Mais Recentes

galerias de arte

Entre os finais do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX, as poucas exposições de arte que ocorreram na Madeira foram organizadas em espaços improvisados. A designação galeria de arte foi usada em 1922, no contexto da primeira exposição de arte moderna que teve lugar no Funchal. Nas décadas seguintes, foram espaços como o Ateneu Comercial do Funchal e a Junta Geral que chamaram a si a organização de exposições. A partir dos anos 60, surgiram projetos privados mais próximos do conceito de galeria, destacando-se as galerias Tempo, Decorama, Mundus, Quetzal, Funchália, Porta 33, Edicarte e Mouraria. Dentro das iniciativas de caráter institucional, merecem registo a galeria da SRTC e o teatro municipal do Funchal. Fora do desta cidade, refira-se a Casa das Mudas, as casas da cultura de Santa Cruz e de Câmara de Lobos e a Galeria dos Prazeres. Palavras-chave: exposições; artes plásticas; artistas. O Grémio Artístico, nos finais do séc. XIX, e a Sociedade Nacional de Belas Artes, a partir de 1901, dominaram o panorama das exposições de pintura e escultura em Portugal, com os seus frequentes “Salões” de inspiração francesa. Na Madeira, em contraste com Lisboa, as exposições esporádicas de que há notícia aconteceram em espaços improvisados de hotéis e casinos da cidade do Funchal. Contudo, o protagonismo dos artistas madeirenses Francisco Franco, Henrique Franco e Alfredo Miguéis, tanto em Lisboa como em Paris, motivou o inesperado aparecimento, embora efémero, da primeira galeria de arte moderna no Funchal, em abril de 1922. A Galeria de Arte do Casino Pavão, como ficou conhecida, foi uma iniciativa do banqueiro e mecenas Henrique Vieira de Castro. Este espaço foi especialmente construído para acolher a, também primeira, exposição de arte moderna na Ilha, e na qual os artistas referidos participaram ao lado dos estrangeiros Bernard England e Madeleine Gervex-Émery, e do aguarelista continental Roberto Vieira de Castro, formando assim o Grupo dos Seis, que deu nome à exposição. Dois meses antes da sua abertura, um artigo no Diário de Notícias do Funchal, anunciando esta inédita exposição, insistia na necessidade de dotar a cidade com museus e galerias de arte, de maneira a promover o necessário e urgente desenvolvimento cultural da Madeira. Apesar das intenções de ali se organizar anualmente uma exposição de arte moderna, tal nunca veio a acontecer. Nesta déc. de 20, encontramos apenas a iniciativa isolada de Adolfo de Noronha que, em 1929, com o apoio da Câmara Municipal, abriu ao público o Museu Municipal do Funchal, que contemplou, nos primeiros anos, uma sala de pintura e escultura, mas que logo se especializou nas ciências naturais. Durante o regime do Estado Novo, o número de galerias privadas a nível nacional foi verdadeiramente exíguo, tendo cabido às instituições do Estado o controlo e organização das exposições artísticas. Nas décs. de 30 e 40, passaram pela Madeira, muito esporadicamente, algumas exposições de pintura organizadas pelo Estado, tendo o átrio da então Junta Geral funcionado como sala de exposições temporárias. Como exemplo, é de mencionar a visita do pintor Alberto de Sousa, que ali expôs em 1934. Às salas de hotéis e casinos que acolheram as exposições no período anterior, acrescentam-se, a partir dos anos 40, espaços não menos provisórios em associações comerciais, clubes, e galerias, que eram mais lojas de antiguidades do que espaços de exposição. Da iniciativa privada, destaca-se o papel dinamizador do Ateneu Comercial do Funchal, que, fundado em 1898, ganhou algum protagonismo cultural, a partir dos anos 30. Durante os anos 40 e 50, o Ateneu promoveu diversas atividades, sobretudo no âmbito da poesia e literatura, através de concursos e prémios. Contudo, é de salientar a criação, em 1936, de um núcleo de fotografia, que promoveu a realização do I Salão de Arte Fotográfica no Funchal, em 1937. Aquando do estabelecimento do museu da Quinta das Cruzes, em 1946, à data conhecido como Museu César Gomes, foi pensada a criação de um espaço que serviria de ateliê a artistas visitantes e um outro que funcionaria como sala de exposições temporárias. Mas tal não aconteceu, a não ser muito pontualmente, pois esta não seria a vocação do museu. A primeira exposição temporária ocorreu em 1949, com a Exposição de Estampas Antigas da Madeira e, durante os anos 50, há notícia de duas mostras, uma do pintor Francisco Maya, em 1953, e outra de desenhos de Egon von der Wehl, no ano seguinte. Para além dos espaços referidos, na sede da Sociedade de Concertos da Madeira ocorreram algumas exposições. Em 1950, foram exibidos 42 trabalhos – entre aguarelas e desenhos de paisagem – de Américo Marinho, pintor de origem continental e, por essa altura, professor da Escola Industrial e Comercial do Funchal. No mesmo ano, foi notícia na revista Das Artes e da História da Madeira uma exposição de aguarelas e óleos de uma pintora inglesa, Bryce Nair, desta vez nas Galerias da Madeira. Este local comercial, situado na esquina da rua 5 de Outubro com a rua Bettencourt, era vocacionado, sobretudo, para a venda de antiguidades. Por sua vez, o Clube Funchalense, entidade de carácter social e cultural, já criada no séc. XIX (foi fundado em 1839), organizava, mormente, bailes e soirées, e só apresentou exposições de arte muito esporadicamente; sendo de destacar, no séc. XX, a primeira exposição individual de Lourdes Castro, em 1955, uma das poucas que realizou na Madeira, e uma mostra de António Aragão, no ano seguinte. A partir dos anos 60, o número de galerias aumentou, em Portugal continental, de forma significativa, passando de três, no início da década, para cerca de 30. Alguns novos projetos seguiram o figurino de loja-galeria ou galeria-livraria, em voga nessa época. Em 1964, é o tempo de inaugurar, na Madeira, o primeiro espaço próximo deste figurino, a Galeria de Artes Decorativas Tempo, sita na rua do Bom Jesus. Iniciativa do Arqt. Rui Goes Ferreira e do escultor madeirense Amândio de Sousa, esta galeria apostou na comercialização de objetos de design moderno e também em exposições temporárias. Na sua exposição inaugural, Sete Pintores Portugueses, foram apresentados trabalhos de Manuel Mouga, Jorge Pinheiro, Espiga Pinto, Manuel Pinto, José Rodrigues, Ângelo de Sousa e Júlio Resende. Num figurino semelhante, merece destaque a abertura da Galeria Mundus, em 1965. Neste espaço comercial foram realizadas as primeiras exposições de arte moderna de uma nova geração de artistas madeirenses. Em 1966, foram expostos desenhos surrealizantes de António Vasconcelos (Nelos) e Humberto Spínola; assim como pintura abstrata de Danilo Gouveia e Ara Gouveia. Por esta galeria passaram também artistas continentais mais ou menos conhecidos, entre os quais António Palolo, que ali expôs individualmente em 1967. Outra iniciativa integrada no conceito de loja-galeria foi a fugaz Decorama, da responsabilidade de João Silvério Cayres. Esta trouxe ao Funchal mobiliário e objetos de gosto contemporâneo, mas cedo deu lugar a uma loja mais vocacionada para mobiliário clássico, mais ao gosto do comprador local. Um projeto ambicioso foi o da utópica Casa do Artista, que partiu da ideia trazida por alguns críticos e galeristas franceses de visita à Madeira por ocasião da II Exposição de Arte Moderna realizada no Funchal, em 1967, entre outros, Victor Lacks e Michel Tapié de Céleyran. A proposta atraiu alguns artistas empreendedores da Região, nomeadamente Amândio de Sousa e António Aragão, que cedo contribuíram para transformá-la num projeto, que chegou a ser apresentado à Junta Geral do Funchal, em 1968. Aquela que parece ter sido a primeira tentativa real para criar uma estrutura cultural de apoio e divulgação das manifestações artísticas de vanguarda, e que incluía um espaço de exposições, próximo do conceito de galeria, acabou por não vingar, por desinteresse das entidades governamentais. Entrados os anos 70, novas intenções de constituir espaços para a exposição de arte moderna foram surgindo, mas não tiveram continuidade. Lembremos o caso da Sociedade de Empreendimentos Turísticos Matur, que organizou duas exposições em 1973, uma com artistas locais e outra com convidados do continente. O objetivo era criar um museu/galeria no Hotel Atlantis, pertencente àquele grupo, mas a ideia não vingou. No pós-25 de Abril, as anteriores iniciativas privadas foram desaparecendo. O Governo Regional, através de algumas galerias institucionais, foi promovendo o desenvolvimento dos espaços expositivos. Foi o recém-criado Instituto de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM) que se constituiu como uma das alternativas mais atuantes ao longo das décs. de 80 e 90. Na sua sede, na rua da Carreira, foi criada uma pequena galeria de exposições aberta ao público, onde foram realizadas inúmeras mostras escolares e, com alguma frequência, exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros. Em simultâneo, a galeria da Secretaria Regional do Turismo e Cultura (SRTC), situada na avenida Arriaga, e conhecida localmente como Galeria do Turismo, desempenhou um papel importante ao longo das décs. de 80 e 90 na realização de exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros, tirando partido da sua localização privilegiada no centro da cidade, o que permitiu uma afluência considerável de visitantes. Por outro lado, e no mesmo período, o salão nobre do teatro municipal Baltazar Dias também acolheu numerosas e diversificadas iniciativas apoiadas pela Câmara Municipal do Funchal, em estreita colaboração com várias instituições, sobretudo com o ISAPM e o Cine Forum do Funchal. Ainda na déc. de 80, e em diálogo com as instituições acima mencionadas, assiste-se ao aparecimento de alguns espaços de iniciativa privada, hoje desaparecidos, tais como a galeria Quetzal, em 1981, e a galeria Funchália, em 1989. A primeira, da responsabilidade de Francisco Faria Paulino, e associada a uma editora homónima, trouxe ao Funchal exposições de artistas portugueses contemporâneos. A Quetzal não abriu portas em local próprio, tendo sido as suas exposições montadas em espaços como o teatro municipal Baltazar Dias, o Museu de Arte Sacra do Funchal, e a galeria da SRTC. No contexto da sua atividade como galerista, Francisco Faria Paulino foi também o principal responsável, em 1987, pelo Festival de Arte Contemporânea MARCA-Madeira, evento inédito no Funchal que contou com a participação de 31 galerias portuguesas e incluiu um congresso de arte contemporânea, entre outras ações paralelas que muito dinamizaram o ambiente artístico regional, por esses anos. Por sua vez, a galeria Funchália foi inaugurada no centro comercial Eden Mar sob a direção de Manuel Brito, Maurício Fernandes e Rui Carita, entre outros. De iniciativa local, esta galeria constituiu a primeira iniciativa com sede própria dedicada à arte contemporânea local e nacional. Ali foram organizadas um total de 31 exposições, sete das quais com artistas locais, tendo cessado a sua atividade em 1994. Expuseram na Funchália artistas como Helena Vieira da Silva, Celso Caires, João Moreira, André Sander, Cruzeiro Seixas, Rocha Pinto e António Botelho. Preenchendo o vazio deixado pelo encerramento da Funchália, o galerista Francisco Faria Paulino propôs um novo projeto, desta vez com sede própria: a galeria Edicarte, inaugurada em 1996, com sede na rua dos Aranhas, e que foi responsável pela realização da segunda e terceira edições do festival MARCA-Madeira onde, uma vez mais, estiveram representadas importantes galerias portuguesas. Ainda nos anos 90, regista-se a abertura de uma delegação, na zona turística do Caniço, da galeria Falkenstern Fine Art, sediada na ilha de Sylt, na Alemanha, vocacionada para mostrar trabalho de artistas estrangeiros de passagem pela Madeira e também do seu fundador, Siegward Sprotte. No começo do séc. XXI, a sede alemã continua em atividade, mas a delegação da Madeira, aberta em 1991, revelou-se um projeto efémero. Um caso à parte é a galeria Porta 33, criada em 1989 e ainda em funcionamento. Concebido, nos seus estatutos, como associação cultural, este espaço tem trazido ao Funchal nomes importantes da arte contemporânea. Para mais, tem desenvolvido com alguns artistas projetos específicos de exposição; tem promovido o debate com críticos convidados de âmbito nacional e internacional; e tem organizado diversos workshops e palestras. A Porta 33 trouxe ao Funchal obras de artistas de recorte nacional como Graça Pereira Coutinho, Ilda David, João Penalva, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Pedro Croft e Pedro Calapez. De entre os artistas locais ou madeirenses que fizeram carreira no exterior, destacam-se Lourdes Castro, António Aragão, Rigo, António Dantas e Rui Carvalho. Esta galeria também tem participado em feiras de arte internacionais, tais como a ARCO, em Madrid. No dealbar do séc. XXI, foi inaugurado um novo espaço comercial, a Galeria Mouraria, da responsabilidade de Ricardo Ferreira, e que trouxe ao Funchal algumas coletivas com representantes do contexto nacional, apresentando obra de artistas locais, assim como desenvolvendo a iniciativa project room, com mostras de carácter mais experimental. Alguns dos artistas que a galeria representou individualmente ao longo da sua existência foram reunidos numa coletiva comemorativa do seu 10.º aniversário, em 2011, a saber: Cristina Perneta, Filipe Rodrigues, Guareta, Hernando Mejia, Marcos Milewski, Maria São José, Patricia Morris, Roberto Bolea, Sílvio Sousa Cró e Trindade Vieira. Meses depois, este projeto galerístico fechou portas. O início do séc. XXI viu desaparecer a galeria da SRTC, em 2006, pondo-se assim fim a um intenso trabalho de divulgação e dinamização cultural no centro da cidade. Um ano antes, fora também encerrado o Centro Cívico Edmundo Bettencourt, situado na rua Latino Coelho, e cuja ação foi muito menos marcante do que a daquela galeria, por se ter resumido a exposições coletivas de pouco impacto e com critérios de organização pouco consistentes. Fora do Funchal, outros espaços, sob a tutela das autarquias locais, foram cumprindo a missão de organizar exposição de artes plásticas, complementando assim o trabalho das poucas galerias privadas que se foram mantendo em atividade. É exemplo a Casa da Cultura de Santa Cruz, cuja atividade profícua teve como coordenadores José Baptista e o escultor António Rodrigues, e que apresentou, ao longo dos anos 90, para além de inúmeras coletivas, mostras individuais de António Aragão, Hélder Baptista e Lagoa Henriques. Por sua vez, e sob a coordenação de Paulo Sérgio BEJu, a Casa de Cultura de Câmara de Lobos privilegiou, entre 2005 e 2010, as mostras coletivas em formato de instalação, com propostas temáticas que desafiavam a criatividade dos aristas convidados. Para além destas, foram apresentadas mostras individuais de artistas locais, tais como Teresa Jardim, Domingas Pita e Rita Rodrigues. Neste contexto, é importante destacar o papel da Casa das Mudas, Casa da Cultura da Calheta, inaugurada em 1997, coordenada por Luís Guilherme Nóbrega até 2007. Esta galeria aproveitou a sua localização para operar uma descentralização cultural e uma ação direta no meio. Alguns dos artistas ali apresentados foram José Manuel Gomes, Lígia Gontardo, Élia Pimenta e Ara Gouveia, do contexto local, e Alberto Carneiro, António Palolo e José de Guimarães, do contexto nacional. Este espaço privilegiou também a linguagem fotográfica, trazendo à Madeira mostras coletivas e individuais neste âmbito, assim como mostras de importantes coleções de fundações nacionais, como a da Fundação Serralves. Uma outra iniciativa descentralizadora é a que levou à criação da Galeria dos Prazeres, inaugurada em 2008 e orientada por Patrícia Sumares até 2012. Trata-se de um projeto galerístico inserido na Quinta Pedagógica dos Prazeres, uma iniciativa, por sua vez, de origem paroquial e com carácter recreativo e cultural. A galeria propriamente dita pauta-se por uma estreita ligação com natureza e com o património local, privilegiando exposições de artistas locais e estrangeiros que desenvolvem propostas artísticas nesse sentido. A partir de 2013, a galeria passou a ser coordenada por Hugo Olim, artista visual e docente na Universidade da Madeira. Nesse espaço, destacam-se, para além de artistas estrangeiros, as mostras individuais de artistas locais como Carla Cabral, António Dantas, Paulo Sérgio BEju, Jose Manuel Gomes, Filipa Venâncio, Ara Gouveia, Martinho Mendes e o Arqt. Paulo David.   Carlos Valente (atualizado a 01.02.2017)

