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bancos e casas bancárias

No séc. XVI, convergiram para a Madeira as atenções das sociedades comerciais e bancárias, que trouxeram consigo as novas práticas bancárias europeias, fazendo do Funchal uma praça financeira importante. A partir do séc. XIX, a comunidade britânica radicada na Madeira conferiu uma outra dinâmica àquelas operações. Data de 1824, a primeira proposta de criação de um banco na Madeira. Palavras-chave: bancos; casa bancária; falência; Banco Figueira; Banco Sardinha.   O facto de a Madeira, por força da importância do açúcar, ter assumido uma grande preponderância no comércio mediterrâneo-europeu, a partir do último quartel do séc. XV, e de ter atraído as atenções das sociedades comerciais conduziu a que as práticas bancárias chegassem cedo à Ilha. As dificuldades do sistema monetário, uma situação comum na Madeira, não implicaram apenas o recurso à troca produto a produto, mas, de igual modo, à procura de outras formas de pagamento substitutivas da moeda, então em voga na Europa: a carta ou letra de câmbio e o trespasse de dívidas em dinheiro ou em produtos. O Funchal ou Las Palmas surgiram, no séc. XVI, como importantes praças bancárias, situando-se ao nível das de Medina del Campo e de Valência. Os genoveses detinham aí a maior parte do movimento de cédulas. A letra de câmbio teve uma importância igual nas transações comerciais com o exterior. Este meio de pagamento ativou o trato do açúcar, sendo usual nas trocas com o reino, nomeadamente com Lisboa. A existência de uma importante comunidade de italianos e de flamengos, ligada ao comércio do açúcar com as principais praças europeias, contribuiu para a generalização desta forma de pagamento. Os florentinos, experientes nas transações financeiras, surgiram também com grande evidência, sendo particularmente importantes as ações de Feducho Lamoroto e de Francisco Lape. Neste contexto, verificou-se a presença de destacadas sociedades comerciais europeias, que substabeleciam as tarefas a desempenhar em familiares ou concidadãos com o estatuto de societários, de agentes ou de procuradores. Os Welsers, e.g., tinham um feitor em Lisboa (Lucas Rem) e vários agentes substabelecidos no Funchal e em La Palma. A forma mais divulgada de associação e de alargamento da rede de negócios foi a companhia ou sociedade comercial, nas suas diversas modalidades. Estas definiam-se, de um modo geral, pelo seu carácter familiar, pela eventualidade da sua ação e por uma composição variada de intervenientes, que investiam o seu capital ou o seu trabalho. Tratava-se, geralmente, de empresas familiares, que se serviam dos laços de parentesco para assegurar a permanência da sua ação, a solidariedade e a comunhão de interesses. Quando tal se tomava impossível, recorria-se aos compatrícios avizinhados nas principais praças. Esta última forma surgiu, com frequência, na Madeira. O relacionamento dos intervenientes nestas sociedades fazia-se de acordo com o investimento na empresa: capital e trabalho. Quando um dos societários apenas intervinha com o seu trabalho, poderia ser definido como agente ou feitor. Quando esses laços eram de menor dimensão, surgia o procurador, que, mediante um documento notarial, atuava sobre a fazenda do seu parceiro no mercado local, cobrando, por isso, uma determinada percentagem. Ambas as situações apareceram com grande evidência na praça funchalense, enquanto nas Canárias se afirmou, com muita acuidade, a segunda. A rede de negócios funchalense, em tomo do trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que aí apartou depois da reconfortante e vantajosa escala em Lisboa; ele dominou as principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, Flandres ou Génova; o seu domínio atingiu não só as sociedades criadas no exterior com intervenção na Ilha, mas também o grupo de agentes ou feitores e procuradores substabelecidos no Funchal. A escolha destes é criteriosa; primeiro os familiares, depois os compatrícios enraizados na sociedade e, só depois, os madeirenses ou nacionais. Entre as principais casas intervenientes no trato açucareiro madeirense sob esta forma, houve Baptista Morelli, B. Marchioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala, e Pero de Mimença. Na déc. de 90 do séc. XV, o açúcar madeirense sofreu uma quebra nos preços, não por falta de procura, mas por excesso de oferta da praça funchalense. Os madeirenses reclamaram em vários sentidos e clamaram por medidas da Coroa. A 12 de outubro de 1496, D. Manuel respondeu “vimos uma carta com certos capítulos e apontamentos que nos enviastes em que nos declaras os danos e perdas que tendes recebidas por razão dos contratos e demprestidos e vendas dante mão que se em essa Ilha fazem nos quais entram muitas onzenas donde se seguem grandes demandas de maneira que essa Ilha está em caminho para se perder pedindo-nos por mercê que defendêssemos que tais contratos se não fizessem e que não houvesse um estrangeiro” (MELO, 1973, 350). Foram dadas várias orientações no sentido de atalhar as situações e de procurar estabelecer a regularidade das operações comerciais, dos empréstimos e das vendas, sem dano para os intervenientes. A moeda e os usuais meios de pagamento são um fator importante e ativador do movimento de troca. Aliás, o progresso da atividade comercial depende, em última instância, da situação monetária e das condições de crédito. No caso concreto da Madeira, onde se afirmaria uma economia colonial, o instrumento de troca teria uma ação primordial na estrutura económica insular. A moeda e os seus substitutos foram, ainda, necessários para a compra de manufaturas de importação e aquisição dos bens essenciais de que a sociedade insular carecia, pois os produtos dominantes não perfaziam nem contrabalançavam essa entrada. A situação monetária das ilhas não se apresentava diferente, pois em todas era dominante a falta do metal amoedável e da sua circulação. Esta foi, assim, a característica dominante da sociedade insular, que condicionou, de modo vincado, as operações financeiras e contribuiu para o entorpecimento das relações de troca. Esta questão tornou necessária a criação de novas formas de pagamento e condicionou o aparecimento de novos instrumentos de troca. Assim, ter-se-ia generalizado, nestas ilhas, o pagamento em géneros, a troca produto a produto e, em circuitos mais amplos, o crédito, a letra de câmbio e o trespasse de dívidas. Embora não haja factos que corroborem e documentos que atestem a importância da praça financeira madeirense, é necessário considerar o volume das operações comerciais em jogo nesta altura e a circunstância de, na Madeira, atuarem alguns dos mercadores e algumas das sociedades europeias mais importantes, que fizeram com que as suas práticas bancárias atingissem a Ilha. Mais tarde, a partir de meados da centúria seiscentista, com a formação da feitoria britânica, a atividade bancária assumiu uma nova dimensão, com o predomínio da letra de crédito, como se constata na correspondência comercial de Diogo Fernandes Branco ou de William Bolton. Nesta época, a presença da comunidade britânica conferiu outra perspetiva às operações comerciais e bancárias. A Madeira beneficiaria, deste modo, pelo facto de os britânicos terem criado na Ilha uma importante praça bancária, que, muitas vezes, se entrelaçava com as demais operações do império, de forma especial do Brasil. Apenas no séc. XIX surgiram notícias dos primeiros bancos, tal como hoje se entende. Até então, não se divisava semelhante situação e as operações bancárias eram oferecidas, no caso dos empréstimos, pelas confrarias, pelas misericórdias e por alguns particulares, mas sempre numa postura de medo, tendo em conta a posição declarada da Igreja, que fazia guerra à usura e às onzenas. Assinale-se que, nas constituições sinodais do Funchal, de 1578, 1597, 1615 e 1695, não há qualquer condenação a estas. Mas, já em 1725, o bispo afirmava que “achei [...] muitas usuras e onzenas que são transcendentes por toda a Ilha” (TRINDADE, 2012, 17). Esta atividade foi, assim, denunciada nas visitações de S. Jorge, em 1727, como nas de Ponta Delgada, em 1733. A sua denúncia foi insistente por parte da Igreja. Pela insistência dos prelados nas visitações ao espaço rural contra esta prática, pode-se afirmar que esta foi generalizada em todo o arquipélago, apontando-se assiduamente como alvos desta prática os senhorios e os ingleses. A situação do Porto Santo levaria a coroa a intervir, em 1770, apesar de não ter como controlar a posição e postura inglesa, que assumiu um protagonismo desusado nos sécs. XVIII e XIX, de tal forma que, em 1873, Álvaro Rodrigues de Azevedo referia a “leonina usura”. E assim era, pois, em 1791, o ajudante Manuel Figueira de Ornelas cobrava juros de 20 %. Desta forma, o Alf. Nicolau da Ponte foi condenado “visto ser pouco liso nos seus contratos, e querer enriquecer-se à custa e chupando o sangue dos pobres” (TRINDADE, 1999, 154). A usura, tão generalizada em toda a Ilha, levou a Igreja a assumir uma posição protecionista até ao séc. XIX, através das confrarias, das misericórdias, dos colégios (o caso dos Jesuítas do Funchal), e dos conventos, como o de S.ta Clara, intervindo com uma política de empréstimos, a juros adequados. As misericórdias faziam empréstimos a todos os que delas se socorressem, menos aqueles que fossem irmãos, embora tenham existido casos que demonstram o não cumprimento desta orientação do compromisso. A Misericórdia recebia dinheiro, ao qual pagava 5 % de juros ao ano e, com este, fazia empréstimo no valor de 6,4 %. O referido dinheiro era entregue com condicionantes quanto ao empréstimo, que raramente eram tidas em conta. Assim, Joseph Ferreira Pazes entregou o seu dinheiro, mediante condições a juro: “doa aos ditos pobres deste Hospital a quantia de duzentos e sessenta e cinco mil réis, os quais logo entregou em moedas de prata corrente nesta Ilha que eles administradores contaram e lhe deram quitação; cuja doação faz com tal condição e declaração que serão obrigados os ditos pobres por seus administradores a porem logo a sobredita quantia a juro, em mão de pessoas da segunda condição que bem pagam os juros, e para isso sejam pessoas ricas e abonadas, por nenhum modo se darão os ditos duzentos e sessenta e cinco mil réis a juro a outras qualquer pessoas e também se não dará a clérigo algum; e que dos juros dos ditos duzentos e sessenta e cinco mil réis serão obrigados os ditos pobres por seus administradores pagarem a ele doador, durante a sua vida, o juro de cinco por cento da sobredita quantia, pagos aos quartéis juntamente com os oito mil cruzados, que ele tem doado na primeira doação, abatendo-se e tirando-se dez tostões” (AMORIM, 2011, 240). A entrada do Convento de S.ta Clara deve-se ao facto de a instituição ter sido obrigada, a partir de 1660, a assegurar a sua manutenção, procurando, assim, todos os meios ao seu alcance para o conseguir. Deste modo, houve, a partir de 1673, empréstimos a juros de 5 % e mesmo de 6,25 %. De 1874, encontra-se uma referência à usura de 12 a 24 %. Na segurança das dívidas, os devedores hipotecavam propriedades rústicas e urbanas, objetos de ouro e prata, ou, então, apresentavam fiador. Os ingleses foram os principais agiotas da usura na Ilha, de forma que ficou testemunho disso no livro A Arte de Furtar, publicado em 1625, e que tem sido atribuído a Francisco Manuel de Melo. Aí se relata o caso de um madeirense que, pretendendo emigrar para o Brasil, pedira emprestado 50$00 réis a um comerciante inglês, que, em vez do dinheiro, lhe entregou um lote de tecidos, que, vendidos, dariam de lucro o dinheiro que queria. Como não vendeu, apelou ao dito mercador que os consignara, que aceitou recebê-los aos preços que comprara em Londres. Conclusão: o madeirense acabou por gastar 200$00, mesmo sem sair da Ilha. No séc. XVIII, insistiu-se na usura dos adelos de Gaula e Santa Cruz, que percorriam toda a Ilha, inclusive o Porto Santo, e acabavam por estabelecer muitas dívidas com os agricultores. Na mesma época, insistiu-se também, acima de tudo, no hábito comum da troca direta e dos adiantamentos da venda dos mercadores britânicos na compra do vinho na Ilha. Por outro lado, a abertura que a comunidade britânica fazia ao mercado financeiro e aos bancos londrinos fazia com que esse fosse o meio mais usual, afirmando o deputado Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira (conhecido como o Giraldes) que eram os “richaços” (ricaços) que guardavam o seu dinheiro nos bancos em Londres. Certamente, por conta disso, as instituições que serviam de bancos atuavam junto das populações, como forma de combater a usura de alguns usurários locais. Estava neste grupo João de Carvalhal Esmeraldo. A primeira proposta, no sentido de criação de um banco local, data de 1824. Em ofício para Joaquim José Monteiro Torres, ministro da Marinha, José Joaquim de Almeida e Araújo Corrêa de Lacerda apresentaram a necessidade da criação de um banco local de “desconto e depósito”, como solução para a crise da agricultura. Também uma representação dos Proprietários e Negociantes da Madeira, de 9 de julho de 1824, insistiu na ideia, afirmando que pretendiam “um Banco, não usurário, mas patriótico e benéfico ocorrerá à maior parte dos males que sofremos. Ele ministrará fundos ao negociante cauteloso, ao especulador prudente, ao ativo e inteligente proprietário para o melhor aumento de suas terras, para promover prados artificiais e o plantio de arvoredos para a construção d’ edifícios e navios; para se afrontar aos estabelecimentos custosos e indispensáveis à criação e conservação dos gados; à abertura d’ estradas; e construção de pontes e canais ou levadas; autorizando ou regulando V. Ex.ª o que deverão pagar os que para eles ou d’ eles se servirem, e finalmente aos empreendedores espertos e hábeis para estabelecerem fábricas e manufaturas. Um Banco promovendo a indústria e assistindo à atividade individual em todas as classes, sexos e idade aumentará de necessidade o valor das propriedades rurais e urbanas e cortará pela raiz a insaciável usura, os excessivos criminosos lucros, arrancados ao cidadão oprimido, que à custa de pesados sacrifícios quer remir a sua opinião ou sacrifício. Um Banco, finalmente, que distribuindo com igual prudência e segurança capitais moderados pelos cidadãos industriosos, evitará o cúmulo das riquezas em poucos capitalistas e felicitará cento de famílias procurando-lhes uma decente mediocridade, que só faz a base da independência, da moral e da harmonia das famílias e dos povos” (ALMEIDA, 1907, 208, nº. 9783). Em 1834, o jornal Imparcial apresentou uma nova proposta de projeto de regulamento para uma instituição bancária, seguindo-se outra, em A Ordem, (no n.º 145), de 1854. No entanto, só no último quartel se começou a desenhar a importância da instituição bancária na Madeira. E este período inicial, tal como, depois, na déc. de 30 do séc. XX, foi marcado pelas piores razões, e.g., pela falência de algumas instituições, o que causaria, na sociedade madeirense, uma suspeita sobre os bancos e as casas bancárias. As dificuldades sentidas por muitas famílias e empresas nessa fatídica déc. de 30 perduraram no tempo e foi perpetuada por algumas gerações. Em 1875, começou a funcionar o Banco de Portugal no Funchal, sob a gerência do negociante João José Rodrigues Leitão. A agência do Banco de Portugal, no Funchal, enfrentou dificuldades, com a falência do seu responsável, o comerciante João José Rodrigues Leitão, em 1878, recebendo os credores apenas 50 % dos créditos. Entretanto, em 1873, a comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal mantinha empenho na criação de um banco de crédito agrícola, de forma a oficializar uma situação que já existia nesta instituição através da Caixa dos Órfãos, que emprestava dinheiro ao juro de 5 %. Entretanto, surgiu o Banco Comercial do Funchal, no dia 1 de junho de 1874, com estatutos de 25 de abril deste ano a que estavam associados António Caetano Aragão, Carlos de Bianchi, João de Salles Caldeira, José Paulo dos Santos, Manuel Figueira de Chaves, Manuel Inísio da Costa Lira, Severiano Alberto de Freitas Ferraz, e William Hinton. Porém, não foi fácil a atividade desta instituição, acabando por falir em 1887. Em 1879, João da Câmara Leme defendeu a ideia de um banco de crédito agrícola como solução para os problemas que envolviam a agricultura, atuando com mecanismo financeiro da sua reabilitação. Em 1922, Fernando Augusto da Silva retratava assim o panorama bancário na região: “As casas bancárias estabelecidas agora no Funchal são as de Blandy Brothers & C.ª, Henrique Figueira da Silva, Reid Castro & C.ª, Rocha Machado & C.ª, e Sardinha & C.ª. Estas casas que realizam as operações bancarias exigidas pelo comércio do Funchal, e ainda outras, estão todas em estado bastante próspero, devido à sua excelente administração e à confiança de que gozam no mercado, como para os elevados juros, que eram de 12 a 15 %, podendo mesmo chegar aos 24 % ao ano” (SILVA e MENESES, 1978, I, 116-117). Já para a déc. de 30, houve notícias de diversas instituições bancárias locais e nacionais com intervenção no crédito. Assim, são conhecidas 4 agências de bancos nacionais – Bancos de Portugal (1878) e Nacional Ultramarino (1919), Companhia de Credito Predial Português, Banco Espírito Santo – e 11 casas bancárias com sede no Funchal – Reid, Castro & Co., Rocha Machado & Co., Teixeira Machado & Co., Rodrigues Simão & Co., Sardinha & Co., Henrique Figueira da Silva, Blandy & Co., Banco Madeira (1920), A. Adida & Co., Rodrigues & Irmão Co., Teixeira & Machado C.ª. De entre estas, destacava-se a casa bancária com o nome do seu proprietário, Henrique Figueira Sardinha (1868-1945), mais conhecida por Banco Sardinha, que se havia popularizado, tendo uma importante carteira de depósitos e de empréstimos, no valor de um milhão de libras esterlinas, a um grupo significativo de empresas madeirenses. A Casa Bancária de Henrique Figueira da Silva, ou Banco Figueira, surgiu em 1898, com instalações na R. dos Murças. Esta casa dominava os financiamentos ao comércio e à indústria da Ilha, sendo de destacar a sua ação nos sectores das moagens e dos engenhos de açúcar e de aguardente com a Fábrica de S. Filipe. Normalmente, aponta-se a situação ocorrida em 20 de novembro de 1930 como um efeito retardatário da quinta-feira negra de Nova Iorque, de 24 de outubro de 1929. Mas, ao nível da sociedade madeirense, a maioria dos testemunhos apontam para um turbilhão de boatos lançados anonimamente na cidade que apontavam a falta de liquidez desta casa e que levaram a uma corrida desenfreada dos populares ao levantamento das suas economias. Os boatos eram anónimos, mas facilmente identificáveis, sabendo-se do interesse de algumas famílias estrangeiras, com interesses na atividade bancária e em sectores industriais financiados por esta casa. Por outro lado, se se tiver em conta que os dois principais beneficiários da venda em hasta pública do património do banco foram as famílias Blandy e Hinton, não se estará longe de fazer sair do anonimato os principais orquestradores da situação que levou à falência do Banco Figueira e do Banco Sardinha e que teve um efeito negativo na atividade bancária da Ilha, nos anos imediatos, tendo a maioria da população perdido as suas economias por não aceitar os bancos públicos e por preferir a esteira das camas ou um outro sítio que considerava mais seguro. Para esta situação, também se apontam culpas ao Governo (sendo então ministro das Finanças Oliveira Salazar) por não ter tomado qualquer medida para evitar esta situação de falência, pois, em 1929, havia assumido uma atitude diferente com a casa bancária de Henrique Tota. Mas, se tivermos em conta as facilidades que algumas destas famílias inglesas, beneficiadas com as falências, tinham junto do Governo da República, não será difícil de adivinhar o porquê desta atitude. A falência destas duas casas bancárias, Sardinha e Figueira, abalou a economia madeirense da déc. de 30, uma vez que ambas representavam 75 % dos depósitos e empréstimos da Ilha. Com a ida do património destas casas bancárias à praça pública, a família Hinton arrematou o seu rival, a Fábrica de S. Filipe, e a família Blandy, as moagens e muitos dos prédios do Funchal. Por outro lado, a casa bancária desta última família foi uma das mais favorecidas com a situação do sistema de depósitos e créditos bancários. A solução da crise bancária madeirense, mais apregoada na altura, era a da fusão. Esta ideia colhia a concordância dos responsáveis dos bancos da Madeira, Sardinha e Henriques e Irmão e C.ª, e foi aceite pelo Gov. Artur Almeida Cabaço, que, por sua vez, fez a proposta a Salazar, contando com a participação do Governo, no capital social do banco fundido, com o montante de 15.000 contos. O ministro das Finanças, porém, recusou liminarmente, propondo a constituição de um banco regional “que absorva os estabelecimentos existentes de feição local” (FREITAS, 2014, 68). Este autor falou num grupo de personalidades madeirenses que, porventura, teriam influenciado a posição de Salazar, mas sem as enumerar. Esta ideia da constituição de um banco regional vem de longa data, pelo menos do início do séc. XIX, quando o Governo recomendou ao Gov. e Cap.-Gen. da Madeira José Manuel da Câmara “a criação duma Caixa de Crédito na Madeira”, não existindo, nesta altura, qualquer banco formalmente constituído em Portugal. Só em 1920, surgiu o Banco da Madeira, que faliu com a depressão económica de 1929 e que foi reconstituído e fundido com a casa bancária Sardinha e C.ª e Rodrigues, Irmão e C.ª, em 1933. O Banco da Madeira, fundado em abril de 1920, só viu os seus estatutos aprovados no ano seguinte, tendo como sócios algumas sociedades comerciais como a Viúva de Romano Gomes e Filhos, Luís Gomes da Conceição e F. F. Ferraz e Companhia Ld.ª, e também algumas personalidades madeirenses de renome. Arrancou com o capital social de 2000 contos e criou uma filial em Lisboa, a 17 de fevereiro de 1923, tendo, em janeiro do ano seguinte, aumentado o capital social de 4000 para 6000 contos. A filial de Lisboa prosperou numa fase inicial mas, a certa altura, sofreu denúncias na Inspeção do Comércio Bancário, por má gestão e uso fraudulento de dinheiros, por parte dos gestores aí colocados (Manuel Jorge Pinto Correia e Carlos da Silva Barros) e negócios feitos sem conhecimento da Assembleia do Banco. No entanto, uma inspeção levada a cabo por peritos do Comércio Bancário não chegou a qualquer conclusão, tendo os visados se mantido nos cargos que ocupavam e alguns deles transitado para o novo Banco da Madeira depois da fusão. A crise económica de finais da déc. de 20, na Madeira, agravada com a suspensão de pagamentos das casas bancárias, Henrique F. da Silva e Sardinha e C.ª, e o encerramento da Reid, Castro e C.ª juntamente com a Revolução da Farinha, seguida da Revolta da Madeira, geraram preocupação em alguns políticos madeirenses que se movimentaram nos meios nacional e local, no sentido de encontrar uma solução para a crise bancária: e a solução apontada era a liquidação da casa Henrique F. da Silva e a fusão dos outros três bancos. No entanto, os depositantes da Casa Sardinha continuaram sem poder aceder aos seus depósitos, devido à continuada falta de liquidez do banco fundido, e só o Estado poderia ajudar, intervindo, porque a reconstituição dos bancos feita sem este apoio poderia gerar uma crise maior. Contudo, Salazar apenas incentivou a fusão dos três bancos, sem intervenção do Estado. Assim, a 12 de setembro de 1933, por dec.-lei n.º 23.026, foi instituído o novo Banco da Madeira, mercê da fusão dos três bancos referidos, com o capital social de 10.000.000$00 “e constituído pelo excedente do ativo de cada um dos bancos alvo de fusão e do que ainda for necessário para completá-lo, deduzido proporcionalmente de depósitos e débitos comuns do atual Banco da Madeira e do Banco Sardinha” (Id., Ibid., 107). O decreto autorizou o Banco da Madeira a emitir, logo após a sua constituição definitiva, até 15.000.000$00 de obrigações, preferenciais de 500$00 cada, de forma a prover as dificuldades que surgiriam com a falta ou a fraca liquidez do banco. Os valores apurados pela comissão de avaliação aos bancos fundidos foram os seguintes: como excedente do ativo do Banco da Madeira, 1.672.800$00; Casa Sardinha, 333.300$00; e Rodrigues e Irmão, 420.220$00. As ações da Casa Sardinha de 500$00 foram reavaliadas a 33$00, e as do Banco da Madeira de 100$00 foram revalidadas a 20$00. O conselho de administração do banco ficou constituído por um elemento indicado por cada banco falido: Leonel G. Luís (Banco da Madeira), António Bettencourt Sardinha (Banco Sardinha) e Juvenal Araújo (Rodrigues e Irmão e C.