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palácio e fortaleza de são lourenço

A fortaleza de S. Lourenço constituiu-se como uma das primeiras fortificações da extensa rede de feitorias portuguesas, base da expansão europeia do séc. XVI; depois, tornou-se num dos mais importantes conjuntos edificados do território nacional. Foi, assim, palco dos inúmeros combates travados entre as principais potências mundiais da Época Moderna, chegando a ser ocupada por franceses, canários e castelhanos e, ainda, por ingleses, que ali estabeleceram os seus governos pontuais. Crescendo como afirmação emblemática de um poder precário, fechou-se à cidade e abriu-se ao mar, num esquema militar que antecede, como paradigma na função, a cidadela de Cascais e a fortaleza de S. Julião da Barra, na área de Lisboa, mas também certas residências fortificadas, eleitas simbolicamente, ainda hoje, para afirmação de poder. Primeiro, residência dos capitães do Funchal (Capitães), S. Lourenço passou, em seguida, aos encarregados dos negócios da guerra e aos governadores e capitães-generais (Governadores), ultrapassando as suas simples funções iniciais de defesa e enquadrando-se nas novas necessidades de representatividade do poder. Com efeito, construído um palácio no seu interior, não deixou, no entanto, de manter as suas linhas originais de fortaleza para o exterior, exemplares do melhor que o engenho português dos sécs. XVI e XVII ergueu pelo mundo. Nos inícios do séc. XX, quando da visita dos Reis de Portugal à Madeira, foi também residência régia. Nos meados do mesmo século, o imóvel foi dotado com um importante acervo dos palácios e museus nacionais, instituindo-se assim como “Palácio Nacional”, entroncando a sua história na história do país e da região de que tem sido palco. É, igualmente, uma das mais importantes referências da arquitetura militar e civil portuguesas; além disso, possui um dos bons recheios de artes decorativas existentes no território nacional. A fortaleza de S. Lourenço nasceu de um pedido efetuado pelos moradores em 1528; a construção foi determinada em 1529, mas só foi levantada entre 1540 e 1541, dirigindo a obra o pedreiro Estêvão Gomes, a quem se conhecem os pagamentos atribuídos pelo trabalho. Era uma fortificação de transição, como a Torre de Belém, em Lisboa, ou as inúmeras torres então levantadas nos domínios ultramarinos portugueses. O conjunto do baluarte do Funchal envolvia uma torre semioval, assente nos afloramentos rochosos da praia, ostentando os emblemas e as armas reais, articulada com uma muralha que corria sobre o chamado “altinho das fontes” de João Dinis (Fontes de João Dinis), que envolvia as casas do capitão. Ao lado das fontes, possuía um torreão-cisterna que, flanqueando a muralha, protegia a aguada dos navios e a população na praia do Funchal. Todos estes elementos, com alguns melhoramentos, chegaram aos nossos dias. A fortaleza, a 20 de outubro de 1553, não se apresentava ainda concluída, como indica a queixa de Diogo Cabral, neto de Zarco, a declarar que não estava “acabada pela parte da cidade; está baixa e nem tem baluarte que a cubra” (ANTT, Corpo Cronológico, parte i, mç. 91, n.º 31). Também não se encontrava montada a organização geral defensiva militar (Ordenanças), pelo que a obra se mostrou totalmente incapaz perante o ataque corsário francês de outubro de 1566. A fortaleza foi então acometida por terra, onde quase não possuía proteção; existindo residências com torres mais altas muito próximas e não sendo possível movimentar as pesadas bocas-de-fogo apontadas para o mar, não resistiu ao ataque, sofrendo a cidade um pesado saque que durou cerca de 15 dias e a que praticamente nada escapou. Logo na armada de socorro à Madeira, juntaram-se ao capitão do Funchal e futuro herdeiro da capitania alguns padres da Companhia (Colégio dos Jesuítas e Jesuítas). Em princípio, também integrou a mesma armada um arquiteto militar altamente habilitado, Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), ligado à família dos principais arquitetos do mosteiro da Batalha. Em março de 1567, Mateus Fernandes (III), recebeu na Ilha a visita e o apoio de dois arquitetos italianos que lhe entregaram um primeiro regimento de fortificação para o Funchal, datado de 14 de março do mesmo ano. Com esta colaboração, o designado fortificador e mestre das obras da ilha da Madeira levantou uma planta do Funchal, hoje na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e imaginou uma enorme fortaleza para o morro da Pena, construção que desceria até à praia do Funchal, ocupando toda a atual zona velha ou bairro de S.ta Maria Maior. Porém, o seu projeto não foi aceite em Lisboa. As primeiras obras na fortaleza do Funchal foram para ampliar as casas do capitão, intervenção de que conhecemos auto datado de 15 de março de 1571, embora não se entenda bem que obras se estavam a fazer. Cerca de 10 anos depois, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), queixava-se de que a fortaleza era essencialmente um bom palácio residencial, infelizmente cercado de edificações muito próximas e mais altas, pouco valendo, assim, como construção de defesa. A opção determinada pela provedoria das obras de Lisboa, em 1572, foi de reduzir a um terço a fortaleza projetada para o morro da Pena e repô-la sobre a fortificação inicial, joanina. Com efeito, a fortaleza manteve o torreão joanino, datado de 1540 a 1542, e viu aumentada para poente a parada da frente mar, incorporando o baluarte-cisterna primitivo e as fontes de João Dinis, e rematando com um baluarte quadrangular. Para o lado da cidade, foi dilatada com dois baluartes pentagonais gémeos, virados a norte, no meio dos quais ficava a porta. Mais tarde, por volta de 1600, veio a ser ampliada com um novo baluarte pentagonal e cavaleiro, ou seja, mais alto do que os baluartes gémeos laterais, conforme projeto do novo mestre das obras reais, Jerónimo Jorge (c. 1555-1617), para proteger a porta. Data desses primeiros anos do séc. XVII a atribuição da designação “S. Lourenço” à construção, sendo este santo da especial veneração dos Filipes de Castela e então também de Portugal. Assim, e antes de estar terminado o baluarte-cavaleiro de S. Lourenço, o governador mandou adquirir uma grande pedra de moinho a João Berte de Almeida para serem lavradas as armas com que seria encimada a obra. A “pedra que lhe foi tomada do seu engenho para as armas que se lavraram para a fortaleza” foi paga em setembro de 1601, por 4$000 réis (ARM, Câmara..., Livro da Receita e Despesa da Fortificação, 1600-1611, fl. 38v.). Este grande brasão de armas que encima o cordão do primeiro baluarte de S. Lourenço e hoje do Castanheiro é uma peça inédita no espaço nacional, pois os reis de Castela sempre usaram o escudo de Portugal neste reino. Provavelmente, alguém terá trazido de Castela um desenho das armas castelhanas e, num esmero exagerado, comprou-se uma mó de moinho para melhor entalhar o conjunto envolvido pela ordem do Tosão de Ouro. Mais tarde, depois de 1640, picaram-se essas armas e colaram-se em cima as nacionais, executadas em cantaria do Porto Santo. No entanto, ficou o colar do Tosão de Ouro e a coroa imperial de Castela a lembrar o escudo anterior. Este baluarte foi ligeiramente amputado, em 1916, para a abertura da Av. Arriaga, apeando-se então o brasão, que viria a ser recolocado no lugar, em junho de 1993. Para além destas obras, devem ter ocorrido trabalhos na capela da fortaleza de S. Lourenço, em 1635, conforme atesta a lápide ainda hoje existente no local, no canto da parede sobre o balcão da residência, frente à parada interior, ostentando a inscrição “DVND. 1635”, que deve significar “Deo Vota Nostro Domino”, ou seja, que a construção fora consagrada a Deus Nosso Senhor naquele ano. No entanto, a capela é, por certo, anterior, pois o governador, segundo cremos, não deixaria de ter ali um templo para uso pessoal e privado. Pelo menos, desde 1623 que haveria um capelão no local, pois quando algumas testemunhas depuseram, perante a câmara, sobre as necessidades dos soldados da fortaleza (que estariam a passar fome na altura), surgiu a depor o padre capelão Bento Doussim, no dia 9 de fevereiro. Nesses anos teria havido um certo movimento de obras, uma vez que a imagem de S. Lourenço que encimava a porta, e que hoje está do Museu Militar da Madeira (Museu Militar da Madeira), se encontra datada, na base, de 1639. A capela da fortaleza de S. Lourenço ficava, no séc. XVII, no piso médio da residência do governador, no canto oriental da parada interior, dando para esta mesma área, onde se mantém a inscrição de 1635 antes referida. O templo tinha acesso interior para o governador e família, e acesso exterior para possível uso do pessoal da fortaleza, pelo balcão corrido no sentido norte/sul e também por um lanço de escadas voltadas para a parada. O portal da capela, por certo bastante mais tardio, foi transferido, em princípio, nos inícios do séc. XIX, para o centro do edifício principal, onde está virado a norte, para a parada interior, construindo-se então uma larga escadaria em madeira, substituída por uma de pedra, nos anos 40 do séc. XX. Este portal é hoje a porta principal de acesso ao palácio, dando entrada para a chamada sala dos retratos.  O “Livro da fortificação” de 1642 (ANTT, Provedoria..., liv. 837, fl. 37v.) permite entender as preocupações e a ação do primeiro governador em funções no novo quadro político da Restauração: Nuno Pereira Freire. O novo governador começou logo por pagar as obras realizadas em março desse ano, quando se desentulharam as bombardeiras de S. Lourenço, pouco depois, mandou fazer obras na residência da fortaleza. Foi então comprada meia-dúzia de tabuado de pinho ao mercador flamengo Martim Filter, por 3$000; foram remunerados os dois negros que trouxeram esta madeira para a fortificação e os carpinteiros que fizeram “o frontal na varanda das casas grandes da fortaleza” (ANTT, Provedoria..., liv. 837, fl. 37v.); e foram pagos 1$570 réis ao serralheiro Gaspar Gonçalves, por um ferrolho, que, embora não se mencione se era para a residência, pelo preço, deve ter sido. Em meados de dezembro, aparece a informação de se ter pago a Brás Rodrigues da Silva, entre outras coisas, pregos para três adufas das frestas da igreja da fortaleza de S. Lourenço: $430 réis. Infelizmente, não há qualquer outra notícia que permita saber se se tratava da pequena capela interior, fundada em 1635, se de uma outra capela maior, para então ter a designação de igreja da fortaleza. Ao mesmo tempo, deu-se $320 réis a Benito Catalão, por uma fechadura e ferrolho que vendeu para a casa da fortaleza de S. Lourenço. Embora, em 1632, se falasse num capelão e, em 1635, se lavrasse a lápide evocativa da capela, a instituição do cargo de capelão da fortaleza e dos soldados do presídio, bem como de outros cargos, com os respetivos mandados do Conselho da Fazenda, alvarás ou ordens reais, só começou a verificar-se a partir dos finais de 1641. Foi nessa altura que se emanou a ordem a favor do P.e José da Costa de Lima, capelão de S. Lourenço, para ter de ordenado o que “montasse uma praça de soldado” (BNP, Índice..., cód. 8391, fl. 9v.). No ano seguinte, um novo alvará especificava que se deveria pagar ao capelão “os 4$000 que se costumam dar a qualquer soldado quando assenta praça, sobre o seu ordenado; com obrigação de dizer missa aos domingos e [dias] santos aos da fortaleza” (Id., Ibid.). Este capelão deve ter falecido em 1644, ano em que foi emitido um novo alvará, visando agora o licenciado P.e João de Saldanha e especificando que teria de ordenado $080 por dia; falecido em 1689, foi substituído pelo P.e António da Silva, no ano seguinte. Em junho de 1642, o governador mandou elaborar uma planta da Ilha “para enviar a Sua Majestade” (ANTT, Provedoria..., liv. 837, fl. 51), encarregando para o efeito, certamente, o mestre das obras Bartolomeu João (c. 1590-1658) (João, Bartolomeu); pagou-se então $960 réis a Inocêncio Fortes por quatro pergaminhos, um montante nada módico. Saliente-se que essa seria uma primeira versão da planta integrada na coleção dos herdeiros de Paul Alexander Zino (1916-2004), no Funchal, e executada mais de 10 anos depois, em papel. Esta planta da Ilha, de 1654, apresenta ainda as principais fortalezas do Funchal em traços um tanto ingénuos. A descrição geral da fortificação da cidade começa com a seguinte informação: “Tem a fortaleza de S. Lourenço, aonde residem os governadores e soldados do presídio, a qual tem 12 peças de bronze de 12 até 24 libras de bala, e outras tantas de ferro; tem uma companhia de soldados e as fontes da cidade estão debaixo da dita força”, isto é, da fortificação (CHPAZ, 1654). Deve ter ficado uma cópia desta planta em S. Lourenço, pois temos a indicação de ali se encontrar um exemplar em 1799, data em que é referida como “um mapa geográfico, seis vezes maior que o de William Johnston” (AHU, Madeira..., n.º 1089). As dimensões correspondem sensivelmente às da planta de Bartolomeu João, que terá sido levada para Londres pelo Cor. William Henry Clinton (1769-1846), quando da sua permanência em S. Lourenço, entre 1801 e 1802 (Cartografia). O desenho de S. Lourenço, sob a designação de “Fortaleza de São Lourenço aonde está o presídio”, ou seja, a guarnição militar “& governador” da ilha da Madeira, apresenta já a fortaleza contendo um palácio dentro, com fachada de três pisos virada para o mar, um jardim para poente e uma parada interna (CHPAZ, 1654). A fachada virada para o mar mostra o torreão joanino também como atualmente se vê, possuindo um corpo articulado com o torreão, parecendo destinar-se a “privadas”, como então se designavam as latrinas. O corpo em apreço apresenta o último piso com varandas à face, o que não acontece com os corpos seguintes, com embasamento de cantaria à vista, como ainda aparece nas fotografias dos finais do séc. XIX. O último piso articula-se, por um passadiço, com o torreão cisterna, avançado ao mar, tal como chegou aos nossos dias, embora hoje com telhado. Para poente, o edifício apresenta uma janela geminada, desaparecida com as obras dos finais do séc. XVIII. Na gola do baluarte noroeste há o pormenor curioso de figurar uma alta torre, assente em embasamento de cantaria aparente, com quatro pisos e telhado cónico. Tudo leva a crer que esta é uma edificação mais antiga, contemporânea do baluarte joanino e depois incorporada no baluarte executado por Mateus Fernandes, em 1572. Nesse caso, podemos estar perante a torre das Gamas, que Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) refere ter uma altura superior à primitiva fortaleza e ter sido o local de onde os franceses, no assalto de outubro de 1566, alvejaram o interior da mesma fortificação. Pela dimensão em altura que possuía, a torre dificultava o tiro dos baluartes adjacentes, não se percebendo como a deixaram chegar aos meados do séc. XVII.   