Artes e Design Cultura e Tradições Populares Educação Madeira Cultural

gabinetes de leitura

Cidade aberta à presença de estrangeiros, nomeadamente Ingleses, o Funchal do séc. XIX nem sempre respondia às solicitações culturais de quem visitava a cidade. O madeirense era pouco letrado e os estrangeiros queixavam-se do facto de não haver livrarias na cidade. Referiam-se, porém, à existência de gabinetes de leitura, lugares onde podiam conviver, ler jornais e revistas ingleses, em clubes onde pagavam quotas. Estes gabinetes eram, então, de acesso privado. Alguns dos estrangeiros que falam da ilha da Madeira referem-se-lhes. Em 1840, Fitch Taylor regista a sua existência no relato que faz da sua viagem à volta do mundo. O mesmo acontece no texto A Winter in Madeira, de 1850. Estes gabinetes revelam-se uma necessidade dos Ingleses e são referenciados nos guias de viagem. O Clube Inglês disponibilizava aos seus membros, para além dos jornais e das revistas, livros de tipologia diversa – desde ensaios e trabalhos científicos até “literatura ligeira da época” (DIX, 1850, 90). Nos começos do séc. XIX, a biblioteca deste clube detinha cerca de 2000 títulos – afirma-o um guia para viajantes e para “inválidos”. Este Clube Inglês, fundado em 1832, também conhecido como “english rooms”, situava-se na R. da Alfândega, entre as duas entradas do Blandy Brothers (Banqueiros Lda.), segundo consta do guia para o visitante assinado por Gordon Brown, o que evidencia a clara importância que esta estrutura teria para suprir as necessidades dos visitantes. Mediante uma quota semestral de 15 dólares, os estrangeiros poderiam conviver, jogar cartas ou bilhar, assim como consultar os mais recentes jornais, periódicos e livros ingleses. O gabinete de leitura do Clube Português não tinha livros, mas apenas jornais e revistas, em português. Não obstante verificar-se um maior interesse e uma maior divulgação dos gabinetes de leitura que servem os turistas que descobrem a Ilha, a verdade é que há referências a associações mais abrangentes, onde a preocupação com a leitura começa a fazer-se sentir. Numa nota a “Instrução pública”, relativa ao período monárquico-liberal, Álvaro Rodrigues de Azevedo remete para dois clubes recreativos, criados por associações particulares, com gabinetes de leitura: o União, criado a 10 de março de 1836, na Pr. da Constituição; e o Funchalense, estabelecido “ao Carmo, mas desde muitos anos também, no palácio da rua do Peru”. Este autor, nas notas que apõe a Saudades da Terra, faz menção de outro gabinete, inserido na Associação Comercial, que se situava à entrada da cidade, assim como “o princípio de uma biblioteca no Grémio Recreativo dos Artistas” (FRUTUOSO, 1873, 804-805). Na realidade, os estatutos de 1836 da Associação Comercial do Funchal já permitiam o acesso a periódicos, mapas, folhetos, livros e notícias, abrindo caminho para a instalação de um gabinete de leitura que, tal como o seu congénere do Clube Inglês, funcionava como um centro de encontro e convívio entre os sócios e os visitantes. No inventário de 1884 desta Associação consta a existência do mobiliário do gabinete de leitura, não havendo referência a qualquer armário, móvel ou estante para arrumação de livros e jornais, que estariam guardados fora do alcance dos utilizadores, na sala de sessões. Em 1897, é aprovado o projeto de regulamento da biblioteca e do gabinete de leitura desta Associação, clarificando as funções de cada um: o gabinete de leitura teria apenas o catálogo das obras existentes na biblioteca, e jornais, que um amanuense distribuía e recolhia diariamente e que eram facultados, mediante bilhetes de requisição, quer a sócios da Associação, quer a assinantes do gabinete. Nesse espaço, não era permitido fazer barulho, fumar, “levar para fora […], extraviar, mutilar ou danificar os jornais ali expostos” (MELLO e CARITA, 2002, 164), cabendo ao diretor da biblioteca zelar pelo bom funcionamento do gabinete. O gabinete, cujo horário era das 06.00 h às 21.00 h, permanecia aberto até mais tarde nos dias da chegada dos navios de Lisboa e dos paquetes ingleses que traziam notícias do mundo. Não temos conhecimento se as outras Associações que, entretanto, se formaram na cidade do Funchal teriam serviço semelhante. Na realidade, os gabinetes de leitura abriam as portas para a criação das bibliotecas públicas. No Funchal, à semelhança do que acontecia em outras cidades – sobretudo nas capitais dos distritos –, a Câmara fundou uma biblioteca pública, no dia 12 de janeiro de 1838, com um acervo constituído pelos 193 volumes da Encyclopedia Methodica, comprada aos herdeiros do conde de Canavial, e, em 1844, o município do Funchal solicita alguns livros do depósito das bibliotecas dos conventos extintos, tendo recebido, em 1863, 3060 volumes, em latim, português, francês, italiano e inglês. Um relatório americano dá conta dessa Biblioteca Municipal, em 1893. No começo do séc. XXI, as bibliotecas públicas oferecem serviços similares, agora gratuitos, apesar da necessidade de aquisição de um cartão de leitor/utilizador, que permite o acesso aos espaços das bibliotecas e dos centros de documentação, bem como à leitura, empréstimo e reserva de obras, à utilização de computadores e acesso à Internet, à visualização de conteúdos audiovisuais, entre outros serviços.     Graça Alves (atualizado a 01.02.2017)