ª) e presidido pelo comissário do Governo, Eduardo Paquete. Nos primeiros anos da sua existência, este banco continuou com as mesmas dificuldades, tendo-se pensado também na sua liquidação. Para esta situação, contribuiu o facto da excessiva avaliação dos ativos dos bancos fundidos; só com os apoios concedidos pelo Estado o banco foi-se equilibrando até à sua total revitalização, que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial. Na déc. de 1960, o movimento bancário fusionista levou a que este se incorporasse no Banco Lisboa e Açores, rentabilizando o negócio. A casa bancária Blandy Brothers constituiu-se no dia 29 de novembro de 1920, com o capital social de 550.000 libras esterlinas, através de uma família inglesa radicada na Madeira, desde o início do séc. XIX. A firma Blandy tinha ligações económicas a quase todos os sectores comerciais da Ilha e ainda mantinha ligações com o exterior, em termos de exportação e importação, designadamente com o mercado inglês que lhe trouxe proventos económicos importantes para se abalançar no negócio bancário, trazendo-lhe maior sustentabilidade e marcando uma posição de realce no financiamento económico e no mercado cambial, no qual apostou grandemente. Os sócios eram John Ernest Blandy, Charles Maurice Blandy, Richard Rober Faber e Dudley Oliveira Davies. Só o primeiro e o último residiam na Madeira e a sociedade tinha, por objeto, o comércio em geral. A 29 de novembro de 1924, alteraram os seus estatutos, com o objetivo de reduzir o capital social em 50.000 libras e de especificar a distribuição do capital, ficando ao primeiro sócio 39 %, ao segundo, 28 %, ao terceiro 22 %, e ao quarto 11 % do capital. No dia 4 de junho de 1925, foi dissolvida a sociedade Blandy Brothers e C.ª, de nome coletivo, e transformada em sociedade limitada por quotas. A casa Blandy resistiu à crise de 1929, que levou à falência das outras casas bancárias na Madeira, a par da Rodrigues e Irmão, possivelmente devido às suas raízes e à forte ligação ao exterior, beneficiando da compra de cambiais que viriam a ser importantes para o investimento no comércio e na indústria madeirense. Para o seu êxito, contribuiu, ainda, a compra em hasta pública da moagem de cereais da Fábrica de S. Filipe, pertencente a Henrique Figueira da Silva, ampliando a sua influência no mercado da moagem local, arrematando muitos outros prédios provenientes de falências e comprando lotes de vinho Madeira. Diz-nos J. A. Freitas que este grupo “cresceu e fortificou-se no meio da turbulência da praça do Funchal, porque dispunha de liquidez e, assim, a foi aplicando nos negócios que, nas condições existentes, podia fazer, segundo opções por si definidas no sentido de consolidar os negócios do grupo” (Id., Ibid., 121). A casa Blandy ocupava a terceira posição, em termos de depósitos existentes, com 9344 contos, em 1931, e 8199, em 1932. O dec.-lei n.º 41.403, de 27 de novembro de 1957, que pretendia regular o sistema bancário português, obrigou os estabelecimentos especiais de crédito a praticar, em exclusivo, o exercício da atividade bancária. O grupo Blandy, reunido em assembleia-geral, a 26 de maio de 1958, decidiu constituir uma nova sociedade por quotas, transitando para a nova sociedade o ativo bancário, incluindo os bens imóveis. A nova empresa assumiu a designação de Blandy Brothers (Banqueiros) Ld.ª, com o capital de 10.000.000$00, dividido em quatro quotas, sendo 8.700.000$00 pertença de Blandy Brothers (Banqueiros) Ld.ª, 100.000$00 de Blandy Brothers e Companhia Limited de Londres, 100.000$00 de Peter Graham Blandy, e os restantes 100.000$00 de John Reeder Blandy. Em 1968, esta sociedade incorporou-se no Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa. A casa bancária Henrique Figueira da Silva foi coletada como cambista em 1902 e como banqueiro, em 1910, não se sabendo ao certo a data da sua fundação. Foi uma casa próspera até a deflação económica de 1929, tendo detido um grande prestígio e irradiado confiança nos seus depositantes. No final de 1930, tinha 71.678 contos de depósitos que correspondiam a 9.403 depositantes. Foi a maior casa bancária da Madeira nesta época. Até mesmo as caixas económicas faziam aqui os seus depósitos para usufruírem dos altos juros que esta casa praticava, assim como os emigrantes madeirenses. Esta casa suspendeu os pagamentos no dia 19 de novembro de 1930, sendo nomeado, dois dias depois, como comissário do Governo no banco, o madeirense Eduardo Paquete. Pouco tempo depois, transitava para a casa Sardinha e C.ª, sucedendo-lhe Óscar Baltasar Gonçalves, logo em janeiro de 1931, que exerceu as funções até 4 de maio de 1931. Os presidentes das comissões liquidatárias deste banco também tiveram a mesma sorte e foram sendo nomeados e substituídos com frequência. Em outubro de 1933, já eram cinco: Juvenal Araújo, Brás Alves, Martins Costa, Gonçalves da Silva, e o juiz Carlos Henriques da Silva e Sousa, o que provocou grande instabilidade nos cargos, dificultando a sua gestão. Diz-nos J. A. Freitas que “o desmantelamento de Henrique Figueira da Silva tornou-se um acontecimento sem retorno e de efeitos muito nefastos na economia da Madeira e dos seus depositantes, de longe a maior casa bancária” (Id., Ibid., 126). Este autor apresenta, como exemplo, o montante do valor dos seus depósitos que correspondiam, ao tempo da falência, ao dobro de todos os outros bancos a trabalhar na Madeira. O banco foi liquidado por via administrativa através do dec. n.º 20.316, de 16 de setembro de 1931, sem prerrogativas ou a possibilidade de poder reconstituir-se, mesmo após o relatório da comissão liquidatária de 31 de dezembro de 1931, onde se refere um ativo de 87.033.509$00, superior ao passivo de 77.861.344$00. A comissão liquidatária requereu a falência desta casa bancária a 19 de novembro de 1931, no tribunal judicial do Funchal. A falência foi decretada por uma votação de 2 votos contra 1. O banqueiro recorreu da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, em março de 1935, o qual revogou a sentença do tribunal do Funchal, com o argumento de que, para a declaração de falência, não bastava a suspensão de pagamentos: “a falência decorre da relação ativo/passivo do estabelecimento e, neste caso, o ativo é superior” (Id., Ibid., 128). A comissão liquidatária voltaria a recorrer para o Supremo Tribunal que confirmou a decisão da Relação, indicando que, quando esta casa bancária suspendeu os pagamentos, não se encontrava em situação de falência. No entanto, apesar destes reveses, a comissão liquidatária continuava a desfazer-se dos bens do banco em hasta pública e em vendas diretas. João Abel de Freitas diz que esta falência foi “um grande imbróglio de consequências nefastas para a economia da Madeira que serviu determinados interesses e com largos prejuízos para os depositantes” (Id., Ibid., 128). Este autor insinuou que esta falência fora incentivada por terceiros e por forças e interesses que apostaram na sua liquidação e que contou com jogos de influência junto de Salazar para que o fim fosse este. Havia ainda outra tese que defendia a falência, apontando “para uma certa maquilhagem da escrita como argumento para a falência” (Id., Ibid., 130). Opinou o autor referido que esta era, então, uma forma corrente em todas as casas bancárias e perguntou porque se deveria então penalizar apenas esta com a falência e recuperar as outras. Parece ter havido muitos interesses apostados no desmantelamento desta casa bancária, o que, ligado à má gestão do banco, facilitou a vida dos pretendentes, cometendo-se um gravíssimo erro com consequências nefastas para a economia da Madeira, pois não fazia sentido reorganizar a banca madeirense, deixando de fora o maior banco da época. Lembre-se ainda que, na Madeira, a situação bancária era muito frágil, com exceção para a casa Blandy, ficando no ar muitas suspeições. A casa bancária Reid, Castro e C.ª foi fundada por Henrique Vieira de Castro, oriundo do Porto e colocado, no Funchal, como delegado do Banco de Portugal, fixando residência na Madeira, a partir de 1893. Tendo enriquecido, fundou a casa bancária com esse nome entre outras empresas ligadas aos vários ramos económicos da Ilha. A casa bancária foi constituída como sociedade por quotas, no ano de 1905, sob o nome de Reid, Castro e Companhia Ld.ª, com o capital de 60.000$00 réis e com os sócios William James Reid, Alfred Eduard Reid, Henrique Vieira de Castro, Abraham Adida, visconde de Cacongo, Alfred L. Jones, e Eduardo A. Cunha. A 29 de maio de 1912, a empresa foi vendida a William James Reid, Alfred Eduard Reid, Henrique Vieira de Castro e Abraham Adida, e transformada em sociedade comercial em nome coletivo, de responsabilidade ilimitada. A 17 de junho do mesmo ano, o capital social foi aumentado para 100.000$00 réis, distribuídos entre eles da seguinte forma: William e Alfred Reid com 25 contos cada, Henrique Vieira de Castro com 40 contos, e Abraham Adida com 10 contos, tendo Henrique Vieira de Castro sido nomeado gerente, com o vencimento anual de 1.080.000$00 réis e 10 % nos lucros líquidos quando superiores a 8 % do capital social da sociedade. Era um vencimento simbólico. A partir daqui, surgiu a casa bancária propriamente dita, já que a sociedade passou a ter por objetivo as transações bancárias. Em junho de 1925, com a morte de Abraham Adida e, em 1927, com a de Henrique Vieira de Castro, o pacto social foi alterado para registo das quotas em nome dos herdeiros, em virtude do dec. n.º 10.634, de 20 de março de 1925, o que fez com que esta casa bancária solicitasse, a 10 de junho desse ano, a sua inscrição no registo das instituições de crédito. Este processo demorou, por não corresponder a todas as regras do referido diploma, ficando apenas concluído em 1930, com o depósito obrigatório na Caixa Geral de Depósitos e com a apresentação da guia do pagamento do registo no valor de 523$00. Depois da morte de Henrique Vieira de Castro, o banco perdeu algum fulgor, devido à falta de experiência empresarial dos herdeiros, acusando um atraso, a partir de janeiro de 1931, e originando muitas queixas junto da Inspeção do Comércio Bancário e do Comissário do Governo, na fase de liquidação. A partir de 7 de dezembro de 1931, foi comunicada à Inspeção do Comércio Bancário e ao ministro das Finanças a suspensão de pagamentos, aguardando-se a nomeação do comissário do Governo, o que aconteceu no dia 15 de dezembro desse ano, tendo recaído a escolha em Nuno de Vasconcelos Porto, a quem foi retirada a autorização para o exercício da indústria bancária, por portaria de 18 de maio de 1932, com a sua imediata liquidação. A comissão liquidatária, nomeada a 13 de junho desse ano, foi constituída por Juvenal Raimundo de Vasconcelos, que representava os sócios, e José Quirino de Castro, que representava os credores, tomando posse no dia 23 desse mês. Esta comissão não conseguiu cumprir o seu trabalho dentro do prazo previsto, em especial devido à situação de grave crise financeira da praça do Funchal, sendo prorrogado o seu prazo até ao dia 20 de janeiro de 1934. No entanto, o processo de liquidação desta sociedade só se encerrou a 12 de agosto de 1944, após a aprovação das contas de liquidação, sendo apresentado um relatório à Inspeção do Comércio Bancário e resultando daqui elevados prejuízos para os credores comuns, cerca de 324, que perderam tudo, no valor de 14.990.137$00. Sardinha e C.ª, com um crédito de 1.760.714$00, recuperou 1.045.900$00, e Luís da Rocha Machado, com um crédito de 650.072$00, recuperou 200.000$00. A realização da venda do património imobiliário (15 prédios rústicos e urbanos) pouco rendeu e a venda em hasta pública das águas foi pouco transparente, tendo garantido um valor muito abaixo de real. A casa bancária Rocha Machado teve em Luís da Rocha Machado, um açoriano, emigrante no Brasil e radicado na Madeira, como funcionário da casa Blandy, o seu proprietário. A partir de 1890, deixou a casa Blandy e dedicou-se a vários negócios. Não há muita informação disponível sobre esta casa bancária, sabendo-se que ela se antecipou aos acontecimentos económicos dos finais da déc. de 1920, na Madeira, fundindo-se, a 10 de outubro de 1928, com Cupertino de Miranda e Irmão, Ld.ª e com o Banco Económico Português, dando origem ao Banco do Comércio e do Ultramar, que também sofreu um processo de liquidação, realizado em setembro de 1932. No capital social deste banco, participaram algumas casas de crédito como a Bernardino Correia e C.ª, Marques Seixas e C.ª, Sá Leitão e C.ª, Matos Vaz e C.ª, Martins Lourenço Aparício, e José Simões Coelho. A casa bancária Rodrigues, Irmão e C.ª foi constituída no dia 19 de abril de 1922, no Funchal, e teve, como sócios fundadores, Henrique Augusto Rodrigues, Alfredo Guilherme Rodrigues, João Anacleto Rodrigues, Francisco Roberto Câmara, Juvenal de Araújo, e Francisco Leão de Faria. Era quase uma sociedade familiar, composta por pessoas que detinham outros interesses económicos na praça financeira do Funchal, entre eles o comercial, como era o caso do Bazar do Povo. Tinha um capital social de 750.000$00, repartido entre os irmãos Rodrigues, com uma quota igual a cada um de 200.000$00 e de 50.000$00 aos restantes três. Esta sociedade requereu à Inspeção do Comércio Bancário o seu registo como banqueiros, no dia 9 de junho de 1925. Em 1926, entrou um novo sócio, Alfredo Campanella, em substituição de Francisco Leão de Faria. O ativo desta casa bancária, a 31 de dezembro de 1932, ascendia a 6.662.635$00; os depósitos à ordem e a prazo, nesta data, totalizavam cerca de 2117 contos e os credores cerca de 2200 contos. O capital próprio era inferior a 800 contos. Juntamente com a casa bancária Blandy Brothers, ela constituiu uma das exceções à crise bancária ocorrida na Madeira, após a queda da Bolsa de Nova Iorque de 1929; foi cumprindo a legislação em vigor, nunca necessitando de intervenção estatal. Devido à influência política de alguns dos seus sócios, nomeadamente Juvenal de Araújo, conseguiu posicionar-se estrategicamente para integrar a fusão bancária, ocorrida com a falência dos outros bancos, integrando o novo Banco da Madeira, constituído com o apoio do Estado. Juvenal de Araújo ocuparia uma posição de destaque dentro do novo banco, sendo nomeado membro efetivo do conselho de administração. Com a constituição do novo Banco da Madeira, encerrou-se a atividade da casa bancária Rodrigues, Irmão e C.ª, sendo o único dos três incorporados que tinha cessado pagamentos. A casa bancária Sardinha e C.ª foi constituída no dia 29 de dezembro de 1920, no Funchal. Os seus sócios constituintes foram Manuel Bettencourt Sardinha e Leonardo Bettencourt Sardinha; este último fora emigrante em Demerara e detinha uma avultada fortuna que, depois, investiu na Madeira em vários negócios, entre eles o bancário. Esta casa bancária assumiu a forma jurídica de sociedade comercial em nome coletivo, com o objeto de realizar operações bancárias e outro tipo de negócios. A sociedade tinha um capital social de 400.000$00, entre esse capital 80.000$00 do ativo líquido da sociedade Sardinha e Companhia, entretanto dissolvida, e o restante subscrito pelos dois sócios. Com a morte de Manuel Bettencourt Sardinha, que era o gerente, a gestão foi assegurada por Leonardo Bettencourt Sardinha, que passou a ser o único sócio e gerente, pelo conteúdo de uma das cláusulas da escritura de constituição da sociedade que determinava que, aquando da morte de um dos sócios, o outro continuaria no negócio, pagando aos herdeiros do sócio falecido a parte correspondente, em prestações semestrais de igual valor, cada uma com um juro de 6 % ao ano, no prazo de 6 anos a contar do dia do óbito. A crise de 1929 e o número exagerado de casas bancárias fizeram com que o sector estagnasse; a instabilidade instalou-se nas casas bancárias e algumas abriram falência. A casa bancária Sardinha e C.ª suspendeu os pagamentos a 21 de novembro de 1931. A 3 de janeiro de 1932, Eduardo Paquete foi nomeado comissário do Governo junto deste banco. A casa bancária Sardinha e C.ª reconstituiu-se sob o nome de Banco Sardinha, por dec. de 30 de abril de 1931, com o apoio do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Depósitos, contando com uma grande tolerância por parte de Salazar na sua reconstituição. Esta passou a sociedade anónima, a 21 de maio de 1931, sob a designação de Banco Sardinha “sendo os primeiros outorgantes da escritura de mudança os sócios da casa Sardinha e Companhia e os segundos outorgantes, todas as pessoas, na generalidade credores, que subscreveram o aumento de capital em 3.000 contos” (Id., Ibid., 173). Neste aumento de capital, 7 pessoas subscreveram 50.000$00 e 23 outras subscreveram ações entre 45.000$00 e 10.000$00; no entanto, a desconfiança face à reconstituição das casas bancárias era muito grande e levou a uma corrida aos levantamentos e à exigência de reembolsos dos créditos por completo, havendo necessidade de recorrer a novas moratórias. Prorrogaram-se os prazos, mesmo após a sua transformação em banco, e a suspensão de pagamentos foi-se consolidando com indemnizações tardias, com muitos processos judiciários e com sucessivas prorrogações. Esta era a segunda maior casa bancária da Madeira da época, em número de depósitos. No seu processo de liquidação, ela foi alvo de alguns processos polémicos e judiciais com alguns dos devedores, entre eles, Tiago Matias de Aguiar, F. F. Ferraz e C.ª Ld.ª que mostraram discordância quanto à forma de liquidação dos seus créditos. Entretanto, com o cimentar da sustentabilidade económica e financeira do Estado Novo, filiais de outros bancos nacionais foram aparecendo na praça financeira do Funchal, como a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Espírito Santo, o Banco Pinto e Sotto Mayor, o Banco Fonsecas e Burnay, o Montepio Geral, o Banco Português do Atlântico, o Banco Português de Investimento, o Banco BIC, e a Caixa Económica do Funchal (este foi um banco de raiz madeirense, que passou por algumas dificuldades, após o 25 de Abril, tendo-se transformado no Banco Internacional do Funchal). Com a expansão económica e financeira proporcionada pelas novas condições económicas saídas da Revolução de 1974, proliferam novas filiais de bancos nacionais e estrangeiros. Tendo em consideração as publicações do Instituto Nacional de Estatística e da Direção Regional de Estatística da Madeira (DREM), é possível verificar o comportamento mais recente de um conjunto de variáveis relacionadas com a atividade da Banca. Desde o ano 1998, o número de estabelecimentos bancários demonstrou uma evolução como que a dois ritmos, sendo que foi verificado um período inicial favorável e, posteriormente, um outro no qual as variáveis apresentavam um certo ressentimento no sector, seguramente pela própria crise financeira que assolou o mundo e provocou efeitos colaterais na Região. Para o ano 1998, o número de estabelecimentos de bancos e de caixas económicas na RAM era de 133, representando cerca de 2,6 % do total de estabelecimentos a nível nacional. No ano 2000, o número de estabelecimentos ascendia a 150 na Região, com uma proporção de 3,0 % comparativamente ao número de estabelecimentos em Portugal continental. Esta proporção foi tendencialmente aumentando, embora o valor mais elevado tenha sido o de 3,2 %, que se constatou nos anos 2001, 2002 e 2007, onde o número de estabelecimentos na Madeira era de 156, 156 e 171, respetivamente. Todavia, foi no ano 2009 que se verificou o número mais elevado de estabelecimentos na Região, com 182, quando Portugal tinha 5877 estabelecimentos bancários e caixas económicas. De notar que, a partir do ano 2010, inclusive, verificou-se uma queda no número daqueles. Queda essa que não foi um fenómeno único da Região, mas também de todo o território nacional, embora seja de interesse ressaltar que a diminuição do número de estabelecimentos foi mais acentuada na Madeira, pois, ao se verificar a proporção do número de estabelecimentos bancários regionais no número de estabelecimentos bancários nacionais para o ano 2013, o valor ficou pelos 2,8 %, um valor percentual inferior ao verificado em anos anteriores, comparável com aqueles que se verificavam nos últimos anos da déc. de 90 do séc. XX. No ano 2010, o número de estabelecimentos passou para os 178, diminuindo no ano seguinte para 169. No ano 2012, verificou-se uma nova queda para 157, sendo que, no ano 2013, foram encerrados 10 estabelecimentos bancários, passando a RAM a contar com apenas 147. Outra forma de se analisar a evolução do sector é através do número de pessoas ao serviço nesses mesmos estabelecimentos. No ano 1998, o número de funcionários do sector bancário cifrava-se nos 946, sendo que a partir desse ano verificou-se uma diminuição que faria com que, no ano 2001, o número fosse de 851 pessoas. No entanto, a partir do ano 2002 e até o ano 2004, constatou-se um crescimento, no qual, no ano 2002, o sector bancário contava com 922 colaboradores, passando para 945, no ano seguinte, e para 1098, em 2004. A partir do ano 2005, voltou a verificar-se uma tendência caracterizada pela diminuição do pessoal ao serviço, muito embora, no triénio 2008-2010, o número tenha superado o milhar de pessoas. A partir do ano 2011, o número decaiu, fazendo com que os dados referentes ao ano 2013 apresentassem um número de funcionários novamente inferior ao ano imediatamente anterior, fixando-se em 842. Os dados apresentados anteriormente podem ser analisados efetuando induções sobre os motivos que provocaram esta diminuição de pessoal ao serviço, apoiadas, eventualmente, no argumento da melhor utilização e otimização dos serviços. Todavia, cabe destacar que, a partir do ano 2008, o sistema bancário se ressentiu, fundamentalmente, pela crise financeira despoletada. Este fenómeno não se fez sentir unicamente em território regional, mas também no espaço nacional, porque, se se comparar a proporção do pessoal ao serviço em bancos e em caixas económicas na RAM relativamente ao pessoal ao serviço nas instituições de todo o país, verifica-se que, apesar de ter havido algumas alterações pontuais, o valor percentual se manteve nos 1,6 %. Uma publicação de 2014 do periódico Económico constatava o encerramento de um número elevado de agências bancárias nesse mesmo ano. Segundo a mesma, os bancos com maior presença em Portugal fecharam 200 balcões em território nacional no ano 2014. Na publicação, o encerramento de balcões e o despedimento de colaboradores são explicados não só pelas exigências efetuadas pelas autoridades europeias, após ter-se intervencionado um conjunto de instituições bancárias, mas também pelos prejuízos verificados no sector que obrigaram a elaborar planos de reestruturação assentes parcialmente nestas medidas. Outro dado de elevado interesse, relacionado com o número de terminais multibanco na Região, permite-nos concluir que foi verificado um crescimento importante daqueles entre o ano 1997 e o ano 2013. Enquanto, no ano 1997, o número de terminais na RAM era de 98, no ano 2013 o número ascendia aos 327. Neste intervalo de tempo, apenas foram verificadas diminuições anuais no ano 2011, momento em que o número caiu para 344, quando em 2010 o número de terminais era de 347, e no ano 2013, altura em que se verificou uma diminuição de 18 terminais multibanco. Relativamente a esta variável, é possível verificar, de igual forma, que, entre o ano 1997 e o ano 2013, a distribuição concelhia desses mesmos terminais sofreu alterações, destacando-se a descentralização dos terminais no concelho do Funchal: no ano 1997, localizavam-se ali 61,2 % do número total, um valor que diminuiu para 55,7 % no ano 2013. Não obstante, apesar de ter havido um aumento da proporção de terminais nos restantes concelhos que não a capital da RAM, verificou-se uma diminuição da mesma em concelhos como: a Calheta, onde a relação passou de 6,1 % para 3,1 %, entre o ano 1997 e 2013; o Porto Moniz, onde, no ano 1997, os terminais multibanco representavam 2,0 % do total regional, e, no ano 2013, um valor inferior situado nos 1,8 %; a Ribeira Brava e São Vicente, que, no ano 1997, representavam 5,1 % e 4,1 %, e, no ano 2013, 4,0 % e 1,8 %, respetivamente. O número de operações efetuadas em terminais multibanco também aumentou significativamente, quase que quadruplicando entre o ano 1997, ano no qual o número de operações foi de 5411 milhões. No ano 2013, foram registadas 21.010 milhões de operações em território regional. Os números alteraram-se de tal forma que uma análise à caracterização desses mesmos movimentos permite constatar a dinâmica verificada. Tome-se, por exemplo, o ano 1997, no concelho de Porto Moniz, onde o número de operações efetuadas foi de 23.000, sendo apenas de 19.000 no concelho da Ponta do Sol. Sendo uma das principais funções das instituições bancárias a concessão de crédito à economia, determinados dados da DREM revelam que, a 31 de dezembro de 2013, a percentagem de devedores face ao total da população adulta residente na RAM era de 51,1 %, valor inferior ao verificado no território nacional (52,9 %). Cabe destacar de igual forma que cerca de 1 em cada 4 adultos residentes na RAM tinha um empréstimo à habitação, e para 43,2 % foi concedido um empréstimo para consumo e para outros fins, empréstimo esse que, a 31 de dezembro de 2013, ainda estava em dívida.   Alberto Vieira Emanuel Janes Sérgio Rodrigues (atualizado a 23.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

