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rocha, vitúrio lopes

Vitúrio Lopes Rocha nasceu no Funchal a 5 de setembro de 1752, doutorou-se em matemática no dia 24 de dezembro de 1777 e foi lente de geometria na Universidade de Coimbra. Lecionou as cadeiras de álgebra, em 1779, enquanto substituto extraordinário, e de cálculo, entre os anos de 1780 e 1783, na função de substituto, tornando-se, posteriormente, lente de geometria, função que exerceu entre 1783 e 1795, ano da sua jubilação (a 27 de março). Ocupou o cargo de vereador do Corpo da Universidade (a 27 de março de 1792), o de comissário delegado e visitador das escolas menores da ilha da Madeira (em 1800) e o de comissário da Junta da Diretoria-Geral dos Estudos e Escolas Menores do Reino. Entre os seus escritos, contam-se a sua tese e o manuscrito Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia. Obras de Vitúrio Lopes Rocha: Theses ex mathesi universi quas confecto quinquennali studiorum curriculo publice intra diei spatium ad Doctoris Lauream in Conimbricensi Gymnasio obtinendam praeside Josepho Monteiro da Rocha ... proponit Victurius Lopes Rocha (1777); Sobre os Serviços Prestados pela Astronomia (1777).   Rui Gonçalo Maia Rego (atualizado a 17.12.2017)

História da Educação Matemática

lopes, carlos marinho

Professor, poeta e jornalista, nasceu na freguesia de São Pedro, Funchal, a 3 de março de 1896 e faleceu, com apenas 43 anos, no Funchal, na casa da R. da Conceição onde residia, no dia 12 de maio de 1939. Os seus pais eram Manuel Joaquim Camacho Lopes e Matilde Firmina Lopes. Formou-se na Escola de Habilitação para o Magistério Primário, a 1 de agosto de 1919, tornando-se professor do ensino primário. Falava corretamente inglês e francês. Na Madeira, foi docente nas freguesias de Tabua, de 1923 a 1924, Santa Maria Maior, em 1931, Serra d’Água, de 1931 a 1934, Camacha, em 1934, Ribeira Brava, em 1927, e Santa Cruz, em 1935. Ainda deu aulas de Inglês, Francês, Escrituração e Contabilidade. Foi fundador, diretor e professor do Colégio Marinho Lopes. Enquanto professor primário, Carlos Marinho Lopes recebeu um louvor da Câmara Municipal da Ribeira Brava, em 1927, pelo sucesso dos alunos por si propostos a exame, e outro da Câmara Municipal de Santa Cruz, em 1935, por ter fundado naquela freguesia um museu e uma biblioteca. Foi membro de uma tertúlia constituída por Octávio de Marialva, Albino de Menezes, Manuel Fernandes Rosa e Abel de Abreu Nunes, entre outros. Foi também cofundador, em 1920, com Horácio Bento Gouveia, Álvaro Favila Vieira, João Pestana Ferreira, Álvaro Manso, Manuel Ferreira Rosa e José Maria de Conceição Carvalho do quinzenário académico Os Novos. Foi um renomado escritor em prosa e em verso. Colaborou assiduamente no Diário da Madeira, onde dirigiu, a partir de 1 de janeiro de 1928, a “Gazeta infantil”. Escreveu também no Diário de Notícias e noutros jornais da Região, recorrendo aos pseudónimos Carlos do Mar, Príncipe Carlos e Príncipe Carlop. Do conjunto de textos publicados na imprensa, é de destacar a conferência “O teatro” que apresentou na Escola de Arte de Representar, de que foi diretor, e que foi publicada nas edições do Diário da Madeira de 24 e 31 de outubro, 7, 22 e 28 de novembro e 5 de dezembro de 1928. Publicou os livros Pensamentos e Blagues (Funchal, s.n., 1927), que pode ser consultado na Biblioteca Municipal do Funchal, A Galera (Funchal, Livraria Popular, 1927), que pode ser lido na mesma Biblioteca, e O Triunfo (1927), novela de que não possuímos mais informações para além da data. Segundo Luís Marino, o autor terá deixado inéditas as obras Flama (novela), Transviado, Claridades e Carta do Além. A crítica considerava-o um autor moderno, possuidor de um elevado sentido estético e de uma curiosa sensibilidade. Os seus textos em prosa eram elogiados pela sua beleza e poder de imaginação. Por ocasião da sua morte, a 12 de maio de 1939, o Diário da Madeira mostrou o seu pesar e exaltou o carácter e brilhantismo de Carlos Marinho Lopes – que, antes de morrer, exercia as funções de professor da escola do sexo masculino da Camacha e mantinha nessa cidade, à noite, um curso de lecionação de instrução primária e secundária, e de contabilidade. Obras de Carlos Marinho Lopes: A Galera (1927); Pensamentos e “Blagues” (1927); O Triunfo (1927).     António José Borges (atualizado a 14.12.2017)