A torre das Gamas deve ter sido derrubada pouco tempo depois da execução da planta, mas subsistiu, no entanto, o seu piso térreo, depois denominado Casa do Fresco, tal como o vemos representado no desenho de 1654, com a porta de acesso no jardim interior da residência. As antigas janelas, ao gosto dos meados do séc. XVI, parecem subsistir no desenho de Bartolomeu João, talvez entaipadas, a marcar as escadas interiores e os pisos, apontando no sentido de ser essa uma estrutura anterior ao baluarte onde se insere. A referida casa teve obras de reabilitação entre 1999 e 2000, período em que foram recolocados alguns restos de painéis de azulejos dos inícios e meados do séc. XVII que existiam no palácio.  No ano de 1672, tomou posse como governador João de Saldanha de Albuquerque, filho do mestre de campo Aires de Saldanha, falecido na batalha de Montijo, em 1644. Considerando que João de Saldanha de Albuquerque era um fidalgo de certa estripe, que veio a ser governador de Mazagão, vedor da Casa Real e presidente do Senado de Lisboa, não espantam as várias obras, determinadas em 1689, que mandou executar. Como novidade, registe-se que apareceram, a partir desta época, as despesas respeitantes ao bergantim em que se deslocava o governador e que também fazia outros serviços, sendo necessário calafetá-lo, deslocá-lo para o calhau da praia e depois voltar a rebocá-lo para dentro das muralhas. Nos finais do século, em 1689, após diversos pedidos de vários governadores, o Conselho da Fazenda deu autorização ao governador D. Rodrigo da Costa para que se fizessem “as obras das casas do castelo de S. Lourenço, em que vivem os governadores que vêm a esta Ilha” (ANTT, Provedoria..., liv. 968, fl. 62). As obras acabaram por ser arrematadas por um dos militares da guarnição, o Cap. António Nunes, então condestável dos bombardeiros do Funchal e, pouco tempo depois, capitão da artilharia da ilha da Madeira.  Foi durante a vigência de D. Rodrigo da Costa que foi ampliada a sala de armas da fortaleza, que, entretanto, recebera 100 espingardas de pederneira francesas, 100 quintais de pólvora e mais apetrechos de guerra, tendo o Conselho da Fazenda atribuído mais verbas para a ampliação da sala e para outras instalações. Neste quadro, foi igualmente necessário proceder a um reforço de pessoal para controlo do material em causa, surgindo então a nomeação de Pascoal Lopes para ajudante do condestável de S. Lourenço e o referido Cap. António Nunes, que veio a ser o novo mestre das obras reais, assumindo o controlo e a direção dos trabalhos que decorreram durante o mandato dos governadores seguintes. Na noite de 14 de maio de 1699, um incêndio devorou o que tinha sido feito sob orientação de António Nunes, sendo então voz corrente que se tratara de fogo posto. Entretanto, já se encontrava na Madeira o novo governador, D. António Jorge de Melo (c. 1640-1704) e a situação de S. Lourenço teve de ser totalmente repensada. António Jorge de Melo tinha tomado determinadas precauções em Lisboa, solicitando informações detalhadas sobre a vida militar, social e económica na Ilha. Deve ter recorrido ao madeirense e desembargador António de Freitas Branco (1639-c. 1700), figura da confiança de D. Pedro II, cujo casamento com D. Maria Sofia Isabel da Baviera, em 1687, tratara. Acresce ainda que esta possível fonte era membro do Conselho de Estado, logo, tinha acesso a uma vasta informação, imprescindível para a execução das “Instruções” dadas a D. António Jorge de Melo (BNP, reservados, Col. Pombalina, cód. 526, fl. 275). Parece que o novo governador teve em consideração estas instruções, pelo menos parte. Nesse sentido, na sequência do incêndio que consumiu uma porção das casas da guarnição da fortaleza de S. Lourenço, logo em novembro de 1698, mandou lavrar um auto para que o armazém da pólvora da fortificação fosse transferido para a fortaleza de S. João do Pico, mais isolada e afastada da cidade (Paiol geral). Mais tarde, foi a vez do forno e da casa da cal se deslocarem para S.ta Catarina; ao longo do séc. XVIII, foram mesmo os soldados que saíram da fortaleza com as suas bocas-de-fogo para o reduto de S. Lázaro, depois reformulado e designado Bateria das Fontes (Muralhas da cidade). A partir dessa época, começou a falar-se em palácio, palavra que até então quase não tivera uso (Palácios). Durante o séc. XVIII, as obras de engrandecimento não pararam, sendo a obra de S. Lourenço cada vez mais referida como palácio, e menos como fortaleza. Com efeito, em Setecentos, aumentou o número de armadas internacionais a passar pelo Funchal, pelo que se acentuou a necessidade de o governador receber condignamente os altos comandos das mesmas (Hearne, Thomas). Nas informações dos finais do séc. XVII não existem referências especiais a estas cerimónias, mas, a partir do governo de João António de Sá Pereira (1730-1804), que assumiu funções entre 1767 e 1777, são contínuas as informações sobre a passagem de armadas e sobre as respetivas receções em S. Lourenço, com aquele governador aos comandos das mesmas. Destaque-se que o ministro de França, duque de Choiseul (1719-1785), escreveu de Paris a João António de Sá Pereira, em 1768, a agradecer a forma como recebera a tripulação e os passageiros da fragata Balança, procedente da Martinica e naufragada nos mares da Madeira, referindo “a urbanidade do acolhimento” e tratando o governador como “Senhor conde de Sá” (ARM, Governo Civil, liv. 526, fl. 27). A historiografia regional regista também, a partir dos meados do séc. XVIII, as festas realizadas por ocasião dos aniversários régios, indicando que compreendiam geralmente jantar e baile e que eram antecedidas por um ato de vassalagem aos monarcas, prestado diante dos retratos dos mesmos, devidamente apeados das paredes e colocados sob um dossel para o efeito. Na realidade, somente temos ecos deste cerimonial no século seguinte e apenas em relação a D. João VI. Até então, não existiriam retratos régios em S. Lourenço; mesmo as efígies dos governadores são trabalhos dos finais do séc. XVIII e inícios do XIX. De facto, os retratos de João Gonçalves Zarco e do seu filho, segundo capitão do Funchal, embora figurem trajados ao gosto dos finais de Quinhentos e dos meados de Seiscentos, salvo melhor opinião, são trabalhos muito mais recentes, sendo que não lhe conhecemos referências diretas ao longo do séc. XIX. No último quartel do séc. XVIII e durante a vigência de D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (c. 1781-1798) como governador, ter-se-á tentado novamente reparar a fortaleza e palácio, encontrando-se o imóvel quase a ameaçar ruína. A coroa foi sensível aos pedidos do governador em relação suas às necessidades de representação; inclusivamente, a rainha D. Maria I aumentou-lhe o ordenado, citando que tomara em consideração “que o soldo que venceis nesse governo não é suficiente para o trato da vossa pessoa, e decência que deveis conservar nele”, pelo que, “do primeiro de janeiro do presente ano” de 1790, passaria a receber, a cada ano, um vencimento de quatro contos de réis, tal como “os mais governadores e capitães-generais que vos sucederem” (ANTT, Provedoria..., liv. 977, fl. 185). Foi por iniciativa deste governador que se alterou o conjunto de salas viradas ao mar, então dotadas de grande pé direito e feitas à custa dos dois pisos superiores anteriormente existentes. Para compensar o espaço perdido, ter-se-á optado por fazer avançar o então denominado palácio para cima do torreão oeste, composto por Mateus Fernandes, por volta de 1575. Construiu-se assim uma ala ao gosto neoclássico do final do séc. XVIII, debruada por varanda corrida de sacada, tendo a intervenção sido dirigida, certamente, pelo então mestre das obras reais, António Vila Vicêncio (c. 1730-1796); verifica-se que existe, aliás, um certo paralelo com outros trabalhos que orientou pela Ilha, em concreto, a reforma de algumas igrejas. O tipo de janelas e a varanda corrida vieram a servir de modelo a toda a fachada virada para o mar, nos meados do séc. XIX, na parte civil do imóvel, e também na campanha de obras de 1936 a 1939, na parte militar do mesmo. O governador e Cap.-Gen. Florêncio José de Melo e o bispo de Meliapor, D. Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828), administrador apostólico do Funchal, receberam na cidade a futura princesa do Reino Unido de Portugal e do Brasil, a arquiduquesa D. Maria Leopoldina de Áustria (1797-1826), em 1817, que rumava em direção ao Rio de Janeiro para se casar com o infante D. Pedro (1789-1834). Deve ter sido com base nas dificuldades sentidas durante essa visita, com a princesa a ser quase sempre recebida fora do palácio e em condições por certo superiores às que ali teria, que o governador seguinte, Sebastião Xavier Botelho (1768-1840), promoveu novas obras em S. Lourenço. As obras constam de uma carta que este enviou, a 25 de maio de 1820, ao conde dos Arcos, que se encontrava no Rio de Janeiro, referindo ter construído “uma barraca de pau, com madeira bruta, e que cortava o pátio em dois” (AHU, Madeira..., n.º 97). A construção nasceria na atual sala de entrada do palácio, hoje com escadaria e balaustrada de pedra, que sabemos terem sido levantadas depois, em 1940. Ao nível do andar nobre haveria “um passadiço” (Id., Ibid.) que uniria esses edifícios, através do pátio, com os edifícios em frente, hoje ocupados com repartições do quartel-general e então com as repartições do trem, e que serviria de sala de jantar em grandes receções; por baixo, ficavam arrecadações várias para apetrechos militares. O governador Sebastião Xavier Botelho enviava a planta, por certo feita por Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), explicando que o pátio ocupado já não era preciso, porque a fortaleza estava “desguarnecida de artilharia, e o batalhão aquartelado no colégio, que fora dos jesuítas” (Id., Ibid.). Assim, pedia a aprovação expressa do rei para a obra e indicações sobre se deveria conservar “o passadiço no mesmo estado” ou “se o devia abater e empregar os barrotes e tábuas nos usos e aplicações, que sobrevierem”, embora entendesse que a melhor opção era “mandar emboçar de cal e fechar pela parte de baixo” (Id., Ibid.). Pensamos que a ordem foi no sentido de demolir o barracão, decisão que foi executada depois, por D. Manuel de Portugal e Castro (1787-1854) e em resultado da qual só deve ter restado a base de apoio do passadiço, sobre a qual se vieram a montar os lanços de escadas hoje existentes para aceder à sala dos retratos. Deve ter sido também durante esta campanha de obras que se procedeu à mudança do portal, que Paulo Dias de Almeida desenhou, em 1804, na entrada do piso térreo dos edifícios, a poente do pátio e que hoje vemos na atual entrada para o palácio, no espaço que depois conhecido como sala dos retratos. Com a instauração da república (República) alteraram-se as armas que encimavam o portal, em princípio, concernentes ao Reino Unido de Portugal e do Brasil, perdendo-se a coroa, mas mantendo-se a esfera armilar. A antiga parte superior das mesmas deve ser a que se conserva hoje no parque arqueológico do Museu da Quinta das Cruzes. Nesse caso, também serão dessa época os estuques da antiga sala de baile ou sala dourada, a cujo escudo aconteceu o mesmo. Com a implantação do governo liberal, a 6 de fevereiro de 1836, publicaram-se umas “Instruções” que dividiam as funções dos antigos governadores e capitães-generais por duas novas autoridades, uma civil e uma militar, e o palácio de S. Lourenço entre elas. Por razões de ordem vária, relacionadas com a precariedade de instalação de ambas as entidades durante esses anos, passando a civil de prefeito a administrador-geral, e a militar de comandante a governador, e sendo os cargos, por vezes, desempenhados pelas mesmas pessoas, a divisão do palácio e a especificação concreta das funções governativas só aconteceu verdadeiramente em 1846, com a tomada de posse do governo do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891). Deve-se assim ao governo de José Silvestre Ribeiro a separação efetiva entre a parte civil e a parte militar, assinalando-se várias obras na civil, designadamente, a construção em cantaria da escada central do pátio de acesso ao palácio (embora sem a balaustrada que hoje vemos) e o alpendre no andar superior, desaparecendo a entrada lateral para o balcão poente e com ela a capela de N.ª S.