em A Concise Handbook of Madeira, embora sem a pretensão de ter conhecimentos sobre medicina. Como seria de esperar nesta altura, tece comentários sobre o tempo e a geografia da Ilha, cita especialistas, refere viagens, navios e hotéis. Está presente o capítulo obrigatório sobre a história da Ilha, informações sobre a botânica, a comida, as aves, os peixes, a música, os costumes, as superstições da população (outro tema favorito dos escritores de viagens que se focam em Portugal continental), as excursões e viagens à volta da Ilha, os salários das empregadas domésticas, o preço do tratamento de roupas, os pesos e as medidas, algumas palavras úteis e outros aspetos da língua portuguesa. Por outras palavras, nada de inesperado ou original. Os guias para a Madeira continuaram a aparecer no século sucedâneo. Assim, e.g., Oswald Crawfurd, cônsul no Porto, crítico literário e escritor prolífico, produziu, em janeiro de 1874, um artigo de 18 páginas para o The New Quarterly Magazine intitulado “A winter holiday in Madeira”, que pretende ser um compêndio de toda a informação sobre a Ilha. Tal como grande parte da literatura deste género, o artigo elucida-nos mais sobre os preconceitos do seu autor do que sobre as pessoas que ele descreve: “Os madeirenses são uma estranha raça de homens. Maioritariamente de origem portuguesa, são claramente uma nação de mestiços, e a presença da negritude é notória nas suas caras feias e bondosas, na sua estatura – têm mais dois a cinco centímetros que os continentais –, no seu andar estranho, e na sua compleição algo doentia. A sua atitude moral também é, de certa forma, influenciada pelo laxismo dos negros. No entanto, não são de modo algum grandes criminosos, praticando apenas vícios menores como pequenos roubos e grandes narrativas, combinando, por assim dizer, a sua complacência com os pequenos furtos e as mentiras inofensivas com uma rigorosa economia de crimes maiores” (CRAWFURD, 1874, 410). Nem toda a gente discorria sobre a Madeira do ponto de vista dos inválidos ou dos médicos; havia pessoas que tinham outros interesses ou visavam outros públicos. Assim, a família e os amigos que acompanhavam os inválidos aproveitavam o seu tempo para desenhar ou pintar o que iam observando, publicando depois os seus álbuns. Afinal de contas, a Madeira era um paraíso botânico e, dado o relativo sossego da vida na Ilha (em comparação com Londres e outras cidades inglesas), as pessoas tinham muito tempo para escrever um diário, relatos da viagem e cartas, um fenómeno que se tornou muito comum nos visitantes de Portugal continental.   O século XX No séc. XX, assistiu-se a um declínio no número de livros sobre a Madeira, talvez como reflexo de uma mudança nos interesses e gostos dos leitores. No entanto, de entre os que escreveram sobre a Ilha na primeira década deste século, ressaltamos S. Samler Brown, W. H. Koebel, que se centra na história e se baseia em Grabham, e Charles Thomas-Stanford, com um livro intitulado Leaves from a Madeira Garden. O prefácio desta obra constituiu uma versão mal disfarçada do topos da humildade: “Pergunto-me se será necessário arranjar desculpa para esta história trivial de um inverno banal numa ilha insignificante” (THOMAS-STANDFORD, 1909, VII), salientando o autor que “muito se tem escrito sobre a Madeira”, pelo que não pretende “afirmar ou dizer coisas novas, nem revelar aspetos relevantes” (Id., Ibid., IX); na verdade, afirma, “limitei-me a enunciar apontamentos algo inconsequentes – e temo que, por vezes, irrelevantes – sobre diversas matérias” (Id., Ibid., VIII). Devido ao gosto dos Britânicos pela jardinagem, a Madeira tinha para eles um interesse considerável, em virtude da sua vegetação rica e exótica. Conforme prometera no prefácio, Stanford critica certas atitudes do governo português, mas está manifestamente convencido de que tem legitimidade para o fazer por força da sua relação de longa duração com a Ilha, sua residência de inverno. O autor desdenha “o número cada vez maior de turistas, americanos, ingleses e alemães” que são despejados pelos navios (Id., Ibid., 4), não conhecendo nada da “verdadeira Madeira”, e esforça-se por demonstrar o seu conhecimento da história e das tradições da Ilha. Apesar de tudo, a sua própria relação com a Madeira e os seus habitantes é ambivalente: há alguns aspetos da vida na Ilha que o irritam nitidamente, nomeadamente a falta de telefones, mas a sua relação com a população portuguesa parece não diferir substancialmente da dos seus predecessores. Quando se convence de que os empregados tentam extorquir-lhe salários excessivamente elevados, não hesita em “os despedir”; e declara que os madeirenses nada sabem de jardins nem de jardinagem, o que consitui “uma grande prova, especialmente quando a pessoa só está presente um terço do ano, e as operações mais importantes, a poda das roseiras etc., têm de ser feitas na nossa ausência” (Id., Ibid., 68). Fundando os seus pontos de vista em estereótipos e em amostras bastante reduzidas da população, demarca claramente os Portugueses como “os outros” (Id., Ibid., 73-74), embora se identifique como “nós, os madeirenses” (Id., Ibid., 189); de facto, conheceu a sua mulher na Ilha, onde ela era proprietária rural. Ainda assim, o livro redime-se em alguns momentos de honestidade: “Se os criados são para nós um estranho e interessante objeto de estudo, o que seremos nós para eles?” (Id., Ibid., 74). Thomas-Stanford também escreveu um romance de aventuras que decorre na Madeira, The Ace of Hearts. Os Ingleses continuaram a escrever sobre a Madeira. É o caso, e.g., de Lethbridge, com o seu Madeira – Impressions and Associations; de Stuart Mais, que publicou ininterruptamente entre 1915 e 1966, juntamente com a mulher, incluindo o relato de viagens Madeira Holiday; e de Sacherevell Sitwell, extravagante mas empobrecido diletante que, segundo consta, persuadiu vários governos a subsidiarem-lhe o turismo de luxo escrevendo livros de viagem; há indubitavelmente abundantes exemplos de marketing indireto – nomeadamente referências a empresas de transportes e a hotéis – no seu Portugal and Madeira. O leitor também poderá perguntar até que ponto a filiação ideológica e de classe orientam as suas perceções; com efeito, ou Sacherevell Sitwell acreditava genuinamente nas virtudes do Estado Novo, à imagem de outros escritores de viagens ingleses do seu tempo (como John Gibbons, lady Marie-Noële Kelly), ou a sua escrita está temperada com uma não pequena dose de ironia: “[Portugal] esteve a dormir durante a época de industrialização que enegreceu grande parte da Europa. Se acordou, imaculado, para um presente mais feliz, foi graças à influência de mãos benevolentes e sábias” (SITWELL, 1954, 39). O capítulo sobre a Madeira extravasa em descrições líricas de plantas exóticas e vegetação tropical: “É uma ilha que se visita pelas suas flores e pelo seu clima” (Id., Ibid., 43). Diz muito pouco sobre os ilhéus, até porque “uma das belezas da Madeira é que não tem propriamente passado. [...] Era uma ilha virgem. Não havia habitantes aborígenes para exterminar” (Id., Ibid., 43). E, quando faz algum comentário sobre as populações locais, é para dizer que “é uma população imaculada, talvez o menos corrompido e contaminado de todos os povos europeus. Os madeirenses estão ainda na idade da inocência” (Id., Ibid., 49). Com o tempo, os livros de viagens tornaram-se mais breves, por causa dos custos de edição, das restrições de bagagem, das mudanças nos hábitos de leitura – as razões que explicam esta tendência são múltiplas. As edições online e a digitalização também tiveram impacto no consumo de livros. Todavia, independentemente do seu formato, os livros de viagens do séc. XXI centram-se mais nas necessidades dos turistas e dos aventureiros do que nas experiências pretensamente autênticas vividas pelo viajante entendido.   A questão da autoria feminina e da voz feminina na literatura de viagens Não foram unicamente os homens a visitar a Madeira e a publicar as suas memórias ou impressões. Apesar de o número de mulheres viajantes nunca ter constituído mais do que uma minoria, por razões óbvias de índole social e histórica – as mulheres não fizeram o Grand Tour e, mesmo que o tivessem feito, a Madeira não seria uma etapa do itinerário –, os seus contributos para o corpus da literatura de viagens inglesa não deve ser negligenciado. A literatura de viagens, no sentido que aqui é dado à expressão, compreende memórias, autobiografias, diários, cartas, registos de viagens e guias. Clare Bloome Saunders sugeriu que foi a ligação entre a literatura de viagens e os “textos associados com a esfera doméstica e privada” que permitiu às mulheres entrar neste género literário (SAUNDERS, 2014, 3). Não há dúvida de que assim é, embora haja um grande número de autores do sexo masculino que optou por essa via, possivelmente por a considerarem mais adequada à temática, ou um meio eficaz de chegar aos leitores. Saunders também salienta que “as primeiras obras de viagem escritas por mulheres começavam geralmente com um pedido de desculpas, uma passagem pelo topos da humildade e uma declaração de autenticidade” (Id., Ibid.). Mais uma vez, são abundantes os exemplos de autores masculinos de livros de viagens que principiam as suas obras da mesma forma. Sarah Mills refere que “os autores viajavam por motivos diferentes e para países diferentes, escrevendo sobre as suas viagens no quadro de uma multiplicidade de condicionamentos – de género, de classe, de finalidade da viagem, de convenções textuais, de audiência, etc. – que influenciavam e estruturavam a sua escrita” (MILLS, 1991, 21). Para Mills, uma diferença evidente entre os homens e as mulheres que escrevem livros de viagens encontra-se “na ênfase que colocam no envolvimento pessoal e nas relações com pessoas de outras culturas, e na atitude menos autoritária que assumem perante a voz narrativa” (Id., Ibid.). Embora tal possa ser verdade nalguns contextos, esta análise dos escritos britânicos sobre a Madeira não revela um maior grau de rapprochement entre as escritoras e os habitantes portugueses da ilha, em comparação com os escritores. No contexto português, as viajantes poderão ter tido de lidar com os locais para resolverem questões domésticas, mas isso não significa que tivessem um relacionamento pessoal com eles. A atitude autoritária talvez seja mais visível nos escritos sobre os campos da medicina e da ciência, à época dominados pelo sexo masculino. A autoridade poderia derivar, em parte, das qualificações académicas, dos títulos profissionais e dos graus militares que uma série de autores incluía na página de rosto das suas obras. Em contrapartida, a não ser que fossem membros da aristocracia, as escritoras limitavam-se a referir o seu estatuto de mulheres casadas. Mary Louise Pratt analisou o impacto da história natural e da ciência em geral na literatura de viagens, argumentando que “a história natural era um meio para narrar as viagens de exploração do interior, já não com a finalidade de descobrir rotas de comércio, mas de vigiar o território, explorar os recursos e exercer um controlo administrativo sobre o mesmo” (PRATT, 1992, 39), o que dá azo ao aparecimento de um discurso bastante próprio; no caso específico da Madeira, os botânicos e os meteorologistas parecem, de facto, reivindicar a Ilha para si. Em paralelo, há uma série de obras sobre a Madeira que corroboram a afirmação de que “a história natural estabeleceu uma autoridade urbana, literata, masculina sobre todo o planeta; elaborou uma compreensão racionalizante, extrativa e dissociativa, que se sobrepôs às relações funcionais e experienciais entre pessoas, plantas e animais” (Id., Ibid., 38). Por fim, em termos de considerações teóricas, para Saunders, “a ‘verdade’ na literatura de viagens aparece, paradoxalmente, quer como asserção da retórica objetiva ‘masculina’, quer como uma aparentemente ‘autêntica’ proclamação da literatura ‘feminina’, doméstica, privada” (SAUNDERS, 2014, 3). À exceção das obras assentes em dados científicos – sobre a precipitação, a temperatura e as espécies de plantas e insetos –, não há garantias de objetividade ou autenticidade. Além disso, quanto mais íntimo é o registo de escrita, mais tendência têm os autores para a subjetividade, ou para distorções de memória e perceção.   Mulheres viajantes As mulheres estiveram na Madeira por várias razões, quer para fazer uma pausa neste porto de escala tão bem situado, usualmente sob a proteção de membros da sua família, quer para visitar Ingleses nela residentes, quer para acompanhar os maridos, empenhados em investigações científicas, na escrita de um livro ou noutras atividades profissionais. Em todo o caso, nem sempre se limitaram a ilustrar as produções científicas e intelectuais dos cônjuges, tendo-se afirmado como autoras e artistas independentes. Ao contrário da jovem “ultramarina” de que se falará adiante, uma mulher da classe alta raramente sentia a necessidade de pedir desculpa por trabalhar; os dados sugerem que a idade e a classe social são condicionantes tão importantes como o sexo. Uma das primeiras mulheres a escrever sobre a Madeira foi Maria Riddell (1772-1808), autora das Voyages to the Madeira and Leeward Caribbean Islands, que tinha relações próximas com a Escócia devido ao seu casamento com Walter Riddell. Poetisa, embora menor, Maria Riddell é lembrada sobretudo pela sua amizade com o poeta nacional da Escócia, Robert Burns; mas não deixa de ser notável que tenha escrito um registo de viagens aos 20 anos. Na opinião de Corey Andrew, ela “faz juízos claros e raramente produz afirmações distanciadas. […] Considera que os habitantes da ilha possuem qualidades que os redimem, embora os seus elogios sejam muito parcos: ‘Os nativos são […] notavelmente engenhosos, e famosos pela sua capacidade de fazer perfumes, pastas, etc. Os Portugueses têm feições extremamente escuras, mas têm belos olhos e dentes; a classe baixa deste povo é indolente, suja, e muito viciada no roubo; têm muito talento musical, e são extremamente delicados’” (ANDREWS, 2013, 181). O nome que figura a seguir nesta cronologia é o de Elizabeth Macquarie (1778-1835), uma escocesa que viajou para a Austrália em 1809, juntamente com o marido, Lachlan, que havia sido nomeado governador da Nova Gales do Sul. Fez a viagem a bordo do navio de carga Dromedary, na companhia do Hindostan, um navio de guerra de Sua Majestade, tendo feito uma paragem na Madeira. Ao chegarem à Ilha, a 12 de junho, os Macquaries foram convidados a residir na casa de Henry Veitch, o cônsul britânico, que estava aparentemente muito ambientado à Madeira, e que, tendo sobrevivido a todos os amigos, não fazia tenções de regressar à Grã-Bretanha, uma atitude que muito desagradou à Sr.ª Macquarie. Um dos militares que os escoltou parecia “conhecer intimamente os habitantes locais, incluindo as freiras de diferentes conventos”. Tendo adoecido, a Sr.ª Macquarie não pôde fazer grandes passeios durante a semana que passou na Madeira, mas ficou chocada ao ver uma jovem tomar o hábito religioso, o que talvez não seja uma reação completamente inesperada numa protestante escocesa daquela época. Quanto à Ilha, o brilho inicial desapareceu rapidamente: “A ilha da Madeira é sem dúvida um dos lugares mais bonitos e românticos que já vi. Para uma pessoa que passou muito tempo em alto mar e que padeceu de alguma doença ou sofreu com o mau tempo, a visão do Funchal é do mais gratificante que se pode imaginar; mas, depois de se terem passado alguns dias em terra, a falta de ar e o imenso calor, a total ausência de qualquer tipo de exercício físico, dada a dureza das estradas, que são muito inclinadas, e pavimentadas com pequenas pedras, e, acima de tudo, a imundice dos ilhéus é tão desagradável, que creio que nunca chegaria a contemplá-la com indiferença – e tudo isto serve para ilustrar os confortos que são necessários para tornar a vida aprazível a uma pessoa acostumado a viver em Inglaterra” (MACQUARIE, 1809). [caption id="attachment_15563" align="alignleft" width="380"] Fig. 3 – Reprodução de “The Belladona Lily”Fonte: PENFOLD, 1845.[/caption] Houve duas Inglesas residentes na Madeira que foram responsáveis por promover a imagem da Ilha como paraíso tropical. Jane Wallas Penfold era filha de William Penfold, que era sócio de Henry Veitch; William Wordsworth compôs versos em sua homenagem, e Jane Penfold publicou os seus desenhos de plantas em Madeira Flowers, Fruits, and Ferns. Sua irmã, Augusta Jane (Penfold) Robley, também publicou as suas ilustrações em Selections of Madeira Flowers, Drawn and Coloured from Nature. Estas duas obras devem ter estimulado o interesse pela Madeira como destino adequado para o estudo da botânica e a produção artística. Emmeline Stuart Wortley, descrita por Jane Robinson como uma viajante obsessiva (ROBINSON, 1990, 121), escreve longamente tanto sobre Portugal continental como sobre a Ilha em A Visit to Portugal and Madeira. Confiante no seu estatuto social e nas suas capacidades literárias, Wortley narra a sua viagem a Portugal sem perder tempo com desculpas ou com falsas humildades. Por vezes, a sua obra lê-se como um romance, com retratos detalhados e extravagantes que roçam a caricatura; mas, a par das conversas e anedotas sobre a realeza europeia, figuram alguns comentários inteligentemente satíricos sobre a escravatura e o racismo, bem como críticas abertas ao deficiente sistema agrícola, que provoca a malnutrição infantil da população local. Apesar do estilo intenso, a autora fornece informações exatas sobre a Ilha, repetindo detalhes encontrados em livros anteriores. Também faz a obrigatória visita a S.ta Clara para ver a lendária Maria Clementina, imortalizada por Coleridge: “Esta freira foi uma criatura deslumbrante, que em tenra idade foi metida num convento por um pai austero, penso que por instigação da madrasta, e foi durante algum tempo muito infeliz. Já não é nova (e espero que já não seja infeliz), mas ainda se detetam traços da sua beleza outrora resplandescente” (WORTLEY, 1854, 302). [caption id="attachment_15566" align="aligncenter" width="332"] Fig. 4 – Reprodução de “Bird of Paradise”Fonte: ROBLEY, 1845[/caption] A autora explica então que houve um relaxamento da regra monástica no período do Governo Constitucional, e conclui a história de Clementina, que regressou à tranquilidade do convento, descrevendo de seguida a personagem, que se assemelha mais à marquesa de Alorna na sua grade do que a Mariana Alcoforado, discutindo os méritos relativos de madame de Staël e de lady Morgan (mencionada por Almeida Garrett no Diário de Minha Viagem a Inglaterra (1823-1824)). Tal como outros viajantes, Emmeline Wortley conhece Stoddard e o cônsul Veitch, nesta altura presumivelmente a gozar a reforma ou a tratar de negócios; e, à semelhança de outros escritores, não consegue deixar de referir a lenda de Machim. O leitor fica com a impressão de que lady Wortley tem um grande talento para ocultar os seus profundos conhecimentos em matérias como a agricultura, os negócios, a economia e a política por detrás de aparentes mexericos e meandros narrativos. A ironia é enganadora, até porque esta autora visitou a Madeira com um espírito aberto, e não com o simples fito de confirmar os seus preconceitos. Em 1882, Ellen M. Taylor publicou Madeira: Its Scenery and how to See It. With Letters of a Year's Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, um guia de viagem extremamente detalhado. Tendo-se deslocado à Madeira com uma amiga enferma, presume-se que tivesse bastante tempo disponível, e percebeu que tipo de informação era necessário dar para tornar mais fáceis a viagem e a estadia na Ilha; fez, pois, o seu trabalho de casa, consultando as autoridades na matéria. Não refere os aspetos já tratados por Grabham, e pede autorização à Sr.