valor acrescentado bruto

O Valor Acrescentado Bruto (VAB) é um indicador que quantifica o valor total do output produzido numa dada economia, para um certo período de tempo. Apenas o excedente é considerado como VAB, pois ao valor total da produção é deduzido o valor do consumo intermédio. O somatório do VAB de todas as atividades de uma dada economia com o valor dos impostos sobre os produtos, subtraindo o valor dos subsídios para os mesmos produtos, deverá igualar o PIB da região em apreço. Para uma dada economia, estima-se que o valor total do VAB deverá ser um contributo de cerca de 90 % do PIB. Em 1995, e tendo em consideração a informação patente nas contas regionais de 1995-2012, base 2006, do Instituto Nacional de Estatística, a Região Autónoma da Madeira (RAM) apresentava um VAB a preços correntes de 1635,5 milhões de euros, sendo o valor provisional apresentado pela instituição estatística, para 2012 de 4155,6 milhões de euros. Desde 1995, o VAB regional apresentou, na sua generalidade, taxas de crescimento, quando comparado o valor do VAB anual com o do ano imediatamente anterior; essas variações chegaram a ultrapassar os 20 pontos percentuais em 2000 e 2002, com taxas de crescimento de 21,1 % e 21,0 %, respetivamente. Em 2002, o VAB da RAM já ultrapassava o dobro do VAB que a Região apresentava em 1995, nomeadamente com 3516,7 milhões de euros, em contraponto com os 1635,5 milhões do ano de partida do estudo em apreço. Apesar de se terem constatado taxas de crescimento tendencialmente positivas no período compreendido entre 1995 e 2012, em cinco dos anos que constam neste intervalo verificaram-se variações negativas, nomeadamente nos anos 2001, 2003, 2009, 2011 e 2012; em 2009, 2011 e 2012, o decréscimo do VAB foi mais pronunciado, com variações de -1,1 %, -1,6 % e -7,4 %, respetivamente. As diminuições apresentadas em 2011 e 2012 não podem ser interpretadas como variações negativas impulsionadas unicamente pela realidade regional da RAM e pelos constrangimentos vivenciados por este território em matéria económica, visto que todas as regiões em estudo – Norte, Centro, Lisboa, Alentejo, Algarve, Açores, e o território português no seu todo – apresentaram taxas de variação negativas. Não obstante, para 2012, a Madeira apresentava a diminuição mais significativa em termos percentuais. Relativamente ao peso que o VAB regional tem no VAB nacional, a RAM representava, em 1995, 2,1 %. Em 2012, o valor proporcional do VAB da RAM no VAB português aumentou para 2,9 %, depois de, em 2006, ter sido de 3,1 %. É de notar que a RAM, à semelhança dos Açores, de Lisboa e do Algarve, viu aumentar o seu contributo no total do VAB do país. Uma análise do VAB regional permite-nos concluir que, neste período, a economia da Região assentou no sector terciário, cuja importância relativa no VAB da RAM é notória. Assim, no ano de 1995, o VAB do sector terciário representava 76,4 % do VAB regional, enquanto o do sector secundário tinha um peso percentual de 20,2 % e o do sector primário era de 3,3 %, assumindo os valores de 1250 milhões de euros, 331,2 milhões de euros e 54,3 milhões de euros, respetivamente. Tendo em consideração a variação anual do VAB, a preços correntes, da Região, entre 1995 e 2012, é possível comprovar que, para o sector primário (agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca), as variações foram negativas em 1996, 1999, 2005, 2007, 2008, 2009 e 2012, com diminuições nominais de 1,4 %, 2,1 %, 2,8 %, 0,5 %, 3,2 %, 4,5 % e 1,6 %, respetivamente. Quanto às variações positivas anuais verificadas no sector primário, são de ressaltar as que se verificaram nos anos: 2002, com um aumento na ordem dos 11,2 %; 2004, com uma variação de 10,9 %; e 2006, onde se verificou uma taxa de crescimento de 11,3 %. É curioso que o sector primário tenha sido o único que, em 2011, não acompanhou a diminuição do VAB regional, com uma variação positiva de 1,0 %. Esta realidade contrasta com a que se verificou nos sectores secundário e terciário, cujas variações negativas se fixaram nos 4,9 % e 1,1 %. O sector secundário (indústrias extrativas; indústrias transformadoras; produção e distribuição de eletricidade, gás, vapor e ar frio; captação, tratamento e distribuição de água; saneamento, gestão de resíduos e despoluição; e construção) apresentou, desde o ano de 1995, variações anuais significativas que chegaram a fixar-se nos 24,7 %, em 1998. Desde 1995 até 2007, a evolução anual foi tendencialmente positiva, à exceção de 2005, onde se constatou uma diminuição de 0,6 % em relação ao ano anterior. Todavia, e apesar da propensão para o crescimento do sector, desde 2008, inclusive, até 2012, a variação anual foi negativa, com diminuições a alcançarem os 6 % em 2008, e os 8 % em 2012. No que respeita ao sector terciário, onde se encontram as atividades relacionadas com a prestação de serviços, apesar de se terem constatado variações anuais positivas bastante elevadas, como em 2000, com uma variação de 25,6 %, e em 2002, com 25,5 %, o sector também foi afetado com diminuições no valor do VAB, principalmente nos últimos dois anos, com variações de -1,1 % no ano de 2011, e -7,4 % no ano de 2012. Verificando, mais pormenorizadamente, a distribuição do VAB regional, a preços correntes, pelas diversas atividades, através da leitura da repartição do VAB pelos ramos de atividade A10, é possível concluir que as variações ocorridas entre 1995 e 2012 são significativas. A hegemonia do sector terciário é conseguida através das prestações das seguintes atividades: comércio por grosso e a retalho; reparação de veículos automóveis e motociclos; transportes e armazenagem; e atividades de alojamento e restauração. O VAB deste ramo de atividade contribuía com 31,4 % para o VAB da RAM no ano de 1995, sendo que, em 2012, o valor desta proporção sofreu um aumento para os 32,1 %, o que significa que este ramo, cujo VAB para o último ano mencionado se cifrava nos 1334,2 milhões de euros, tinha um peso de cerca de 1/3 no VAB da Região. Este facto é justificado pela importância que as atividades direta e indiretamente relacionadas com a atividade turística, considerada como fundamental para a economia do arquipélago, tiveram neste aglomerado que constitui o ramo em consideração. Em 2001, estimava-se que a contribuição do sector do turismo para o VAB, a preços de mercado, na RAM, era de 10,5 %, importância bastante mais elevada que a verificada pelo mesmo sector no âmbito nacional, que se fixava nos 4,9 %. Para 2005, as estimativas apontavam para um peso da atividade turística no VAB regional, a preços de mercado, de 9,5 %, que, apesar de inferior ao registado em 2001, ultrapassava o valor percentual para o país, 4,6 %. Comparando os 10 ramos considerados no levantamento de dados levado a cabo nas contas regionais, é possível verificar que 4 destes viram diminuir o peso do seu VAB no VAB regional: o ramo da agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca, que representava 3,3 % em 1995, e apenas 1,9% em 2012; o ramo onde se incluem atividades como indústrias extrativas; indústrias transformadoras; produção e distribuição de eletricidade, gás, vapor e ar frio; captação, tratamento e distribuição de água; saneamento, gestão de resíduos e despoluição — cuja importância relativa se fixava nos 8,2 % em 1995, e em 7,2 % em 2012; o ramo da construção, cuja diminuição é bastante considerável, pois em 2012 o VAB do mesmo representava 6,1 % do VAB regional, quando em 1995 tinha uma importância relativa na ordem dos 12 %; e o ramo onde se incluem as atividades relacionadas com a informação e comunicação cujo peso era de 2,5 % em 1995 e de 2 %, em 2012. A perda de importância do ramo da construção é de tal forma considerável que este é o único, entre os 10 ramos de atividades analisados, que não só viu reduzida para cerca de metade o seu peso no VAB da RAM entre 1995 e 2012, como também apresentou taxas de variações anuais negativas desde 2008, inclusive, chegando a registar uma variação negativa de 18,8 % entre 2011 (312,1 milhões de euros) e 2012 (253,4 milhões de euros). Entre os ramos de atividade que viram a sua influência no VAB regional aumentar entre 1995 e 2012, cabe destacar o ramo que inclui: atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares, e atividades administrativas e dos serviços de apoio, que, em 1995, tinha um VAB que representava 6,7 % do VAB da RAM, perfazendo 109,7 milhões de euros, passando, em 2012, a ter um peso de 12,4 %, com 517,3 milhões de euros. Relativamente à proporção do VAB das empresas maioritariamente estrangeiras no VAB regional, verificou-se um aumento entre 2005, com 2,94 %, e um valor de 50,58 milhões de euros, e 2012, onde se registou um peso de 3,84 % e um valor absoluto de cerca de 52 milhões de euros. Contudo, apesar de a evolução ter sido positiva, a Região continua a ficar aquém da proporção verificadas na região dos Açores, onde a importância das empresas maioritariamente estrangeiras no VAB, em 2012, ascendeu aos 4,76 %. Para o país no seu todo, no mesmo ano, a proporção era de 18,7 %. A diminuição em termos nominais que se verificou no VAB regional, e consequentemente no PIB da RAM, em 2012 é justificada, segundo nota divulgada pela Direção Regional de Estatística da Madeira, “pela saída de diversas empresas de dimensão relevante que anteriormente operavam a partir do Centro Internacional de Negócios da Madeira, levando a que o VAB das atividades aí desenvolvidas tivesse sofrido uma assinalável redução. Há ainda a referir os efeitos das medidas implementadas no âmbito do Programa de Ajustamento Económico-financeiro, iniciado em janeiro de 2012 e com impacto direto na economia regional”.   Sérgio Rodrigues (atualizado a 04.01.2017)