ª do Faial. As imagens foram então entregues à igreja de S. João Evangelista, que o governador mandara restaurar e abrir ao público, e as pratas recolheram ao cofre central do Governo, a 3 de outubro de 1846, tendo-se procedido ao seu inventário, que foi repetido a 3 de dezembro de 1856, ano em que os paramentos da antiga capela foram oferecidos à capela das Achadas da Cruz, devendo o cálice de prata dourada dos primeiros anos do séc. XVI ter pertencido a S. Lourenço. Também deverá datar destes anos a progressiva abertura do palácio à cidade, iniciada um pouco antes, com a construção do cais de madeira em que tinha desembarcado a futura imperatriz Leopoldina do Brasil e depois, em 1838, com a demolição das casas da saúde. Ganhava forma a progressiva transformação da área de implantação do palácio de S. Lourenço em entrada da cidade (Entrada da cidade), embora tal levasse quase 100 anos até se concretizar completamente, com a construção em pedra do cais regional e, depois, com a abertura da Av. Zarco e da Av. do Mar (Urbanismo). Nos meados de Oitocentos, várias visitas importantes concorreram para melhorar a fisionomia do palácio, mas, a avaliar pela descrição de Isabella de França (1795-1880), exteriormente, pelo menos, o aspecto não era o melhor. Embora existam algumas referências no Funchal com elogios ao edifício, essa atenta inglesa teria razão. Opiniões como a de Paulo Perestrelo da Câmara, em 1841, afirmando que “o palácio de São Lourenço tem salões maiores que os paços reais das Necessidades, Queluz, ou Sintra, mobilados e construídos à moderna moda inglesa” (MONTEIRO, 1950, 51), não são para levar em linha de conta, conforme demonstra o relato de Isabella de França. A observadora e bem informada mulher do morgado José Henrique de França (1802-1886), no relato da sua visita à Madeira, em 1853, descreveu a visita que fez ao palácio de S. Lourenço quando ali decorria a exposição agrícola e industrial, destinada a angariar fundos para o Asilo de Mendicidade do Funchal. Isabella terá entrado no palácio por um túnel escuro, que pensamos ser a antiga casa da guarda, onde hoje se encontra o Museu Militar (Museu Militar da Madeira), acedendo assim ao pátio. Explica a inglesa que, subindo as escadas, “a primeira porta abre-se para uma sala quadrada com pinturas em toda a volta” (FRANÇA, 1970, 57), das quais nenhuma terá chegado até nós. Refere ainda que a “sala seguinte, outrora de baile, mostrava em toda a volta os retratos dos antigos governadores, de corpo inteiro – e que grandes patuscos que eles eram! Estes retratos, e o de D. João VI, que está na sala de visitas, e ainda as pinturas que descrevi, da antecâmara, são todos de um estilo que desacreditaria uma tabuleta” (Id., Ibid., 58). Nos meados do mesmo século foi determinado colocar o edifício à disposição de duas figuras importantes da aristocracia europeia: o príncipe Maximiliano de Leuchtenberg (1817-1852) e a imperatriz Isabel da Áustria (1837-1898), rainha da Hungria, mulher do imperador Francisco José da Áustria, popularizada como Sissi, tendo-se autorizado as respetivas obras. As respeitantes à visita de Maximiliano decorreram em 1848, tendo o príncipe aportado à Madeira no ano seguinte, com uma importante comitiva (Briullov, Karl); a visita da imperatriz Isabel ocorreu mais tarde, em 1860. Contudo, nenhum dos dois chegou a ocupar o palácio. Daquela última estadia na Ilha chegaram-nos mesmo as contas das obras executadas em S. Lourenço, aparecendo, entre as referências a caiações e arranjos interiores, uma menção ao arranjo do toldo e dos varões da escadaria principal, que chegaria com a mesma figuração aos inícios do século seguinte. Neste quadro, revelador de uma certa penúria do palácio, em 1861, o conde de Farrobo, então governador civil do Funchal, pediu autorização a Lisboa para realizar várias obras no imóvel, na sequência dos pequenos reparos que tinham sido executados para receber a imperatriz Isabel. A intervenção solicitada incluía a uniformização da fachada do palácio virada para o mar. A autorização só chegaria em 1878, altura em que foram iniciadas as obras, tomando como modelo a sala construída sobre o baluarte sudeste nos finais do séc. XVIII e passando a varanda corrida a marcar todo o andar nobre da dita fachada virada para o mar. No entanto, e porque a tal se opôs o então governador militar, o Cor. António Augusto Macedo e Couto, a parte do palácio sob o seu comando manteve-se ao gosto dos anos anteriores, dos períodos em que fora edificada, só se vindo a uniformizar no século seguinte. É possível que o gosto neoclássico não agradasse aos comandos militares, mais virados para outros revivalismos então em moda. Entre 1894 e 1896, p. ex., esteve na Madeira o jovem tenente de engenharia Carlos Roma Machado de Faria e Maia (c. 1870-c. 1942), que deixou nos arquivos do Funchal vários trabalhos gráficos sobre as propriedades do Ministério da Guerra. Já em Lisboa, em 1897, executou uma proposta revivalista de reabilitação da fortaleza e palácio de S. Lourenço, em neomanuelino. O seu projeto não foi aceite e, pouco depois, seguiu para Moçambique, onde ficou alguns anos, tendo levantado, nesse estilo, o célebre Museu de História Natural; deslocou-se ainda para Angola, onde veio a tornar-se um dos autores mais prolíferos da literatura ultramarina portuguesa. No início do séc. XX, o palácio de S. Lourenço foi objeto de atenção especial, visando o acolhimento do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia, a primeira visita de soberanos portugueses à Madeira em quatro séculos de história. Pela primeira vez, S. Lourenço foi oficialmente palácio real, embora por ele já tivessem passado príncipes de vários países e, inclusivamente, o infante D. Luís, por duas vezes, mas antes de ser rei de Portugal. Os soberanos chegaram a 23 de junho e, no dia seguinte, os fotógrafos da Madeira tiveram autorização para fotografá-los na varanda do palácio. Não temos notícias de terem sido feitas obras de vulto nessa altura, apenas pequenas reparações e, sobretudo, arranjos de interiores, de que ficaram, inclusivamente, amplos registos fotográficos, tendo-se a recorrido a mobiliário particular, pertencente às principais famílias do Funchal, para montar os quartos do rei e da rainha, devidamente afastados, tal como era hábito. A proclamação da República teve lugar em S. Lourenço, a 6 de outubro de 1910. A notícia tinha chegado à Madeira na tarde do dia 5, mas só no dia seguinte tomou posse como autoridade do distrito o Dr. Manuel Augusto Martins (1867-1936). Após a sua investidura como novo governador civil, sem especiais complicações, foi hasteada a bandeira republicana em S. Lourenço, com honras militares. Mais tarde, o palácio sofreu alguns atropelos, mas de forma alguma aqueles que foram depois alardeados pelos monárquicos. Em 1911, foram apeadas as armas reais e foi igualmente apeada, e lançada ao mar, por um grupo de marinheiros, a imagem de S. Lourenço que existia sobre a porta principal. A imagem só voltou ao seu lugar em 1940, embora sem a cabeça original, que não se conseguiu localizar, tendo sido refeita. No ambiente de certa euforia que então se vivia, a Câmara Municipal do Funchal encomendou um projeto de urbanização da cidade ao gabinete do arquiteto Ventura Terra (1866-1919). Dentro dos conceitos da época, o plano praticamente não respeitava qualquer preexistência. S. Lourenço era parcialmente cortada, assim como um dos braços do transepto da sé, criando-se grandes avenidas e um casino no antigo cais da cidade. Ao que se saiba, não foi dada qualquer publicidade ao projeto, embora, em linhas gerais e sem os exageros enunciados, o mesmo se viesse a concretizar ao longo das décadas seguintes. A única recomendação que conheceu implantação à época, logo em 1915, foi a construção da então Pç. da República, que, depois de ter sido ampliada para oeste, deu origem à Av. Dr. Manuel de Arriaga. Para esse efeito, foi amputado o cunhal do baluarte do Castanheiro, cortado na perpendicular da base da guarita, que nos desenhos que chegaram até nós já não apresenta o interessante brasão de armas, recolocado, entretanto, em junho de 1993. Com a consolidação do Estado Novo foram nomeados para a Madeira figuras da inteira confiança do regime, sendo designado, em 1935, presidente da Câmara do Funchal, o Dr. Fernão de Ornelas Gonçalves (1908-1978) e, em 1938, governador civil, o Dr. José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão. Já em 1935, tinha assumido a presidência da comissão administrativa da Junta Geral um amigo pessoal do Prof. António de Oliveira Salazar, o Dr. João Abel de Freitas (1893-1948), presidente da comissão distrital da União Nacional que, mais tarde, em 1947, seria nomeado governador civil, acabando por falecer no exercício dessas funções, no palácio de S. Lourenço. Neste quadro, a Madeira, especialmente a cidade do Funchal, foi palco de uma ampla campanha de obras a que o palácio e fortaleza de S. Lourenço, como emblema paradigmático do poder central do Estado Novo, não poderia escapar. As obras tiveram início em 1939, na parte militar do imóvel, que foi objeto de um reforço de verba por parte da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Foi então executada a uniformização da fachada virada para o mar, que não fora completada nos finais do século anterior. Assim, embora mantendo os dois pisos no interior, salvo na primeira sala, reservada ao gabinete do comandante militar e contígua à sala de entrada do palácio, exteriormente, esta fachada passou a apresentar-se toda uniforme, ao gosto dos finais do séc. XVIII. No entanto, para a parada interior, manteve a sua antiga fenestração, inclusivamente com molduras de janela dos finais do séc. XVI. Nesta campanha de obras foi também passada a cantaria rija regional a antiga balaustrada de ferro das escadas de acesso à entrada do palácio, tomando por modelo a balaustrada embutida da varanda poente, em cantaria vermelha de Cabo Girão. Com idêntico modelo de balaustrada foram também dotadas as janelas do governador militar e das salas de receção do governo civil para a parada interior. Dessa época data também a recolocação dos merlões e ameias na muralha da bateria baixa, elementos que tinham sido eliminados entre 1860 e 1863, assim como o alargamento da entrada pela atual Av. Zarco, que terá perdido o muro e o gradeamento, ficando aberto o acesso a viaturas ao pátio interior de S. Lourenço. Nas obras de 1878 terá sido aberto um arco de entrada na muralha, que já aparece nas fotografias de 1880, mas que não permitia a entrada a viaturas no pátio, pois tinha-se mantido uma estreita passadeira de comunicação à entrada da cidade. Na sequência dessas obras, pela ação do governador civil do Funchal, Dr. José Nosolini, foi o palácio dotado com um bom acervo de mobiliário, pintura e vários objetos decorativos, vindos dos palácios nacionais, como atrás se disse, designadamente de Queluz e de Belém, e também das reservas do Museu Nacional de Arte Antiga, tendo as salas de receção sido retocadas e pintadas por Max Römer (1878-1960). Com estas alterações, o palácio de S. Lourenço, em atenção a ter sido residência dos governadores e capitães-generais, foi classificado como Monumento Nacional, por Decreto-lei de 24 de setembro de 1940. Nos anos seguintes, na sequência das grandes obras do Estado Novo, a fortaleza ganhou, a norte, um chafariz, no antigo Lg. da Restauração, inaugurado em 1941, mas acabou por perder grande parte da sua imponência na marinha do Funchal devido à construção da Av. do Mar. As obras desta nova avenida, subindo cerca de dois a três metros à sua frente, relegaram para um pequeno fosso ajardinado a velha R. das Fontes, deixando ainda encobertas as antigas fontes de João de Dinis, que serviram de aguada às armadas que fundearam no Funchal durante quase 500 anos. É dessa época a demolição dos alpendres e de outras construções levantadas entre os baluartes norte e noroeste, como parques de artilharia e, inclusivamente, o antigo estúdio dos Prestrellos Photographos, local onde, depois, a 28 de dezembro de 1954, veio a ser inaugurado o busto do governador civil Dr. João Abel de Freitas, falecido em S. Lourenço. Nos anos seguintes, com a vigência como governador do comandante Inocêncio Camacho de Freitas (1899-1969), o palácio ainda adquiriu, pontualmente, mobiliário proveniente do espólio de famílias madeirenses e de diversas instituições, p. ex., o antigo Casino Vitória. Igualmente nesta época, ou alguns anos antes, incorporou o mobiliário dos sécs. XVIII e XIX da antiga alfândega do Funchal. Ao longo do séc. XX o palácio foi visitado pelo presidente da República Dr. António José de Almeida, em outubro de 1922, pelo marechal Óscar Fragoso Carmona, em 1942 e pelo almirante Américo de Deus Tomás, várias vezes, tal como pelo presidente do conselho, o Prof. Doutor Marcello Caetano. Com o pronunciamento militar de 25 de abril de 1974, os dois últimos, bem como outros membros do último governo do Estado Novo, vieram a ser deportados para a Madeira, sendo-lhe fixada residência em S. Lourenço, o que projetou então o palácio na comunicação social internacional. Na transição do séc. XX para o XXI o palácio foi alvo de obras especiais para se adequar ao funcionamento do Ministério da República e, depois, do Representante. Veio a ser nomeada uma conservadora para o palácio e a estabelecer-se uma colaboração mais estreita com a então Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, procedendo-se ao restauro sistemático do importante acervo de pintura e de mobiliário das salas nobres, que, praticamente, desde a sua vinda para o Funchal, em 1940, não tinham tido qualquer manutenção. Procedeu-se igualmente à consolidação geral de outras estruturas, como o importante painel de azulejos com a imagem de S. Lourenço, no jardim interior e a já referida Casa do Fresco, provável base da torre noroeste levantada nos meados do séc. XVI e que havia sido incorporada no baluarte virado ao convento de S. Francisco, em 1572-1575. Para proteção da Casa do Fresco e do painel citado, foram também realizadas obras no baluarte de S. Francisco, visando evitar as infiltrações, tendo-se adotado o mesmo procedimento no baluarte do Castanheiro. Durante os trabalhos de consolidação do baluarte do Castanheiro, em 1998, descobriram-se pinturas a fresco no interior da antiga guarita sobre a Av. Arriaga, de certa forma simples, procedendo-se à sua consolidação preventiva e restauro pontual. Dentro de um novo espírito, a partir de 1995, o palácio de S. Lourenço passou a estar aberto ao público, mediante marcação, editando-se alguns prospetos informativos; a partir de 2001, começaram a realizar-se visitas diárias sem marcação, a horas previamente determinadas, embora se tenha mantido a marcação antecipada para grupos ou para visitas especialmente orientadas.    Rui Carita (atualizado a 01.01.2017)