História da Educação Literatura Sociedade e Comunicação Social

formação de professores

A formação de professores na Madeira inicia-se no ano de 1900 com a criação da Escola Distrital do Funchal, que se situava num edifício da R. dos Aranhas, e conferia a habilitação para o exercício do Magistério Primário. Nos anos seguintes, e correspondendo a diferentes reformas legislativas que ocorrem entre 1900 e 1921, a escola foi mudando de designação, passando a partir de 1904 a Escola Normal do Funchal e, a partir de 1919, a Escola Primária Superior do Funchal, designação esta que se mantem até 1921. O seu primeiro diretor foi Pedro José Lomelino, médico, nascido na ilha do Porto Santo a 19 de novembro de 1864. O primeiro curso tem a duração de dois anos e abarca as seguintes disciplinas: Aritmética e Geometria, Moral e Doutrina, Lavores, Desenho e Música, Português, Geografia, Ciências Naturais, Gramática, Caligrafia, Direitos e Deveres e História. Em 1921, inicia-se um hiato na formação de professores que se prolonga até 1943, ano em que, pelo dec.-lei n.º 33.019 de 1 de setembro, se cria a Escola do Magistério Primário do Funchal, que vem suprir a falta de professores primários no arquipélago da Madeira devido ao interregno que este período de 20 anos provocara na formação. A Escola do Magistério funciona, inicialmente, numa sala do Liceu Jaime Moniz, por determinação do art. 2.º do referido decreto, e tem, por inerência, como seu primeiro diretor o reitor do mesmo, na altura, o Dr. Ângelo Augusto da Silva. No ano letivo de 1943-1944, primeiro ano de existência da Escola, do seu corpo docente fazem parte António Marques da Silva, Lúcio Santana Bartolomeu do Rosário e Miranda, José Nunes Parro, William Edward Clode, Gustavo Augusto Coelho, Adelino dos Santos Lã, Ernesto Marçal Martins Gonçalves, Cón. Manuel Francisco Camacho e Judite Adriana Teixeira de Sousa Moniz. A frequência do curso passa pela aprovação num exame de admissão com prova escrita e oral, e a sua conclusão, após a aprovação em Exame de Estado, mais tarde Termo de Conclusão do Magistério Primário, confere habilitação para o magistério primário. Os cursos têm, inicialmente, a duração de dois anos e fazem parte do seu plano curricular as seguintes disciplinas: Pedagogia e Didática Geral; Psicologia Aplicada à Educação; Higiene Escolar; Educação Física; Desenho e Trabalhos Manuais; Educação Feminina; Música e Canto Coral; Organização Política e Administrativa da Nação; Educação Moral e Cívica; Prática Pedagógica; Didática Especial; Legislação. O plano curricular do curso sofreu alterações e, a partir de 1977, passa a ter uma duração de três anos letivos. Mais tarde, já no final dos anos 70, a Escola do Magistério Primário do Funchal alarga a sua área de ação na formação e abarca a formação inicial de educadores de infância. Assim, no ano letivo de 1977-1978, através de um protocolo com a Escola João de Deus de Lisboa, inicia esta formação. Este curso funciona nas instalações da Escola do Magistério Primário do Funchal, na altura sediada na Qt. da Ribeira, à Calç. da Cabouqueira n.º 5, em estreita colaboração com a escola mãe – que dava apoio pedagógico e científico ao curso, deslocando à Madeira pessoal docente para garantir algumas disciplinas diretamente relacionadas com aspetos técnicos e metodológicos de aplicação do método João de Deus –, mas no essencial garantido por docentes da Escola do Magistério do Funchal. A escola João de Deus apresenta a particularidade de usar um método específico de iniciação à leitura e à escrita, o método João de Deus, criado em 1920 pelo pedagogo João de Deus Ramos, filho do poeta João de Deus, patrono da escola. A turma deste curso, que é composta por 25 alunos, conclui a sua formação no ano letivo 1979-1980, vindo a responder a uma grande necessidade de profissionais na educação infantil e reforçando, assim, a resposta educativa profissionalizada na Madeira. No ano letivo 1982-1983, a Escola do Magistério Primário ganha independência da outra instituição, criando o seu próprio Curso Normal de Educadores de Infância, que funciona até à sua integração na Escola Superior de Educação da Madeira. A 21 de setembro de 1982, é criada a Escola Superior de Educação da Madeira (ESEM), pelo dec.-lei n.º 395/82, e inicia-se um longo processo de estruturação da escola, que só se efetiva após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (lei n.º 46/86, de 14 de outubro), que tem um forte impacto na formação de professores na região autónoma. A formação de professores reforça-se, pois para além do Curso do Magistério Primário e do Curso Normal de Educadores de Infância, que transitam da Escola do Magistério, a ESEM chama, ainda, a si a formação pedagógica de professores já integrados no sistema de ensino, particularmente nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário, através da profissionalização em serviço, sistema coordenado pelo então criado Centro Integrado de Formação de Professores (CIFOP), estrutura da ESEM que abarca esta modalidade de formação, que se encontra enquadrada no dec.-lei n.º 287/88 de 19 de agosto. A partir do ano de 1982 são criados no Funchal centros de apoio de estabelecimentos de ensino superior universitário, ao abrigo do dec.-lei 205/81, de 10 de julho. O despacho normativo 262/82 cria, na Região Autónoma da Madeira, sob proposta do Governo regional e ouvida a Universidade de Lisboa, o Centro de Apoio da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa; pelo despacho normativo 182/83, é criado o Centro de Apoio da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O Centro de Apoio da Faculdade de Ciências funciona na R. Bela de Santiago, num antigo anexo do Liceu Jaime Moniz, onde já havia funcionado a Escola do Magistério Primário e o da Faculdade de Letras na R. dos Ferreiros n.º 163. Os cursos lecionados nestas extensões universitárias – de formação de professores especialistas para áreas determinadas do currículo do 3.º ciclo e do ensino secundário – reforçaram o corpo docente de muitas escolas que foram surgindo por quase todas as freguesias da Madeira, por força de uma política de expansão do parque escolar. O número de professores profissionalizados em disciplinas como a História, o Português, o Francês, o Inglês, o Alemão e a Geografia, formados pelo então Centro de Apoio da Faculdade de Letras de Lisboa, cresce significativamente, contribuindo para que a grande maioria das escolas reforce o seu corpo docente e complete os seus quadros com professores profissionalizados. O mesmo se passa com a formação de professores em Matemática, Química, Física e Ciências. Nos últimos dois anos dos seus cursos, estes Centros integram formação em Ciências de Educação e estágio integrado em escolas do 3.º ciclo e do ensino secundário, garantindo com isso a profissionalização efetiva e o ingresso na carreira docente de um corpus cada vez mais coeso de profissionais de ensino científica e pedagogicamente habilitado. Ainda em 1982, cria-se a extensão à Madeira da UCP, que assume um papel importante na formação de professores de Português do 3.º ciclo e do ensino secundário, bem como de professores de Latim e Grego para o ensino secundário. É importante destacar que todos estes cursos, que funcionavam em regime de extensão universitária, eram ministrados por professores que se deslocavam das respetivas universidades e tinham lugar ao fim de semana, de sexta-feira a domingo. Não menos importante – e por se tratar da formação de professores de nível de mestrado (formação essa que se tornava cada vez mais necessária tendo em conta a emergência do ensino superior na Região e a necessidade de docentes especialmente vocacionados para o ensino politécnico e universitário) – é o facto de em 1984 se iniciar, através de um protocolo com a Universidade do Minho, um mestrado em Análise e Organização do Ensino, que tem a duração prevista de dois anos e que forma um grupo considerável de docentes habilitados. Os anos 80 foram anos de intensa atividade no que diz respeito à preparação do terreno para o aparecimento de uma instituição que pudesse chamar a si tão variadas experiências formativas na área docente, que se revelaram importantíssimas para a evolução e garantia de qualidade do sistema educativo na Região. Toda a tradição de formação de professores que tinha vindo a ser construída desde o início do séc. xx, com a criação da Escola Distrital de Funchal e a consequente formação dos primeiros professores habilitados para o exercício do magistério, frutificou na criação da Universidade da Madeira (UMa), um espaço destinado nomeadamente a manter a continuidade desta formação. A UMa herda, como já foi referido, a tradição da formação de professores dos diferentes graus e níveis de ensino. Vinda já do CIFOP, a Universidade ganha também a profissionalização em serviço, uma modalidade de formação que não confere grau académico, e que pretende responder à necessidade de preparar os profissionais de ensino para os desafios decorrentes da aplicação da Lei de Bases. O dec.-lei n.º 287/88, de 19 de agosto, que cria a profissionalização em serviço, diz no seu preâmbulo a este respeito: “Os professores dos quadros de nomeação provisória, agora com direito à profissionalização em serviço, apresentam perfis de experiência muito diversos e, em resultado da nova conceção e organização dos concursos, realizarão a sua formação profissional numa rede de escolas caracterizada pela dispersão geográfica e pela diferenciação. As suas legítimas expectativas tornam imperioso imprimir um ritmo rápido ao processo de profissionalização. Assim, urge rendibilizar os recursos humanos e materiais disponíveis, de modo a responder, com eficiência e racionalidade, às exigências da situação no menor prazo de tempo possível, desejavelmente não superior a cinco anos.” Este modelo de formação contínua de professores nasce da necessidade de proporcionar, o mais depressa possível, a formação pedagógica adequada a um grande grupo de professores que à data exerciam a profissão com estatuto de professores provisórios devido ao facto de apenas serem portadores de formação académica mas não possuírem a necessária formação pedagógica. A inexistência deste requisito levava a um bloqueio no acesso à progressão na carreira docente. O modelo apresenta duas componentes de formação: formação na área das Ciências da Educação e Prática Supervisionada, que se efetiva pela implementação do Projeto de Formação e Ação Pedagógica. A componente de Ciências da Educação abarca áreas como a Teoria e Desenvolvimento Curricular, a Sociologia da Educação, a Gestão e Administração Escolar e a Didática Específica, que pode ser uma ou duas consoante o grupo disciplinar a que o professor pertence seja mono ou bidisciplinar. As disciplinas referidas são garantidas inicialmente pela ESEM e mais tarde pela UMa, com a criação do seu departamento de Ciências da Educação. A componente de implementação de projeto é realizada na escola à qual o professor pertence e é acompanhada, preferencialmente, por um orientador da respetiva escola, que deverá ser o delegado de disciplina e que aqui assume a função de orientador pedagógico, e por um orientador da ESEM/UMa, que assume a função de orientador científico. Estes coordenadores acompanham o trabalho do professor em formação, assistindo a aulas e reunindo-se com o objetivo de avaliar não só momentos particulares da atividade do professor, mas também o seu desempenho geral (avaliação final). A conclusão deste percurso formativo com avaliação positiva concede ao professor a possibilidade da sua integração na carreira docente, passando da figura de professor de nomeação provisória para a de nomeação definitiva. O dec.-lei n.º 287/88 de 19 de agosto prevê ainda que os professores que à data da conclusão do primeiro ano da sua profissionalização (ou seja, à data da conclusão da componente de Ciências da Educação) possuam seis ou mais anos de serviço docente fiquem dispensados da frequência do 2.º ano, podendo passar imediatamente à condição de professor de nomeação definitiva. A profissionalização em serviço, enquanto programa de formação de professores com vínculo provisório, prolongou-se até ao ano letivo de 2013-2014, ano em que este modelo de formação deixou de funcionar na UMa. Este não foi o único modelo de profissionalização que se implementou na RAM. Outra área que no final dos anos 70 apresentava grande carência de docentes capacitados era a Educação Especial, que funcionava com muito poucos professores e educadores especializados, que entretanto se iam especializando em escolas de Lisboa, sendo a grande maioria dos seus docentes somente portadora de formação inicial em professores do 1.º ciclo do ensino básico e educação de infância. Para solucionar esta situação, a RAM, através da Direção Regional de Educação Especial (DREE), abre em 1983, em colaboração com o Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, a entidade formadora nacional, sediada em Lisboa, que então centralizava toda a formação de professores especialistas para a Educação Especial, uma turma de 26 alunos. Os professores/alunos que compõem a turma são selecionados por concurso público e destacados para a frequência do curso. Esta turma funciona em regime de extensão, numa sala especialmente preparada para o efeito, no Lar do Internato da Quinta do Leme. As aulas são lecionadas por professores do referido Instituto, que se deslocam à Madeira. No primeiro ano, os estudantes frequentam a sede da Escola onde ficam a conhecer a instituição; os restantes momentos formativos funcionam no Lar do Internato da Qt. do Leme, no Funchal. O curso tem a duração de três anos letivos, dois dos quais são teóricos, sendo um de estágio na área de especialização de opção de cada formando. As áreas de especialização são as seguintes: Deficiência Auditiva, Deficiência Intelectual, Deficiência Motora e Deficiência Visual. Dos 26 professores/estudantes que iniciam a formação, 23 concluem-na com aproveitamento e passam a integrar o quadro da DREE, exercendo funções nos seus diferentes serviços técnicos: Serviço Técnico de Educação de Deficientes Auditivos; Serviço Técnico de Educação de Deficientes Intelectuais; Serviço Técnico de Educação de Deficientes Motores e Serviço Técnico de Educação de Deficientes Visuais. Após este primeiro curso, a DREE estabelece protocolos com escolas superiores de educação do continente, que tinham começado a dar resposta de formação de professores de educação especial por força da extinção do Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, que ocorre no ano de 1989. Promove formação em regime de extensão, primeiramente pela Escola Superior de Educação do Porto e, mais tarde, pela Escola Superior de Educação de Lisboa. Estes cursos são cursos de estudos superiores especializados e já proporcionam não só a obtenção de habilitação profissional para o exercício da função de professor de Educação Especial, como também a obtenção de grau académico de diploma de estudos superiores especializados, equiparado para todos os efeitos a licenciatura. Os docentes de educação especial que frequentaram cursos que não conferiam este grau deslocaram-se à Escola Superior de Educação de Lisboa, que promoveu módulos de formação adicional de modo a permitir a este grupo de docentes a referida habilitação académica e o consequente impacto na sua carreira. Esta foi a primeira etapa da formação de professores de educação especial na Madeira, a qual mais tarde foi ganhando outras formas através de cursos de formação à distância e mista, online e presencial, proporcionados por algumas escolas de formação particulares do continente. Podemos, assim, considerar que a Madeira construiu um corpo docente que permitiu responder a esta modalidade educativa de forma adequada. Por força da aplicação do dec.-lei n.º 255/98 de 11 de agosto, que operacionaliza o estabelecido na lei 115/97, que refere no seu artigo 2.º que o Governo definirá por decreto-lei as condições em que os educadores de infância e professores do ensino básico sem o grau académico de licenciatura o poderão adquirir, criam-se os cursos de complemento de formação científica e pedagógica para educadores de infância e professores do ensino básico com o grau de bacharéis. Tais cursos são organizados e funcionam em escolas superiores de educação e em estabelecimentos de ensino universitário; no caso da Madeira, centram-se na UMa. O acesso aos cursos é feito por concurso, sendo os candidatos seriados por análise curricular. A sua frequência é gratuita. As primeiras turmas são de educadores de infância, professores do 1.º ciclo do ensino básico e professores do 2.º ciclo dos grupos bidisciplinares de Matemática e Ciências, e Português e História. Esgotada a formação dos professores bacharéis do 2.º ciclo, a formação continua agora exclusivamente dirigida a educadores de infância e professores do 1.º ciclo. Estes cursos têm a duração de três semestres e funcionam nas instalações da UMa, ao Campus da Penteada, em horário pós-laboral, de segunda a sexta-feira e aos sábados de manhã. Os professores que os concluem com aproveitamento adquirem o grau de licenciatura e o seu tempo de serviço é recontado para efeitos de carreira docente como se tivessem iniciado a carreira como licenciados. Isto provoca um acréscimo salarial de todos estes docentes na ordem de um ou dois escalões, consoante o seu tempo de serviço docente e o escalão onde se encontravam. Estamos perante um processo de formação que influi simultaneamente na carreira e na habilitação académica dos professores que a ele se sujeitam. Nos anos 80 do séc. XX, situações de formação idênticas a estas, que permitiram a obtenção de grau académico de licenciatura, foram também proporcionadas aos professores de Educação Tecnológica e Trabalhos Manuais pela Universidade Aberta e a professores de Educação Física pela UMa. Todas estas respostas de formação de professores se encaminham para a construção de um corpo docente com uma habilitação académica do mesmo nível, acabando assim com a grande variação de habilitações presente na carreira docente, que implicava, logo à partida, diferenças salariais significativas. Entre os anos 80 do séc. XX e os primeiros cinco anos do séc. XXI a formação de professores viveu um período de grande efervescência, que agitou a classe e a envolveu em processos formativos que trouxeram grandes benefícios para os professores em particular, e para as escolas em geral, enquanto espaços onde essa formação tinha impacto real. O Estatuto da Carreira Docente pode ser considerado o motor na procura de formação de nível de mestrado e doutoramento por parte dos professores e na sua consequente oferta pelas universidades, dado o reconhecimento que tal Estatuto lhes confere na carreira docente. A UMa não foge à regra e em 2001 abre o seu primeiro curso de mestrado destinado, fundamentalmente, a professores e educadores. O mestrado é da responsabilidade do Departamento de Ciências da Educação; enquadra-se na área das Ciências da Educação/Supervisão Pedagógica e tem lugar em colaboração com a Faculdade de Ciências de Educação da Universidade de Lisboa e da Universidade do Porto. Todos os mestrandos concluem o curso com aproveitamento e as dissertações apresentadas fornecem uma perspetiva crítica e reflexiva sobre diferentes âmbitos da realidade educativa regional. Seguiram-se mestrados em Inovação Pedagógica e Administração e Gestão Escolar, que devolvem às escolas professores mais aptos e capazes para o exercício de outras funções educativas, como a gestão dos estabelecimentos de ensino, a avaliação docente e a implementação de estudos centrados em problemáticas que emergem da situação das escolas e do sistema educativo. Aos cursos de mestrado seguem-se os doutoramentos em educação na área do Currículo e da Inovação Pedagógica, que também são procurados pelos professores. A par da formação inicial e por força da implementação do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, introduzido pelo dec.-lei n.º 139-A/90 de 28 de abril, em conjugação com o dec.-lei 409/89, de 18 de novembro – que aprova a estrutura da carreira do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário e no art. 9.º estabelece as normas relativas ao seu estatuto remuneratório, definindo como um dos critérios para a progressão nos escalões da carreira docente a frequência com aproveitamento de módulos de formação –, a questão da formação contínua dos professores adquire uma grande dimensão, dada a importância que assume na garantia da sua progressão remuneratória. A formação contínua de professores, que durante muitos anos foi regularmente promovida pelas entidades com responsabilidades na educação na Madeira (desde a Secretaria da Educação às escolas, passando pelas diferentes associações profissionais de professores) através de ações de formação pontuais e de jornadas pedagógicas (com destaque para as jornadas organizadas pelo Sindicato dos Professores da Madeira), ganha estatuto legal em 1992, ano em que foi aprovado o 1.º regime jurídico da formação contínua de professores, pelo dec.-lei n.º 249/92, de 9 de novembro. Nele se definem os princípios a que deve obedecer esta modalidade de formação, as áreas sobre as quais deve incidir e as várias modalidades e níveis que deve assumir. Definem-se igualmente as instituições e as entidades vocacionadas para a formação de professores. É assim que, ao lado das instituições de ensino superior, surgem os Centros de Formação de Associações de Professores. As primeiras instituições que chamam a si a formação contínua de professores já nos moldes previstos no seu regime jurídico – formação creditada e acreditada pelo Conselho Coordenador da Formação Contínua de Professores, depois Conselho Científico-Pedagógico – são a Secretaria Regional de Educação, o Centro Integrado de Formação de Professores da UMa e o Centro de Formação do Sindicato dos Professores da Madeira. Sendo uma associação profissional, o Sindicato dos Professores da Madeira, no cumprimento da legislação em vigor, submete-se a um processo de acreditação que culmina a 14 de agosto de 1993 com a aquisição do 1.º certificado de acreditação do seu Centro. Este é o único Centro de Formação que, no plano regional, atinge tal objetivo. A sua primeira diretora foi a Prof.ª Isabel Sena Lino. Mais tarde, outras organizações profissionais de professores, através de protocolos com centros de formação do continente, promovem também ações de formação contínua – o que vem alargar o leque de formação, bem como o número de ações disponíveis. Surgem também as comissões de formação nas escolas, órgãos que dependem dos Conselhos Pedagógicos e que têm como missão divulgar e organizar formação para os professores da sua escola, em primeiro lugar, e de outras escolas, caso o número de vagas o permita. As várias revisões do Estatuto da Carreira Docente, do regime jurídico da formação contínua e de outros documentos legais que configuram a carreira docente, bem como a recessão económica que teve efeitos mais evidentes na economia no início de 2010, colocaram um travão à quantidade de oferta formativa disponível para a formação contínua de professores, que se tornou cada vez mais escassa e sujeita a apertados controlos financeiros. A oferta formativa da UMa, em cursos de mestrado e doutoramento em educação, manteve-se, mas a sua procura baixou significativamente nestes anos.     Fernando Luís de Sousa Correia (atualizado 31.01.2017)