História da Educação Literatura

livrarias

A existência de livrarias, com espaço físico ou virtual, e a facilidade no acesso ao livro, em termos de preço e disponibilidade no mercado, bem como a vulgarização do livro nas estantes das livrarias e bibliotecas pessoais é uma realidade tardia. Inicialmente, as bibliotecas (designadas de livrarias) eram institucionais. Só as famílias mais destacadas tinham lugar na sua casa para uma biblioteca, uma vez que a maioria da população não dispunha de condições para ter um espaço dedicado a essa função ou, tão-pouco, para comprar um livro. Note-se que em 7 de agosto de 1815, quando Napoleão Bonaparte escalou o Funchal a bordo do HMS Northumberland, a caminho de Santa Helena, o cônsul geral de Inglaterra, Henry Veitch, o visitou para lhe oferecer vinho, livros e fruta fresca. Também, mais tarde, Isabella de França, uma Inglesa casada com um morgado madeirense, que visitou o Funchal em 1853, refere a presença de livros em algumas casas, onde pareciam funcionar como elementos de decoração. Assim, numa visão geral das casas visitadas, refere: “Sobre as mesas encontram-se livros ricamente encadernados, porcelana francesa e outros adornos, entre os quais não faltam jarras de flores delicadas” (FRANÇA, 1970, 67). Sabemos que os livros faziam parte da bagagem dos viajantes, pois Isabella de França testemunha a presença destes no seu baú, entre roupa e outros objetos. Maria Clementina (1803-1867), freira do Convento de S.ta Clara e filha de Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcellos e de sua mulher, Ana Augusta de Ornelas, tinha em seu poder uma coleção de livros. Fanny Anne Burney, no jornal que escreveu em 1838 e que só publicou em 1891, refere que a freira era detentora e leitora de obras de Racine, de Corine, de M.me de Stael, da tradução francesa de Abbot de Walter Scott, das Maximes de Chateaubriand, de Paulo e Virgínea, e de Génie du Christianisme. Até ao aparecimento da imprensa, a circulação do livro fazia-se através de cópias entregues a copistas especializados de instituições como conventos. Na Madeira, só com a publicação, em 1821, do jornal O Patriota Funchalense se registou a primeira tipografia, sendo a atividade exclusiva desta a edição de jornais. O primeiro livro que terá sido editado na Ilha foi Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, com as anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, em 1873, na Tipografia Funchalense. Por outro lado, não podemos esquecer o controlo da edição de livros que existiu em Portugal, primeiro pela Inquisição e depois por ordem política, que condicionou a circulação de livros. O livro era um produto raro e quase só estava disponível em bibliotecas, ou livrarias, de instituições. Conhecemos a importância das livrarias dos conventos, nomeadamente da livraria do Colégio dos Jesuítas, e da livraria da Escola Médico-Cirúrgica, no Funchal. Também podemos assinalar algumas bibliotecas privadas de instituições industriais, como a de Hinton, ou de técnicos especializados, como João Higino Ferraz, que tinham necessidade de obras especializadas de âmbito científico e que encomendavam, por interposta pessoa, livros editados em França e Inglaterra. Mas, na segunda metade do séc. XIX, a realidade madeirense começa a mudar, de forma que José Silvestre Ribeiro refere as livrarias do Paço Episcopal, dos conventos, do Seminário e da Câmara. Ademais, a tradição dos clubes privados e das associações conduziu à valorização da leitura com a disponibilização de livros. Assinale-se o Clube Inglês, onde se anuncia, com muita pompa, a disponibilidade de uma sala de leitura que vinha colmatar as necessidades de lazer dos súbditos britânicos de passagem. Note-se que os Ingleses insistiam nas carências culturais da cidade funchalense, apontando a falta de teatro, cafés e livrarias, como sucede com Emiline Stuart Wortley, em 1854. A venda de livros na Madeira parece ter começado através do comércio a retalho em lojas, mercearias e bazares, onde se vendia tudo. O comércio por miúdo de produtos em lojas especializadas é uma realidade do séc. XX. Mais tarde, vamos encontrar a venda de livros associada às tipografias em geral, às tipografias especializadas e à publicação de jornais, através de anúncios que publicitavam os locais de assinatura das publicações que apareciam em fascículos, a saber, algumas lojas de referência na cidade, que tinham representações das editoras de Lisboa. Em 1850, John Driver estranha a ausência de livrarias no Funchal, afirmando: “There is no literature – no bookseller's shop – on the whole Island; although a few books may be had in other shops, but very few [Não há literatura – não há nenhuma livraria – em toda a Ilha; embora se possa comprar um ou outro livro noutras lojas, mas muito poucos]” (DRIVER, 1850, 381-382). Dennis Embleton confirma esta ausência de livrarias e conclui: “The want of booksellers' shops is a sure sign of the backwardness of education among the people, and it is a great inconvenience to visitors [A ausência de livrarias é um sinal evidente do atraso educativo do povo, e um grande inconveniente para os visitantes]” (EMBLETON, 1862, 36). Em 1868, Gomes Leal esteve no Funchal e, numa das suas missivas, referiu uma biblioteca na Madeira “que o deixou atónito. Era muito cheia de livros de Jesuítas e, entre eles, um Dicionário Universal composto de 200 volumes. É a coisa mais curiosa que tenho visto” (NEPOMUCENO, 2008, 41). Ainda na mesma data, vemos António Nobre dizer que, na sua viagem para a Ilha, ia carregado de livros: “levo livros, muitos livros e o ‘Regresso’ para o completar: desta vez sempre irá” (NEPOMUCENO, 2008, 50). Em 1885, a situação persiste, afirmando J. Y. Johnson que: “A private library is a thing unheard of, and there is not a Portuguese bookseller's shop on the island. Some of the shopkeepers, it is true, keep books on their shelves, hut they are very few in number and chiefly works of religious devotion [Não há bibliotecas particulares, nem existe uma livraria portuguesa na Ilha. É verdade que algumas lojas vendem livros, mas são muito poucos e são essencialmente obras de devoção]” (JOHNSON, 1885, 55). Por tradição, se os leitores da Ilha não importassem os livros do continente e do estrangeiro, tinham