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calçada madeirense: bordados de pedra a preto e branco

No séc. XVI, Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra, trata com admiração e elogio as “calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, II, 117). De acordo com Sainz-Trueva, a utilização de seixos pretos e brancos na calçada madeirense atingiria o apogeu nos sécs. XVIII e XIX. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofrerá um grande declínio motivado, essencialmente, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa tradição, falta de mão de obra e de motivação da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos salários, menor disponibilidade da pedra natural local e utilização de novos tipos de materiais para pavimentação. Ainda segundo Sainz-Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da cidade e arredores ajudaram a apagar os traços mais característicos da Madeira antiga, cada vez mais confrontada com ventos do progresso, que nem sempre contemplam da melhor forma os testemunhos de uma herança secular” (SAINZ-TRUEVA, 1991, 132 e 133). A calçada madeirense é muito anterior à chamada calçada portuguesa, dela distinta, a qual utiliza pedra facetada, de morfologia aproximadamente cúbica ou paralelepipédica, de cores preta (identificada como sendo basalto) e cinzenta-escura, branca ou rosada (identificada como sendo calcário). A calçada portuguesa, nacional e internacionalmente prestigiada, foi criada em 1842 pelo Ten.-Cor. e Eng.º Eusébio Pinheiro Furtado, quando no comando do Batalhão de Caçadores 5, que, querendo combater o ócio dos seus soldados, os pôs a revestir a parada do quartel com pedrinhas pretas e brancas. A calçada madeirense constitui uma autêntica referência histórica e patrimonial do arquipélago e é um símbolo da geodiversidade litológica local, sendo por vezes confundida com a calçada portuguesa propriamente dita. Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram um conjunto de investigações com os seguintes objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada na calçada madeirense dos pontos de vista textural, petrográfico, químico, mineralógico e físico-mecânico; identificar os locais de proveniência da pedra natural; homenagear os profissionais com um papel ativo na preservação do secular trabalho que envolve a aplicação de pedra de seixo ou de calhau rolado, contribuindo desta forma para a preservação dos ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pedagógica de divulgação da calçada madeirense junto da população e das entidades competentes, sensibilizando-as para a importância da preservação desta técnica, em vez de se proceder à substituição da pedra natural por outros materiais; valorizar o património edificado e dignificar a arte dos trabalhos concebidos com pedra natural, pequena e rolada. Materiais e amostragem A pedra natural local, de origem vulcânica e sedimentar, potencialmente adequada à aplicação na calçada madeirense, e que foi objeto da referida investigação, foi amostrada em depósitos de praia, em pequenos afloramentos de rocha carbonatada e em obras de recuperação de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto Santo. Nos textos consultados e nos diálogos mantidos com alguns estudiosos e profissionais do sector é frequente referir-se serem os seixos brancos feitos de calcário originário de Portugal continental, tendo provavelmente servido de lastro em navios que outrora aportavam ao Funchal. Foi propósito da já mencionada investigação referir os locais de proveniência da pedra natural utilizada nas calçadas; tendo em conta, quer o levantamento já efetuado, quer a extensão da sua aplicação em todo o arquipélago, admite-se que a pedra aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, a recolha dos materiais está restringida a depósitos de algumas praias (figs. 1 e 2) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa Cruz), Madalena do Mar (Ponta de Sol) e Calhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de Dentro (Porto Santo) –, devidamente autorizada pelas autoridades regionais competentes (Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus da Região Autónoma da Madeira e capitania do Porto do Funchal). A amostragem dos materiais nas praias foi feita na baixa-mar, por duas razões (fig. 1): a primeira, porque a secção da praia é mais ampla; a segunda, porque a recolha de material é feita em maior segurança durante a maré baixa.   Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem entre as cotas 0-165 m, correspondendo-lhes idades compreendidas entre os 13,5 e os 18 milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo sido neles identificados foraminíferos, celentrados, briozoários, equinodermes, crustáceos, anelídeos e grande variedade de espécies de lamelibrânquios e de gastrópodes – isto é, nos calcários figuram quase todos os grandes grupos de invertebrados, bem como restos de seláceos e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzindo Silva atribui aos calcários da ilha do Porto Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edificada sob clima tropical a profundidade que não devia exceder os 40 m; normalmente, este tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa e/ou cor branca amarelada.No que diz respeito às rochas carbonatadas, identificadas como sendo calcários recifais marinhos, elas apresentam as cores seguintes: castanha-avermelhada, branca leitosa, branca amarelada ou branca avermelhada. Trata-se de materiais com origem no concelho de São Vicente, na ilha da Madeira (fig. 3), no ilhéu da Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra de Dentro, ilha do Porto Santo (fig. 4). No caso dos calcários que ocorrem no afloramento do sítio dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicente, eles são, essencialmente, recifais, associados a tufos de cor castanha-avermelhada, e aglomerados, cujos fósseis marinhos identificados correspondem a várias espécies de lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes, coraliários, crustáceos e foraminíferos. Dados de geocronologia isotópica apontam a idade de sete milhões de anos (Miocénico Superior) para os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do séc. XXI, puderam ser observados alguns dos antigos depósitos de calcário recifal no sítio do Furtado da Achada do Barrinho, Lameiros, ao percorrer o itinerário turístico-geológico denominado Rota da Cal (fig. 3).   No Museu de História Natural do Jardim Botânico da Madeira pode ser observado um rico e diversificado espólio de exemplares de fósseis marinhos originários das ilhas da Madeira e do Porto Santo. No conjunto, destacam-se, entre os fósseis mais representativos, lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes e algas coralinas, fósseis que apresentam, na generalidade, um elevado grau de preservação, situação que permite a fácil identificação das respetivas espécies. Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada aplicada na calçada madeirense observam-se os exo-esqueletos de várias espécies de fósseis marinhos (fig. 5). Aspetos texturais A população designa vulgarmente a pedra aplicada na calçada madeirense por seixo, calhau ou cascalho rolado – mas, em termos técnicos e científicos, as denominações seixo e calhau não têm o mesmo significado. Efetivamente, em termos técnicos e científicos, os referidos nomes correspondem a designações que estão intimamente relacionadas com aspetos texturais, isto é, com a dimensão e a forma das peças individuais do material pétreo. A escala granulométrica de Chester K. Wentworth, utilizada em sedimentologia, estabelece designações e limites dimensionais para as partículas constituintes dos sedimentos. Nesta escala, a designação calhau é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 256 mm e 64 mm, e a designação seixo é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 64 mm e 4 mm (fig. 6). Por outro lado, o estudo morfométrico dos materiais pétreos – isto é, o estudo das diferentes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na calçada – permite, de acordo com a classificação de Theodor Zingg, definir que eles apresentam, normalmente, forma oblata ou discoidal. Os seixos e calhaus de rocha vulcânica apresentam-se lisos, polidos, entre arredondados e bem arredondados, e a cor escura que exibem é normalmente devida à patine que vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da poluição e da sujidade acumulada. Tipologias e propriedades No âmbito da referida investigação, a caracterização petrográfica, mineralógica e química dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amostrados nas calçadas madeirenses foi realizada no departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das tipologias relevantes. No que diz respeito às rochas vulcânicas, utilizando a relação entre a percentagem de sílica (SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O) adotada no sistema classificativo das rochas vulcânicas proposto por Peter Francis, foi possível definir as litologias seguintes: traquibasalto, traquiandesito e traquito, que apresentam tonalidades que vão desde o cinzento-escuro até ao cinzento-claro (fig. 6); basalto, hawaiíto e representantes do grupo minor varieties, que inclui diversos tipos de rochas vulcânicas menos comuns; normalmente, estes tipos litológicos apresentam cor preta. Os resultados da análise química obtidos por fluorescência de raios X indicam que as amostras estudadas de seixos ou calhaus de calcário do arquipélago da Madeira apresentam teores muito baixos de sílica (SiO2) e de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200 ppm. Diferentemente, no caso das amostras de calcário utilizado em calçada portuguesa (técnica também presente no arquipélago da Madeira), provenientes das localidades de Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa, em Portugal continental, os teores de sílica (SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40 % e 3,19 %. Assim sendo, os resultados analíticos obtidos permitem identificar a origem do seixo e do calhau de calcário aplicado na calçada madeirense, a qual está relacionada com rochas carbonatadas locais (calcário recifal muito puro). De facto, as investigações realizadas mostram que a pedra calcária aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte das ilhas da Madeira e do Porto Santo (figs. 3, 4 e 5). Por sua vez, as propriedades físico-mecânicas dos principais tipos de pedra natural utilizados na calçada madeirense foram avaliadas no Laboratório de São Mamede de Infesta (Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (posteriormente, Laboratório Nacional de Energia e Geologia). A determinação da resistência ao desgaste por abrasão em vários provetes de pedra natural foi realizada através do método de desgaste de Capon. Os resultados obtidos permitem concluir que a rocha traquibasáltica é a que apresenta menor desgaste (0,6 mm), e que o calcário recifal é a rocha que apresenta maior desgaste (4,2 mm). Se observarmos alguns pavimentos pelos quais há grande circulação de pessoas, verificamos facilmente que a superfície superior e exposta da pedra calcária se apresenta plana, ou seja, com maior grau de desgaste, quando comparada com a superfície superior e exposta da pedra vulcânica contiguamente aplicada, que se apresenta abaulada ou convexa (fig. 7). Aplicação da calçada madeirense A calçada madeirense é uma manifestação do património insular madeirense, sendo também testemunho da atividade desenvolvida por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita na maior parte das vezes por mãos anónimas, revela a sensibilidade naïve dos seus autores (e.g., fig. 20) e é um testemunho cultural que merece ser divulgado e preservado. Na feitura da calçada madeirense, a aplicação dos materiais pétreos no terreno poderá realizar-se diretamente sobre uma camada de solo silto-argiloso (designado localmente por cerro). Caso contrário, a aplicação dos materiais passa por diversas etapas: preparação do fundo de caixa com aplicação de tout venant sobre o terreno e colocação de pó de pedra sobre o tout venant e tirada de pontos (fig. 8); colocação da pedra segundo o seu eixo maior (isto é, para um sistema de eixos XYZ, em que X representa o comprimento máximo, Y a largura máxima e Z a espessura máxima) (fig. 9); betonagem das juntas entre as pedras, com uma mistura líquida de calda de areia e cimento, numa proporção de três partes de areia para cinco de cimento (fig. 10); calcamento e nivelamento do pavimento com calcão mecânico e acabamento com maço de madeira de plátano (fig. 11); colocação de areia fina sobre o pavimento, com o objetivo de remover o excedente da calda de cimento e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o varrimento (fig. 12). Para se ter noção do grau de exigência que esta arte de pavimentação implica, marcou-se no chão, com motivo em espinha, a área de 1 m2. Verificou-se que em cada metro quadrado foram aplicados, em média, 1023 seixos. Este valor é elucidativo dos milhares de seixos que foram utilizados para fazer o pavimento de calçada madeirense que existe no jardim municipal do Funchal (fig. 13). Tendo em conta a proveniência dos materiais, pode dizer-se que se assemelham a praias que foram transferidas para o espaço urbano e rural. Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos Pessoa introduziu uma alteração à calçada madeirense tradicional – a variante de calçada madeirense com pedra partida; trata-se de um pavimento menos escorregadio e que oferece maior atrito ao calçado, permitindo melhor andamento e mais conforto (fig. 14).   Motivos A calçada madeirense pode ser construída utilizando unicamente calhaus e seixos de rochas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais ou menos escura, cuja monocromia é quebrada devido às diferentes orientações conferidas pela disposição dos materiais (figs. 14 e 17). Quando são utilizadas rochas vulcânicas e sedimentares, a policromia a preto e branco apresenta uma grande diversidade de padrões e temas geométricos e florais estilizados que ornamentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, palácios, casas, quintais e jardins (figs. 15-22). Muitos dos motivos dos pontos do bordado da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, corda, granitos e richelieu – foram aproveitados pelos calceteiros para serem representados na decoração da calçada madeirense. O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, é talvez o local que reúne a maior diversidade de padrões e de motivos geométricos e florais estilizados, com vários pontos de bordado da Madeira.   No pavimento, predomina geralmente o material mais abundante, isto é, calhaus e seixos de rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas rochas sedimentares para realçar alguns aspetos florais, brasões de armas, monogramas, datas e a cruz de Cristo (figs. 23 e 24). Os pavimentos de calçada madeirense apresentam pouca reflexão da luz e são facilmente limpos utilizando a tradicional vassoura de urze.   Preservação Em meados da segunda déc. do séc. XXI, a calçada foi modificada e adulterada em alguns espaços, com a aplicação de materiais estranhos a esta técnica e com a remoção de motivos. A pedra rolada foi substituída por cubos e paralelepípedos de mármore e coberta por argamassas de areia, cimento e material betuminoso, ou por alcatrão (figs. 25 e 26).   Na requalificação urbana que ocorreu no núcleo histórico de Câmara de Lobos, o antigo brasão do concelho – que estava colocado no adro da igreja de S. Sebastião, fazendo parte de um tapete de pedra rolada – deu lugar a um pavimento de “calçada madeirense” de blocos e calhaus partidos; perdeu-se, assim, o único exemplo de heráldica municipal em calçada madeirense construída no arquipélago, restando dela apenas registos fotográficos (fig. 27).Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na zona velha do Funchal, foi observada a existência de diferenças cromáticas entre as argamassas em algumas obras de recuperação, viu-se serem muito diferentes as dimensões dos seixos utilizados e serem os espaços entre pedras roladas – porque grandes – preenchidos por argamassa.  Nas travessas da Malta e do Redondo, o pavimento de calçada madeirense foi coberto por tapete betuminoso. Noutros locais, verificou-se ser total o abandono da calçada, como no caso dos passeios na estrada do João Abel de Freitas e na estrada da Boa Nova, e advir grande perigo – tanto para peões como para utilizadores de viaturas motorizadas – das pedras, encontrando-se estas soltas entre a estrada e o passeio (fig. 28).   O desenvolvimento das raízes das árvores de grande porte destruiu e só ergueu por vezes o pavimento – como aconteceu na capela de N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria Amélia –, carente de trabalhos de manutenção regulares.No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na ilha do Porto Santo, observou-se a presença de grandes manchas de cera, com origem no pagamento de promessas feito por alguns fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior remoção. Durante a referida investigação, teve-se oportunidade de acompanhar diversas obras de recuperação de antigas calçadas e de construção de novas pavimentações. Exemplos disso mesmo são o antigo palacete dos Zinos, posteriormente palacete do Lugar de Baixo, recuperado em 2004 pelo Governo Regional da Madeira (GRM) (fig. 29); os jardins de Santa Luzia, recuperados em 2004 pela Câmara Municipal do Funchal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma menção honrosa na categoria de espaços exteriores de uso público, no quadro do Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista, em 2005) (fig. 30); o pavimento onde está representado o cronograma dos vários Batalhões de Infantaria e dos Caçadores na Universidade da Madeira, recuperado por calceteiros da Câmara Municipal do Funchal, em 2008 (figs. 31 e 32).   A preservação da calçada madeirense, nas antigas quintas e jardins públicos e privados, casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste-se de uma importância crucial, especialmente para os núcleos e zonas históricas das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a profissão e a formação do calceteiro é imprescindível para a manutenção dos referidos espaços. Além disso, o património material da calçada madeirense constitui um legado de grande valor, sob os vários aspetos da sua composição, da diversidade dos materiais geológicos utilizados, com presença de fósseis marinhos, e da diversidade de padrões construídos e desenhados.   João Baptista Pereira Silva Celso de Sousa Figueiredo Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património Geologia