Educação História da Educação

busk, george

(São Petersburgo, 1807 - Londres, 1886) Médico e naturalista, exerceu funções no Seamen’s Hospital Society (SMS), no Reino Unido, e fez importantes contribuições para as áreas da epidemiologia, da parasitologia e da paleontologia. Descobriu, em 1843, 14 vermes parasitários do duodeno, que foram denominados Fasciolopsis buski em sua homenagem e, como naturalista, dedicou-se ao estudo de invertebrados marinhos, tendo descrito 45 espécies de filo Bryozoa da Madeira, a partir de amostras que lhe foram enviadas James Y. Johnson Foi, também, o responsável pela observação do primeiro crânio adulto de Neandertal descoberto, em 1848, em Gibraltar. Trocou correspondência com Darwin, recebeu numerosos prémios de reconhecimento e foi membro fundador da Microscopical Society.   Palavras-chave: George Busk; Bryozoa da Madeira; Buskia; Fasciolopsis buski; crânio de Gibraltar; correspondentes de Darwin . Busk nasceu a 12 de agosto de 1807, filho de colonos ingleses, em São Petersburgo, Rússia. Completou todos os seus estudos no Reino Unido, primeiro na Dr. Hartley’s School, em Yorkshire e, depois, na Royal College of Surgeons, em Londres. Como médico, contribuiu para o conhecimento de diferentes epidemias. Em 1838, e.g., publicou, juntamente com o seu colega George Budd, um relatório sobre 20 casos de cólera (Report of Twenty Cases of Malignant Cholera that Occurred in the Seamen’s Hospital-Ship) e escreveu relatórios para a SHS sobre outras doenças, como o escorbuto e a varíola. Também no campo da parasitologia, fez valiosas descobertas, tendo, em 1843, descrito 14 vermes parasitários do duodeno. Estes trematodes foram depois chamados Fasciolopsis buski em sua honra. As suas aportações nesta área tornaram-no tão conhecido que, numa carta a Charles Darwin de 1863, Joseph Hooker descreve Busk como “o cérebro mais fértil que conheço em tudo o que diz respeito ao estômago” (“George Busk”, Darwin Correspondence…), facto que levou Darwin a escrever-lhe para pedir conselho sobre os seus próprios sintomas gástricos. Darwin também escrevera a Busk para pedir a sua opinião sobre outros assuntos, nomeadamente se haveria alguma relação entre a cor do cabelo e a suscetibilidade às doenças tropicais nos soldados britânicos, e sobre a evolução dos Bryozoa. Em 1864, Busk, na altura membro do conselho da Royal Society, foi um dos que persuadiram a Sociedade a outorgar a Darwin a Medalha Copley, a condecoração de maior prestígio no domínio das ciências. Durante a sua vida, especialmente após a sua reforma da SHS, em 1855, George Busk dedicou-se ao estudo dos Bryozoa (ou Polyzoa). Embora não haja registos de ter estado alguma vez na Madeira, recebeu muitas amostras de Bryozoa desta ilha enviadas por James Yate Johnson (1820-1900), e fez uma contribuição importante para o seu conhecimento, descrevendo no total – como se referiu – 45 espécies nos vários artigos que publicou no Quarterly Journal of Microscopical Science: “Zoophytology”, “On some Madeiran Polyzoa”, e “Catalogue of the Polyzoa, collected by J. Y. Johnson, Esq. at Madeira in the years 1859 and 1860”. A sua coleção foi depositada no Museu de História Natural de Londres. Um novo género de Bryozoa, Buskia, foi-lhe dedicado por Alder, em 1856. George Busk também se interessou pela paleontologia. Traduziu o trabalho onde Shaaffhausen descrevia os restos de esqueletos humanos descobertos no vale de Neander (“o homem de Neandertal”) e, em 1863, viajou até Gibraltar, para visitar a caverna onde tinha sido descoberto, em 1848, o primeiro crânio adulto de Neandertal. Foi o responsável por levar para Londres este “crânio de Gibraltar”, publicando o resultado das suas observações em 1864, no The Reader, com o título “Pithecoid priscan man from Gibraltar”. Casou-se, em 1843, com uma prima direita, Ellen, e teve duas filhas. Foi membro de muitas sociedades científicas e ganhou vários reconhecimentos. Por exemplo, foi um dos fundadores da Microscopical Society, em 1839, foi nomeado membro da Linnean Society em 1846, da Royal Society em 1850, da Zoological Society em 1856 e da Geological Society em 1859. Recebeu a Medalha Real em 1871, a Medalha Lyell em 1878 e a Medalha Wollaston em 1885. Faleceu na sua residência em Londres, a 10 de agosto de 1886. Obras de George Busk: Report of Twenty Cases of Malignant Cholera that Occurred in the Seamen’s Hospital-Ship (1838), com George Budd; “Zoophytology” (1858); “On some Madeiran Polyzoa” (1858 e 1859); “Catalogue of the Polyzoa, collected by J. Y. Johnson, Esq. at Madeira in the years 1859 and 1860” (1860 e 1861); “Pithecoid priscan man from Gibraltar” (1864).   Pamela Puppo (atualizado a 25.01.2017)