Arquitetura Património

teologia, ensino da

O estudo da Teologia faz parte da formação dos futuros padres e desenvolveu-se no Seminário do Funchal, tendo como objetivo primeiro a formação do clero e as necessidades concretas da pastoral das paróquias onde, para além da catequese, era necessário evangelizar os costumes religiosos do povo. Na prática, o ensino do Seminário dava a estrutura doutrinal e moral para lidar com as diferentes solicitações do múnus de pastor, mas diversas pastorais dos bispos diocesanos insistiram na formação do clero para além dos elementos iniciais recebidos no Seminário. A instituição dos seminários foi uma das obras mais importantes do Concílio de Trento. A 20 de setembro de 1566, D. Sebastião criava o Seminário do Funchal, apenas três anos depois do decreto do Concílio. Foi sobretudo D. Jerónimo Barreto, formado em colégios jesuítas e sagrado bispo do Funchal em 1573, que determinou o estabelecimento do seminário diocesano, com toda a probabilidade no decénio de 1575 a 1585. No início do séc. XVII, D. Luís de Lemos mandou construir o paço episcopal e instalou o Seminário numa casa anexa. Devido à proximidade do Colégio dos Jesuítas, os seminaristas frequentavam as aulas do Colégio, onde recebiam formação em letras, mas também em ciência sagrada. Num relatório de 1594, encontramos uma referência ao Seminário, ao seu reitor e aos seminaristas, que iam todos os dias às aulas dos padres da Companhia de Jesus, onde eram instruídos em virtudes e letras para depois desempenharem a cura de almas. O texto anónimo Memórias sobre a Creação e Aumento do Estado Eclesiástico na Ilha da Madeira referem que os Jesuítas estabeleceram no edifício do Colégio o ensino da doutrina, a confissão, a pregação, a moral, o latim e a retórica, disciplinas importantes não só para a formação dos seus próprios religiosos, mas também para os seminaristas diocesanos que aí encontravam as bases intelectuais e humanas do seu futuro ministério. Henrique Henriques de Noronha, que escreve por volta do ano de 1722, afirma que o Seminário se manteve até 1702 nas dependências do paço episcopal, altura em que passou para o mosteiro novo, situado na futura R. do Seminário. Foi nesta data que o bispo diocesano dispôs de estatutos para o Seminário, exigindo que os jovens nele admitidos tivessem entre 12 e 18 anos e aí permanecessem sete anos: os quatros primeiros dedicados ao estudo do latim e do canto, os três últimos à moral e à filosofia. Era condição para receber ordens menores o conhecimento do latim; para as outras ordens – subdiácono, diácono e presbítero –, importava que o ordinando conhecesse os procedimentos que pertenciam à missa, nomeadamente a matéria e a forma da consagração, e tivesse a disposição necessária de espírito e de corpo. Alguns sacerdotes prosseguiam estudos de nível superior em Coimbra, em Évora ou mesmo fora do país. Embora não se conheça o conteúdo da formação teológica dos seminaristas nesta data, sabe-se por uma pastoral do bispo D. Fr. Manuel Coutinho, de setembro de 1725, que a preparação do seu clero era superficial, sobretudo a nível espiritual. O bispo exigiu um prazo para que todos os clérigos se apresentassem a exame de confessores, aplicando-se ao estudo da moral e do latim. Os residentes no Funchal deviam frequentar as aulas de moral no colégio da Companhia de Jesus e não eram sujeitos a exame sem a frequência dessas lições. A liturgia dos sacramentos e as questões morais eram os pontos dominantes na preparação do clero diocesano ao longo do séc. XVIII. Em 1741, o bispo D. Fr. João do Nascimento aprovava novos estatutos para o seminário que nos interessam aqui pelas questões formativas que contêm. Em primeiro lugar, os referem as condições de entrada dos jovens no Seminário, cuja idade não devia ultrapassar os 18 anos. Depois determinam os requisitos relativos à disciplina e ao traje eclesiástico. O programa de estudos é exposto no capítulo v dos estatutos. Mantêm-se as disposições anteriores, que previam uma formação em 7 anos. Os alunos eram examinados antes da partida para férias e à chegada das férias. Os que estudavam moral deveriam prestar provas públicas duas vezes: a primeira no fim do 2.º ano e a segunda no termo do 3.º ano. Quanto ao estudo propriamente dito, havia exercícios práticos que serviam de complementos às aulas. O método era de tipo escolástico: exposição e defesa duma determinada posição, objeções e perguntas feitas pelos outros estudantes, resposta às perguntas e objeções. Cada um era avaliado pela maneira como respondia diante do reitor e dos outros seminaristas. Estes exercícios eram certamente uma réplica das lições que recebiam. Depois de os Jesuítas terem abandonado a Madeira, em julho de 1760, por virtude do decreto de expulsão das ordens religiosas, o problema dos formadores do clero voltou a colocar-se. Por um lado, o edifício do Seminário tinha sido fortemente danificado em virtude do terramoto de 1755; por outro lado, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão queixava-se da inexistência dum edifício digno para instalar o Seminário e da falta de mestres para ensinar as ciências eclesiásticas. Quando entrou na Diocese, D. Gaspar fazia-se acompanhar por dois padres lazaristas e pensou entregar o Seminário ao cuidado da Congregação da Missão. Efectivamente, os padres lazaristas começaram um trabalho de acompanhamento e ensino no Seminário, sobretudo na formação espiritual, na linha da escola francesa de espiritualidade fundada pelo Cardeal Bérulle e segundo o carisma de S. Vicente de Paulo. Em 1787, D. Maria I entregou o edifício do Colégio à Diocese e o bispo, D. José da Costa Torres, aí instalou o Seminário desde 1788 até 1802. Um edital deste bispo, de 1787, dá-nos uma ideia da formação no Seminário: só eram admitidos às ordens sacras aqueles que tivessem suficiente formação em latim, retórica, filosofia racional e moral; para o sacerdócio seriam promovidos os que estudassem com aproveitamento o direito canónico, a teologia moral e dogmática. Estas indicações do final do séc. XVIII permanecem válidas para o séc. XIX. Foi por iniciativa de D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911) que começou a ser construído um novo Seminário na cerca do extinto Convento da Encarnação. O Seminário passou a funcionar neste novo edifício em outubro de 1908 mas a lei de 20 de abril de 1911 extinguiu o Seminário e transferiu a posse do edifício para o Estado. D. Manuel Barreto chamou para a reorganização do Seminário o P.e Ernesto Schmitz (vice-reitor desde 1881), Lazarista, que foi um verdadeiro fundador da formação sacerdotal, organizando com profundidade os estudos desta instituição, numa iniciativa que marcou várias gerações de padres diocesanos. Outros sucederam-no também com grande empenho, como por exemplo o Cón. Barreto, reitor do seminário durante largos anos. Destacam-se nesta época alguns escritos do Cón. Manuel Gomes Jardim (1881-1949), professor de dogma no Seminário, escritos cuja temática ilustra o teor do ensino teológico da altura. O Cón. Jardim escreveu, em 1931, um estudo sobre as razões do protestantismo; em 1934, um livro sobre a existência de Deus à luz da razão; e em 1940, dois volumes sobre a Igreja e o protestantismo. O estilo destes escritos é expressamente apologético e visa rebater as posições protestantes expondo a contrario a perspetiva católica. As análises da Escritura servem de prova para as posições defendidas e a argumentação segue o estilo escolástico de exposição dos princípios católicos e resposta às objeções. O autor quer mostrar que o livre exame aceite pelo protestantismo põe em causa os fundamentos da fé e que a fé implica sempre uma dimensão social, institucional. Para o Cón. Jardim, quando se prescinde de Deus, nem democracias, nem totalitarismos podem resolver o problema do verdadeiro bem dos povos. Diferente é já a perspetiva duma revista do Seminário – Oásis – fundada em 1962 e com tiragem trimestral. Esta revista contém uma variedade de temas, que vão desde narrativa das atividades internas e externas do Seminário, a estudos literários feitos pelos seminaristas, peças de teatro, poemas, mas também alguns artigos teológicos, em especial ligados ao Concílio Vaticano II. Nestes últimos contam-se temas como o movimento litúrgico, que culmina com a reforma conciliar da liturgia, a renovação da vida da Igreja aberta pelo Concílio, a filosofia como caminho para a teologia, a importância e os limites da sociologia religiosa. Estas perspetivas exprimem uma progressiva transformação do pensamento teológico, aberto ao confronto com problemáticas coevas. Antes e durante o Concílio Vaticano II, os bispos do Funchal tiveram o cuidado de preparar alguns padres da Diocese em Roma, com especialização em diferentes áreas da Teologia, o que foi certamente importante para a formação teológica do clero madeirense. Entre eles contam-se: D. Teodoro de Faria, D Maurílio de Gouveia, D. Manuel Ferreira Cabral, P.e Abel Augusto da Silva, P.e Agostinho Faria, P.e Sidónio Gomes Peixe. Em 1972, o Seminário Maior do Funchal foi encerrado, mas já em 1968 os seminaristas do 1.º ano de Teologia começaram a ir para Lisboa, por iniciativa do bispo diocesano, onde frequentaram a Faculdade de Teologia da Universidade Católica, aberta nesse ano. Entretanto, o curso teológico continuou no Funchal até 1972 para os restantes seminaristas. Deste modo, o clero da Diocese que se formou nestes anos é, na sua quase totalidade licenciado em Teologia. D. Teodoro de Faria teve também o cuidado de preparar alguns padres através duma especialização em Teologia, em Roma e em Paris.   Vítor Reis Gomes (atualizado a 31.12.2016)