ª White, viúva de Robert White, e a James Yate Johnson, para se referir a Madeira. Its Climarw and Scenery. Regista o apoio que lhe foi dado por Charles Cossart e cita um artigo da Fraser’s Magazine, de agosto de 1875. O seu guia de viagens não se destina apenas a inválidos, informando também os leitores sobre hotéis, navios a vapor, restrições de bagagem, atividades recreativas e excursões, compras, a história e os hábitos, para além de ter uma lista de vocabulário útil. Para os que têm interesses culturais, cita John Mason Neale sobre a arquitetura de igrejas. Nas palavras de Jane Robinson, “tanto a ilha como o seu guia eram dedicados à busca passiva da saúde” (ROBINSON, 1990, 197). A Voyage in the “Sunbeam”. Our Home on the Ocean for Eleven Months difere em alguns aspetos de outros registos de damas inglesas: Annie Brassey descreve a viagem de circum-navegação que a sua família empreendeu à volta do mundo a bordo do iate a vapor do marido (1876-1877), a primeira do género. O iate atracou na Madeira (cap. 2) para uma breve visita, a que se seguiu o ritual de os visitantes de relevo serem recebidos pelos residentes ingleses. O livro foi um enorme êxito, tendo chegado às 19 edições e sido traduzido em 5 línguas. A família regressou à Madeira 7 anos depois, conforme é narrado em In the Trades, the Tropics, and the Roaring Forties: 14,000 Miles in the “Sunbeam” in 1883. A autora começa por pedir desculpa pelo seu trabalho, e depois conta os labores da viagem de ida para a Madeira para se encontrar com o marido e se juntar a ele no Sunbeam, após ter perdido a maior parte da bagagem porque o navio onde seguia meteu água; felizmente, os filhos e o cão, Sir Roger, tinham saído ilesos desta experiência. A narrativa inclui uma descrição de um navio escocês de emigrantes com destino à Austrália, e do hotel de S.ta Clara, onde foram atendidos pelo Sr. Reed, o proprietário, e pelo Sr. Cardwell, o gerente, que se encarregou da bagagem. A Ilha é povoada por uma série de figuras conhecidas, nomeadamente “o nosso velho amigo, o Dr. Grabham, o único médico inglês desta terra, um homem de enorme sucesso, repleto de informação sobre todas as matérias” (BRASSEY, 1878, 29); tal como muitos outros, visitam a quinta dos Blandy. Brassey sente-se obrigada a esboçar os momentos chave da história da Madeira, incluindo o mito de Machim, a visita do Cap. Cook no Endeavour, em 1768, e as ocupações britânicas em 1801 e 1807. O foco anglocêntrico é evidente. A família visita os locais habituais, é transportada em liteiras de rede, lancha com a Sr.ª Taylor, “uma antiga residente na Madeira, que generosamente partilhou connosco muitas informações úteis” (Id., Ibid., 56), e admira a paisagem e a vegetação. Há muito pouca informação sobre a população local e a cultura portuguesa, à exceção de aspetos pitorescos ou etnográficos; o leitor fica com a impressão de que a Ilha é praticamente uma colónia britânica, cuja principal função é dar conforto e entreter as classes privilegiadas das ilhas Britânicas. Helena Beatrice Richenda Saunders (1862-1947), a “ultramarina”, que mais tarde se casou com Charles Parham, escreveu The Contents of a Madeira Mail-bag, or, Island Etchings quando estava ainda na casa dos 20 anos; trata-se de um conjunto de cartas dirigidas a sua mãe, que se encontrava em Inglaterra, e que não se destinavam a ser publicadas, onde descreve a sua vida na Qt. das Flores com a tia. Algumas das suas experiências coincidem com as de Brassey, como o facto de o mesmo Sr. Cardwell lhes tratar da bagagem, apesar de nem ela nem a tia estarem hospedadas no hotel. Helena Parnham observa os homens que conduzem os carros de bois e transportam as liteiras, as mulheres nos seus trajes, as crianças semi-nuas, descreve a costureira, que treme de frio, comenta a meteorologia e a gastronomia (não aprecia a cozinha portuguesa) e os eventos sociais (não há referência a convidados portugueses), e conta à mãe que fica muito cansada depois dos banhos de mar, apesar de não haver indicações de que seja inválida. Receber uma carta de casa é para ela um evento importante, tal como é escrever à família a partilhar os conhecimentos recém-adquiridos, e.g., a lenda de Machim e o facto de Beresford ter vivido na Achada durante a ocupação. Mais tarde, Helena Parnham será uma conhecida botânica, sendo bastante provável que as suas experiências na Madeira tenham despertado o seu interesse pela flora e o mundo natural. O que é invulgar nela é a preocupação com a literatura: todas as suas cartas têm como epígrafe um verso, na sua maioria retirados de poemas de poetas ingleses eminentemente românticos – Southey, Hemans, Longfellow, entre outras figuras literárias a que se refere frequentemente. Além disso, ao contrário de outros escritores de viagens que temos vindo a mencionar, esforça-se por aprender português, tendo até ouvido falar de Camões; numa das suas cartas, refere-se mesmo à tradução de Mickle: “Leste ‘Os Lusíadas’ de Camões? Não me refiro ao original, visto que a obra é conhecida há um século em Inglaterra, graças à tradução em verso de Mickle. Tenho de a ler assim que tiver a oportunidade, visto que se trata do grande chef d’œuvre português, e descreve a descoberta do cabo da Boa Esperança, e de toda a costa de África” (PARHAM, 1885, 87). As flores da Madeira continuaram a exercer o seu fascínio sobre os visitantes ao longo do séc. XX. Ella Du Cane, que caiu nas graças da Rainha Vitoria, pintou aguarelas delicadas enquanto sua irmã Florence Du Cane escrevia o texto que preenche as páginas de The Flowers and Gardens of Madeira (1909). Florence cita Bowdich, Lyall, Yate Johnson e outros, refere-se a The Discovery of Madeira, escrito em 1750, menciona o dragoeiro, debate a origem de algumas plantas, discute design de jardins e fornece várias sugestões práticas de jardinagem. O livro também contém uma descrição histórica, com as habituais lendas e os costumeiros factos. Entre as mulheres que escreveram sobre a Ilha, contam-se ainda Jessie Edith Hutcheon e Elizabeth Nicholas. Há também, esporadicamente, publicações de especialstas, e.g. The Quintas of Madeira: Windows into the Past, uma obra de Marjorie Hoare sobre arquitetura, horticultura e história social.   Cultura literária A literatura nunca foi o foco da atenção dos visitantes britânicos da Madeira, que, na melhor das hipóteses, tinham um conhecimento rudimentar da língua portuguesa e aceitavam sem a questionar a tese estabelecida de que Portugal não possuía grandes escritores. Helena Parnham é a exceção à regra. Terence Macmahon Hughes – que compôs um poema à Madeira e sobre a Madeira, The Ocean Flower – comentou a poesia portuguesa apenas para a criticar. Os visitantes, quer por motivos de saúde, quer para fazer escala em viagens mais longas, mostravam-se bastante mais interessados na paisagem e na flora. Desde os finais do séc. XV que os Britânicos visitam a Madeira ou se instalam na Ilha, por uma multiplicidade de razões. A Ilha atraiu mercadores e comerciantes, indivíduos com olho para as possibilidades comerciais, primeiro do açúcar, depois do vinho, exportando o Madeira para Inglaterra e as suas colónias, e importando bens para vender aos ilhéus. Estes homens, por sua vez, precisavam de funcionários, e as mulheres deles de criados e de amas para os filhos; as famílias careciam de médicos e de padres, os inválidos e os visitantes de instalações médicas e hotéis, e foi assim que a elite expatriada e abastada se expandiu. Vale a pena perguntar se os Britânicos trataram a Madeira como trataram Portugal continental. Quando a Ilha se tornou estrategicamente importante para os Britânicos, estes não hesitaram em a ocupar, formalizando uma organização colonial que data do reinado de Carlos II. Este comportamento não será surpreendente quando recordamos a ocupação britânica de Portugal durante a Guerra Peninsular e o Ultimatum de 1890. Somos por isso tentados a questionar se as constantes alusões dos escritores de viagens a Robert Machim não serão uma forma subconsciente de legitimar as pretensões britânicas à Ilha. Com o tempo, a Madeira adquiriu o estatuto de “colecionável”. A “pérola do Atlântico” veio a ser estimada pelos Ingleses pelo seu calor benigno e pela beleza da sua flora e das suas paisagens. Era um objeto para admirar e tentar capturar, em texto e em imagem, através de desenhos, de aguarelas ou de fotografias. Tal como outros colecionáveis, podia ser transacionada, sucessivamente “vendida” às gerações de leitores que consumiam livros de viagens, para lhes satisfazer a curiosidade sobre terras distantes e exóticas e a forma de lá chegar. O atrativo da Madeira para os Britânicos talvez resultasse, em parte, da sensação de constituírem uma ilha dentro da Ilha, uma sociedade fechada dentro da qual não tinham de interagir grandemente com o outro – os católicos de pele escura –, num lugar onde os valores centrais da britanicidade podiam permanecer salvaguardados e intactos, mas num clima temperado. Ironicamente, além de divulgarem informações sobre o passado e o presente da Ilha, as obras discutidas tiveram o resultado acidental de construírem a história social dos ingleses na Madeira. Bibliog.: impressa: ADAMS, Joseph, The Superiority of the Climate of Madeira, Etc. An Account of Arrangements Made for the Treatment of Invalids on the Island, s.l., s.n., 1800; Id., Guide to the Island of Madeira. With An Account of Funchal, and Instructions to Those Who Resort thither for Their Health, London, T. N. Longman and O. 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História Económica e Social Madeira Global Sociedade e Comunicação Social

mosteiro novo

O conjunto edificado denominado “Mosteiro Novo”, que foi depois seminário, embora tendo essa designação, nunca chegou a ser mosteiro, nem sequer recolhimento. Enquadra-se, assim, na vasta série de instituições pias criadas em momentos difíceis relativamente às quais, por morte dos instituidores, desaparece a vontade e os fundos para as instituir verdadeira e concretamente. A doação destes edifícios para um futuro mosteiro ou recolhimento foi feita pelo Cón. Manuel Afonso Rocha, a 17 de dezembro de 1638, perante um tabelião e o bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650). Declarou então que tinha dado início a um mosteiro composto de casas, oficinas, igreja e coro, sob a invocação de S. José, destinado a religiosas ou religiosos, sob a cláusula de lhe celebrarem algumas missas e ofícios pela sua alma. Como o conjunto não estava concluído, entregava o governo e a sua administração à proteção do prelado e seus sucessores, dentro da intenção de o mesmo vir a servir de “recolhimento para damas ou mulheres de qualidade”. Caso tal não fosse possível, gostaria que o mosteiro fosse entregue “a religiosos virtuosos mendicantes ou outros que ali fizessem mais serviço a Deus” (SILVA e MENESES, 1998, II, 398-399). As informações do cónego, em princípio afastavam-se algo da realidade, não existindo qualquer “igreja com coro” e somente, na melhor hipótese, uma capela ou um oratório privado, pois que não se conhece para ali qualquer autorização de culto passado pela autoridade eclesiástica. Cerca de 10 anos depois, em 1647, o prelado dava autorização para ali residirem os sobrinhos do fundador, o Cón. António Spranger Rocha, seu irmão, o P.e Inácio Spranger e suas irmãs. Tudo indica ser então e ainda somente um espaço residencial e, muito provavelmente, a autorização do prelado era a oficialização da situação que se mantinha do anterior. Esta família viveu aí ao longo de todo o século, pois em 1691 faleceu nestas casas o também Cón. António Spranger, sobrinho dos anteriores. As casas devem ter ficado então devolutas, pois em finais de 1698, o bispo D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1722), pouco depois de tomar posse da Diocese, o que ocorreu a 28 de agosto de 1698, transferiu para ali o seminário diocesano, até então alojado no chamado colégio de S. Luís anexo à capela daquela evocação e ao paço episcopal. A 3 de janeiro de 1702 emitia um decreto com os novos estatutos do seminário, os quais foram confirmados, depois de ouvidos os elementos do mesmo, passando a ter um reitor, 10 colegiais e um número de pensionistas a livre arbítrio do bispo. Por 1720, Henrique Henriques de Noronha descrevia o conjunto edificado, então sob a evocação de S. Gonçalo e com uma “nobre igreja” dedicada a Jesus, Maria e José, onde existiam dois altares laterais, um de S. Gonçalo de Amarante e outro, de N.ª S.ra do Bom Despacho (NORONHA, 1996, p. 304). O terramoto de 1 de novembro de 1748 afetou bastante o edifício, tendo sido retirado dali o seminário, mas, por volta 1760, este regressou às mesmas instalações. O conjunto edificado que chegou até nós deve ser produto das obras dos finais do séc. XVII e inícios do XVIII, embora com obras de reabilitação dos anos seguintes, mas que não alteraram substancialmente a organização geral da estrutura. O conjunto do antigo Mosteiro Novo e do seminário apresenta um amplo pátio interior, sobre o qual corre o corpo que dá para a rua, que ainda no séc. XXI era chamada R. do Seminário, com uma pequena capela a nascente, profanada e sem qualquer recheio. A entrada para o pátio fica a poente desse corpo, parecendo manter preexistências dos finais do séc. XVII ou inícios do XVIII, com dois interessantes lanços de escadas e entrada para o piso nobre com alpendre refeito no séc. XIX. Ao longo da rua apresenta três portais ao gosto das primeiras décadas do séc. XVIII, mas a organização da fenestração parece anterior, salvo a janela com balcão, que deve corresponder à campanha de obras do séc. XIX. O edifício poente do pátio parece ter sido montado para os seminaristas internos, tal como o que corre sobre a rua parece ter sido ocupado pelos quadros superiores do seminário. O seminário foi transferido, em 1788, para o antigo colégio dos Jesuítas, mas logo em 1801 voltava ao edifício original, dada a instalação no colégio das forças inglesas de ocupação. Em 1909, o seminário era transferido para o novo edifício levantado na cerca do extinto convento da Encarnação, construído então pela Junta Geral do Distrito, mas a 20 de abril de 1911, com a extinção dos seminários pela República, voltava a funcionar, sem carácter oficial, nas antigas instalações do Mosteiro Novo. Em breve também o edifício era confiscado pelo Estado, tendo passado, em 1971, por uma remodelação total para a instalação do Laboratório Distrital de Análises Dr. Celestino da Costa Maia, até então a funcionar num edifício da R. das Pretas. Em 1976, e com a transferência do laboratório, o edifício ficava devoluto, tendo tido nova remodelação em 1988, e nova designação, então de Laboratório de Saúde Pública Dr. Câmara Pestana. Em 2000 voltava a estar parcialmente devoluto, aguardando definição de reutilização.     Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Arquitetura Património Religiões

música tradicional

