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sociedade de desenvolvimento da madeira

A constituição da sociedade concessionária da administração e exploração da Zona Franca da Madeira (ZFM), o Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), inscreveu-se no quadro da Convenção de Quioto de 1973, que admite a gestão de zonas francas por autoridades públicas ou por pessoas singulares ou coletivas. Para esse efeito, a Região Autónoma da Madeira (RAM) assinou, em 1984, em Nova Iorque, um protocolo com a Pelican Finance Corporation, a qual se comprometeu a constituir a Madeira Investment Company como veículo para um investimento até 20 milhões de dólares na ZFM, enquanto sócia da sociedade a constituir em parceria com a RAM, ficando estipulado que a RAM deteria 25 % do capital social, com direitos especiais de voto. No desenvolvimento e aprofundamento do protocolo foi constituída a Sociedade de Desenvolvimento da Madeira (SDM), em cerimónia decorrida a 30 de novembro de 1984 na Quinta Vigia, sede da Presidência do Governo Regional da Madeira (GRM), com a intervenção do notário privativo do Governo. Em 1986, a Assembleia Regional da Madeira autorizou o GRM a adjudicar a administração e exploração da ZFM em regime de concessão de serviço público, o que veio a acontecer em 1987. Nesse ano, a SDM transformou-se em sociedade anónima e o capital social detido pela Madeira Investment Company foi adquirido pelo empresário madeirense Dionísio Pestana. A opção por uma gestão em moldes empresariais privados derivou não só da aplicação dos princípios de simplificação e desburocratização administrativas, com reconhecimento da detenção de know-how por parte da concessionária, mas também da conveniência e vantagem de a interlocução com o mundo empresarial ser assegurada num plano e registo de igual natureza e pulsação. A concessão foi adjudicada por um prazo de 30 anos, sem prejuízo da sua renovação ou prorrogação. No exercício das suas competências, por força da lei e do contrato de concessão, a SDM procedeu à construção das infraestruturas internas da Zona Franca Industrial (ZFI), cabendo ao GRM adquirir os imóveis, que permanecem na sua titularidade, necessários à instalação da ZFI e assegurar o abastecimento dos serviços básicos até ao perímetro da ZFM. Após a celebração do contrato de concessão, a SDM iniciou a atividade concessionada e, em 1989, procedeu à primeira ação promocional do CINM, através de um seminário realizado na Law Society, na cidade de Londres, dando, assim, o primeiro passo formal para a promoção da Madeira em mercados onde o seu nome era desconhecido na sua qualidade de centro internacional de negócios. Esse trabalho foi desenvolvido por meio de seminários, de conferências, de reuniões com instituições, de empresários e escritórios de advogados, de auditores e consultores económicos e financeiros em todos os continentes, como também mediante uma rede de correspondentes e representantes contratados para o efeito pela SDM. Em 2012, a Assembleia Legislativa da Madeira, a propósito do processo de revisão dos limites máximos aos benefícios fiscais (plafonds), reconheceu o trabalho da SDM, numa resolução tomada sem votos contra e com os votos favoráveis dos três partidos do arco governamental (PSD, CDS e PS), considerando que a promoção efetuada era tão difícil como eficaz, tão complexa como eficiente e persistente. Além destas competências, a concessionária tem, ainda, a faculdade de emitir uma pronúncia sobre o mérito das candidaturas ao licenciamento de atividades, com emissão, por delegação de poderes, da respetiva licença, de aprovar os projetos de instalação, com emissão de licença de construção, das empresas na ZFI e de fiscalizar o exercício das atividades pelas entidades licenciadas. Para além das obrigações legais e contratuais, a concessionária, com o estatuto de parceiro institucional do Governo da República e do Governo Regional, participa, desde sempre, no processo de produção legislativa e de solução de questões emergentes, nas negociações dos regimes fiscais do CINM junto da Comissão Europeia, bem como na modelação inicial dos tratados, para evitar a dupla tributação, e ainda no Código de Conduta para a Fiscalidade das Empresas, no âmbito da União Europeia, e no Fórum para as práticas fiscais prejudiciais, que foi encetado no contexto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. A concessionária permitiu ao erário público, inclusivamente, a existência de um regime flexível e exequível de cobrança das taxas de instalação e anuais de funcionamento, pagas pelas empresas licenciadas no CINM, recebendo a RAM uma percentagem das mesmas, assim como a usufruição de dividendos, enquanto acionista da concessionária.   José António Câmara (atualizado a 31.12.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

silbert, albert

Historiador francês, nascido em 1915, que desenvolveu de forma pioneira vários estudos sobre a história contemporânea de Portugal, a qual teve uma destacada importância na nova geração de historiadores portugueses que despontaram nas décs. de 60 e 70, como foi o caso de Miriam Halpern Pereira. Nesta fase, há uma grande ligação da história das ilhas e do mundo atlântico à historiografia francesa. Desde o pioneiro estudo de Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II (1949), que, às ilhas, foi atribuída uma posição-chave na vida do oceano Atlântico e do litoral dos continentes. Foram, na verdade, os franceses que, a partir dos anos 40, deram um impulso decisivo à história do espaço atlântico. Segundo Pierre Chaunu, foi ativa a intervenção dos arquipélagos da Madeira, das Canárias e dos Açores – o “Mediterrâneo Atlântico” – na economia europeia dos sécs. XV a XVII. Para além desta valorização do espaço atlântico, temos uma chamada de atenção para os estudos de história contemporânea, em que a figura de Albert Silbert foi central com as suas teses de 1966: a dissertação complementar sobre Le Problème Agraire Portugais des Temps des Premières Cortes Libérales (publicada em 1968) e a tese sobre Le Portugal Mediterranée a la Fin de l'Ancien Régime (publicado em 1978). A ligação de Albert Silbert à Madeira começou já em 1949, através da apresentação do trabalho de Orlando Ribeiro no Congresso Internacional de Geografia, realizado em Lisboa. É na sequência disso que apresenta, em 1954, ano em que publica o seu ensaio sobre a Madeira, uma breve nota sobre a publicação de Orlando Ribeiro, dando a entender a sua passagem pelo Funchal no intervalo de tempo que medeia o congresso e a publicação do texto nos Annales. O presente ensaio, que cobre o período de 1640 a 1820, pretende clarificar o papel da Madeira no emaranhado de relações que se estabelecem no espaço atlântico. O ponto de partida, tal como o autor refere, são os relatórios dos cônsules franceses, aos quais junta dados de documentos do Arquivo Histórico Ultramarino e do British Museum. A documentação do consulado reporta-se ao período de 1671 a 1793 e revela-se fundamental para saber dos interesses franceses nestas paragens. O estudo, embora hoje em dia seja visto com algumas reticências por certos historiadores e estudiosos madeirenses, continua a ser uma referência no âmbito dos trabalhos que envolvem, de forma clara, a Madeira nos mundos gerados pelo oceano atlântico a partir do séc. XVII, nos quais se articulam várias formas de expressão do poder do mar e dos impérios. Em 1954, a propósito da intervenção de Orlando Ribeiro no Congrès International de Géographie de 1949 sobre a Madeira e da publicação que se lhe seguiu em livro, aproveita para fazer um breve apontamento sobre a Ilha, destacando múltiplos aspetos relativos ao turismo e à história. Assim, nos Annales, considera que “a sua reputação de paraíso terrestre parece merecida”, concluindo que “a Madeira, ilha atlântica, deve tudo à circulação oceânica. As produções da ilha não suscitaram o tráfego deste espaço, antes foi o tráfego atlântico que fez a Madeira, foi ele que, em particular, permitiu o desenvolvimento da vinha” (SILBERT, 1954, 516). Atente-se que esta informação é depois utilizada no artigo que fez publicar sobre a Madeira nos referidos anais do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Não podemos esquecer que foi ele quem abriu as portas da investigação sobre a ilha a outro francês, Frederic Mauro, que, na déc. de 60, volta a seguir os mesmos caminhos de valorização da Madeira no espaço atlântico, mas, desta feita, escudado com a documentação disponível nos arquivos locais. Por força da criação do arquivo distrital em 1949, esta oferecia aos investigadores nacionais e estrangeiros um campo de investigação inexplorado que, felizmente, mereceu os estudos que conhecemos. Obras de Albert Silbert: Le Problème Agraire Portugais des Temps des Premières Cortes Libérales (1968); Le Portugal Mediterranée a la Fin de l'Ancien Régime (1978).       Alberto Vieira (atualizado a 30.12.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional História da Educação

segurança social