de se sujeitar ao regime de assinaturas, que operava apenas com as publicações mais vulgarizadas. Em 1882, O Crime de Alberto Didot, por exemplo, poderia ser comprado mediante assinatura, que poderia ser feita no Funchal, nas lojas Nova Minerva, Camacho & Irs. e Camisaria Central. Já a assinatura da História de Portugal de Manuel Pinheiro Chagas poderia ser feita diretamente no jornal que publicava o respetivo anúncio. No entanto, em 1877, o Diário de Noticias refere que o Bazar Camacho e Irs. já vende livros e que a Casa Camacho e Carregal tem disponível o Almanach das Senhoras para o ano de 1878. As razões que explicam o facto de o livro ser um produto pouco comum na sociedade madeirense e de ser rara a sua venda em lojas são o elevado custo das publicações e o problema do analfabetismo, que chegou, em parte, ao séc. XXI. A paulatina vulgarização do ensino levou à necessidade de livros escolares e abriu caminho para um potencial de leitores. Assim, em 1889, a Gramática de Língua Portuguesa de João de Nóbrega Soares, que apresentava maior procura, vendia-se em diversos estabelecimentos no Funchal. Já o livro de J. C. Faria, O Archipelago da Madeira, tinha um depósito geral na casa Dilley no Funchal. A déc. de 80 do séc. XIX, marca, portanto, uma mudança de atitude em relação à venda dos livros. As publicações que eram vendidas, quase sempre através de anúncio de jornal, passam a dispor de livrarias e de vários estabelecimentos de depósito de livros. O Funchal passa a ter uma loja especializada para a sua venda. Surge, assim, em 1886, a Livraria e Tipografia Esperança, que perdurou como espaço exclusivo para a venda de livros. Em 1914, esta livraria com projeção nacional mudou-se para a R. da Alfândega e, em 1938, para a R. dos Ferreiros. Em 1973, instala-se definitivamente no número 119 da R. dos Ferreiros, com um stock de 12.000 livros diferentes. Em 1991, a continuidade da livraria foi assegurada com a criação da Fundação Livraria Esperança, Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) declarada como sendo de utilidade pública. Passados cinco anos, ampliou-se o espaço de exposição com a aquisição de um prédio que serve de anexo, com uma área de 1200 m2 e mais de 96.000 livros expostos. A partir do séc. XX, começam a surgir novas livrarias, o que quer dizer que o livro, como produto de venda, tem cada vez mais clientes. Assim, em 1906, temos a livraria Funchalense e, em 1907, a livraria Escolar de Polonia & C.ª. O Almanac Madeirense para 1909 apresenta publicidade ao Bureau de la Presse de J. M. da Rosa e Silva, um quiosque da época sito à Pç. da Constituição, onde se vendia: “livros Nacionais e estrangeiros aos preços das casas editoras – sempre as últimas novidades literárias!” (Almanac de Lembranças Madeirense para 1909, 1908). Em 1910, o Roteiro do Funchal de A. Trigo apresenta as seguintes papelarias e livrarias: Antonio d’Andrade, R. dos Ferreiros, 24 e 26; Bazar do Povo, R. do Bettencourt, 1 a 21; Coelho, Irs., Lg. da Sé, 4; livraria Escolar, R. Camara Pestana, 14; livraria Funchalense, R. do Bispo, 25 a 35; Loja Dilley, R. do Aljube, 13 e 15; Minerva Phenix, R. do Príncipe, 53; Nova Minerva, R. da Alfandega, 45. Já o almanaque ilustrado de 1913 refere em anúncio a livraria Popular de José Eduardo Fernandes na R. de João Tavira, que vende “grande variedade de quinquilharias, vidros, objetos para escritório, livros de estudo e objetos de culto religioso” (1913 – Almanach Ilustrado do Diário da Madeira, 1912). Mesmo assim, Charles Thomas-Stanford, no mesmo ano, fica com a imagem de uma terra que não é de amantes de livros, pela sua raridade: “Book-lovers will deplore the booklessness of the town – which does not boast a bookseller of any sort [Os amantes dos livros não deixarão de lamentar que se trate de uma cidade sem livros – uma cidade onde não existe uma única livraria]” (THOMAS-STANFORD, 1910, 201). No séc. XXI, o Funchal, para além destas livrarias, dispunha de outras com menor dimensão, sendo de destacar as livrarias Bertand, FNAC e Worten. Todavia, devemos salientar que o conceito de livraria corre o perigo de se perder com a assimilação por parte dos espaços de venda de produtos variados, como é o caso da livraria FNAC, que está incorporada numa loja de artigos eletrónicos e eletrodomésticos, e das livrarias dos supermercados, nomeadamente da marca Continente e Pingo Doce. O Funchal contava ainda com a Fundação Livraria Esperança, a Julber papelaria e livraria Lda, a Leya SA, e a livraria Papel e Caneta. Por tradição, as lojas especializadas em serviço de papelaria, como a livraria Figueira, a papelaria Condessa, a papelaria do Colégio e o Bazar do Povo, tinham serviço de venda de livros. A livraria Figueira viria a desaparecer. A papelaria Condessa e o Bazar do Povo cessariam o serviço de venda de livros. Apenas a papelaria do Colégio manteria uma diminuta secção de livros Por outro lado, as instituições oficiais dispõem de expositores e de serviço de vendas de publicações tanto num regime material como num virtual, pela Internet. Assim, a Direção Regional de Cultura apresenta, na R. dos Ferreiros, os livros publicados pela extinta DRAC e pelo Arquivo Regional da Madeira; já o Centro de Estudos de História do Atlântico tem, na R. das Mercês, um expositor e serviço de vendas. Também a Câmara Municipal do Funchal apresenta, no átrio do Teatro Municipal, o seu Serviço de Publicações. Com orientação definida em termos das publicações, deveremos referir a Paulinas Multimédia, que existe no Funchal. Esta livraria dedica-se a publicações de carácter religioso. Podemos referir ainda a livraria Inglesa, que funcionava em diminuto espaço do Pateo Photographia Vicentes e que tinha um serviço especializado de venda de publicações em inglês. Num âmbito especializado da banda desenhada, merece, por fim, referência a livraria Quinta Dimensão, criada em setembro de 2004, que se transformou num polo de divulgação de banda desenhada. Ainda no âmbito do mercado livreiro, não podemos esquecer a realização dos festivais literários e das feiras do livro, organizadas, desde 1975, pela Câmara Municipal do Funchal, que sempre foram um espaço de divulgação e de contacto do público com o livro.     Alberto Vieira (atualizado a 14.12.2017)  