A música tradicional madeirense da atualidade resulta da combinação de um conjunto de elementos trazidos por sucessivas levas de povoadores. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), estes contributos foram evoluindo de forma isolada, mas recebendo pontuais influências de novas populações, de visitantes ocasionais ou ainda, a partir do séc. XX, dos meios de comunicação social de âmbito nacional, com particular incidência nas estações radiofónicas, ou da generalização do ensino oficial, com a chegada de docentes de diversos pontos do país. Deste modo, popularizaram-se na RAM canções que, com o tempo, têm vindo a assumir, para muitos, um carácter tradicional. Como é natural, trata-se de peças cuja identificação nem sempre é fácil, pois há pouca investigação feita sobre o tema nas diversas regiões do país. No caso particular das cantigas religiosas, é ainda necessário referir a influência de sacerdotes portadores de orientações precisas por parte da hierarquia ou de uma formação padronizada nos seminários que frequentaram. Um último aspeto que poderá estar na origem de algumas influências alheias é o regresso de emigrantes que trazem das terras onde viveram elementos tradicionais passíveis de ser incorporados na tradição. No entanto, seja por o fenómeno ser ainda relativamente recente, em termos de mecanismos de mudança cultural, seja apenas por ainda não ter havido quem o estudasse seriamente, a verdade é que não se sabe, atualmente, se essa componente se manifesta. Não é possível definir características genéricas da música tradicional madeirense. Por esse motivo, e de modo a facilitar a exposição, optou-se por abordar aqui, separadamente, cada um dos grandes géneros musicais, após uma primeira referência ao bailinho, o elemento mais conhecido e identitário da tradição musical da RAM. Aborda-se igualmente a mourisca, que, embora com menor realce, constitui também um modelo musical transversal a diversos géneros. Bailinho Com um padrão rítmico bastante simples, o bailinho é executado geralmente na tonalidade de Sol Maior, por ser aquela a que mais facilmente se adapta a voz. É esta melodia que está na base de muitos dos mais conhecidos bailes regionais, sendo também a forma assumida pela mais popular forma de canto improvisado em despique da RAM (com o nome de bailinho, retirada, meia noite ou outro). Encontramo-lo ainda a dar o “som” de muitos romances tradicionais, cantigas narrativas, cantigas de lazer, etc. De certa forma, é um elemento que, por si só, permite a qualquer não madeirense identificar uma melodia como sendo da RAM, sendo, atualmente, a forma musical mais presente e espontânea em todos os ambientes festivos na Região, acompanhada por qualquer instrumento ou mesmo por formas improvisadas de criar som. É importante chamar aqui a atenção para uma confusão bastante frequente resultante da coincidência do nome deste género musical. Existe uma canção muito conhecida, interpretada pelo cantor madeirense Max, que tem precisamente o nome de “Bailinho da Madeira”. No entanto, apesar da referência na sua letra ao bailinho, musicalmente esta nada tem a ver com ele. Antes pelo contrário, a música tradicional que serviu de inspiração para algumas das suas frases musicais foi o charamba. A grande popularidade desta canção tem feito com que seja frequente a confusão. Mourisca A mourisca madeirense dos começos do séc. XXI apresenta características que a aproximam de um vira valseado. Musicalmente, baseia-se no compasso binário composto, padrão rítmico de 6/8. Harmonicamente, tem a forma tradicional de alternância entre tónica e dominante. Na tradição local, principalmente a que se pode identificar através de recolhas efetuadas em anos anteriores, encontram-se formas de mourisca em diversas circunstâncias. Existem referências e alguns registos de mouriscas cantadas em despique, com letras improvisadas; contudo já não se encontram cultores desta prática, sobrevivendo apenas como canção de letra fixa. A sua grande força é traduzida numa dança, conhecida predominantemente na zona sul da ilha, em torno da Camacha, da Gaula, do Machico e do Caniçal. Existem algumas referências quanto à existência da mourisca dançada pelos populares em outras zonas, como os Canhas. Esta pode ser denominada, de forma indiferente, como mourisca ou chama-rita. No Porto Santo, existia o baile sério, nos começos do séc. XXI executado apenas pelo grupo folclórico desta ilha. Trata-se de uma variante da mourisca madeirense, com uma letra própria. Os habitantes da ilha consideravam-no a dança dos grupos mais abastados da ilha, em oposição à meia volta ou ao baile do ladrão, associados às classes populares. A sua letra é fixa, tal como na mourisca da ilha da Madeira, alternando quadra com refrão. As quadras são entoadas alternadamente por uma mulher e por um homem, sendo o refrão cantado em coro. Cantigas de trabalho Como resultado da transformação dos modos de vida e das atividades produtivas rurais, as cantigas associadas ao trabalho encontram-se atualmente numa situação peculiar. Com efeito, a verdade é que, nas zonas rurais, já não se ouve cantar a chamusca, a cava, a sementeira, a erva, a ceifa do trigo, a malha na eira, a boiada ou cantigas do moleiro, de acartar lenha, dos borracheiros, do linho, dos pastores, etc. Com o desaparecimento das atividades agrícolas que lhes estavam associadas, estas cantigas perderam o seu carácter funcional. De uma forma geral, podemos considerar que as cantigas de trabalho assumem diversas das características a seguir enunciadas: – Género exclusivamente vocal, sem acompanhamento instrumental; – Estrutura musical vulgar, nalguns casos simétrica; – Melodia simples e curta, muitas vezes irregular, com intervalos curtos; – Andamento lento e livre, dependente da respiração de cada um. O seu tempo é relativo e variável, dependendo da sensibilidade de quem canta e também do trabalho associado; – A tonalidade é a que melhor serve ao intérprete. Por vezes, verifica-se um prolongamento da última nota (de 8 ou 12 tempos finais), como, por exemplo, na cantiga da ceifa, da carga ou dos borracheiros. Não há mudança de tom; – Padrão rítmico: 2+2; 4+4; – Canto monódico. No entanto, a sua entoação pode variar, existindo diferentes formas de o fazer: a) Um único intérprete canta a totalidade da cantiga, ou cada um canta a sua quadra; b) Uma voz inicia a quadra e, nos dois últimos versos, os restantes participantes acompanham em uníssono imperfeito; c) Todos entoam, em conjunto, quadras já conhecidas; d) Cada um improvisa a sua quadra. – Sem refrão; – Forma de cantar: alto (agudo), voz de cabeça; – São frequentes os modos arcaicos (sistema modal); As características mais notórias da letra são: – A mesma letra pode servir para diferentes melodias, podendo ser de temática completamente alheia à tarefa. Esta é geralmente pouco profunda, mas ligada à tarefa do dia-a-dia, às dificuldades da vida. São temas recorrentes: Deus, amor, saudade, tristeza, alegria, humor, malandrice; – É frequente a apropriação de versos já conhecidos e pertencentes a cantigas de lazer, de carácter religioso ou romances tradicionais; – O cantar de improviso é um fator importante neste género de música associada ao trabalho caseiro, dependendo da capacidade poética de quem canta; – Entre as quadras ou versos, são frequentes os apupos ou onomatopeias; Listam-se abaixo algumas das mais significativas cantigas de trabalho madeirenses. Borracheiros Na costa norte da Madeira, as uvas eram tradicionalmente apanhadas e levadas para um lagar local. O mosto era posteriormente acartado para as adegas do Funchal, onde iria fazer parte do processo de produção do famoso vinho generoso. A ausência de boas vias de comunicação obrigava a que o seu transporte fosse feito em odres (borrachos) carregados aos ombros de homens pelas veredas da serra. Podiam juntar-se várias dezenas de borracheiros, que, em fila, faziam o percurso até à cidade. Como forma de atenuar a dureza da caminhada, iam entoando uma cantiga específica. O primeiro homem da fila era o chamado candeeiro, que cantava umas quadras de métrica irregular, a que respondiam os restantes (o gado), com vivas. O último do grupo era o boieiro. O canto servia para animar os elementos do grupo, fazendo alusão ao próprio caminho, podendo também incluir elementos de troça em relação a algum componente ou de incentivo ao esforço. A construção de estradas e infraestruturas levou ao inevitável fim dos borracheiros. Em 1974, por iniciativa de Eduardo Caldeira, constituiu-se um grupo, no Porto da Cruz, que recuperou essas tradições, apresentando-as em diversos eventos madeirenses. Cantiga da carga A força humana foi, desde sempre, o elemento que assegurou o transporte na ilha. Mesmo cargas pesadas eram levadas aos ombros ou à cabeça. Por vezes, onde os terrenos o permitiam, podia recorrer-se à ajuda de animais para facilitar a tarefa. No entanto, a ida à serra para recolher lenha para aquecer a casa ou cozinhar, ou para cortar erva para o gado que, no palheiro, a aguardava, dificilmente escapava à necessidade da força humana para o transporte dos pesados fardos. Esta cantiga era entoada naqueles percursos do regresso, aliviando, de certa forma, a dureza do esforço. A letra era composta por quadras, que podiam ser improvisadas, intercaladas por apupos e entoadas numa cadência lenta, acompanhando o ritmo lento da tarefa. Cantiga de embalar Adormecer uma criança é uma tarefa que pode ser árdua e que está muito dependente do tempo necessário para atingir o objetivo. Assim, a tradicional cantiga de embalar tem um andamento muito lento, sem grandes irregularidades. A letra tem versos intercalados por onomatopeias destinadas a fazer adormecer mais facilmente a criança.   Cantigas de carácter religioso O ciclo do Natal O primeiro momento do ciclo do Natal na Madeira, em termos musicais, é constituído pelas Missas do Parto. No seu estudo sobre o tema, Rufino da Silva (1998) afirma que os cantos que têm presença certa nestas cerimónias são conhecidos, pelo menos, desde finais do séc. XIX>, sendo no entanto impossível determinar se são de origem madeirense. Segundo o mesmo autor, estes cânticos apresentam traços de lirismo popular, revelam influência minhota pela harmonização em terceiras e a sua estrutura harmónica é basicamente de alternância entre a tónica e dominante e quase exclusivamente em modo maior. Embora esta seja a caracterização da maior parte das canções, o autor detecta nalgumas delas traços de influência do canto gregoriano.   Romagem. Missa do Galo. Boaventura. Foto: Rui A. Camacho A missa da Noite de Natal é um mais alto momento das vivências religiosas da população regional. Associadas à importância litúrgica de comemorar o nascimento de Cristo, há diversas práticas tradicionais que ajudam a que esta seja realmente a grande Festa. Em alguns locais, esta celebração ainda assume características muito próprias, terminando com as romagens, nas quais grupos de vizinhos, familiares ou amigos percorrem a nave do templo tocando e cantando, para levar até ao sacerdote as suas oferendas. A própria missa é intercalada por diversos momentos de representação e entoação de cantos, como o da “Anunciação aos Pastores” ou a “Pensação do Menino”, tradicionalmente cantados junto do presépio. Possivelmente, estes serão os últimos vestígios de um ancestral auto apresentado na ocasião. A alteração das condições de realização da cerimónia, incluindo alguma necessidade de encurtar a sua duração, poderá estar na origem da eliminação de componentes ou redução do número de estrofes entoadas, daí resultando a sobrevivência de apenas algumas canções isoladas. As romagens são um bom exemplo de uma outra realidade: o que aqui é tradicional é o contexto de interpretação e não a canção em si. Apesar de ser uma tradição que tende a perder-se, nos locais onde se mantém, a principal preocupação dos vários grupos que preparam a sua romaria é mostrar qualquer coisa que as pessoas presentes na igreja não conheçam, pelo menos no que respeita à letra, pelo que muitas vezes se adapta uma música conhecida a uma letra criada. Principalmente nas zonas onde essa preocupação pela conservação da tradição é maior, o grupo que apresente uma romaria que ele ou outro cantou naquela igreja no ano anterior ou dois anos antes, da qual toda a gente se lembra, é alvo de troça, uma vez que não foi capaz de preparar e apresentar uma romagem original, o que obriga a questionar o lugar da tradição. A tradição está na prática de as pessoas de um determinado sítio se reunirem e levarem uma canção para a missa de Natal, com ou sem instrumentos. Por definição, se o que o grupo tem de apresentar é uma novidade, então as músicas não podem ser tradicionais. O que acontece por vezes é que se o público gostar de uma romaria de Natal, seja pela situação em que ela foi apresentada, seja pela qualidade artística da sua melodia ou da sua letra, esta permanece e pode tornar-se tradicional, como uma cantiga de passatempo.   Noite de Reis. Foto: Rui A. Camacho Cantiga de Reis Na noite de 5 para 6 de janeiro, formam-se grupos que percorrem as casas dos vizinhos ou amigos, entoando cantos próprios da época, como forma de desejar um bom Ano Novo. Ao chegar à porta, canta-se enquanto se aguarda que o dono da casa abra e ofereça a todos as bebidas e bolos que os esperam. Depois de uns minutos de convívio, há que prosseguir o percurso, que dura até de manhã. Em cada zona da ilha tende a haver um canto próprio desta noite, embora haja alguns mais conhecidos que são partilhados por várias localidades. A cantiga é entoada em uníssono por todos os participantes. A sua estrutura melódica é constituída por duas partes distintas: uma primeira cantada em compasso de 3/4 e uma segunda em compasso de 3/8, embora haja casos em que surge o compasso 2/4. No final, é frequente haver uma quadra de despedida aos donos da casa. Espírito Santo. Camacha. Foto: Rui A. Camacho Espírito Santo Após a Páscoa, começam as visitas das insígnias do Espírito Santo às casas. Num número de domingos variável em função da quantidade de locais a percorrer, forma-se um grupo constituído pelos festeiros, portadores das insígnias (pendão com a pomba desenhada, coroa e cetro), músicos e duas ou quatro saloias (meninas que transportam cestos para acolher as ofertas). Ao chegar a cada casa, as saloias entoam o Hino, que pode variar de freguesia para freguesia, alusivo à entrada do Espírito Santo, a que se seguem o pedido e o agradecimento das esmolas ao dono da casa. Podem seguir-se outras cantigas, de acordo com pedidos feitos pelos moradores e/ou decisão dos festeiros. Cantigas de lazer Cantos improvisados Brinco em bailinho O despique em bailinho é, ainda hoje, o momento alto da festa popular. Em qualquer arraial tradicional, ou mesmo nas festas familiares, se pode encontrar um brinco. Um músico, pelo menos – tocando rajão, braguinha ou viola de arame, hoje frequentemente substituídos pelo acordeão –, atrai uma roda de cantadores que, à vez, entoam as suas quadras, podendo haver um acompanhamento adicional de palmas (se necessário, pode-se prescindir inclusivamente da presença de músicos). Musicalmente, encontramos uma melodia tonal, com base na harmonia da tónica, dominante.   Despique. Arraial de Ponta Delgada. Foto: Rui A. Camacho O canto é, no essencial, improvisado. No entanto, um bom despicador pode recorrer, se necessário, a quadras decoradas. Esta situação será um recurso aceite no contexto de um despique que se prolongue num arraial. A tentativa de “atirar” quadras críticas ou irónicas sobre os restantes pode proporcionar momentos de grande alegria. A forma poética escolhida é a quadra de verso curto, com rima cruzada (ABAB ou ABCB). Habitualmente, cada verso é bisado, e após o segundo verso toca-se o interlúdio musical. Por vezes, o despicador acrescenta mais dois versos (rima CB ou DB), como mecanismo que permite completar melhor a ideia. Em casos mais raros, poderá ser entoada uma nova quadra completa, tendência que se tem tornado mais comum em tempos mais recentes, possível sinal de uma menor capacidade inventiva e de síntese. A satisfação dos presentes é manifestada por meio de apupos. O despicador, ao chegar a sua vez, pode prescindir de participar, passando a vez ao seguinte. A conclusão mais natural do despique será a que resultar do progressivo abandono dos participantes, vencidos pelo mais inspirado. Num arraial, o brinco poderia prolongar-se por longo tempo, sendo um dos grandes momentos de animação antes da generalização dos grupos de música moderna. Na ilha do Porto Santo, é habitual chamar “Retirada” ao despique em bailinho. Charamba   Charamba. Foto: Rui A. Camacho É hoje a forma musical associada por excelência à viola de arame, embora tradicionalmente pudesse ser acompanhado por outros instrumentos. É uma forma de canto despicado, quase exclusivamente masculino. Na maior parte das vezes, os tocadores não participam no canto, sendo este alternado entre os participantes, que podem cantar quadras ou estrofes mais longas e também com uma métrica variável. A sequência é obrigatoriamente no sentido dos ponteiros do relógio. Ao conjunto dos charambistas que participam numa determinada sessão chama-se “quadrado”. Segundo alguns dos intérpretes tradicionais, o importante neste género musical era o conteúdo do que se cantava. Nalguns casos, acordava-se previamente um tema (fundamento) que estaria obrigatoriamente presente em todas as intervenções. O tema poderia também ser acordado após quadras iniciais entoadas pelos participantes. No momento do canto, o intérprete tem toda a liberdade de definir o andamento e a extensão dos seus versos. Se necessário, o tocador terá de “ir atrás” do cantor, prolongando as frases musicais ou repetindo-as. Para alguns, a opção é ir tocando uns acordes muito simples durante o canto. As quadras são entoadas com repetição de cada verso ou repetindo cada par de versos. Após a repetição, há o indispensável interlúdio musical, que tem uma forma padronizada e bem definida, num padrão rítmico regular de 2/4 (embora possa mudar para 5/8), sendo ele que, musicalmente, define o charamba. A estrutura harmónica é simples, baseando-se na Tónica e Dominante do tom de Sol maior. O seu andamento é lento/andante. Jogos cantados Nos momentos de convívio dos mais jovens, seja entre si, seja com os adultos da família ou amigos, as lengalengas e os jogos ocupavam um lugar importante. Estes apresentam uma grande diversidade de características, podendo ser cantados ou não, tal como ter associada uma coreografia própria. Embora não sendo possível efetuar generalizações, existe um conjunto de aspetos que se podem apresentar como sendo muito comuns aos jogos cantados: – São cantados em tom maior, com refrão e um ritmo simples; – É habitual possuírem refrão, cantado por todos em uníssono, intercalado com outras partes entoadas a solo por algum dos participantes; – Sem acompanhamento instrumental; – Recurso a acompanhamento de palmas; – A sua letra é composta maioritariamente por quadras de verso curto Muitos dos jogos têm uma coreografia associada. Os jogadores podem colocar-se em roda simples ou dupla, podendo ter um elemento no centro, podem estar em fila, frente a frente, etc. Histórias Outra forma muito comum de passar o tempo livre, ou mesmo acompanhar as longas horas de trabalho do bordado, era