De acordo com a Lei de Bases da Segurança Social (LBSS), lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, o sistema de Segurança Social português encontra-se estruturado em três sistemas: o sistema de proteção social de cidadania (que se decompõe nos subsistemas de ação social, de solidariedade e familiar), o sistema previdencial e o sistema complementar. O sistema de proteção social de cidadania tem por objetivos garantir direitos básicos dos cidadãos e a igualdade de oportunidades, bem como promover o bem-estar e a coesão sociais. Ele inclui, em primeiro lugar, o subsistema de ação social, cujos objetivos centrais são os da reparação e prevenção de situações de carência e desigualdade socioeconómica, de dependência, de disfunção e de vulnerabilidade sociais, designadamente de crianças, jovens, pessoas com deficiência e idosas, bem como a integração e promoção comunitárias das pessoas e o desenvolvimento das respetivas capacidades. A sua concretização faz-se sobretudo mediante o desenvolvimento de um conjunto de serviços e equipamentos sociais, bem como de programas de combate à pobreza, disfunção e marginalização sociais. Em segundo lugar, o sistema de proteção social de cidadania integra o subsistema de solidariedade, que visa assegurar, a partir de um princípio de solidariedade nacional, direitos essenciais de forma a prevenir e erradicar as situações de pobreza e exclusão, e garantir prestações em situações de comprovada necessidade pessoal ou familiar, não incluídas no sistema previdencial. E, de facto, este subsistema garante a atribuição aos beneficiários, desde que cumprindo condições de residência e de recursos, de prestações de carácter não contributivo, num conjunto de eventualidades sociais, a saber: falta ou insuficiência de recursos económicos dos indivíduos e dos agregados familiares, invalidez, velhice e morte, e situações de insuficiência dos rendimentos de trabalho ou da carreira contributiva dos beneficiários. Das prestações deste subsistema (que grosso modo equivale ao anterior regime não contributivo), destacam-se três: as pensões sociais (de velhice e invalidez); o Rendimento Social de Inserção (constante da lei n.º 13/2003, de 21 de maio, alterada); e os complementos sociais, estes destinados a completar o valor da pensão estatutária quando este se situe abaixo do valor fixado para a pensão mínima do regime geral da Segurança Social. Finalmente, o sistema de proteção social de cidadania integra ainda o subsistema de proteção familiar, que tem por objetivo assegurar a compensação de encargos familiares, garantindo o pagamento de prestações nesta eventualidade (v.g., abono de família, cujo regime consta da conjugação de vários diplomas: dec.-lei n.º 176/2003, de 2 de agosto, alterado, dec-lei n.º 70/2010, de 16 de junho, alterado, dec.-lei n.º 77/2010, de 16 de junho e dec.-lei n.º 116/2010, de 22 de outubro) e, bem assim, nas situações de dependência e de deficiência. O sistema previdencial visa garantir, na base de um princípio de solidariedade de base laboral, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas (doença, parentalidade, desemprego, acidentes de trabalho e doenças profissionais, invalidez, velhice e morte). Voltaremos a este sistema, mais à frente. Por último, o sistema complementar, marcado pela sua natureza facultativa, concretiza-se num regime público de capitalização e em regimes complementares de iniciativa coletiva e individual. O regime público de capitalização foi uma novidade da LBSS (art. 82.º). Tratou-se de instituir, numa base facultativa (a adesão por parte dos contribuintes/beneficiários da Segurança Social é voluntária), um esquema complementar de reforma que, em contrapartida das contribuições adicionais feitas pelo subscritor, concede, logo que verificados os requisitos de acesso mormente quanto à idade de acesso à pensão, complementos de reforma, sob a forma de pagamentos únicos (devolução integral do capital aplicado mais rendibilidade) ou de rendas vitalícias. As taxas contributivas a pagar, a incidir sobre o valor de remuneração referente, resultam de uma opção do subscritor, entre três hipóteses: 2 %, 4 % ou 6 %. O regime público de capitalização foi efetivamente instituído e regulamentado com a aprovação do dec.--lei n.º 26/2008, de 22 de fevereiro, que regulou ainda o respetivo Fundo de Certificados de Reforma. A esta diferença de estrutura no sistema da Segurança Social correspondem formas diferentes de financiamento. Por força do princípio da adequação seletiva (art. 89.º da LBSS), enquanto o sistema de proteção social de cidadania é financiado através de transferências do Orçamento do Estado (OE) para o orçamento da Segurança Social ou pela consignação de receitas fiscais (fundamentalmente o chamado IVA social), o sistema previdencial financia-se a partir de contribuições sociais (vide também art. 90.º da LBSS, desenvolvido pelo dec.-lei n.º 367/2007, de 2 de novembro, o qual concretiza as formas de financiamento da Segurança Social). Pela sua razão de ser histórica e utilidade – a necessidade de garantir que o Estado cumpra a suas responsabilidades em matéria de financiamento das áreas não contributivas da Segurança Social –, poder-se-á afirmar que o princípio da adequação seletiva tem um significado unidirecional. Quer isto dizer que, se é certo que ele pretende evitar que as contribuições sociais (fonte de financiamento primacial das prestações garantidas no sistema previdencial) sejam desviadas para financiar as despesas com as prestações de natureza não contributiva e assentes num princípio de solidariedade nacional (é o caso das prestações e apoios na área da Ação Social e do subsistema de solidariedade), já a inversa é questionável. Pois que, se é verdade que o n.º 1 do art. 90.º da LBSS manda financiar o sistema de proteção social de cidadania por transferências do OE e por consignação de receitas fiscais, isso não quer (não pode) significar que estas mesmas fontes de financiamento não possam ser utilizadas para financiar o sistema previdencial, especialmente se e quando a situação financeira deste o reclamar. Defender o contrário significaria aceitar que o Estado, enquanto tal, se mantivesse totalmente alheio e não responsável perante a proteção social garantida no sistema previdencial (que é um sistema público) – i.e., perante a proteção na ocorrência dos riscos sociais –, designadamente em situações de dificuldade financeira ou de défice deste. Esta possibilidade é aceite no dec.-lei n.º 367/2007, o qual prevê, de forma expressa que, sem prejuízo das receitas próprias do sistema previdencial (elencadas no n.º 1 do art. 14.º), possam ser efetuadas, em favor deste sistema, transferências do OE, sempre que a sua situação financeira o justifique (cf. n.º 3). Este mesmo dec.-lei, concretizando o disposto no art. 91.º da LBSS, estabelece ainda a distinção entre sistema previdencial de repartição, aquele que genericamente assegura a cobrança de receita (das contribuições sociais) e o pagamento das prestações sociais, e o sistema previdencial de capitalização, encarregue de gerir, em regime de capitalização coletiva, os saldos excedentários do orçamento da Segurança Social (do sistema previdencial repartição) e, bem assim, o montante equivalente a dois a quatro pontos percentuais da quotização devida pelos trabalhadores por conta de outrem, com vista a formar um “bolo” financeiro capaz de assegurar o pagamento de pensões ao longo de dois anos (em caso de necessidade financeira). A capitalização faz-se no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, cuja gestão compete ao Instituto de Gestão dos Fundos de Capitalização da Segurança Social. Este regime coletivo, intitulado também de capitalização pública de estabilização, não se confunde com o supra mencionado regime público de capitalização. Neste, está em causa uma capitalização individual que visa assegurar aos subscritores, e apenas a estes, complementos de reforma. Naquele, pelo contrário, a capitalização é coletiva e tem em vista criar uma folga financeira com intuitos de estabilização do sistema previdencial, na sua globalidade. Além do princípio da adequação seletiva, releva ainda, no domínio financeiro, o princípio da diversificação das fontes de financiamento (art. 88.º da LBSS). O princípio permite assegurar que o sistema de Segurança Social possa ser financiado não apenas através de contribuições sociais, mas também através de outras fontes de receita, maxime de natureza fiscal. Por ora, no caso português, ao contrário do que sucede em outros ordenamentos, essa possibilidade confina-se ao chamado IVA social (uma percentagem do IVA resultante do aumento das taxas deste imposto em 1996), o qual é afeto ao financiamento do sistema de proteção social de cidadania e, dentro deste, preferencialmente, ao subsistema de proteção familiar. A redação do art. 88.º da LBSS sugere contudo que possam ser equacionadas outras fontes de financiamento no próprio sistema previdencial, na medida em que objetivo assumido do princípio é o de assegurar a redução dos custos não salariais da mão-de-obra. Tratar-se-á assim de desonerar o fator trabalho, encontrando-se, em alternativa, outras formas de incidência (consumo, património, capital) e de tributação. O epicentro do sistema de Segurança Social está no sistema previdencial. Este sistema baseia-se num princípio de contributividade (art. 54.