Biologia Terrestre Ciências da Saúde

cem – construindo o êxito em matemática

No final da déc. de 90 do séc. XX, a Associação de Professores de Matemática (APM) realizou um estudo, Matemática 2001 – Diagnóstico e Recomendações sobre o Ensino e Aprendizagem da Matemática, “com o propósito de elaborar um diagnóstico e um conjunto de recomendações sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática no nosso país” (ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA, 1998, 1). Este estudo tinha a preocupação de contribuir para a melhoria do ensino da matemática no início do séc. XXI. Dele emergiram recomendações específicas para uma reorganização curricular, repensando as finalidades do ensino da disciplina para as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula e para a formação de professores, entre outras. Em 2001, seguindo as recomendações advindas do estudo supracitado, o Ministério da Educação lançou o Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais, definindo as aptidões fundamentais que um aluno deveria ter desenvolvido no final de cada ciclo (1.º, 2.º e 3.º ciclos). Esta finalidade do ensino da matemática implicava mudanças nas práticas dos professores. Visando ir ao encontro das necessidades de formação para implementar tais mudanças, realizou-se na Madeira uma formação para professores de matemática. Em 2005, no âmbito do Plano de Ação para a Matemática, iniciou-se em todo o país uma formação de professores que teve como propósito melhorar a preparação para uma mais profícua implementação do novo programa da disciplina, então em experimentação, e que veio a ser homologado em 2007. Esta formação decorreu entre 2005 e 2011 e alcançou milhares de professores. O projeto CEM O CEM – Construindo o Êxito em Matemática é um projeto de formação contínua de professores de matemática do ensino básico que teve início no ano letivo 2006-2007, no âmbito do Plano Regional de Ação para a Matemática, e que conta com o apoio da referida Direção Regional e da Universidade da Madeira (UMa). Com uma visão ampla do que é a aprendizagem no geral e a aprendizagem da matemática em especial, foram adotadas três teorias sociais de aprendizagem que seriam o suporte teórico de toda a conceção e implementação do projeto. A teoria da aprendizagem situada, que vê a aprendizagem como participação, defende que, para aprender, as pessoas têm de se empenhar conjuntamente, sendo igualmente necessário que participem nas práticas e tenham uma meta a alcançar. Outra das teorias que sustentam o projeto é a teoria da atividade, que entende a aprendizagem como transformação, seja das práticas em que as pessoas (professores e alunos) se envolvem, seja das pessoas que aprendem (professores e alunos). O terceiro pilar teórico do projeto é a educação matemática crítica, que discute a aprendizagem como ação dialógica, defendendo que para aprender é preciso existir intencionalidade por parte de quem aprende, o que envolve ação e reflexão sobre essa ação. A partir destas três ferramentas teóricas, idealizou-se um projeto com cenários de aprendizagem para os professores e para os alunos. O projeto criado visou melhorar as aprendizagens e desenvolver as competências matemáticas nos alunos, trabalhando com os professores do ensino básico da Região Autónoma da Madeira (RAM) com os seguintes objetivos: a) promover um aprofundamento dos conhecimentos matemáticos e didáticos dos professores; b) favorecer a realização de experiências de desenvolvimento curricular que contemplem a planificação e a implementação de aulas, e posterior reflexão; c) promover o trabalho cooperativo entre docentes (intra e inter escolas). Com estes objetivos, foi promovida uma formação que teve em conta os conhecimentos matemático, didático e curricular, de acordo com os conteúdos matemáticos a abordar, e procurando atender às necessidades e solicitações dos professores. A realização de experiências de desenvolvimento curricular contemplou a planificação de aulas, a sua condução e posterior reflexão por parte dos professores envolvidos, apoiados pelos pares e pelas formadoras que integravam a equipa do projeto. No ano letivo de 2006-2007, iniciou-se o projeto CEM para professores do 3.º ano do 1.º ciclo. Cada equipa de formação era constituída por uma professora do 1º ciclo e por uma professora de matemática do 3.º ciclo e do secundário. Esta exigência prendeu-se com a procura de assegurar que tanto o conhecimento matemático quanto o didático e curricular estavam salvaguardados. Metodologia de trabalho do projeto CEM As equipas de professores destacados pela DRE prepararam a formação construindo propostas de trabalho adequadas ao tipo pretendido e criaram materiais visando o trabalho dos alunos na sala de aula e considerando a sua adequação a uma metodologia de atuação onde o discente é o elemento central do seu processo de aprendizagem. Quinzenalmente, as equipas de formação reuniam com os docentes, organizados em pequenos grupos (de não mais de 12), apresentavam e discutiam com os professores em formação as propostas de trabalho e os materiais construídos, refletindo sobre as metodologias de trabalho e as consequências das mesmas para a implementação das propostas. Finalmente, prestavam apoio aos professores, em contexto de sala de aula, na execução das propostas de trabalho construídas e amplamente discutidas nas reuniões. Cada professor envolvido na formação tinha a liberdade de adaptar à(s) sua(s) turma(s) a proposta construída pelo CEM, sendo essa adaptação apresentada e discutida com as equipas de formação. Os cenários de aprendizagem dos professores também tinham momentos de discussão e reflexão conjunta (professor, equipa formadora, restantes professores em formação) acerca da prática pedagógica resultante da implementação das propostas de trabalho na sala de aula. Os formandos tinham ainda de refletir sobre o processo e apresentar ao grupo de trabalho, com base em artigos científicos fornecidos pela equipa de formadores, diversas temáticas, como sejam, a avaliação das aprendizagens matemáticas e a comunicação matemática. Como estratégia complementar, os professores envolvidos no projeto dinamizavam, com o apoio da respetiva equipa formadora, seminários trimestrais nos estabelecimentos de ensino a que pertenciam, como meio de troca e partilha de experiências com os restantes colegas da escola. Dos cenários de aprendizagem criados para os docentes faziam também parte a análise e interpretação (por parte dos professores, apoiados pelas equipas de formação) dos documentos curriculares que foram emergindo ao longo de todos os anos de projeto. Este aspeto do trabalho é bastante apreciado pelos professores. A evolução do CEM Em 2006-2007, 57 professores do 3.º ano de escolaridade aderiram voluntariamente ao projeto. Em 2007-2008, entraram 119 novos professores, também do 3.º ano, e deu-se continuidade ao trabalho realizado com 49 dos docentes que integraram o projeto no ano anterior, na altura lecionando 4.º ano de escolaridade. Em 2008-2009, o projeto funcionou com 106 professores do 4.º ano (dos que tinham entrado para o projeto no ano antecedente) e entraram cerca de 100 novos professores do 3.º ano. Ainda em 2008-2009, foram preparadas propostas para o 1.º ano de escolaridade, disponibilizadas numa plataforma Moodle, introduzida nesse ano letivo como mais um meio de comunicação entre a equipa de formação e os professores em formação. A preparação das propostas para o 1.º ano foi a forma de garantir o elo de ligação aos professores que tinham terminado a formação presencial. No mesmo ano letivo, chegaram ao 2.º ciclo os primeiros alunos do projeto CEM. O CEM, para o 2.º ciclo do ensino básico (CEM2), surgiu como a continuidade natural e desejável a dar ao trabalho realizado por esses alunos no 1.º ciclo do ensino básico (CEB). Aderiram ao projeto 65 professores de matemática que estavam a lecionar ao 5.º ano de escolaridade e entraram para o projeto mais duas equipas de formação, cada uma delas constituída por duas professoras de matemática (uma do 2.º e outra do 3.º ciclo). Em 2009-2010, o projeto CEM (1.º ciclo) funcionou com cerca de 70 professores do 4.º ano. Foram preparadas propostas para o 2.º ano de escolaridade, disponibilizadas na plataforma Moodle. No CEM2, deu-se continuidade ao trabalho realizado no ano anterior com os professores de matemática do 5.º ano que se encontravam já a lecionar ao 6.º ano. Em 2010-2011, chegaram os primeiros alunos do projeto CEM (1.º e 2.º ciclos) ao 3.º ciclo. Assim, como forma de dar continuidade ao trabalho realizado nos ciclos anteriores, o projeto CEM estendeu-se ao 3.º ciclo do ensino básico (CEM3). Os objetivos do CEM3 são, basicamente, semelhantes aos que tínhamos para o 1.º e 2.º ciclos. Neste ano letivo, foi feita a generalização dos novos programas de matemática do ensino básico. Todo o trabalho desenvolvido teve em conta as orientações do novo programa, até então em experimentação. Iniciou-se o CEM3 com 56 professores do 7.º ano de escolaridade e com três formadoras licenciadas em matemática destacadas pela DRE. Entretanto, nesse ano letivo (2010-2011), a DRE quis alargar o projeto a um maior número de professores. Estreou-se assim uma nova modalidade do CEM para o 1.º CEB (CEM1): formação de formadores. As equipas do CEM1 prepararam 30 professores para fazerem formação a outros docentes por toda a RAM. Cada um destes formadores seria responsável por dinamizar a formação de um grupo de 12 professores. Esta modalidade perdeu a componente de trabalho conjunto na sala de aula. Seguiu-se um esquema semelhante para os professores do 5.º ano. 40 docentes das diferentes escolas da RAM receberam formação com a equipa do CEM2 e depois deram-na aos colegas da sua escola que lecionavam ao 5.º ano. Em 2011-2012, foram 48 os professores do 8.º ano que estiveram envolvidos na formação na sua modalidade original, sendo que muitos deles já tinham tido formação no âmbito do projeto CEM3 no ano anterior, quando lecionavam ao 7.º ano. Ao longo deste ano letivo, 19 professores do 1.º CEB receberam formação e replicaram-na a grupos de 12 professores. Também 33 professores do 6.º ano receberam formação e dinamizaram-na nas suas escolas para os colegas que lecionavam no mesmo ano de escolaridade. Em 2012-2013, o projeto CEM3 atingiu o último ano de escolaridade do 3.º ciclo, trabalhando na sua modalidade original (com acompanhamento na sala de aula). Foram 60 os professores do 9.º ano que frequentaram a formação. Para esse ano letivo (2012-2013), a DRE propôs que se adotasse uma metodologia semelhante à dos 1.º e 2.º ciclos para os 7.º e 8.º anos. Ou seja, professores dos 7.º e 8.º anos indicados pelas próprias escolas fariam formação com as equipas do CEM3 e depois dinamizariam a mesma formação nos seus estabelecimentos de ensino para os colegas que lecionavam ao 7.º ou 8.º ano, respetivamente. Mas esta formação para os 7.º e 8.º anos não teve o sucesso esperado, nomeadamente, devido à obrigatoriedade da mesma e à falta de critérios adequados para a seleção dos professores que iriam receber a formação com as equipas do CEM3 e replicá-la nas escolas. Em relação ao 1.º CEB, nesse ano, fez-se formação para todos professores da RAM que se encontravam a lecionar ao 4.º ano de escolaridade: 153 frequentaram essa formação. Note-se que muitos destes docentes já tinham frequentado o projeto CEM na sua modalidade original e, portanto, conheciam muito bem as metodologias de trabalho em questão. Este aspeto foi uma mais-valia para a formação e refletiu-se na profundidade das reflexões elaboradas pelos professores, quer sobre as propostas apresentadas, quer sobre a implementação das mesmas na sala de aula, e também no aproveitamento dos alunos. No que concerne ao 2.º CEB, no mesmo ano letivo, 26 professores do 5.º ano e 27 do 6.º ano participaram na formação. Muitos já tinham frequentado o CEM2 na sua modalidade original. Em 2013-2014, estando a DRE muito agradada com os resultados dos exames nacionais de matemática do ano anterior, solicitou novamente formação para todos os professores do 4.º ano da RAM e para os professores do 1.º e do 3.º (anos em que o novo programa de matemática, definido em 2013, estava a ser implementado). Iniciou-se com os professores destes 1.º e 3.º anos uma nova modalidade do CEM e apostou-se no b-learning, uma vez que muitos destes professores já tinham participado no projeto, numa das outras modalidades. No 2.º e 3.º ciclo, a formação foi para os professores que lecionavam aos 5.º e 7.º anos, respetivamente, uma vez que eram anos de implementação do novo programa de matemática (2013), como se disse. No 7.º ano, na modalidade original e no 5.º, sem acompanhamento na sala de aula. Os números do CEM  Ao longo destas linhas foi indicado o número de professores que participaram na formação do CEM nos três níveis de ensino. Quanto aos discentes, cada professor que participou no CEM tinha mais do que uma turma e terá trabalhado com uma metodologia semelhante nas várias turmas que tinha e pelas quais foi passando ao longo dos anos pós-projeto CEM. Não se consideram esses valores no quadro da fig. 1, mas somente o número de alunos no ano e turma com que o professor participou no projeto. Muitos destes discentes foram “alunos do CEM” durante diversos anos e ciclos de escolaridade. Também vários professores dos diferentes ciclos participaram no CEM durante vários anos. Ano letivo N.º de professores por ciclo N.º de alunos por ciclo 1.º  2.º 3.º 1.º 2.º 3.º 2006-2007 57 - - 1140 - - 2007-2008 168 - - 3360 - - 2008-2009 206 65 - 4012 1625 - 2009-2010 70 31 - 140 775 - 2010-2011 15 40 56 1920 1000 1046 2011-2012 19 33 48 2400 825 772 2012-2013 153 53 113 3060 1300 2418 2013-2014 235 36 29 4700 900 658 Fig. 1 – Quadro com o número de docentes e discentes que participaram no projeto CEM entre os anos letivos de 2006-2007 e 2013-2014. Os resultados do projeto CEM Os resultados obtidos são, em termos gerais, semelhantes para o CEM1 e para os CEM2 e CEM3. Podemos avaliar o projeto tendo em conta: as aprendizagens matemáticas dos alunos e as transformações nas práticas dos professores. Para avaliar as aprendizagens matemáticas dos alunos, temos disponíveis os seguintes elementos: resultados das provas de aferição e dos exames nacionais; observação do trabalho dos alunos aquando da participação das equipas de formação nas aulas dos professores em formação; partilha feita pelos professores nas reuniões quinzenais sobre o desempenho dos alunos nas aulas; inquéritos realizados aos alunos; portefólios elaborados pelos professores; múltiplas teses de mestrado realizadas na UMa. No que diz respeito aos resultados das provas de aferição dos alunos do projeto CEM1, CEM2 e CEM3, podemos constatar, ao longo dos anos, que estes são ligeiramente melhores do que os resultados globais dos alunos da RAM. A grande diferença está na ausência da classificação mais baixa (nível E) nos alunos do projeto e de uma percentagem maior de alunos com classificação superior (nível C). No ano 2012-2013, a média dos resultados dos exames nacionais dos alunos da RAM foi superior à média dos resultados dos exames nacionais dos alunos de Portugal continental. Da observação direta do trabalho dos alunos, denota-se aprendizagens significativas ao nível dos conteúdos matemáticos, maior interesse e empenho para com a aprendizagem da matemática, mudança de atitude em relação a esta disciplina, mais competência na resolução de problemas matemáticos e utilização da matemática de forma crítica. Os professores que recebem “os alunos do CEM” referem que estes aprenderam a discutir ideias matemáticas e a comunicar matematicamente, quer por escrito, quer oralmente; têm um forte poder de argumentação; sabem trabalhar cooperativamente, com materiais manipulativos e com software informático, mantendo uma postura crítica face à aprendizagem da matemática; têm muita facilidade em discutir estratégias e procedimentos, bem como em fundamentar as suas opiniões. Estes resultados são também corroborados pelos autores das várias teses e relatórios de mestrado em ensino da matemática no 3.º CEB e no secundário elaboradas na UMa, por professores que frequentaram o CEM. Para avaliar as transformações nas práticas dos professores, dispomos dos seguintes meios: reuniões quinzenais, idas às escolas, reflexões; planificação e execução das aulas, escolha dos materiais e seleção de estratégias; portefólios elaborados pelos docentes; inquéritos realizados aos mesmos; e a dissertação de doutoramento da Eva Gouveia. Da análise de todos estes instrumentos de avaliação podemos afirmar que houve mudanças ao nível dos conhecimentos científicos e didáticos dos professores envolvidos no projeto, visíveis através de um maior rigor científico-matemático e de uma maior necessidade de aprofundamento dos conhecimentos matemáticos. Houve também mudanças no que diz respeito à planificação e condução das aulas, bem como à reflexão que passaram a fazer sobre as aulas participadas. As planificações tornaram-se mais sistematizadas e fundamentadas; as aulas, menos expositivas e mais centradas no aluno; os conteúdos matemáticos, tratados com maior rigor científico; os professores, mais críticos em relação ao seu desempenho. No geral, ao final de um ano de projeto, a prática pedagógica dos professores envolvidos no mesmo sofreu transformações, quer na diversificação de estratégias, quer na crescente inclusão de materiais manipulativos nas suas planificações e nas suas práticas, bem como na segurança com que passaram a trabalhar a matemática. No que diz respeito ao trabalho cooperativo entre os docentes, houve alguns casos de sucesso, mas, de um modo geral, os professores ainda resistem ao trabalho cooperativo intra e inter escolas. As formadoras do projeto As formadoras do CEM são uma parte fundamental do projeto. Para que tudo decorra da melhor forma possível, quando em contacto direto com os professores em formação, é necessário um forte trabalho de bastidores que também merece ser destacado. Semanalmente, houve reuniões de trabalho entre as formadoras do projeto e a sua coordenadora. Foi nessas reuniões que se definiram ou redefiniram estratégias de trabalho, se discutiram as propostas apresentadas e debatidas com e pelos professores, e se consideraram artigos científicos sobre a aprendizagem da matemática, a avaliação das aprendizagens matemáticas, a utilização de materiais manipuláveis e softwares educativos e applets na aula de matemática, entre outros.   Elsa Fernandes (atualizado a 29.12.2016) 