contando ou cantando histórias. Estas podiam assumir características diversificadas. Tanto podiam ser os antigos romances da tradição hispânica, como narrativas inspiradas em factos da vida real, como ainda histórias de animais ou mesmo lengalengas. Um elemento importante é assumirem, com grande frequência, um carácter didático ou terem uma conclusão moral. A sua componente musical varia muito. Ainda podemos encontrar alguns romances com as suas melodias ancestrais, a par de outros textos a que se foi adaptando uma música mais recente. Nestes casos, o facto de se tratar de uma melodia bem conhecida facilitava a sua memorização e podia tornar mais recetivos os ouvintes. De qualquer modo, são sempre melodias com frases musicais curtas, que se vão repetindo ao longo de todo o texto. Danças As duas formas dançadas mais comuns na RAM são os já referidos bailinho e mourisca. Para além delas, pode referir-se duas outras tradicionais da ilha do Porto Santo, a Meia Volta e o Ladrão, e uma outra, a Dança das Espadas, associada à festa de São Pedro, na Ribeira Brava. Meia volta Na ilha do Porto Santo, os momentos de festa em família ou com vizinhos e amigos tinham lugar nas eiras ou num espaço amplo dentro de casa. Aí, o tocador da rabeca colocava-se no centro e os restantes participantes do baile iam formando pares em roda (pares que nunca se tocavam, realçavam alguns dos mais antigos). Na roda, incluíam-se os tocadores dos outros instrumentos, como o rajão e viola de arame. Caso único nas danças da RAM, existia um mandador que orientava a sequência coreográfica do baile, ao mesmo tempo que cantava e tocava a viola de arame. Os restantes cantadores ficavam fora da roda. A música tem ainda hoje carácter modal (frígio), claro sintoma da sua antiguidade, embora todas as hipóteses até hoje lançadas para explicar a sua origem sejam puramente especulativas. Tradicionalmente, o canto era improvisado. Atualmente extinto da tradição, são elementos do Grupo Folclórico local que preservam a sua recordação. Musicalmente, apresenta uma sequência harmónica de três acordes: Sol, Lá, Sol, tom de Sol maior. O andamento é moderado e mantém-se sempre inalterável, mudando o número de notas musicais, criando uma intensidade sonora e desenvolvendo uma dinâmica rítmica, enquanto o violino executa uma interessante melodia com base na escala de Sol maior. A meia volta é única em relação a todas as outras músicas tradicionais. Dança das espadas Música tradicionalmente executada durante os festejos de São Pedro, na Ribeira Brava. Praticada até meados do séc. XX, esta dança desapareceu progressivamente da tradição, sendo alvo de trabalho de reconstituição em finais do século, tendo posteriormente retomado o seu lugar na festa.   Dança das Espadas. Ribeira Brava. Foto: Rui A. Camacho É interpretada por um conjunto de homens com um trajo próprio, tendo duas partes distintas: uma executada em marcha e a outra com uma coreografia própria. Aspecto peculiar, a dança é apenas instrumental, sem qualquer canto associado, o que faz com que seja a única dança da tradição popular que apresenta essas características. Musicalmente, é simples, baseando-se apenas em quatro compassos, em tom maior. Embora haja registo de ligeiras alterações, podemos definir o acompanhamento musical como sendo feito por rajão, braguinha, viola de arame e pandeiro.   Jorge Torres Rui Camacho (atualizado a 01.02.2018)

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O Brasil exerceu, ao longo da história, um certo fascínio sobre os insulares, que se encontram ligados ao seu processo de construção desde o início. Nos sécs. XVI e XVII, destacou-se a presença de madeirenses, de norte a sul do Brasil, como lavradores e mestres de engenho, que foram pioneiros na definição da agricultura de exportação baseada na cana-de-açúcar, funcionários, que consolidaram as instituições locais e régias, e militares, que se bateram em diversos momentos pela soberania portuguesa. O forte impacto madeirense nos primórdios da sociedade brasileira levou Evaldo Cabral de Mello a definir a capitania de S. Vicente como a “Nova Madeira”. Evaldo Cabral de Mello Neto e José António Gonsalves de Mello são aliás raros exemplos na historiografia brasileira de valorização desta presença madeirense. Os primórdios da colonização do Brasil estão ligados à Madeira, tendo-se estabelecido uma ponte entre a Ilha e as colónias do Brasil. Os primeiros engenhos açucareiros foram construídos por mestres madeirenses. Na Baía, em Pernambuco e em Paraíba encontramos muitos madeirenses ligados à safra açucareira, como técnicos ou donos de engenho. A Madeira também serviu de modelo no processo de colonização do Brasil, nomeadamente no que respeita aos regimes de capitanias hereditárias e das sesmarias, e ainda no aparelho administrativo e religioso, pois o Funchal foi sede de arcebispado entre 1514 e 1533, com jurisdição sobre o Brasil. O progresso económico do Brasil veio despertar a atenção da burguesia madeirense, que emigrou para essa colónia à procura das suas riquezas, em particular o açúcar. Neste sentido, são várias as famílias brasileiras com origem madeirense. É o caso das famílias pernambucanas Regueiras, Saldanha, Moniz Barreto e Cunha, que teve a sua origem no madeirense Pedro da Cunha Andrade. Aos agricultores e técnicos de engenho seguiram-se os aventureiros, os perseguidos da religião (os judeus) e alguns foragidos da justiça. Deste modo, a presença de madeirenses, ainda que mais evidente nas terras de canaviais de Pernambuco, espalhou-se por todo o espaço brasileiro, com focos de maior influência em S. Vicente, na Baía, nas Caraíbas e nos ilhéus. A situação teve eco na historiografia brasileira. Afrânio Peixoto afirmava, em 1936, que a “Madeira foi entreposto, estância de passagem para o Brasil” (VIEIRA, 2004, 14). O processo de transferência de pessoas ganha uma nova vertente no séc. XVIII, com a emigração de casais. Esta foi a solução para resolver os problemas sociais das ilhas e garantir a soberania das terras do Sul brasileiro. Em 1746, temos o envio de casais açorianos e madeirenses para o Sul, como garantia de defesa das fronteiras do Tratado de Madrid. A fundação da cidade de Portalegre é feita por um madeirense, sendo aqui a presença de colonos, fundamentalmente, açoriana. Nos sécs. XIX e XX, o Brasil continuou a ser um destino cobiçado pelos insulares. A história e o quotidiano registam de forma evidente esse movimento. Nos sécs. XVIII e XIX, as ligações comerciais das ilhas com o Brasil mantêm-se suportadas na oferta insular de vinho e vinagre, mantendo-se o retorno de açúcar e aguardente. No séc. XX, o Brasil continuou a ser o El Dorado para os insulares, nomeadamente os madeirenses, que encontram no Rio e em Santos a possibilidade de fuga às dificuldades da guerra ou às difíceis condições de sobrevivência. A Inquisição exercia a sua atividade através do tribunal de Lisboa, a quem pertencia a jurisdição de todo o espaço atlântico. A ação do tribunal não era permanente e fazia-se através de visitadores enviados às ilhas. Na Madeira e nos Açores, realizaram-se três visitas: em 1575, por Marcos Teixeira, em 1591-1593, por Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-1619, por Francisco Cardoso Tornéo; todavia, só é conhecida a documentação das duas últimas visitas. Nas ilhas, é manifesta a conivência das autoridades com a presença da comunidade judaica, o que poderá resultar das facilidades iniciais à sua fixação. O Tribunal do Santo Ofício interveio apenas nas ilhas da Madeira e dos Açores, levando a julgamento alguns judeus, mas poucos, a avaliar pela comunidade aí existente e pela sua insistente permanência. No intervalo de tempo entre as visitas, o tribunal fazia-se representar pelo bispo, o clero, os reitores do Colégio dos Jesuítas, os familiares e os comissários do Santo Ofício. A presença da comunidade judaica era evidente. Os judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados, desde o início, ao sistema de trocas nas ilhas, sendo os principais animadores do relacionamento e do comércio a longa distância. A criação do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa obrigou os judeus a avançarem no Atlântico, por força da perseguição que lhes era movida, primeiro para as ilhas, depois para o Brasil. A diáspora fez-se de acordo com os vetores da economia atlântica, pelo que deixava um rasto evidente na sua rede de negócios. O açúcar foi, sem dúvida, um dos principais móbeis da atividade, quer nas ilhas, quer no Brasil. A par disso, o relacionamento com os portos nórdicos facilitou uma maior permeabilidade às ideias protestantes, o que gerou inúmeros cuidados por parte do clero e do Santo Ofício na visita às embarcações que chegavam ao Funchal. Outra motivação para a deslocação dos madeirenses para o Brasil decorria da necessidade de defesa daquele território. A libertação do Maranhão, em 1642, foi obra de António Teixeira Mello, enquanto em Pernambuco a resistência aos holandeses foi organizada desde 1645 por João Fernandes Vieira. Assim, a defesa da soberania portuguesa foi conseguida também com o envio de companhias de soldados desde a Ilha. O envio de soldados madeirenses para o Brasil continuou ao longo do séc. XVII, deste modo, temos a ida, em 1631, de João de Freitas da Silva; em 1632, de Francisco de Bettencourt e Sá; em 1646, de Francisco Figueiroa e, em 1658, de D. Jorge Henriques com 600 homens. Em 1696, temos o envio de 100 soldados para o estado do Maranhão. Já em 1734, a nova leva teve como destino Santos. Em 1774, foram 200 soldados da Madeira na companhia de 1000 homens enviados ao Rio de Janeiro. Para Santa Catarina temos notícia do envio de militares nos sécs. XVII e XVIII, antecedendo o período de colonização insular. Francisco de Figueiroa está, desde 1628, ligado a diversas campanhas em Pernambuco, mas, em 1646, encontrava-se na Madeira quando recebeu do Rei a carta de patente de mestre de campo. O terço de Francisco de Figueiroa é constituído por quatro companhias, sendo uma comandada pelo Cap. Manoel de Azevedo, que já havia servido no Rio de Janeiro, na Baía e em Pernambuco. Manoel Homem d’El-Rei era o capelão nomeado pelo próprio mestre de campo, enquanto António Faria era o ajudante. A despesa deste serviço é coberta pela Provedoria da Fazenda no Funchal, com o dinheiro reservado para a fortificação da Ilha. João de Freitas da Silva, sobrinho de Braz de Freitas da Silva, foi morto em Pernambuco à testa da companhia de 100 homens que havia levantado. Em razão disso teve seu tio, em 07/08/1647, uma comenda de Cristo com 100 cruzados de pensão. Heitor Nunes Berenguer, filho de Cristóvão Berenguer, foi distinguido com uma comenda e hábito da Ordem De Cristo Para seu filho Belchior e uma promessa de 40$000 de pensão, por terem ambos servido na Baía e em Pernambuco (26/10/1648). Francisco foi capitão duma companhia enviada a Angola e serviu também em Pernambuco e Castela. Obteve 30$000 de tença nas obras pias, com hábito de Santiago e alvará de ofício de justiça para quem casasse com sua filha. Joane Mendes de Vasconcelos ajudou no Brasil a matar os flamengos e foi sargento e alferes. Em 12/08/1648, deu-lhe o monarca a mercê de 20$000 réis de pensão, em comenda de Santiago, ou um foro de Setúbal da mesma quantia e hábito daquela Ordem. Apoio financeiro-militar Em 1637, com a ocupação holandesa de Pernambuco, os madeirenses foram convidados a participar com uma finta de 13.000 cruzados, sendo 10.000 angariados pela capitania do Funchal e apenas 3.000 pela capitania de Machico, para as despesas com a restauração do Brasil; este valor foi cobrado a partir do real de água e do cabeção das sisas. Os madeirenses reclamaram, dizendo que o dinheiro fazia falta na Ilha, para a fortificação e preparação da defesa contra os corsários, apontando o caso de 1566. A propósito referem o gasto de 800 cruzados da renda da imposição do vinho com este fim, ao mesmo tempo que manifestam o seu desagrado pela despesa e o mal-estar criado com as três alçadas de 1615. Consideram, ainda, que este encargo sobre o preço do vinho podia afugentar os mercadores do porto. Já a vereação de Machico, em maio, apontava a pobreza da Ilha e as dificuldades que o mesmo finto iria causar aos madeirenses. No processo de defesa do Brasil, destacam-se várias personalidades madeirenses, que ficaram figurando no panteão de heróis libertadores de Pernambuco. Francisco de Figueiroa Nasceu na Madeira nos finais do séc. XVI. Em 1663, dizia ter mais de 60 anos. Foi o mais idoso dos participantes nas guerras de restauração, em Pernambuco. Começou a sua vida militar, em 1615, numa expedição comandada por Manuel Dias de Andrade, com o intuito de expulsar os piratas argelinos que se haviam fixado no Porto Santo. Em 1624, tomou parte na expedição que correu a costa de Portugal, comandada por D. Manuel de Menezes. No mesmo ano, tomou parte na chamada “jornada dos vassalos”, comandada por D. Fradique do Toledo Osório, que recuperou a Baía ao poder holandês. Em 1626, fez parte da armada que se destinava a proteger a frota da Índia nos mares próximos da Europa, onde costumava ser atacada por holandeses e ingleses. Esta expedição foi assolada por grandes temporais, fazendo muitos desaparecidos devido aos naufrágios. Figueiroa salvou-se a nado. Em 1628, embarcou na expedição sob comando de Rui Calaça Borges, com a missão de expulsar da ilha de Fernando de Noronha os holandeses que ali se haviam fixado, comandados pelo famoso pirata “Pé de Pau”. A 10 de janeiro do ano seguinte, estava de volta a Pernambuco. Em fevereiro desse ano, Figueiroa estava, de novo, a enfrentar os holandeses, sob o comando do Cap. Pereira Temudo, a quem coube defender as praias do Rio Tapado e Pau Amarelo, onde haviam desembarcado holandeses. O Cap. Temudo morreu em combate com os holandeses e Francisco Figueiroa foi o escolhido para o substituir. A 25 de fevereiro de 1629, foi mandado para o Forte de S. Jorge, para reforçar a guarnição do Cap. António de Lima, que acabaria derrotada pelos holandeses. Feitos prisioneiros, os portugueses foram obrigados a jurar não tomar arma de novo, o que Figueiroa, entre outros, se recusou a fazer, ficando prisioneiro por algum tempo. Em março, já era referido noutros serviços como capitão. A 10 de agosto, participou na guarnição das obras da trincheira de defesa do vau do Rio Beberibe, no Buraco de Santiago, que os holandeses destruíram a 23 de setembro. Tomou parte na refrega que se seguiu ao incêndio da casa de Francisco do Rego, nas Salinas, permanecendo aqui algum tempo, para defesa de várias casas que os holandeses incendiavam. A 10 de junho de 1631, Figueiroa distinguiu-se na defesa da Estância da Passagem dos Afogados. Em 1633, participou na defesa do Arraial do Bom Jesus, que era alvo de ataque dos holandeses. No ano seguinte, participou na defesa do cabo de Santo Agostinho e suas fortalezas, onde tinham desembarcado os holandeses. Em 1639, dirige-se a Angola, sendo nomeado almirante da expedição. A 20 de abril, a sua nau foi forçada a arribar à ilha da Madeira, por não trazer a carga bem arrumada, chegando a Luanda a 18 de outubro desse ano. Aqui, foi nomeado ouvidor-geral e corregedor da comarca. Exerceu bem estes cargos, administrando a justiça com a mesma qualidade com que guerreava. A 30 de maio de 1641, partiu do Recife uma expedição de 21 navios holandeses, com o objetivo de tomar Luanda e ocupar Angola, de forma a dominar o mercado de escravos da região, que era importante para o fornecimento de mão de obra para os engenhos de Pernambuco. A 17 de maio de 1643, os holandeses atacaram, de surpresa, o Bengo, matando e aprisionando os seus moradores, entre os quais o governador e o ouvidor, Francisco de Figueiroa. Do Bengo, os prisioneiros foram levados a Luanda e, daí, muitos embarcaram para o Recife, entre eles Figueiroa. Do Recife foi para a Baía e dali foi mandado para o reino, no ano de 1644. No princípio do ano de 1646, Figueiroa encontrava-se na Madeira, onde recebeu, em abril, uma carta de D. João IV, a nomeá-lo mestre de campo do terço das ilhas de Pernambuco, indicando-lhe o caminho do Brasil e recomendando que se fizesse acompanhar do maior número de gente das ilhas que pudesse, para socorrer o Brasil de ataques dos holandeses. Em 1647, chega à Baía e, em 1653, ao Recife, distinguindo-se em várias batalhas da guerra da restauração. Em reconhecimento pelos seus serviços, o Rei, em 1654, fez-lhe mercê de uma comenda da Ordem de Cristo, de Santo Ildefonso, do bispado de Coimbra da mesma ordem, e deu-lhe o governo de Cabo Verde e ainda o de Paraíba, caso João Fernandes Vieira não o quisesse. Mais tarde, perante recurso, o Conselho Ultramarino fez-lhe mercê do foro de fidalgo com moradia ordinária. O Rei, a 21 de abril de 1655, concedeu-lhe o foro e acrescentou a promessa do aumento da comenda de 120 para 150$. Não se sabe quando veio Figueiroa para Portugal, mas sabemos que já cá estava, em 1656. A 14 de março, é nomeado para o cargo de governador e capitão-general das ilhas de Cabo Verde, que governou até 1662. Aqui foi objeto de uma devassa, sendo preso, em 1664, solto no ano seguinte, e autorizado a regressar a Portugal. António de Freitas da Silva Foi capitão nas guerras de Pernambuco, general da Armada Real, comendador da Ordem de Cristo e participou na restauração do Brasil. Era descendente de João de Freitas da Silva que, em 1631, levantou, na ilha da Madeira, a suas expensas, uma companhia de 100 homens para servir em Pernambuco, logo após a tomada desta cidade pelos holandeses, perdendo aí a vida. João Fernandes Vieira (c. 1610-1681) São várias as teses sobre a sua filiação, que levantaram dúvidas e controvérsia. Diz-se que nasceu por volta do ano de 1610, filho segundo de Francisco de Ornelas Muniz, do Porto da Cruz; que tinha o nome de Francisco de Ornelas; que fugiu sozinho e por iniciativa própria para o Brasil, com apenas 10 anos, tendo mudado de nome, quando aí chegou, para João Fernandes Vieira. Em Pernambuco, cidade para onde se dirigiu e onde se fixou, serviu como assalariado e, depois, como auxiliar de marchante. No início das invasões holandesas ao Recife, apresentou-se como voluntário para servir na guerra e participou, em 1630, na defesa do forte de S. Jorge, tendo aí ficado três dias e três noites de sentinela. Nesta altura, já gozava de uma situação económica desafogada, dispondo de dois criados ao seu serviço. Em 1635, caiu o Arraial na posse dos holandeses e a amizade que o ligava a Jacob Stachouwer conduziu-o a uma aproximação aos holandeses, com quem estabeleceu estreitas ligações. Inicia-se, aqui, a sua ascensão social e económica na sociedade pernambucana do seu tempo. Em 1638, Stachouwer regressa à Holanda e faz de Vieira seu procurador, assumindo este a administração dos três engenhos daquele (do Meio, Ilhetas e Santana). Em 1639, Vieira era já uma figura de proa da comunidade portuguesa de Pernambuco, sendo o seu nome indicado, em junho desse ano, para o cargo de escabino de Olinda, não sendo, no entanto, o escolhido. A partir daqui, Vieira acomodou-se à governação holandesa, de forma a poder servir os seus interesses de senhor de engenho e de homem de negócios. Em 1640, Vieira considerou-se plenamente vitorioso na sua longa ascensão, de menino de açougue a senhor de engenho de amplos haveres. Após a compra dos três engenhos, que adquiriu a crédito, adiantou dinheiro à Fazenda Real e serviu de intermediário na compra de açúcar para a Companhia das Índias Ocidentais. Contratou a captura de escravos pertencentes aos emigrados de Pernambuco, arrematou o contrato da pensão dos engenhos e, ao mesmo tempo, negociava no Recife com loja de comércio, de que também o encarregara Stachouwer, comprando grandes quantidades de fazendas, de roupas e de escravos. Arrematou a cobrança dos três principais contratos das rendas da colónia. Representou os moradores portugueses da várzea do Capibaribe na assembleia que se reuniu de 27 de agosto a 4 de setembro de 1640. Em 1641, Vieira encarregou-se, por contrato com o Alto Conselho Holandês, de estabelecer dois trapiches nas margens dos rios Capibaribe e Beberibe, para recolher caixas de açúcar. Ainda neste ano, arrematou a cobrança de vários impostos, como os dízimos dos açúcares de Pernambuco, por 154.000 florins, e os de Itamaracá, por 5000 florins, as pensões dos engenhos de Pernambuco, por 29.000 florins, e o dízimo das freguesias de Iguaraçu, S. Lorenço, Paratibe e N.