comunidades madeirenses

A Constituição da República Portuguesa (CRP), na sua versão originária, definia as regiões autónomas como pessoas coletivas de direito público (art.º 229.º); não continha, assim, qualquer preceito que legitimasse o intérprete para eleger o território como seu elemento definidor. Entretanto, a consideração dos condicionalismos geográficos, como elementos que dão fundamento à autonomia, a evidência da individualidade territorial e a sua qualificação como pessoa coletiva de direito público – aproximando-a das outras pessoas coletivas de direito administrativo de base territorial, como a freguesia e o município – fizeram com que rapidamente se vulgarizasse, na doutrina, a ideia de que as regiões autónomas eram entes coletivos de base territorial, isto é, definidas e estruturadas, essencialmente, em função do respetivo território. Quando da revisão constitucional de 1982, tentou-se proceder a uma caracterização correta das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, i.e., conforme à realidade das mesmas. Essa tentativa consistiu fundamentalmente em duas propostas: uma tinha em vista substituir, no n.º 1 do art. 227.º, “condicionalismos” por “características”, e incluir nestas, também como fundamento da autonomia, “as características culturais”; outra tinha como fim eliminar no corpo do art. 229.º a referência a “pessoas coletivas de direito público”. A primeira foi aprovada, mas a segunda não passou. Poder-se-á pensar que se está perante um mero jogo de palavras. Mas não é assim. Com efeito, fundar a autonomia nas características dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, em vez de a fundar nos condicionalismos, tem o objetivo de a desconjunturalizar, transformando-a numa imanência da realidade insular. A referência às características culturais insere nos fundamentos da autonomia o elemento que decisivamente define um povo, que é a sua cultura, e que permanentemente o identifica. E que não se trata de uma mera questão de palavras, prova-o a resistência demonstrada pelos membros da respetiva comissão eventual para a revisão constitucional à introdução daquelas alterações. Numa correta caracterização das regiões autónomas, torna-se claro que, se a Constituição fundamenta a autonomia nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, é porque as regiões autónomas não são apenas o território, mas sobretudo as pessoas, que são o agente ativo ou passivo daquelas características. Esta consideração permite dar um salto qualitativo, que ultrapassa o território como elemento definidor e contempla o povo madeirense na sua plenitude. Desta forma, a autonomia deixa de ser uma questão que apenas diz respeito às pessoas residentes no território das regiões autónomas para passar a estar intimamente ligada a todos os madeirenses, onde quer que se encontrem. E, se a população emigrante é o dobro ou o triplo da população residente no arquipélago da Madeira, esta ideia nada tem de lírico, antes se insere profundamente na realidade do povo madeirense. Só a esta luz se consegue explicar a expectativa com que os madeirenses espalhados pelo mundo vivem a experiência autonómica e o empenho com que participam nela, bem como as tentativas que têm sido feitas para institucionalizar a participação dos madeirenses não residentes nas instituições autonómicas e de criar mecanismos de ligação e apoio às comunidades que, pelo mundo fora, esses madeirenses constituíram e mantêm. A este respeito, tornou-se conhecida a querela acerca da existência de círculos eleitorais de não residentes que, por via dos mesmos, passariam a ter assento nos Parlamentos regionais. A matéria recebeu consagração legislativa no Estatuto Político-Administrativo dos Açores, e foi declarada inconstitucional em relação ao Estatuto Político-Administrativo da Madeira, matéria que será retomada em passo ulterior do presente texto. Alguns receiam que o reforço da autonomia regional afete a unidade do Estado. E não é por acaso que a base territorial das regiões autónomas é veementemente afirmada pelos constitucionalistas de pendor centralista; como não é por acaso que os responsáveis políticos com uma visão centralista da estrutura do Estado português rejeitam energicamente a conceção institucional de região autónoma. Uns e outros ter-se-ão apercebido de que se está perante uma questão de importância fundamental para a adequada caracterização do sistema autonómico português. É importante reter que, no estado atual do direito português nos começos do séc. XXI, há base formal e legitimidade política para defender que a região autónoma é uma pessoa coletiva de base institucional, que diz respeito a todos os madeirenses e seus descendentes, quer residam na Madeira, no Porto Santo, no continente, nos Açores ou no estrangeiro. Erigir o território como elemento definidor da região  autónoma é uma atitude reducionista da própria autonomia, cuja consequência mais imediata é subtrair à jurisdição das instituições políticas regionais os madeirenses não residentes para, de modo centralista, os colocar sob tutela do Governo central. Na realidade, está-se perante pessoas coletivas de base institucional, já que o que é relevante na caracterização da Região Autónoma da Madeira (RAM) não é o território, mas o seu povo, que está disperso pelos cinco continentes. Não há um censo específico que permita quantificar com rigor este universo de Portugueses, mas calcula-se que só no continente português vivam, no começo do séc. XXI, cerca de 300.000  madeirenses, e nas comunidades radicadas no estrangeiro à volta de 600.000. Nesta “madeirofonia” deverão integrar-se também os “madeirodescendentes”, em número elevado, embora impossível de determinar. É este valioso potencial humano que reclama dos órgãos de Governo próprio da RAM uma política para as comunidades madeirenses no exterior. Trata-se de um universo caracterizado pela dispersão, pela dimensão planetária e pela diferenciação. Com efeito, as comunidades madeirenses encontram-se dispersas por vários países, estão presentes nos cinco continentes e cada comunidade tem características próprias que a diferenciam das demais. As centenas de milhares de madeirenses não residentes e as suas comunidades constituem um elemento estrutural e estruturante da RAM. O espírito empreendedor, a abertura a outros povos e culturas e uma fácil integração nas sociedades de acolhimento, sem prejuízo da sua ligação à terra de origem, são características peculiares da maneira de ser dos madeirenses. É, em grande parte, através dos madeirenses residentes no continente português e no estrangeiro que a RAM se afirma no exterior e que se concretiza a vocação universalista e humanista do povo madeirense. O elo mais forte que liga todos os madeirenses entre si, e à sua terra de origem, é a língua portuguesa, a cultura e as tradições madeirenses. No plano jurídico, é preciso respeitar a igualdade de direitos e deveres entre madeirenses residentes e madeirenses não residentes, bem como defender os direitos e legítimos interesses dos madeirenses não residentes face aos ordenamentos jurídicos e às autoridades dos países de acolhimento, e pugnar pela igualdade de tratamento em relação a todos os não residentes, dando uma especial atenção aos jovens, aos idosos, aos hospitalizados e aos detidos. Ao nível da manutenção e reforço dos laços afetivos e culturais com a Região de origem, deve, em todas as circunstâncias, ser