º da LBSS), que significa, por um lado, que o sistema é autofinanciado (financiando-se nas contribuições dos trabalhadores e das entidades empregadoras) e, por outro lado, que existe uma relação sinalagmática entre a obrigação de contribuir e o direito a receber prestações sociais, nas eventualidades típicas, verificadas estas e cumpridos os demais requisitos legais. No entanto, tal princípio sofreu uma dupla entorse: por um lado, o sistema vai sendo cada vez menos autofinanciado, na medida em que as receitas próprias do sistema (as contribuições sociais) tendem a crescer a um ritmo menor do que a despesa (sobretudo a despesa com pensões); por outro lado, a relação sinalagmática a que se refere o preceito legal é cada vez menos evidente, na medida em que, relativamente a diversas prestações (desde logo, quanto às pensões), não existe já hoje uma integral proporção entre aquilo com que se contribui e aquilo que se recebe em contrapartida. O sinalagma é incompleto e imperfeito. A análise do sistema previdencial implica olhar com atenção para os seus dois domínios financeiros primaciais, as receitas e as despesas. Sobre as receitas – as contribuições sociais – rege o Código Contributivo (CC), aprovado pela lei n.º 110/2009, de 16 de setembro (alterada). As contribuições sociais são prestações monetárias pagas pelos trabalhadores e, se for caso disso, pelas respetivas entidades empregadoras, destinadas a financiar a atribuição, pelo sistema público de Segurança Social, de um conjunto de prestações sociais, mas também a prossecução de algumas políticas nas áreas laboral e do emprego. Sobre a natureza jurídica das contribuições sociais, muito se tem discutido entre nós e no estrangeiro, divergindo as opiniões). Todos reconhecem, porém, a sua natureza ambivalente e ambígua, a qual resulta de uma oscilação ontológica entre uma fisionomia bilateral, fundada no princípio do benefício (que a levaria a aproximar-se mais de uma taxa ou de uma contribuição financeira) e uma fisionomia unilateral, assente numa lógica de capacidade contributiva (que a aproximaria mais de um verdadeiro imposto). Mas essa ambivalência resulta também da bicefalia própria deste tributo, resultante de ser suportado por trabalhadores e por entidades empregadoras. Entre nós, para lá da discussão, e no que diz respeito ao regime aplicável, o Tribunal Constitucional tem defendido a aplicação às contribuições sociais, nos mesmos termos dos impostos, do princípio da legalidade fiscal (art. 103.º, n.º 2, em articulação com a alínea i) do n.º 1 do art. 165.º, ambos da Constituição da República Portuguesa). De acordo com este princípio, os impostos são criados por lei (lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo precedido de autorização legislativa), à qual compete definir também os respetivos elementos essenciais: incidência, taxas, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. Por outro lado, e agora já numa ótica económica, importa notar que as contribuições sociais constituem encargos não salariais sobre a mão de obra, cujo efeito financeiro se repercute a montante e a jusante. Na verdade, os custos induzidos por esta tributação são repercutidos pelas empresas que os suportam, a montante, nos salários pagos aos trabalhadores e a jusante, nos preços praticados, designadamente junto dos consumidores. Sobre a matéria contributiva dispõe o CC. Dele resultam reguladas as principais relações jurídicas da Segurança Social, a saber: i) Relação jurídica de vinculação ao sistema de Segurança Social. Traduz o estabelecimento de um elo estável entre as pessoas interessadas e o sistema de Segurança Social, mediante a sua identificação pessoal, através do ato de inscrição dos beneficiários ou registo das entidades empregadoras (vejam-se os arts. 6.º a 8.º do CC). O objetivo fundamental da vinculação é o de determinar o titular do direito à Segurança Social, bem como o respetivo conteúdo; com a inscrição o beneficiário ou contribuinte obtém o Número de Identificação na Segurança Social. ii) Relação jurídica de enquadramento nos regimes de Segurança Social (art. 9.º do CC). Os regimes de segurança social podem ser de vários tipos (vide art. 53.º da LBSS), destacando-se os regimes gerais dos trabalhadores por conta de outrem (TCO) e dos trabalhadores independentes (TI), sendo que o enquadramento dos trabalhadores num ou noutro dependerá naturalmente da qualificação do respetivo vínculo e, existindo mais do que um, daquele que prevalece. iii) Relação jurídica contributiva. Esta recai sobre trabalhadores e, se for caso disso, suas entidades empregadoras. Traduz-se em dois tipos de obrigações: a) por um lado, no pagamento das contribuições e quotizações (vulgarmente tratados como descontos para a Segurança Social); b) obrigações declarativas diversas, tais como a declaração dos tempos de trabalho e das remunerações devidas aos trabalhadores. A obrigação de declarar remunerações cabe às entidades empregadoras no caso do regime geral dos TCO (cf. art. 40.º), a quem cabe também o pagamento quer das contribuições próprias, quer da quotização dos seus trabalhadores – neste caso através de retenção na fonte (cf. art. 42.º). No regime geral dos TI, estes são equiparados às entidades empregadoras (cf. n.º 2 do art. 150.º), cabendo-lhes inteiramente o cumprimento da obrigação contributiva: pagamento de contribuições e cumprimento de obrigações declarativas (art. 151.º). As contribuições sociais são tributos assentes em taxas proporcionais, cuja base de incidência são os rendimentos do trabalho. Do CC resultaram importantes novidades, quer ao regime geral dos TCO, quer no regime geral dos TI. Em relação ao regime geral dos TCO, assinale-se, antes de mais, o alargamento da base de incidência contributiva, passando o conceito de remuneração relevante para efeitos de segurança social a aproximar-se do conceito de remuneração que encontramos no Código do IRS (CIRS) (sobretudo prestações remuneratórias da categoria A de rendimentos, a que se refere o art. 2.º do CIRS) e, bem assim, do próprio conceito jus-laboral de remuneração. Assim, diversas prestações remuneratórias, sobretudo de natureza variável (fringe benefits), que estavam fora do conceito de remuneração em sede de Segurança Social foram objeto de inclusão (cf. arts. 46.º e 46.º-A do CC). Para além disso, o mesmo Código introduziu alterações importantes a nível das taxas das contribuições sociais. A TSU é de 34,75 %, sendo paga numa parte pela entidade empregadora (23,75 %), noutra parte pelo trabalhador (11 %). Esta taxa contributiva destina-se a pagar o custo técnico das diferentes eventualidades sociais que aparece devidamente desagregado no próprio CC (cf. art. 51.º). Depois, estão previstas taxas contributivas mais favoráveis, as quais podem ficar a dever-se a diferentes razões, tais como: redução do âmbito material de proteção (em certo de tipo trabalho, não há lugar, por exemplo, à proteção no desemprego, pelo que, nesse casos, a taxa se reduz em conformidade – o caso do trabalho no domicílio); natureza não lucrativa da entidade empregadora (v.g., trabalho prestado para instituições particulares de solidariedade social; serviço doméstico); natureza débil da atividade económica (o caso da agricultura e das pescas); promoção do emprego junto de certas camadas especialmente frágeis (v.g., desempregados de longa duração, jovens à procura do primeiro emprego, portadores de deficiência). O CC ficou ainda marcado por uma previsão inovadora (a qual, todavia, até ao momento, não foi objeto de regulamentação, nem de concretização prática): tratou-se de proceder à adequação das taxas contributivas à modalidade de contrato de trabalho; assim, a taxa é reduzida, em um ponto percentual (pp) por cada trabalhador contratado, se a modalidade for o contrato de trabalho por tempo indeterminado, e a taxa é aumentada, em três pp por cada trabalhador, se a modalidade for o contrato de trabalho a termo resolutivo (cf. art. 55.º). Em relação ao regime geral dos TI, também resultaram do CC diversas novidades. Em primeiro lugar, a aproximação do âmbito material de proteção do regime do TCO. Isto desde logo em virtude da supressão, já na primeira versão do CC, da distinção, que resultava da legislação anterior (dec.-lei n.º 328/93, de 25 de setembro), entre regime obrigatório (proteção nas eventualidade velhice, invalidez, morte e parentalidade) e regime alargado de proteção (que incluía, além daquelas, também os encargos familiares, a doença e as doenças profissionais). As taxas eram diferentes, consoante os regimes (25,4 % no primeiro caso, 32,5 % no segundo). No novo quadro, o âmbito material de proteção no regime dos TI é único e inclui todas as eventualidades, com exceção do desemprego. Tratando-se de prestação de serviços, a cessação de atividade não é reconduzível a uma situação de desemprego. No entanto, reconhecida a existência dos falsos recibos verdes, situações que materialmente se aproximam de um verdadeiro contrato de trabalho, não o sendo formalmente, justificou-se mais tarde garantir, para essas situações, e na base de determinados indícios, a proteção no desemprego. Assim, na sequência da aprovação do dec.-lei n.º 35/2012, de 15 de março, o CC foi alterado pela lei n.