Economia e Finanças

parcerias público-privadas

Partindo da definição proposta por E. R. Yescombe em Public Private Partnerships: Principles of Policy and Finance (2007), pode-se começar por definir as parcerias público-privadas (PPP) como: 1) um contrato de longo prazo (o contrato de PPP), celebrado entre um parceiro do sector público e um parceiro do sector privado; 2) que tem em vista o desenho, construção, financiamento e funcionamento de uma infraestrutura pública, a cargo do parceiro privado; 3) mediante pagamentos feitos ao privado, ao longo da vida do contrato de PPP, seja pelo Estado com recurso a dotações orçamentais, seja diretamente pelos utentes ou utilizadores através da cobrança de tarifas ou taxas; 4) assegurando-se que a infraestrutura ou permanece na propriedade do Estado ou reverte para este, no final da vigência do contrato de PPP, ainda que o mesmo possa ser objeto de renovação. Estes quatro aspetos merecem, contudo, algumas precisões (atender-se-á, nomeadamente, à concretização das PPP em Portugal). Quanto ao aspeto mencionado em 1), de que as PPP configuram um contrato de longo prazo, a afirmação não é inteiramente linear. A dúvida não se prende com a segunda parte: é de facto característica das PPP serem de longo prazo. Na verdade, a dúvida é a de saber se as PPP traduzem verdadeiramente um tipo de contrato ou antes um modelo de contratação (falar-se-á então de contratação em PPP), e se, sendo contrato, será um contrato único ou antes uma pluralidade de contratos (no limite, uma união de contratos). Isto porque as PPP são geralmente caracterizadas pela sua complexidade, envolvendo não apenas o contrato principal (o acordo de PPP propriamente dito), mas também outros, com destaque para os contratos de financiamento, contratos de seguros, contratos de empreitadas e de fornecimentos, contratações técnicas diversas, etc. Mas regressemos à primeira questão, mais interessante: a de saber se as PPP são um contrato ou antes um modelo de contratação. Admitimos como válidas as duas hipóteses, embora propendamos para a segunda opção. Ainda assim, admitindo que as PPP possam ser olhados como contrato, importa fazer notar que a identificação do tipo contratual em causa dependerá, antes de mais nada, do modelo de PPP perante o qual se esteja. Assim, à luz do modelo anglo-saxónico (o modelo da Private Finance Iniciative –PFI), que apresenta, na nossa opinião, uma natureza eminentemente institucionalizada, o contrato de PPP traduz-se na criação de um Special Purpose Vehicle (SPV), o qual pode inclusive passar pela formação de uma joint venture entre os principais parceiros (público e privado). Pertencerá a esse SPV assegurar a construção e a gestão da infraestrutura durante o período de vida útil do ativo e todas as relações contratuais iniciais e ulteriores que hajam de ser estabelecidas passam pela intervenção deste novo protagonista. Ora, como se vê, no modelo da PFI, a PPP estriba-se num contrato de direito societário (ou próximo deste), e a matriz é eminentemente privatística. Já no modelo concessivo – o modelo continental –, o contrato (principal) de PPP consiste numa concessão (de obras ou de serviços públicos), i.e., é verdadeiramente um contrato administrativo, ainda que lhe possam ser apontadas algumas especificidades relativamente às concessões “tradicionais”, quer do ponto de vista conceitual ou do alcance legal do conceito (respetivamente, por se tratar sempre de uma concessão de longo prazo e por delimitar a lei a aplicação do regime das PPP apenas a parcerias de montantes superiores a um valor predefinido), quer no plano do regime jurídico aplicável (seja em sede inicial, de decisão de contratar e de contratação, seja em fase posterior, a nível da execução – aspetos que veremos mais adiante). Nesta medida, no modelo concessivo, a matriz é mais fortemente juspublicística. Posto isto, olhando agora para o modelo português, que é um modelo concessivo, propendemos a defender que as PPP se traduzem não num (único) contrato, ou sequer numa união de contratos, antes verdadeiramente num modelo de contratação (ainda que encerrem um contrato principal, de concessão, a par de outros, contratos acessórios). Esta qualificação resulta dos seguintes elementos (para maior desenvolvimento dos pontos seguintes, leia-se o estudo de 2009 de Nazaré C. Cabral; veja-se ainda, em sentido não distante, o texto de Maria Eduarda Azevedo): i) Fundamento das PPP: as PPP desenvolvem-se sobretudo a partir de finais do séc. XX para superarem as restrições orçamentais com que diversos países desenvolvidos se veem confrontados, nomeadamente para continuarem a realizar grandes investimentos públicos. As PPP foram um expediente satisfatório que esses mesmos países forjaram para ganhar “espaço orçamental” numa altura em que se acentuavam os seus problemas orçamentais, designadamente em virtude do elevado crescimento da despesa pública e dos níveis de endividamento. Nesta medida, as PPP aproveitam-se de modelações contratuais convencionais (g. contratos de concessão) para as adaptarem a finalidades contemporâneas do ponto de vista económico e financeiro: capacidade de realização de grandes investimentos em contexto orçamental restritivo; ii) Os alcances da noção de PPP: mais do que contrato, mais do que união de contratos, as PPP traduzem um arranjo complexo que envolve relações contratuais (relevância estrita ou jurídica), mas que envolve também, desde logo, uma determinada visão ou conceção acerca da forma como o Estado deve agir na economia, pela intermediação da ideia de contratualização externa (contracting out) e, se se quiser, em sentido amplo, de privatização da própria administração pública (relevância ampla ou económica). Enquanto visão acerca da atuação do Estado na economia, as PPP configuram muito mais do que um contrato: elas são um verdadeiro modelo de contratação. Justamente, neste sentido, é usual encontrar a contraposição entre modelo de contratação em PPP e modelo de contratação pública tradicional, conforme foi clarificado por António Pombeiro. Neste último, o Estado envolve-se diretamente na conceção, desenho, aprovisionamento, produção, distribuição, aquisição, posse, propriedade, manutenção, atualização dos ativos destinados à satisfação de necessidades públicas. Diversamente, no modelo de contratação em PPP, a Administração Pública apenas delimita, caracteriza e quantifica as necessidades públicas essenciais, contratando esse provimento em parceria com o sector privado, de modo a maximizar o Value for Money (VfM) e a minimizar o risco do seu envolvimento, sem deixar no entanto de exercer controlo efetivo sobre o provimento em causa. O parceiro privado é corresponsabilizado pelo sucesso do empreendimento por toda a vida do contrato, respondendo pela economia, eficiência e eficácia, e ainda pelo impacto económico de todo o empreendimento na satisfação das necessidades públicas. Repare-se que a própria legislação aplicável (o de-lei n.º 111/2012, de 23 de maio, e também, para o efeito, o n.º 2 do art. 19.º da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), lei n.º 91/2001, de 20 de agosto) acolhe o chamado “princípio do comparador do sector público” (CSP), que mais não significa, na verdade, do que a necessidade de, aquando da decisão de contratar em PPP, se proceder a uma análise comparada entre os resultados económicos e financeiros a obter com a PPP e os resultados que se obteriam caso se optasse pela contratação pública em moldes tradicionais; iii) A dimensão whole-life das PPP: um dos elementos que permite também diferenciar as PPP relativamente às soluções de contratação pública convencionais reside na sua perspetiva whole-life. O princípio do VfM (antes mencionado), que basicamente significa “fazer mais com o mesmo dinheiro”, permite fixar a atenção numa característica nem sempre evidenciada nos processos de contratação pública: o facto de tais processos não se esgotarem no momento pré-adjudicatório e adjudicatório, antes se tratando de processos whole-life, de aquisição a terceiros de bens, serviços ou obras públicas que, por isso, se iniciam com a identificação da necessidade coletiva e terminam com a conclusão do contrato ou com o fim da disponibilidade da infraestrutura em causa. O VfM pode ser assim definido, de acordo com Darrin Grimsey e Mervyn Lewis (2004), como a combinação ótima do custo e da qualidade whole-life, com vista à satisfação das necessidades dos utilizadores. Estes mesmos autores acrescentam que uma das grandes vantagens das PPP reside no facto de se alicerçarem numa abordagem “whole-of-life cycle ‘bundled’” (GRIMSEY e LEWIS, 2004, 135). Esta integração leva a que a infraestrutura seja desenhada não apenas tendo em vista a satisfação de serviços core, mas também de todos os serviços associados. Por sua vez, trata-se não apenas de responder, no imediato ou no curto prazo, a uma dada necessidade, mas também de garantir a provisão ao longo do ciclo da vida da infraestrutura (disponibilidade e qualidade da infraestrutura no médio e longo prazos). As PPP são pois um incentivo contratual que leva o parceiro privado a olhar para além da fase de conceção e construção, para se fixar também nas fases de funcionamento e manutenção. Ainda que existam argumentos favoráveis à provisão unbundled, a verdade é que, para estes autores, “a atribuição da coordenação do projeto a uma só entidade do sector privado (ou consórcio) garante melhores incentivos e aumenta o esforço de ‘accountability’” (Id., Ibid., 136); iv) As PPP e a distribuição dos riscos: este é, sem dúvida, um dos elementos matriciais das PPP enquanto modelo novo, distinto, de contratação relativamente às soluções convencionais. Mas repare-se, antes de mais nada, que os princípios de distribuição dos riscos são já de há muito conhecidos no direito, tal como lembra António Menezes Cordeiro: “O sentido geral do sistema do risco, bastante harmonioso, é o seguinte: se o Direito atribui a um sujeito, através do esquema do direito subjetivo, uma vantagem, é justo que corra, contra ele, a possibilidade de dano superveniente causal. Ubi commoda, ibi incommoda. [...] Observa-se ainda que, em situações relativas – maxime, contratos bilaterais – o risco distribui-se por ambos os intervenientes” (CORDEIRO, 1987, 43). No caso das PPP, o critério operativo, aceite em termos internacionais (FMI, OCDE, etc.) e pela generalidade das legislações aplicáveis, e que permite identificar que riscos é que devem transferidos do parceiro público para o privado e os que devem permanecer da responsabilidade do primeiro é um critério pragmático. Ele expressa-se, de acordo com Yescombe (2007), no seguinte: o risco deve ser suportado pela parte que o consiga suportar melhor a um custo mais baixo. A esta regra não é alheia, como bem se compreende, a natureza duradoura do contrato em PPP. Além deste critério pragmático de distribuição de riscos (impropriamente também denominada de partilha de riscos), uma outra particularidade nos contratos em PPP reside no facto de deles constar, ab initio, e., logo na definição do clausulado contratual, a chamada “matriz de riscos”. Nesta, as partes, em regra de acordo com o critério supra, alocam os diferentes riscos de uma PPP aos dois parceiros principais envolvidos e eventualmente, em casos particulares, a terceiros (e.g., seguradoras). De entre os riscos geralmente cometidos ao parceiro público, destacam-se os riscos políticos (v.g. revisões constitucionais, alterações legislativas que tenham relevância direta ou indireta sobre a execução do contrato de PPP, em suma, o chamado fait du prince) e os riscos económicos (v.g. taxa de inflação). A alteração das taxas de juro em regra tende a ser assumida por ambos os contraentes (uma vez que ela é por vezes exógena relativamente à ação governativa) e, sendo um risco de grande significado, pode mesmo ser estabilizada pelas partes, mediante definição prévia, no mercado de derivados, da taxa de juro aplicável ao longo da execução do contrato: o caso mais comum são os swaps de taxas de juro. Já os riscos de conceção e de construção, bem como os riscos de funcionamento ou e performance (incluindo o risco de mercado ou de procura), são, em regra, assumidos pelo parceiro privado; v) A posição particular do terceiro financiador: este é um aspeto que se evidencia nas modernas PPP, quando as comparamos com os modelos de contratação convencionais. Repare-se, desde logo, que as PPP são marcadas por arranjos financeiros complexos, que em certos casos envolvem o recurso ao project finance. Como é referido por R. Yescombe, o project finance, enquanto técnica de financiamento, está particularmente vocacionado para a implementação de infraestruturas e/ou exploração de monopólios naturais (e.g., recursos naturais e energia). O maior impulso ao desenvolvimento das soluções de project finance aconteceu a partir da déc. de 70 do séc. XX, com o desenvolvimento de algumas técnicas financeiras, a saber: generalização dos empréstimos de longo prazo a sociedades clientes (quando até aí os bancos comerciais apenas emprestavam no curto prazo); utilização de créditos de exportação para financiar projetos de maior envergadura; recurso à shipping finance, pela qual os bancos financiam a construção de navios grandes, garantindo-se através dos fretes a realizar no longo prazo (i.e., o financiamento da construção é feito contra um cash-flow contratual, em que o financiado é uma companhia special-purpose proprietária do navio, em moldes muito similares às estruturas de project finance); o desenvolvimento das finanças do imobiliário, de novo envolvendo empréstimos garantidos através dos rendimentos de longo prazo projetados; a locação financeira tax-based que habituou os bancos a complexos cash-flows. Como é referido, por outro lado, por Graham Vinter, o project finance é uma forma de financiamento de infraestruturas ou projetos industriais de longo prazo, baseado numa estrutura financeira complexa assente em dívida e outras formas de financiamento (v.g. ações próprias), na qual a dívida é saldada através do cashflow gerado com a operacionalização do projeto, mais do que através de capitais próprios das empresas promotoras desse projeto. O financiamento é, por sua vez, fundamentalmente garantido por todos os ativos afetos ao projeto, incluindo os rendimentos previstos no contrato. Poder-se-á, na verdade, considerar que o objetivo último de recurso a esta forma de “engenharia financeira” é justamente o de assegurar que o projeto em causa seja autossuficiente do ponto de vista financeiro. Neste amplo complexo de financiamento, ganha, assim, importância acrescida o papel do terceiro financiador que, sendo terceiro relativamente ao contrato de base (o contrato de concessão), acaba por assumir o papel principal. Isto resulta em boa medida do facto, antes assinalado, de as PPP constituírem um processo alternativo de captação de financiamento para realização de grandes projetos de investimento. Por isso, a posição do terceiro financiador acaba por merecer, desde logo na lei, especiais cautelas e tutelas, principalmente na fase de execução da PPP e perante vicissitudes contratuais tão diversas, como sejam a modificação unilateral dos contratos, a renegociação ou a reposição do equilíbrio financeiro; iv) A diversificação das fontes de pagamento ao parceiro privado: diferentemente das concessões tradicionais, em que os pagamentos se fazem sobretudo diretamente pelos utilizadores, nas concessões PPP esses pagamentos podem também ser reclamados ao Estado mediante dotações orçamentais. Nesta medida, e sem prejuízo do que foi referido em ii) (apontando para um menor envolvimento do Estado nas PPP, em comparação com a contratação pública tradicional), a verdade é que, no caso particular das contratações sob a forma de concessão, veremos que, paradoxalmente, nas concessões PPP acabam por existir alguns elementos que apontam para uma menor privatização (lato sensu) destas, quando comparadas com as concessões tradicionais. E um desses aspetos tem que ver precisamente com a questão dos pagamentos, os quais, nas PPP, podem ser feitos diretamente pelo Estado ao parceiro privado; v) A reversibilidade dos ativos para o Estado: as PPP oscilam entre modelos que não implicam necessariamente a reversibilidade dos ativos para o Estado no final do contrato, como é o caso do modelo Buy-Build-Operate (BBO) – no qual o sector privado compra ao Estado uma infraestrutura previamente existente, assegurando depois a sua manutenção, renovação, modernização e expansão, e garantindo a sua exploração, sem haver qualquer obrigação de devolução posterior ao Estado –, e modelos em que essa reversibilidade ocorre, o caso do Build-Operate-Transfer (BOT) – no qual o sector privado desenha e constrói a infraestrutura, opera com ela, e depois procede à sua transferência para o Estado logo que concluído o prazo de duração do contrato ou em data específica, ainda que posteriormente possa arrendar o mesmo ativo –, passando por modelos em que a propriedade permanece no Estado, como sucede com o design-finance-build-operate (DFBO) – em que o sector privado desenha, constrói, possui, desenvolve, opera e gere a infraestrutura, mas com a propriedade nas mãos do Estado. Repare-se que desta forma, com a explicação mencionada em iv) e v), acabamos por tratar também, desde já, dos elementos característicos da noção de PPP apontados ainda por R. Yescombe, respetivamente nos pontos 3) e 4) de que demos nota logo no início do texto presente. Resta-nos assim a análise da característica restante, mencionada no ponto 2) da mesma definição: recorde-se o facto de as PPP terem em vista o desenho, construção, financiamento e funcionamento de uma infraestrutura pública, a cargo do parceiro privado. Este aspeto tem, em nossa opinião, mais importância do que à primeira vista parecer ter. Na verdade, o facto de as PPP estarem referenciadas a uma infraestrutura – e deverá ser, quanto a nós, uma infraestrutura económica ou social hard (e não apenas soft) – permite afastar da noção de PPP simples formas de cooperação entre o sector público e privado (veja-se no caso português, e.g., os acordos de cooperação celebrados entre o Estado e as instituições particulares de solidariedade social na área da ação social), que, sendo de carácter duradouro, não se referem de forma inequívoca à construção, gestão e exploração de uma certa e determinada infraestrutura hard. As PPP em Portugal  As PPP têm uma história impressionante em Portugal, não apenas por causa da sua expressão e, até certo momento, por causa da sua vitalidade, mas também pelos resultados perniciosos. Na verdade, precedendo ainda a aprovação do primeiro regime jurídico sobre contratação em PPP, o dec.-lei n.º 86/2003, de 26 de abril (alterado, especialmente pelo dec.-lei n.º 141/2006, de 27 de julho), e bem assim do Código dos Contratos Públicos (aprovado pelo dec.-lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, e suas alterações), diversas PPP foram celebradas no nosso país, sobretudo nos sectores rodoviário (autoestradas com portagens, mas também sem custos para o utilizador – SCUTs) e ferroviário (e.g., Fertagus e metropolitano ligeiro do sul do Tejo). O modelo de PPP não se limitou contudo a estes sectores: já antes, em 2002, se conhecera a primeira regulamentação das parcerias no sector da saúde, com a aprovação do dec.-lei n.º 185/2002, de 20 de agosto, e já antes se dera a celebração do primeiro contrato de gestão com um grupo privado, no caso relativo à gestão do Hospital Amadora-Sintra. Aliás, este aspeto é curioso: o contrato de gestão, adaptado às parcerias na saúde, não é muito diferente de uma concessão de serviço público (ainda que possa implicar a construção da infraestrutura hospitalar); a sua especificidade estará no objeto – concessiona-se o serviço de saúde (i.e., a prestação de cuidados médicos em estabelecimentos clínicos). Desde cedo, o modelo seguido em Portugal demonstrou falhas de conceção e de execução que foram aliás evidenciadas pelo Tribunal de Contas nas sucessivas auditorias que realizou a propósito de cada uma delas: i) falhas de planeamento e de consulta; ii) custos exorbitantes associados à contratação externa de consultores (jurídicos, financeiros, técnicos, etc.); iii) insuficiente estimação de custos, insuficiente avaliação da comportabilidade orçamental do projeto, insuficiente avaliação de impactos económicos e sociais de longo prazo; iv) falhas na distribuição dos riscos geralmente em desfavor do Estado (v.g. imputação afinal do risco de procura ao Estado); v) cláusulas leoninas em desfavor do Estado; vi) adjudicações a baixo custo potenciando renegociações geralmente lesivas do interesse público; vii) em resultado da má negociação inicial, recurso posterior à modificação unilateral do contrato, implicando o recurso ao mecanismo da reposição do equilíbrio financeiro, também ele desfavorável para o Estado; viii) atrasos diversos na execução dos projetos determinado revisão ulterior dos custos finais respetivos. Acima de tudo, verificou-se que as PPP acabaram por ser um expediente fácil, não suficientemente blindado e balizado do ponto de vista jurídico e financeiro, para obviar a falta de “espaço orçamental”, criando dívida futura, em muitos casos oculta sob a forma de responsabilidades contingentes. A crise financeira iniciada em 2008 exacerbou a dimensão desta herança. Após a celebração do Memorando com a Troika (maio de 2011), Portugal adotou um conjunto de medidas relativamente a esta matéria. Foi elaborado um primeiro relatório (2012), intitulado “Parcerias Público-Privadas e Concessões”, do qual resultou a seguinte avaliação financeira referente às PPP existentes: i) os seus encargos líquidos globais (nos vários sectores) ascendiam, em 2011, a 1.823.000.000 euros; ii) o período mais crítico dos encargos líquidos das PPP ocorreria entre 2015-2018, com o valor a ascender a 2.000.000.000 euros; iii) a partir desta data e até 2045 (fim dos contratos ou do período de vida útil dos ativos), os encargos decresceriam até atingirem então o valor de zero euros. Na sequência desta primeira avaliação, foram adotadas as seguintes medidas: 1) proibição de lançamento, desde 2011 em adiante, de novas PPP (embora algumas estivessem já em fase de estudo, mormente no sector da saúde, e não viessem a ser abandonadas); 2) aprovação, em 2012, de um novo quadro legal das PPP (dec.-lei n.º 111/2012, de 23 de maio); 3) avaliação e renegociação de diversas PPP antes celebradas no continente: as concessões ex-SCUTS (Norte Litoral, Grande Porto, Interior Norte, Costa de Prata, Beira Litoral/Beira Alta, Beira Interior e Algarve); as concessões do Norte e da Grande Lisboa; e as subconcessões da EP (Transmontana, do Baixo Tejo, do Baixo Alentejo, do Litoral Oeste, do Pinhal Interior e do Algarve Litoral). O dec.-lei n.º 111/2012 surge pois numa altura de contenção, dada a situação presente e futura das finanças públicas portuguesas. A malha das exigências aplicáveis às fases pré-contratual e contratual apertaram-se, embora na essência não tenha havido uma grande mutação relativamente ao regime anterior (constante do dec.-lei n.º 86/2003). Ainda assim, há no novo decreto-lei uma novidade importante: a criação da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos que passa a centralizar as funções de preparação, desenvolvimento, execução e acompanhamento global  dos processos de PPP, ao mesmo tempo que presta apoio técnico especializado ao Governo em matéria de natureza económico-financeira. Esta Unidade Técnica vem ainda, para este efeito, substituir a Parpública, pois a esta cabe, nos termos da legislação anterior, a generalidade das funções ora cometidas à nova Unidade. Na implementação de uma PPP, vamos distinguir entre fase de preparação e fase pré-contratual. Na fase de preparação, intervém a equipa de projeto, constituída sempre que algum dos possíveis parceiros públicos (desde logo, o Estado) entenda lançar mão de uma parceria, cabendo-lhe, além de verificar os pressupostos para o lançamento de uma parceria (cf. n.º 3 do art. 12.º, em articulação com o art. 6.º, ambos do dec.-lei n.º 111/2012), também proceder à elaboração e justificação do modelo de parceria a adotar, bem como realizar o estudo estratégico e económico-financeiro que a sustentará. Tendo por base este trabalho prévio, os membros do Governo competentes (ministro das Finanças e ministros sectoriais) aprovam a decisão de lançar a parceria. Dessa decisão, constará também, de entre outros elementos (cf. art. 13.º, n.º 4), a escolha do tipo de procedimento, a aprovação do caderno de encargos e a escolha dos membros do júri. O lançamento da parceria corresponde assim à fase pré-adjudicatória e aqui deve atender-se não apenas ao regime do dec.-lei n.º 111/2012 (especialmente os arts. 16.ºss.), mas também ao Código dos Contratos Públicos (CCP) (regras procedimentais, sobretudo arts. 130.ºss.). A fase pré-adjudicatória é encerrada com a adjudicação e celebração ulterior do contrato de parceria, sem prejuízo de se prever no n.º 3 do art. 18.º a chamada cláusula gateway, uma cláusula usual neste tipo de contratação, justificada pela necessidade de salvaguarda do interesse público e dos interesses financeiros do Estado, que garante que a qualquer momento se possa pôr “termo ao procedimento em curso relativo à constituição da parceria, sem direito a qualquer indemnização, sempre que, de acordo com a apreciação dos objetivos a prosseguir, os resultados das análises e avaliações realizadas até então ou os resultados das negociações levadas a cabo com os concorrentes não correspondam, em termos satisfatórios, aos fins de interesse público subjacentes à constituição da parceria, incluindo a respetiva comportabilidade de encargos globais estimados”. Estando implementada a parceria, esta começa a ser executada. Não se ignora que, por causa da sua natureza duradoura, uma PPP fique sujeita a inúmeras vicissitudes, algumas previstas, outras imprevisíveis, que poderão conduzir a diferentes tipos de alterações. As PPP comportam ainda, durante a sua execução, dois elementos que não raro se antagonizam: de um lado, a prevalência que nelas deve ser dada à prossecução do interesse público; do outro, a necessidade de garantir a tutela da confiança e dos interesses económicos dos parceiros privados. As alterações podem ter dois tipos de fontes jurídicas. Podem ser ditadas pela renegociação ou por modificações unilaterais  por parte do Estado (sobre estas fontes de modificação objetiva, vejam-se os arts. 311.ºss. do CCP). Sempre que as alterações, afetando o equilíbrio económico e financeiro do contrato, sejam devidas ao chamado fait du prince ou a atos unilaterais do parceiro público (v.g. atos administrativos), reconduzíveis ao exercício de potestas variandi, há lugar à reposição do equilíbrio económico financeiro do contrato (cf. n.º 1 do art. 314.º do CCP). Esta pode implicar uma revisão de preços, a alteração dos prazos do contrato com natureza reparadora, redefinição de outras condições contratuais, etc. Importa notar que, para aferir do equilíbrio financeiro, deverá ter-se em conta o respetivo Caso Base (anexo ao contrato) que representa a equação financeira da PPP, o qual deverá integrar todas as receitas previstas pelo parceiro privado decorrentes do desenvolvimento da parceria, i.e., as receitas acessórias e receitas cessantes. O dec.-lei n.º 111/2012 limitou as possibilidades de modificação unilateral, desde logo do ponto de vista financeiro: assim, carece de despacho prévio de concordância dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e do projeto em causa qualquer decisão do parceiro público, no âmbito da execução do respetivo contrato e das condições aí fixadas, suscetível de gerar: a) um acréscimo dos encargos previstos para o sector público, exceto se o respetivo valor não exceder, em termos anuais, 1.000.000 euros brutos ou, em termos acumulados, 10.000.000 euros brutos, em valores atualizados; b) uma redução de encargos para o parceiro privado (cf. n.º 2 do art. 20.º). Nos demais casos de alteração – mormente nos casos de renegociação –, poderão ser definidas outras formas de compensação ou de redefinição da equação financeira, mas tecnicamente, em sentido estrito, não se tratará de reposição do equilíbrio financeiro. Próximo do mecanismo de reposição do equilíbrio financeiro, de certa forma o seu reverso, é o instituto da partilha de benefícios, previsto no art. 21.º do dec.-lei n.º 111/2012 e no art. 341.º do CCP. Há lugar à partilha de benefícios sempre que numa PPP se verifiquem duas condições cumulativas: i) ocorra um acréscimo anormal e imprevisível dos benefícios financeiros para o parceiro privado; ii) o referido acréscimo não resulte da eficiente gestão e das oportunidades criadas pelo mesmo parceiro privado. Tal pode ficar a dever-se, nomeadamente, à melhoria das condições de financiamento da PPP em virtude da renegociação ou substituição dos contratos de financiamento. Pode dizer-se, em suma, que a partilha de benefícios, tal como a reposição do equilíbrio financeiro, constituem respostas jurídicas para os efeitos da alteração das circunstâncias (de fonte vária) sobre o equilíbrio contratual e recursos jurídicos que visam garantir a preservação da justiça negocial e, em última análise, evitar o enriquecimento ilícito. As PPP nas regiões autónomas Uma última referência nos resta para as parcerias público-privadas celebradas nas regiões autónomas (RA). À semelhança do que sucedeu no continente, também aqui o interesse pelas PPP cresceu a partir do começo do séc. XXI e também aqui o modelo concessivo – sobretudo no sector rodoviário – foi o dominante. Vejamos, em particular, o caso madeirense. A experiência iniciou-se ainda em finais do séc. XX, com a criação da VIALITORAL – Concessões Rodoviárias da Madeira, S.A. encarregue da concessão do troço rodoviário da VR1 (ER 101) entre a Ribeira Brava e Machico, e depois com a criação, em 2004, da VIAEXPRESSO, S.A., uma concessionária de serviço público responsável pela gestão, exploração e conservação das vias expresso regionais, em regime SCUT, por um período de 25 anos. Mais tarde, em 2008, viria a ser criada uma outra empresa, a VIAMADEIRA, S.A., cujo objetivo seria também o de assumir a concessão de vias rodoviárias construídas ou a construir naquele território. Até à sua dissolução em 2011 (coincidente grosso modo com a celebração do memorando da Troika), diversos contratos foram adjudicados à mesma empresa. Assim, segundo informação fornecida pelo Tribunal de Contas no seu Relatório de Auditoria n.º 14/2012-FS/SRMTC, de novembro de 2012, a concessão à VIAMADEIRA, S.A. abrangeu a exploração, conservação e manutenção dos troços de estradas regionais abaixo descritos, em regime de exclusivo, sem cobrança direta aos utilizadores (SCUT): VE1 – Ribeira de São Jorge-Arco de São Jorge; VE1 – Arco de São Jorge-Boaventura; VE1 – Boaventura-São Vicente; VE8 – Vasco Gil-Fundoa, à cota 500; VR2 – Câmara de Lobos-Estreito de Câmara de Lobos; VE3 – Fajã da Ovelha-Ponta do Pargo; VE3 – Variante da Madalena do Mar. De acordo com a indicação constante na p. 36 do mesmo Relatório, “em termos globais, até 30 de novembro de 2011, o envolvimento financeiro da RAM rondava os 309 milhões de euros, dos quais 253,5 milhões de euros respeitantes às empreitadas de construção dos troços e 40 milhões de euros respeitantes a juros de mora”. De resto, os efeitos das concessões sobre o erário regional continuam a fazer-se sentir, mesmo em relação àquelas duas empresas iniciais. Em agosto de 2015, o Governo regional anunciou a decisão de assumir encargos orçamentais no valor de 158.700.000 euros relativos à regularização de dívida com as empresas concessionárias de rede viária VIAEXPRESSO e VIALITORAL. Esta medida é ainda o resultado de um processo de renegociação das PPP, imposto pelo Plano de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) do arquipélago e celebrado na sequência do Memorando da Troika.   Nazaré da Costa Cabral (atualizado a 01.01.2017)  