Religiões

terra, miguel ventura

Desde meados de Oitocentos que a cidade do Funchal se afirmou como importante local de turismo, procurado sobretudo para fins terapêuticos. Com efeito, o clima ameno da Madeira cedo atraiu muitos visitantes. A Ilha era então uma referência para as viagens de lazer e uma estância especialmente acreditada e recomendada para a cura das moléstias do foro pulmonar. Por esse e outros motivos, ao longo daquela centúria, passaram pelo Funchal importantes membros da realeza europeia, como a arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, que viria a tornar-se imperatriz do Brasil, a rainha Adelaide, de Inglaterra, ou o príncipe Maximiliano, duque de Leuchetenberg. A Imperatriz D. Maria Amélia de Beauharnais, viúva de D. Pedro IV, também para aí se dirigiu, em 1852, trazendo por companhia a sua filha, a jovem, mas debilitada, princesa D. Maria Amélia, que, não obstante algumas melhorias iniciais, ali veio a sucumbir em fevereiro de 1853. Também pela Madeira passou, no inverno de 1860 e em finais do séc. XIX, a imperatriz Elizabeth, mais conhecida por Sissi da Aústria. Hospedados em antigas quintas madeirenses, como a Quinta Vigia e a Quinta das Angústias, outros visitantes menos ilustres beneficiaram da estadia em infraestruturas de apoio ao turismo na periferia da cidade, como a família Waxel e Faria e Castro, que por aí passaram no séc. XIX.   As transformações que paulatinamente ocorriam no Funchal ofereciam melhores condições a uma cidade já muito visitada por estrangeiros. O Conselheiro Dr. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), enquanto governador civil, e face à animação turística da baixa do Funchal, implementou a iluminação pública na cidade. Em finais daquela centúria surgiu a construção do elevador do Monte, que permitia o transporte de visitantes e gentes locais, desde a Estação do Pombal à pitoresca freguesia de Nossa Senhora do Monte. Por outro lado, a edificação do Teatro Municipal, concluído em 1887 e na época batizado de D. Maria Pia, e a construção do Hospício Princesa D. Maria Amélia eram exemplos pontuais de modernização da paisagem urbana funchalense. Com a implementação da República, os novos poderes locais contactaram um dos mais prestigiados arquitetos portugueses da época, Miguel Ventura Terra (1866-1919), para elaborar um projeto de urbanização que dotasse a cidade com as melhores condições para que pudesse responder aos desafios do novo século. Com efeito, a total reformulação da cidade do Funchal fazia parte das intenções dos recém-eleitos deputados pela Madeira, o Dr. Manuel de Arriaga (1840-1917), o Dr. Francisco Correia Herédia (1852-1918), ex-visconde da Ribeira Brava, pois abdicara do título em 1910, sendo mais conhecido entre os deputados como senhor Ribeira Brava, o Dr. Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969) e o Dr. Carlos Olavo Correia de Azevedo (1881-1958). Em agosto de 1911, Manuel de Arriaga foi eleito primeiro presidente da República e certamente terá mantido estreita relação com os deputados madeirenses e com o Arq. Ventura Terra. Este último fora eleito em 1908 para a primeira vereação totalmente republicana da Câmara de Lisboa, cargo que manteve até 1913. Podemos constatar essa convivialidade política numa tela de 1913, do pintor e amigo do Arq. José Maria Veloso Salgado, intitulada O Sufrágio, onde nos surge, num primeiro plano, Manuel de Arriaga a colocar o seu voto à boca da urna e, num plano mais recuado, o arquiteto usando um chapéu de palha. Por outro lado, sabemos que o ex-visconde da Ribeira Brava, Francisco Correia Herédia, viveu largo tempo em Paris, onde possivelmente terá desenvolvido laços de amizade com o então estudante de arquitetura Miguel Ventura Terra. A amizade e os contactos terão certamente ficado fortalecidos agora que ambos frequentavam e se cruzavam em Lisboa. Assim, a nova comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal, na sua sessão de 19 de setembro de 1912, encarregou o deputado madeirense, senhor Ribeira Brava, de contactar aquele arquiteto, que à época apelidavam de “engenheiro” Ventura Terra, perguntando-lhe se aceitaria a missão de vir ao Funchal elaborar um Plano Geral de embelezamento da cidade. Para custear a sua vinda, a Câmara contou com um subsídio concedido pela Junta Agrícola, organismo criado em 1911 para incremento das obras públicas, sendo então presidido pelo ex-visconde da Ribeira Brava, Dr. Francisco Correia Herédia. Acedendo ao convite das entidades funchalenses, o arquiteto desembarcou no Funchal a 10 de fevereiro de 1913. Viera pelo vapor inglês Ambroze sendo acompanhado pelo seu irmão, António Joaquim Terra, como veio a noticiar o Heraldo da Madeira. Sabe-se que no dia seguinte visitou o Terreiro da Luta, tendo-se “demorado longamente na varanda do Restaurante Esplanada, extasiado ante o espetáculo do pôr do sol” (“Architeto Ventura Terra”, Heraldo da Madeira, 13 fev. 1913, 1). A comissão municipal encarregou o seu vice-presidente, o ex-visconde da Ribeira Brava, também deputado na Assembleia da República e velho amigo dos tempos de estudo em Paris, de ultimar com Ventura Terra a execução do Plano Geral de Melhoramentos para a cidade. Ventura Terra nasceu em Seixas, no Minho, a 14 de julho de 1866, no seio de uma família bastante humilde e numerosa. Terra foi o décimo terceiro e último filho de João Bento Terra e de Maria Victória Affonso Lindo. Os seus pais possuíam uma casa no Lugar do Sobral, em Caminha, onde iniciou os estudos primários. Ingressou, mais tarde, na Academia Portuense de Belas Artes, onde frequentou o curso de Arquitetura, entre 1881 e 1886. Completou os seus estudos na École Nationale et Speciale des Beaux-Arts, em Paris, como bolseiro do governo português, tendo frequentado o atelier dos Arqs. Jules André e Victor Laloux. Alcançou o estatuto de arquiteto de primeira classe diplomado pelo Governo francês, em 1894, tendo regressado definitivamente a Portugal em 1896, após conquistar o concurso internacional para a reconversão do edifício das Cortes na Câmara dos Deputados em Lisboa, atual Palácio de São Bento, sede da Assembleia da República, inaugurado em 1903. Neste mesmo ano, o arquiteto formou a Sociedade dos Arquitetos Portugueses, sendo o seu primeiro presidente. Em entrevista ao Heraldo da Madeira, aquando da sua passagem pelo Funchal, em fevereiro de 1913, explicou que a sua viagem se destinava a contactar com a Madeira, quer com a sua beleza, quer com os seus problemas. Quanto à cidade, comentou ser bastante confusa, com ruas horrivelmente calcetadas, muito irregulares e acidentadas, pelo que a considerava completamente “destituída dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas”(“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 21 maio 1913, 1). Lamentou, ainda, que, sendo a Madeira uma das “mais belas regiões do mundo”, a sua cidade não aproveitasse os esplêndidos pontos de observação de que poderia tirar partido. Durante esta visita à Madeira, Ventura Terra terá obtido conhecimento dos trabalhos desenvolvidos para a zona marítima da cidade realizados pelo Eng. Adriano Augusto Trigo (1862-1926), através do seu irmão, Eng. Aníbal Augusto Trigo (1865-1944), que era o diretor da Repartição Técnica da Câmara Municipal do Funchal. Com efeito, o Anteprojeto de Março de 1905, para o Prolongamento da Estrada da Pontinha à Alfândega e Construção de uma Avenida Marginal entre o Cais e o Forte de S. Tiago, da autoria do Eng.º Adriano Augusto Trigo, propõe algumas soluções que foram retomadas por Ventura Terra, nomeadamente a solução de avançar com a marginal sobre o mar. No entanto, o arquiteto vai mais além, propondo uma avenida que teria uma largura de 50 m e abrangeria toda a frente mar em contacto com a baixa da cidade, ou seja, desde as imediações do sítio das Angústias até ao Forte de S. Tiago, normalizando a irregularidade da costa. O Plano Geral de Melhoramentos Para o Funchal, de 1915, elaborado por Ventura Terra, surgiu da necessidade de reformular a cidade com modernos equipamentos urbanos e novas infraestruturas para o desenvolvimento da recente base económica do arquipélago da Madeira, o turismo internacional. Em linhas gerais, o projeto concretizou-se ao longo do séc. XX. O documento, constituído por duas enormes plantas de cinco por dois metros, é fundamental para um melhor entendimento das alterações urbanísticas que se operaram no Funchal ao longo daquela centúria, com maior incidência ao tempo do dinâmico autarca Fernão Ornelas Gonçalves (1908-1978) à frente da Câmara do Funchal. O Arqt. Ventura Terra, consciente das dificuldades de execução do seu “luxuoso” Plano Geral de Melhoramentos para a Cidade do Funchal, faseou a sua implementação a longo prazo tendo afirmado, em entrevista ao Heraldo, que o dividiria em três estudos. Ao primeiro traçado, Ventura faria corresponder aquilo que a atualidade de então permitia, privilegiando, para o segundo estudo, a construção de novas e largas avenidas de modo a arejar a cidade, como referiu na Memória Descritiva. À edilidade funchalense terão sido enviados planos parcelares, pois, em sessão camarária de 25 de setembro de 1913, o presidente da comissão administrativa daquele órgão de poder local afirmou ter recebido o projeto final de alargamento da R. da Carreira e a planta da Av. de Oeste, tendo em vista o desenvolvimento das obras em conformidade com o Plano de Melhoramentos. O segundo traçado contaria já com avenidas e ruas largas representando uma transição entre a condição inicial e a cidade que se pretendia obter. Por último, o terceiro traçado avançaria com propostas para um Funchal “definitivo, como o poderia ser daqui a uns cinquenta ou cem anos” (“Melhoramentos Locais...”, Heraldo da Madeira, 1). Atuando deste modo, o arquiteto afirmava entregar à Câmara do Funchal um Plano que a habilitaria a proceder metodicamente no seu crescimento urbanístico, o que colocaria o Funchal à frente de Lisboa. Em março de 1914, em vésperas da Primeira Grande Guerra, Ventura Terra oficiou à Câmara do Funchal a conclusão da sua obra, pedindo a esta entidade o pagamento dos seus honorários. O Projeto pretendia, principalmente, dotar a cidade do Funchal “dos requisitos que faziam a formusura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas mais adiantadas da época” (DRAC, 1915, 1), propondo uma nova forma de organizar a cidade com base na definição de largos eixos viários que confluíam em amplas praças ou rotundas para uma melhor redistribuição do tráfego. A nova estrutura viária equacionada por Ventura Terra propunha a abertura de uma ampla Av. Marginal que garantia o atravessamento da cidade no seu sentido longitudinal. A mesma estendia-se desde o Forte de S. Tiago até a Ribeira de S. João, prolongava-se depois por uma rua litoral, até ao Lg. António Nobre, naquilo que é, em parte, a Av. do Mar e das Comunidades Madeirenses. Em toda a sua largura estariam inscritas três faixas de rodagem, separadas por placas centrais arborizadas e com amplos passeios laterais. Paralelamente a esta avenida, Ventura Terra desenhou a Av. de Oeste. Esta resultava do prolongamento para oeste da Av. Arriaga e subia as Angústias até a Est. Monumental, naquilo a que mais tarde se designou por Av. Infante. No seu percurso para leste ia até ao Lazareto, percorrendo com a sua ampla largura o coração da cidade. Atravessava ainda uma ampla praça sobre a Ribeira de Santa Luzia e passava próximo do Campo da Barca. Do seu traçado destacou-se, na época, apenas a construção da parte compreendida entre a Sé e o Jardim Pequeno, troço que corresponde em parte à posterior Av. Arriaga, até a R. de S. Francisco, que, sendo iniciada na primavera de 1914, se concluiu em maio de 1916. Mantendo um traçado sensivelmente paralelo à linha da costa, Ventura Terra indicou no seu Plano outra via a resultar do alargamento da R. da Carreira e da R. do Bom Jesus, estabelecendo a conexão entre as duas através do alargamento da Praça do Município, o qual contribuiria para a valorização do edifício onde se encontrava instalada a Câmara do Funchal. Um conjunto de outras avenidas, sensivelmente perpendiculares à linha da costa, são indicadas para fazer a ligação da frente mar com o interior da cidade. A grande Av. de Santa Luzia, com 30 metros de largo, resultaria da cobertura da Ribeira de Santa Luzia por meio de uma abóbada de berço contínuo em betão armado, apresentada como a solução para o problema higiénico e estético que este curso de água constituía. As ruas que ladeavam esta ribeira, ruas da Princesa e do Príncipe, posteriormente designadas de R. 5 de Outubro e R. 31 de Janeiro, funcionariam como amplos passeios laterais que se estenderiam desde a Av. Marginal até uma praça ou rotunda a instalar próximo da estação do caminho-de-ferro do Monte, mais conhecida por Estação do Pombal. Deste modo, Ventura Terra orientava os viajantes para os pontos turísticos de maior interesse no Funchal. São indicadas outras avenidas que se apresentam perpendiculares à linha da costa e paralelas entre si: a que passa em frente à Sé do Funchal e desemboca no Lg. do Colégio, a que se estende desde a Calç. do Palácio de São Lourenço até à R. da Carreira e ainda a que se inicia no cais e sobe até à Av. Arriaga. Em todos os arruamentos o arquiteto propõe uma configuração abaulada dos perfis de modo a obter uma inclinação suave destinada à drenagem das águas pluviais. No encontro dos grandes eixos de circulação viária seriam edificadas praças que, a par com as largas ruas e avenidas, contribuiriam para um maior arejamento da cidade, funcionando também como excelentes pontos de vista e ótimos locais para colocação de monumentos, um aspeto primordial no embelezamento urbano. Para o coração da cidade, o arquiteto contemplou um grande quarteirão para a instalação do Palácio das Repartições Públicas. Este ocuparia o edifício onde então se localizava o Hospital da Misericórdia do Funchal e implantar-se-ia na área definida pelas ruas de S. Francisco, parte da R. da Carreira, R. de João Tavira e Av. Arriaga, dando seguimento a indicações anteriores que remetiam para a zona do Monte as instituições de saúde, nomeadamente a construção de sanatórios para tratamento da tuberculose. Nos inícios de Novecentos, uma comitiva da Companhia dos Sanatórios da Madeira passou pelo Funchal a fim de proceder ao levantamento dos locais mais adequados à construção dos Sanatórios da Madeira, tendo sido a zona do Monte indicada como um dos lugares apropriados para a construção de sanatórios para tuberculosos. Iniciou-se, em 1905, a construção do edifício dos Marmeleiros destinado a sanatório para pobres. No entanto, vários contratempos impediam o seu funcionamento, situação que se mantinha à altura da passagem de Ventura Terra pelo Funchal. Em meados dos anos vinte daquela centúria, será leiloado todo o mobiliário, ficando aquele estabelecimento hospitalar completamente desocupado apenas em 1926, sendo posteriormente cedido à Irmandade da Misericórdia do Funchal, tendo para aí sido transferido, em 1930, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Este Plano previa também a construção de dois bairros na periferia da cidade. O Bairro Oriental estava destinado essencialmente às construções económicas das classes populares e operárias, disponibilizando-lhes bons terrenos e boas condições de habitabilidade, sem descurar a pronta acessibilidade aos locais de trabalho. O Bairro Ocidental estava “destinado às edificações luxuosas e artísticas das classes ricas e abastadas” (DRAC, 1915, 5). Esta previsão concretizar-se-á, passadas duas décadas, com a edificação, nas margens da Av. Infante, de habitações luxuosas próprias de uma cidade cosmopolita, embora de pequena dimensão, com risco de grandes nomes da arquitetura portuguesa, como Raul Lino (1879-1974), Carlos Ramos (1897-1969) e Edmundo Tavares (1892-1983). Nos anos 30 do séc. XX, o arquiteto modernista Carlos Chambers Ramos, a convite da Câmara e da Junta Geral do Funchal, desenvolveu o Plano de Urbanização para o Funchal de 1931-33, onde retomou algumas das propostas de Ventura Terra, com quem trabalhara. Na sequência do mesmo, a edilidade funchalense deliberou que, para a Av. Infante, apenas permitiria a construção de chalets e habitações dentro das normas que a vereação então estabelecia. Demonstrando preocupações de caráter paisagístico e ambiental, Ventura Terra projetou, ainda, junto de cada um dos novos bairros, parques ajardinados e arborizados de onde se poderia vislumbrar os bonitos panoramas da Ilha. Destinavam-se a desempenhar um papel importante e notável na vida da cidade, sob o ponto de vista da salubridade, recreio da população, conforto e receção de turistas. No Plano de Ventura Terra, o desenho destes espaços verdes urbanos aparecem apenas delineados de forma geométrica com a indicação dos percursos e das diferentes áreas. Para o cais de entrada da cidade do Funchal, o arquiteto propôs uma praça para a receção dos turistas. Sobre o cais seria edificado um espaço de entretenimento, o Casino Municipal. A construir num plano mais elevado, estaria especialmente destinado à multidão de visitantes que chegavam à Ilha pela navegação transatlântica. O cais seria desviado para nascente de modo a localizar-se em frente à Alfândega. Ventura Terra chamou a atenção da Câmara do Funchal para que contratasse profissionais devidamente qualificados para implementar o seu Plano. Apelou mesmo à formação de uma corporação especial, composta por entidades competentes e detentora de poderes para aprovar ou rejeitar os projetos públicos ou privados, à qual caberia ditar e fiscalizar a aplicação das leis ou normas a que deveriam obedecer as novas construções. Deste modo o arquiteto manifestava a sua preocupação com o controlo urbanístico que, até aí, apenas existira pontualmente na espontaneidade urbanística da cidade do Funchal. Algumas das propostas de Miguel Ventura Terra, falecido em Lisboa a 30 de abril de 1919, colidiram com as forças vivas da cidade do Funchal. A implementação integral do seu Projeto implicava a demolição de imóveis com forte valor histórico e patrimonial, como os baluartes da Fortaleza de São Lourenço ou a torre e o transepto da Sé. Ventura Terra considerava o património como herança a preservar, mas não como elemento limitativo do desenvolvimento urbano. Foi, sobretudo, a instabilidade política da época, com sucessivas quedas de governo, e a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra que fizeram agravar as dificuldades já sentidas no arquipélago madeirense. Desta forma, este Plano revelou-se demasiado "luxuoso" para a época, mas serviu de modelo à atual morfologia urbana do Funchal, sendo por isso merecedor de destaque, tanto mais porque se completou, em maio de 2015, o primeiro centenário do seu risco.   Teresa Vasconcelos (atualizado a 31.12.2016)