História da Educação Literatura Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

remates de telhado

Uma das originalidades da arquitetura popular madeirense são os remates de telhado, colocados nos extremos dos beirais, que aparecem, por exemplo, com cabeças de menino e de senhora, pombas, bem como outros animais, folhas de acanto, naturalistas e estilizadas, numa diversidade francamente interessante e quase única no contexto nacional. Não temos referências sobre a sua origem, sendo sempre evasivas as respostas dadas pelos mais antigos proprietários, que se refugiam no costume e pouco mais. Nenhum deles conseguiu, pois, explicar por que se optou por este ou aquele modelo e não por outro, não tendo, em princípio, a mínima ideia de qualquer significado que possam ter estes elementos. Cabeça de menino. Foto: BF As construções urbanas e mais abastadas apresentam remates congéneres da arquitetura portuguesa e internacional divulgada nos finais do séc. XIX, com recurso a platibandas rematadas com urnas, algumas de faiança das fábricas do norte de Portugal, provavelmente de Vila Nova de Gaia. Já muito raras são as figuras alegóricas, igualmente em faiança, que proliferaram também a partir dos finais desse século como remates de fachada, sendo quase todas entretanto apeadas, tal como as decorações de algumas fachadas com azulejos arte nova, que vão igualmente rareando. Se alguns remates centrais de telhado em forma de agulha são semelhantes aos vigentes no continente, os figurativos que rematam os beirais na arquitetura popular madeirense afastam-se, no entanto, totalmente dos congéneres continentais, constituindo uma marca e uma presença profundamente originais que teima em sobreviver. A configuração destes remates de telhado que conhecemos na Madeira não é, em princípio, muito antiga, pois que a cobertura por telha com beiral não deve ser anterior aos meados do séc. XVIII. Na pouca iconografia que conhecemos, quase toda de caráter senhorial ou militar, as coberturas de telha são interiores às empenas, fazendo convergir as águas sempre para caleiras igualmente interiores e saindo as mesmas por gárgulas na divisão dos telhados, quase sempre múltiplos. Acresce que, até meados e finais do séc. XIX, a arquitetura popular e tradicional madeirense manteve-se com coberturas de colmo, sendo raras as coberturas de telha. Nas descrições dos muitos viajantes estrangeiros que passaram pela Madeira, em princípio mais sensíveis às especificidades locais que os naturais, não lhes é feita qualquer referência aos remates, pelo que, a existirem, não teriam, por certo, a exuberância que lhes conhecemos hoje. A atenta inglesa Isabella de França (1795-1880), no Journal da sua visita à Madeira, em 1853, dedica duas linhas à arquitetura popular, dizendo apenas que, nas habitações mais modestas, “as telhas estão seguras com pedras, de forma que o vento as não leve, e rematam-se no topo com uma panela de barro invertido” (FRANÇA, 1970, 65). A utilização destas marcas ou sinais, no entanto, tem de ser muito antiga e de se encontrar profundamente enraizada no sentir e viver populares para ter tido, nos inícios do séc. XX, a espantosa e invulgar popularidade com que chegou até nós. Sendo já pontual nos Açores – em alguns casos, por recente importação da Madeira, como na Caloura, na ilha de S. Miguel –, reduz-se, no território continental, a uma outra estilização mais erudita e cosmopolita do que a existente nas áreas periurbanas e rurais madeirenses. Aliás, também na área periurbana do Funchal e nas habitações mais abastadas, a opção vai para a aplicação de elementos mais estilizados e menos figurativos, como folhas de acanto e concheados. Este costume perdeu-se quase por completo nos Açores, sendo, no entanto, referido por vários investigadores, como Luís Bernardo Leite de Ataíde, Alfredo Bensaúde e Ernesto Ferreira, que associam essas antigas representações às festividades do Espírito Santo, embora admitindo o seu cariz arcaico e fálico. Efetivamente, até o termo “pomba” ou mesmo “pombinha” têm em ambos os arquipélagos fortes ressonâncias sexuais, sendo, tanto nos Açores como na Madeira, fortemente inibitórios. De resto, a pombinha do Espírito Santo, tão celebrada pelos foliões, representa sempre a proteção e é celebrada como símbolo da abundância e da fecundidade, não espantando o seu aparecimento emblemático nas habitações, como elemento zelador da família no campo da saúde, bem-estar e alegria do lar. Pombo. Foto: BF A grande diferença dos remates madeirenses é a sua associação às cabeças de menino, mas também a cabeças femininas, mais requintadas e com elementos específicos de abastança, como brincos e colares. Parece, assim, estar-se na presença, não só de símbolos de virilidade, fertilidade e abundância, como seriam as pombas evocativas do Espírito Santo, que a Igreja Católica reservou como instrumento divino de Encarnação da Virgem, como da felicidade imediata do casal, como seriam as cabeças de menino, alusivas aos filhos que geraram. A generalização do costume dos remates de telhado em forma de pomba levou, no entanto, à sua utilização em outras habitações, como na residência paroquial de S. Pedro do Funchal, um dos poucos exemplares verdadeiramente artesanais localizados em plena cidade e obtidos pela modelação de argamassa e telha recortada. A enorme divulgação dos remates de teto figurativos na Madeira parece estar associada ao surto de construção ocorrido entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, que surgiu na sequência da divulgação da telha Marselha e adveio do poder económico dos emigrantes de “torna-viagem” (Emigração), especialmente de Demerara, daí a designação “demeraristas” dada às suas habitações (Arquitetura). Deve datar dessa época a encomenda massiva às antigas olarias madeirenses dos remates e a sua execução em barro então cozido por moldes, embora também apareçam exemplares em fibrocimento. Existem cerca de meia dúzia de variantes das pombinhas, em repouso ou com asas levantadas, sendo inclusivamente utilizadas como remates e decoração das asnas superiores dos tetos, que parecem já apontar, por vezes, para um gosto orientalizante ou orientalista, dito “chinoiserie”. A utilização destes remates é, aliás, muito comum na arquitetura chinesa, tendo influenciado decidamente alguns exemplares madeirenses mais eruditos, como os dragões chineses que ainda subsistem numa habitação abastada do sítio do Trapiche, na freguesia de Santo António do Funchal, onde as telhas de divisão das águas se apresentam decoradas no dorso com elementos lanceolados, e que também existiram numa outra habitação da freguesia do Monte, junto do cemitério, que foi já demolida. A imaginação popular, entretanto, foi criando outras variantes, como papagaios, muito divulgados, alguns tipos de cabeças de cão, gatos em meia figura – que surgem no centro de Machico ligadas às datas de 1924 e 1932 – e galos, sendo estas duas últimas figuras algo raras. Relativamente às figuras de cão, deve registar-se alguma influência inglesa, uma das matrizes de referência da cultura madeirense dos finais do séc. XIX, pois que o modelo que se tipificou foi o do buldogue, e não o dos normais cães de guarda portugueses. As variantes das folhas de acanto também são várias, podendo aparecer colocadas na vertical ou inclinadas e simplificadas para pequenos elementos lanceolados ou pela aplicação de simples pontas obtidas pelo recorte de telhas. Divulgaram-se igualmente elementos inspirados em concheados, conhecidos como “patas de leão”, que, dada a extinção das olarias na RAM, passaram a ser comercializados por olarias continentais. Os novos modelos da arquitetura e da construção civil já não contemplam a aplicação destas antigas marcas ancestrais e o encerramento das olarias madeirenses, na última década do séc. XX, decretou o fim desta ancestral tradição.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Antropologia e Cultura Material Arquitetura Cultura e Tradições Populares