º 20/2012, de 14 de maio (alteração à lei do OE para 2012), contemplando-se a possibilidade de atribuição de subsídio de desemprego (melhor, subsídio por cessação de atividade), aos TI (prestadores de serviços), considerados economicamente dependentes (vide novo art. 141.º do CC). E assim sendo, o âmbito material de proteção no caso destes TI coincide integralmente com o âmbito definido para os TCO. Em segundo lugar, assistimos no CC a uma mudança tendencial e progressiva do conceito de remuneração relevante: da remuneração convencional à remuneração real. Assim, o escalão de rendimento, para efeitos de tributação, deixou de ser escolhido livremente pelo trabalhador, antes resulta da conversão do duodécimo do rendimento obtido e declarado fiscalmente, numa percentagem do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), com o limite de 12 IAS (o último escalão). Finalmente, assinalamos como novidade do CC, o novo regime aplicável às entidades contratantes: a previsão de que as pessoas coletivas e singulares que beneficiem da prestação de serviços de um TI são também entidades contribuintes da Segurança Social (art. 140.º do CC). Assim, passam a considerar-se entidades contratantes de serviços as pessoas coletivas e singulares com atividade empresarial que, no mesmo ano civil, beneficiem de pelo menos 80 % do valor da atividade independente, caso em que o TI é, portanto, nos termos supra, considerado trabalhador economicamente dependente. Na verdade, esta medida está intimamente relacionada com aqueloutra antes referida, a da concretização da atribuição de subsídio de desemprego aos TI (constante da lei n.º 20/2012, de 14 de maio). A taxa contributiva a suportar pelas entidades contratantes é de 5 % sobre o valor dos rendimentos resultantes de prestações de serviços, e esses 5 % correspondem precisamente ao custo do desemprego. iv) Relação jurídica sancionatória. Repare-se que no CC apenas é regulada a parte contraordenacional e, dentro desta, a parte contraordenacional respeitante ao incumprimento das regras impostas pelo CC relativas às demais relações jurídicas de segurança social, antes aqui mencionadas (vide a regulação desta matéria, nos arts. 221.º e seguintes do CC). Assim sendo, não são objeto de regulação no CC os aspetos sancionatórios que tenham a ver com contraordenações no seio da relação jurídica prestacional (pois as prestações sociais não são tratadas no CC), nem a matéria relativa aos crimes contra a Segurança Social. Quanto àquelas, regulam desde logo os diplomas específicos aplicados a cada uma das prestações (por exemplo, contraordenações em virtude do recebimento indevido de prestações no desemprego são reguladas pelos arts. 64.ºss do regime geral da proteção no desemprego, dec.-lei n.º 220/2006, de 3 de novembro e suas alterações). Quanto aos crimes contra a Segurança Social, regula o Regime Geral das Infrações Tributárias (lei n.º 15/2001, de 5 de junho, e suas alterações) e aqui se tipificam dois tipos de crimes nesta matéria, um tanto podendo respeitar à relação jurídica contributiva como à relação jurídica prestacional (o crime de fraude contra a Segurança Social – art. 106.º), outro apenas relacionado com a obrigação contributiva e, concretamente, com a obrigação, da parte da entidade empregadora, de proceder à retenção na fonte da quotização do trabalhador, garantindo o pagamento desta junto da Segurança Social (crime de abuso de confiança – art. 107.º). Repare-se que, no seio da obrigação contributiva, o Direito valora diferentemente, de um lado, o desrespeito pelas obrigações declarativas ou obrigações tributárias acessórias (incluindo a obrigação de proceder à retenção na fonte) e que constituem, no caso do regime geral dos TCO, basicamente obrigações das entidades empregadoras e, do outro lado, o incumprimento pontual da obrigação de pagamento de contribuições próprias (para as entidades empregadoras no regime geral dos TCO e para os trabalhadores no regime dos TI). No caso do desrespeito por obrigações declarativas, o domínio é, como vimos, o do Direito Contraordenacional ou do Direito Penal. No caso do incumprimento da obrigação de pagamento, a situação é de mora (havendo lugar à cobrança de juros), pelo que estamos no âmbito do Direito Civil. As dívidas à Segurança Social podem ser regularizadas através de processos de execução cível ou de execução fiscal (n.º 1 do art. 186.º do CC), prevendo-se ainda a verificação de situações excecionais de regularização de dívidas (cf. art. 190.º), nos termos das quais pode haver lugar à isenção ou redução de juros de mora. O prazo de prescrição das dívidas à Segurança Social é de cinco anos contados da data em que a obrigação deveria ter sido cumprida (art. 187.º). Para além da área contributiva, o sistema previdencial é composto pelo domínio das prestações sociais. Tais prestações são pagas nas eventualidades típicas previstas, desde logo, na LBSS (velhice, invalidez, morte, desemprego, parentalidade, doença, incluindo doenças profissionais). Os acidentes de trabalho integram também o âmbito material de proteção neste sistema, se bem que a Segurança Social pública externaliza para as seguradoras privadas a responsabilidade pela provisão do risco social: é junto das seguradoras que as entidades empregadoras são obrigadas a subscrever um seguro de acidentes de trabalho. As prestações sociais distinguem-se entre prestações imediatas (nas eventualidades desemprego, parentalidade e doença), cujos períodos de formação são curtos (aferíveis ao mês) e prestações diferidas ou pensões, cujos períodos de formação são longos, reportados ao ano. Trata-se de pensões de velhice, de invalidez e de sobrevivência. Seguindo o ensinamento de Ilídio Neves, podemos diferenciar, como requisitos de acesso às prestações sociais, os seguintes: i) requisitos relativos ao cumprimento da obrigação contributiva (matéria que vimos no ponto anterior); ii) requisitos relativos ao período de tempo contributivo, havendo que considerar aqui a noção de prazo de garantia (período mínimo de contribuição para se poder beneficiar da abertura do direito), que, como dissemos, é curto nas prestações imediatas e longo, nas pensões; iii) requisitos relativos aos eventos típicos e que são as eventualidades supra mencionadas – repare-se que falamos de verdadeira tipicidade legal; o sistema previdencial de Segurança Social não garante proteção para lá destes eventos; iv) requisitos relativos a características específicas dos beneficiários, e que relevam particularmente em relação a esta ou aquela prestações sociais, tais como: idade (mínima, máxima ou ambas); situação escolar; estatuto laboral ou profissional (v.g., índice de profissionalidade); requisitos médicos; requisitos de natureza económica (v.g., condição de recursos – se bem que neste caso, apenas ainda para as prestações do sistema de proteção social de cidadania, não para o previdencial); v) requisitos relativos ao cumprimento de exigências administrativas, de que se destacam a necessidade e apresentação de requerimento (as prestações sociais são sempre requeridas) e a apresentação de certos meios de prova (v.g., prova de que se está grávida ou de que se teve um filho). Na Segurança Social, importa diferenciar entre abertura do direito à proteção social e cálculo ou apuramento do valor das prestações. Só depois de verificado que o beneficiário tem direito à prestação, é que se passa à determinação do valor da mesma. Quanto à abertura do direito, ele depende, como vimos antes, da verificação do prazo de garantia, determinado em meses para as prestações imediatas (no caso por exemplo de atribuição do subsídio de desemprego é de 450 dias de trabalho por conta de outrem, com o correspondente registo de remunerações, num período de 24 meses imediatamente anterior à data do desemprego – art. 22.º do dec.-lei n.º 220/2006) e aferido em anos, para as pensões (é de três ou cinco anos, para a invalidez, consoante seja absoluta ou relativa – art. 16.º do dec.-lei n.º 187/2007, de 10 de maio – e é de 15 anos para a velhice – art. 19.º do mesmo diploma). Relativamente ao cálculo ou apuramento do valor das prestações, as regras tendem a ser mais complexas quando se trate de calcular pensões, do que no cálculo das prestações imediatas. Nestas, o apuramento do valor da prestação começa por fazer-se a partir da determinação da remuneração de referência. Determinada essa remuneração (que na verdade é uma média de remunerações registadas ao longo de um determinado período), procede-se ao apuramento da prestação, o qual dependerá da aplicação, àquela remuneração, de uma taxa de substituição. No caso das prestações de maternidade, e para o gozo pelo período de 120 dias, a taxa de substituição é de 100 % (ou seja, o valor da prestação equivale inteiramente ao valor da remuneração de referência previamente apurada) – veja-se o art. 30.º do dec.-lei n.º 91/2009, de 9 de abril, que estabelece o regime de proteção na parentalidade. Noutros casos, a taxa de substituição é menor: por exemplo, no subsídio de doença, a taxa é progressiva e aumenta em função da duração da situação de incapacidade temporária. Assim, nos termos do 16.º do dec.-lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, alterado (regime jurídico da proteção na doença), as percentagens de substituição são: a) 55 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração inferior ou igual a 30 dias; b) 60 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração superior a 30 e que não ultrapasse os 90 dias; c) 70 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária de duração superior a 90 e que não ultrapasse os 365 dias; d) 75 % para o cálculo do subsídio referente a período de incapacidade temporária que ultrapasse os 365 dias. O cálculo das pensões é mais complexo. Regula aqui fundamentalmente o já referido dec.-lei n.º 187/2007, que é o regime jurídico das pensões. O cálculo destas (pensamos fundamentalmente no cálculo das pensões de velhice) atende sobretudo a três tipos de fatores, que consideramos fatores estáticos de determinação da pensão, a saber: i) determinação da remuneração de referência, de acordo com as regras legais aplicáveis; ii) aplicação da taxa anual de formação, definida também por lei; iii) dimensão da carreira contributiva (considerando-se carreira completa, a de quarenta anos). Existem duas formas de cálculo da chamada pensão estatutária. Uma primeira aplicável aos beneficiários inscritos no sistema até 2001 e que é uma fórmula proporcional: a remuneração de referência resulta quer das regras antigas (10 melhores salários dos últimos 15 anos), quer das regras novas (média de salários de toda a carreira contributiva), ponderadas em função do número de anos de carreira em que o contribuinte conviveu com cada uma dessas regras. Além disso, a taxa anual de formação, aplicável à determinação da remuneração de referência, é também diferente: 2 % ao ano quando se aplique à parcela antiga (P1); entre 2 % e 2,3 % (em função quer da dimensão da carreira, quer do próprio valor da remuneração de referência) quando aplicável à parcela nova (P2). Uma segunda forma de cálculo é aplicável aos inscritos no sistema após 2002. Quanto a estes, as regras de cálculo são apenas as regras novas, as regras antes vistas para o P2. Mas para além destes fatores estáticos, há a considerar um fator dinâmico de cálculo da pensão, o fator de sustentabilidade (FS). Ao contrário dos anteriores, este é dinâmico porque se relaciona com a evolução da esperança média de vida: pretende internalizar no valor da pensão os efeitos da evolução demográfica, e em particular o efeito do envelhecimento. É um fator de evolução incerto, pelo que introduz alguma volatilidade no cálculo da pensão. Este fator foi previsto na atual LBSS de 2007 e regulado no referido dec.-lei n.º 187/2007. Recentemente, os termos da sua aplicação foram significativamente alterados, juntamente com a alteração da idade de acesso à pensão de velhice (que passou dos anteriores 65 para 66 anos). As novidades constam do dec.-lei n.º 167-E/2013, de 31 de dezembro, que alterou aqueloutro decreto-lei. Assim, o FS passou a aplicar-se: a) às pensões iniciadas até 31 de dezembro de 2014 e b) às pensões iniciadas após 1 de janeiro de 2015, mas desde que requeridas antes dos 66 anos. As regras são diferentes consoante os casos. Para pensões iniciadas até 31 de dezembro de 2014, valem as regras iniciais do FS, a saber: resulta do rácio entre a esperança média de vida (EMV) no ano de 2006 e a EMV verificada no ano anterior ao requerimento de pensão (n-1). Este rácio multiplicará pelo valor da PE apurado de acordo com as regras supra, obtendo-se assim o valor da pensão final. Diversamente para as pensões iniciadas após 1 de janeiro de 2015 e nas condições antes indicadas (requeridas antes dos 66 anos), o rácio será EMV2001/EMVn-1. Ainda a propósito do regime de pensões, importa recordar que um dos princípios que esteve presente na reforma do sistema de pensões em 2007 foi o princípio do envelhecimento ativo. Tratava-se de criar incentivos para assegurar a permanência na vida ativa dos trabalhadores mais velhos. Penalizou-se assim, de forma mais pesada do que antes sucedia, a antecipação da idade de reforma no âmbito da flexibilização. A crise financeira que se seguiu e a intervenção da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) acentuaram a necessidade de evitar, tanto quanto possível, o recurso ao expediente das reformas antecipadas. Por isso, em 2012 foram suspensas, para só voltarem a ser admitidas a partir de 2015, e com limites. A crise, de resto, e a austeridade subsequente reavivaram o debate em torno das questões da reforma da Segurança Social. Nos anos noventa, a questão demográfica e o problema da sustentabilidade de longo prazo dos sistemas de pensões levaram alguns estudiosos e políticos a defender a substituição dos sistemas de repartição por sistemas de capitalização. Esta substituição implicava tendencialmente, de igual modo, a privatização parcial da Segurança Social. Para isso, deveriam os países que o não tivessem ainda feito (o caso de Portugal), fixar um teto superior ao valor da remuneração (plafonamento contributivo), acima do qual os contribuintes deixariam de descontar para o sistema público, passando antes a financiar segundas pensões obrigatórias, geridas em capitalização, pelo sistema segurador privado. O objetivo deste plafonamento contributivo seria o de garantir, a longo prazo, poupanças na despesa pública, pois o Estado – a Segurança Social pública –, ficaria apenas responsável por pagar uma pensão de montante limitado, e limitado em função daquele mesmo plafond. A este tipo de reformas, reformas estruturantes, podemos qualificar de reformas sistémicas de primeira geração. O assunto foi muito debatido na sequência do Livro Branco da Segurança Social (1998), mas só viria a ser assumido, como vontade política, em 2002, na Lei de Bases aprovada durante Governo liderado por Durão Barroso. Tal intenção não vingou: esbarrou, já nessa altura, com oposições de natureza ideológica e problemas de eficácia. Na verdade, ao contrário do que se poderia pensar, os modelos de capitalização não são imunes, antes pelo contrário, aos efeitos do envelhecimento demográfico. É no prémio de seguro que esses mesmos efeitos, desde logo, se fazem sentir. Para além disso, uma mudança deste tipo conhecia importantes entraves financeiros. O problema fundamental estaria em como financiar a Segurança Social no período de transição, o período durante o qual esta perderia receita desviada para o sistema de capitalização privado, não se fazendo ainda sentir as poupanças de despesa a longo prazo desejadas. De facto, a Segurança Social teria de continuar a fazer face aos compromissos quotidianos assumidos perante pensionistas em curso. Assim, por causa destas dificuldades, tais intenções foram abandonadas, para se optar, nos Governos seguintes, por introduzir medidas de cariz paramétrico, ou seja, medidas que, não alterando a fisionomia e a filosofia do sistema, procurariam incrementos na receita e poupanças na despesa, reforçando assim a sustentabilidade da Segurança Social. Medidas como a alteração das regras de cálculo das pensões (em 2002 e 2007), a maior penalização das reformas antecipadas e a introdução do fator da sustentabilidade (em 2007) inserem-se nesse catálogo, embora esta última preanunciando reforma de outro calibre. Em 2014-2015, a alteração da idade de acesso à pensão para os 66 anos constituiu também exemplo de medida paramétrica. Agudizados os problemas demográficos e económicos, problemas que a crise mencionada exacerbou, voltou a estar na ordem do dia a reforma da Segurança Social. Ainda que a hipótese de substituição dos modelos de repartição pelos de capitalização não esteja arredada, a verdade é que, dadas as dificuldades financeiras sentidas no período de transição – a que antes fizemos referência – e que podem inviabilizar no limite a eficácia pretendida, outras hipóteses de reformas sistémicas podem ser equacionadas. Serão reformas sistémicas de segunda geração. Trata-se aqui de substituir os modelos de benefício definido, como é o caso português, por modelos de contribuição definida. Aliás, esta é uma tendência que se desenhou em alguns países europeus, antes mesmo da crise. O exemplo sueco costuma ser apontado como o mais emblemático. O grande problema dos modelos de benefício negativo, conquanto sejam bons estabilizadores de direitos e expectativas, reside na sua rigidez, mormente em contextos demográficos negativos. Isto porque, em virtude das regras de cálculo aplicáveis, as pensões, uma vez definidas, não podem ser ajustadas à evolução de vicissitudes relevantes. O modelo português é de benefício definido, porque o montante de pensão fica dependente dos fatores estáticos, de cálculo de pensão, supra. A pensão é, diríamos, automaticamente determinada em função destes elementos, pelo que o contribuinte/beneficiário pode saber com alguma precisão qual vai será o valor da sua pensão, mesmo antes de se reformar, já que eles são conhecidos ou antecipáveis. No modelo de contribuição definida, pelo contrário, os fatores que concorrem para o cálculo da pensão são também fatores dinâmicos, em certo sentido voláteis, podendo ser de natureza demográfica (v.g., evolução da esperança média de vida), económica (taxa de crescimento da economia) ou financeira (saldo do sistema previdencial). Assim, neste modelo, uma pensão que se esteja a formar vai recebendo, como inputs, não apenas aqueles fatores estáticos, dotados de previsibilidade, mas também estes, instáveis e de comportamento menos previsível. Entre nós, a introdução do fator de sustentabilidade no cálculo da pensão (2007) deixou antever essa deriva do modelo de benefício definido para o de contribuição definida, mas ele é ainda um mero embrião. A Suécia foi ainda mais longe, pois incorpora estes elementos voláteis não apenas na fase de formação da pensão, mas também na fase em que as pensões já estão a pagamento, em curso de atribuição, podendo a todo o momento ser recalculadas. Para terminar, uma nota apenas relativa aos aspetos relativos à administração do sistema de Segurança Social. Conquanto da Constituição (art. 63.