aprofundado o amor à pátria madeirense e cultivado o orgulho em se ser madeirense. Os madeirenses não residentes devem ser defendidos junto dos órgãos de soberania, combatendo todo o tipo de discriminação em relação aos outros Portugueses e assegurando a participação das comunidades madeirenses, através das suas estruturas representativas, na definição das políticas a levar a cabo pelos órgãos de Governo próprio, nomeadamente, na política para as comunidades madeirenses no exterior. Do ponto de vista prático, uma política só é eficaz quando dispõe dos instrumentos e meios adequados à sua concretização. A política direcionada às comunidades madeirenses no começo do terceiro milénio carece, antes de mais, de meios financeiros suficientes e de apoios logísticos idóneos. No domínio deste tipo de políticas, é recorrente a exiguidade das dotações orçamentais, pelo que se torna necessário procurar formas de financiamento para além dos apoios oficiais. Quanto aos apoios logísticos e aos instrumentos adequados para levar a cabo esta política, é preciso ter presente o princípio da universalidade: tais apoios e instrumentos devem permitir que as medidas e ações de política sejam acessíveis a todos, esbatendo ao máximo a tentação natural de privilegiar as comunidades que se encontram mais próximas da região de origem. De entre os meios a utilizar, são de privilegiar uma cobertura consular adequada, uma informação atualizada e o mais ampla possível, e um apoio estratégico ao associativismo, tão vulgarizado e atuante no seio das comunidades madeirenses. A cobertura consular é da competência do Governo da República, cabendo aos órgãos de Governo próprio da Região tirar partido dos consulados, que existem em cada país de acolhimento, beneficiando assim as comunidades madeirenses radicadas nas respetivas áreas consulares. Na déc. de 80 do séc. XX, na Venezuela, cujo território é nove vezes maior que o território de Portugal continental, para uma comunidade de cerca de meio milhão de Portugueses, só existia um consulado de carreira em Caracas, com jurisdição sobre a totalidade do território venezuelano e dos territórios autónomos de Curaçau e Aruba. A maior parte dos Portugueses residentes naquela vasta área consular era de origem madeirense e foi devido ao empenho de um secretário de estados das comunidades portuguesas natural da Madeira que se procedeu à abertura de um novo consulado em Valência e à ampliação e modernização das instalações do consulado em Caracas, melhorando-se substancialmente a cobertura consular naquele país, com benefício para todos os Portugueses lá residentes. A informação a fornecer aos madeirenses residentes fora da Madeira não pode ser só de carácter utilitário, mas também de cariz cultural, social, recreativo, desportivo, o mais ampla e atualizada possível. A informação adequada às comunidades madeirenses terá de ser tridirecional, isto é, da RAM para as comunidades, das comunidades para a RAM e para o país em geral, e das comunidades entre si. Só assim se alcança um conhecimento recíproco, que é o suporte indispensável de qualquer universo que se pretenda coeso e solidário. Trata-se de um desiderato facilmente alcançável graças aos múltiplos meios de comunicação proporcionados pela tecnologia. Não será exagerado considerar que este é o instrumento mais eficaz de política junto das comunidades madeirenses no exterior. O apoio ao associativismo, baseado em uma visão estratégica da presença dos madeirenses no mundo, também é relevante. Tal visão consiste em, para além do apoio prestado ao associativismo tradicional, de cunho saudosista e folclórico, promover o associativismo de jovens e de empresários. É neste ponto que reside, em grande parte, o que permitirá dar o salto qualitativo em matéria de política para as comunidades madeirenses. Ao privilegiar o associativismo jovem e empresarial, contribui-se para uma melhor integração dos madeirenses e dos seus descendentes nas sociedades de acolhimento, o que aumentará a importância política, cultural, económica e social das comunidades portuguesas no seio dos países que as acolhem, e garantirá a sua perenidade no futuro. De facto, só os descendentes da primeira geração de emigrantes poderão perpetuar a sobrevivência das comunidades madeirenses nos países de acolhimento. Para isso é necessário que se mantenham ligados à Região dos seus antepassados e vejam permanentemente vivificada a herança cultural e afetiva que os antepassados lhes legaram. O papel da internet, como já se disse, é fundamental, bem como a existência de programas de rádio e televisão nacionais e regionais especialmente dirigidos a jovens. O recurso às tecnologias de comunicação não dispensa, porém, o conhecimento presencial de lugares e pessoas, através da criação e manutenção de mecanismos que permitam intensificar o intercâmbio de conhecimentos e experiências, através da celebração de protocolos ou parcerias, e da obtenção de apoios públicos e privados que o propiciem. Deve realçar-se, neste contexto, a importância que assume o intercâmbio ao nível do ensino superior, dada a sua repercussão em termos de um maior protagonismo dos jovens descendentes de madeirenses nas sociedades de acolhimento, e a organização de iniciativas específicas que permeiem os jovens participantes por razões de mérito, dando-lhes a conhecer a terra dos seus antepassados. Outro instrumento fundamental a ter em conta é o ensino à distância, tirando partido das plataformas comunicacionais para criar salas de aula virtuais para esse efeito. Ponto fulcral desta política dirigida aos jovens é a preservação e divulgação da língua portuguesa. O português é uma língua estratégica, pelo número de pessoas que a falam em vários países de diferentes continentes. Além disso, é o meio de comunicação privilegiado no seio do chamado mundo lusófono, e constitui o mais poderoso meio de ligação à pátria portuguesa e à região de origem dos portugueses que vivem no estrangeiro, e dos seus descendentes. Daí que a aprendizagem do português deva estar entre as prioridades da política para as comunidades madeirenses. Além do associativismo juvenil, deve estimular-se o associativismo empresarial, não só pela importância de que se reveste o poder económico dos empresários madeirenses nas economias das sociedades de acolhimento e pelas vantagens que daí podem resultar para o desenvolvimento económico da RAM, mas também pelo apoio financeiro que podem dar às iniciativas culturais, sociais e filantrópicas das comunidades de madeirenses, e às candidaturas de madeirenses e seus descendentes a cargos de responsabilidade política nos diferentes níveis da organização do poder político dos Estados onde residem. É conhecido o sucesso empresarial de muitos madeirenses nos países de acolhimento e a repercussão que isso tem na internacionalização da economia portuguesa e no desenvolvimento da sua Região de origem. Foi com o objetivo de reconhecer e aproveitar esse potencial económico que, no início da déc. de 90 do séc. XX, foi criada a Confederação Mundial dos Empresários das Comunidades Portuguesas, e que, durante as décadas que se seguiram, os órgãos de Governo próprio da RAM criaram e mantiveram condições atrativas para que os empresários madeirenses dispersos pelo mundo investissem na sua terra natal. Em termos estratégicos, os empresários, graças ao seu poder económico, também podem desempenhar um papel decisivo na afirmação da presença cultural das comunidades madeirenses no estrangeiro, reforçando a importância global dessas comunidades nos países de acolhimento, quer sob a forma de mecenato, quer sob a forma de simples ajudas financeiras avulsas. O quadro jurídico-constitucional exclui dos poderes das regiões autónomas os chamados atributos da soberania ou poderes soberanos: política externa, defesa, segurança interna e justiça. Mas não em absoluto, já que, para além do direito de audição junto dos órgãos de soberania sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como em matérias do seu interesse específico (art. 227.º, n.º 1, alínea v), da CRP), e do direito de participar no processo de construção europeia (alínea x) do mesmo artigo), os órgãos de Governo próprio têm o poder de participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que diretamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes (alínea t) do n.º 1 do art. 227.