ª Sr.ª da Luz por 5.000 florins. Em outubro de 1641, os holandeses Laureus Cornelissem de Jonge e Jan Sybrantsen Schoutsen trespassaram-lhe o contrato da balança. Ao mesmo tempo, contraiu dívidas enormes. Tomou, à sua conta, os engenhos comprados a crédito por Stachouwer e por este em sociedade com Nicolaes de Ridder, já referidos, comprometendo-se a pagar por eles 119.000 florins. Além destes engenhos, adquiriu escravos e cobres. Vieira possuía também terras onde criava gado e cortava pau-brasil. Foi eleito escabino de Maurícia para os anos de 1641 e 1642, tendo sido reconduzido para o cargo no ano seguinte. Para manter toda esta situação económica, alimentou uma estreita amizade com os holandeses, a quem serviu de conselheiro, obsequiando-os com lautos banquetes. João Fernandes Vieira era por eles considerado como pelos serviços prestados aos holandeses. Comportou-se sempre com dissimulação pois, ao mesmo tempo que colaborava com os holandeses, não se afastou da fidelidade ao seu país, nem deixou de combater ao lado dos que lutavam contra a usurpação holandesa. Em 1638, após a conjura contra os holandeses, interferiu em favor dos presos. A partir de 1641 ou começos de 1642, Vieira fez parte do principal núcleo de reação contra os holandeses, que era o dos senhores de engenho e lavradores da Várzea do Capibaribe, do qual seu sogro era uma das figuras de proa. Todo o prestígio acumulado nestes anos iria fazer dele o chefe, do qual iria depender a vitória ou o fracasso da insurreição pernambucana. A partir de 1645, insatisfeito com o estado de coisas a que chegara a ocupação holandesa, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros vão liderar a revolta dos naturais da terra pela restauração do território brasileiro, devolvendo-o à soberania portuguesa em 1654, num movimento a que chamaram Insurreição Pernambucana. O movimento começou no engenho S. João da Várzea, a 15 de junho de 1645, onde um grupo de 300 homens derrotou 1200 holandeses. Assim começou a guerra de restauração, que terminou em janeiro de 1654, com a capitulação do Recife. Na sociedade de então, o senhor de engenho era a figura de maior destaque, um verdadeiro senhor feudal, que possuía privilégios e integrava a chamada nobreza terratenente. João Fernandes Vieira rapidamente se tornou feitor-mor, fazendo crescer a sua riqueza graças aos seus esforços e às doações recebidas do seu empregador, Afonso Rodrigues Serrão, e de sua mulher, bem como da amizade com Jacob Stachouwer. Quando morreu, em Olinda, a 10 de janeiro de 1681, era proprietário de 16 engenhos e muitas terras onde criava gado, no Rio Grande do Norte, chegando a promover uma leva migratória de casais madeirenses e açorianos para o Nordeste brasileiro. Comércio Foi o açúcar a principal ou uma das principais causas da rede atlântica de negócios, que perdurou por alguns séculos. A Madeira, que até à primeira metade do séc. XVI havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, São Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo, as rotas divergiram para novos mercados, colocando a Ilha numa posição difícil; por um lado, os canaviais foram abandonados na sua quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante indústria de conservas e doces e, por outro lado, o porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara noutras épocas. A solução possível para debelar esta crise foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno madeirense, para as indústrias que dele precisavam, ou como animador das relações da Ilha com o mercado europeu. Por isso, os contactos com os portos brasileiros adquiriram uma importância fundamental nas rotas comerciais madeirenses do Atlântico Sul. Tal como refere José Gonçalves Salvador, as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o “trampolim para o Brasil e Rio da Prata” (SALVADOR, 1978, 247). É o mesmo quem esclarece que estas rotas podiam ser diretas, ou indiretas, sendo estas últimas traçadas através de Angola, São Tomé, Cabo Verde ou da costa da Guiné. O Brasil foi, a partir de finais do séc. XVI, o principal mercado para o vinho Madeira, onde era trocado por açúcar. A Coroa proibiu, em 1598, os mercadores e as embarcações provenientes do Brasil de fazerem escala na Ilha, como forma de defesa do açúcar local. A medida foi considerada lesiva para o comércio do vinho e favorável ao de La Palma. Os madeirenses reclamaram em 1621, obtendo autorização para comerciar o vinho no mercado brasileiro. A partir daqui, os contactos com o Brasil tornaram-se assíduos, afirmando-se pela sua posição dominante no consumo do vinho Madeira. Em 1663, Eduard Barlow conduziu 500 pipas ao Rio de Janeiro, justificando-se a escolha pelo facto de ser o único vinho que se adaptava aos locais quentes. Esta situação favoreceu a frequência do vinho no mercado brasileiro, nomeadamente na Baía e em Pernambuco. Este último porto recebeu, entre 1687 e 1694, um volume de 2249 pipas. As rotas comerciais definiam um circuito de triangulação, de que são exemplo as atividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no período de 1649 a 1652. Desde finais do séc. XVI, estava documentado o comércio do açúcar, servindo os portos do Funchal e de Angra do Heroísmo como entrepostos para a sua saída legal ou de contrabando para a Europa. Este comércio de açúcar do Brasil foi, por imperativos da própria Coroa ou por solicitação dos madeirenses, alvo de frequentes limitações. Assim, em 1591, ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no porto do Funchal, medida que não produziu qualquer efeito, pois, em vereação de 17 de outubro de 1596, foi decidido reclamar junto da Coroa a aplicação plena de tal proibição. Desde 1596 é evidente uma ativa intervenção das autoridades locais na defesa do açúcar de produção local, o que constitui uma prova evidente de que se promovia esta cultura. Em janeiro daquele ano, os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. Passados três anos, o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir para o seu porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. Esta situação repete-se com outros navios nos anos subsequentes, até 1611, v.g.: Brás Fernandes Silveira, em 1597; António Lopes, Pedro Fernandes, “o grande”, e Manuel Pires, em 1603; Pero Fernandes e Manuel Fernandes, em 1606; e Manuel Rodrigues, em 1611. A constante pressão dos homens de negócios do Funchal envolvidos neste comércio veio a permitir uma solução de consenso para ambas as partes. Assim, em 1612, ficou estabelecido um contrato entre os mercadores e o município, em que os primeiros se comprometiam a vender um terço do açúcar da Madeira. Note-se que, desde 1599, estava proibida a compra e venda deste açúcar, sendo os infratores punidos com a perda do produto e a coima de 200 cruzados. Mas, a partir de dezembro de 1611, ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o esgotamento do da Madeira. Por esse motivo, os vereadores entregaram Domingos Dias nas mãos do alcaide, sob prisão, por ter vendido 50 caixas de açúcar brasileiro aos ingleses. Em 1620, a transação do açúcar da Madeira e do Brasil era feita à razão de um por dois, ou seja, por cada caixa do Brasil deviam ser vendidas duas da Ilha, sendo o embarque feito por licença assinada por dois vereadores e um juiz. Para assegurar este controlo, os escravos e barqueiros foram avisados de que, sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem autorização da Câmara. Em 1657, a proporção entre o açúcar da Ilha e o do Brasil açúcar era de metade. Após a restauração da independência de Portugal, o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro, foi a criação do monopólio do comércio com o Brasil, através da Companhia criada para esse efeito, depois, o estabelecimento do sistema de comboios para maior segurança da navegação. Desta situação, estabelecida em 1649, ressalva-se o caso particular da Madeira e dos Açores que, a partir de 1650, passaram a poder enviar, isoladamente, dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, que seriam, posteriormente, trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde ficou estabelecido que os madeirenses não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. Por determinação de 1664, estes navios pagavam um donativo de 50.000 réis, existindo no Funchal um comissário dos comboios, que procedia à arrecadação dos referidos direitos. No ano de 1676, era Diogo Fernandes Branco quem os administrava. De acordo com as recomendações do Conselho da Fazenda, a arrecadação dos direitos de entrada do açúcar do Brasil era lançada em livro próprio. Estes dados permitem avaliar a importância das relações comerciais entre a Madeira e o Brasil, assentes, predominantemente, no açúcar. Para o período de 1650 a 1691, foi possível identificar 39 navios provenientes da Baía, do Rio de Janeiro, de Pernambuco e do Maranhão, com mais de 10.000 caixas de açúcar. Destes, 18 são navios de Pernambuco, com 3343 caixas de açúcar e 71 caras (i.e., a primeira parte do açúcar da forma, que era o açúcar mais puro e de melhor qualidade). A partir da Baía, do Rio de Janeiro e do Recife, chegava o açúcar, a farinha de pau e o mel. D. Guiomar de Sá assumiu aqui um papel destacado na segunda metade do séc. XVIII. À sua conta, entraram na Ilha 2058 arrobas de açúcar branco e 438 de mascavado, com origem no Rio de Janeiro ou em Pernambuco. Um facto de particular interesse é a participação neste comércio das comunidades da Companhia de Jesus da Baía, do Rio de Janeiro e do Maranhão que, usufruindo do privilégio de isenção dos direitos, também colocavam açúcar das fazendas no mercado madeirense, conduzindo à Ilha 82 caixas de açúcar, sendo 7 do Maranhão, 65 da Baía e 10 do Rio de Janeiro. No séc. XVII, o grosso das exportações em torno do açúcar na Ilha tem como origem o Brasil: em 1620, do açúcar exportado do porto do Funchal, 23.560 arrobas eram do Brasil e 1992 da produção local, enquanto em 1650 surgem só 83 caixas do Brasil e 111 caixas de produção madeirense. Para o período de 1650 a 1691 conse­guimos identificar 53 navios provenientes da Baía, do Rio de Janei­ro, de Pernambuco, de Paraíba, do Pará e do Maranhão, que conduziram ao Funchal mais de 10.000 caixas de açúcar. O açúcar brasileiro foi, na segunda metade do séc. XVI, uma mercadoria importante do comércio na Ilha e das principais fontes de receita para o Erário Régio. Esse período marca o início da quebra do comércio, que teve repercussões evidentes no negócio de casca e conservas. Assim, em 1779, o governador João Gonçalves da Câmara refere que o comércio da casca estava quase extinto. O movimento das duas embarcações madeirenses consignadas ao comércio com o Brasil fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as licenças, e a sua entrega deveria ser feita no sentido de favorecer todos os mercadores da Ilha. Para estes navios havia uma escrituração à parte na Alfândega. Mesmo assim, nos dados compilados é bem visível a presença, neste tráfico, de embarcações não autorizadas, como se pode verificar pelo movimento de entradas no porto do Funchal. Os navios não incluídos no número estabelecido para a Ilha declaram sempre ser vítimas de um naufrágio ou de ameaças de corsários, o que não os impede de descarregarem sempre algumas caixas de açúcar. Será esta uma forma de iludir as proibições estatuídas. Para o séc. XVIII, o movimento amplia-se, não obstante as insistentes recomendações para o respeito da norma estabelecida no século anterior. Nesta centúria, foi possível reunir 117 licenças para o período de 1736 a 1775, que equivaleram a 151 ligações com Pernambuco, que assumem uma posição dominante à frente da Baía. Neste circuito de escoamento e comércio do açúcar brasileiro, é evidente a intervenção de madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajeto destas rotas comerciais ampliava-se até ao tráfico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso, os madeirenses criaram a sua própria rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e no Brasil. Releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco, cuja atividade incidia, preferencialmente, na exportação de vinho para Angola, onde o trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil para conseguir açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada das naus à Ilha, vergadas sob o peso das caixas de açúcar ou dos rolos de tabaco. A partir daqui iniciava-se outro processo de transformação do produto em casca ou conservas. Esta era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o processo, de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto, depois de laborado, deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no Norte da Europa: Londres, Saint-Malo, Hamburgo, Rochela, Bordéus. Diogo Fernandes surge-nos neste circuito como o interlocutor direto dos mercadores das praças de Lisboa (no caso, Manuel Martins Medina), Londres, Rochela e Bordéus, satisfazendo a sua solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufaturas, uma vez que o dinheiro e as letras de câmbio raramente encontravam destinatário na Ilha. A par disso, manteve a sua rede de negócios apoiado em alguns mercadores de Lisboa e das principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na sua documentação epistolar. À primeira vista, parece-nos que se especializou em duas atividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil, e o de açúcar e derivados para a Europa. Esta situação repercute-se, de modo evidente, na produção e no comércio de casca, que era um dos principais sustentáculos da produção local de açúcar e importação do Brasil.   Alberto Vieira (aualizado a 24.02.2018)

Madeira Global

provérbios e outros ditos populares