Direito e Política Economia e Finanças

cem – construindo o êxito em matemática

No final da déc. de 90 do séc. XX, a Associação de Professores de Matemática (APM) realizou um estudo, Matemática 2001 – Diagnóstico e Recomendações sobre o Ensino e Aprendizagem da Matemática, “com o propósito de elaborar um diagnóstico e um conjunto de recomendações sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática no nosso país” (ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA, 1998, 1). Este estudo tinha a preocupação de contribuir para a melhoria do ensino da matemática no início do séc. XXI. Dele emergiram recomendações específicas para uma reorganização curricular, repensando as finalidades do ensino da disciplina para as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula e para a formação de professores, entre outras. Em 2001, seguindo as recomendações advindas do estudo supracitado, o Ministério da Educação lançou o Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais, definindo as aptidões fundamentais que um aluno deveria ter desenvolvido no final de cada ciclo (1.º, 2.º e 3.º ciclos). Esta finalidade do ensino da matemática implicava mudanças nas práticas dos professores. Visando ir ao encontro das necessidades de formação para implementar tais mudanças, realizou-se na Madeira uma formação para professores de matemática. Em 2005, no âmbito do Plano de Ação para a Matemática, iniciou-se em todo o país uma formação de professores que teve como propósito melhorar a preparação para uma mais profícua implementação do novo programa da disciplina, então em experimentação, e que veio a ser homologado em 2007. Esta formação decorreu entre 2005 e 2011 e alcançou milhares de professores. O projeto CEM O CEM – Construindo o Êxito em Matemática é um projeto de formação contínua de professores de matemática do ensino básico que teve início no ano letivo 2006-2007, no âmbito do Plano Regional de Ação para a Matemática, e que conta com o apoio da referida Direção Regional e da Universidade da Madeira (UMa). Com uma visão ampla do que é a aprendizagem no geral e a aprendizagem da matemática em especial, foram adotadas três teorias sociais de aprendizagem que seriam o suporte teórico de toda a conceção e implementação do projeto. A teoria da aprendizagem situada, que vê a aprendizagem como participação, defende que, para aprender, as pessoas têm de se empenhar conjuntamente, sendo igualmente necessário que participem nas práticas e tenham uma meta a alcançar. Outra das teorias que sustentam o projeto é a teoria da atividade, que entende a aprendizagem como transformação, seja das práticas em que as pessoas (professores e alunos) se envolvem, seja das pessoas que aprendem (professores e alunos). O terceiro pilar teórico do projeto é a educação matemática crítica, que discute a aprendizagem como ação dialógica, defendendo que para aprender é preciso existir intencionalidade por parte de quem aprende, o que envolve ação e reflexão sobre essa ação. A partir destas três ferramentas teóricas, idealizou-se um projeto com cenários de aprendizagem para os professores e para os alunos. O projeto criado visou melhorar as aprendizagens e desenvolver as competências matemáticas nos alunos, trabalhando com os professores do ensino básico da Região Autónoma da Madeira (RAM) com os seguintes objetivos: a) promover um aprofundamento dos conhecimentos matemáticos e didáticos dos professores; b) favorecer a realização de experiências de desenvolvimento curricular que contemplem a planificação e a implementação de aulas, e posterior reflexão; c) promover o trabalho cooperativo entre docentes (intra e inter escolas). Com estes objetivos, foi promovida uma formação que teve em conta os conhecimentos matemático, didático e curricular, de acordo com os conteúdos matemáticos a abordar, e procurando atender às necessidades e solicitações dos professores. A realização de experiências de desenvolvimento curricular contemplou a planificação de aulas, a sua condução e posterior reflexão por parte dos professores envolvidos, apoiados pelos pares e pelas formadoras que integravam a equipa do projeto. No ano letivo de 2006-2007, iniciou-se o projeto CEM para professores do 3.º ano do 1.º ciclo. Cada equipa de formação era constituída por uma professora do 1º ciclo e por uma professora de matemática do 3.º ciclo e do secundário. Esta exigência prendeu-se com a procura de assegurar que tanto o conhecimento matemático quanto o didático e curricular estavam salvaguardados. Metodologia de trabalho do projeto CEM As equipas de professores destacados pela DRE prepararam a formação construindo propostas de trabalho adequadas ao tipo pretendido e criaram materiais visando o trabalho dos alunos na sala de aula e considerando a sua adequação a uma metodologia de atuação onde o discente é o elemento central do seu processo de aprendizagem. Quinzenalmente, as equipas de formação reuniam com os docentes, organizados em pequenos grupos (de não mais de 12), apresentavam e discutiam com os professores em formação as propostas de trabalho e os materiais construídos, refletindo sobre as metodologias de trabalho e as consequências das mesmas para a implementação das propostas. Finalmente, prestavam apoio aos professores, em contexto de sala de aula, na execução das propostas de trabalho construídas e amplamente discutidas nas reuniões. Cada professor envolvido na formação tinha a liberdade de adaptar à(s) sua(s) turma(s) a proposta construída pelo CEM, sendo essa adaptação apresentada e discutida com as equipas de formação. Os cenários de aprendizagem dos professores também tinham momentos de discussão e reflexão conjunta (professor, equipa formadora, restantes professores em formação) acerca da prática pedagógica resultante da implementação das propostas de trabalho na sala de aula. Os formandos tinham ainda de refletir sobre o processo e apresentar ao grupo de trabalho, com base em artigos científicos fornecidos pela equipa de formadores, diversas temáticas, como sejam, a avaliação das aprendizagens matemáticas e a comunicação matemática. Como estratégia complementar, os professores envolvidos no projeto dinamizavam, com o apoio da respetiva equipa formadora, seminários trimestrais nos estabelecimentos de ensino a que pertenciam, como meio de troca e partilha de experiências com os restantes colegas da escola. Dos cenários de aprendizagem criados para os docentes faziam também parte a análise e interpretação (por parte dos professores, apoiados pelas equipas de formação) dos documentos curriculares que foram emergindo ao longo de todos os anos de projeto. Este aspeto do trabalho é bastante apreciado pelos professores. A evolução do CEM Em 2006-2007, 57 professores do 3.º ano de escolaridade aderiram voluntariamente ao projeto. Em 2007-2008, entraram 119 novos professores, também do 3.º ano, e deu-se continuidade ao trabalho realizado com 49 dos docentes que integraram o projeto no ano anterior, na altura lecionando 4.º ano de escolaridade. Em 2008-2009, o projeto funcionou com 106 professores do 4.º ano (dos que tinham entrado para o projeto no ano antecedente) e entraram cerca de 100 novos professores do 3.º ano. Ainda em 2008-2009, foram preparadas propostas para o 1.º ano de escolaridade, disponibilizadas numa plataforma Moodle, introduzida nesse ano letivo como mais um meio de comunicação entre a equipa de formação e os professores em formação. A preparação das propostas para o 1.º ano foi a forma de garantir o elo de ligação aos professores que tinham terminado a formação presencial. No mesmo ano letivo, chegaram ao 2.º ciclo os primeiros alunos do projeto CEM. O CEM, para o 2.º ciclo do ensino básico (CEM2), surgiu como a continuidade natural e desejável a dar ao trabalho realizado por esses alunos no 1.º ciclo do ensino básico (CEB). Aderiram ao projeto 65 professores de matemática que estavam a lecionar ao 5.º ano de escolaridade e entraram para o projeto mais duas equipas de formação, cada uma delas constituída por duas professoras de matemática (uma do 2.º e outra do 3.º ciclo). Em 2009-2010, o projeto CEM (1.º ciclo) funcionou com cerca de 70 professores do 4.º ano. Foram preparadas propostas para o 2.º ano de escolaridade, disponibilizadas na plataforma Moodle. No CEM2, deu-se continuidade ao trabalho realizado no ano anterior com os professores de matemática do 5.º ano que se encontravam já a lecionar ao 6.º ano. Em 2010-2011, chegaram os primeiros alunos do projeto CEM (1.º e 2.º ciclos) ao 3.º ciclo. Assim, como forma de dar continuidade ao trabalho realizado nos ciclos anteriores, o projeto CEM estendeu-se ao 3.º ciclo do ensino básico (CEM3). Os objetivos do CEM3 são, basicamente, semelhantes aos que tínhamos para o 1.º e 2.º ciclos. Neste ano letivo, foi feita a generalização dos novos programas de matemática do ensino básico. Todo o trabalho desenvolvido teve em conta as orientações do novo programa, até então em experimentação. Iniciou-se o CEM3 com 56 professores do 7.º ano de escolaridade e com três formadoras licenciadas em matemática destacadas pela DRE. Entretanto, nesse ano letivo (2010-2011), a DRE quis alargar o projeto a um maior número de professores. Estreou-se assim uma nova modalidade do CEM para o 1.º CEB (CEM1): formação de formadores. As equipas do CEM1 prepararam 30 professores para fazerem formação a outros docentes por toda a RAM. Cada um destes formadores seria responsável por dinamizar a formação de um grupo de 12 professores. Esta modalidade perdeu a componente de trabalho conjunto na sala de aula. Seguiu-se um esquema semelhante para os professores do 5.º ano. 40 docentes das diferentes escolas da RAM receberam formação com a equipa do CEM2 e depois deram-na aos colegas da sua escola que lecionavam ao 5.º ano. Em 2011-2012, foram 48 os professores do 8.º ano que estiveram envolvidos na formação na sua modalidade original, sendo que muitos deles já tinham tido formação no âmbito do projeto CEM3 no ano anterior, quando lecionavam ao 7.º ano. Ao longo deste ano letivo, 19 professores do 1.º CEB receberam formação e replicaram-na a grupos de 12 professores. Também 33 professores do 6.º ano receberam formação e dinamizaram-na nas suas escolas para os colegas que lecionavam no mesmo ano de escolaridade. Em 2012-2013, o projeto CEM3 atingiu o último ano de escolaridade do 3.º ciclo, trabalhando na sua modalidade original (com acompanhamento na sala de aula). Foram 60 os professores do 9.º ano que frequentaram a formação. Para esse ano letivo (2012-2013), a DRE propôs que se adotasse uma metodologia semelhante à dos 1.º e 2.º ciclos para os 7.º e 8.º anos. Ou seja, professores dos 7.º e 8.º anos indicados pelas próprias escolas fariam formação com as equipas do CEM3 e depois dinamizariam a mesma formação nos seus estabelecimentos de ensino para os colegas que lecionavam ao 7.º ou 8.º ano, respetivamente. Mas esta formação para os 7.º e 8.º anos não teve o sucesso esperado, nomeadamente, devido à obrigatoriedade da mesma e à falta de critérios adequados para a seleção dos professores que iriam receber a formação com as equipas do CEM3 e replicá-la nas escolas. Em relação ao 1.º CEB, nesse ano, fez-se formação para todos professores da RAM que se encontravam a lecionar ao 4.º ano de escolaridade: 153 frequentaram essa formação. Note-se que muitos destes docentes já tinham frequentado o projeto CEM na sua modalidade original e, portanto, conheciam muito bem as metodologias de trabalho em questão. Este aspeto foi uma mais-valia para a formação e refletiu-se na profundidade das reflexões elaboradas pelos professores, quer sobre as propostas apresentadas, quer sobre a implementação das mesmas na sala de aula, e também no aproveitamento dos alunos. No que concerne ao 2.º CEB, no mesmo ano letivo, 26 professores do 5.º ano e 27 do 6.º ano participaram na formação. Muitos já tinham frequentado o CEM2 na sua modalidade original. Em 2013-2014, estando a DRE muito agradada com os resultados dos exames nacionais de matemática do ano anterior, solicitou novamente formação para todos os professores do 4.º ano da RAM e para os professores do 1.º e do 3.º (anos em que o novo programa de matemática, definido em 2013, estava a ser implementado). Iniciou-se com os professores destes 1.º e 3.º anos uma nova modalidade do CEM e apostou-se no b-learning, uma vez que muitos destes professores já tinham participado no projeto, numa das outras modalidades. No 2.º e 3.º ciclo, a formação foi para os professores que lecionavam aos 5.º e 7.º anos, respetivamente, uma vez que eram anos de implementação do novo programa de matemática (2013), como se disse. No 7.º ano, na modalidade original e no 5.º, sem acompanhamento na sala de aula. Os números do CEM  Ao longo destas linhas foi indicado o número de professores que participaram na formação do CEM nos três níveis de ensino. Quanto aos discentes, cada professor que participou no CEM tinha mais do que uma turma e terá trabalhado com uma metodologia semelhante nas várias turmas que tinha e pelas quais foi passando ao longo dos anos pós-projeto CEM. Não se consideram esses valores no quadro da fig. 1, mas somente o número de alunos no ano e turma com que o professor participou no projeto. Muitos destes discentes foram “alunos do CEM” durante diversos anos e ciclos de escolaridade. Também vários professores dos diferentes ciclos participaram no CEM durante vários anos. Ano letivo N.º de professores por ciclo N.º de alunos por ciclo 1.º  2.º 3.º 1.º 2.º 3.º 2006-2007 57 - - 1140 - - 2007-2008 168 - - 3360 - - 2008-2009 206 65 - 4012 1625 - 2009-2010 70 31 - 140 775 - 2010-2011 15 40 56 1920 1000 1046 2011-2012 19 33 48 2400 825 772 2012-2013 153 53 113 3060 1300 2418 2013-2014 235 36 29 4700 900 658 Fig. 1 – Quadro com o número de docentes e discentes que participaram no projeto CEM entre os anos letivos de 2006-2007 e 2013-2014. Os resultados do projeto CEM Os resultados obtidos são, em termos gerais, semelhantes para o CEM1 e para os CEM2 e CEM3. Podemos avaliar o projeto tendo em conta: as aprendizagens matemáticas dos alunos e as transformações nas práticas dos professores. Para avaliar as aprendizagens matemáticas dos alunos, temos disponíveis os seguintes elementos: resultados das provas de aferição e dos exames nacionais; observação do trabalho dos alunos aquando da participação das equipas de formação nas aulas dos professores em formação; partilha feita pelos professores nas reuniões quinzenais sobre o desempenho dos alunos nas aulas; inquéritos realizados aos alunos; portefólios elaborados pelos professores; múltiplas teses de mestrado realizadas na UMa. No que diz respeito aos resultados das provas de aferição dos alunos do projeto CEM1, CEM2 e CEM3, podemos constatar, ao longo dos anos, que estes são ligeiramente melhores do que os resultados globais dos alunos da RAM. A grande diferença está na ausência da classificação mais baixa (nível E) nos alunos do projeto e de uma percentagem maior de alunos com classificação superior (nível C). No ano 2012-2013, a média dos resultados dos exames nacionais dos alunos da RAM foi superior à média dos resultados dos exames nacionais dos alunos de Portugal continental. Da observação direta do trabalho dos alunos, denota-se aprendizagens significativas ao nível dos conteúdos matemáticos, maior interesse e empenho para com a aprendizagem da matemática, mudança de atitude em relação a esta disciplina, mais competência na resolução de problemas matemáticos e utilização da matemática de forma crítica. Os professores que recebem “os alunos do CEM” referem que estes aprenderam a discutir ideias matemáticas e a comunicar matematicamente, quer por escrito, quer oralmente; têm um forte poder de argumentação; sabem trabalhar cooperativamente, com materiais manipulativos e com software informático, mantendo uma postura crítica face à aprendizagem da matemática; têm muita facilidade em discutir estratégias e procedimentos, bem como em fundamentar as suas opiniões. Estes resultados são também corroborados pelos autores das várias teses e relatórios de mestrado em ensino da matemática no 3.º CEB e no secundário elaboradas na UMa, por professores que frequentaram o CEM. Para avaliar as transformações nas práticas dos professores, dispomos dos seguintes meios: reuniões quinzenais, idas às escolas, reflexões; planificação e execução das aulas, escolha dos materiais e seleção de estratégias; portefólios elaborados pelos docentes; inquéritos realizados aos mesmos; e a dissertação de doutoramento da Eva Gouveia. Da análise de todos estes instrumentos de avaliação podemos afirmar que houve mudanças ao nível dos conhecimentos científicos e didáticos dos professores envolvidos no projeto, visíveis através de um maior rigor científico-matemático e de uma maior necessidade de aprofundamento dos conhecimentos matemáticos. Houve também mudanças no que diz respeito à planificação e condução das aulas, bem como à reflexão que passaram a fazer sobre as aulas participadas. As planificações tornaram-se mais sistematizadas e fundamentadas; as aulas, menos expositivas e mais centradas no aluno; os conteúdos matemáticos, tratados com maior rigor científico; os professores, mais críticos em relação ao seu desempenho. No geral, ao final de um ano de projeto, a prática pedagógica dos professores envolvidos no mesmo sofreu transformações, quer na diversificação de estratégias, quer na crescente inclusão de materiais manipulativos nas suas planificações e nas suas práticas, bem como na segurança com que passaram a trabalhar a matemática. No que diz respeito ao trabalho cooperativo entre os docentes, houve alguns casos de sucesso, mas, de um modo geral, os professores ainda resistem ao trabalho cooperativo intra e inter escolas. As formadoras do projeto As formadoras do CEM são uma parte fundamental do projeto. Para que tudo decorra da melhor forma possível, quando em contacto direto com os professores em formação, é necessário um forte trabalho de bastidores que também merece ser destacado. Semanalmente, houve reuniões de trabalho entre as formadoras do projeto e a sua coordenadora. Foi nessas reuniões que se definiram ou redefiniram estratégias de trabalho, se discutiram as propostas apresentadas e debatidas com e pelos professores, e se consideraram artigos científicos sobre a aprendizagem da matemática, a avaliação das aprendizagens matemáticas, a utilização de materiais manipuláveis e softwares educativos e applets na aula de matemática, entre outros.   Elsa Fernandes (atualizado a 29.12.2016) 