º da CRP). No âmbito da política para as comunidades madeirenses, estes poderes revestem-se de particular importância, quer no que toca à proteção consular, quer na negociação de tratados e convenções internacionais com interesse para a situação dos madeirenses residentes no estrangeiro, quer no que respeita, em geral, à política do Governo central para as comunidades portuguesas. Trata-se, assim, de um raro domínio em que a RAM participa na execução da política externa do Estado português. O regresso definitivo dos madeirenses que residem no estrangeiro é outro aspeto que não pode ser descurado numa política direcionada às comunidades madeirenses. Trata-se de um fenómeno incontornável, cuja dimensão varia consoante a situação interna dos países de acolhimento. O regresso definitivo de tais cidadãos confronta os poderes autonómicos com problemas específicos, nomeadamente no que toca à inserção escolar de crianças e jovens, à integração no mercado de trabalho, a apoios de natureza social e à aplicação de poupanças. Isto significa que os responsáveis aos níveis político, social e económico devem contribuir para a criação de condições adequadas de reinserção, sob pena de o regresso à terra natal se configurar como uma segunda emigração. A participação dos madeirenses não residentes na vida política, cultural, social e económica da RAM é desejável e deve ter maior expressão. Para o efeito, devem ser legalmente reconhecidas as estruturas representativas das comunidades madeirenses e regulado o modo de participação na conceção e execução dos programas de governação regional e autárquica. A forma como se constituem as estruturas representativas no seio das comunidades madeirenses é outro assunto que não pode ser descurado. A este respeito, a lei deve assegurar que a representação seja genuína, democrática e interclassista. Além das estruturas representativas dos madeirenses residentes fora da Região, devem ser criadas e mantidas instituições, de natureza pública ou privada, que constituam uma presença permanente e visível das comunidades madeirenses no seio da sociedade madeirense, sediadas na cidade capital da Região. A título de exemplo, refira-se a necessidade de existência de um fórum das comunidades madeirenses e de uma fundação das comunidades madeirenses, inexistentes no começo do séc. XXI. O fórum disporia dos seguintes espaços: um núcleo museológico, onde estaria presente a memória da saga das migrações madeirenses ao longo dos tempos e o espólio de individualidades madeirenses com responsabilidades políticas na área das comunidades portuguesas e/ou madeirenses; um núcleo cultural, onde estariam patentes obras relacionadas com a temática das comunidades, resultantes da produção intelectual e artística de madeirenses residentes no estrangeiro, ou até residentes na Região, e onde se levariam a cabo iniciativas de natureza cultural; e um núcleo de apoio aos Madeirenses residentes fora da Região, que compreenderia um universo de serviços de resposta às múltiplas necessidades dos não residentes, e dos regressados definitivamente, perante as entidades e serviços da administração pública autónoma, os municípios da Região e as entidades privadas. O outro exemplo consiste em criar uma entidade que seria a fiel depositária e a gestora dos donativos (feitos a título de mecenato ou outro), das doações e das deixas testamentárias de madeirenses que perecem fora da Região ou de residentes – ajudas e patrimónios que seriam administrados de acordo com o interesse dos madeirenses regressados em situação de emergência social, em obras de solidariedade social e em iniciativas de dignificação da presença dos madeirenses no mundo. A participação política nas eleições regionais, legislativas e autárquicas é recomendável. Os madeirenses não residentes, dada a sua dupla cidadania, portuguesa e europeia, têm o direito de participar nas eleições de âmbito europeu e de âmbito nacional, nos termos da respetiva legislação. A este respeito, merecem especial destaque a eleição do Presidente da República e a eleição dos deputados à Assembleia da República. Por tudo quanto fica exposto, é imperativo concluir que a existência de comunidades madeirenses radicadas fora do território da Região, com a importância que assumem, na Região e nos países que as acolhem, exige dos responsáveis políticos a definição de uma política específica, que abranja as múltiplas vertentes em que tal realidade se desdobra, adequada às especificidades de todas e de cada uma dessas comunidades e com visão estratégica e sentido de responsabilidade face aos interesses vitais da RAM.   Manuel Filipe Correia de Jesus (atualizado a 30.12.2016)

Madeira Global

clube funchalense

Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, apontam o Clube Funchalense, criado a 3 de dezembro de 1838, como um dos primeiros clubes do Funchal, tendo os seus estatutos sido aprovados em assembleia geral, ocorrida a 18 de dezembro de 1876, e novamente aprovados pelo governador civil, Francisco d’Alburquerque Mesquista e Castro, a 16 de fevereiro de 1877. Odília Pereira refere todavia que o Clube Funchalense teve dois estatutos ao longo da sua existência: os que foram aprovados em 1853 e os datados de 1876, sob a direção de Gregório Francisco Perestrello da Câmara, J. de Salles Caldeira, Francisco de Castro e Almeida, e Filipe Acciaiolli Ferraz de Noronha. A referida autora, adianta que os estatutos aprovados a 30 de março de 1853 tornam claro que o objetivo desta instituição era “promover, por todos os meios que se possa dispôr, a modesta convivência dos sócios, e de suas famílias: para mútua recreação, e progresso instrutivo” (PEREIRA, 1996, 33). De acordo com os autores do Elucidário Madeirense, a primeira sede do Clube foi uma residência situada na R. do Carmo, tendo sido depois transferida para a R. dos Ferreiros, espaço que ocupou até à sua extinção. Importa notar que este Clube era elistista: o alto comércio tinha admissão imediata e as figuras ilustres que visitavam a Madeira eram convidadas para os bailes e as soireés. Faziam parte do Clube pessoas do continente português e até mesmo estrangeiros. O Clube Funchalense admitia quatro tipos de sócios, a saber: o sócio proprietário, cuja quota rondava os 30$000 réis, acrescidos do pagamento mensal de 1$000 réis; o sócio subscritor residente no Funchal, que pagava a mensalidade de 1$500 réis; o sócio supranumerário que não residia no Funchal e pagava de mensalidade a quantia de 1$200 réis; e, por último, o sócio temporário, que estava sujeito a uma mensalidade de 2$400 réis. Estes pagamentos tinham de ser feitos até ao dia 10 de cada mês. A cada tipo de sócio estavam atribuídos direitos e deveres diferentes, já que os primeiros gozavam de privilégios mais alargados, nomeadamente o de propor candidatos, o de convocar a assembleia geral, o de analisar os livros de contas e o de apresentar uma senhora em cada baile. No entanto, havia um critério comum a todos, tal como consta do art. 7.º dos estatutos aprovados em 1876: só era admitida “pessoa decente, de boa educação e bons costumes, contanto que seja de maior idade ou emancipada” (Id., Ibid., 37). Na realidade, a adesão ao Clube superou a expetativa, como se pode constatar na nota publicada no periódico Chronica, a 18 de maio de 1839: “Este Estabelecimento merece cada vez mais a aprovação dos seus Proprietários e assinantes, e esperamos que continuará a receber o seu apoio para que progrida e melhore se ainda é suscetível de algum melhoramento”. O Clube Funchalense destacou-se nas áreas recreativas, com particular destaque para os jogos, os concertos e, sobretudo, os bailes, que acabaram por lhe dar protagonismo. Era no Carnaval e na Páscoa que se realizavam com maior frequência, embora se tenham encontrado referências a bailes de primavera e de Natal, e ainda a bailes mensais. A publicidade para estes eventos era feita através dos jormais locais. Em 1839, há notícia de um baile realizado a 6 de abril, seguido de um outro, no dia 15 de abril, e ainda de um baile de primavera, realizado a 16 de maio; o que confirma a regulariadade deste tipo de convívio. Um folheto publicado na revista Islenha, em 1857, dá conta da eleição de uma rainha do baile. Importa notar, tal como relembra Susana Caldeira, que o Clube tinha uma missão abrangente no seio da sociedade, já que parte das receitas dos espetáculos era canalizada para instituições, ficando assim demonstrado o carácter benemérito da associação e dos seus membros. No dia 5 de junho de 1839, e.g., foi realizado um baile de subscrição em favor do Asilo de Primeira Infância, tendo-se elogiado na impressa local esta louvavél iniciativa. De acordo com a autora anteriormente referida, os anos 40 mantiveram o glamour das festividades, mas trouxeram novidades, já que Ricardo Porfírio da Fonseca abdicou do cargo, tendo-se convocado os sócios para uma assembleia geral, que ocorreu a 3 de dezembro. Em consequência, a 23 de dezembro, são aprovados novos estatutos , assim como a mesa da assembleia geral e da direção