Não existindo nenhum dicionário de provérbios madeirenses, mas apenas algumas recolhas avulsas, este texto procura contribuir para um melhor conhecimento do património linguístico e cultural da Madeira. Pretende-se ainda participar na discussão sobre a questão colocada por Cabral do Nascimento, em 1950, acerca da “existência de palavras e locuções madeirenses”, através da análise de exemplos concretos de usos proverbiais atestados no arquipélago da Madeira e de reflexões provenientes de vários estudiosos madeirenses. Palavras-chave: Cabral do Nascimento; gentílicos; regionalismos; topónimos; variações madeirenses do português. Não havendo dicionários específicos sobre os provérbios e outros ditos populares em uso no arquipélago da Madeira, foram analisados vários dos trabalhos publicados sobre vocábulos madeirenses (v.g., monografias dialetais), alguns dos quais remontam a 1916, e também estudos de especialistas em linguística que se têm debruçado sobre os vocábulos regionais. Outros dados foram reunidos na ilha do Porto Santo, junto de fontes orais, após a seleção de pessoas de faixa etária muito avançada. Durante o processo de recolha, e por não haver conhecimento de qualquer registo proverbial referente a esta ilha, começou por se contactar Manuel Avelino Melim, cantor repentista de 90 anos, conhecido como “o peru”. Quando questionado, não sabia o significado do termo “provérbio”, mas posteriormente veio a dar dele a definição de “falar por tabela”, adiantando que aquilo que se pretendia saber poderia ser resumido naquela expressão, cuja referência também se encontra na obra Dizeres da Ilha da Madeira, de Luís de Sousa, que define “falar por tabela” como “referir-se indiretamente” a algo (SOUSA, 1950, 74). Foram igualmente realizadas recolhas orais em várias localidades da ilha da Madeira, junto de pessoas com idades superiores a 60 anos. Estas recolhas permitiram atestar o uso dos provérbios e dos ditos populares selecionados, muitos dos quais se encontram registados em monografias dialetais sobre o arquipélago. Na freguesia do Porto da Cruz, v.g., um ancião afirmou, com o sentido de dar tempo ao tempo ao assunto que ali nos tinha levado: Tenha calma. Antes da meia-noite não lhe irá dar sono. Assim, aplica-se às recolhas orais realizadas no arquipélago da Madeira o que disse Raphael Bluteau: “Recolhi Palavras anticadas, como relíquias de Portugal o velho e acrescentei vozes modernas, como enfeites de Portugal o novo” (BLUTEAU, 1712, I, 33). Após esta fase preliminar de pesquisa, em que nos questionámos sobre a existência de provérbios madeirenses, seguiu-se um processo muito importante do ponto de vista metodológico: confrontar os dados coligidos com os que se encontram publicados em dicionários da especialidade, a fim de aferir, através do método da comparação, a sua especificidade madeirense (no caso de não se encontrar atestado o uso dos provérbios e dos ditos populares em outras partes do país). António Carvalho da Silva considera esta questão muito importante e refere que: “A grande questão é que trabalhos anteriores ao de Luís de Sousa (Emanuel Ribeiro, Antonino Pestana, Jaime Vieira dos Santos ou Urbano Canuto Soares) já consideravam madeirenses alguns termos usados em todo o território nacional” (SILVA, 2008, 65). Neste trabalho, foram excluídos muitos dos provérbios recolhidos, pelo facto de também se encontrarem citados em dicionários de provérbios nacionais, como estando em uso noutras regiões de Portugal. Sobre este critério de seleção – o vínculo do uso proverbial às comunidades insulares do arquipélago da Madeira –, já Cabral do Nascimento questionava, a propósito do referido trabalho de Luís de Sousa, a existência de palavras e locuções madeirenses. Relativamente às 140 páginas por ele analisadas, referia que o autor não teria tido o tempo suficiente para saber se os vocábulos por ele recolhidos seriam também utilizados no território nacional. O próprio Luís de Sousa o admitia: “Quero fazer sentir a enorme dificuldade com que se depara quem, tendo nascido na Madeira e sempre na Madeira vivendo, só em rápidas e trabalhosas digressões pelo continente português e pelos Açores, teve ensejo de entrar em contacto com os naturais dessas paragens, faltando-lhe, portanto, o tempo para averiguar se determinada palavra ou locução é original desta ilha ou só aqui empregada, pois a consulta dos nossos dicionaristas e a leitura dos nossos escritores, mesmo daqueles que, como Aquilino, mais se comprazem com os dizeres do povo, não são, em muitos passos, o suficiente para a elucidação de um curioso, às voltas com um trabalho deste género” (SOUSA, 1950, 7-8). Este é um trabalho do qual se irá encarregar o próprio Cabral do Nascimento, ao comparar alguns dos vocábulos de Sousa com outros semelhantes, usados em certas regiões de Portugal continental, muitas vezes, como o próprio afirma, com desvios semânticos. A amostra de provérbios e de ditos populares atestados na Madeira, que a seguir se apresenta, tem em conta esta questão central: a sua originalidade insular. Para além deste condicionamento metodológico, que leva a reter apenas o uso atestado de um provérbio ou de um dito popular numa comunidade linguística situada num determinado território, é de salientar a opção pela descrição linguística, indo de encontro ao que referem Gabriela Funk e Matthias Funk: “Após mais de um século de estudo sobre o Provérbio, seria de esperar que este género da Literatura Oral se encontrasse devidamente caracterizado. No entanto, nas publicações da especialidade, não encontramos nem uma definição global nem uma caracterização consensual de Texto Proverbial” (FUNK e FUNK, 2008, 15). No seu dicionário, Bluteau regista algumas obras que tratam da definição de “provérbio”; descreve o adágio como “sentença comum popular e breve com alusão a alguma coisa”, acrescentando que o licenciado António Delicado reduziu a lugares-comuns os adágios portugueses, e que “os adágios são as mais aprovadas sentenças, que a experiência achou nas ações humanas, ditas em breves e eloquentes palavras” (BLUTEAU, 1712, I, 237). O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Editora Objetiva, 2001) define “provérbio” como sendo uma “frase curta, ger. [geralmente] de origem popular, freq. [frequentemente] com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral (p. ex.: Deus ajuda a quem madruga) […] na Bíblia, pequena frase que visa aconselhar, educar, edificar; exortação, pensamento, máxima”. Em Adagios, Proverbios, Rifãos e Anexins da Lingua Portugueza… encontramos a seguinte definição: “Ora todas as Nações têm ajuizado, que os Provérbios ou Adágios, são de grande utilidade para os Homens […]. Muitas cerimónias, e costumes antigos se encerram nos Provérbios. Eles são o depósito de toda a Antiguidade” (ROLLAND, 1780, 6). Este trabalho visou essencialmente selecionar os provérbios e os ditos populares usados na Região Autónoma da Madeira (RAM), registados ou não, que são verdadeiramente insulanos, ou seja, que mencionam características do arquipélago ou que a ele se referem, bem como às suas gentes e aos seus costumes. Na opinião de Manuel Nóbrega, “a cultura popular nunca pode competir com a erudita. Desaparecendo a atividade agrícola, desaparece a eira, o forno, a matança dos porcos, a lareira de aquecimento, a lenha, bem como o serão que se concentra em volta da televisão em vez de ser em volta da lareira. Por isso mesmo, a preservação da riqueza e cultura popular perde-se de modo irreversível. Perde-se a cultura popular dos provérbios, sobrepondo-se a cultura escrita à oral” (NÓBREGA, 2005-2006, 74). Esta observação leva-nos a pensar se – dado que não existe nenhum dicionário específico de provérbios e ditos populares insulanos, como inicialmente referido – será possível assegurar que determinado provérbio ou dito usado na ilha da Madeira ou de Porto Santo tem efetivamente aí a sua origem, apesar de existirem obras, exclusivamente dedicadas a adágios, ditos e provérbios nacionais, que não o afirmem. Trata-se de uma tarefa muito difícil e complexa. Relativamente a esta exigência metodológica, vale a pena referir de novo o clérigo Bluteau, que, em 1712, escreveu que estava há 30 anos a recolher vocábulos portugueses e lhe disseram que a língua portuguesa não merecia tanto trabalho, pois a maioria dos estrangeiros considerava-a como uma corruptela do castelhano, mas que ele próprio considerava isso um disparate: “Também houve, quem com rústica simplicidade me disse, que não merecia a língua Portuguesa tanto trabalho. A razão desse disparate é, que na opinião da maior parte dos estrangeiros, a língua Portuguesa não é língua de per si, como é o francês, o italiano e Cia mas língua enxacoca e corrupção do castelhano, como os dialetos, ou linguagens particulares das províncias, que são corrupções da língua” (BLUTEAU, 1712, I, 35). Na crítica publicada no Arquivo Histórico da Madeira, em 1950, Nascimento comunga da opinião de Sousa, ao referir a importância de “não nos fiarmos nos dicionários, porque atualmente alguns deles registam (como o de Cândido de Figueiredo) certos termos colhidos por estes monografistas, sem lhes aditar o pormenor da sua origem, o que determina ainda maior confusão” (NASCIMENTO, 1950, 207). V.g., são de salientar termos como “vilão”, vocábulo tipicamente madeirense, e “balalau”, tipicamente porto-santense, ambos em uso nas duas ilhas, mas porventura com diferentes conotações consoante os dicionários. Emanuel Ribeiro dizia: “Desde o primeiro dia em que desembarquei na Madeira resolvi tomar nota dos diversos e variadíssimos vocábulos que têm o uso aqui e para mim, forasteiro, formavam uma linguagem estranha e extravagante” (RIBEIRO, 1929, 10). A classificação da amostra selecionada a partir do corpus de provérbios e ditos populares recolhidos fez-se de acordo com o critério “marcador de regionalidade”, ou de “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010, 210-226), o que permitiu formar dois conjuntos. De um primeiro conjunto, de forte grau de regionalidade, fazem parte os dois subconjuntos a seguir especificados: os provérbios e ditos populares que contêm um topónimo (Toponímia) ou um gentílico (Gentílicos), cujo nome de lugar e nome de origem sejam identificados como existentes no espaço do arquipélago, e aqueles provérbios e ditos que recorrem a regionalismos e que, a nível semântico, estão relacionados, direta ou indiretamente, com usos e costumes, com diversos aspetos culturais e sociais insulanos (alguns deles já se encontram registados desde 1950). Neste conjunto, é de salientar, v.g., o uso dos termos “vilão” e “palheiro”. Um segundo conjunto, com grau de regionalidade mais fraco, cuja classificação (autenticidade local) se prende com o facto de ter sido registado, nas obras consultadas, como sendo de carácter regional, ou de estar atestado como estando em uso na região, decorre de recolhas orais efetuadas em 2013. Este grupo contém provérbios ou ditos populares – por vezes carregados de ironia, ou com o intuito de admoestação ou de conselho – ligados a vários aspetos da condição humana e insular (meteorologia, festividades e costumes religiosos, etc.). Na mostra, os provérbios e ditos populares são apresentados com indicação da sua fonte e do seu sentido. Nem sempre a sua significação foi retirada da respetiva fonte, como é o caso das expressões que constam dos trabalhos de João da Cruz Nunes (Os Falares da Calheta…, de 1965), de Horácio Bento de Gouveia (A Canga, de 1976) e de Gabriel de Jesus Pita (A Freguesia dos Canhas, de 2003), uma vez que estes autores não fornecem os significados das expressões por si registadas. Provérbios Provérbios com topónimos e gentílicos regionais De São Vicente, nem bois nem gente (MOREIRA, 1996; RIBEIRO, 2007): antigo, em desuso; nem uma coisa nem outra. De São Vicente, nem bom vento nem bom casamento (MOREIRA, 1996): conselho; o vento de Norte significa mau tempo (São Vicente localiza-se no Norte da Madeira, sendo outrora dificilmente acessível); aplicado ao matrimónio contraído com naturais de São Vicente e à necessidade de prudência a esse respeito. Deserta descoberta, chuva certa (fonte oral, Madeira): referência a uma das ilhas que faz parte do conjunto de ilhas desabitadas que são área de reserva natural do arquipélago; quando a ilha Deserta está extremamente visível e o mar calmo, pode ser sinal de chuva. Onde está um machiqueiro, está um engenheiro (fonte oral, Madeira): capacidade de vencer obstáculos, atribuída aos habitantes de Machico. Porto Santo alerta, bonança certa (SANTOS, 1995): referência à segunda ilha do arquipélago; calmaria no mar, boa viagem marítima, sinal de bom tempo. Provérbios com regionalismos e referências diretas ou indiretas à Madeira Do Leste à chuva vai um salto de pulga (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965; PITA, 2003): indica que o tempo é imprevisível; do vento Leste (que está associado ao tempo quente e seco) à chuva pode ser uma mudança brusca. É como o vilão, que dá o pé e toma a mão (NUNES, 1965): João da Cruz Nunes não regista a definição; no entanto, poderá exprimir o facto de alguém que tenta vincar a sua importância; exprime o facto de o vilão (o colono, o trabalhador) não respeitar o seu senhor (o dono da terra). Ao vilão dá-se o pé para ele dar a mão (CALDEIRA, 1961): diz-se quando alguém se impõe na troca de cumprimentos, para evitar que o vilão abuse; neste uso, parece existir um sentido de superioridade, uma tentativa de demonstrar ao vilão quem é mais importante. Filho de balalau, balalau é! (fonte oral, Porto Santo): o vocábulo “balalau” é tradicional da ilha do Porto Santo; este adjetivo avalia ou qualifica alguém com menos capacidade, alguém com dificuldades, que não é rápido nem eficaz nas decisões que toma; v.g., “Ah, rapaz! Tás ficando balalau?”; “Bem disse que filho de balalau, balalau é!”. Variante: Filho de balalau é balalau em cheio! (fonte oral, Porto Santo). O Leste nunca morreu à sede (CALDEIRA, 1961): diz-se quando há estiagem e, a certa altura, sopra vento de Leste; v.g., “Isto é que é um Leste para queimar as plantas! Mas, como se costuma dizer, o Leste nunca morreu à sede”. As primeiras chuvas de verão são para enganar o vilão (fonte oral, Madeira): o vocábulo “vilão” tem uma conotação específica na RAM, sendo tanto o vilão que baila (sentido etnográfico), como aquele que usa de esperteza em determinadas alturas, que trabalha na agricultura ou ainda aquele que usa o tradicional barrete de orelhas, feito de lã de ovelha; no passado, o termo “vilão” servia para diferenciar socialmente o camponês do habitante da cidade; significa que as primeiras chuvas de verão não regam nada, servem apenas para enganar o agricultor. Quem quer ver vilão, ponha-lhe o mando na mão (NUNES, 1965): exibir-se; determinadas situações revelam a natureza das pessoas. Com o mesmo sentido, Bluteau regista: Se queres saber quem é o vilão, mete-lhe a vara na mão (BLUTEAU, 1720, VII, 541). Relativamente ao termo “vilão”, Bluteau tem ainda vários provérbios, e.g.: Se o vilão soubesse o sabor da galinha em janeiro, nenhuma deixaria no poleiro (BLUTEAU, 1721, VIII, 512). O vocábulo “vilão”, em Bluteau (BLUTEAU, 1721, VIII, 512), apresenta a seguinte definição: “Homem do campo, dedicado aos mais humildes ofícios da agricultura”. Quem quiser ver o vilão confiado, dê-lhe a chave da retrete (CALDEIRA, 1961): diz-se das pessoas que, sem motivo, se tornam petulantes; v.g., “Ah! Ele fala assim agora… pois é… quem quiser ver o vilão confiado, dê-lhe a chave da retrete”. Provérbios sem marcador lexical explícito de “madeirensidade” atestados na Madeira (registados e/ou em uso) Existem outros provérbios relacionados com várias realidades e atividades do quotidiano, muitas delas interligadas, como é o caso da meteorologia e da agricultura, ou ainda da alimentação e da agricultura. Da lista a seguir apresentada, apenas alguns provérbios se encontram registados. Agricultura Alqueire muito cheio é mexer no que é alheio (fonte oral, Porto Santo): alguém tirou mais do que devia. Ciúmes a sudoeste, se lavraste bem no cedo, bem fizeste (fonte oral, Porto Santo): indícios de que irá chover, o que será bom para a agricultura, se a terra tiver sido cultivada a tempo. Enquanto há água na fazenda é que se rega (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que enquanto se tem o artigo na mão é que se deve aproveitá-lo. O trabalho faz cansar, mas o descanso não faz alterar (fonte oral, Porto Santo): sobre a relação trabalho-descanso; o descanso não é suficiente para recuperar do cansaço. Quando ameaça mijar, o campo vai regar (fonte oral, Porto Santo): emprega-se quando a previsão é de chuva. Quando há água na fazenda é que se rega (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que quando há ocasião é que se faz, ou se diz. Vermelho ao nascente, é picar os bois e andar sempre (NUNES, 1965): com o nascer do sol, é andar depressa para a lavoura. Outros provérbios, de estrutura semelhante, fazem referência à vida no campo e à ocupação do dia, desde a aurora até ao entardecer, com diversas atividades: Vermelho ao nascente, é amassar e trazer gente (PITA, 2003): quando está a nascer o sol, é hora de começar a trabalhar. Vermelho ao poente, é amassar e trazer gente (NUNES, 1965): quando está a anoitecer, é hora de fazer o pão. Vermelho ao poente, é picar os bois e andar sempre (PITA, 2003): quando está a anoitecer, é hora de guardar os bois. Existe uma particularidade em cada um destes provérbios. Alimentação Nem sempre é pão com fel, nem sempre é pão com mel (CALDEIRA, 1961): nem sempre mau, nem sempre bom. Pão e vinho fazem o velho menino (PITA, 2003): expressão popular que manifesta dois fatores de satisfação na vida – o pão alimenta e o vinho dá alegria e rejuvenesce. Para a serra leva pão e gabão (PITA, 2003): espécie de alerta; recomendação de que para a serra se leve comida e agasalho. Uns comem os figos, outros arregalam os beiços (NUNES, 1965): uns comem, outros não; aplicada quando, na mesma circunstância, uns saem beneficiados e outros prejudicados; v.g., “Ah! Então é assim? Uns comem ui figues, outros arregalam ui beiços”. Aviso/ameaça Alto vareta, quem não quer dar não prometa (SANTOS, 1995): advertência a quem promete e não cumpre. Burro velho é melhor matar que ensinar (fonte oral, Camacha): diz-se de quem não consegue aprender nada. Variante: Burro velho não aprende línguas. Cachorro macho só é capado uma vez (CALDEIRA, 1961): refere-se à pessoa que nem se deixa levar por intrigas nem permite ser vigarizada; o mesmo que dizer: “Enganado, só uma vez”. Há muita maneira de matar pulgas (CALDEIRA, 1961): diz-se a alguém que duvida da forma como aconteceu ou se fez alguma coisa; v.g., “Ah! Não acreditas nisso? Olha que há muita maneira de matar pulgas”. Homem que bate muito com a mão no peito, é fugir dele como o diabo da cruz (fonte oral, Madeira): incitação a desconfiar de quem muito se queixa; v.g., “Não acredites nele nem nas suas cantigas [falas/queixumes], porque homem que bate muito com a mão no peito, é fugir dele como o diabo da cruz”. Os piores venenos guardam-se nos frascos mais pequenos (SANTOS, 1995): as pessoas são capazes de atitudes inesperadas e drásticas; a maldade revela-se, muitas vezes, onde menos se espera. Pragas sem razão nem sequer ao maior cão (CALDEIRA, 1961): conselho que se dá a quem roga pragas. Variante: Praga sem razão não se pede nem ao maior cão. Quem dá e tira, quando morrer, nasce-lhe uma tira (NUNES, 1965; CALDEIRA, 1961): aviso a quem dá e depois se arrepende de o ter feito; servia como forma de assustar as crianças, para não pedirem a devolução daquilo que davam umas às outras; v.g., “Ah, menino! Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira”. Quem dá e tira, nasce-lhe uma tira (CALDEIRA, 1961): aplica-se a quem dá e depois se arrepende. Quem diz o que quer ouve o que não quer (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre os que censuram outros; diz-se quando alguém dirige insultos ou palavras insinuadoras e se mostra melindrado se a outra pessoa retribui da mesma maneira; o mesmo que dizer: “Se não querias ouvir, não dissesses”. Quem fala no barco é que quer embarcar (CALDEIRA, 1961; PITA, 2003): sobre a revelação implícita de um desejo; alguém fala num assunto que lhe interessa, mas de forma indireta; o mesmo que dizer: “Estás falando nisso, faz tu ou paga tu”. Quem não tem que fazer, descosa a saia e torne a coser (CALDEIRA, 1961): velho aforismo que se usa quando alguém maça ou perturba outra pessoa; diz-se da pessoa que nada faz e que incomoda, com insistência, os outros. Quem quiser empobrecer sem Deus querer, chame gente e não vá ver (PITA, 2003): aplica-se a quem perdeu os seus bens por não os saber administrar e que por isso poderá receber comentários negativos a seu respeito. Quem tem rabo não se assenta (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se pisa o rabo de um gato ou de um cão e eles emitem sons de dor; diz-se de quem foi castigado por ter prejudicado alguém; v.g., “Oh, diabo! Quem tem rabo não se assenta!”. Conselhos A rico não devas e a pobre não prometas (SANTOS, 1995): conselho para que se não fique a dever a pessoas abastadas, porque se ficará dependente delas, e para que se não prometam bens a um pobre, porque ele ficará dependente deles. Boca calada não entra moscas (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se aconselha alguém a estar calado; v.g., “O melhor que tens a fazer é ficar calado, porque boca calada não entra moscas”. Casa quanto caibas e bens que não saibas (PITA, 2003): conselho para se ser feliz – ter uma vida modesta e não pôr os bens materiais em primeiro lugar. Fala pouco e bem e ter-te-ão por alguém (PITA, 2003): estímulo à boa educação. No mesmo sentido: Fala pouco e bem e ter-te-ás por alguém (MILHANO, 2008; RIBEIRO, 2007). Mulher desconfiada vigia-se como gavião (fonte oral, Camacha): é necessário ter uma visão apurada; é necessário vigiar muito bem a reação de terceiros perante os próprios atos. Mulher santeira não queiras à tua beira (fonte oral, Porto Santo): sobre a importância de se ter uma mulher honesta e sensata. Para quem tem boa ideia não há mulher feia (fonte oral, Madeira): expressão que exorta a ter apreço pelos valores e pelas qualidades humanas. Quem casa com mulher bonita tem o diabo à porta (fonte oral, Madeira): diz-se do facto de a beleza atrair pretendentes. Quem tem olhos, tem abrolhos (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer “quem tem olhos tem o direito de ver”; sobre o dever de observar as coisas tal como são. Se queres um bom conselho, toma com quem é mais velho (PITA, 2003): sobre a importância da experiência de vida. Sim ou não duas coisas são (CALDEIRA, 1961): incitamento à resolução imediata, afirmativa ou negativa, de algum assunto; v.g., “Então, vais ou não vais? Sim ou não, duas coisas são!”. Destino Boa romaria faz quem em casa fica em paz (PITA, 2003; MILHANO, 2008; MOREIRA, 1996): é melhor ficar em casa que envolver-se em confusões; v.g., “Ah, rapaz! O que é aquela romaria? Vão todos para a tasca?! Aquilo vai acabar mal. Boa romaria faz quem em casa fica em paz”. Cada um rega com a água que tem (NUNES, 1965): cada um sabe de si. Casa acrescentada, morte chegada (PITA, 2003): expressão que se usa quando os idosos investem na recuperação das suas habitações. Variante: Casa nova, velho para a cova. Esta vida é mais larga que comprida (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se comentam factos da vida de outras pessoas, quando as coisas não correm bem. Meninos feitos à pressa saem cabeçudos (CALDEIRA, 1961): diz-se das coisas que são realizadas de forma precipitada e não se concluem com perfeição. Nem sempre o que diz a boca o coração sente (GOUVEIA, 1976): não revelar o que se sente ou pensa; esconder a verdade; ser precipitado nas observações. Quem caçoa também morre (SANTOS, 1995): expressão dirigida a quem ri de algo que se passou com outrem, sem perceber que lhe pode acontecer a mesma coisa. Quem chora menos urina (SANTOS, 1995): forma popular de se endereçar às crianças quando choram. Quem dá o que tem fica no caminho do concelho (CALDEIRA, 1961): sobre a necessidade de prudência para não se ficar pobre; não se deve doar os bens antes de morrer. Quem morre nã volta a este mundo (GOUVEIA, 1976): acerca do destino e da importância da vida. Quem nasce prove nunca espera sê rico (GOUVEIA, 1976): sobre a fatalidade. Quem o seu cu aluga não se senta quando quer (fonte oral, Porto da Cruz): sobre a situação de dependência de algo ou de alguém. Ter uma no coiro, outra no lavadoiro (fonte oral, Madeira): sobre aquele que tem poucas posses; v.g., “Ah! Aquele só tem uma no coiro e outra no lavadoiro”. Esperteza Bezerrinho manso mama a sua e mama a alheia (SANTOS, 1995): sobre aqueles que usam do silêncio e da calma quando querem lucrar com alguma situação. Bezerro manso mama a sua e mama a alheia (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre o jeito para negociar; v.g., “Olha p’ra ele, já viste o que tem? Sempre caladinho, é assim mesmo, bezerro manso mama a sua e mama a alheia”. O mesmo que: Bezerro manso mama o seu e o alheio; Boi manso mama o seu e o alheio (PITA, 2003). Burro dado não se olha para os dentes (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): coisa dada aceita-se prontamente. O mesmo que: Burro dado não se olha para as orelhas (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965). O cão ladra, é a porta do dono (CALDEIRA, 1961): quando alguém provoca outrem, estando protegido. Outros temas A noivos e a batizados só vai quem é convidado (PITA, 2003): sobre as formalidades; v.g., “Então, não vais c’a gente? – Não fui convidado e, ademais, a noivos e a batizados só vai quem é convidado”. Atrás de maio vem S. João (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): depois de uma coisa, vem outra. Cachorro que aveza a sangue de ovelhas nunca mais larga (fonte oral, Madeira): sobre os indivíduos que têm vícios; pode ser também aplicado a homem mulherengo. Comer e coçar, o mais é começar (NUNES, 1965): equiparação entre a fome e a comichão. Dia de S. Tomé, quem mata o porco amarra a mulher pelo pé (CALDEIRA, 1961): aforismo caído em desuso; dizia-se quando havia discussões por ocasião da matança do porco. Dum poço sujo não se tira água limpa (CALDEIRA, 1961): ditado de uso comum; define as qualidades de alguém; v.g., “Não devia meter-me contigo; dum poço sujo não se tira água limpa”. Mijo e urina são a mesma coisa (NUNES, 1965): forma de se referir depreciativamente a alguém; duas coisas iguais. Muita festa para a festa e nada para a véspera (CALDEIRA, 1961): sobre quem ostenta ser melhor do que, na realidade, é. Ouve-se cantar o galo, mas não se sabe aonde ou adonde (CALDEIRA, 1961): sobre quem não é frontal, não tendo a coragem de assumir o que diz, não se conseguindo saber dessa pessoa a verdade dos factos. Para quem não tem vergonha, todo o mundo é seu (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): expressão que manifesta uma forma de apreciação das pessoas indiscretas e atrevidas. As primeiras mulheres são trapos, as segundas guardanapos (CALDEIRA, 1961): provérbio antigo, aplicado a algum tipo de doença que vitimava as mulheres. Quando os porcos bailam adivinham chuva (CALDEIRA, 1961): expressão muito usada no caso de crianças que estão eufóricas e têm gestos chamativos, maliciosos ou travessos; muito utilizado também no caso dos adultos, quando há grande entusiasmo numa determinada situação de natureza pouco clara. Santos que cagam e mijam não são santos, ou não merecem devoção (SANTOS, 1995): classificação, de sentido pejorativo, de determinado comportamento. Tu não sabes da missa metade (fonte oral, Madeira): diz-se quando determinada pessoa julga saber tudo sobre determinado assunto, mas, na realidade, não sabe. Meteorologia e tempo Abril chuvoso, maio ventoso, S. João calmoso faz o ano bondoso (CALDEIRA, 1961): sobre o estado do tempo nos meses do ano. Cerco na Lua, sinal de chuva (NUNES, 1965): previsão popular do tempo. Céu pedrado, mau tempo e mar bravo (fonte oral, Madeira): diz-se quando as nuvens se apresentam fragmentadas, sendo isso sinal de tempestade. Chovendo dia de S. Braz, chove quarenta dias e mais (CALDEIRA, 1961): previsão popular do tempo. Chuva de maio nem sequer no rabo de um gato (CALDEIRA, 1961): menção do facto de que a chuva deste mês estraga as culturas. Chuva que no mar faz alvarinho com bom vento de terra se avizinha (fonte oral, Porto Santo): referência aos chuviscos que, do mar, serão arrastados até à costa pelo vento. Chuvinha de Ascensão, até das pedras se faz pão (SANTOS, 1995): sobre a importância da chuva pela Páscoa no fortalecimento das culturas. Conceição enxuta, Festa molhada (NUNES, 1965): previsão popular do tempo, segundo a qual, quando não chove pela festa da Imaculada Conceição, irá chover no Natal. Diferente de: Senhora da Conceição, dai-me sol e chuva não. Dia de Santa Luzia, minga a noite e cresce o dia (CALDEIRA, 1961): indica a data em que os dias começam a crescer. Dos Santos ao Natal, é inverno natural (PITA, 2003; RIBEIRO, 2007; MILHANO, 2008): diz-se para indicar que, entre o dia de Todos os Santos (1 de novembro) e o Natal, sendo fim de outono e início de inverno, é normal que chova. Em abril vai a velha aonde tem de ir e volta ao seu covil (fonte oral, Madeira): significa que em abril ainda está muito frio para sair de casa a não ser para coisas mesmo necessárias. Em abril, a velha queima o canzil (fonte oral, Madeira) e Em março, a velha está no espinhaço (fonte oral, Porto Santo): sobre a doença e a idade; exprimem o presságio de que alguma coisa grave irá acontecer. Fevereirinho quente traz o diabo no ventre (SANTOS, 1995): expressão regional definindo o clima, possivelmente também usada noutras paragens. Fevereirinho é garotinho (NUNES, 1965): alusão ao facto de se tratar do mês com menor número de dias. Gaivotas na serra é sinal de mau tempo (CALDEIRA, 1961): expressão de presságio usada pelo povo, quando vê gaivotas voarem em direção à serra. Janeiro, mete ombreiro (NUNES, 1965): sobre a necessidade andar bem agasalhado. O Leste de S. Braz, não vindo adiante, vem sempre atrás (PITA, 2003): mais tarde ou mais cedo, chega o calor. Março é cachorrinho (NUNES, 1965): alusão ao facto de que neste mês há, por vezes, grande variação de temperaturas. Natal com chuva, Páscoa com sol (CALDEIRA, 1961): previsão popular do tempo. Profano e religioso Ave-marias em casa, meia-noite na rua (CALDEIRA, 1961): diz-se de alguém que encobre o hábito de chegar a casa tarde; antigamente, ao anoitecer, os sinos da torre das igrejas tocavam as ave-marias, indicando que eram horas de recolher. Bem com Deus, mal com o diabo (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que devemos estar bem com quem mais nos interessa; devemos estar voltados para o bem e de costas para o mal. Deus não castiga nem com pau nem com pedra (CALDEIRA, 1961): aplica-se quando acontece alguma infelicidade a alguém, depois de ter praticado uma má ação. Deus não fecha uma fonte que não abra outra (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer: vai uma coisa mas vem outra; apelo a que se não perca a fé e se tenha esperança. Deus o deu, o diabo o levou (CALDEIRA, 1961): alusão ao carácter mutável da existência; tão depressa se ganha como se perde. Em dia de S. João toda a água é benta (fonte oral, Madeira): existe a crença de que as águas são purificadas no dia deste santo popular. Variante: Em noite de S. João, a água é lampa: nesta ocasião, há o costume de as pessoas se deslocarem até ao mar, ou para se banharem, ou para tocarem na água. Outra variante: Em noite de S. João, todas as ervas são bentas (SANTOS, 1995): sobre a fé sanjoanina; as ervas são purificadas, ficam benzidas pelo santo popular. Não há romaria sem cambado (CALDEIRA, 1961): aplica-se quando, em qualquer festa, reunião ou ocasião social, aparece uma pessoa a cambalear. Nunca se é velho para pagar pecados (NUNES, 1965): o castigo pelo mal cometido tarda, mas sempre chega. Quem pela murta passou, o seu raminho não apanhou, de Nossa Senhora não se lembrou (FREITAS e MATEUS, 2013): alusão ao sentido do gesto de apanhar um ramo de murta para oferecer a Nossa Senhora na igreja. Quem se emenda agrada a Deus (GOUVEIA, 1976): sobre a importância do arrependimento de coisa mal feita. Rata de sacristia, difícil ficar na ratoeira (fonte oral, Madeira): diz-se de mulher experiente e discreta. Santo da casa não faz milagres (NUNES, 1965): sobre quem, apesar dos seus esforços, nada consegue fazer para modificar a conduta e os costumes dos que lhe são próximos. Santo que não conheço, não lhe rezo nem ofereço (CALDEIRA, 1961): diz-se quando se quer mostrar que não se tem interesse em falar com pessoa a quem não se conhece ou deve atenções. Saúde e doença Chá de alfavaca, se não morrer escapa (FREITAS e MATEUS, 2013): o chá de alfavaca é aconselhado em determinado tipo de doenças. Quem está doente vai ao médico (NUNES, 1965): sobre quem se queixa mas não procura solução para o seu problema. Sorte Dar sem proveito faz mal ao peito (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): diz-se quando alguém oferece com algo com boa intenção e não lhe é dado o devido valor. Debaixo dos pés se levantam os trabalhos (SANTOS, 1995): os problemas aparecem quando menos se espera. Donde menos se espera é que saem os coelhos (CALDEIRA, 1961): o mesmo que dizer que conseguiu obter-se algo de forma inesperada; outro sentido será: alguém assume a culpa de alguma coisa, causando espanto. Filho de aselha não dá carreira certa (fonte oral, Porto Santo): prenúncio de insucesso na vida por falta de formação. Fui de balde e vim de celha (fonte oral, Porto Santo): Celha significa a bandeja que os vendedores de peixe usavam antigamente à cabeça, por cima da molhelha, para transportar o peixe (mais tarde, surgiu a canastra); refere-se a quem fez algo inutilmente, ou de que não obteve proveito. Furtar a quem tem não é pecado (CALDEIRA, 1961): diz-se como resposta a alguém que lamenta furtos feitos a pessoas com haveres. Nem todos os dias são dias de festa (CALDEIRA, 1961): não se faz sempre a mesma coisa. Nem todos têm sorte longe da sua terra (GOUVEIA, 1976): sobre a emigração. Quem espera, mais tarde ou mais cedo sempre alcança (GOUVEIA, 1976): sobre a importância de se ser paciente. Quem mata um gato ladrão tem sete anos de perdão (CALDEIRA, 1961): em desuso; aplicado a quem mexe no que é alheio. Quem não pode queixa-se da molhelha (NUNES, 1965): sobre o servir-se de desculpas; diz-se de quem fala muito, mas depois nada faz, arranjando para isso muitas justificações. Quem não sabe vender fecha a loja (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): sobre a arte de ser comerciante. Trabalho Barco parado (varado) não ganha frete (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965; MOREIRA, 1996; PITA, 2003; MILHANO, 2008): o mesmo que: “Quem não trabalha não ganha”. Contas feitas, barco lavado (PITA, 2003): acabado o trabalho, é hora de fazer a limpeza; aplica-se também aos negócios concretizados. Moleiro que carrega na maquia não tem freguesia amiga (fonte oral, Madeira): sobre o valor a cobrar; quem cobra montantes excessivos, perde a clientela. O mesmo que: “É muito caro, não volto lá para comprar”. Quem faz um cesto faz um cento (CALDEIRA, 1961; NUNES, 1965): quem aprende a fazer um trabalho pode voltar a fazê-lo; provérbio que evoca o artesanato regional, em particular a obra de vimes, com forte ligação à Camacha. Quem lava um prato, lava dois (CALDEIRA, 1961): quem lava um prato, facilmente lava dois, dispensando ajuda; a expressão tem também um sentido não literal. Trabalhas como um preto e gastas como um fidalgo. O provérbio remonta ao tempo da escravatura no arquipélago, pode ter dois sentidos: trabalhas muito e não poupas, ou trabalhas pouco e gastas muito. O vendeiro tem de beber para o cliente não desconfiar (fonte oral, Madeira): conselho sobre como vender; quando o vendeiro bebe, demonstra que o produto é bom, é genuíno, não está adulterado, de modo que gera a confiança dos clientes. Outros ditos Outros ditos com topónimos e gentílicos regionais Boa para pregar no Pilar de Banger (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): expressão que se empregava quando uma história não era completamente verdadeira e, por esse motivo, deveria ser afixada no Pilar de Banger, de forma a ser conhecida por toda a gente. O Pilar de Banger, com 30 m de altura e 3 de diâmetro, foi mandado construir por John Light Banger. Concluído em 1798 na marginal da cidade do Funchal, servia essencialmente para ajudar a transportar carga do mar para terra e vice-versa. Mais tarde, tornou-se um posto de vigia e de sinais. Em 1939, foi demolido. Em 1990, a base foi reposta. Os ceguinhos morreram no Caniçal (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): não se deixar intrujar; não ir no logro; modismo que exprime “não ir nessa”. Enxergar um mosquito nas Desertas, Ser capaz de (PITA, 2003): diz-se de alguém que tem a capacidade de ver a grande distância. Também pode ser dito com ironia, nesta variante: És capaz de enxergar um mosquito nas Desertas. Justiça da Ponta do Sol (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): ficar sem os haveres e sem apelo; com sentido de expressão idiomática, é uma referência a uma forma de justiça popular referenciada como sendo daquela localidade da Madeira. Na freguesia da Ponta Delgada, sê colono é sê digraçado (GOUVEIA, 1976): alude à situação de dependência de algo; referência à Lei da Colonia, segundo a qual o colono teria de entregar parte da produção ao senhorio; segundo Fernando Augusto da Silva, colonia é um regime agrícola de propriedade em que as terras pertencem ao chamado “senhorio e as benfeitorias ao colono, fazendo este toda a cultura com direito à dimidia da produção” (SILVA, 1950). Peru velho da Calheta quer casar não tem jaqueta (CALDEIRA, 1961): expressão antiga, utilizada nos tempos em que se vendiam perus pelas ruas da cidade, podendo referir-se a alguém que, tendo uma certa idade, quer contrair matrimónio mas não tem bens nem dinheiro. Variante: Peru velho do ilhéu quer casar não tem chapéu (CALDEIRA, 1961). Ribeira Tem-Te Não Caias (fonte oral, Madeira): nome, em forma de apelo, atribuído a uma ribeira existente no Porto da Cruz; consoante o seu caudal, é necessário ter atenção ao atravessar (“Tem-te”) e manter o equilíbrio (“Não Caias”); este nome foi atribuído à estrada que circunda a montanha onde está situada a ribeira; espécie de alerta. São Braz do Arco (Calheta) matou sete e afogou quatro (CALDEIRA, 1961): rifão popular de origem desconhecida; usado como gracejo. São Vicente, boa gente (fonte oral, Madeira): alude à existência de boas pessoas em São Vicente, com as quais vale a pena fazer amizade. O Senhor dos Milagres aceita a brincadeira (CALDEIRA, 1961): referente a Machico; a propósito de promessa não cumprida. Valha-me São Braz do Arco (Calheta) (SANTOS, 1995): vocativo implorando a ajuda divina. Valha-me o Senhor dos Milagres (SANTOS, 1995): referente a Machico; vocativo implorando a ajuda divina. Outros ditos com regionalismos e referências diretas ou indiretas à Madeira As camacheiras estão abanando as saias (CALDEIRA, 1961): diz-se quando o vento, vindo da direção nordeste, é bastante agreste; as camacheiras são na realidade as habitantes da freguesia da Camacha, na ilha da Madeira, apesar de haver também um sítio denominado Camacha na ilha do Porto Santo; a população do Funchal proferia este provérbio sempre que soprava o vento de Nordeste; de realçar que as saias das camacheiras, aqui referidas, são as saias coloridas das floristas e das bailarinas, de cariz etnográfico. Camacheiro (SIMÕES, 1984; SILVA, 1950): é um regionalismo pelo qual se designa o vento de Leste, vento frio e agreste que sopra dos lados da freguesia da Camacha; apesar de este vocábulo identificar também o habitante da freguesia da Camacha, o seu sentido proverbial atribui-lhe a referência ao vento; Guilherme Augusto Simões, em Expressões Populares Portuguesas…, texto publicado em 1984, regista este provérbio, referindo que Artur Bivar já o tinha mencionado no Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, em 1948; estamos perante um vocábulo da RAM registado fora da Ilha. És como o vilão, não vê nada sem tocar com a mão (CALDEIRA, 1961): diz-se quando uma pessoa toca numa coisa em que outra não quer que se mexa; v.g.: “Não toques nisso! És como o vilão, que não pode ver nada sem tocar com a mão?”