palácios

O termo “palácio” parece não ter sido utilizado na Madeira durante os primeiros séculos de povoamento, sendo geralmente empregados os vocábulos “aposento”, “casas” ou “paços”, palavra a que recorreu o doutor Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) nos finais do séc. XVI. O termo “paço”, com a mesma raiz latina que “palácio”, apresenta variantes nos séculos seguintes, nomeadamente “solar” ou “moradia”, como era denominada a residência dos Carvalhal, passando a designação para a rua e sendo depois corrompida para “mouraria”. Na planta do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), de outubro de 1804, aquela ainda aparece registada como “Rua da Moradia” (IGP, cota 539). Planta da cidade do Funchal. Agostinho José Marques Rosa. Arquivo Rui Carita. Em rigor, o solar é a casa onde nasceu uma determinada linhagem nobre, passando assim de geração em geração, o que em relação aos novos domínios da expansão portuguesa tem aplicação difícil, pois os elementos fundadores vieram de fora, tornando-se complicado concretizar se, p. ex., os Esmeraldo nasceram na importante residência da rua que ainda hoje tem o seu nome ou no chamado Solar dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol (Arquitetura senhorial). Acresce que as principais famílias terratenentes começaram a fixar-se na cidade logo entre os sécs. XVI e XVII, pelo que a utilização do termo “solar” apresenta limitações, sobretudo quando como que se duplica, como acontece no caso do Solar do Aposento, em Ponta Delgada, ligado à família de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983) e cuja última proprietária foi D. Maria Hilária Dinis Abreu de Freitas (m. 2003). Solar do Aposento. Ponta Delgada. Arquivo Rui Carita. Uma das primeiras utilizações do termo “palácio” deve ter sido a que fez o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), em referência à fortaleza do Funchal, que disse ser um “bom palácio residencial”, apesar de entender que pouco valia como obra de defesa (AGS, Guerra y Marina, leg. 127, docs. 42 e 46) (Palácio e fortaleza de S. Lourenço). Os cronistas insulares, como Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) ou o mencionado Gaspar Frutuoso, não utilizaram o termo “palácio”. Este cronista açoriano, embora com base no texto que Dias Leite lhe enviara do Funchal, acrescenta inúmeras informações recolhidas por pessoas que conheciam a Madeira, dado que o próprio nunca terá estado na Ilha. Faz assim menção ao “aposento antigo, muito rico, com casa de dois sobrados e pilares de mármores nas janelas e em cima seus eirados” de João Esmeraldo (c. 1460-1536); às “ricas casas e aposentos” onde morava Pedro de Valdavesso e Francisco de Salamanca; às “ricas casas de dois sobrados, com poço dentro e portas de serventia”, na “chamada Rua do Sabão”, onde morava o escritor Tristão Gomes de Castro (1539-1611), “que chamam o Perú”, nome que passou a ser o das rua de cima dessas casas, hoje o troço mais baixo da R. dos Ferreiros; bem como aos “ricos aposentos” de uma mulher nobre que não nomeia e às “casas, como paços muito grandes”, onde Martim Vaz de Cairos tinha “uma comprida sala, em que jogam a péla” (FRUTUOSO, 1968, 112-113). As casas mais importantes eram designadas “paços”, palavra utilizada por Frutuoso para se referir à Quinta das Cruzes, onde vivia o governador da capitania, Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586), nos finais do séc. XVI: “uns paços grandes e sumptuosos” (Id., Ibid., 115). As casas dos capitães do Funchal, na fortaleza da cidade, no entanto, são mencionadas somente como “ricos aposentos, onde o capitão pousa, adornados com seu jardim e frescura” (Id., Ibid., 111). Cerca de 100 anos depois, em 1698, tendo o novo governador da Madeira, D. António Jorge de Melo (c. 1640-1704), solicitado “instruções” em Lisboa “de como se deve portar o governador dela para fazer bem a sua obrigação”, S. Lourenço não era de forma alguma um palácio. O informador daquele, que tudo leva a crer ter sido o madeirense doutor António de Freitas Branco (1639-c. 1700), alto funcionário do Conselho de Estado, “no que toca à casa que deve levar” o governador, descrimina não só os funcionários administrativos como também “um secretário e de muito segredo e confiança” (BNP, reservados, Col. Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). Adita que o governador deveria levar igualmente “um homem que lhe governe a casa, dois pajens acrescentados”, “um copeiro, um cozinheiro e dois lacaios, que logo lá se fazem fidalgos, e um negro que leve a alcatifa e a cadeira” (Id.., Ibid.). Indica também a necessidade de levar “móveis de casa, duas dúzias de cadeiras e tamboretes, três bufetes, um grande com gavetas para escrever, outro para a casa do secretário e outro para vestidos na casa de dormir”, tal como uma “mesa grande para comer, porque às vezes pode convidar alguns fidalgos ou capitães, achando-se na sua casa em horas de comer” (Id., Ibid.). António de Freitas Branco, o provável informador, fora criado no Funchal e depois fixara-se em Lisboa, mas estava permanentemente a par do que se passava na Ilha, nomeadamente que as “casas” da fortaleza não possuíam qualquer recheio, tendo o governador de levar quase tudo consigo. O termo “palácio” tinha assim um significado algo diferente daquele que veio a ter depois, indicando especificamente uma residência de aparato exterior e com recheio de certa qualidade. O vocábulo, de início, dizia também respeito à alta personagem residente nesse grande imóvel ou à sua família, passando depois a alargar-se, abarcando determinadas instituições administrativas, camarárias ou de justiça. O termo só deve ter aparecido na Madeira nos finais do séc. XVII ou nos inícios do XVIII, em relação à residência dos governadores e capitães-generais da Ilha e, depois, ao longo desse séc. XVIII, a propósito do paço episcopal; somente nos finais de Setecentos terá sido aplicado às residências tradicionais das principais famílias madeirenses. O uso de “palácio” em menção ao paço episcopal do Funchal surgiu em 1725, numa queixa apresentada pela Câmara contra o prelado diocesano D. frei Manuel Coutinho (1673-1742), referenciando “os pretos e pretas cativos, que andam pelas ruas e as amas dos expostos, que por causa da sua pobreza, se entregam ao seu vício”, ou seja, a prostituição, e que tinham “declarado no palácio episcopal ao escrivão da câmara” eclesiástica, que, face a terem sido condenados “pelo seu trato” a pagarem as respetivas penas, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus” (ABM, Câmara..., liv. 1436, fls. 62-65v.). A mesma expressão surge novamente a 15 de janeiro do ano seguinte, quando as freiras da Encarnação “romperam” a “clausura desesperadamente” para serem recebidas pelo prelado, explicando-se que foram detidas junto ao largo do colégio dos padres da Companhia, “em distância de um tiro de escopeta do palácio” episcopal, pelo desembargador José de Siqueira, que veio a servir de interlocutor entre as mesmas e o bispo (Id., Ibid.). A designação “palácio episcopal” mantém-se ao longo desses anos, como permite verificar o pedido de aumento do edifício, muito afetado pelo terramoto de 1748, alegando-se aí que ele “já antes era muito pequeno, pelo que se tinha ocupado o colégio de S. Luís, [até então] seminário da diocese” (ANTT, Provedoria..., liv. 973, fl. 57). A ampliação foi solicitada logo no mesmo ano de 1748, havendo diligências em 1749, altura em que efetuou o projeto o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins e se orçamentaram as obras. Vestígios do palácio dos Acciauoli. Arquivo Rui Carita Na planta de Agostinho José Marques Rosa, datável de cerca de 1800 e que foi oferecida ao 2.º visconde de Balsemão, aparecem mencionados vários palácios, nomeadamente o palácio de Nuno de Freitas, ou seja, a quinta das Cruzes, então propriedade de Nuno Martiniano de Freitas e depois do seu filho, o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880); o de João de Carvalhal (1778-1837), isto é, o então palácio de S. Pedro (Carvalhal, 1.º conde de); o de D. Guiomar (1705-1789), já falecida, mas cuja importante construção na R. do Castanheiro ainda se impunha e impõe (Vilhena, D. Guiomar de); o de Francisco António da Câmara, na R. dos Ferreiros, que passou depois aos condes de Torre Bela e veio a ser demolido em 1942 para a construção do tribunal; o do Senhor Fernando José Correia (1768-1821), assim tratado por ter casado em 1792 com D. Emília Henriqueta Pinto de Sousa (1775-l850), filha do secretário de Estado visconde de Balsemão (1735-1804), a quem é dedicada a planta; e o dos Acciauoli, conjunto edificado que já se encontra registado na planta de Mateus Fernandes (c.1520-1597), de 1567/1570, ocupando então essas “casas de Zenóbio Acciauoli” (c. 1530-1598) (BNB, cartografia, 1090203) um quarteirão inteiro, até à Trav. do Forno, mas cuja família já não residia no local no final de Setecentos, vindo-se a levantar depois na área sul o Bazar do Povo, podendo alguns dos elementos edificados que se encontram sobre a atual Farmácia Nacional remeter aos inícios do séc. XVIII. Os palácios dos Carvalhal e dos Correia foram reconstruídos nos finais do séc. XVIII, encontrando-se em obras por volta de 1790. Existe algum paralelismo entre uma e outra edificação, marcadamente neoclássicas, podendo ambas as reconstruções ter decorrido sob a direção de António Vila Vicêncio (c. 1730-1796). As obras das casas do futuro visconde de Torre Bela não devem ter tido o seu acompanhamento muito direto, pois embora se encontrasse no Funchal por volta 1790, quando assumiu o posto de coronel do regimento de milícias da Calheta e quando terão tido início os trabalhos de construção em causa, já estava em