Arquitetura Personalidades

vicentinos (padres da congregação da missão ou lazaristas, e filhas da caridade)

A presença dos filhos de S. Vicente de Paulo na Ilha da Madeira a partir da segunda metade do séc. XIX está intrinsecamente associada à fundação do Hospício da Princesa D. Maria Amélia, por iniciativa de sua mãe, a Imperatriz do Brasil, D. Amélia de Leuchtenberg, viúva de D. Pedro I, Imperador do Brasil, que foi também D. Pedro IV, Rei de Portugal. À procura de clima e ambiente propícios para cura dos males de que sofria, a jovem princesa D. Maria Amélia chegou ao Funchal a 30 de agosto de 1852, na companhia da mãe. Menos de meio ano depois, aí veio a falecer, no dia 4 de fevereiro de 1853. Em memória da filha, a Imperatriz tomou a decisão de fundar o Hospício da Princesa D. Maria Amélia. Para esse fim, foi arrendada uma casa onde o mesmo ficou instalado provisoriamente, a partir de 10 de julho desse ano de 1853, sob a direção clínica do Dr. António da Luz Pita. Para lhe assegurar condições de continuidade, foi aprovada em 19 de julho de 1853 e publicada no Diário do Governo de 5 de agosto desse ano uma lei que estabelecia as garantias necessárias. Adquirido o terreno para a construção do edifício definitivo, os trabalhos foram iniciados em 1856, sendo concluídos em 1859. Ao edifício material, juntou a Imperatriz D. Amélia as diligências necessárias para entregar o serviço dos doentes e dos pobres às Filhas da Caridade. A fundadora do Hospício determinou também que a assistência religiosa aos doentes e ao pessoal do estabelecimento fosse confiado aos sacerdotes da Congregação da Missão, fundada por S. Vicente de Paulo. Os superiores maiores acederam ao convite, que correspondia plenamente ao carisma vicentino, e, no dia 4 de fevereiro de 1862, o Hospício D. Maria Amélia recebia os primeiros doentes, conforme se lia na lápide de mármore preto que foi colocada a meio da escadaria de entrada. As Filhas da Caridade tinham entretanto chegado ao Funchal para se dedicarem ao tratamento dos doentes. Começava assim, na Madeira, a presença estável do serviço corporal e espiritual prestado a pobres e doentes por parte dos filhos e das filhas de S. Vicente de Paulo. Padres da Congregação da Missão A primeira presença de padres da Congregação da Missão no arquipélago da Madeira ocorrera em meados do séc. XVIII. Após as reiteradas solicitações de D. Gaspar Afonso Brandão (1703-1784), Bispo do Funchal, foram enviados, em agosto de 1757, dois padres da Congregação da Missão, destinados à direção do seminário diocesano. Uma vez chegados à Madeira, percebeu-se que não havia condições para instalar e pôr em marcha o estabelecimento de ensino eclesiástico e os dois missionários, João Alasia, piemontês de nascimento, e José Reis, tiveram de ficar hospedados no paço episcopal. Logo iniciaram trabalhos pastorais diversos, tais como pregação de exercícios espirituais aos ordinandos e ao clero, pregação de retiros a religiosos e religiosas de vários conventos, e missões populares nas paróquias da Madeira e Porto Santo. Ao longo de 10 anos, entregaram-se os missionários, muitas vezes na companhia do próprio bispo, a estas tarefas apostólicas próprias do carisma vicentino. Em virtude de persistir a falta de condições para se ocuparem da formação seminarística, finalidade que os levara à Madeira, regressam ao continente em dezembro de 1767, e só um século depois voltam à Ilha. No Hospício, começaram a assegurar o serviço religioso como capelães aquando da chegada das irmãs, em 1862, e depois ininterruptamente, a partir de 1871. Outras missões, além da capelania, lhes foram sendo atribuídas no contexto pastoral da Diocese do Funchal, nomeadamente funções de ensino e de direção no seminário, de pregação e de assistência espiritual, bem como a promoção e o acompanhamento de obras de natureza social e cultural. As tarefas de formação do clero madeirense por parte dos filhos de S. Vicente de Paulo começaram com a entrada de D. Manuel Agostinho Barreto na Diocese do Funchal, em 1877, e acompanharam praticamente os 34 anos do seu governo episcopal. Em 1878, partiu de Lisboa o P.e José Joaquim de Sena Freitas, incumbido da tarefa de pregar o retiro espiritual aos ordinandos e aos seminaristas. Nesse mesmo ano, foi colocado como capelão do Hospício o P.e Ernesto Schmitz que, pouco depois, começaria a colaborar no seminário como professor, embora a direção do estabelecimento só em 1881 tenha sido confiada aos Lazaristas. Aí se mantiveram até à implantação da República, como obreiros da “mais completa e radical transformação que nele [seminário] se operou em toda a sua já longa existência de quase quatro séculos” (SILVA, 1946, 117-118). Entre as duas dezenas de formadores lazaristas que trabalharam no seminário, merecem que aqui recordemos de modo muito particular os P.es Ernesto Schmitz e Léon Xavier Prévot. O primeiro distinguiu-se como prestigiado diretor, conselheiro e modelador de personalidades, a que juntava o apostolado como pregador de missões populares no período de férias escolares; notabilizou-se ainda enquanto reputado botânico e ornitólogo, a quem se ficou a dever, em 1882, a fundação do museu do seminário, onde reuniu importantes coleções no domínio da história natural. O P.e Prévot impôs-se como competente professor de filosofia tomista e, ao mesmo tempo, esteve profundamente empenhado em contribuir para a alfabetização das crianças, mobilizando vontades para abrir escolas nos meios mais pobres da cidade e noutros lugares da Ilha. Com esse objetivo fundou, em 1893, a Obra das Escolas de S. Francisco de Sales e, para torná-la mais conhecida e apoiada, criou o Boletim Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales, em 1894. Outro padre vicentino que, em condições muito difíceis, foi encarregado da formação do clero madeirense na direção do seminário foi o P.e Bráulio de Sousa Guimarães; jovem sacerdote de 26 anos, desempenhou, desde 1916 até 1919, o cargo de vice-reitor e professor, com reconhecida competência e grande apreço pelos bons serviços prestados à Diocese do Funchal. A dedicação dos Lazaristas à obra do seminário não se confinou aos seus muros. A formação contínua do clero nas componentes espiritual, moral e pastoral, assumiu, no decorrer dos tempos, diferentes formas, de que se regista a União Sacerdotal madeirense que teve como seu diretor espiritual, nomeado a 14 de janeiro de 1914, o P.e José Maria Luís Garcia, capelão do Hospício e antigo professor do seminário, que dinamizou a União Sacerdotal até 1919, ano em que faleceu. Sucedeu-lhe nessa função o P.e Henrique Janssen, que pertencia à comunidade dos padres do Hospício desde 1909. A república decretou a expulsão das ordens e congregações. O efeito dessa decisão anticongreganista foi a saída dos padres vicentinos que pertenciam à comunidade do Seminário diocesano; os capelães do Hospício puderam continuar e manter as atividades costumadas em virtude de o Hospício se encontrar sob tutela da Coroa da Suécia. Foram tempos cheios de dificuldades, mas também de novas oportunidades para desenvolver e alargar os trabalhos de assistência caritativa e de evangelização. O P.e Luís Garcia dedicou-se ao acompanhamento religioso das irmãs, dos doentes, das escolas e das obras que giravam em torno do Hospício; era o caso das Damas da Caridade e da Associação das Filhas de Maria. Mas estendeu o seu zelo muito para além dos muros da capelania, como grande pregador na Sé e em toda a Ilha, e como diretor de consciências. O P.e Manuel da Silveira, outro vicentino, também antigo professor do seminário, a quem foi confiada a capelania da Penha, tornou-a um bem organizado centro de catequese, que serviu de modelo às catequeses paroquiais. Uma das suas particularidades foi a criação de uma Biblioteca da Infância destinada a prolongar o ensino do catecismo, promovendo, através do livro e da leitura, a formação geral de crianças e jovens. Outra iniciativa do P.e Manuel da Silveira consistiu na criação, no Funchal e em meados da déc. de 1920, do Patronato de S. Pedro, um centro constituído por escola elementar para crianças, aulas diurnas e noturnas para adultos, sede de organismos para a juventude, sala de cinema e grupo de teatro. Os padres vicentinos estão igualmente ligados a duas obras de promoção da cultura católica na Madeira, pioneiras no seu tempo: a publicação da revista A Esperança e a criação da Biblioteca Utile Dulci. A Esperança começou a ser publicada a partir de março de 1919. Era uma revista que se propunha contribuir para a formação católica dos leitores. Sucedia ao Boletim Eclesiástico da Madeira, que se publicou desde 1911 até fevereiro de 1919. Embora o leigo António Alves Torres figurasse como diretor nominal da publicação, o diretor efetivo era o P.e José Maria Luís Garcia que, tendo falecido pouco depois, teve no P.e Henrique Janssen um dedicado e persistente animador da revista durante os 20 anos que durou a publicação. A redação e administração tinham a sede na residência dos capelães do Hospício. Entre os vários colaboradores que deram corpo doutrinal à revista contam-se as muitas dezenas de artigos sobre os mais diversos assuntos assinados por “Miles Christi”, isto é, o P.e Henrique Janssen. A orientação de fundo identificava-se com a conceção da democracia cristã baseada no magistério doutrinal do Papa Leão XIII. Dentro da imprensa católica da época, A Esperança chegou a ser considerada uma das melhores publicações periódicas que se publicavam em língua portuguesa. O compromisso com a promoção da cultura católica e da cultura geral no meio madeirense levou os padres do Hospício a fundar uma biblioteca a que foi dado o nome de Biblioteca Utile Dulci. Os primeiros passos são descritos nos termos seguintes por quem a viu nascer: “Aproveitando para a sua instalação, primitivamente, uma sala da escola paroquial da Sé, à rua Dr. Vieira, a biblioteca Utile Dulci foi muito modestamente iniciada a 26 de novembro de 1916 com 15 livros, aos quais não tardaram a juntar-se uns 300 volumes dos quais muitos haviam pertencido aos padres lazaristas, então ausentes no estrangeiro, P.es Pereira da Silva e Sebastião Mendes” (GUIMARÃES, 1962, V, 130). Em 1920, já a biblioteca contava 3000 volumes e o número foi sempre aumentando, bem como o número de empréstimos e o de leitores que frequentavam a sala de leitura. Em nota inserta no Diário da Madeira de 31 de janeiro de 1937, pode ler-se que a Biblioteca Municipal e a Utile Dulci são as duas únicas bibliotecas públicas do Funchal. A este contributo cultural, proporcionado através do livro que a biblioteca tornava acessível, outras iniciativas se juntaram, como o círculo de estudos e as quintas-feiras literárias que, no Instituto de Ensino Secundário e Comercial do Funchal, reuniam pessoas interessadas em enriquecer o âmbito dos seus conhecimentos. Pode dizer-se que, através dos Lazaristas que foram passando pela capelania do Hospício, a Madeira foi berço do movimento ecuménico. Foi no Funchal, no outono de 1889, que se deram os primeiros contactos entre o P.e Fernand Portal (1855-1926) e o anglicano lord Charles Wood Halifax que conduziriam mais tarde às promissoras Conferências de Malines, iniciadas a 6 de dezembro de 1921 e presididas pelo Cardeal Mercier. O P.e Portal, que durante muitos anos sofreu de doença pulmonar, chegou ao Funchal no dia 8 de outubro de 1889 e lá permaneceu até ao dia 4 de maio de 1890. Lord Halifax tinha, pela mesma altura, aportado à Madeira com a família, à procura de um clima suave e saudável. Como já tinha perdido um filho, levado pela tuberculose, e ele mesmo sofria desse mal, quis visitar o Hospício. Ao P.e Portal, um estudioso das instituições eclesiásticas para quem a teologia era apenas uma história do que Deus revelou aos homens, coube a tarefa de o receber. Começou assim uma relação de profunda estima pessoal e de infatigável colaboração na procura de caminhos para o diálogo e a unidade das igrejas. As conversações então iniciadas na Madeira tiveram o consentimento e estímulo do bispo do Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto – que em maio de 1890 partiria para Roma, levando o P.e  Portal como seu secretário.  Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo A Companhia das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo foi autorizada a estabelecer-se em Portugal por alvará de D. João VI, de 14 de abril de 1819. Dois anos depois, começava a organizar-se em Lisboa o primeiro núcleo de irmãs. As obras de assistência aos doentes, aos pobres e às crianças abandonadas foram-se multiplicando até que, no ano de 1834, chegou a legislação de Joaquim António de Aguiar que, extinguindo as ordens religiosas, inviabilizou a continuidade da instituição. Foi preciso esperar até ao outono de 1857 para as Filhas da Caridade, de nacionalidade francesa, voltarem a estabelecer-se em Portugal. À medida que a dedicação aos doentes, pobres e órfãos lhes iam granjeando o respeito e a gratidão das camadas populares mais humildes, nos jornais manipulados por políticos e mentores de orientação maçónica recrudesciam as campanhas contra as Filhas da Caridade. Depois de agitados debates nas mais altas instâncias políticas, esta Companhia recebeu nova ordem de expulsão do território nacional em maio de 1862, sem exceção da Madeira, onde as Filhas da Caridade tinham começado a trabalhar no Hospício D. Maria Amélia cerca de três meses antes. A opinião pública local e poderosas influências apoiaram sempre a presença das irmãs e as suas obras de bem fazer, mas elas acabaram mesmo por deixar o Funchal, em julho do mesmo ano em que tinham iniciado a obra do Hospício. Voltariam em 1871. Em agosto de 1900, as Filhas da Caridade foram convidadas a tomar conta de um pequeno Asilo de Mendicidade, onde eram acolhidos idosos e crianças abandonadas; mas tiveram de o abandonar em julho de 1902, devido a mudanças verificadas na administração. O anticongreganismo dominante deu origem a um decreto de Hintze Ribeiro, datado de 18 de abril de 1901, que obrigava a aprovação governamental as associações religiosas que se dedicassem a obras de beneficência e os respetivos estatutos. Os Estatutos da Associação Religiosa das Irmãs de S. Vicente de Paulo foram aprovados; deles faziam parte o hospital para tuberculosos no Funchal, escolas externas, asilo, ensino doméstico e, na mesma cidade, o já mencionado asilo de mendicidade. Em 1910, foi instaurada a república e com ela ganhou novo fôlego o anticongreganismo. Como todas as ordens e congregações, também as Filhas da Caridade foram intimadas a deixar o país. Acabaram, no entanto, por ficar, em virtude de, estatutariamente, o Hospício se encontrar, como já foi referido, sob a tutela da coroa sueca. Ao lado do Hospício, havia uma escola dirigida pelas irmãs e frequentada por mais de 700 crianças. As Filhas da Caridade que dela se ocupavam foram obrigadas a partir, e forçadas a abandonar a formação das crianças e as obras de assistência aos pobres. O poder republicano mais radical e hostil às congregações religiosas não deu tréguas às Filhas da Caridade nem aos capelães do Hospício. O ardil persecutório recorreu, em 1913, a um indivíduo alto, robusto e de cabelo loiro que, a falar inglês, se apresentou no Hospício como enviado do Rei da Suécia e com o intuito de verificar as contas a fim de as transmitir a Sua Majestade que, segundo dizia, estava descontente com o serviço das irmãs e se dispunha a entregar o estabelecimento a diaconisas protestantes inglesas. A pronta reação das irmãs e dos padres do Hospício consistiu em demonstrar que, segundo os estatutos da instituição, o estabelecimento podia ser fechado, mas nunca entregue a outra congregação ou associação. Tentativa semelhante, a pretexto de pagamento de impostos, seria repetida mais tarde, mas, uma vez mais, sem consequências. O Hospício sentiu os efeitos da guerra de 1914-1918, quando, a 3 de Dezembro de 1916, um submarino alemão atacou barcos ancorados na baía da cidade. Uma canhoneira francesa carregada de munições de guerra foi afundada e as respetivas munições explodiram. Dois obuses caíram no Hospício: um rebentou ao pé do jardim e o outro, sem explodir, alojou-se num edifício da escola, causando apenas danos materiais e um enorme susto. A comunidade do Hospício, ajudada por alguns colaboradores, dedicou-se, ao longo do seu primeiro século e meio de existência, a obras diversas, tais como jardim de infância, creche, escola, lar de idosos, lar para crianças carenciadas, além de obras de formação espiritual, como a Associação das Filhas de Maria Imaculada da Medalha Milagrosa, ereta no Hospício em 1880, as Damas da Caridade, e colaborações na catequese, na pastoral juvenil e no apoio às famílias. Ao findar o século XX, foram fundadas mais duas comunidades de Filhas da Caridade, as comunidades de Gaula e do Monte. Por iniciativa particular e a pedido do bispo do Funchal, as Filhas da Caridade fundaram em Gaula, para serviço dos pobres e de idosos, a Casa da Sagrada Família e Refúgio de S. Vicente de Paulo, que começou a funcionar no dia 1 de maio de 1988, dando apoio a muitas dezenas de pessoas. Em 1956, a Comunidade das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo adquiriu no Monte, concelho do Funchal, um terreno amplo com moradia destinado a casa de formação e lugar de repouso para as irmãs. A agitação social que acompanhou a Revolução de 25 de abril de 1974 saldou-se pela ocupação do terreno e das instalações, que só foram recuperados pelas Filhas da Caridade depois de moroso processo. Em 1995, o conselho provincial criou aí a Fundação de Santa Luísa de Marillac, uma instituição particular de solidariedade social. A Comunidade do Monte-Quinta Betânia instalou um infantário e uma creche, colaborando com a paróquia na catequese e em serviços religiosos e conferências vicentinas.   Luís Machado de Abreu (atualizado a 30.12.2016)