Educação História da Educação

tetos de alfarge

Os tetos de alfarge ou de laçaria existentes na RAM constituem uma incontornável persistência do que terá sido uma rara e inovadora expressão artística de âmbito arquitetónico com forte componente estrutural experimentada em Portugal. O seu tempo áureo estará de forma muito particular ligado ao curto reinado de D. Manuel I (1496-1521), e a sua permanência enquanto processo construtivo terá superado as questões de estilo, ditado pelo gosto particular deste rei, resistindo inclusivamente ao seu desvanecimento e readaptando-se sem perder a sua identidade tecnológica. Importará, contudo, reter de forma breve os antecedentes que consubstanciaram este ciclo artístico. Desde logo o surgimento, difusão e persistência da cultura islâmica em Portugal continental. No último quartel do séc. XX, esta foi divulgada e contextualizada através do contributo científico da arqueologia, da antropologia e da história, entre outras disciplinas. A sua ligação aos califados da Andaluzia inscreve-a numa faixa territorial do Sul da Península em estreita ligação com o Norte de África e o Médio Oriente, em termos de ancestrais ligações culturais e religiosas, pelo que se perceciona uma vasta unidade sociocultural cujas naturais diferenças são articuladas por fatores de comunicação. Seria com estes territórios que as Ilhas Atlânticas, em particular a Ilha da Madeira, viriam a estabelecer, a partir do séc. XV, uma estreita relação comercial, política e cultural, na senda das ancestrais navegações que ousaram vencer as colunas de Hércules e prospetar as costas Norte e Sul do vasto Atlântico. O início do séc. XV inicia-se praticamente com a conquista cristã de algumas praças do Norte de África por parte dos portugueses, configurando-se uma nova realidade geoestratégica. Neste contexto, as descobertas da Ilha da Madeira e, de seguida, do arquipélago dos Açores favoreceram a construção de uma ideia de expansão, surgindo novos centros geográficos readaptados a entrepostos estratégicos. Os estreitos contactos com a cultura islâmica são, a partir de então, uma realidade incontornável, tanto em tempo de paz como de guerra, e mesmo quando em pleno reinado de D. João III (1522-1578) se percebe a impossibilidade de permanência em tantas praças africanas as trocas culturais já se terão consolidado de forma estruturada. O investigador Rui Carita, que dedicou especial atenção aos tetos mudéjares da Madeira, refere três potenciais razões para o facto de existir um tão forte e coeso núcleo destes tetos na ilha. A primeira relaciona-se com os contactos que teriam tido lugar no espaço continental até à fundação da nacionalidade, com presença de árabes e moçárabes, ou seja, cristãos submetidos à lei islâmica. A segunda liga-se à conquista de pontos estratégicos no Norte de África nos inícios do séc. XV, cuja cultura elegante e refinada observada nos palácios e casas nobres teria encantado alguns portugueses. A terceira relaciona-se com a subida ao trono de D. Manuel I, duque de Beja, que praticamente impôs o desenvolvimento e intensificação deste tipo de gosto de tradição islâmica a todo o país. Existem registos da admiração dos portugueses aquando da sua entrada nas residências de Ceuta, descrevendo Gomes Eanes de Azurara, cronista-mor, a perplexidade dos portugueses perante as “grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de desvairadas cores, e os tetos forrados de olival, com formosas açoteias cercadas de mármores muito alvos e polidos”. Acrescenta o cronista: “nós outros mesquinhos, que não temos outro repouso senão pobres casas que, em comparação destas, querem parecer choças de porcos.” (CARITA e CARDOSO, 1983, 23). O Arqt. Hélder Carita, na sua análise espaciotemporal de enquadramento da arquitetura portuguesa a propósito da Casa dos Bicos, sublinha a importância que os tetos de alfarge, conjuntamente com os azulejos, terão tido na distinção desta arquitetura quinhentista. Acompanhamos esta análise e interrogamo-nos se nesse período histórico de renovação e reabilitação da “arte” islâmica, agora numa prerrogativa mudéjar, não existiriam ainda vestígios significativos do palácio árabe, bem como de casas contíguas das famílias dominantes que terão sido apropriadas pela nova aristocracia católica sem procederem necessariamente ao seu desmonte. Coloca-se, assim, a questão de como terão sido esses interiores e, sobretudo, como terão enobrecido em função do enriquecimento dos seus proprietários. O processo acumulativo e/ou de ocultação é tradicionalmente uma constante, ao invés da demolição e integral substituição, pelo que consideramos a possibilidade de muitos dos tetos de alfarge terem permanecido até ao terramoto. Até 2015, não se conheciam testemunhos escritos sobre a existência desses tetos anteriores ou posteriores ao terramoto de 1755 e a outras calamidades. Apenas se conhecia a crónica de Fernão Silva, que terá contado com o testemunho do cruzado Osberno, na conquista de Lisboa: “Lanço estas regras ao papel já sob o teto mourisco de uma casa que pertenceu porventura a algum príncipe Sarraceno, ou onde um dia se albergou, recoberta de lhamas doiradas, a filha de qualquer capitão da Kssaba, ninho alto de pedras luminosas, esta hoje alcáçova cristã, onde, desde há horas, canta o imaginário Truão de Guimarães.” (ARAÚJO, 1993, 45). As identidades culturais ter-se-ão desenvolvido e apurado na continuidade de ciclos económicos estáveis, incorporando subtis inovações e mesmo eventuais ruturas que não apagaram necessariamente as anteriores, que persistiram em lentas transformações/adaptações. Os tetos de Alfarge, apesar da rutura cultural que aparentemente terão introduzido nos finais do séc. XV, terão reencontrado em Portugal um novo ciclo após a morte de D. Manuel I, precisamente o de simplificação resultante de um eficaz processo tecnológico a que estão associados. Tal facto será resultado de um certo contraciclo cultural imposto por D. João III, no qual a exuberância dá lugar a uma grande contenção formal, retirando do espaço arquitetónico o esplendor luminoso da arte manuelina e, por inerência, as referências luxuriantes de pendor islâmico/oriental. A historiografia, de um modo geral, não terá aprofundado a forma como a cultura andaluza terá sido influente e integrada na arquitetura portuguesa, talvez por nunca a ter considerado suficientemente relevante para a sua formação, filiando-a apenas na superficialidade decorativa e não na configuração arquitetónica, em particular na identidade espácio-funcional, de que destacamos a arquitetura civil, tanto no continente como nas regiões autónomas da Madeira e Açores. Para melhor nos enquadrarmos neste específico tema, importará desde logo registar o que determina o termo “alfarge”. A sua definição difere significativamente entre Portugal e Espanha. No país vizinho, é praticamente consensual para os investigadores que a palavra se reporta a um teto plano de onde se destacam as vigas transversais planas, por vezes com incisões ou arestas sutadas, sob as quais pousa o tabuado. Entre essas vigas é comum observar-se uma decoração designada de laço. Al-farx, em árabe, significará “cobrir com ornato”. Em Portugal, terá sido Joaquim de Vasconcelos, no Guia de Portugal (1983), quem identificou e caracterizou esses tetos hispano-mouriscos, designando o alfarge numa perspetiva mais abrangente ao associá-lo a outras formas artísticas ditas de alfarge. Contudo, o mais corrente na época era referir-se esses tetos como hispano-mouriscos, de laço ou carpintaria de laçaria em aproximação à designação espanhola. Segundo Joaquim de Vasconcelos o “lavor do alfarge ou almoçarabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a conquista árabe até ao primeiro terço do século XVIII” (VASCONCELOS, 1983, 38). Raul Proença, referindo-se a este autor, propôs: “que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço (em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicutado. A etimologia que se dava à palavra alfarge (...) era al-farash, que alguns traduziam por assoalhado” (PROENÇA, 1983, 38-39). Pedro Dias, na sua obra Arquitetura Mudéjar Portuguesa: Tentativa de Sistematização, incorpora de forma inovadora o mudejarismo na historiografia nacional. A contextualização das diferentes expressões artísticas no ambiente arquitetónico são agora parte integrante do processo e não simples revestimento ou adorno. No caso dos tetos, este autor, tal como Rui Carita, procura salientar a sua relevância na fábrica da arquitetura, revelando inclusivamente o importante carpinteiro da obra-mestra dos Paços de Sintra: “O carpinteiro João Cordeiro era ‘...mestre das ditas obras dos paços nos ditos Serviços e em fazer rosas para a Capela e Estrelas e Rezimbros para a dita Capela.’". Prossegue o autor com uma nota da maior relevância por ter data: "um documento mais antigo, datado de 1450, referente a um crime cometido em Évora por um jovem, alude a que este era bom carpinteiro ‘... de obra de laço e coisas subtis de carpintaria...’, o que a nosso ver, é uma alusão aos tetos mudéjares” (DIAS, 1994, 55). Esta datação revelará sobretudo uma prática conhecida e em uso no período do reinado de D. Manuel I, época em que esta arte atingiu o seu maior esplendor. Dos diversos núcleos que este autor reporta, apoiando-se no trabalho da historiadora Luísa Clode e especialmente na incisiva investigação de Rui Carita, destacamos o Mudéjar Madeirense. Rui Carita procurou identificar os tetos madeirenses numa perspetiva integradora da história da arte no contexto alargado, ou seja, para além do fenómeno regional. Neste sentido, considera que "teremos de filiar o conjunto de tetos mudéjares da Madeira no conjunto geral de trabalhos provenientes da área e dos artifícios de Sevilha, como foi entre nós o caso das importações de azulejos para a Sé, Santa Clara, Santa Cruz”. Dada a qualidade impar dos tetos da Sé, “efetivamente bastante acima de todos os outros exemplares, ainda se poderá avançar com a hipótese de se ter deslocado ao Funchal uma equipa específica para esse trabalho, em princípio, a mando de D. Manuel I e que localmente terá formado e divulgado este tipo de gosto" (CARITA, 1989, 180). Esta possibilidade não só nos parece verosímil como terá pelo menos potenciado o interesse por parte do corpo eclesiástico e da elite local em aceder a tão elaborada e nobre arte. De outro modo, como explicar a profusão destes tetos em igrejas, capelas e casas nobres madeirenses? Também o arquipélago dos Açores acolhe um importante núcleo de tetos de alfarge, muito embora os sucessivos terramotos e tremores de terra tenham destruído a sua grande parte. Importa contudo salientar que consideramos a possibilidade de nos Açores se ter edificado, no período filipino, um segundo ciclo de tetos de Alfarge, reconstruções e construção de novos por via da instalação de famílias castelhanas associadas ao tráfego comercial com a América Latina, situação que terá tido menor importância na Madeira. Do mesmo modo que se dá conta da existência de tetos de alfarge no Continente, anteriores ao período Manuelino, também nos parece plausível ter sucedido o mesmo na Madeira, com a particularidade de se ter estabelecido um roteiro marítimo estratégico com as Praças Africanas. São diversos os testemunhos que dão conta de se terem transportado dessas Praças diversos elementos estruturais e artísticos para Portugal, mas também para a Madeira, e, se os homens da elite portuguesa se deixaram deslumbrar pelo requinte e conforto dos cómodos da aristocracia muçulmana, de que se destacariam os tetos pela sua exuberância e influência nas espacialidades, com alguma probabilidade os mestres e artesãos que trabalharam nesses lugares terão percecionado e, quiçá, aprendido essas técnicas e efeitos artísticos, independentemente da sua condição sociorreligiosa. Cidades como o Funchal e Angra do Heroísmo, entre outras, terão recorrido a técnicos de elevada qualidade e experiência, a título individual ou integrados em contratos integrais de empreitadas de obras reais, da Igreja ou mesmo privadas, da aristocracia local, originando porventura uma continuada prática iniciada no séc. XV. Tais técnicos provavelmente terão origem na Andaluzia, nas Praças Africanas ou nas Ilhas Canárias, e terão sido os primeiros mestres de carpinteiros portugueses da carpintaria de laçaria. O forte núcleo de tetos de alfarge existentes na Madeira, bem como a sua qualidade, sugere que esta arte terá sido muito apreciada durante um largo período de tempo, mesmo depois de, no Continente, já se ter iniciado outro ciclo estético de tetos, o terá permitido a fixação de um número considerável de artífices e respetivos aprendizes. A Sé e a Alfandega distinguem-se precisamente pela magnificência dos tetos de alfarge, com especial relevância para a primeira, de que se destaca o excelente programa pictórico que cobre pranchas de forro, bem como traves, frisos e tirantes. Também no teto do coro alto do Convento de Santa Clara podemos observar uma elaborada pintura, reforçando a tese de que a Madeira terá tido um ciclo de grande erudição na construção de tetos de alfarge. Admitimos que as principais igrejas matrizes construídas ou renovadas neste período terão integrado estes tetos, que seguramente terão procurado distinguir-se entre si, ainda que mantendo a base canónica, principalmente por via da pintura e dos motivos geométricos da carpintaria, alguns notáveis. São exemplos as matrizes da Ponta do Sol, da Calheta e do Loreto. Ter-se-ão perdido o de Santa Cruz e o de Machico, como provavelmente os de outras igrejas desta época. Esta realidade será em tudo semelhante à identidade das capelas públicas e privadas, bem como das que terão sido instituídas por famílias da aristocracia nas comunidades de sua influência, integradas nos solares ou isoladas nas propriedades dos morgados. O seu isolamento e as partilhas conflituosas terão dificultado a sua manutenção, sobretudo a do património integrado e dos tetos de alfarge. As Capelas que mantiveram o teto de alfarge resumem-se à dos Reis Magos, na Calheta, à Capela da Glória, no Campanário, e à de São Paulo, na rua da Carreira, no Funchal. Esta última terá sido mandada construir pelo 1.