º) e da LBSS resulte um princípio de unidade na gestão do sistema de Segurança Social; conquanto seja esta uma área tipicamente da responsabilidade do Estado central; conquanto a legislação fundamental esteja uniformizada (veja-se o CC), a verdade é que na prática, em termos de gestão financeira, existe uma boa dose de ‘regionalização’ do sistema de Segurança Social – nas Regiões Autónomas portuguesas. Os Institutos da Segurança Social dos Açores e da Madeira (regulados respetivamente pelos Decretos-Legislativos Regionais nºs. 14/2013/A, de 3 de outubro, e 34/2012/M, de 16 de novembro) têm importantes competências quer no domínio da arrecadação de receita própria da Segurança Social, quer no pagamento de prestações, quer enfim na preparação do orçamento e da conta da Segurança Social regional respetiva. E estão evidentemente sob a tutela dos Governos regionais respetivos, não do Estado central.   Nazaré da Costa Cabral (atualizado a 30.12.2017)

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sebastianismo

Tal como acontecia no Reino, também na Madeira, no rescaldo da derrota de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, surgiram lendas que evocavam a possibilidade do regresso do Rei para resgatar Portugal do domínio castelhano. Essas lendas, que, na Madeira, se misturam com o imaginário do ciclo arturiano, começaram por se manifestar logo nos inícios do século XVI, mas mantiveram-se presentes na imaginação popular de forma tão duradoura que ainda no século XX são objeto de referência por parte de autores madeirenses. Palavras-chave: D. Sebastião, a Ilha Encoberta, a Espada, Arguim, Rei Artur. O sebastianismo foi um sentimento de cariz messiânico que se divulgou em Portugal na sequência do desaparecimento do Rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir (1578), espalhando-se por todo o território nacional nos fins do séc. XVI e princípios do século seguinte. As razões da sua rápida propagação no todo nacional terão de ser procuradas na própria história de um país que se formou na luta contra os mouros e os Castelhanos, a quem habitualmente levou de vencida, ainda que com um ou outro contratempo traduzido em derrotas momentâneas, suplantadas, depois, por vitórias que permitiram não só a sua autonomia, mas até a sua dilatação sob a forma de grande império ultramarino. Lutadores convictos da sua independência, habituados a porfiar contra os inimigos, os Portugueses não conseguiam aceitar a ideia de que a sua pátria, forjada com tanto sacrifício, tivesse sido, de um só golpe, vencida pelos inimigos tradicionais – os mouros, que desfizeram o seu exército, e os Castelhanos, para quem sobrou o trono – e, para melhor enfrentar o infortúnio, socorreram-se da ideia de um inevitável regresso de D. Sebastião, estratégia messiânica que se inscreve numa tradição que, vinda do judaísmo, não deixara completamente de circular por entre os povos cristãos. Assim, ainda que se questionasse a impreparação e a irresponsabilidade do Monarca desaparecido, a nação ansiava pelo seu regresso, visto como condição sine qua non para a libertação do domínio castelhano; e o Rei, que já nascera com o cognome de “o Desejado”, tornava-se ainda mais desejado depois do seu desaparecimento no Norte de África. A força desse desejo nacional será, pois, o suporte do messiânico desígnio do sebastianismo. Esta crença é, em si mesma, indicativa da força da comunidade judaica em Portugal, no seio da qual nasceu Gonçalo Anes Bandarra, autor de umas trovas proféticas e dedicadas às dificuldades, mas também ao destino imperial de Portugal, nas quais se vem a inspirar o movimento sebástico. A comunidade cristã-nova, perseguida pela recém-criada Inquisição, encontrou na Madeira, num primeiro momento, um porto de abrigo onde se refugiou, julgando-se protegida pela inexistência local de uma delegação permanente do Santo Ofício, e seria ela, talvez, o veículo de divulgação regional das trovas de Bandarra. O acolhimento que, na Madeira, se dispensará à divulgação da mítica sebastianista radica, por sua vez, numa propensão para acolher o mito como elemento fundador da identidade insular, uma vez que algumas explicações para a origem da Ilha repousam em lendas que povoam o imaginário popular. Com efeito, a ilha da Madeira constituía, aos olhos dos seus habitantes, um espaço encantado que teria tido origem num momento em que, estando Nossa Senhora a chorar pelos pecados do mundo, deixara cair uma lágrima sobre o oceano. Dessa gota sagrada nascera uma pérola que se transformara em ilha – a da Madeira, que assim se assumia como território afortunado, bafejado por um clima ideal, águas abundantes, vegetação luxuriante, terra fértil e acolhedora. Esta lenda está, por sua vez, associada a uma outra – a da desaparecida Atlântida, continente afundado pela ira divina e do qual a Madeira teria ficado como memória (Lendas e mitos fundadores). Esta ideia de ilha encantada é, precisamente, recuperada por uma das lendas do sebastianismo insular, que reporta a existência de uma terra mítica que, em determinados dias, aparece no horizonte e onde se conta que vive um Rei que, um dia, de lá há de sair para vir libertar o seu povo, muito à semelhança do que aconteceu com o Rei Artur, que se refugiou na ilha de Avalon, de onde regressará para libertar os Bretões. As semelhanças entre o sebastianismo madeirense e o ciclo arturiano não se ficam por aqui, pois outras lendas madeirenses falam de uma espada – a versão insular de Excalibur –, enterrada pelo Rei desaparecido em vários locais da costa: uma fala da Penha de Águia, outra do cabo Girão, outra, ainda, da ponta da Galéria ou Galé, na Calheta, admitindo-se aí ter sido colocada por D. Sebastião, quando, a caminho de Arguim, teria passado pela Madeira. Esta suposta passagem do Monarca derrotado pela Ilha não tem, de facto, nenhum suporte efetivo, mas como o território da lenda não atende a estas circunstâncias, não é estranho que se afirme, a respeito da referida espada: “braço de rei a meteu e só braço de rei a pode tirar” (FREITAS, 1984, 69). Tornou-se, ainda, voz corrente que, em momentos especiais, com tempo claro, os pescadores a conseguem ver. A ilha de Arguim, local do exílio temporário do Rei, é um território que se situa no golfo da Guiné e pertenceu, inclusivamente, à Diocese do Funchal, tendo sido, para efeitos do mito, transformada também numa espécie de terra encantada, que tanto emerge como submerge, e onde a imaginação popular entrevê um Rei, ora novo e garboso, ora velho e desalentado, que recebe no seu pequeno reino missionários a quem promete regressar para ocupar o trono português, o que acontecerá depois de resgatar a espada que enterrou em solo madeirense. Segundo uma versão desta lenda, a retirada da espada implicará o afundamento total da Madeira; segundo outra, apenas se verificará uma submersão parcial, devendo o futuro cais ficar pela altura da igreja de N.ª Sr.ª do Monte. A sobreposição, um tanto surpreendente, entre os romances de cavalaria onde se inscreve a lenda do Rei Artur, e as versões insulares das lendas de D. Sebastião, tem, ainda, validação na capitania de Machico, entregue a um muito medieval Tristão Teixeira, que aí organizava justas e torneios, e onde se fundou uma povoação de nome Gaula, habitada por Lancelotes, Grismundas, Isoas e Galaazes. Na tradição oral madeirense encontram-se, também, narrativas de histórias multisseculares, onde se cruzam personagens oriundas de um universo medieval – reis, condes, princesas e donzelas –, que não poderão deixar de ter sido bebidas na tradição dos romances de cavalaria tão bem ilustrada pelas histórias arturianas. A retoma da independência nacional operada por D. João IV continua a inscrever-se no universo do messianismo sebástico que, confrontado com o não retorno de D. Sebastião, transfere para a figura do novo Monarca todo o capital de esperança que era património da lenda. Na Madeira, o anseio pela devolução de Portugal à qualidade de estado independente manifestou-se na figura do cónego Henrique Calaça que prometera edificar um mosteiro feminino caso esse desígnio se cumprisse. Este é, pois, o quadro em que se regista a fundação do Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação nos anos imediatos à Restauração, cumprindo-se, assim, a materialização do sonho sebástico. Outro indicador da identificação da figura de D. João IV como novo messias surgido para resgatar Portugal do domínio castelhano surge com a publicação, em 1643, de uma obra da autoria do padre madeirense António Veloso de Lira, intitulada Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Três, Cuja Vista Representa