Educação História da Educação

tetos de alfarge

Os tetos de alfarge ou de laçaria existentes na RAM constituem uma incontornável persistência do que terá sido uma rara e inovadora expressão artística de âmbito arquitetónico com forte componente estrutural experimentada em Portugal. O seu tempo áureo estará de forma muito particular ligado ao curto reinado de D. Manuel I (1496-1521), e a sua permanência enquanto processo construtivo terá superado as questões de estilo, ditado pelo gosto particular deste rei, resistindo inclusivamente ao seu desvanecimento e readaptando-se sem perder a sua identidade tecnológica. Importará, contudo, reter de forma breve os antecedentes que consubstanciaram este ciclo artístico. Desde logo o surgimento, difusão e persistência da cultura islâmica em Portugal continental. No último quartel do séc. XX, esta foi divulgada e contextualizada através do contributo científico da arqueologia, da antropologia e da história, entre outras disciplinas. A sua ligação aos califados da Andaluzia inscreve-a numa faixa territorial do Sul da Península em estreita ligação com o Norte de África e o Médio Oriente, em termos de ancestrais ligações culturais e religiosas, pelo que se perceciona uma vasta unidade sociocultural cujas naturais diferenças são articuladas por fatores de comunicação. Seria com estes territórios que as Ilhas Atlânticas, em particular a Ilha da Madeira, viriam a estabelecer, a partir do séc. XV, uma estreita relação comercial, política e cultural, na senda das ancestrais navegações que ousaram vencer as colunas de Hércules e prospetar as costas Norte e Sul do vasto Atlântico. O início do séc. XV inicia-se praticamente com a conquista cristã de algumas praças do Norte de África por parte dos portugueses, configurando-se uma nova realidade geoestratégica. Neste contexto, as descobertas da Ilha da Madeira e, de seguida, do arquipélago dos Açores favoreceram a construção de uma ideia de expansão, surgindo novos centros geográficos readaptados a entrepostos estratégicos. Os estreitos contactos com a cultura islâmica são, a partir de então, uma realidade incontornável, tanto em tempo de paz como de guerra, e mesmo quando em pleno reinado de D. João III (1522-1578) se percebe a impossibilidade de permanência em tantas praças africanas as trocas culturais já se terão consolidado de forma estruturada. O investigador Rui Carita, que dedicou especial atenção aos tetos mudéjares da Madeira, refere três potenciais razões para o facto de existir um tão forte e coeso núcleo destes tetos na ilha. A primeira relaciona-se com os contactos que teriam tido lugar no espaço continental até à fundação da nacionalidade, com presença de árabes e moçárabes, ou seja, cristãos submetidos à lei islâmica. A segunda liga-se à conquista de pontos estratégicos no Norte de África nos inícios do séc. XV, cuja cultura elegante e refinada observada nos palácios e casas nobres teria encantado alguns portugueses. A terceira relaciona-se com a subida ao trono de D. Manuel I, duque de Beja, que praticamente impôs o desenvolvimento e intensificação deste tipo de gosto de tradição islâmica a todo o país. Existem registos da admiração dos portugueses aquando da sua entrada nas residências de Ceuta, descrevendo Gomes Eanes de Azurara, cronista-mor, a perplexidade dos portugueses perante as “grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de desvairadas cores, e os tetos forrados de olival, com formosas açoteias cercadas de mármores muito alvos e polidos”. Acrescenta o cronista: “nós outros mesquinhos, que não temos outro repouso senão pobres casas que, em comparação destas, querem parecer choças de porcos.” (CARITA e CARDOSO, 1983, 23). O Arqt. Hélder Carita, na sua análise espaciotemporal de enquadramento da arquitetura portuguesa a propósito da Casa dos Bicos, sublinha a importância que os tetos de alfarge, conjuntamente com os azulejos, terão tido na distinção desta arquitetura quinhentista. Acompanhamos esta análise e interrogamo-nos se nesse período histórico de renovação e reabilitação da “arte” islâmica, agora numa prerrogativa mudéjar, não existiriam ainda vestígios significativos do palácio árabe, bem como de casas contíguas das famílias dominantes que terão sido apropriadas pela nova aristocracia católica sem procederem necessariamente ao seu desmonte. Coloca-se, assim, a questão de como terão sido esses interiores e, sobretudo, como terão enobrecido em função do enriquecimento dos seus proprietários. O processo acumulativo e/ou de ocultação é tradicionalmente uma constante, ao invés da demolição e integral substituição, pelo que consideramos a possibilidade de muitos dos tetos de alfarge terem permanecido até ao terramoto. Até 2015, não se conheciam testemunhos escritos sobre a existência desses tetos anteriores ou posteriores ao terramoto de 1755 e a outras calamidades. Apenas se conhecia a crónica de Fernão Silva, que terá contado com o testemunho do cruzado Osberno, na conquista de Lisboa: “Lanço estas regras ao papel já sob o teto mourisco de uma casa que pertenceu porventura a algum príncipe Sarraceno, ou onde um dia se albergou, recoberta de lhamas doiradas, a filha de qualquer capitão da Kssaba, ninho alto de pedras luminosas, esta hoje alcáçova cristã, onde, desde há horas, canta o imaginário Truão de Guimarães.” (ARAÚJO, 1993, 45). As identidades culturais ter-se-ão desenvolvido e apurado na continuidade de ciclos económicos estáveis, incorporando subtis inovações e mesmo eventuais ruturas que não apagaram necessariamente as anteriores, que persistiram em lentas transformações/adaptações. Os tetos de Alfarge, apesar da rutura cultural que aparentemente terão introduzido nos finais do séc. XV, terão reencontrado em Portugal um novo ciclo após a morte de D. Manuel I, precisamente o de simplificação resultante de um eficaz processo tecnológico a que estão associados. Tal facto será resultado de um certo contraciclo cultural imposto por D. João III, no qual a exuberância dá lugar a uma grande contenção formal, retirando do espaço arquitetónico o esplendor luminoso da arte manuelina e, por inerência, as referências luxuriantes de pendor islâmico/oriental. A historiografia, de um modo geral, não terá aprofundado a forma como a cultura andaluza terá sido influente e integrada na arquitetura portuguesa, talvez por nunca a ter considerado suficientemente relevante para a sua formação, filiando-a apenas na superficialidade decorativa e não na configuração arquitetónica, em particular na identidade espácio-funcional, de que destacamos a arquitetura civil, tanto no continente como nas regiões autónomas da Madeira e Açores. Para melhor nos enquadrarmos neste específico tema, importará desde logo registar o que determina o termo “alfarge”. A sua definição difere significativamente entre Portugal e Espanha. No país vizinho, é praticamente consensual para os investigadores que a palavra se reporta a um teto plano de onde se destacam as vigas transversais planas, por vezes com incisões ou arestas sutadas, sob as quais pousa o tabuado. Entre essas vigas é comum observar-se uma decoração designada de laço. Al-farx, em árabe, significará “cobrir com ornato”. Em Portugal, terá sido Joaquim de Vasconcelos, no Guia de Portugal (1983), quem identificou e caracterizou esses tetos hispano-mouriscos, designando o alfarge numa perspetiva mais abrangente ao associá-lo a outras formas artísticas ditas de alfarge. Contudo, o mais corrente na época era referir-se esses tetos como hispano-mouriscos, de laço ou carpintaria de laçaria em aproximação à designação espanhola. Segundo Joaquim de Vasconcelos o “lavor do alfarge ou almoçarabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a conquista árabe até ao primeiro terço do século XVIII” (VASCONCELOS, 1983, 38). Raul Proença, referindo-se a este autor, propôs: “que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço (em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicutado. A etimologia que se dava à palavra alfarge (...) era al-farash, que alguns traduziam por assoalhado” (PROENÇA, 1983, 38-39). Pedro Dias, na sua obra Arquitetura Mudéjar Portuguesa: Tentativa de Sistematização, incorpora de forma inovadora o mudejarismo na historiografia nacional. A contextualização das diferentes expressões artísticas no ambiente arquitetónico são agora parte integrante do processo e não simples revestimento ou adorno. No caso dos tetos, este autor, tal como Rui Carita, procura salientar a sua relevância na fábrica da arquitetura, revelando inclusivamente o importante carpinteiro da obra-mestra dos Paços de Sintra: “O carpinteiro João Cordeiro era ‘...mestre das ditas obras dos paços nos ditos Serviços e em fazer rosas para a Capela e Estrelas e Rezimbros para a dita Capela.’". Prossegue o autor com uma nota da maior relevância por ter data: "um documento mais antigo, datado de 1450, referente a um crime cometido em Évora por um jovem, alude a que este era bom carpinteiro ‘... de obra de laço e coisas subtis de carpintaria...’, o que a nosso ver, é uma alusão aos tetos mudéjares” (DIAS, 1994, 55). Esta datação revelará sobretudo uma prática conhecida e em uso no período do reinado de D. Manuel I, época em que esta arte atingiu o seu maior esplendor. Dos diversos núcleos que este autor reporta, apoiando-se no trabalho da historiadora Luísa Clode e especialmente na incisiva investigação de Rui Carita, destacamos o Mudéjar Madeirense. Rui Carita procurou identificar os tetos madeirenses numa perspetiva integradora da história da arte no contexto alargado, ou seja, para além do fenómeno regional. Neste sentido, considera que "teremos de filiar o conjunto de tetos mudéjares da Madeira no conjunto geral de trabalhos provenientes da área e dos artifícios de Sevilha, como foi entre nós o caso das importações de azulejos para a Sé, Santa Clara, Santa Cruz”. Dada a qualidade impar dos tetos da Sé, “efetivamente bastante acima de todos os outros exemplares, ainda se poderá avançar com a hipótese de se ter deslocado ao Funchal uma equipa específica para esse trabalho, em princípio, a mando de D. Manuel I e que localmente terá formado e divulgado este tipo de gosto" (CARITA, 1989, 180). Esta possibilidade não só nos parece verosímil como terá pelo menos potenciado o interesse por parte do corpo eclesiástico e da elite local em aceder a tão elaborada e nobre arte. De outro modo, como explicar a profusão destes tetos em igrejas, capelas e casas nobres madeirenses? Também o arquipélago dos Açores acolhe um importante núcleo de tetos de alfarge, muito embora os sucessivos terramotos e tremores de terra tenham destruído a sua grande parte. Importa contudo salientar que consideramos a possibilidade de nos Açores se ter edificado, no período filipino, um segundo ciclo de tetos de Alfarge, reconstruções e construção de novos por via da instalação de famílias castelhanas associadas ao tráfego comercial com a América Latina, situação que terá tido menor importância na Madeira. Do mesmo modo que se dá conta da existência de tetos de alfarge no Continente, anteriores ao período Manuelino, também nos parece plausível ter sucedido o mesmo na Madeira, com a particularidade de se ter estabelecido um roteiro marítimo estratégico com as Praças Africanas. São diversos os testemunhos que dão conta de se terem transportado dessas Praças diversos elementos estruturais e artísticos para Portugal, mas também para a Madeira, e, se os homens da elite portuguesa se deixaram deslumbrar pelo requinte e conforto dos cómodos da aristocracia muçulmana, de que se destacariam os tetos pela sua exuberância e influência nas espacialidades, com alguma probabilidade os mestres e artesãos que trabalharam nesses lugares terão percecionado e, quiçá, aprendido essas técnicas e efeitos artísticos, independentemente da sua condição sociorreligiosa. Cidades como o Funchal e Angra do Heroísmo, entre outras, terão recorrido a técnicos de elevada qualidade e experiência, a título individual ou integrados em contratos integrais de empreitadas de obras reais, da Igreja ou mesmo privadas, da aristocracia local, originando porventura uma continuada prática iniciada no séc. XV. Tais técnicos provavelmente terão origem na Andaluzia, nas Praças Africanas ou nas Ilhas Canárias, e terão sido os primeiros mestres de carpinteiros portugueses da carpintaria de laçaria. O forte núcleo de tetos de alfarge existentes na Madeira, bem como a sua qualidade, sugere que esta arte terá sido muito apreciada durante um largo período de tempo, mesmo depois de, no Continente, já se ter iniciado outro ciclo estético de tetos, o terá permitido a fixação de um número considerável de artífices e respetivos aprendizes. A Sé e a Alfandega distinguem-se precisamente pela magnificência dos tetos de alfarge, com especial relevância para a primeira, de que se destaca o excelente programa pictórico que cobre pranchas de forro, bem como traves, frisos e tirantes. Também no teto do coro alto do Convento de Santa Clara podemos observar uma elaborada pintura, reforçando a tese de que a Madeira terá tido um ciclo de grande erudição na construção de tetos de alfarge. Admitimos que as principais igrejas matrizes construídas ou renovadas neste período terão integrado estes tetos, que seguramente terão procurado distinguir-se entre si, ainda que mantendo a base canónica, principalmente por via da pintura e dos motivos geométricos da carpintaria, alguns notáveis. São exemplos as matrizes da Ponta do Sol, da Calheta e do Loreto. Ter-se-ão perdido o de Santa Cruz e o de Machico, como provavelmente os de outras igrejas desta época. Esta realidade será em tudo semelhante à identidade das capelas públicas e privadas, bem como das que terão sido instituídas por famílias da aristocracia nas comunidades de sua influência, integradas nos solares ou isoladas nas propriedades dos morgados. O seu isolamento e as partilhas conflituosas terão dificultado a sua manutenção, sobretudo a do património integrado e dos tetos de alfarge. As Capelas que mantiveram o teto de alfarge resumem-se à dos Reis Magos, na Calheta, à Capela da Glória, no Campanário, e à de São Paulo, na rua da Carreira, no Funchal. Esta última terá sido mandada construir pelo 1.º capitão donatário em 1426, em madeira, sendo apenas alterada para pedra e cal algumas décadas depois. Este teto de alfarge denota um certo “arcaísmo”, ou seja, a sua expressão revela um inusitado “experimentalismo”, quiçá por via de uma deficiente interpretação das formas, medidas e proporções canónicas. Admitimos estar na presença de um teto executado por uma “interpretação de memória” de alguém com uma prática e um saber insuficientes face ao que esta arte exige, provavelmente um aprendiz. Presumimos que terão existido outras capelas com tetos de alfarge, alguns tardios, que terão introduzido a sua “simplificação”, tal como, em idêntico período e processo, terá ocorrido com a arquitetura tradicional solarenga, de que a capela constituía uma parte indissociável. As denominadas casas de Quinta da tradição madeirense (que antecederam o período da renovação introduzido pelos ingleses no séc. XVIII) constituíram, durante séculos, a expressão da erudição da arquitetura solarenga na região. Salões, câmaras e capelas incorporavam, provavelmente, tetos de linhagem na arte do alfarge. Os pequenos mirantes, nalguns casos, refletiam também a memória do alfarge, como é o caso particular do teto do mirante e da casa de Dona Guiomar, posterior Quinta da Vigia, que foi remontado em 1770, embora já figurasse na planta de Mateus Fernandes de 1567/70. Cidades e Vilas exibiam Capelas como a de São Luís de França, na rua do Bispo no Funchal, e a Capela da Glória, no Campanário (Ribeira Brava), com localizações distintas: uma urbana, de identidade erudita, e outra rural, isolada. Em ambas, podemos observar a “memória” do alfarge na armação simplificada, despojadas de ornamentos geométricos ou de pinturas. Contudo, podemos observar, no caso de São Luís, as incisões do graminho nas traves, bem como a meia-cana no tabuado e sobretudo a passagem do ângulo dos planos inclinados com o “espaço de espera”, de transição, para o plano central. A Capela da Glória será o paradigma de tetos simplificados nesta tipologia, tal como o Solar Welsh (1685) em relação à arquitetura tradicional solarenga. Este pequeno teto apresenta uma armação simplificada, mantendo contudo a proporção dada pelo ângulo dos planos inclinados e, naturalmente, pela transição para o plano central, direito. Curiosamente, e apesar da sua reduzida dimensão, integra cantoneiras com apoios em tudo semelhantes aos que observamos na Ilha do Pico, nos Açores, especialmente o da Casa do Ouvidor, na estrada da Ribeira Seca, em São Roque. Esta “simplificação” dos tetos de alfarge em espaços religiosos surge também em algumas sacristias e/ou espaços de apoio e transição, como será o caso da sacristia do Convento de Santa Clara no Funchal, entre outras de ambos os arquipélagos. Nos Açores, registámos, em diferentes Ilhas, tetos de alfarge implantados em distintos programas tipológicos e em diferentes estados de originalidade e conservação. Contudo, os sucessivos terramotos, de que se destacam o de 1614 e o de 1 de janeiro de 1980, para nomear os mais aparentemente devastadores, terão contribuído para o seu quase total desaparecimento. Este último terá inclusivamente destruído um conjunto de tetos de alfarge que ainda persistiam, apesar de muito alterados, localizados nos grandes edifícios religiosos, como os da Sé de Angra e também dos principais edifícios governamentais, de que é exemplo o Palácio dos Capitães Generais, igualmente em Angra. Mas também conventos e outros edifícios de menor porte, de que destacamos solares, capelas e igrejas paroquiais, tiveram o mesmo infortúnio. Porém, permanecem ainda “memórias” em vários edifícios do núcleo histórico de Angra, destacando-se também um significativo número de tetos de alfarge de média e grande qualidade integrados em alguns dos principais solares da aristocracia terceirense. Destacamos, na Ilha Terceira e na cidade de Angra, as casas das famílias Reis Leite, Pamplona do Couto, Anes do Canto e Cortes Reais, bem como a casa urbana de D. Violante do Canto, posterior Sport Clube, que, com o sismo de 1980, viu o seu último piso derrocar, perdendo-se o teto que teria sido de alfarge, embora o Museu de Angra tivesse recolhido dois escudos de armas de famílias provavelmente com ligações espanholas. Para além destas casas nobres, assinalamos os tetos das casas onde se veio a situar a delegação de turismo. Fora de Angra, registamos o notável teto no solar conhecido como Quinta do Carvão no Caminho de Baixo, datado de 1634, os tetos de pequena dimensão da Quinta da Estrela ou os de quintas dispersas, como a de Santo António e do Espanhol, cuja tipologia de casa quadrada se distingue por ser única. Na Ilha Graciosa, em Santa Cruz, registamos a casa da família Brum do Canto, que, durante as obras de reabilitação, ao se derrubarem os tetos de estuque dos princípios do séc. XX, deixou expostos seis tetos de alfarge praticamente intactos que corresponderão ao modelo generalizado de tetos de alfarge simplificados que se terão vulgarizado nas casas solarengas dos Açores e da Madeira. No piso térreo, no átrio de entrada, o teto é de alfarge de “estrado”, apresentando os barrotes estruturais um conjunto de linhas incisivas e formando uma composição geométrica. Os guarda-pós laterais, ligeiramente inclinados, as meias-canas, que cobrem as juntas do forro, e um friso esculpido no perímetro da parede reforçam o desenho de alfarge. Dos três arquipélagos, serão as Canárias o núcleo mais dominante em termos de tetos de alfarge, quer pela quantidade, quer sobretudo pela diversidade de tipos e execução excecional. A sua forte