º capitão donatário em 1426, em madeira, sendo apenas alterada para pedra e cal algumas décadas depois. Este teto de alfarge denota um certo “arcaísmo”, ou seja, a sua expressão revela um inusitado “experimentalismo”, quiçá por via de uma deficiente interpretação das formas, medidas e proporções canónicas. Admitimos estar na presença de um teto executado por uma “interpretação de memória” de alguém com uma prática e um saber insuficientes face ao que esta arte exige, provavelmente um aprendiz. Presumimos que terão existido outras capelas com tetos de alfarge, alguns tardios, que terão introduzido a sua “simplificação”, tal como, em idêntico período e processo, terá ocorrido com a arquitetura tradicional solarenga, de que a capela constituía uma parte indissociável. As denominadas casas de Quinta da tradição madeirense (que antecederam o período da renovação introduzido pelos ingleses no séc. XVIII) constituíram, durante séculos, a expressão da erudição da arquitetura solarenga na região. Salões, câmaras e capelas incorporavam, provavelmente, tetos de linhagem na arte do alfarge. Os pequenos mirantes, nalguns casos, refletiam também a memória do alfarge, como é o caso particular do teto do mirante e da casa de Dona Guiomar, posterior Quinta da Vigia, que foi remontado em 1770, embora já figurasse na planta de Mateus Fernandes de 1567/70. Cidades e Vilas exibiam Capelas como a de São Luís de França, na rua do Bispo no Funchal, e a Capela da Glória, no Campanário (Ribeira Brava), com localizações distintas: uma urbana, de identidade erudita, e outra rural, isolada. Em ambas, podemos observar a “memória” do alfarge na armação simplificada, despojadas de ornamentos geométricos ou de pinturas. Contudo, podemos observar, no caso de São Luís, as incisões do graminho nas traves, bem como a meia-cana no tabuado e sobretudo a passagem do ângulo dos planos inclinados com o “espaço de espera”, de transição, para o plano central. A Capela da Glória será o paradigma de tetos simplificados nesta tipologia, tal como o Solar Welsh (1685) em relação à arquitetura tradicional solarenga. Este pequeno teto apresenta uma armação simplificada, mantendo contudo a proporção dada pelo ângulo dos planos inclinados e, naturalmente, pela transição para o plano central, direito. Curiosamente, e apesar da sua reduzida dimensão, integra cantoneiras com apoios em tudo semelhantes aos que observamos na Ilha do Pico, nos Açores, especialmente o da Casa do Ouvidor, na estrada da Ribeira Seca, em São Roque. Esta “simplificação” dos tetos de alfarge em espaços religiosos surge também em algumas sacristias e/ou espaços de apoio e transição, como será o caso da sacristia do Convento de Santa Clara no Funchal, entre outras de ambos os arquipélagos. Nos Açores, registámos, em diferentes Ilhas, tetos de alfarge implantados em distintos programas tipológicos e em diferentes estados de originalidade e conservação. Contudo, os sucessivos terramotos, de que se destacam o de 1614 e o de 1 de janeiro de 1980, para nomear os mais aparentemente devastadores, terão contribuído para o seu quase total desaparecimento. Este último terá inclusivamente destruído um conjunto de tetos de alfarge que ainda persistiam, apesar de muito alterados, localizados nos grandes edifícios religiosos, como os da Sé de Angra e também dos principais edifícios governamentais, de que é exemplo o Palácio dos Capitães Generais, igualmente em Angra. Mas também conventos e outros edifícios de menor porte, de que destacamos solares, capelas e igrejas paroquiais, tiveram o mesmo infortúnio. Porém, permanecem ainda “memórias” em vários edifícios do núcleo histórico de Angra, destacando-se também um significativo número de tetos de alfarge de média e grande qualidade integrados em alguns dos principais solares da aristocracia terceirense. Destacamos, na Ilha Terceira e na cidade de Angra, as casas das famílias Reis Leite, Pamplona do Couto, Anes do Canto e Cortes Reais, bem como a casa urbana de D. Violante do Canto, posterior Sport Clube, que, com o sismo de 1980, viu o seu último piso derrocar, perdendo-se o teto que teria sido de alfarge, embora o Museu de Angra tivesse recolhido dois escudos de armas de famílias provavelmente com ligações espanholas. Para além destas casas nobres, assinalamos os tetos das casas onde se veio a situar a delegação de turismo. Fora de Angra, registamos o notável teto no solar conhecido como Quinta do Carvão no Caminho de Baixo, datado de 1634, os tetos de pequena dimensão da Quinta da Estrela ou os de quintas dispersas, como a de Santo António e do Espanhol, cuja tipologia de casa quadrada se distingue por ser única. Na Ilha Graciosa, em Santa Cruz, registamos a casa da família Brum do Canto, que, durante as obras de reabilitação, ao se derrubarem os tetos de estuque dos princípios do séc. XX, deixou expostos seis tetos de alfarge praticamente intactos que corresponderão ao modelo generalizado de tetos de alfarge simplificados que se terão vulgarizado nas casas solarengas dos Açores e da Madeira. No piso térreo, no átrio de entrada, o teto é de alfarge de “estrado”, apresentando os barrotes estruturais um conjunto de linhas incisivas e formando uma composição geométrica. Os guarda-pós laterais, ligeiramente inclinados, as meias-canas, que cobrem as juntas do forro, e um friso esculpido no perímetro da parede reforçam o desenho de alfarge. Dos três arquipélagos, serão as Canárias o núcleo mais dominante em termos de tetos de alfarge, quer pela quantidade, quer sobretudo pela diversidade de tipos e execução excecional. A sua forte ligação à Andaluzia através do porto de Sevilha terá sido determinante para o seu surgimento e implementação, pois terá sido de lá que partiu o maior número de arquitetos, mestres e artistas, havendo ainda, porém, a assinalar uma forte ligação à cultura portuguesa e, em particular, à muito apreciada classe profissional dos carpinteiros, nos primórdios do povoamento. Desde praticamente a ocupação das ilhas Canárias que aí se fixaram portugueses, provavelmente os seus primeiros “ocupantes”, para além da misteriosa população local conhecida por Guanches. Já sob domínio castelhano por força do Tratado de Tordesilhas, estes terão continuado a afluir, sendo as profissões de canteiros e carpinteiros as predominantes. Deste facto nos dá conta Maria del Carmen Fraga González em La Arquitetura Mudéjar en Canárias, onde identifica pelo nome e assinala a proveniência e a data da estadia destes profissionais através do respetivo registo notarial. Destacamos, entre um número considerável: “Alvaro Fernández. – Portugués, ‘estante’ en la isla de Tenerife, en 1508 cede, el 17 de octubre de 1508, a su compañero, también lusitano, Diego Alvarez la parte que le corresponde de trabajo y cobro en las casas de Guillén Castellano, en La Laguna [Álvaro Fernández. – Português, ‘fixado’ na ilha de Tenerife, em 1508 cede, a 17 de outubro de 1508, a seu companheiro, também lusitano, Diego Alvarez a parte que lhe corresponde de trabalho e ganho nas casas de Guillén Castellano, em La Laguna]” (FRAGA GONZÁLEZ, 1980, 46). Curiosamente, alguns traços da cultura arquitetónica portuguesa ter-se-ão enraizado neste arquipélago, como deste terão partido para os Açores e a Madeira, fenómeno perfeitamente natural num circuito regional de “torna-viagem” e, consequentemente, “torna-cultura” entre arquipélagos que iam adquirindo especificidades. Maria del Carmen González ilustra estas influências no livro citado, reforçando que existe um tipo de casas nas Canárias que caracteriza como “viviendas urbanas de influência portuguesa”, que “abundaban en Santa Cruz de la Palma en la segunda mitad del siglo XVI [habitações urbanas de influência portuguesa que abundavam em Santa Cruz de la Palma na segunda metade do séc. XVI]” (Id., Ibid., 71). Esta autora refere ainda outras influências dos portugueses, dando o exemplo da construção da porta da antiga sacristia da Paroquial del Realejo Bajo (Tenerife) executada pelos portugueses Duarte Báez e seu filho Simón Gómez, e continua reportando-se a Pérez Embib, que, no seu livro El Mudejarismo en la Arquitetura Portuguesa de la Época Manuelina, assegura: “conjuntos onubense y canário seria la influencia del morisco lusitano, que halla cumplida representación, en este sentido, en la Torre del Castillo de Alvito, la Quinta ‘Sempre Noiva’ en Arraiolos, etc. [conjuntos onubense e canário seria influência do mourisco lusitano, que encontra representação definitiva, neste sentido, na Torre do Castelo de Alvito, na Quinta ‘Sempre Noiva’ de Arraiolos, etc.]” (Id., Ibid., 75). Fica-nos como reflexão que artistas, artífices e arquitetos transitavam entre países, bem como entre novas realidades geográficas que se iniciaram nos arquipélagos atlânticos, para continuarem por outras e longínquas paragens, com especial relevo para o mundo ibero-americano, onde se destacam o Brasil, Cuba, o México, a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Esta realidade vem sobretudo reforçar a tese de que a arte mudéjar é um fenómeno hispânico. Para Enrique Nuere Matauco, dever-se-ão investigar estas ligações: “El estudo de nuestra carpentería debería extenderse a todo lo realizado en América, fundamentalmente por carpinteros salidos de España. También será muy interesante estudar la carpintaría portuguesa, con sus similitudes y discrepancias [O estudo da nossa carpintaria deveria alargar-se a tudo o que foi feito na América, essencialmente por carpinteiros idos de Espanha. Também será muito interessante estudar a carpintaria portuguesa, com as suas semelhanças e discrepâncias]” (NUERE MATAUCO, 2000, 18). O caminho que Portugal traçou no Brasil, em África ou no Oriente não terá, pois, despertado o mesmo interesse que nos territórios hispânicos no que respeita aos tetos de alfarge, mantendo-se, no entanto, em algumas vilas e cidades, parte desta gramática mudéjar associada às carpintarias que atrás reportámos. Como já referimos, a maioria dos tetos de alfarge que identificámos em território português integra-se numa armação simples, abatida à “maneira portuguesa”, provocando um abatimento do ângulo de inclinação e baixando a zona central denominada, em Espanha, almizate (“plano sob as tesouras”). Supomos que esta realidade esteja associada a uma certa simplificação do alfarge em Portugal. Em Espanha, o ângulo de elevação da cobertura parece-nos maior, empinando um pouco mais a respetiva cobertura, em virtude do ângulo estabelecido pelos pares, como se pode verificar no exemplo da Igreja do Convento de São Francisco, em Ayamonte. Estes tetos seguem a tratadística da carpintaria de alfarge espanhola. Em Portugal, o alfarge corrente, associado à casa, parece ter sido assimilado pela proporção dos telhados abatidos portugueses, não se distinguindo de forma evidente dos de origem hispânica. No entanto, importa registar que alguns tetos, nomeadamente de alguns palácios e igrejas portugueses, aparentemente terão seguido regras distintas, aproximando-se de outros de possíveis origens filiadas nas coberturas quase verticais góticas, como as coberturas múltiplas das grandes mesquitas peninsulares ou, ainda, como as coberturas dos palácios compactos, com pátio-claustro, da Andaluzia. Serão casos específicos com essa linhagem os Paços Reais de Coimbra e Sintra e das grandes naves da Sé do Funchal e das Matrizes de Caminha, Ponta do Sol e Calheta, entre outros. De um modo geral, no caso dos solares e pequenos templos, os tetos de alfarge em Portugal, incluindo os da Ilha da Madeira e dos Açores, estarão relacionados com a métrica dos telhados abatidos. Naturalmente que a complexidade de um teto de alfarge, ou de um teto de um telhado de tesouro(a), nada terá de semelhante a uma armação comum. Contudo, se nos abstrairmos da complexidade do alfarge, sobretudo das figuras geométricas decorativas localizadas no núcleo central horizontal (almizate), constatamos que se suprimiram as peças de transição nos quatro ângulos e de descarga para o frechal, razão principal para confirmarmos a simplificação do sistema. Consideramos que estas armações se inscrevem na genealogia da arquitetura tradicional mudéjar portuguesa e que terão na sua