este Reino em Três Estados. O Primeiro, desde os Seus Princípios, com todas as Felicidades e Grandezas até D. João o Terceiro. O Segundo, as Calamidades e Infortúnios Começados com El Rey D. Sebastião, e Continuados por todo o Governo Castelhano. O Terceiro Estado, as Maravilhas Obradas por Deus em a Feliz Aclamação e Restauração de El Rey Nosso Senhor D. João o Quarto, com os mais Raros Casos nella sucedidos, assim neste Reino como no de Castela. Nesta obra, o sacerdote, nascido na Calheta em 1516, considera os Portugueses como povo escolhido por Deus que, depois de um passado glorioso, se vira ignominiosamente sujeito a um domínio estrangeiro terminado em 1640, o que justifica, então, a exaltação nacionalista que subjaz à narrativa. A apresentação da figura do restaurador como responsável pelo concretizar da aspiração nacional latente desde o desaparecimento de D. Sebastião é, pois, um elemento mais a juntar ao processo que coroa a eclosão do movimento messiânico inaugurado com Alcácer Quibir, cujas repercussões ecoaram no país e também na Madeira, traduzidas tanto em narrativas do foro da lenda como em ações concretas de congratulação pelo seu ansiado fim. O anseio permanente que acompanha os Portugueses em geral, e os madeirenses em particular, de ver resgatada a antiga fortuna nacional, e de que a lenda sebástica é tradução, não desapareceu com o tempo, manifestando-se ainda no decorrer do séc. XX. A prová-lo pode citar-se uma obra vinda a público em 1954 e da autoria de Amadeu Mimozo, na qual o autor intercala capítulos de índole autobiográfica com outros em que aflora aspetos da vida e da história da Madeira. Incluídos nesta narrativa intermitente que mistura a história pessoal, por um lado, e a história do descobrimento da Ilha, por outro, com episódios ligados a Cristóvão Colombo, surgem, ainda, espaços narrativos consagrados à ilha encoberta e às lendas que a sustentam. De acordo com Mimozo, radica em Platão a ideia de que a Atlântida “pegava com a Península Ibérica”, tendo sido em parte submersa por um grande terramoto que isolou a Europa da América (MIMOZO, 1954, 113). Dessa catástrofe sobreviveu uma ilha na qual se refugiou Rodrigo, o último Rei godo, em fuga da invasão moura da península. Prosseguindo a fundamentação autoral em que ancora a descrição, Mimozo evoca D. Francisco Manuel de Melo, segundo o qual, em 1444, uma embarcação genovesa abordou a referida ilha, onde encontrou falantes de português. A ilha tinha sete cidades, cada uma com seu bispo, e mais de 300 vilas cujos habitantes teriam tido origem na cidade do Porto, que abandonaram quando o Rei Rodrigo foi derrotado pelos mouros. O mesmo território encantado teria sido visitado por dois religiosos que se dirigiam do Brasil para Lisboa, numa nau capitaneada por António de Sousa, em viagem interrompida por uma enorme tempestade. Quando os ventos amainaram, a tripulação vislumbrou, a sul, uma terra misteriosa que supôs ser a Madeira. Inseguros em relação ao que viam, pediram os tripulantes licença para desembarcar, e ao fazê-lo depararam com um palácio de onde saíram sete homens que falavam um vago português e trajavam à moda da Nazaré, que os conduziram ao interior do palácio onde lhes apresentaram um Rei idoso que lhes perguntou se eram portugueses. Certificado da origem dos visitantes, levou-os a uma sala onde se encontrava um quadro representando uma cena de batalha na qual figurava um exército quase derrotado ao lado de um outro, vitorioso, cujas tropas vestiam trajes mouros. Terminada a visita, os tripulantes regressaram a bordo e relataram vividamente a experiência. Atemorizado, o mestre da embarcação não arriscou viajar nessa noite, só o fazendo na manhã seguinte. Depois de quatro dias de navegação, os homens encontraram, então, de facto, a ilha da Madeira, na qual se demoraram quatro dias, contando o autor que “alguns habitantes madeirenses garantiam que esta ilha aparecia de tempos a tempos, o que juraram” (Id., Ibid., 126). Não chegando a afirmar que o Rei misterioso era D. Sebastião, Amadeu Mimozo atribui, no entanto, essa convicção ao povo madeirense, que, segundo ele “dá como encantado El-Rei D. Sebastião na Ilha Encantada”, embora acrescente que este facto se não pode afirmar historicamente. Segundo o autor, o destino do Monarca seria mais credivelmente rastreado em batalhas na Europa, onde teria defrontado infiéis, acabando por ser martirizado em Itália e Espanha, às ordens de um Filipe II de Espanha atemorizado pela perspetiva de perder o trono de Portugal caso se demonstrasse que D. Sebastião vivia ainda. Em abono desta tese, aponta as opiniões do P.e António Vieira que atestavam o martírio do soberano, confirmado pelo corpo diplomático espanhol, nomeadamente pelo duque de Medina Sidónia e sua mulher, que conseguiram identificar o Rei português pela descrição que este fizera de uma espada e de um anel que anteriormente lhes oferecera (Id., Ibid., 137-139). Os dados que enformam a parte mitificada desta narrativa, e as fontes nas quais se inspira, já tinham sido abordados por outro escritor madeirense, Abel Tiago de Sousa Vasconcelos, que em 1924, e sob o pseudónimo de “Lusitanus”, fizera publicar uma obra intitulada Sinais dos Tempos, onde consagrava vários capítulos à Ilha Encantada e ao possível destino de D. Sebastião, também aqui considerado como desenrolado na Europa. A obra em questão, integralmente consagrada ao Quinto Império e ao papel central que Portugal nele desempenha, não poderia deixar de abordar a figura do Rei como encarnação do renascer do reino, objetivo pelo qual teria dado a vida, sacrificado à vontade e às manobras políticas do Rei de Espanha. Ainda que, no caso presente, a narrativa seja muito mais pormenorizada, as semelhanças com o texto de Amadeu Mimozo podem autorizar a suposição de que Mimozo teria lido a prosa de Vasconcelos, nela se inspirando para a recolha da informação que depois utilizou em Ilha dos Sonhos. O facto de estas duas obras terem sido publicadas na primeira metade do séc. XX e de consagrarem uma parte dos seus textos à evocação de territórios misteriosos e à provação sebástica é, pois, demonstrativo de que a crença no mito perdurou, mantendo-se parte do imaginário insular quase 400 anos depois da suposta ocorrência dos factos.   Cristina Trindade

História Económica e Social História Política e Institucional

rocha, vitúrio lopes

Vitúrio Lopes Rocha nasceu no Funchal a 5 de setembro de 1752, doutorou-se em matemática no dia 24 de dezembro de 1777 e foi lente de geometria na Universidade de Coimbra. Lecionou as cadeiras de álgebra, em 1779, enquanto substituto extraordinário, e de cálculo, entre os anos de 1780 e 1783, na função de substituto, tornando-se, posteriormente, lente de geometria, função que exerceu entre 1783 e 1795, ano da sua jubilação (a 27 de março). Ocupou o cargo de vereador do Corpo da Universidade (a 27 de março de 1792), o de comissário delegado e visitador das escolas menores da ilha da Madeira (em 1800) e o de comissário da Junta da Diretoria-Geral dos Estudos e Escolas Menores do Reino. Entre os seus escritos, contam-se a sua tese e o manuscrito Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia. Obras de Vitúrio Lopes Rocha: Theses ex mathesi universi quas confecto quinquennali studiorum curriculo publice intra diei spatium ad Doctoris Lauream in Conimbricensi Gymnasio obtinendam praeside Josepho Monteiro da Rocha ... proponit Victurius Lopes Rocha (1777); Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia (1777).   Rui Gonçalo Maia Rego (atualizado a 17.12.2017)

História da Educação Matemática

a revolta do leite

A indústria dos laticínios na Madeira encontrava-se, na déc. de 1930, num estado precário e a situação económica era de uma decadência que levaria, impreterivelmente, à ruina de grande parte dos industriais. Em 1935, quando se intensificaram os esforços para a sua regulamentação, o descalabro tinha atingido o auge, instalando-se uma “guerra do leite”, como se chamou então à concorrência existente entre os industriais, que, para atingirem os seus fins, empregavam meios considerados pouco honestos. O preço do produto era uma das armas utilizadas conforme a necessidade de cada industrial, assim como os postos de desnatação, que eram estabelecidos nas zonas dos adversários, funcionando como elementos de ataque ou defesa das respetivas posições económicas. De forma a angariarem leite para os seus postos, os industriais recorriam a todos os expedientes; foi nesta altura que apareceram as gratificações e outras ofertas aos produtores, se entregassem o seu leite a determinado industrial. Assim, a especulação, as influências e a corrupção passaram a ser o motor da luta pelo leite. As medidas do leite também eram defraudadas. Autor desconhecido - Imagem retirada do bloque: http://miguelabarreiro.spaces.live.com Um dos grandes fatores de perturbação resultava da extraordinária proliferação de postos, que aumentavam todos os anos. Assim, em 1935 existiam 1301 postos, representando uma média diária de laboração de 40 a 44 l, bastante escassa tendo em conta que as desnatadeiras eram de 150 l horários. Um dos produtos derivados, a manteiga, tendia para uma inferior qualidade, dadas as más condições de aquisição do leite e das natas. Por outro lado, o industrial estava na dependência do produtor e do encarregado, e não podia assegurar uma laboração contínua e a horas adequadas, nem precaver-se contra as falsificações e os abusos cometidos. Assim, as despesas com os angariadores de leite, as gratificações, a manutenção de um número elevado de postos de desnatação, a concorrência estabelecida pelos preços e a sua aquisição feita em condições bastante precárias pareciam encaminhar a indústria dos laticínios para o seu aniquilamento. As dependências deste sistema vicioso levavam a que alguns industriais pagassem o leite ao produtor com dois ou três meses de atraso; prejudicados por este sistema irregular, os produtores recorriam ao crédito, que lhes absorvia o produto do seu trabalho, desorganizando-lhes a economia doméstica. A solução do problema dos laticínios era de vital importância para a própria economia da Madeira. Com efeito, nessa altura, a Madeira dependia economicamente do sector pecuário, que era a principal atividade e a fonte de maior rendimento do arquipélago, muito superior à produção do vinho, da banana e do açúcar, chegando a exportação a atingir mais de 450 t de manteiga, com rendimentos superiores a 7.500 contos. Assim, a 4 de junho de 1936, é promulgado o dec.