Religiões

cais regional

O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da passagem pelo Funchal da princesa D. Leopoldina de Áustria, em setembro de 1817, quando se fez uma ponte para o seu desembarque junto ao palácio de S. Lourenço, tendo o espaço envolvente sido arranjado nos anos seguintes. A construção de um cais de pedra ensaiou-se em 1843, mas a breve trecho estava arruinado, e somente em 1879 se voltou a estudar o assunto, sendo as obras do cais iniciadas em 1889 e terminadas em 1892. O cais ainda foi ampliado entre 1932 e 1933, e a sua importância é patente na imensa documentação fotográfica existente. O seu interesse como cais perdeu-se com o aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e o advento dos transportes aéreos, no entanto, mantém-se como importante zona de lazer da cidade, tanto para visitantes como para residentes. Palavras-chave: Entrada da cidade; Molhe de acostagem; Porto; Transportes marítimos; Turismo. O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da determinação feita, quando da passagem pelo Funchal da princesa D. Maria Leopoldina de Áustria (1797-1826), em setembro de 1817, de que deveria ser feita “uma ponte para o cómodo e decente desembarque da mesma Augusta Senhora”, assim como preparar-se com o devido “asseio e arranjo na Casa do Governo” instalações para a princesa (ARM, Governo Civil, liv. 198, fls. 33-34v.; AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3965). Configurou-se, assim, o arranjo do espaço frente ao palácio e fortaleza de S. Lourenço para a entrada solene da arquiduquesa de Áustria no Funchal, então perene, mas a partir de 1839, demolidas as portas e casa da Saúde, onde até então a Câmara procedia ao controlo sanitário, foi a área transformada em entrada de honra da cidade (Entrada da Cidade). O cais de desembarque do porto do Funchal fora feito na base do ilhéu do forte de S. José, em 1756, pelo Eng. Francisco Tosi Colombina (1701-c. 1770), mas não só era então muito distante do centro da cidade, como muito acanhado. Em 1824, ensaiou-se um novo cais de desembarque, então nas baixas frente à fortaleza de S. Tiago, projeto da autoria do Brig. Francisco António Raposo e execução do Ten.-Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em cujos trabalhos se gastaram então 37 contos de réis, tendo tudo sido levado pelo mar. A 17 de fevereiro de 1829, inclusivamente, mandava-se retirar de S. Tiago os degraus de cantaria “que se destinavam ao cais que se projetara construir” para se utilizarem no molhe de cais da Pontinha (ARM, Governo Civil, liv. 798, fl. 51v.). A oportunidade da construção de um cais frente à entrada da cidade veio a surgir após a aluvião de 24 de outubro de 1842. Um mês depois, a 26 de novembro, foi despachado para o Funchal o então Maj. Manuel José Júlio Guerra (1801-1869), experiente militar liberal com larga folha de serviço nos Açores, Porto, Algarve e Setúbal, mas, em princípio, sem as capacidades científicas dos outros dois engenheiros na altura também presentes na ilha: António Pedro de Azevedo (1812-1889)  e Tibério Augusto Blanc (c. 1810-1875), mas um somente capitão e o outro tenente. O mais importante e inglório trabalho de obras públicas desenvolvido nestes anos pelo novo diretor das obras públicas, Maj. Manuel José Júlio Guerra, foi o cais em frente à entrada da cidade, mas a breve trecho viria a perder-se, como o ensaiado nos baixios de S. Tiago. A Câmara Municipal do Funchal, por resolução de 23 de abril de 1843, por certo após acordo com o Maj. Guerra, propunha a construção de um cais de pedra em frente à entrada da cidade, votando, para isso, a verba de 1200$000 réis. O assunto foi presente ao conselho do distrito em 6 de maio seguinte, ficando encarregado de dirigir a obra o Maj. de engenharia Manuel José Júlio Guerra, que a 24 do mesmo mês solicitava um reforço de mais um conto de réis para colocar depois as obras a coberto do inverno. O custo da obra não parava de aumentar, tendo-se já gasto em fevereiro de 1844 mais de quatro contos de réis, pedindo ainda o Maj. Guerra mais um reforço de 18 contos de réis, quantia que a Câmara não via maneira de poder satisfazer. Em sessão camarária de 6 de março de 1844, foi colocado o assunto, surgindo uma proposta de criação de uma comissão para dirigir as obras do cais, entregando-se a presidência ao Maj. Guerra, mas constituindo um corpo com um delegado camarário, o Dr. Manuel Joaquim Moniz, os engenheiros militares Cap. António Pedro de Azevedo e Ten. Tibério Augusto Blanc e o Eng. camarário Vicente de Paula Teixeira (1785-1855). A proposta acabou por não ser aprovada superiormente, continuando as obras sob a desastrosa direção do Maj. Guerra. Entretanto, assumindo a direção dos destinos da Ilha a Junta de Governo (Regeneração e Partido Regenerador), na sequência das revoltas da Maria da Fonte e da Patuleia, que afastou o Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891) e chegou a ter por presidente o já então Ten.-Cor. Eng. Manuel José Júlio Guerra, ainda viriam a ser desbloqueadas importantes verbas para as obras do cais da entrada da cidade. Com o regresso do governador ao palácio de S. Lourenço, as obras pararam e o Ten.-Cor. Guerra seria transferido para o continente, não voltando à Madeira. Mais tarde, em 1853, Isabella de França (1797-1880) descreveria que, “perto do sítio onde desembarcámos, notam-se vestígios de um cais, planeado há já alguns anos. Nele se gastaram quantias importantes e se desperdiçaram materiais e trabalho que bem poderiam ter sido úteis”. A autora cita ainda que as obras, não devidamente acauteladas, haviam sido praticamente desfeitas por um temporal. Acrescenta ainda que “em Portugal, como na maioria das nações, a utilidade pública é a razão que se alega para todas as obras; infelizmente trata-se só de um pretexto; o primeiro objetivo reside na glorificação pessoal, se não nos emolumentos que os funcionários auferem. Nestas condições iniciam-se obras de vulto; os que as projetaram deixam os seus cargos antes que elas terminem – e ei-las abandonadas, para darem lugar a outras, do mesmo modo superiores aos recursos do país”. As obras haviam sido planeadas pelo Maj. Guerra, acrescentando a autora que, “numa das efémeras revoluções que então desvairaram Portugal, colocou-se ele à frente de um movimento para destituir o governador e estabelecer uma junta, de que seria, é claro, presidente”. Reconduzido o governador, o Maj. Guerra fora “enviado para o continente e posto a meia-ração. Noutro país teria sido fuzilado!”. Com a sua saída, tinham paralisado “e ninguém se incomodou em garantir o que estava feito, pois as honras reverteriam para ele” (FRANÇA, 1970, 51-52). Desconhecia a atenta inglesa que o Maj. Guerra, colocado no polígono de Tancos, conseguiria ainda candidatar-se a deputado por Vila Nova da Barquinha e ser eleito, acabando os seus dias como general. O desenvolvimento do turismo, especialmente o terapêutico, começou a condicionar, a partir dos inícios e meados do séc. XIX, de uma forma cada vez mais determinante, a situação geral da ilha da Madeira, quer económica quer social. Esse caminho encontrava-se já perfeitamente definido na época da governação do Cons. José Silvestre Ribeiro, que a todo o momento evocava para as suas determinações “a presença de inúmeros estrangeiros que nos visitam” (Anais municipais), etc. Na época da sua governação, especialmente, encontram-se na Ilha três das mais altas figuras da aristocracia europeia: a rainha viúva Adelaide de Inglaterra (1792-1849), de origem alemã, nascida Saxe-Meiningen, o príncipe Maximiliano de Beauharnais, duque de Leuchtenberg (1817-1852), que seria pintado na Madeira por Karl Briullov (1799-1852) (Briullov, Karl), e a sua irmã, a imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Bragança (1812-1873), tendo todas essas visitas sido cuidadosamente preparadas e, também, aproveitadas para melhoramentos vários na Madeira. Quando da preparação da visita da imperatriz viúva D. Amélia e da sua filha, a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), em agosto de 1851, por exemplo, um ano antes da chegada dessas senhoras, determinou de imediato o governador ao Eng. Tibério Blanc “o maior desembaraço na construção do cais da Pontinha”, ou seja, na remodelação do mesmo, “para desembarque de Sua Majestade Imperial, a Senhora Duquesa de Bragança e filha”, recomendando que “a obra seja executada de forma a ficar para sempre”. Aproveitou ainda para determinar ao mesmo engenheiro que mandasse “os moradores da zona caiarem as casas e limparem os entulhos”, assim como determinou que fossem feitos alguns “trabalhos na estrada nova do Ribeiro Seco, de modo a ficar perfeita e que S. M. I., possa ir até à Praia Formosa”, determinações que de imediato foram publicadas nos jornais da época (A Época, 31 ago. 1851). Os portos e os cais de desembarque eram assim uma constante preocupação das autoridades locais. Na fase final da sua estadia na Madeira, ainda o encarregou José Silvestre Ribeiro, mais uma vez, da revisão de todos os cais da ilha da Madeira. O Eng. Tibério Blanc elaborou assim uma extensa lista dos cais que necessitavam de obras de melhoramento e reformulação, como eram os casos do cais do Pesqueiro, na Ponta do Pargo; Paul do Mar; Ponta da Galé; Ponta do Sol; Câmara de Lobos; Ponta da Cruz; Gorgulho; Ponta da Oliveira; Ponta do Guindaste e Ponta Delgada, assim como um novo ancoradouro na baía de Machico. As décs. de 80 e 90 do séc. XIX apresentaram o progressivo aumento do turismo, já não especificamente terapêutico, mas essencialmente de lazer, que já começava a representar algum peso na economia nacional, pelo que passou a despertar um certo interesse nas secretarias do Governo de Lisboa. A repartição das obras públicas distritais conheceu mesmo algum incremento, por ela passando os Caps. Júlio Augusto de Leiria (c. 1838-1878) e Henrique de Lima e Cunha (1843-1915), tendo cabido a este último os primeiros trabalhos conducentes à execução do novo cais da entrada da cidade. Com o aumento da circulação de passageiros no porto do Funchal, por portaria de 17 de setembro de 1879, voltava a estudar-se, finalmente, o que fazer do amontoado de ruínas em que se transformara o cais da entrada da cidade. Foi então encarregado do estudo o Cap. de artilharia Henrique de Lima e Cunha, voltando a propor-se a execução de um cais idêntico e no mesmo local, com toda uma outra solidez, claro, à frente da Entrada da Cidade, proposta aprovada em Lisboa, em 17 de julho de 1881, mas que só avançaria em 1886, quando já se encontrava aprovado a prolongamento do molhe da Pontinha através da união dos dois ilhéus. O projeto teve ainda alterações, pelo Eng. José Bernardo Lopes de Andrade, em 1887, e veio a ser adjudicado pelos Engs. franceses Fréderic Combemale, Jules Michelon e Arthur Mury, que já em 1885 haviam conseguido a execução das obras do molhe da Pontinha (Molhe da Pontinha). As obras do cais regional iniciaram-se a 18 de janeiro de 1889, envolvendo um montante de 87.000$000 réis e – vindo a ser depois reconhecido a estes empreiteiros, na ocasião do ajuste de contas, vários trabalhos executados fora do projeto inicial ajustado, ainda receberam mais 92.005$485 réis – demonstrando a complexidade do projeto. A obra ficou concluída a 27 de abril de 1892, sendo recebida provisoriamente nessa data, mas a receção definitiva só teve lugar a 27 de abril de 1895. Por parecer da Junta Consultiva das Obras Públicas, de 30 de maio do mesmo ano, foram os empreiteiros julgados quites para com o Estado de todas as obrigações que haviam contraído, o que consta da portaria de 10 de julho de 1895. Ao longo destes anos, decorreram assim igualmente as obras do molhe do porto do Funchal, cuja iniciativa se ficou a dever ao governador civil, António de Gouveia Osório (1825-c. 1905), visconde de Vila Mendo (Vila Mendo, Visconde de), que, no seu ofício de 15 de outubro de 1881, voltara a chamar a atenção para as vantagens que a baía do Funchal ganharia com a construção de um cais e porto de abrigo, ação saudada pelos comerciantes do Funchal. O molhe proposto, no entanto, era insatisfatório, sendo “apenas um ponto de partida para a futura construção de uma doca regular” e que devia completar-se pelo seu prolongamento em direção a leste, como refere a direção da Associação Comercial do Funchal (Ibid., 25 abr. 1884, 16 jun. e 19 out. 1885), chegando, inclusivamente, a colapsar com o grande temporal ocorrido no último dia de fevereiro e nos primeiros dias de março de 1892, que arruinou de forma drástica uma grande parte da obra já feita e a destrui quase por completo. As obras seriam recomeçadas em 1893, estando prontas em 1895, porém, as condições de acostagem dos grandes navios sempre foram deficientes nesta fase do molhe, acabando os paquetes por ficar ao largo e os passageiros a ser transferidos por lancha para o cais da entrada da cidade. Assim que, até à ampliação do molhe de acostagem, nos meados do séc. XX, para leste da fortaleza do Ilhéu, o movimento de passageiros do porto do Funchal foi feito pelo cais frente à entrada da cidade, ou cais regional. Com o aumento do movimento de passageiros, impôs-se o aumento deste cais, tendo a Junta Autónoma das Obras do Porto aberto concurso para essa realização, que terminou a 30 de outubro de 1930, sendo a construção adjudicada à casa Nederlandsche Maatschappij Voor Havenwerken pela importância de 4763.000$00 escudos. O acrescentamento do cais seria feito pela colocação de cinco grandes módulos de 3337 m3, tendo o primeiro sido colocado a 25 de junho de 1932 e o quinto e último em janeiro de 1933. A inauguração oficial ocorreu a 28 de maio desse ano, data especialmente comemorada pelo Governo da Ditadura. A importância deste cais é patente na imensa documentação fotográfica existente, que, graças aos novos meios de comunicação, não deixa de aumentar. O aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e, muito especialmente, o advento e a democratização dos transportes aéreos roubaram protagonismo e interesse ao cais em frente à entrada da cidade, como aliás também à mesma. No entanto, todo este espaço se mantém como importante zona de lazer da cidade até aos dias de hoje, tanto para visitantes como residentes.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património História Económica e Social