ligação à Andaluzia através do porto de Sevilha terá sido determinante para o seu surgimento e implementação, pois terá sido de lá que partiu o maior número de arquitetos, mestres e artistas, havendo ainda, porém, a assinalar uma forte ligação à cultura portuguesa e, em particular, à muito apreciada classe profissional dos carpinteiros, nos primórdios do povoamento. Desde praticamente a ocupação das ilhas Canárias que aí se fixaram portugueses, provavelmente os seus primeiros “ocupantes”, para além da misteriosa população local conhecida por Guanches. Já sob domínio castelhano por força do Tratado de Tordesilhas, estes terão continuado a afluir, sendo as profissões de canteiros e carpinteiros as predominantes. Deste facto nos dá conta Maria del Carmen Fraga González em La Arquitetura Mudéjar en Canárias, onde identifica pelo nome e assinala a proveniência e a data da estadia destes profissionais através do respetivo registo notarial. Destacamos, entre um número considerável: “Alvaro Fernández. – Portugués, ‘estante’ en la isla de Tenerife, en 1508 cede, el 17 de octubre de 1508, a su compañero, también lusitano, Diego Alvarez la parte que le corresponde de trabajo y cobro en las casas de Guillén Castellano, en La Laguna [Álvaro Fernández. – Português, ‘fixado’ na ilha de Tenerife, em 1508 cede, a 17 de outubro de 1508, a seu companheiro, também lusitano, Diego Alvarez a parte que lhe corresponde de trabalho e ganho nas casas de Guillén Castellano, em La Laguna]” (FRAGA GONZÁLEZ, 1980, 46). Curiosamente, alguns traços da cultura arquitetónica portuguesa ter-se-ão enraizado neste arquipélago, como deste terão partido para os Açores e a Madeira, fenómeno perfeitamente natural num circuito regional de “torna-viagem” e, consequentemente, “torna-cultura” entre arquipélagos que iam adquirindo especificidades. Maria del Carmen González ilustra estas influências no livro citado, reforçando que existe um tipo de casas nas Canárias que caracteriza como “viviendas urbanas de influência portuguesa”, que “abundaban en Santa Cruz de la Palma en la segunda mitad del siglo XVI [habitações urbanas de influência portuguesa que abundavam em Santa Cruz de la Palma na segunda metade do séc. XVI]” (Id., Ibid., 71). Esta autora refere ainda outras influências dos portugueses, dando o exemplo da construção da porta da antiga sacristia da Paroquial del Realejo Bajo (Tenerife) executada pelos portugueses Duarte Báez e seu filho Simón Gómez, e continua reportando-se a Pérez Embib, que, no seu livro El Mudejarismo en la Arquitetura Portuguesa de la Época Manuelina, assegura: “conjuntos onubense y canário seria la influencia del morisco lusitano, que halla cumplida representación, en este sentido, en la Torre del Castillo de Alvito, la Quinta ‘Sempre Noiva’ en Arraiolos, etc. [conjuntos onubense e canário seria influência do mourisco lusitano, que encontra representação definitiva, neste sentido, na Torre do Castelo de Alvito, na Quinta ‘Sempre Noiva’ de Arraiolos, etc.]” (Id., Ibid., 75). Fica-nos como reflexão que artistas, artífices e arquitetos transitavam entre países, bem como entre novas realidades geográficas que se iniciaram nos arquipélagos atlânticos, para continuarem por outras e longínquas paragens, com especial relevo para o mundo ibero-americano, onde se destacam o Brasil, Cuba, o México, a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Esta realidade vem sobretudo reforçar a tese de que a arte mudéjar é um fenómeno hispânico. Para Enrique Nuere Matauco, dever-se-ão investigar estas ligações: “El estudo de nuestra carpentería debería extenderse a todo lo realizado en América, fundamentalmente por carpinteros salidos de España. También será muy interesante estudar la carpintaría portuguesa, con sus similitudes y discrepancias [O estudo da nossa carpintaria deveria alargar-se a tudo o que foi feito na América, essencialmente por carpinteiros idos de Espanha. Também será muito interessante estudar a carpintaria portuguesa, com as suas semelhanças e discrepâncias]” (NUERE MATAUCO, 2000, 18). O caminho que Portugal traçou no Brasil, em África ou no Oriente não terá, pois, despertado o mesmo interesse que nos territórios hispânicos no que respeita aos tetos de alfarge, mantendo-se, no entanto, em algumas vilas e cidades, parte desta gramática mudéjar associada às carpintarias que atrás reportámos. Como já referimos, a maioria dos tetos de alfarge que identificámos em território português integra-se numa armação simples, abatida à “maneira portuguesa”, provocando um abatimento do ângulo de inclinação e baixando a zona central denominada, em Espanha, almizate (“plano sob as tesouras”). Supomos que esta realidade esteja associada a uma certa simplificação do alfarge em Portugal. Em Espanha, o ângulo de elevação da cobertura parece-nos maior, empinando um pouco mais a respetiva cobertura, em virtude do ângulo estabelecido pelos pares, como se pode verificar no exemplo da Igreja do Convento de São Francisco, em Ayamonte. Estes tetos seguem a tratadística da carpintaria de alfarge espanhola. Em Portugal, o alfarge corrente, associado à casa, parece ter sido assimilado pela proporção dos telhados abatidos portugueses, não se distinguindo de forma evidente dos de origem hispânica. No entanto, importa registar que alguns tetos, nomeadamente de alguns palácios e igrejas portugueses, aparentemente terão seguido regras distintas, aproximando-se de outros de possíveis origens filiadas nas coberturas quase verticais góticas, como as coberturas múltiplas das grandes mesquitas peninsulares ou, ainda, como as coberturas dos palácios compactos, com pátio-claustro, da Andaluzia. Serão casos específicos com essa linhagem os Paços Reais de Coimbra e Sintra e das grandes naves da Sé do Funchal e das Matrizes de Caminha, Ponta do Sol e Calheta, entre outros. De um modo geral, no caso dos solares e pequenos templos, os tetos de alfarge em Portugal, incluindo os da Ilha da Madeira e dos Açores, estarão relacionados com a métrica dos telhados abatidos. Naturalmente que a complexidade de um teto de alfarge, ou de um teto de um telhado de tesouro(a), nada terá de semelhante a uma armação comum. Contudo, se nos abstrairmos da complexidade do alfarge, sobretudo das figuras geométricas decorativas localizadas no núcleo central horizontal (almizate), constatamos que se suprimiram as peças de transição nos quatro ângulos e de descarga para o frechal, razão principal para confirmarmos a simplificação do sistema. Consideramos que estas armações se inscrevem na genealogia da arquitetura tradicional mudéjar portuguesa e que terão na sua filiação múltiplos “contágios” resultantes da continuidade de diversas práticas construtivas de armações comuns. Por vezes, o que verificamos é a separação da armação do telhado, enquanto suporte de telha da armação do teto de alfarge, embora nalguns casos, e inclusivamente no plano geométrico, sejam quase coincidentes, como podemos observar no Palácio de Valeflores, em Santa Iria da Azóia, onde as varas são toscas e o varedo sem forro suporta a telha-vã, enquanto a armação de alfarge apresenta o rigor do cânone tanto nas secções e acabamentos como nas assemblagens dos motivos geométricos. Podemos observar uma situação semelhante na ilha da Madeira, em construções torreadas como a armação do Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, no Caniço, ou a armação quadrangular do teto da pequena Capela do Claustro do Convento de Santa Clara, no Funchal. Numa seleção de exemplos mais eruditos, em termos de tetos de alfarge, anotamos também os mais simples, nos quais a armação do teto e do telhado é coincidente, como o da Capela dos Reis Magos, no Estreito da Calheta, o do Salão Nobre da Misericórdia de Santa Cruz ou ainda o da Capela da Glória no Campanário; e, no caso das casas, assinalamos o teto simplificado do Solar Welsh, na Madeira, e a Casa Brum do Canto, na Graciosa, nos Açores. Retomando os tetos de alfarge em Portugal, diríamos que estes terão evoluído para uma simplificação dos processos construtivos relacionados com a complexidade dos motivos geométricos, o que se denomina por laçaria, em associação com as armações de suporte do telhado. As nossas observações levam-nos a supor que as armações dos tetos de alfarge se terão assim simplificado, sem perder, contudo, as regras de proporção, ou seja, a base do “cânone” imposto pelo processo construtivo e tecnológico e pela “memória” do geometrismo dado pela laçaria, enquanto métrica construtiva, resumindo-se agora ao “troço de espera” entre o plano inclinado (pano) e o plano horizontal (almizate). Os tetos comuns da arquitetura tradicional madeirense que observámos, principalmente no âmbito da arquitetura tradicional, mas também erudita, são compostos por uma sucessão de vigas de secção quadrangular denominados correntemente “varas” (no alfarge, serão os nodilhos), dispostas a partir do frechal até à linha e sobre as quais se aplica o forro, completam-se com os tirantes altos, ou tesouras (no alfarge, serão os pares), e os triângulos, ou tirantes de canto (no alfarge, serão os quadrais). Simples incisões de linhas retas nos bordos das varas dos tirantes/tesouras e nos tirantes de canto serão ainda a memória da laçaria (linhas obtidas através do graminho). O guarda-pó entre varas é constituído por tábuas inclinadas e integradas por rasgos verticais nas faces laterais das varas. Junto ao frechal, ligeiramente elevado para formar uma linha de composição, instala-se o friso de madeira trabalhado em cordão ou simples, definindo este o fim da parede e o início do teto. Por vezes, e em alternativa, recorre-se a uma ripa de meia-cana pregada às juntas do forro entre as varas de construções mais correntes, quer urbanas quer rurais. Todos estes elementos são as “memórias” que permaneceram do alfarge “canónico”, numa nova simplificada identidade filiada nos padrões ancestrais. Alguns destes procedimentos de simplificação já teriam, em parte, sido subtilmente integrados em tetos completos que terão iniciado a transição para a simplificação através de uma “matriz portuguesa”. Entre diversos exemplos, destacamos o teto de alfarge do coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal. A carpintaria desenvolvida a partir dos tetos de alfarge, nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde se terá efetuado um último estágio de simplificação, ter-se-á “propagado” nas arquiteturas das cidades portuguesas do espaço ultramarino. A sua influência terá perdurado durante séculos, não só na sua expressão erudita, mas sobretudo no domínio completo de uma arte que também produzia mobiliário, portas, janelas, varandas, proteções de vãos conventuais em reixa e muxarabis. Uma continuada linhagem de famílias de carpinteiros terá assegurado o saber coevo que se escalonava em aprendiz, oficial e mestre, categorias que chegaram ainda ao séc. XX. Esta terá sido uma das profissões mais valorizadas ao longo dos séculos. A ilha da Madeira, detentora de uma densa floresta rica em madeiras de todo o tipo, cedo terá beneficiado de licenças régias, atribuídas pelos capitães donatários para a construção de serras de água, realidade também comum aos Açores. Nascia assim uma outra linhagem de artesãos, os serradores, que forneciam a madeira em prancha ou em viga, segundo medidas-padrão controladas pelo grémio dos carpinteiros e confirmadas administrativamente por posturas municipais com os respetivos «livros dos regimentos oficiais mecânicos». As medidas eram então em palmos, pés, varas, tosas, provavelmente em tudo idênticas às praticadas no arquipélago das Canárias, que acolheu diversos carpinteiros provenientes da ilha da Madeira, estabelecendo uma relação inter-arquipélagos. Observamos a constância das secções e dos comprimentos das madeiras que compõem as armações, denotando uma assinalável regularidade própria de um fornecimento padronizado de madeiramentos, que, talvez por conveniência de transporte e otimização de paus, no corte na floresta e na serração, se mantinham dentro de medidas padrão para todos os componentes de uma armação mas também por ser mais fácil comercializar e tributar um produto padronizado. Uma das particularidades das armações de alfarge é precisamente a regularidade e rigor das peças que formam um intrincado e eficaz sistema estrutural. A qualidade tecnológica constitui, para além da expressão artística, a sua identidade, a sua distinção, sobretudo por possibilitar superar grandes vãos, mantendo secções esbeltas dos madeiramentos. Desafortunadamente, as casas madeirenses que incorporaram tetos de alfarge terão sido as que menos resistiram ao passar dos séculos. Chegaram-nos fotografias do Solar de Dona Mécia e da casa nobre dos Herédia, e pouco mais, mas seguramente muitos outros terão acolhido salas e câmaras de solares e mesmo de pequenas casas solarengas, muitas delas denotando armações simplificadas de alfarge. António Aragão revelou a nobreza das casas das famílias nobres, nacionais e estrangeiras, que se estabeleceram na Rua dos Mercadores e que terão incorporado nos seus confortáveis aposentos a expressão cultural das famílias originárias de Génova, da Flandres, da Andaluzia e das vizinhas Canárias, entre outras. A casa conhecida como de Colombo, construída ainda no séc. XV, poderá ter sido um dos exemplos. Pela qualidade dos seus vãos de cantaria, denota ter sido uma casa de grande riqueza. As suas câmaras terão provavelmente tido um ou mais salões com armação de alfarge integrados, tal como outros motivos decorativos associados ao mudejarismo, como os tradicionais azulejos hispano-árabes e os pavimentos de tijoleira. Para além das casas urbanas, registamos também algumas casas nobres rurais, como os Solares do Esmeraldo, na Ponta do Sol, ou a Quinta do Morgado, no Arco da Calheta, bem como algumas casas solarengas da nobreza de S. Jorge, na costa Norte, que terão tido provavelmente alguns tetos que se filiavam nas técnicas construtivas dos tetos de alfarge, ainda que com uma grande probabilidade de serem simplificados. Nesse tempo histórico, quase todas estas casas teriam tido, direta ou indiretamente, uma intensa ligação ao comércio marítimo, estabelecendo-se, nesse sentido, relações culturais e político-económicas entre os arquipélagos atlânticos e a Andaluzia, bem como outros territórios. Formou-se, assim, uma comunidade recetora e difusora que, de Portugal e Espanha e respetivos arquipélagos atlânticos, alargou a sua geografia de influência para os territórios ibero-americanos. Através da sua observação in situ, e numa análise comparativa, compreenderemos melhor o fenómeno da sua dispersão e permanência nesses territórios, bem como o seu continuado trânsito em torna-viagem e respetivas transferências. Ao contrário das Ilhas Canárias e de uma parte significativa do mundo hispânico na América, em que esses tetos não só permaneceram como se manteve a arte e a técnica da sua construção durante séculos, na ilha da Madeira tal não ocorreu. A renovação do gosto e a perda da tradição desta carpintaria específica fizeram com que se tivesse perdido grande parte destes tetos. Nalguns casos, o fogo terá sido a sua principal causa de desaparecimento. Desse facto nos dá conta António Aragão, ao relatar o grande fogo ocorrido em 26 de julho de 1593, que terá consumido, em 4 h, 154 casas: “moradas de casas, as melhores e mais principais de toda a cidade” (ARAGÃO, 1979, 175). Infelizmente, assim sucedeu, em pleno séc. XX (1957), com o Solar de Dona Mécia, datado no lintel da porta exterior de 1606, mas aparecendo já na planta de 1567/70, pelo que deve ter sido levantado, dadas as armas que ostenta, por João de Ornelas de Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal. Um outro solar, este de grandes dimensões, terá igualmente perdido os seus tetos, com grande probabilidade, no séc. XX. Reportamo-nos ao Solar da Quinta da Lombada na Ponta do Sol, residência do fidalgo flamengo João Esmeraldo, que o ampliou e enobreceu em 1493, após aquisição a Rui Gonçalves da Câmara, filho do 1.º capitão donatário Gonçalves Zarco, e que, seguramente, teria tido tetos de alfarge. João Esmeraldo construiu quase em simultâneo, mais precisamente em 1495, uma casa no Funchal, a que já nos reportámos como sendo a Casa de Colombo, que foi demolida. O seu construtor foi identificado pelo historiador António Aragão (ARAGÃO, 1979, 114) como tendo sido Garcia Gomes, pedreiro. A sua qualidade arquitetónica e a condição social do seu proprietário levam-nos à possibilidade de aquela ter tido teto(s) de alfarge, tal como os teriam a do mercador castelhano João de Valdavesso e a de Francisco de Salamanca, ambas no Funchal, que eram, segundo António Aragão, “ricas casas e aposentos” (Id., Ibid., 114). Outras causas estarão relacionadas com a perda destas casas, em particular a grande mobilidade da sociedade madeirense e, sobretudo, os grandes aluviões, sendo de especial gravidade o que ocorreu em 1803. Estas calamidades cíclicas ocorreram em praticamente todas as cidades ribeirinhas, desde logo no Funchal, mas também em Santa Cruz, Machico, Ponta do Sol, Calheta ou mesmo São Jorge, e noutras localidades de menor dimensão na costa Norte. Estas levaram seguramente para o mar partes significativas destas urbanidades e com elas edifícios religiosos e da nobreza que ocupavam os melhores terrenos planos. Como exemplo, entre tantos, referimos o claustro e respetivas dependências do Convento de São Bernardinho em Câmara de Lobos. Registamos ainda o forte tremor de terra de 1748, que danificou muitas igrejas e terá destruído muitas construções. Parece-nos possível que esta arte se tenha prolongado durante todo o séc. XVI em ambos os arquipélagos (Madeira e Açores) e, apesar das calamidades e do abandono da sua reparação e conservação, um novo incremento terá ocorrido durante o séc. XVII devido, provavelmente, à ocupação filipina, particularmente nos Açores. Contudo, consideramos que as sucessivas simplificações se terão iniciado ainda em finais do séc. XVI, mantendo-se assim os indispensáveis conhecimentos para o seu (hipotético) recrudescimento no referido período filipino, com recurso a mestres locais, e reintroduzindo-se a arte com o reforço de artífices recrutados nas colónias espanholas e/ou nas Canárias, onde tal arte se terá mantido coerente até praticamente aos finais do séc. XIX. Registamos ainda a inesperada (re)construção de um conjunto de tetos de alfarge no Solar dos Herédia, erigido nos finais do século XVIII na Vila da Ribeira Brava, na Madeira, posteriores Paços do Concelho. Esta família, há muito radicada na região, provavelmente reconstruiu este solar recuperando os tetos de uma anterior casa. Fica, no entanto, a dúvida sobre se estes tetos serão integralmente originais do séc. XVI, altura em que esta família de origem castelhana se radicou na Madeira, e, naturalmente, se os seus autores teriam sido igualmente oriundos de Castela, tal como seria interessante saber se teriam sido os mesmos a integrarem uma potencial campanha de obras de melhoramentos da casa de Dona Mécia, no Funchal. A coerência das armações simples à vista que observámos na arquitetura tradicional rural e urbana (aldeias e vilas) em todo o território português, com particular incidência nas Ilhas Atlânticas, parece-nos resultar de uma prática ancestral, aplicada sobretudo nas casas de “transição” social, ou de tipologia de sobrado, ainda que por vezes de piso térreo, mas de “volume expressivo”. Parte significativa da identidade tipológica das casas a que nos reportamos será consequência da tradição do alfarge e da identidade mudéjar associada, introduzida no séc. XVI em Portugal, ainda que esta, na realidade, já se tivesse enraizado discretamente nos séculos anteriores.   Victor Mestre (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património