Lisboa a 22 de outubro de 1792, vindo a contrair aí matrimónio com a filha do secretário de Estado Luís Pinto de Sousa, visconde Balsemão. Só se deslocou novamente ao Funchal para ver as obras nos inícios de 1803, tendo saído da Madeira em fevereiro de 1804, na fragata “Andorinha”, com o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), seguindo depois para Berlim e não regressando à Ilha. O palácio Torre Bela levantou-se em terrenos desta família, na sua posse, pelo menos, desde os finais do séc. XVI, tendo chegado a residir aí os bispos do Funchal. As primeiras casas foram destruídas por um incêndio, a 26 de julho de 1594, que se propagou ao quarteirão poente, ainda hoje delimitado pelas ruas da Queimada de Baixo e da Queimada de Cima (Urbanismo). Reconstruídas após o fogo, foram residência, nos inícios do séc. XVIII, do genealogista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730). Nos finais de Setecentos, deram lugar ao palácio, cuja construção não reaproveitou quase nada das edificações anteriores. Na fachada voltada para a R. dos Ferreiros, o palácio apresenta um piso nobre de excecional altura, com oito janelas de sacada que se articulam com as do piso inferior, de serviços; tem ainda um segundo piso, também destinado a serviços, na área sul, dado o desnível do terreno. A fachada sobre a Trav. do Forno permite uma leitura idêntica; exibe um fortíssimo cunhal de bases relevadas a marcar especialmente o piso térreo, e apresenta mais dois corpos de serviços, ao nível da mesma fachada, sendo o intermédio torreado e com cinco pisos. Solar dos Leais. Arquivo Rui Carita A fachada à R. dos Ferreiros é rematada por um filete relevado de cantaria aparente e cornija, na qual existem cinco gárgulas de cantaria, indicativas de ter existido um conjunto correspondente de telhados de tesoura, entretanto uniformizados. Esta fachada ostenta um portal de pilastras relevadas, sendo o entablamento encimado pelas armas dos Torre Bela, partidas de Correia e Henriques, assentes em cartela rococó e rematadas por coroa de visconde, logo, posterior a 1812, data da atribuição do título. Interiormente, o palácio apresenta um átrio, reformado nos finais do séc. xix, do qual terão sido retiradas as armas do 3.º visconde de Torre Bela, o diplomata Russel Manners Gordon (1829-1906) (Quinta do Monte), peça talvez de 1857, posteriormente colocada num dos salões do piso nobre. O palácio terá passado por grandes obras interiores nos meados do séc. XIX, época em que foram executados os estuques rococó do piso nobre. Em 1879, o palácio passou a servir de sede ao Clube Funchalense, que aí permaneceu até 1901. Logo nesse ano, o palácio foi solicitado pelo Grémio dos Industriais de Bordado da Madeira, sendo depois ocupado por diversas firmas, nomeadamente a Casa Americana, de que subsistem fotografias. Nessa sequência, acabaram por se instalar ali, pelo menos até à déc. de 70 do séc. XX, outras empresas de bordado. O edifício foi classificado como Imóvel de Interesse Público, a 26 de setembro de 1940, mas o decreto foi suspenso a 1 de novembro seguinte, no quadro das classificações de imóveis de propriedade particular. Mais complexa foi a vida do palácio dos Carvalhal, reformulado por volta de 1790, igualmente com enorme impacto volumétrico no tecido urbano. A campanha de obras, no entanto, abordou essencialmente o corpo principal, quase quadrado, reintegrando a torre central, bastante alterada nos meados do séc. XX, a que se justapõe um corpo longitudinal, a norte e a avançar para oeste, que mantém inúmeras preexistências, p. ex., os arcos, pavimentos e fornos dos sécs. XVII e XVIII. O conjunto integra, para oeste, uma área calcetada e exibe a data de 1929 sob a sua entrada; posteriormente, veio a incluir também um pequeno parque, hoje ocupado por um jardim de plantas aromáticas, onde teria sido o jardim interior do palácio. Portal do palácio de S. Pedro   Palácio de S. Pedro A fachada principal, à R. da Mouraria, apresenta três pisos, tendo nos cunhais importantes pilastras de cantaria aparente com bases relevadas e embasamento de cantaria rematado por friso relevado onde assentam as janelas gradeadas do piso térreo. Ao centro, a fachada é rasgada centro por um imponente portal com pilastras triplas, entablamento, lintel de balanço e frontão curvo, interrompido pelas armas dos Carvalhal, esculpidas em mármore, com escudo ondulado e ladeado por palmas, com coronel de nobreza e timbre – tratam-se já das armas do 2.º conde, logo, o elemento remonta aos meados do séc. XIX. O andar de serviços apresenta janelas de guilhotina com molduras boleadas, de cantaria, filete exterior relevado, entablamento e a articularem-se com o piso superior pelo prolongamento das ilhargas. O piso nobre é separado do inferior por um friso relevado, onde assentam as janelas de sacada, com grades elaboradas que pensamos serem mais recentes, prolongadas e corridas sobre os cunhais, tendo essas janelas molduras de cantaria idênticas às do andar inferior, mas com lintel de balanço. O conjunto é rematado por uma cornija de balanço, assente sobre um friso de cantaria que possui três gárgulas em forma de canhão e nascendo de enrolamentos vegetalistas, no ritmo dos telhados de tesoura, de águas múltiplas, pelos vários corpos. Na Calç. de Santa Clara, aparece recuada a fachada do corpo posterior e mais antigo, com a porta da primitiva capela encimada por largo arco de cantaria gradeado e janelão superior, igualmente gradeado. A capela encontra-se ainda dotada de um retábulo dos finais do séc. XVIII ou inícios do XIX, embora já sem qualquer imaginária ou outro equipamento religioso. Estuque Palácio de S. Pedro. Arquivo Rui Carita Sala do palácio de S. Pedro. 1900. Arquivo Rui Carita O 1.º conde de Carvalhal da Lombada pouco usufruiu do palácio, pois privilegiou a quinta do Palheiro Ferreiro como residência após a turbulenta “ocupação” absolutista, vindo a falecer nela, a 11 de novembro de 1837. O mesmo não se passou com o 2.º conde, o seu sobrinho António Leandro (1831-1888), que ali ofereceu uma receção ao infante D. Luís de Portugal, em 1858, e à futura imperatriz do México, Carlota da Bélgica, em dezembro de 1859, entre outras, conseguindo esbanjar totalmente a sua importante fortuna, num curto espaço de tempo. Embora ainda vivesse no palácio, em 1882, viu-se obrigado a arrendar parte do edifício para a instalação do Hotel Sheffield, dirigido por Varolina Sheffield; um ano depois, arrendou outra parte ao colégio de S. Jorge, dirigido pela futura madre Mary Jane Wilson (1840-1916). António Leandro Carvalhal Esmeraldo, 2.º conde de Carvalhal, veio a falecer no palácio a 4 de fevereiro de 1888 e, em 1897, foi ali instalado o Clube Internacional. Uma das filhas do falecido conde, D. Teresa Câmara, viscondessa do Ribeiro Real (1836-c. 1925), em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, então por 535 contos, tendo a Câmara do Funchal oferecido 400 contos através do seu advogado, Dr. Nuno Ferreira Jardim (1850-1941). A venda, entretanto, foi contestada pelos coproprietários, condes de Resende e família de Eça de Queiroz, herdeiros da outra irmã, D. Maria das Dores. A viscondessa do Ribeiro Real, a 20 de janeiro de 1923, mandou proceder à venda em leilão do que restava do recheio do palácio e, a 19 de setembro de 1929, a Câmara conseguiu a confirmação da expropriação do imóvel, passando o palácio à sua posse e sendo o pagamento efetuado mediante um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos. Por essa data, que figura na entrada para o pátio, procedeu-se à instalação das coleções do Museu de História Natural no andar nobre; no ano seguinte, a Biblioteca Municipal acomodou-se também no primeiro piso do palácio. Em 1933, o Arquivo Regional da Madeira alojou-se provisoriamente no piso térreo do edifício, onde permaneceu até à déc. de 90. Ainda em 1935, o Dr. Fernão de Ornelas Gonçalves (1908-1978), presidente da Câmara Municipal do Funchal, fixou residência no palácio, continuando a habitá-lo até à sua saída da presidência, em 1946. No ano seguinte, em janeiro, deflagrou um incêndio na torre do palácio, levando à destruição da coleção de pintura doada por Alfredo Miguéis (1883-1943). Nos meados de 1947, efetuou-se o restauro do imóvel, tendo o pintor Max Römer (1878-1960) procedido ao retoque do teto armoriado. A 9 de setembro de 1964, inaugurou-se o busto do naturalista Adolfo César de Noronha (1873-1963), um dos principais impulsionadores do museu municipal ali instalado, uma peça da autoria do mestre Pedro Anjos Teixeira (1908-1997). Ao longo do séc. XX, outros edifícios passaram a ser designados como palácios, nomeadamente as casas senhoriais dos Ornelas, na R. do Bispo; as casas do morgado Nicolau de Freitas Barreto, na R. João Esmeraldo e hoje Pç. Colombo, onde se encontra o Tribunal de Contas; e as antigas casas dos cônsules, na R. da Conceição, hoje em parte no Lg. do Carmo, onde se encontra o Tribunal de Menores. Idêntica designação recebeu o novo edifício da Junta Geral, refeito sobre o anterior seminário diocesano da Encarnação e notavelmente ampliado e decorado ao longo da Primeira República, sendo então designado Palácio da Junta Geral; o novo edifício deste órgão administrativo, que se transferiu para as antigas instalações da Misericórdia do Funchal, adaptadas segundo o projeto do arquiteto Januário Godinho de Almeida (1910-1990), de 1952, voltou a ter essa denominação. Pontualmente, a designação de palácio foi também atribuída ao edifício reformulado da Câmara Municipal do Funchal e, depois, ao novo tribunal do Funchal, igualmente da autoria de Januário Godinho, e conhecido como Palácio da Justiça (Cidade modernista). Palácio da Justiça. Foto BF   Rui Carita (atualizado a 19.12.2017)