budismo

O Buda histórico, Siddhartha Gautama, era conhecido como Shakyamuni (de “Sakya”, país dos sakyas, e “muni”, sábio) e terá nascido no séc. VI a.C., num reino situado entre a Índia e o Nepal. A palavra “buda” deriva dos termos sânscritos “boud”, que significa totalmente desperto do sono da ignorância, e “dha”, eclosão perfeita da potencialidade fundamental, ou “bodhisattva”, ser iluminado (de “bodhi”, iluminado, e “sattva”, ser); refere-se a um estado de consciência plena ou presença amorosa para com toda a existência, beneficiando todos os seres sencientes. Este estado, que nos começos do séc. XXI recebeu a denominação de estado de mindfullness ou atenção plena, foi neste período muito preconizado como técnica de meditação com efeitos terapêuticos. No entanto, no budismo, não se trata de um estado momentâneo, mas sim de um estado permanente do ser com um objetivo espiritual. O budismo surgiu dentro do hinduísmo ou bramanismo (religião em que o conhecimento sagrado dos sacerdotes brâmanes passava de pai para filho) e tornou-se uma religião que, desde então, é um caminho para a superação do sofrimento e a autorrealização ou desenvolvimento da perfeita potencialidade humana. Não contempla a existência de um deus criador como as outras religiões, mas de um grande mestre, Buda; por isso, não é teísta. Trata-se do caminho da libertação, através do conhecimento do dharma (princípio de respeito pelas leis sagradas da natureza, ação correta no mundo, sabedoria) ou autorrealização. É aqui que encontramos o principal ponto de contacto com o Yoga e o Hinduísmo. Os ensinamentos de Buda são chamados Dhammapada, o caminho da retidão. Por isso, a essência do conhecimento alcançado e transmitido por Buda resume-se nas seguintes palavras: "Vós sois o vosso próprio mestre, tudo assenta sobre os vossos ombros, tudo depende de vós”. Deste modo, o nobre caminho da verdade, para a superação do sofrimento humano, é composto por oito preceitos: visão correta, intenção correta, fala correta, ação correta, viver corretamente, esforço correto, atenção correta e concentração correta ou plena atenção. A expansão dos ensinamentos de Buda na Ásia ocorreu a partir da Índia para o Nepal, Tibete (donde provém o Dalai Lama reinante em 2016: “Dalai”, oceano, e “Lama”, mestre – Oceano de Sabedoria), e outros países asiáticos, adquirindo métodos e estilos diferentes em cada cultura, o que originou diferentes tradições religiosas, sem comprometer, todavia, os seus valores essenciais. Assim, da história do budismo no Ocidente do séc. XX fazem parte várias tradições budistas, como o budismo zen, mas sobretudo o budismo tibetano, cujos primeiros Rinpoche (palavra do tibetano que significa precioso, título que se junta ao nome de um grande mestre) foram: Kalu Rinpoche (que estabeleceu vários centros do dharma na Europa) e, posteriormente, Dudjom Rinpoche, que foi para França juntamente com a família de Kangyur Rinpoche (entretanto falecido), nomeadamente a viúva, Amalá, que faleceu em Portugal (para onde tinha ido ensinar o budismo), em 1973, e o filho mais velho, Tulku Pema Rinpoche, a quem se deve a grande divulgação do budismo tibetano em Portugal. A União Budista Portuguesa (UBP) foi fundada para reunir todas as tradições budistas autênticas presentes em Portugal, apoiar as suas atividades, bem como exercer e promover a prática dos seus ensinamentos. A fundação da UBP, a 24 de junho de 1997, resultou da união de vários grupos do budismo zen e do budismo tibetano que faziam yoga e meditação em Portugal. A UBP organizou a primeira conferência budista na Madeira a 22 de novembro de 1998, passando a ir com frequência à região oradores e mestres para darem ensinamentos budistas. A delegação da UBP da Madeira foi criada a 27 de abril de 1999, tendo como sede a sala G do n.º 26 da R. das Mercês. No ano seguinte, Tulku Pema Rinpoche, na sua visita a Portugal, visitou pela primeira vez a Madeira, tendo-se deslocado novamente à Ilha em 2009 e em 2012, a convite da Delegação da UBP da Madeira, tal como muitos outros mestres budistas. A 19 de novembro de 2010, chegou à Madeira a Exposição de Relíquias do Buda e de Outros Grandes Mestres Budistas. A delegação da Madeira da UBP tem promovido, entre outras atividades, palestras, ensinamentos e retiros com vários mestres budistas. Na Madeira existe uma delegação do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA), de inspiração budista, desde outubro de 2007 (um mês depois de esta associação ter começado a sua atividade na cidade de Lisboa, a 22 de setembro de 2007, no último dia de ensinamentos do Dalai Lama em Portugal, em que Tulku Pema Rinopoche distribuiu comida e roupas aos sem-abrigo), como forma de contribuir para atenuar o sofrimento dos mais pobres e para o bem-estar de todos os seres. Na Madeira, em finais de 2015, a associação tinha já 250 voluntários, no Funchal, Calheta, Ponta do Sol e Santa Cruz. Nas diferentes delegações da CASA, a chamada “Casa Amiga” – espalhada por muitos outros países da Europa e do mundo – também ia semanalmente à residência das pessoas desfavorecidas, para levar um cabaz de alimentos. A associação ecologista Mother Earth, outro projeto de Tulku Pema Rinpoche para proteger o planeta ou “mãe” Terra, está na Madeira desde 2014, tendo sido criada em Portugal a organização internacional Protector of Life, a 30 de maio de 2012, com o propósito de libertação de um milhão de vidas de animais por ano. Outra linha de orientação do budismo que existiu na Madeira foi a Nova Tradição Kadampa, do inglês New Kadampa Tradition (NKT), introduzida na Ilha em 2002. Esta linha do budismo surgiu em Inglaterra nos anos 80 do séc. xx e tem o seu principal centro no Noroeste de Inglaterra, onde se encontra o Kadampa World Peace Temple. Foi em maio de 1991 que Geshe Kelsang Gyatso deu o nome de NKT a esta orientação budista que segue a doutrina dos seus livros. Na Madeira, a Nova Tradição Kadampa teve um centro de meditação denominado Centro Avalokiteshvara (Buda da Compaixão), que oferecia aulas de meditação e organizou várias atividades de âmbito espiritual, como retiros espirituais budistas e ensinamentos de mestres budistas do NKT. Terminou as suas atividades no verão de 2008. No começo do séc. XXI, havia 400 milhões de budistas espalhados pelo mundo, nas suas diversas tradições, sendo o budismo a quarta grande religião mundial.     Naidea Nunes (atualizado a 14.12.2016)

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