para o ano de 1840. A presidência foi assumida por José da Fonseca e Gouveia, barão de Lordelo e administrador geral do distrito, a vice-presidência por Webster Gordon, e o secretário eleito foi Almeida e Azevedo. A estes juntaram-se Ricardo T. Eduardo Kollway, Oliveira, Júlio Fernandes, T. Burnett, V. de Brito, J. Castello Branco, Burder Taylor Sant’ Anna, Bean, António de Almeida, e Diogo Tellei. Durante os anos seguintes, a impressa local testemunha a ação do Clube Funchalense, dando notícia dos bailes que se vão realizando e dando conta do valor arrecadado pelas subscrições com vista à beneficiência. Todavia, em 1856,  o Clamor Público explica que o Clube enfrentava dificuldades, adiantando, no entanto, que uma nova direção tinha tomado posse e tinha promovido a renovação das salas do edifício. Na verdade, o morgado Diogo d’Ornelas de França Frazão toma as rédeas da instituição e sabe-se que o baile de Páscoa foi muito concorrido e animado. No que diz respeito ao edifício propriamente dito, foi possível apurar que o seu estado de degradação se foi acentuando com o passar dos anos, pelo que, em junho de 1867, foram levados a cabo trabalhos de manutenção e melhoramentos sob a direção de Pedro Júlio Vieira, ao qual a imprensa local tece os maiores elogios. Tendo por base os estatutos, sabe-se que existiam várias salas de reuniões, uma sala de leitura, salas de jogo, nomeadamente para bilhar, xadrez e outros. A sede funcionava todos os dias entre as 10 h e as 24 h, exceto nos dias de baile, em que encerrava mais tarde. Gradualmente, a frequência dos bailes foi diminuindo e durante o final de Oitocentos, as referências a estes convívios tornam-se cada vez mais escassas. Porém, e aquando da visita de Sua Majestade, a Imperatriz da Austria, e de Sua Alteza Real, o infante D. Luiz, a 17 de abril de 1861, o Clube promoveu um baile em sua honra. Surge ainda, em 1874, uma notícia acerca de um baile a favor do Asilo de Mendicidade e Orfãos, cuja receita atingiu 320$000 réis, situação que se repetiu a 17 de janeiro de 1877, tendo a imprensa local elogiado a “deslumbrante decoração da entrada e das salas onde domimavam as luzes e as flores” (Id., Ibid., 34).  O esforço de João de Freitas da Silva, tesoureiro do Clube, que teve a seu cargo a decoração das salas, por recuperar de tempos mais recuados o bom gosto em que os bailes primavam e a sociedade refinada que os frequentava, foi visível. Em meados do séc. XIX, alguns periódicos locais encheram-se de uma animada troca de críticas; acusavam-se alguns cavalheiros de jogar no Clube a dinheiro. Em 1899, há notícia de que se jogava à roleta todas as noites, enumerando-se os sócios que frequentavam o Clube assiduamente, entre eles: Joaquim Simões Cantante, juiz de Direito, Joaquim Augusto Machado, delegado do procurador régio, conde do Ribeiro Real, e José Maria Malheiro, administrador do concelho. Por volta de 1899, houve uma tentativa de dissolver o Clube Funchalense, tendo sido agendada uma reunião para o dia 18 de fevereiro com o objetivo de debater a questão. Apurou-se que a assembleia geral foi adiada para o dia 15 de junho. A intenção inicial de pôr termo ao Clube, manifestada por um grupo de 14 sócios, foi abandonada. No entanto, uma notícia saída a público no Diário de Notícias da Madeira a 5 de abril de 1901 dá conta de que o Grémio dos Bordados pretendia ocupar o espaço que tinha servido de sede ao Clube Funchalense, fazendo supor que o mesmo deixara de existir.   Cláudia Faria (atualizado a 30.12.2016)

Sociedade e Comunicação Social

exílio

“Exílio” (lat. exilium) significa banimento, desterro ou degredo, sendo o estado de ter sido expulso e estar longe da própria casa, cidade ou nação, podendo assim ser definido também como a expatriação, voluntária ou forçada, de um indivíduo. Alguns autores utilizam o termo “exilado” no sentido de refugiado, embora esta última situação se enquadre somente no quadro de autoexílio ou exílio voluntário, como aconteceu na Madeira no período do absolutismo miguelista. No contexto da Madeira, a situação de exílio, ao contrário da situação de asilo, que pressupõe a ida de elementos nessa situação para a Ilha, aponta para a expulsão de elementos madeirenses da sua casa ou da sua terra. Além de pessoas, pode haver também governos em exílio, como o do Tibete face à invasão do seu território pela China, ou mesmo nações em exílio, como foi o caso dos judeus, exilados na Babilónia no séc. IV a.C. e, depois, após a destruição de Jerusalém, noutros locais, no que ficou conhecido como diáspora. Tal foi também, entre 1078 e 1375, o caso da Arménia, que, depois da invasão do seu território por tribos seljúcidas, se exilou na baixa da Anatólia, na posterior Turquia, formando um novo reino. O termo não tem sido extensivo à deslocação da corte portuguesa para o Estado do Brasil, até então vice-reino, por se entender que se manteve em território nacional. Tal território foi inclusivamente elevado a reino, passando D. João VI, a partir de 16 de dezembro de 1815, a intitular-se Rei de Portugal, Brasil e Algarves, reino que, a partir de 13 de maio do ano seguinte, passou a ter armas próprias. Alguns indivíduos, sentindo-se ameaçados ou vítimas de perseguição política, racial ou religiosa, podem igualmente procurar exílio por iniciativa própria em outros locais ou países, sem que tenha havido qualquer ato legal ou jurídico para tal. Costuma chamar-se a essa atitude autoexílio ou exílio voluntário, embora essa posição seja, na generalidade, desvalorizada pelas autoridades no poder por não configurar um exílio imposto, ou seja, oficial, não sendo assim facilmente detetada na documentação. Somente em meados do séc. XVIII se pode escrever concretamente sobre situações de exílio na Madeira, pois que até então não havia uma concreta consciencialização política que permitisse equacionar tais casos. Porém, já nessa altura ocorreram inúmeras situações de degredo, mas por processos judiciais e não políticos ou religiosos, como na contemporaneidade. Ao analisarmos, e.g., a documentação da Inquisição, constatamos que, nos finais do séc. XVI, terá havido uma forte corrente de autoexílio por parte da comunidade de cristãos-novos madeirenses, quer para Amesterdão, quer para o Brasil. Tal não se terá devido a motivos especificamente religiosos, mas ao medo de futuras denúncias relativas à sua situação, pelo que, instalando-se na Holanda, logicamente acabariam por professar o judaísmo. A ilha da Madeira foi visitada, nos finais do séc. XVI, entre 1591 e 1592, pelo inquisidor Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1550-1614), que, entre 1600 e 1614, foi bispo de Angra, tendo sido denunciadas quase 200 pessoas e organizados quase 100 processos, na base dos quais se viria a organizar depois o “Rol dos Judeus e seus Descendentes”. Em 1618, voltou a haver nova visitação, então a cargo de Francisco Cardoso de Torneo, deputado do Tribunal de Coimbra, que terá ficado surpreendido com a escassez de denúncias por judaísmo na Madeira. Assim, a 23 de outubro de 1623, foi à Inquisição de Lisboa Francisco Gomes Simões, cristão-velho, piloto de nau e morador na Madeira, para informar que, tendo partido da Madeira para a Flandres cerca de 5 anos antes, vira ali muitos portugueses fugidos do reino, que lá viviam como judeus. Francisco Simões denuncia cerca de uma dezena de pessoas, entre as quais três que tinham vivido na Madeira: “porquanto ele denunciante partindo das ilhas para a dita cidade de Amesterdão, o senhor Francisco Cardoso, inquisidor, que então visitava as ditas ilhas, lhe encomendou que fizesse na dita cidade diligências sobre as pessoas de nação que para ali eram fugidas, de que ele, denunciante, as fez muito largas e lhas mandou das ditas ilhas” (ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n.