-lei n.º 26.655, que instituía o monopólio dos lacticínios através da criação da Junta Nacional dos Lacticínios da Madeira. O Governo pretendia pôr fim à organização caótica do sector, regulamentando a exploração dos laticínios na Madeira. A Junta funcionaria como uma organismo de coordenação económica da produção e comercialização do leite e das indústrias de lacticínios, tentando corrigir os abusos e os desmandos dos industriais e dos produtores. Tendo entrado em vigor esse decreto-lei, logo se verificaram vários distúrbios populares, que deram origem a inúmeras detenções e a alguns mortos. No ano de 1936, laboravam por toda a Ilha 64 fábricas, encontrando-se registados 1301 postos de desnatação, 1061 com licença e a laborar, e 240 suspensos ou extintos. No entanto, destes 1301 apenas 987 laboravam normalmente, produzindo cerca de 840 t de manteiga; os restantes 74 mantinham-se encerrados, embora mantivessem a licença sanitária. Com a publicação do decreto e da instalação da Junta dos Lacticínios da Madeira, os postos de desnatação foram reduzidos ao seu número essencial, em conformidade com a economia da Madeira, limitados à sua função restrita e atribuídos aos industriais, de acordo com a localização das respetivas fábricas; foram assim encerrados 741 postos de desnatação, ficando a funcionar apenas 320. A Junta dos Lacticínios passou a controlar a higiene dos estábulos, a seleção e o cruzamento das espécies bovinas, a qualidade do leite e o transporte dos produtos, medidas consideradas necessárias ao bom funcionamento da economia leiteira. No entanto, a sua atividade não se esgotava aí, pois era a Junta que – em benefício dum pequeno punhado de grandes unidades, nomeadamente a Fábrica Burnay e a Martins e Rebelo – passava a determinar o preço a pagar aos produtores, a administrar os postos de desnatação e a ratear as sempre insuficientes natas destinadas às fábricas de manteiga, passando a controlar e a manipular os produtores de leite e os pequenos e médios industriais de lacticínios. Esta conjuntura provocou uma revolta entre a população, que se tornou por vezes violenta e se estendeu a várias freguesias da Madeira. Na freguesia do Faial, onde os motins foram mais intensos, o pároco, P.e César Miguel Teixeira da Fonte (1902-1989), na homilia da missa do domingo 26 de julho de 1936 na igreja matriz, procurou apaziguar os ânimos da população exaltada, distribuindo um comunicado da Junta dos Lacticínios a explicar a situação, e dando conhecimento da existência dum abaixo-assinado a enviar ao governador civil, o Brig. Goulart de Medeiros. Três dias depois, os ânimos da população voltaram a alterar-se, tendo os populares tentado impedir a saída da manteiga para o Funchal. O padre, que nesse momento se encontrava no Funchal, foi solicitado pelo governador a dirigir-se ao Faial para acalmar os populares e tentar impedir que se amotinassem, com a promessa de retirada dos agentes da polícia ali estacionados devido aos incidentes. O chefe da polícia, Avelino Pereira, atiçou ainda mais os ânimos, lançando o boato de que o sacerdote se havia passado para o lado da Junta dos Lacticínios, tendo sido por ela encarregado de resolver a questão do leite a seu contento. Deste modo, a 31 de julho, cerca de 4000 camponeses irados e armados de varapaus, foices e outros utensílios encaminharam-se para a freguesia de São Roque do Faial, onde prenderam o fiscal da Junta de Lacticínios, Luís Teixeira da Fonte (irmão do pároco), dirigindo-se depois para a igreja do Faial para expulsarem o vigário. Só não causaram mortes e estragos de monta, porque o P.e César Miguel Teixeira da Fonte conseguiu esclarecê-los e provar a sua isenção, prometendo mover influências para que a produção e comercialização do leite voltassem a ser livres. No dia seguinte, juntou-se nas Cruzinhas do Concelho de Santana uma multidão, que elegeu uma comissão para negociar com as autoridades o retorno à situação antiga. Nos dias que se seguiram, estoiraram por toda a Ilha vários focos de revolução. Na Ponta do Sol e nos Canhas, centenas de agricultores, incluindo muitas mulheres, enfrentaram a repressão policial e reivindicaram a revogação do monopólio do leite. Na Ribeira Brava, os camponeses assaltaram a Repartição de Finanças e o Registo Civil, destruindo documentos e manifestando-se contra a Junta dos Lacticínios; foram reprimidos pela polícia e pela tropa, resultando das escaramuças alguns mortos e muitos feridos. Em Machico, a tropa e a polícia carregaram sobre a multidão de camponeses que protestava vivamente junto da Câmara, tendo ferido bastantes pessoas e causado a morte de um popular. No Funchal, os cerca de 320 leiteiros que distribuíam o leite na cidade entraram em greve, enquanto centenas de funchalenses saqueavam estabelecimentos comerciais e assaltavam as fábricas de manteiga Martins e Rebelo, Leacock, e Reis e Freitas, destruindo máquinas e outros equipamentos. Em resposta, o Governo enviou imediatamente para a Madeira forças militares, nos navios de guerra Gonçalves Zarco e Bartolomeu Dias, bem como um destacamento de agentes da polícia secreta, que procedeu a grandes investigações e devassas, tendo sido presos centenas de madeirenses, grande parte dos quais foi enviada para as prisões do continente e alguns para as dos Açores e de Cabo Verde, ficando cerca de uma centena encarcerados na cadeia do Lazareto (conhecida popularmente como Forno do Lazareto). O ardina Manuel Garcês foi assassinado quando distribuía o jornal revolucionário Solidariedade. Entre os presos, contava-se o P.e César Miguel Teixeira da Fonte, detido a 11 de setembro de 1936, que permaneceu durante 11 meses na cadeia do Lazareto, e foi transferido, em agosto de 1937, para Caxias, juntamente com outros 100 prisioneiros. Após a sua saída da prisão, em liberdade condicional, em fevereiro de 1938, foi-lhe fixada residência em Lisboa, sempre vigiado de perto pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (depois Polícia Internacional de Defesa do Estado), à qual tinha de se apresentar semanalmente. Nesse mesmo mês de agosto de 1937, foram libertados os últimos presos do concelho de Santana. No seu relatório de defesa, escrito em Lisboa a 27 de setembro de 1937, no qual afirma que não atentou contra o Estado nem incitou o povo à revolta, o P.e Teixeira da Fonte refere que nos dias 5, 9, e 10 de julho de 1936, “à hora das missas”, perante a “efervescência popular”, se viu forçado “por um dever de consciência e de patriotismo a admoestar os seus paroquianos”, tendo-lhes pedido para não provocarem “ajuntamentos ou amotinamentos”, porque “era proibido pelas Leis de Deus e do País”. Também lhes disse que “derramaria o seu sangue se fosse preciso para salvar as suas ovelhas espirituais”, alertando-os contra os boatos e insistindo “que só era permitido fazer um abaixo-assinado, dirigido ao Governador e à Junta dos Lacticínios” e que “os párocos não estavam encarregados de dar explicações sobre este ponto, já por ignorarem a matéria política e também por a Igreja não ser lugar próprio para tratar de assuntos profanos” e que por isso deveriam “encontrar-se com quaisquer cavalheiros no Funchal conhecedores do assunto e pedir-lhes explicações sobre o decreto”. O padre refere ainda, no seu relatório, que informou os seus paroquianos de que os amotinamentos “não só ofendem gravemente a Deus, mas também as autoridades, que de forma alguma podem admitir a violência”, insistindo que deles “provinham grandes males, como prisões, processos, multas e tantos outros prejuízos” (FONTE, 1937). A imprensa da época silenciou estes acontecimentos. Apenas o porta-voz do Partido Comunista Português, o clandestino Avante, se referiu aos mesmos. Os pequenos e médios industriais das fábricas de lacticínios e muitos camponeses ainda tentaram organizar-se em cooperativas, mas sem qualquer sucesso, pois pouco depois a Junta Nacional dos Lacticínios da Madeira proibia a sua atividade.   Emanuel Janes

História Económica e Social