filiação múltiplos “contágios” resultantes da continuidade de diversas práticas construtivas de armações comuns. Por vezes, o que verificamos é a separação da armação do telhado, enquanto suporte de telha da armação do teto de alfarge, embora nalguns casos, e inclusivamente no plano geométrico, sejam quase coincidentes, como podemos observar no Palácio de Valeflores, em Santa Iria da Azóia, onde as varas são toscas e o varedo sem forro suporta a telha-vã, enquanto a armação de alfarge apresenta o rigor do cânone tanto nas secções e acabamentos como nas assemblagens dos motivos geométricos. Podemos observar uma situação semelhante na ilha da Madeira, em construções torreadas como a armação do Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, no Caniço, ou a armação quadrangular do teto da pequena Capela do Claustro do Convento de Santa Clara, no Funchal. Numa seleção de exemplos mais eruditos, em termos de tetos de alfarge, anotamos também os mais simples, nos quais a armação do teto e do telhado é coincidente, como o da Capela dos Reis Magos, no Estreito da Calheta, o do Salão Nobre da Misericórdia de Santa Cruz ou ainda o da Capela da Glória no Campanário; e, no caso das casas, assinalamos o teto simplificado do Solar Welsh, na Madeira, e a Casa Brum do Canto, na Graciosa, nos Açores. Retomando os tetos de alfarge em Portugal, diríamos que estes terão evoluído para uma simplificação dos processos construtivos relacionados com a complexidade dos motivos geométricos, o que se denomina por laçaria, em associação com as armações de suporte do telhado. As nossas observações levam-nos a supor que as armações dos tetos de alfarge se terão assim simplificado, sem perder, contudo, as regras de proporção, ou seja, a base do “cânone” imposto pelo processo construtivo e tecnológico e pela “memória” do geometrismo dado pela laçaria, enquanto métrica construtiva, resumindo-se agora ao “troço de espera” entre o plano inclinado (pano) e o plano horizontal (almizate). Os tetos comuns da arquitetura tradicional madeirense que observámos, principalmente no âmbito da arquitetura tradicional, mas também erudita, são compostos por uma sucessão de vigas de secção quadrangular denominados correntemente “varas” (no alfarge, serão os nodilhos), dispostas a partir do frechal até à linha e sobre as quais se aplica o forro, completam-se com os tirantes altos, ou tesouras (no alfarge, serão os pares), e os triângulos, ou tirantes de canto (no alfarge, serão os quadrais). Simples incisões de linhas retas nos bordos das varas dos tirantes/tesouras e nos tirantes de canto serão ainda a memória da laçaria (linhas obtidas através do graminho). O guarda-pó entre varas é constituído por tábuas inclinadas e integradas por rasgos verticais nas faces laterais das varas. Junto ao frechal, ligeiramente elevado para formar uma linha de composição, instala-se o friso de madeira trabalhado em cordão ou simples, definindo este o fim da parede e o início do teto. Por vezes, e em alternativa, recorre-se a uma ripa de meia-cana pregada às juntas do forro entre as varas de construções mais correntes, quer urbanas quer rurais. Todos estes elementos são as “memórias” que permaneceram do alfarge “canónico”, numa nova simplificada identidade filiada nos padrões ancestrais. Alguns destes procedimentos de simplificação já teriam, em parte, sido subtilmente integrados em tetos completos que terão iniciado a transição para a simplificação através de uma “matriz portuguesa”. Entre diversos exemplos, destacamos o teto de alfarge do coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal. A carpintaria desenvolvida a partir dos tetos de alfarge, nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde se terá efetuado um último estágio de simplificação, ter-se-á “propagado” nas arquiteturas das cidades portuguesas do espaço ultramarino. A sua influência terá perdurado durante séculos, não só na sua expressão erudita, mas sobretudo no domínio completo de uma arte que também produzia mobiliário, portas, janelas, varandas, proteções de vãos conventuais em reixa e muxarabis. Uma continuada linhagem de famílias de carpinteiros terá assegurado o saber coevo que se escalonava em aprendiz, oficial e mestre, categorias que chegaram ainda ao séc. XX. Esta terá sido uma das profissões mais valorizadas ao longo dos séculos. A ilha da Madeira, detentora de uma densa floresta rica em madeiras de todo o tipo, cedo terá beneficiado de licenças régias, atribuídas pelos capitães donatários para a construção de serras de água, realidade também comum aos Açores. Nascia assim uma outra linhagem de artesãos, os serradores, que forneciam a madeira em prancha ou em viga, segundo medidas-padrão controladas pelo grémio dos carpinteiros e confirmadas administrativamente por posturas municipais com os respetivos «livros dos regimentos oficiais mecânicos». As medidas eram então em palmos, pés, varas, tosas, provavelmente em tudo idênticas às praticadas no arquipélago das Canárias, que acolheu diversos carpinteiros provenientes da ilha da Madeira, estabelecendo uma relação inter-arquipélagos. Observamos a constância das secções e dos comprimentos das madeiras que compõem as armações, denotando uma assinalável regularidade própria de um fornecimento padronizado de madeiramentos, que, talvez por conveniência de transporte e otimização de paus, no corte na floresta e na serração, se mantinham dentro de medidas padrão para todos os componentes de uma armação mas também por ser mais fácil comercializar e tributar um produto padronizado. Uma das particularidades das armações de alfarge é precisamente a regularidade e rigor das peças que formam um intrincado e eficaz sistema estrutural. A qualidade tecnológica constitui, para além da expressão artística, a sua identidade, a sua distinção, sobretudo por possibilitar superar grandes vãos, mantendo secções esbeltas dos madeiramentos. Desafortunadamente, as casas madeirenses que incorporaram tetos de alfarge terão sido as que menos resistiram ao passar dos séculos. Chegaram-nos fotografias do Solar de Dona Mécia e da casa nobre dos Herédia, e pouco mais, mas seguramente muitos outros terão acolhido salas e câmaras de solares e mesmo de pequenas casas solarengas, muitas delas denotando armações simplificadas de alfarge. António Aragão revelou a nobreza das casas das famílias nobres, nacionais e estrangeiras, que se estabeleceram na Rua dos Mercadores e que terão incorporado nos seus confortáveis aposentos a expressão cultural das famílias originárias de Génova, da Flandres, da Andaluzia e das vizinhas Canárias, entre outras. A casa conhecida como de Colombo, construída ainda no séc. XV, poderá ter sido um dos exemplos. Pela qualidade dos seus vãos de cantaria, denota ter sido uma casa de grande riqueza. As suas câmaras terão provavelmente tido um ou mais salões com armação de alfarge integrados, tal como outros motivos decorativos associados ao mudejarismo, como os tradicionais azulejos hispano-árabes e os pavimentos de tijoleira. Para além das casas urbanas, registamos também algumas casas nobres rurais, como os Solares do Esmeraldo, na Ponta do Sol, ou a Quinta do Morgado, no Arco da Calheta, bem como algumas casas solarengas da nobreza de S. Jorge, na costa Norte, que terão tido provavelmente alguns tetos que se filiavam nas técnicas construtivas dos tetos de alfarge, ainda que com uma grande probabilidade de serem simplificados. Nesse tempo histórico, quase todas estas casas teriam tido, direta ou indiretamente, uma intensa ligação ao comércio marítimo, estabelecendo-se, nesse sentido, relações culturais e político-económicas entre os arquipélagos atlânticos e a Andaluzia, bem como outros territórios. Formou-se, assim, uma comunidade recetora e difusora que, de Portugal e Espanha e respetivos arquipélagos atlânticos, alargou a sua geografia de influência para os territórios ibero-americanos. Através da sua observação in situ, e numa análise comparativa, compreenderemos melhor o fenómeno da sua dispersão e permanência nesses territórios, bem como o seu continuado trânsito em torna-viagem e respetivas transferências. Ao contrário das Ilhas Canárias e de uma parte significativa do mundo hispânico na América, em que esses tetos não só permaneceram como se manteve a arte e a técnica da sua construção durante séculos, na ilha da Madeira tal não ocorreu. A renovação do gosto e a perda da tradição desta carpintaria específica fizeram com que se tivesse perdido grande parte destes tetos. Nalguns casos, o fogo terá sido a sua principal causa de desaparecimento. Desse facto nos dá conta António Aragão, ao relatar o grande fogo ocorrido em 26 de julho de 1593, que terá consumido, em 4 h, 154 casas: “moradas de casas, as melhores e mais principais de toda a cidade” (ARAGÃO, 1979, 175). Infelizmente, assim sucedeu, em pleno séc. XX (1957), com o Solar de Dona Mécia, datado no lintel da porta exterior de 1606, mas aparecendo já na planta de 1567/70, pelo que deve ter sido levantado, dadas as armas que ostenta, por João de Ornelas de Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal. Um outro solar, este de grandes dimensões, terá igualmente perdido os seus tetos, com grande probabilidade, no séc. XX. Reportamo-nos ao Solar da Quinta da Lombada na Ponta do Sol, residência do fidalgo flamengo João Esmeraldo, que o ampliou e enobreceu em 1493, após aquisição a Rui Gonçalves da Câmara, filho do 1.º capitão donatário Gonçalves Zarco, e que, seguramente, teria tido tetos de alfarge. João Esmeraldo construiu quase em simultâneo, mais precisamente em 1495, uma casa no Funchal, a que já nos reportámos como sendo a Casa de Colombo, que foi demolida. O seu construtor foi identificado pelo historiador António Aragão (ARAGÃO, 1979, 114) como tendo sido Garcia Gomes, pedreiro. A sua qualidade arquitetónica e a condição social do seu proprietário levam-nos à possibilidade de aquela ter tido teto(s) de alfarge, tal como os teriam a do mercador castelhano João de Valdavesso e a de Francisco de Salamanca, ambas no Funchal, que eram, segundo António Aragão, “ricas casas e aposentos” (Id., Ibid., 114). Outras causas estarão relacionadas com a perda destas casas, em particular a grande mobilidade da sociedade madeirense e, sobretudo, os grandes aluviões, sendo de especial gravidade o que ocorreu em 1803. Estas calamidades cíclicas ocorreram em praticamente todas as cidades ribeirinhas, desde logo no Funchal, mas também em Santa Cruz, Machico, Ponta do Sol, Calheta ou mesmo São Jorge, e noutras localidades de menor dimensão na costa Norte. Estas levaram seguramente para o mar partes significativas destas urbanidades e com elas edifícios religiosos e da nobreza que ocupavam os melhores terrenos planos. Como exemplo, entre tantos, referimos o claustro e respetivas dependências do Convento de São Bernardinho em Câmara de Lobos. Registamos ainda o forte tremor de terra de 1748, que danificou muitas igrejas e terá destruído muitas construções. Parece-nos possível que esta arte se tenha prolongado durante todo o séc. XVI em ambos os arquipélagos (Madeira e Açores) e, apesar das calamidades e do abandono da sua reparação e conservação, um novo incremento terá ocorrido durante o séc. XVII devido, provavelmente, à ocupação filipina, particularmente nos Açores. Contudo, consideramos que as sucessivas simplificações se terão iniciado ainda em finais do séc. XVI, mantendo-se assim os indispensáveis conhecimentos para o seu (hipotético) recrudescimento no referido período filipino, com recurso a mestres locais, e reintroduzindo-se a arte com o reforço de artífices recrutados nas colónias espanholas e/ou nas Canárias, onde tal arte se terá mantido coerente até praticamente aos finais do séc. XIX. Registamos ainda a inesperada (re)construção de um conjunto de tetos de alfarge no Solar dos Herédia, erigido nos finais do século XVIII na Vila da Ribeira Brava, na Madeira, posteriores Paços do Concelho. Esta família, há muito radicada na região, provavelmente reconstruiu este solar recuperando os tetos de uma anterior casa. Fica, no entanto, a dúvida sobre se estes tetos serão integralmente originais do séc. XVI, altura em que esta família de origem castelhana se radicou na Madeira, e, naturalmente, se os seus autores teriam sido igualmente oriundos de Castela, tal como seria interessante saber se teriam sido os mesmos a integrarem uma potencial campanha de obras de melhoramentos da casa de Dona Mécia, no Funchal. A coerência das armações simples à vista que observámos na arquitetura tradicional rural e urbana (aldeias e vilas) em todo o território português, com particular incidência nas Ilhas Atlânticas, parece-nos resultar de uma prática ancestral, aplicada sobretudo nas casas de “transição” social, ou de tipologia de sobrado, ainda que por vezes de piso térreo, mas de “volume expressivo”. Parte significativa da identidade tipológica das casas a que nos reportamos será consequência da tradição do alfarge e da identidade mudéjar associada, introduzida no séc. XVI em Portugal, ainda que esta, na realidade, já se tivesse enraizado discretamente nos séculos anteriores.   Victor Mestre (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património