Arquitetura

quintas românticas: arquitetura e turismo

Ao longo do séc. XIX, a desagregação do regime de morgadio, que as reformas liberais realizaram em Portugal, libertou a propriedade rural e suburbana dos seus vínculos (Vínculos e capelas), pondo-a ao alcance de uma nova burguesia comercial. Vendidas ou alugadas a terceiros, i.e., transformadas em bens transacionáveis, as quintas madeirenses (Quintas madeirenses), incluindo as de origem mais antiga, foram-se adaptando ao novo regime e ao novo estilo de vida – o estilo de vida burguês. O mesmo aconteceu com os seus proprietários, que se “inglesaram” – termo que, quando aplicado à Madeira oitocentista, se pode traduzir por “aburguesaram”. A quinta romântica madeirense não deve, pois, ser associada à lavoura, ao regime de morgadio (Morgadios) ou à aristocracia terratenente, mas sim à residência burguesa oitocentista: a unidade unifamiliar rodeada por jardim ocasionalmente, por mata, etc. As pequenas quintas que, a partir de finais do séc. XVIII, mas sobretudo no séc. XIX, povoaram os arrabaldes do Funchal, constituíram, pois, uma tipologia semelhante à villa burguesa, a qual, a partir de meados de Oitocentos, proliferou também na Europa e na América do Norte. Em ambos os continentes, esta tipologia apareceu não só na periferia das urbes industriais, como também nas estâncias terapêuticas – elas próprias satélites dessas urbes, lugares de cura e de refúgio das suas atmosferas poluídas e irrespiráveis. Na Europa, era possível encontrá-la com frequência nas rivieras francesa ou italiana. No séc. XIX, a maior parte das quintas madeirenses constituíram proveitosas fontes de receita para os seus proprietários. Estas receitas não resultavam da exploração agrícola dos seus terrenos, que eram escassos ou mesmo inexistentes, mas do aluguer à estação, i.e., do chamado turismo terapêutico. Com efeito, os seus principais inquilinos foram os enfermos, que, desde inícios do séc. XIX, se deslocavam para as ilhas em cura de ares e que, ao contrário do turista posterior, aí permaneciam por longas temporadas (normalmente durante a estação de Inverno). A quinta romântica madeirense foi, pois, uma tipologia “proto-turística” ou, utilizando uma terminologia mais precisa: uma tipologia do turismo terapêutico. É essa a razão pela qual se deveria preferencialmente designá-la como “quinta de aluguer”. Na periferia do Funchal – do início do séc. XIX ao eclodir da Primeira Guerra Mundial – a quinta de aluguer foi, aliás, a mais importante tipologia do turismo terapêutico na Madeira. No quadro das ilhas atlânticas, o fenómeno pode considerar-se uma verdadeira especificidade do arquipélago português. Nas Canárias , o aluguer de quintas não só foi mais tardio, como nunca chegou a ter a mesma expressão. A manifesta superioridade económica e militar de Inglaterra, que chegou a ocupar a Madeira no início de Oitocentos (Ocupações inglesas), teve uma pesada influência sobre o modo de vida das elites locais. No séc. XVIII, os negociantes de vinho britânicos (Vinho da Madeira) que fixaram residência na Ilha começaram por se instalar em casas que já existiam, adaptando-as, em muitos casos, ao seu modo de vida. No primeiro terço do século seguinte, porém, surgiram os primeiros exemplares construídos por eles de raiz. Estes traduziam a nova mentalidade vigente em Inglaterra: o Romantismo, uma relação contemplativa com a paisagem, a inserção da casa em contextos que convidavam a meditar sobre a alma da natureza e a natureza da alma. Tudo isto era novidade absoluta na Ilha. Com efeito, a residência deixou de ser a sede de uma exploração agrícola, para passar a ser, fundamentalmente, um lugar de habitação, de lazer e de desfrute da paisagem – um novo tipo, muito distinto da casa rural insular anterior ao séc. XIX. A antiga loja destinada à lavoura, que fazia da antiga casa rural não só uma residência da família, como também uma unidade de produção, já não estava presente neste novo tipo. A relação de salas e quartos com o exterior, cuidadosamente ajardinado, era assegurada pela janela à francesa, que proporcionava aos moradores um contacto direto com o jardim. As escadas eram interiores, sendo uma delas de aparato e outra de serviço. A entrada conduzia às zonas sociais da habitação e os percursos que se estabeleciam entre os diversos compartimentos eram concebidos para responder aos rituais do receber da polite society, ao qual, a casa, independentemente da sua dimensão, tinha de responder. As funções dos compartimentos interiores especializaram-se, surgindo as salas de jantar, de estar e de jogos, a biblioteca e as áreas de serviço, reservadas aos empregados. Os compartimentos destinados a receber exploravam as formas contrastantes, as plantas elípticas ou retangulares, com absides salientes nas fachadas – as chamadas bow e bay windows. Para além da inovadora relação que teciam com a paisagem, estas villas introduziram no arquipélago um novo repertório formal: os vãos com lintel curvo; o uso frequente do motivo serliano – os vãos tripartidos em que a abertura central era maior e rematada em arco; a presença de cornijas e platibandas em vez do tradicional beirado; os cunhais com aparelho rusticado; e, finalmente, as referidas bow e bay windows que, muitas vezes, assumiam a forma de volumes cilíndricos a toda a altura das fachadas. Os padrões de conforto ao gosto inglês constituíram também uma novidade. Os chamados rotulados ou mucharabis em madeira que, ainda no séc. XVIII, preenchiam os vãos de muitas das casas do Funchal, foram substituídos pela janela de guilhotina com gelosia e lamberquim exteriores –justamente atribuída à influência inglesa. Se bem que a introdução da janela de guilhotina possa ter constituído uma melhoria nas condições de conforto da casa, é discutível que os tetos em estuque, que vieram substituir os altos tetos em masseira, tenham contribuído para melhorar o conforto interior da casa, revelando um progresso. O mesmo se pode dizer da platibanda, que foi utilizada em algumas das villas construídas por estes mercadores de vinho, a qual, ao contrário do beirado com sub-beira (duplo ou triplo) de utilização comum na Ilha, lidava mal com o escoamento de águas do telhado, dando origem a infiltrações e à consequente degradação de paredes e de revestimentos. Dir-se-ia, portanto, que o complexo processo de miscigenação, em que a arquitetura local se viria a cruzar com modelos oriundos de outras paragens, não resultou apenas em progressos para a primeira, devendo antes falar-se de um processo com perdas e ganhos. O jardim foi outra das componentes da quinta de aluguer que mais marcada influência receberam da cultura britânica. Todos eles, mesmo os mais pequenos, mesmo aqueles moldados na tradição mediterrânica dos socalcos, foram herdeiros da mentalidade romântica que, no início do séc. XIX, esteve intimamente ligada ao jardim inglês, destacando-se: os bosques e as clareiras relvadas, os lagos, os fontanários, os tanques, os percursos sinuosos povoados de pequenos templos, os pormenores arquitetónicos recuperados de outros edifícios e de outros acontecimentos, e a moldagem da natureza, que constituía o esplendoroso pano de fundo da arquitetura. No território escasso e acidentado da Ilha, o que estes jardins perderam em extensão ganharam em dramatismo, ao abrirem-se aos panoramas abissais, aos cumes das montanhas ou ao horizonte longínquo do oceano. A influência de Loudon (1783-1843), o grande divulgador desta arte junto da classe média oitocentista, chegou à Madeira por via dos ingleses. Naquela influência se refletia com nitidez o ideal da casa burguesa, que encontrava no jardim – a natureza criteriosamente domesticada – o enquadramento ideal para o florescimento da vida privada. Este estava relacionado, simultaneamente, com a proteção da intimidade da casa e com o espaço de encontro e de lazer dos seus habitantes. À Madeira coube, ainda, outra função: a terapêutica, pois era ao ar livre que os doentes pulmonares faziam o tratamento. Mas a cura de ares era também uma cura de paixões. Por isso, na relação que a casa tecia com o jardim – e, num sentido mais lato, com a paisagem – ressoava um quadro difuso em que sintomas e sentimentos se confundiam. Na quinta de aluguer oitocentista, o jardim foi tanto a manifestação da alma romântica, quanto o dispositivo de tratamento. No que respeita à arquitetura da casa, não eram, todavia, as villas construídas pelos mercadores de vinho o tipo mais característico da quinta