. Estar como o vilão na casa do sogro (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): diz-se do indivíduo que está comodamente recostado, refastelado, à-vontade. Caldeira regista o seu sentido: aplica-se “quando um indivíduo está à vontade, bem encostado de perna estendida” (CALDEIRA, 1961, 59). Março marçagão, de manhã dente de cão, ao meio-dia sol de alegria e à tarde escapa vilão (NUNES, 1965): sobre a esperteza; comer bem, apanhar sol e passear. Ser galo do palheiro ou galinho do palheiro (CALDEIRA, 1961): pessoa esperta, atrevida; pessoa que fala muito. As canelas de João Blandy ou do senhor Blandy (SOUSA, 1950): no jogo do loto, aquele a quem sai o 77 grita, em vez do número, “as canelas de João Blandy” ou “as canelas do senhor Blandy” (de forma semelhante, quando se diz “boca da peça” os jogadores sabem imediatamente que se trata do número 1, e quando se profere “duas irmãzinhas” identificam logo ter saído o número 66); a família Blandy reside na Madeira há centenas de anos, onde se dedica ao comércio e serviços. Outros ditos sem marcador lexical explícito de “madeirensidade” atestados na Madeira (registados e/ou em uso) Agricultura É mais fácil o céu produzir abóboras, e a terra estrelas, do que virar o nosso feitor (“Provérbios populares”, 1969): forma de se expressar por meio da qual os agricultores se referiam ao modo de ser do feitor da quinta. Mijai, senhor, que a terra está seca (SANTOS, 1995): não é certo que esta expressão seja do arquipélago; de cariz jocoso, é um comentário perante uma situação inesperada; referência à necessidade de chuva. Santa Isabel está a abanar as saias (fonte oral, Camacha): diz-se sobre o vento no verão; em tempos, o povo queria que houvesse vento em julho, mês de S.ta Isabel, para ajudar a ajoeirar o trigo, depois de passar pelo mangual e antes de o guardar; v.g., “Parece que Santa Isabel já está a abanar as saias”. São Pedro bem-disposto, campo regado com gosto (fonte oral, Porto Santo): referência à chuva pelo mês deste santo popular. Alimentação Casca fora, inhame dentro (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): comer com grande apetite, com sofreguidão; v.g., “Isto cá é assim. Casca fora, inhame dentro”. Castanhas com carepa faz o cú tocar rebeca (fonte oral, Camacha): alusão à flatulência provocada pela ingestão de castanhas cruas. Comer formigas faz bem à vista (CALDEIRA, 1961): velho adágio que se pronuncia quando alguém se queixa de ter engolido uma formiga; v.g., “Estava a comer uma maçã e engoli uma formiga! Não faz mal, fez bem à vista”. Meio-dia, panela cheia, barriga vazia (SANTOS, 1995): diz-se para referir a hora da refeição. Aviso/ameaça O diabo quis cuidar de cem cabras e não quis cuidar duma só mulher (fonte popular, Porto Santo): diz-se a mulher que fala muito e continuamente; o mesmo que: “Vai lá p’Argel, o diabo quis cuidar de cem cabras e não quis cuidar duma só mulher”. Do coiro te sai as correias (CALDEIRA, 1961): sobre sofrer as consequências dos próprios atos. Ele com uma mão, eu com duas (CALDEIRA, 1961): usado para se alegar que, na celebração de um negócio, se foi mais sério do que a outra parte nele envolvida. Também se pode dizer: “Ele com duas mãos e eu com uma”. Fecha o aparelho que a burrinha espanta (fonte oral, Porto Santo): incitamento a fechar o guarda-chuva; v.g., “Ah, rapaz! Fecha o aparelho que a burrinha espanta”. Guarda o rir para quando chorares (CALDEIRA, 1961): conselho que se dá a quem ri de escárnio; v.g., “Olha, tás a rir? Guarda para quando chorares!”. A madeira onde o diabo se sujou (SANTOS, 1995): referência ao mau cheiro da madeira de til; era uma expressão muito usada pelos carpinteiros. Não dar cópia nem mandado (SOUSA, 1950): não dar notícia; estar em parte incerta. Não me venhas tirar o inhame da porta (SOUSA, 1950): aviso; frase que indica não ter medo de qualquer ameaça que vise os próprios bens ou bem-estar. Nem que te mates, nem que te esfoles (CALDEIRA, 1961): menção de algo de irreversível ou relativamente ao qual é inútil insistir; v.g., “Olha, eu já te disse que não te dou isso, nem que te mates e esfoles”. Variante: Nem que me mate nem que me esfole. Olho vivo, Santa Luzia (CALDEIRA, 1961; SOUSA, 1950): locução que indica ser preciso ter cautela. Quem me pica num dedo veja em que dedo me pica (CALDEIRA, 1961): admoestação, em tom de ameaça, no sentido de evitar qualquer ofensa; v.g., “Olha, toma cuidado, porque quem me pica no dedo veja em que dedo me pica, ouviste?”. Variante: Quem me pica num dedo, pica-me em dois: forma de alguém fazer sentir que não admite ofensas, que fica melindrado; v.g., “Já sabes. Quem me pica num dedo, pica-me em dois. Então vê lá como me tratas, ouviste?”. Se isso tem veneno, não me mata (CALDEIRA, 1961): sobre ser fiel; não tocar; expressão que supõe a recusa em contactar com algo que se deve evitar; o mesmo que: “Se isso tinha veneno, não me matou”. Vai pr’ Argel (fonte oral, Madeira): expressão usada desde os tempos remotos da pirataria e dos saques, em que a população do arquipélago era levada como refém para a Argélia e mais tarde pedido o seu resgate; alguns idosos costumam usar esta expressão quando se sentem importunados por alguém ou por coisa que querem que vá para longe. Conselhos Amarrem as filhas que os cabritos andam à solta (CALDEIRA, 1961): expressão que se ouvia algumas vezes quando as raparigas eram imprudentes e queriam sair com rapazes (“cabritos”). Come o que te dão e não sejas refilão (PITA, 2003): exortação a aceitar com humildade o que se recebe. Destino A cara não pode esconder o qu’a gente sente cá dentro (GOUVEIA, 1976): a face espelha o sofrimento, a angústia. A terra alheia nunca foi má madrasta p’ra quem quer andar à boa vida (GOUVEIA, 1976): sobre aquele que quer andar na boa vida nos terrenos de terceiros. Esperteza Olho atrás, olho adiante (CALDEIRA, 1961): ter cautela, estar precavido; v.g., “Lá com aquele tipo é preciso ter olho atrás, olho adiante”. Inveja Que d’inveja se comia: a expressão perpetua-se no romanceiro e nos dizeres populares. Na literatura que faz o retrato do mundo rural, como acontece em Horácio Bento de Gouveia, diz-se que entre os madeirenses havia “muita imveja im riba do lombo”, e que a gente “arrepelava-se de inveja” (VIEIRA, 2016). Como refere Alberto Vieira, “na ilha, a inveja diz-se e a invejidade vive-se”: trata-se de uma maneira de ser e de estar; segundo o autor, é uma característica comportamental, também conhecida como “dor de cotovelo”, que se torna mais notada nos espaços pequenos, onde ninguém larga os seus hábitos, usos e costumes, atitudes e sentimentos (VIEIRA, 2016, 26). Este autor cita ainda o Re-nhau-nhau (10 abr. 1952): Se a inveja fosse tinha toda a gente andava tinhosa (VIEIRA, 2016). Outros temas Andas vestida como uma rainha e descalça como uma galinha (fonte oral, Porto Santo): andar bem vestida, não tendo grandes posses. De rir e mijar gravetos (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): diz-se daquilo que desperta hilaridade; v.g., “Aquele estuporzinho diz coisas de rir e mijar gravetos”. Deixa-te de cramar (fonte oral, Madeira): expressão idiomática endereçada a quem está sempre a reclamar ou a queixar-se. Está um burro para cair pela rocha abaixo (CALDEIRA, 1961): diz-se quando acontece uma coisa boa de forma inesperada. Estar como o Belchior, cada vez pior (MILHANO, 2008; MOREIRA, 1996): expressão muito usada em Porto Santo, que faz alusão a Belchior Baião. “Belchior Baião, de linhagem nobre, foi o primeiro deste apelido que se estabeleceu na Madeira. Esta família teve um morgadio no Porto Santo e era padroeira duma capela na igreja paroquial, que ainda é conhecida pela capela da morgada” (SILVA e MENESES, 1998, 115). Maria, a “Atalaia”, tem o vestido mais comprido que a saia (CALDEIRA, 1961): diz-se à laia de crítica; quando se vê a roupa interior de alguém; v.g., “Olha-me pr’aquilo! Parece a Maria d’Atalaia!”. Para quem é, bacalhau basta (CALDEIRA, 1961): expressão que reflete menosprezo por alguém; diz-se quando não se quer dar a alguém mais do que aquilo que se julga que essa pessoa merece. O relógio da Sé é que se repete (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961), diz-se quando não se está disposto a voltar a dizer ou a fazer a mesma coisa. O mesmo que: O relógio da Sé é que dobra (CALDEIRA, 1961). A vida de João p’ra rua é comer, dormir e andar na rua (CALDEIRA, 1961): aplicado às pessoas que são mandrionas. Meteorologia e tempo Abril, manguil, canzil, maio, mamaio, marangaio, São João, São Joanás é o mês que nasce o nosso rapaz (PITA, 2003): dito de mulher grávida a explicar o estado adiantado da sua gravidez. Chuva em abril é a salvação da ilha (fonte oral, Porto Santo): sobre a importância da chuva para a subsistência. Sol e chuva, feiticeiras a se pentear (NUNES, 1965): diz-se quando simultaneamente ocorrem chuviscos, faz sol e aparece o arco-íris. Tenha calma. Antes da meia-noite não lhe vai dar o sono (fonte oral, Porto da Cruz): dar tempo ao tempo; não ter pressa. Profano e religioso Assim se canta na Sé. Uns assentados, outros de pé (SOUSA, 1950): sobre a ordem das coisas; o mesmo que dizer: “Ah! Assim, sim, está correto”. Dia de varrer os armários (SOUSA, 1950; CALDEIRA, 1961): referência ao dia 15 de janeiro, dia de S.to Amaro, Santa Cruz, Madeira, em cujos festejos, no mês de janeiro, se encerra o tempo natalício; e.g., “Venha a minha casa no dia de Santo Amaro, que é o dia de varrer os armários”. O mesmo que: Dia de S.to Amaro, varre os armários (fonte oral, Madeira). Sorte Criou fama e deitou-se na cama (fonte oral, Madeira): sobre quem teve êxito em alguma coisa e, depois disso, começou a levar uma vida ociosa. Desde que o mundo é mundo sempre houve ricos e pobres (GOUVEIA, 1976): sobre o destino. Livres de semear, prisioneiros das consequências (fonte oral, Madeira): sobre o uso da liberdade e as responsabilidades dele decorrentes. Não vejo moita por onde saia coelho (CALDEIRA, 1961): diz-se quando não há – ou não se vislumbra – qualquer possibilidade de se conseguir o que se quer. Quem falou pagou (NUNES, 1965): quem fala para desacreditar outrem, acaba por sofrer as consequências disso. Muitos dos provérbios e ditos populares apresentados, e atestados pelas recolhas orais realizadas, foram extraídos de obras publicadas, que constituem um património de grande valor. Convém salientar também que, no plano da linguística, esta amostra tem em consideração aquilo que especialistas de diversas épocas referiram. Em 1950, Cabral do Nascimento afirmava que, relativamente à língua, existia um “antepassado comum” (NASCIMENTO, 1950, 205), o que, anos mais tarde, foi aferido de igual modo por Lindley Cintra e Celso Cunha, que acrescentam: “os dialetos falados nas ilhas atlânticas […] são um prolongamento dos dialetos portugueses continentais” (CINTRA e CUNHA, 2005, 19). Muito antes, no séc. XVIII, Raphael Bluteau descrevera da seguinte forma a sua admiração pela língua portuguesa: “Da tua impaciência conheço, que és Português; como tal não podes deixar de estranhar, que se arrojasse um estranho a compor o teu idioma, o Dicionário. Entendamo-nos Amigo, e entende, que isto, que te parece arrojo, é veneração” (BLUTEAU, 1712, I, 33).   Manuel Justino de Freitas Rodrigues (atualizado a 15.02.2018)

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silbert, albert

Historiador francês, nascido em 1915, que desenvolveu de forma pioneira vários estudos sobre a história contemporânea de Portugal, a qual teve uma destacada importância na nova geração de historiadores portugueses que despontaram nas décs. de 60 e 70, como foi o caso de Miriam Halpern Pereira. Nesta fase, há uma grande ligação da história das ilhas e do mundo atlântico à historiografia francesa. Desde o pioneiro estudo de Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II (1949), que, às ilhas, foi atribuída uma posição-chave na vida do oceano Atlântico e do litoral dos continentes. Foram, na verdade, os franceses que, a partir dos anos 40, deram um impulso decisivo à história do espaço atlântico. Segundo Pierre Chaunu, foi ativa a intervenção dos arquipélagos da Madeira, das Canárias e dos Açores – o “Mediterrâneo Atlântico” – na economia europeia dos sécs. XV a XVII. Para além desta valorização do espaço atlântico, temos uma chamada de atenção para os estudos de história contemporânea, em que a figura de Albert Silbert foi central com as suas teses de 1966: a dissertação complementar sobre Le Problème Agraire Portugais des Temps des Premières Cortes Libérales (publicada em 1968) e a tese sobre Le Portugal Mediterranée a la Fin de l'Ancien Régime (publicado em 1978). A ligação de Albert Silbert à Madeira começou já em 1949, através da apresentação do trabalho de Orlando Ribeiro no Congresso Internacional de Geografia, realizado em Lisboa. É na sequência disso que apresenta, em 1954, ano em que publica o seu ensaio sobre a Madeira, uma breve nota sobre a publicação de Orlando Ribeiro, dando a entender a sua passagem pelo Funchal no intervalo de tempo que medeia o congresso e a publicação do texto nos Annales. O presente ensaio, que cobre o período de 1640 a 1820, pretende clarificar o papel da Madeira no emaranhado de relações que se estabelecem no espaço atlântico. O ponto de partida, tal como o autor refere, são os relatórios dos cônsules franceses, aos quais junta dados de documentos do Arquivo Histórico Ultramarino e do British Museum. A documentação do consulado reporta-se ao período de 1671 a 1793 e revela-se fundamental para saber dos interesses franceses nestas paragens. O estudo, embora hoje em dia seja visto com algumas reticências por certos historiadores e estudiosos madeirenses, continua a ser uma referência no âmbito dos trabalhos que envolvem, de forma clara, a Madeira nos mundos gerados pelo oceano atlântico a partir do séc. XVII, nos quais se articulam várias formas de expressão do poder do mar e dos impérios. Em 1954, a propósito da intervenção de Orlando Ribeiro no Congrès International de Géographie de 1949 sobre a Madeira e da publicação que se lhe seguiu em livro, aproveita para fazer um breve apontamento sobre a Ilha, destacando múltiplos aspetos relativos ao turismo e à história. Assim, nos Annales, considera que “a sua reputação de paraíso terrestre parece merecida”, concluindo que “a Madeira, ilha atlântica, deve tudo à circulação oceânica. As produções da ilha não suscitaram o tráfego deste espaço, antes foi o tráfego atlântico que fez a Madeira, foi ele que, em particular, permitiu o desenvolvimento da vinha” (SILBERT, 1954, 516). Atente-se que esta informação é depois utilizada no artigo que fez publicar sobre a Madeira nos referidos anais do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Não podemos esquecer que foi ele quem abriu as portas da investigação sobre a ilha a outro francês, Frederic Mauro, que, na déc. de 60, volta a seguir os mesmos caminhos de valorização da Madeira no espaço atlântico, mas, desta feita, escudado com a documentação disponível nos arquivos locais. Por força da criação do arquivo distrital em 1949, esta oferecia aos investigadores nacionais e estrangeiros um campo de investigação inexplorado que, felizmente, mereceu os estudos que conhecemos. Obras de Albert Silbert: Le Problème Agraire Portugais des Temps des Premières Cortes Libérales (1968); Le Portugal Mediterranée a la Fin de l'Ancien Régime (1978).       Alberto Vieira (atualizado a 30.12.2017)

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