empresas locais

A evolução que se verificou no quadro jurídico das empresas públicas portuguesas, desde o período de nacionalizações que se seguiu à Revolução de 1974 até ao processo (re)privatizador que teve lugar a partir da déc. de 90 do séc. XX, traduz claramente a evolução política e económica que ocorreu neste período. O regime jurídico inicial constava do dec.-lei n.º 260/76, de 8 de abril, e era, como facilmente se compreende, um regime herdeiro do momento revolucionário que apontava para caminhos de estatização da economia, desde logo pela presença do Estado na maior parte dos sectores económicos, e designadamente dos sectores-chave. Na sequência das nacionalizações levadas a cabo nos anos subsequentes à Revolução de 25 de abril de 1974, a necessidade foi então a de criar um regime que desse respaldo ao novo figurino jurídico entretanto forjado, o de empresas públicas de raiz estatutária, claramente apartadas do modelo societário aplicável às empresas privadas. O modelo era assim de carácter fortemente jus-publicístico, atestando a presença forte e intensa do Estado na definição das orientações estratégicas, mas também na própria gestão dessas empresas, e a pretendida subordinação do poder económico ao poder político. Tratava-se de empresas públicas políticas. Relativamente ao sector público local, pelo contrário, o mundo empresarial desconheceu um regime próprio durante os primeiros anos do sistema democrático que se seguiu ao 25 de Abril, e ele só viria a ser objeto de atenção particular com a aprovação da lei n.º 58/98, de 18 de agosto, que estabeleceu o primeiro regime jurídico aplicável a empresas públicas municipais. Como bem se vê, os tempos eram já outros. O movimento de reprivatização da economia estava em marcha e apontavam-se alternativas com vista ao reforço da lógica privatística na gestão pública em geral. A influência que se fazia sentir era já então a do modelo liberal, anglo-saxónico, da new public management. Por isso, de certa forma, o dec.-lei n.º 58/98 acabaria por ser premonitório, lançando as bases para a reforma do regime do sector empresarial do Estado que, no ano seguinte, viria a ser concretizada com a aprovação do dec.-lei n.º 558/99, de 17 de dezembro, alterado e republicado pelo dec.-lei n.º 300/2007, de 23 de agosto. Este último diploma foi muito inovador e teve, desde logo, como principal intuito dar a devida cobertura legal a empresas públicas, que, sendo ainda públicas, haviam sido transformadas em sociedades anónimas e aguardavam privatização do capital, e que, como tal, não conheciam previsão no quadro jurídico anterior (o de 1976). Assim, de acordo com este mesmo diploma, as empresas públicas passaram a poder ser de dois tipos: (i) sociedades comerciais nas quais o Estado ou outras entidades públicas exerçam ou possam exercer uma influência dominante, em virtude de detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto ou do direito a designar ou a destituir a maioria dos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização; (ii) entidades públicas empresariais (EPE), correspondentes às “velhas” empresas públicas saídas da Revolução. Para além destas, o Sector Público Empresarial (SPE) integraria também as empresas participadas, consideradas estas entidades em que o Estado ou qualquer entidade pública estadual de carácter administrativo ou empresarial detivesse uma participação permanente no capital, ou seja, uma participação desprovida de objetivos exclusivamente financeiros, presumindo-se haver essa natureza permanente quando o capital público representasse uma percentagem superior a 10 % da totalidade do capital social. O dec.-lei n.º 558/99 anunciava assim várias mudanças. Em primeiro lugar, a transformação sugerida de género – do género estatutário para o género societário –, como pré-condição necessária de alienação do capital social junto de privados. Em segundo lugar, a afirmação do regime societário como regime-regra aplicável às empresas públicas, sem prejuízo da manutenção de elementos jus-publicísticos nesse mesmo regime. Por fim, por causa do que antecede, a erosão tendencial e progressiva do universo público empresarial. O regime aplicável às empresas públicas, ainda que feito predominantemente de regras de natureza privatística (v.g., direito aplicável às sociedades comerciais), contemplava, como afirmámos antes, um conjunto importante de regras de procedentes do direito público (e, em especial do direito administrativo), apartadas claramente do direito comercial. Destas, destacavam-se as regras relativas às orientações estratégicas definidas pelo Conselho de Ministros (e suscetíveis de contratualização) e, bem assim, as que impunham deveres de informação ao ministro das Finanças e definiam os poderes deste, de acompanhamento e fiscalização daquelas empresas. A lei n.º 58/98 tinha, como dissemos, potenciado e pré-anunciado estas mesmas alterações. No entanto, o seu escopo e utilidade foram, como não poderiam deixar de ser, mais limitados. Tratava-se, acima de tudo, de definir o quadro jurídico de atuação das empresas municipais, cuja previsão genérica já constava, de resto, das primeiras leis das autarquias locais, a lei n.º 79/77, de 25 de outubro, e o dec.-lei n.º 100/84, de 29 de março. Os aspetos principais do novo regime de 1998 foram, tal como referido por João Pacheco Amorim, os seguintes: (i) a criação das empresas municipais por deliberação da assembleia municipal, sob proposta da Câmara e constituição por escritura pública; (ii) a circunscrição do objeto social à prossecução de fins de interesse público e sempre dentro das atribuições das autarquias em causa; (iii) a sujeição da respetiva atividade ao direito privado; (iv) a delimitação do exercício de poderes de autoridade e sempre por delegação; (v) a sujeição das empresas públicas e de capitais públicos a fortes poderes de tutela e de superintendência dos executivos autárquicos, com destaque para o poder de aprovação dos preços e tarifas; (vi) sujeição aos poderes de controlo financeiro sucessivo do Tribunal de Contas; (vii) a fixação de limites para a contração, pelos municípios, de empréstimos de médio e de longo prazos (AMORIM, 2000, 49-51). Mas, verdadeiramente, o acolhimento da distinção, traçada entretanto no regime jurídico do SPE (o já referido dec.-lei n.º 558/99), entre empresas públicas de natureza estatutária e empresas de natureza societária só viria a fazer-se plenamente, no caso das empresas municipais, anos mais tarde, com a aprovação da lei n.º 53-F/2006, de 29 de dezembro. Esta divisão, atendendo ao critério do género ou natureza, e a outra, em função do critério do alcance territorial, entre empresas municipais, intermunicipais e metropolitanas, foram de resto duas das maiores novidades desta lei em face da anterior. O aspeto central, relativamente ao acolhimento expresso de empresas de natureza societária, foi a concretização do conceito de influência dominante, condição para a qualificação de uma empresa municipal como pública (também aqui o regime local foi tributário da influência do regime do SPE). Considerou-se existir influência dominante nas seguintes circunstâncias: detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto ou; direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração ou de fiscalização. Este mesmo critério permitiria, por outro lado, traçar a distinção entre empresas públicas (total ou parcialmente) e empresas (meramente) participadas. Quanto ao objeto social, além de se manter a exigência de inserção do mesmo no âmbito das atribuições das autarquias ou das associações de municípios respetivas, concretizou-se melhor a delimitação desse objeto e da própria modalidade de empresa municipal, em razão dos fins prosseguidos. Seria pelo menos um de três: a exploração de atividades de interesse geral; a promoção do desenvolvimento local e regional; a gestão de concessões (art. 5.º, n.º 1 da lei n.º 53-F/2006). A concretização destas três modalidades de empresas municipais fazia-se, depois, respetivamente, nos capítulos ii, iii e iv do mesmo diploma. Assim, (i) as empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse geral, aquelas cujas atividades consistiriam em assegurar a universalidade e a continuidade dos serviços prestados, a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, a coesão económica e social, local ou regional, e a proteção dos utentes, sem prejuízo da eficiência económica e do respeito pelos princípios da não discriminação e da transparência (art. 18.º); (ii) as empresas encarregadas da promoção do desenvolvimento local e regional, aquelas cujas atividades passariam por assegurar a promoção do crescimento económico local e regional, a eliminação das assimetrias e o reforço da coesão económica e social, local ou regional, sem prejuízo da eficiência económica e do respeito pelos princípios da não discriminação e da transparência (art. 21.º, n.º 1); finalmente, como categoria residual, (iii) as empresas encarregadas da gestão de concessões, aquelas que, não se integrando nas categorias anteriores, tivessem por objeto a gestão de concessões atribuídas por entidades públicas (art. 24.º). A Lei das Finanças Locais (LFL) (lei n.º 2/2007, de 16 de janeiro), entretanto aprovada, clarificaria o conteúdo desse objeto possível, ao elencar as áreas que poderiam justificar a criação de empresas públicas municipais nas três categorias supra – e sem prejuízo de gestão direta pelas unidades administrativas –, a saber: abastecimento público de água, saneamento de águas residuais, gestão de resíduos sólidos, transportes coletivos de pessoas e mercadorias e distribuição de energia elétrica em baixa tensão (art. 16.º, n.º 3). Clarificou-se que, nestes casos de provisão de bens pela via empresarial, haveria lugar à cobrança de preços, e não de taxas, solução que se compreende, pois a qualificação, do ponto de vista contabilístico, de uma unidade de produção ou provisão, como empresa ou entidade administrativa, depende de saber se a atividade em causa é ou não de produção mercantil, sujeita pois a cobrança de preços economicamente significativos. Uma das tendências que se vem notando na legislação mais recente – e a lei n.º 56-F/2006 foi pioneira nesse aspeto – prende-se com a opção (assinalada por Pedro Gonçalves) de canalizar na função acionista do sócio maioritário ou único, que é o município, a supremacia municipal na gestão da empresa. Deste modo, os elementos jus-publicísticos tradicionalmente associados à ideia de supremacia do ente público parecem diluir-se naqueles que são tipicamente os direitos (e também as obrigações) dos sócios maioritários nas sociedades comerciais, por serem maioritários e não por serem públicos. Assim sucede, e.g. (como refere ainda o mesmo autor), com os aspetos que se referem às orientações estratégicas da empresa, as quais devem aparecer refletidas nas orientações anuais aprovadas em assembleia geral. Não obstante a supremacia desta “lógica” societária, algumas das expressões de supremacia resultam contudo de intervenções espúrias em relação à função acionista: é o que se passa genericamente com o exercício dos poderes de fiscalização a cargo do município. O dec.-lei n.º 53-F/2006 ficou ainda marcado pelo facto de – como se refere no artigo “O Sector Empresarial após a Crise…”, de 2013 – atribuir uma larga margem de autonomia às autarquias locais e às suas associações na criação e gestão de empresas públicas, ainda que salvaguardando-se o impacto destas nos limites de endividamento dos municípios. Isto para além da sujeição ao controlo financeiro da Inspeção-Geral de Finanças e à fiscalização pelo Tribunal de Contas e, bem assim, do dever de notificação ao Governo de certas decisões (art. 8.º, n.º 2). À semelhança do que sucedera em 1998, também agora a aprovação do regime do sector empresarial local (lei n.º 50/2012, de 31 de agosto) parece ter antecipado e pré-anunciado o sentido das alterações que, no ano seguinte, iriam produzir-se em relação ao SPE (com a aprovação do dec.-lei n.º 133/2013, de 3 de outubro). O reforço da lógica privatística acentuou-se inexoravelmente, pela intromissão cada vez mais evidente do direito das sociedades comerciais em diversos aspetos do regime, tais como: procedimento associado à criação da empresa municipal (implicando, v.g., a realização de estudos comprovativos da sua viabilidade económico-financeira), exercício da função acionista, relações entre sócios, regras de governo societário, regras de transparência nas relações entre sócios e empresas, sujeição a regras de concorrência, etc. Repare-se, por outro lado, que uma empresa local – atendendo ao critério do respetivo alcance territorial – abrange tanto as empresas municipais, como as empresas (ditas) intermunicipais e as empresas metropolitanas. Relevante para este efeito é a natureza da entidade pública participante em questão (lei n.º 50/2012, arts. 2.º e 5.º), ou seja, respetivamente, consoante se trate de municípios, de associações de municípios ou de áreas metropolitanas. As empresas intermunicipais ou metropolitanas são, na verdade, uma extensão das associações de municípios ou das áreas metropolitanas que lhes estão na base e o seu fundamento económico é similar: trata-se de internalizar spillovers associados à provisão de certos bens coletivos ou de assegurar a obtenção de economias de escala em sectores habitualmente caracterizados por investimentos (na verdade, custos fixos) muito elevados e que só são verdadeiramente rentáveis e racionais se implicarem o upgrading na escala de decisão (ou seja, a assunção de responsabilidade por níveis superiores de decisão). É o que se passa, e.g., com o saneamento e o tratamento de resíduos e também, em certos casos, com os transportes coletivos de passageiros. Outras soluções – atendendo à natureza das entidades participantes – podem, por sua vez, ser encontradas: sociedades (meramente) participadas pelos municípios, ou seja, com capitais mistos, ainda que maioritariamente privados (lei n.º 50/2012, arts. 51.ºss.); empresas públicas, sob a forma societária, com participações do Estado e dos municípios (ou associações de municípios ou áreas metropolitanas) ou com participações das regiões autónomas e dos seus municípios (adiante referir-se-á um exemplo desta última hipótese). Este tipo de empresas públicas, com capitais do Estado, regiões autónomas e municípios, coloca diversas questões, quer quanto à sua qualificação (serão empresas estatais, reginais ou locais?), quer quanto à delimitação do respetivo perímetro, para efeitos de consolidação de contas com as entidades públicas (Estado, regiões autónomas, municípios) que nelas participam. Ao que tudo indica, a resposta a estas questões ficará sobretudo dependente da proporção de participação e/ou de direito de voto por parte de cada uma das entidades participantes, havendo que averiguar quem detém, no fundo, a influência dominante. Apurada esta, segue-se a regra do n.º 1 do art. 7.º da lei n.º 50/2012, quanto ao enquadramento sectorial: “As sociedades comerciais controladas conjuntamente por diversas pessoas coletivas de direito público integram-se no sector empresarial da entidade que, no conjunto das participações de natureza pública, seja titular da maior participação ou que exerça qualquer outro tipo de influência dominante”. Além disso – importa não esquecer –, a revisão, quer da lei aplicável às empresas municipais, quer da que se aplica ao SPE, surge no contexto particular de uma crise económica e financeira e da aplicação do chamado Memorando da Troika (celebrado em 2011 entre o Governo da República Portuguesa e o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, no qual o primeiro se comprometeu à adoção de medidas de consolidação orçamental e de reforma estrutural, como contrapartida pelo financiamento concedido pelos segundos, no âmbito de programa de assistência financeira). Os quadros normativos criados reforçam o condicionamento da capacidade financeira das empresas públicas, maxime da sua capacidade de endividamento, na medida em que isso concorre para o cumprimento dos princípios de estabilidade orçamental e de sustentabilidade de longo prazo das finanças locais, impostos não apenas pelo Memorando, mas também, desde logo, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e, internamente, pela Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) (lei nº 91/2001, de 20 de agosto). Em cumprimento das regras do PEC e das regras de contabilidade nacional (também elas de raiz europeia – Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais – SEC 2010) e para efeitos da avaliação regular da situação orçamental a cargo das instâncias comunitárias, releva a situação global e consolidada de todo o sector público. É essa visão consolidada do sector público que importa, concretamente, para o efeito de verificação do cumprimento das obrigações em matéria de défice orçamental (3 % do PIB, tendencialmente caminhando para uma situação de equilíbrio) e em matéria de dívida pública (60 % do PIB). Acresce, por outro lado que, dentro de cada sector (Estado, regiões autónomas, autarquias locais), se impõe, por força das mesmas regras contabilísticas, conhecer a situação financeira global de cada um deles, o que implica nomeadamente a consolidação de contas entre as várias entidades públicas que os constituem. É essa exigência que procede também do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (RFALEI) estabelecido pela lei n.º 73/2013, de 3 de setembro. Do seu art. 75.º resulta, com efeito, a noção de “grupo autárquico”, determinando-se que este grupo “é composto por um município, uma entidade intermunicipal ou uma entidade associativa municipal e pelas entidades controladas, de forma direta ou indireta, considerando-se que o controlo corresponde ao poder de gerir as políticas financeiras e operacionais de uma outra entidade a fim de beneficiar das suas atividades” (n.º 3). Os números seguintes concretizam, por sua vez, a noção de “controlo”, relevante para efeitos de consolidação de contas, a qual, repare-se, não é confundível com a noção de influência dominante e que serve, como vimos antes, para qualificar uma empresa como municipal, intermunicipal ou metropolitana (aparece, agora, em termos similares ao que resultava da lei anterior, contemplado no n.º 1 do art. 19.º da lei n.º 50/2012). Nestes termos, as empresas locais concorrem para o perímetro de consolidação dos municípios que as detêm, e a sua dívida é considerada dívida municipal. Diversamente, as empresas meramente participadas não consolidam para efeitos do referido art. 75.º, ainda que a sua dívida seja computada como dívida do município na proporção da participação deste no respetivo capital social. A tendência, em matéria de tratamento estatístico e orçamental, vai, aliás, mais longe, no sentido de se aumentar o próprio perímetro orçamental dos orçamentos públicos (que não é a mesma coisa que “perímetro”, para efeitos de consolidação de contas supra), não apenas limitando as hipóteses de desorçamentação, mas trazendo ainda, para dentro desse perímetro, realidades que apenas por razões formais ou jurídicas estavam fora deste, não o devendo estar do ponto de vista substantivo ou económico. Com efeito, as regras da contabilidade nacional, resultantes do SEC 2010, quando comparadas com as regras do SEC 1995, foram mais além nesta matéria. Na verdade, como é explicado no documento intitulado “O Sistema Europeu de Contas – SEC 2010: Impacto nas Contas Nacionais Portuguesas”, do Instituto Nacional de Estatística, “o SEC 2010 [em relação à versão precedente] reforça significativamente os critérios qualitativos de análise das unidades institucionais públicas, com destaque para os aspetos relacionados com o controlo e com a natureza das receitas obtidas. Além disso, o critério quantitativo (‘rácio de mercantilidade’) foi também alterado, passando agora a incluir no denominador correspondente aos custos operacionais, os encargos líquidos com o pagamento de juros” (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 4). Assim sendo, por força do SEC 2010, “a reclassificação de empresas do sector empresarial do Estado dentro do perímetro de consolidação das Administrações Públicas (na ótica de contabilidade nacional) poderá ocorrer caso se verifique um de três critérios relacionados com o nível de inserção em mercados concorrenciais e com o grau de dependência do acionista público: (i) Nível de receitas mercantis inferior a 50 % dos encargos com o desenvolvimento da sua atividade, critério que determina a necessidade de contratualização da prestação de serviço público relativamente às empresas públicas que beneficiam de indemnizações compensatórias, o que abrange essencialmente as empresas dos sectores da cultura, transportes e infraestruturas; (ii) Classificação como empresa instrumental de investimento público em função da sua área de atuação principal; (iii) Empresas dependentes do acionista público em função do elevado endividamento bancário e das dificuldades de acesso aos mercados financeiros” (Orçamento de Estado…, 2013, 79). Diversas empresas públicas – a começar pelas empresas na área dos transportes (o caso da Companhia Carris de Ferro de Lisboa e da Metropolitano de Lisboa), passando pelos hospitais EPE, e a acabar nas entidades reguladoras de mercado – têm vindo a ser progressivamente objeto de reclassificação, ao abrigo destas regras. As consequências da reclassificação – que, como dissemos, implica trazer as empresas locais para dentro do perímetro orçamental – são definidas na LEO, que manda aplicar as regras por si definidas, para efeitos de orçamentação de receita e despesa, execução orçamental, reporte e controlo, às “entidades que, independentemente da sua natureza e forma, tenham sido incluídas em cada subsector no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, nas últimas contas sectoriais publicadas pela autoridade estatística nacional, referentes ao ano anterior ao da apresentação do Orçamento” (art. 2.º, n.º 5). Na verdade, esta inclusão implica alargar o perímetro orçamental e aumentar a própria dimensão das administrações públicas. É assim, pelo menos, em relação ao sector Estado. No que às empresas municipais respeita, não se prevê nada, expressamente, sobre a reclassificação de entidades. Apenas se lhes faz referência explícita no art. 78.º da lei n.º 73/2013, a propósito dos deveres de informação a que tais entidades, como de resto quaisquer autarquias locais, estão sujeitas em relação à Direção-Geral das Autarquias Locais. Já na lei n.º 50/2012 (art. 64.º) se prevê, por seu turno, a possibilidade de integração das empresas locais em serviços municipalizados e a hipótese de fusão destas empresas entre si. Apesar de, no que às empresas locais diz respeito, a hipótese de reclassificação não estar regulada de modo expresso na legislação autárquica, esta reclassificação deve ter lugar (como sugere, aliás, o mencionado art. 78.º). A relação que existe, do ponto de vista orçamental e contabilístico, entre sectores (administrativos) locais e os respetivos sectores empresariais deve aqui obedecer às mesmas regras que se preveem para o sector Estado, salvaguardadas as devidas adaptações. Logo, verificadas as condições supra, devemos aceitar essa reclassificação. Ora, este aspeto potencia o aparecimento de um fenómeno curioso e, porventura, de sinal contrário. Da mesma forma que, por imposição das regras da contabilidade nacional, se vem operando esse alargamento do perímetro orçamental (o sector administrativo cresce à custa do emagrecimento do sector empresarial), verificamos – justamente na lei n.º 50/2012 – a tendência aparentemente oposta, de maior abrangência do conceito de “atividade empresarial local”. O art. 2.º desta lei, aliás inovador, determina que a prossecução de atividade empresarial local se faz não apenas por empresas locais propriamente ditas, mas também por serviços municipalizados, cujo regime é depois concretizado (arts. 8.º-18.º). Até aqui, os serviços municipalizados figuravam no sector administrativo local (administração local indireta) e tinham, do ponto de vista financeiro, a natureza de fundos e serviços autónomos. Agora, embora pareçam continuar integrados neste sector, caminham aparentemente para o sector empresarial. Mesmo empresas públicas não reclassificadas consolidam, como dissemos antes, as suas contas com as entidades públicas participantes e o seu endividamento concorre para os limites fixados para estas últimas. É o que acontece nas empresas municipais, por força do disposto no art. 41.º. Simultaneamente, proíbe-se o chamado bail out dos municípios relativamente aos empréstimos contraídos pelas mesmas empresas (n.º 2), endurecendo-se assim a restrição orçamental que sobre estas impende e obrigando-as a acrescida responsabilização financeira. De um modo geral, a lei é muito exigente no plano na gestão orçamental das empresas municipais, impondo resultados equilibrados, na falta dos quais deverá a entidade participante proceder à necessária transferência que garanta esse mesmo equilíbrio (art. 40.º). Esta lógica de integrar as duas entidades, participante e participada, na obtenção, nesta última, de resultados equilibrados, é uma importante manifestação da noção de “grupo autárquico”, de que falámos antes, mais exigente, como agora se vê, do que a noção de grupo empresarial. Um aspeto interessante prende-se com o regime de extinção e dissolução das empresas municipais. Aqui, a lei n.º 50/2012 foi muito inovadora e, também neste ponto, a deriva para o direito privado é evidente. Pese embora as empresas públicas (logo, também as empresas públicas municipais) ainda estejam de fora de regimes falimentares – veja-se o disposto no n.º 2 do art. 2.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (dec.-lei n.º 53/2004, de 18 de março, e suas alterações) –, a verdade é que o modelo de dissolução que resulta da lei n.º 50/2012 não anda muito longe do regime privatístico. Na verdade, nos termos do artigo 62º, as empresas locais são obrigatoriamente objeto de deliberação de dissolução, no prazo de seis meses, sempre que se verifique uma das seguintes situações: as vendas e prestações de serviços realizadas durante os últimos três anos não cobrem, pelo menos, 50 % dos gastos totais dos respetivos exercícios; quando se verificar que, nos últimos três anos, o peso contributivo dos subsídios à exploração é superior a 50 % das suas receitas; quando se verificar que, nos últimos três anos, o valor do resultado operacional, subtraído ao mesmo o valor correspondente às amortizações e às depreciações, é negativo; quando se verificar que, nos últimos três anos, o resultado líquido é negativo. Esta previsão deu os seus frutos. Em 2015, foi noticiada a primeira falência, como tal decretada pelo tribunal competente, de uma empresa municipal: a PFR Invest – Sociedade de Gestão Urbana, da Câmara Municipal de Paços de Ferreira. A aplicação desta lógica falimentar, com tudo o que isso implica (a prevalência dada à proteção dos credores) contraria a tradição: nas entidades públicas (tenham ou não natureza empresarial), as situações de rutura financeira são geralmente de natureza reorganizativa (implicando a renegociação da dívida), com vista à manutenção do serviço público prestado. Continua a ser assim no RFALEI, quando está em causa a “bancarrota” de um município. O mecanismo de recuperação financeira, aí previsto (art. 61.º), tem esse escopo reorganizativo. Em relação às empresas municipais, porém, o legislador apartou-se desse modelo publicístico, pelo que as empresas públicas municipais transitam inexoravelmente para o direito privado. Uma última nota para as empresas locais criadas nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Repare-se que também estas têm o seu próprio sector empresarial, cujos regimes jurídicos são, no fundo, uma extensão e adaptação do regime do SPE a esses espaços regionais. Os regimes dos sectores empresariais regionais constam, respetivamente, do dec. leg. regional n.º 7/2008/A, de 24 de março, e suas alterações, e do dec. leg. regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto, e suas alterações. Mas, para além disso, podem ser criadas, nos respetivos municípios, empresas locais e, até, empresas intermunicipais (ou seja, empresas resultantes de associações de municípios). Note-se, porém, que o efeito prático destas últimas é menor do que no continente, especialmente quando o alcance do upgrading daí resultante for consistente com o espaço da própria região – nesse caso, as empresas intermunicipais podem tornar-se dispensáveis, inúteis, já que as suas funções podem ser assumidas por verdadeiras empresas regionais. Só não será assim se existir uma qualquer outra motivação – e.g., de ordem política ou partidária – que justifique a agremiação de municípios em detrimento da opção regional. Solução mais curial (ainda que ousada e inovadora) parece ser, por outro lado, a criação de empresas regionais que envolvam o concurso, a participação no capital, de alguns ou de todos os municípios da região. Isso pode acontecer quando se trate, v.g., de promover o desenvolvimento económico ou social de uma certa zona ou de um determinado sector de atividade, quando o interesse for simultaneamente regional e local. Empresas municipais, na Região Autónoma dos Açores – e para referir o concelho de Ponta Delgada –, são, com carácter societário, as empresas Cidade em Ação, a ANIMA, a Ponta Delgada Social, a Coliseu Micaelense e a Azores Parque e, com carácter estatutário, a empresa Ação PDL. No caso da ilha de São Miguel, convém destacar a empresa intermunicipal ANISM, que abrange os municípios de Lagoa, Ponta Delgada, Povoação, Ribeira Branca e Vila Franca do Campo e cujo objeto é o sistema de tratamento e gestão de resíduos sólidos. Relativamente à Região Autónoma da Madeira (RAM), refiram-se, com carácter de entidade pública municipal, as empresas Frente MarFunchal e SocioHabitaFunchal. A título de entidade intermunicipal, foi criada, em 1999, a Empresa Intermunicipal da Região Autónoma da Madeira, ainda ao abrigo da lei n.º 58/98, mas cujo objeto estatutário foi considerado ilegal, pelo Tribunal de Contas, no Relatório de Auditoria n.º 1/2005- FS/SRMTC. Curiosa foi também a criação da Ponta do Oeste – Sociedade de Promoção e Desenvolvimento da Zona Oeste da Madeira, S.A., através do dec. leg. regional n.º 18/2000/M, de 2 de agosto, uma empresa com capitais públicos e subscritos quer pela RAM, quer pelos respetivos municípios, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. Esta empresa poderia, no entanto, ser qualificada como empresa pública regional, de natureza societária, pois, ainda que contando com uma participação significativa dos três municípios (75.000 € cada), a maioria do capital foi subscrito pela RAM (275.000 €).   Nazaré da Costa Cabral (atualizado a 02.01.2017)

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