oitocentista da Madeira. Houve, na Ilha, um conjunto de circunstâncias de ordem social e económica que fez com que quase todas estas casas tivessem sido concebidas por construtores anónimos. A sua construção fez-se de acordo com saberes e tecnologias que, durante séculos, mantiveram um elevado grau de imutabilidade: o modo de lavrar e de assentar as cantarias, de erguer as paredes, de caiar as fachadas, de escolher a madeira para os sobrados, de armar os telhados e de revesti-los a telha de meia cana, bem como de calçar, a seixo basáltico, os passeios dos jardins. A grande maioria destas quintas, independentemente do seu grau de erudição, alicerçou-se no sistema de medidas e proporções que caracterizava a “casa da Macaronésia” (FERNANDES, 1992, 233) – um sistema que não foi exclusivamente de invenção local, mas que se inscrevia no património comum da cultura mediterrânica, transportada para a Ilha pelos primeiros povoadores. É por essa razão que a maioria das quintas de aluguer, sejam elas originárias do séc. XIX, do séc. XVIII ou mesmo do séc. XVII, se apresentava como um conjunto de grande coerência morfológica. Com efeito, foi a persistência de determinadas constantes de natureza construtiva, estrutural, espacial e decorativa que tornou reconhecível a arquitetura destas casas, conferindo-lhes um carácter singular que as distinguiu das que foram construídas durante a mesma época noutras regiões do país – um facto que levou alguns autores do século passado a falar da existência de uma “casa madeirense” (MATOS, 2008, 130). Na verdade, tratava-se mais de uma “maneira madeirense” de adaptar a um novo meio um modelo forâneo (MARTÍN RODRÍGUEZ, 1978, 40) – a casa mediterrânica e da Europa ocidental. Essa adaptação deu origem a uma síntese entre as componentes nacional e regional que, na Ilha, a partir de finais do séc. XVIII, se cruzou com a arquitetura inglesa de inspiração romântica. Não é difícil descrever a aparência da maioria destas casas: um volume paralelepipédico com dois pisos; uma planta retangular ou quadrada; uma predominância dos cheios sobre os vãos, cuja proporção tendia a repetir-se; o recurso à simetria como regra compositiva elementar das fachadas, quase sempre planas, onde os vãos, com as suas persianas instaladas à face, pareciam reduzir-se a um desenho sem espessura; o telhado de quatro águas, com o característico “sanqueado” e remate em duplo ou triplo beirado; um alpendre adossado à fachada do piso em contacto com o solo ou no patamar da escada exterior, nos exemplares de origem setecentista. Dir-se-ia, portanto, que, em todas elas, a arreigada devoção do construtor a um determinado tipo de soluções, mil vezes testadas pelas gerações que o precederam, acabava por vingar. A exceção a esta regra residia, pois, nas villas dos mercadores de vinho, cuja arquitetura – sobretudo a dos exemplares mais puros – deixava claramente transparecer a sua conceção erudita de origem exógena. Não querendo deliberadamente pactuar com as tradições locais, os britânicos introduziram, na cadeia evolutiva da casa insular, uma verdadeira rutura morfológica e tipológica. Desde cedo, porém, alguns dos seus novos repertórios formais, bem como os padrões de conforto que exigiam das suas casas, foram sendo apropriados pelos construtores locais. Num lento processo de miscigenação, estes souberam afeiçoá-los à sua austera e frugal arquitetura, cujas raízes mergulhavam profundamente no solo da Ilha e na memória coletiva da sua gente. Por obra destes construtores, populares ou eruditos, as tradições locais e os contributos alheios enlaçaram-se, dando lugar a uma expressão original, onde por detrás de uma aparência chã e frugal, se ocultavam interiores sofisticados. Tendo em atenção, fundamentalmente, a sua estrutura espacial e funcional, as quintas românticas madeirenses podem ser classificadas em três tipos. O tipo 1, que poderia designar-se como a casa rural sobrada e anterior ao séc. XIX, resultou da adaptação de casas rurais de origem setecentista, ou mesmo seiscentista, ao aluguer à estação. Construídas na sua origem como residências de agricultores abastados ou como sedes de morgadio, todas elas eram casas complexas, que se desenvolviam em dois pisos, com cozinha, quartos e loja, integrando um corpo único e formalmente coerente. Uma característica comum a todos os exemplares que integravam este tipo era a presença do piso nobre, que coincidia sempre com o andar, e a presença da escada exterior, normalmente com alpendre. O piso térreo – a loja – originalmente reservado às alfaias, ao lagar ou à arrecadação de produtos agrícolas, passava a piso habitável depois das obras de adaptação que usualmente introduziam também a escada interior e o corredor. A cozinha tanto podia ocupar o rés-do-chão, como o piso nobre, sobrevivendo em algumas o sistema de forno-lareira-chaminé, uma das características morfotipológicas da casa da Macaronésia. Este tipo era, portanto, o que mais se aproximava do fundo comum e original da casa insular, e revelava, apesar da adaptação ao novo meio, uma arreigada ligação à casa mediterrânica. A existência de capela em algumas delas era outra das características que ocorriam apenas neste tipo. A casa e a capela datavam, quase sempre, de épocas diferentes e, quando juntas, nem sempre apresentavam fachadas complanares, deixando transparecer um processo de construção ao longo do tempo que testemunhava a sucessão de ciclos de fartura e de escassez. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas das Angústias (núcleo original) (Quinta Vigia), de S. João (demolida), e da Achada. O tipo 2, que poderia designar-se como as villas dos mercadores de vinho, cujos exemplos mais notáveis surgiram no primeiro terço do séc. XIX, foi acima caracterizado e teve como exemplares mais significativos as quintas do Monte (Quinta do Monte), Palmeira, e Deão (demolida). Quinta do Monte. Foto: Museu Vicentes Finalmente, o tipo 3, que poderia designar-se como a casa compacta de origem oitocentista, era o mais comum na quinta de aluguer. Na segunda metade do séc. XIX, assistiu-se a uma síntese em que a casa enraizada na tradição local se adaptou às exigências funcionais e aos padrões de conforto da sua clientela vitoriana. Quer na disposição dos compartimentos interiores, quer na forma como se relacionava com a sua envolvente, ela era o reflexo da nova moral burguesa, de um ideal higiénico e antiurbano, irrealizável no denso tecido da cidade tradicional. Concebida para a vida familiar – ocupando, por regra, o miolo de um lote murado –, a casa precisava do jardim não só como espaço de lazer e de proteção da intimidade dos seus habitantes, mas também como garantia de salubridade. Tratava-se de uma casa compacta, com dois ou mais pisos, com cobertura em telhado de quatro águas, e com planta quadrada ou retangular. No interior, apareciam um corredor e escadas – uma principal, geralmente centralizada, e uma secundária destinada ao serviço. A cozinha e as zonas de serviço anexas ocupavam, quase sempre, o piso em contacto com o solo, sendo o tradicional sistema de lareira-forno-chaminé a exceção. No sótão, usualmente reservado aos quartos dos empregados, apareciam por vezes as trapeiras; no piso de contacto com o jardim, localizavam-se as áreas comuns da habitação – as salas de estar ou de jantar –, estando os pisos superiores reservados aos quartos. A simetria era, quase sempre, a regra compositiva das fachadas onde, à semelhança das antigas casas da Macaronésia, imperava a regularidade de proporções e predominavam os cheios sobre os vãos, rasgados a espaços iguais. Esta austera frugalidade podia ser, porém, enganosa. Com efeito, o interior beneficiava de um sofisticado grau de conforto, a que não eram alheias as exigências da clientela vitoriana que as alugava: janelas de guilhotina com sistema de contrapeso, tetos em estuque ornamentado, soalhos em madeira, requintados trabalhos de carpintaria pintada, lareiras ou salamandras inglesas em vários compartimentos, e um quarto de banhos. No exterior, debruçada sobre o arruamento, surgia com frequência a casinha-de-prazer – termo que designava, na Madeira, os pequenos pavilhões de jardim de onde era possível observar o exterior ou contemplar a paisagem sem ser observado de fora. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas da Vista Alegre, Perestrelo, Faria, Favilla (demolida), Lyra, e dos Ilhéus.   Rui Campos Matos (atualizado a 16.12.2017)

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