º 202, fl. 301). O autoexílio em questão dos três cristãos-novos detetado nos inícios do séc. XVII era, assim, perfeitamente residual, o mesmo se passando nos dois séculos seguintes, ainda que existissem sempre informações pontuais sobre o autoexílio da chamada gente de nação. Nos meados do séc. XVIII, com a centralização do poder régio e a ação do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), existem casos de exílio por razões políticas, embora à data não fossem naturalmente assim apresentados. O referido governador, e.g., mandou prender e degredar para o norte da Ilha o P.e João José Bettencourt de Sá Machado (1707-1781), que, embora mulato e filho de uma escrava, frequentara a Universidade de Coimbra, fazendo-se inclusivamente acompanhar de um criado branco. O padre afrontara, em várias reuniões, as despóticas diretivas do governador, alvitrando que, como capitão-general, a sua ação se deveria restringir à organização militar e pouco mais. Estas opiniões valeram-lhe o desterro do Funchal, não se cansando o governador de repetir que o “soberbo, arrogante e dissoluto clérigo”, “pardo por nascimento, como filho que é de uma preta”, afrontava as suas ordens (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 4804 e 4805). O clérigo em causa era meio tio-avô de Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1786), levando a família a intervir a seu favor na corte de Lisboa. O Gov. João António de Sá Pereira tomou idêntica atitude com o Cón. Pedro Nicolau Acciauoli e com o Cón. António Acciauoli, assim como com o P.e Luís Spínola, todos enviados para Lisboa sob escolta do sargento-mor, o que levou o intendente Pina Manique (1733-1805) a investigar a atitude do governador, ouvindo o sargento-mor a esse respeito. O clero madeirense nem sempre se pautou pela contenção devida ao seu ministério. Note-se, e.g., que, tendo-se reformado o P.e António Maria do Sacramento, capelão da infantaria de guarnição da Madeira, propôs-se a nomeação do P.e Francisco José da Silva. No entanto, como expôs para Lisboa o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1798) (Coutinho, D. Diogo Pereira Forjaz), “algum tempo depois da expedição desta proposta, ele se ausentou fugitivamente desta ilha, por se lhe imputar o crime de esperar traiçoeiramente um homem” e o tentar assassinar à espadeirada (ABM, Governo Civil, liv. 519, fls. 141v.-142). O padre, entretanto, não voltou à Madeira, acabando o governador por ter de apresentar outro para o lugar. O referido exílio do P.e Bettencourt de Sá Machado para o norte da Ilha não foi caso único. Na complexa situação da ocupação inglesa de 1801 a 1802, o Gov. José Manuel da Câmara (c. 1760-c. 1825), em 1803, chegou a exilar o bispo D. Luís Rodrigues de Vilares (c. 1740-1810) para o Santo da Serra. O bispo teria tido reuniões secretas com o cônsul inglês e com outros elementos dados como maçons, pelo que, em junho de 1803, o governador comunicou tal situação para Lisboa, fixando-lhe residência no Santo da Serra e proibindo-o de entrar no Funchal. A decisão foi revogada pelo Governo de Lisboa num curto prazo de meses, a 22 de agosto, mas a situação de conflito entre as duas autoridades não deixou de piorar, pelo que acabaram por ser obrigados a regressar a Lisboa em navios separados. Na Madeira, a situação complicou-se nos finais do séc. XVIII com a verdadeira guerra levada a efeito pelo bispo do Funchal, D. José da Costa Torres (1741-1813), contra as lojas maçónicas (Maçonaria). O bispo arvorou-se em defensor dos interesses da Coroa e do Estado, posição que, prudentemente, não quis assumir o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, perseguindo o prelado, feroz e primariamente, os elementos que entendia ligados à Maçonaria. O bispo perseguiu a tal ponto os presumíveis maçons do Funchal, em princípio com o tácito acordo do governador e até com ordens emanadas de Lisboa, que famílias inteiras tiveram de abandonar a Madeira. D. José da Costa Torres exorbitou, assim, a tal ponto as ordens recebidas, que o próprio Governo central teve que intervir nos excessos praticados pelo prelado, ordenando-lhe que soltasse grande parte dos acusados e “recomendando-lhe a maior moderação no castigo dos delinquentes” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 918). A perseguição envolveu civis, militares e eclesiásticos, citando-se em documento oficial que, inclusivamente, “demitira, suspendera e prendera, por castigo alguns eclesiásticos” (SILVA e MENESES, 1998, I, 326), pelo que, tendo já sido transferido para Elvas, foi violentamente levado da sua residência privada, então na Penha de França, para o embarcarem para o continente. A memória das lojas maçónicas madeirenses manter-se-ia na corte de Lisboa. Dissolvidas as Cortes, derrogada a Constituição de 1822 e restabelecido o Governo absoluto em julho de 1823, a Madeira era de novo assolada por uma alçada. Em causa estavam as questões das lojas maçónicas, dos vagos mas emergentes partidos políticos (Partidos políticos) e das ligações às ideias liberais, tudo indiciando que os madeirenses queriam subtrair-se à Coroa portuguesa e ligar-se à Inglaterra. Num breve espaço de tempo, havia mais de uma centena de presos, embora só viesse a ser condenada uma dezena deles. De qualquer forma, eram muitos os indiciados e vários saíram da Madeira. A Ilha veio, assim, a ser desapropriada de muitos dos seus principais quadros, entre morgados, funcionários públicos, cónegos e vigários, escritores, militares de todas as patentes, etc. Tal alçada não seria, infelizmente, a última, pois, com a tomada de poder pelo infante D. Miguel (1802-1866), em 1828, e conquistada a Ilha pelas forças absolutistas, nova alçada era enviada à Madeira, levando à prisão quase duas mil pessoas acusadas de “malhados” e maçons. Num curto espaço de tempo, a Ilha perdia, de novo, exilados para Cabo Verde (Cabo Verde), Angola e Moçambique, parte dos seus principais quadros sociais e económicos, militares, administrativos e religiosos. Muitos deles não voltariam à Madeira, optando por ficar em Londres e, depois, no continente, havendo uma parte que optou por emigrar para o Brasil. Ao longo dos sécs. XIX e XX, a Madeira foi um dos principais locais de exílio das várias revoltas políticas ocorridas no continente. Na sequência, e.g., da Revolta de Torres Vedras, a 4 de fevereiro de 1844, foram enviados para a Madeira 23 dos insurgentes, entre advogados, eclesiásticos e militares. Os primeiros deram entrada na fortaleza do Ilhéu a 20 de abril, e os seguintes na do Pico, mas todos vieram a ser colocados em liberdade após o malogro da Revolta. Também ao Funchal chegavam, a 8 de maio de 1919, os prisioneiros políticos da Revolta de Monsanto, a bordo do vapor África, da Empresa Nacional de Navegação, o qual fora arvorado em transporte de guerra. Os deportados monárquicos, em número de 289, foram acompanhados de uma força da Marinha, desembarcando três dias depois e sendo instalados no Lazareto de Gonçalo Aires. Não obstante as precauções, no dia 3 de junho deu-se pelo desaparecimento de oito prisioneiros, sabendo-se depois que tinham chegado a Las Palmas, na lancha rápida Glafiberta, pertencente ao sportsman Humberto dos Passos Freitas (1893-1926) (Freitas, Humberto dos Passos), que preparara a evasão. A situação mais complicada veio a ocorrer com a Revolta do Porto, de 1927, na sequência da qual uma série de militares foi para a Madeira. Embora deportados, estes gozavam de uma certa liberdade de movimentos e de contactos, podendo alguns estar por detrás do movimento popular conhecido como Revolta das Farinhas, entre 4 e 9 de fevereiro de 1931 (Revolta das Farinhas). A ditadura destacou então para a Madeira uma força especial, sendo os oficiais subalternos da mesma quem desencadeou, a 4 de abril de 1931, a chamada Revolta da Madeira (Revolta da Madeira). Na sequência deste acontecimento, constituiu-se um Governo autónomo com os principais militares deportados na Ilha, mas também civis, como Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969), que fora ministro das Finanças do Governo de José Domingos dos Santos (1885-1958), nos finais de 1924 e inícios de 1925. A ditadura responderia um mês depois, quase com todas as forças disponíveis no continente, inclusivamente hidroaviões, recuperando a situação, tendo então os principais revoltosos sido deportados para Cabo Verde e Moçambique. O Ten. Manuel Ferreira Camões (1898-1968) e o Ten. Manuel Silvio Pelico de Oliveira Neto (c. 1888-1953) haviam de se radicar na ilha de S. Nicolau, em Cabo Verde, lugar onde continuaram a ser recordados (Cabo Verde). Deportados da Revolta da Madeira em Cabo Verde. 1932. Arquivo Rui Carita Pela Madeira tinham, entretanto, passado exilados internacionais de grande destaque, como, em 1921, o ex-Imperador da Áustria, posteriormente designado por beato Carlos de Habsburgo (1887-1922), acompanhado da família. Depois de breves dias na Vila Vitória, anexa ao Reid’s Palace Hotel, instalou-se na Qt. do Monte (Quinta do Monte), onde viria a falecer de pneumonia dupla a 1 de abril de 1922, sendo os seus restos depositados na igreja de N.ª Sr.ª do Monte, onde permaneceram. Estaria também alguns dias no Reid’s Palace Hotel, nos finais de 1959, o Gen. Fulgêncio Batista (1901-1973), que havia sido derrotado pela Revolução Cubana em janeiro desse ano. Mais tarde, o Funchal ainda seria local de exílio dos principais governantes portugueses afastados com o pronunciamento militar de 25 de abril de 1974: o ex-Presidente da República Américo de Deus Rodrigues dos Reis Thomaz (1894-1987), o ex-presidente do Conselho José das Neves Alves Marcello Caetano (1906-1980) e os ex-ministros Joaquim Moreira da Silva Cunha (1920-2014) e César Moreira Baptista (1915-1982).   Marcello Caetano e Américo Thomaz na Madeira. Comércio do Funchal.01.05.1974. Arquivo Rui Carita   Declaração de Entrega dos Ex-membros do Governo. 26.05.1974. Arquivo Rui Carita           Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

Madeira Global

união, clube de futebol

A associação de recreio União Foot-Ball Club nasce em 1913 com o objetivo de promover os exercícios desportivos, náuticos e terrestres. Todavia, a vertente náutica deste clube, fortemente contemplada nos estatutos a que tivemos acesso, quer por fixar o registo das embarcações e material adquirido, quer pelas provas e concursos desportivos a desenvolver, não se viria a materializar. O União Foot-Ball Club, cuja nomenclatura deixava clara a intenção maior da sua origem, surge, à semelhança de inúmeros clubes da época, na R. de Santa Maria, no Funchal, fruto de uma contenda entre membros que integravam a equipa do Grupo União Marítimo, uma equipa de infantis constituída por jovens residentes junto ao campo D. Carlos, rapidamente batizado, com a República, campo Almirante Reis, em homenagem ao mártir Carlos Cândido Reis (1852-1910). Era uma equipa associada ao Marítimo até ter existido uma discussão em torno da compra, sem autorização, de duas balizas que haviam custado 2$70 e que eram pertencentes ao entretanto extinto Clube Operário Madeirense. Dessa discussão resultou a separação da equipa, tendo César da Silva levado para sua casa a primeira sede do União Foot-Ball Club, a 1 de novembro de 1913, coadjuvado por Ângelo Olim Marote, Luís Vieira Guerra, João Fernandes Rosa,  Alexandre de Vasconcelos,  José Anastácio do Nascimento  e  João Ferreira. O logótipo do União é aquele de que mais versões se conhecem. Muito semelhantes entre si, mantém-se o azul e o amarelo, listado, cores que mais tarde seriam escolhidas para representar a Região. O símbolo em forma de escudo com listas azuis e amarelas é rasgado por uma faixa branca com as iniciais do clube “U.F.C.”, mais tarde “C.F.U.”, tendo no cimo o capacete de Hermes, deus da fertilidade na mitologia grega. Nos primeiros anos do futebol na Madeira, sentiu-se a necessidade de contribuir para que a modalidade seguisse por um caminho de prestígio e de seriedade. Nesse âmbito, do União e do Insulano – grupo desportivo, inaugurado oficialmente a 4 de junho de 1916, que terá um papel muito importante no futebol da Madeira, uma vez que será, entre outros, o responsável pela redação dos primeiros estatutos da Associação de Futebol do Funchal, anos mais tarde denominada de Associação de Futebol da Madeira – partia a iniciativa de reunir as direções dos vários clubes, na sede do segundo, à R. da Queimada de Baixo, também no Funchal. O objetivo central seria a fundação de uma liga desportiva, o único meio de se acabar com as rivalidades que tanto prejudicavam o desporto madeirense. A proposta em discussão seria constituir na cidade uma liga entre clubes, destinando-se, inicialmente, a acordar entre todos os grupos, clubes ou associações desportivas um projeto de estatutos de uma associação, ao exemplo do que acontecia em Lisboa. Assim, em 1916, nascia a Associação de Futebol do Funchal (AFF), tendo sido organizado nesse mesmo ano o primeiro campeonato de futebol da Madeira. Nem oito dias depois da publicação, nos periódicos da época, do que é ser um bom futebolista, o jogo entre o União e o Marítimo, com vitória do primeiro sobre o segundo, acabava envolto em polémica. O jogo é anulado pela AFF com o intuito de ser repetido, mas o União não aceita a decisão, recorrendo junto deste órgão, que, pela pressão de não conseguir resolver o conflito, acabará por ficar inativo dois anos após a sua criação, e por dois anos, não havendo, por isso, competições oficiais em 1919 e 1920. A Associação ressuscita e, na época  1920/1921, a competição regressa, com a disputa do 3.º Campeonato da Madeira, acabando com a vitória do  União.  A partir da época 1921/1922, começa a realizar-se o  Campeonato de Portugal, mas o representante madeirense apenas entrará na competição na época seguinte. O União alcança esse feito na época 1927/1928, defrontando e quase vencendo o Sport Lisboa e Benfica. O União vivia muito para as atividades de lazer, para as excursões com jogos à volta da Ilha, mas também para causas solidárias. Na rubrica “Vida Sportiva” do Diário da Madeira de 4 de julho de 1915, anunciava-se que o União iria, em excursão, a Santa Cruz, acrescentando que “registamos sempre com prazer excursões desta natureza em que a nossa mocidade abandonando a vida ociosa da cidade vai retemperar o seu físico em exercícios proveitosos”(DM, 4 jul. 1915, 1). Outras notícias de 1917 davam conta de que o Club Sports Madeira e o União faziam reverter as entradas do jogo disputado entre ambos em benefício da viúva de António Fernandes, antigo jogador do Marítimo, provando, uma vez mais, que a solidariedade e a preocupação social não distinguem cores nem se alimentam de clubismos, realidade corroborada pelo sucedido no jogo noticiado pelo Diário da Madeira, na antevéspera do Natal de 1917, revelando que num jogo entre o Marítimo e uma equipa mista a verba angariada seria entregue a um fundador do União que à data se encontrava doente e em precárias circunstâncias. Na déc. de 40, o clube entra em crises sucessivas. A modalidade-rainha, o futebol, já não conseguia fazer ignorar os problemas internos. Em julho de 1945, o Diário de Notícias anunciava que o delegado da Direção-Geral dos Desportos havia dissolvido a direção do União, à exceção do presidente, após os desacatos entre jogadores e a direção, na final da Taça da Madeira. Depois de resolvido o conflito, o União vai entrar numa era de grande atividade desportiva, em muito devido ao mestre Medina, jogador que fez furor na déc. de 50 e que, através do hino, o União imortalizou. De facto, as décs. de 50 e 60 representaram as décadas de maior sucesso do clube. A nível regional, o União venceu, por sete vezes consecutivas, o Campeonato da Madeira, entre a época desportiva 1955/1956 e 1962/1963. Tomando presença na luta nacional contra o analfabetismo, o União dispõe, em 1954, de cursos de instrução primária na sua sede para os seus atletas, desde os infantis até à equipa de honra. O clube promove ainda, e sempre que possível, palestras e ações de formação, nomeadamente conferências técnicas e sociais destinadas aos árbitros. Com a autonomia política administrativa da Madeira, assiste-se à passagem de um desporto elitista para um desporto massificado. A ascensão do clube aos nacionais de futebol ocorreu na temporada 1979/1980, com o clube a entrar na III Divisão Nacional. Após duas épocas, sobe à II Divisão Nacional. Mas será na época de 1988/1989 que se viverá o momento mais alto da história do União, então liderado por Jaime Ramos e treinado por Rui Mâncio. Após vencer a Zona Sul da II Divisão Nacional, disputa a sua primeira época nos mais importantes palcos nacionais na época 1989/1990, juntando-se ao Marítimo e ao Nacional. Ficará no escalão máximo do campeonato nacional de futebol durante duas épocas até descer à  II Divisão de Honra, em  1991/1992. No entanto, volta a subir na época seguinte, igualando a melhor classificação obtida, em  1993/1994, na época em que regressa ao Campeonato Nacional da I Divisão, abandonando-a logo na época seguinte. Na época de 1998/1999, com o advento da Sociedade Anónima Desportiva (SAD), o clube cai na  II Divisão Zona Sul, conseguindo em 2001/2002 vencer a Zona Sul e regressar à II Liga. No entanto, os sucessivos sobe-e-desce teimam em repetir-se, ficando em último lugar, indo competir novamente na Zona Sul da II Divisão B. A estrutura da  competição onde o União está inserido muda no final de  2004/2005, passando a ter acesso às competições profissionais apenas dois clubes de um conjunto de quatro séries com 16 equipas. O União é colocado na Série B, conseguindo na primeira época o segundo lugar, tendo ganho a Série na época  2006/2007, contudo falha a qualificação ao perder com o Freamunde. O União consegue subir de divisão, garantindo lugar na Liga de Honra, após dois anos consecutivos a perder no play-off. Em 2011/2012, integrou a II Liga, lugar que ocupa até à época 2014/2015. Ao longo de 100 anos de existência, e apesar de se ter dedicado ao futebol, o União brilhou em outras modalidades importantes, como o andebol, o voleibol, o hóquei em patins, a esgrima, o basquetebol e o râguebi, modalidade introduzida na Madeira pelo clube, movimentando, na temporada de 2005/2006, cerca de 310 atletas federados e conquistando vários prémios, entre os quais a medalha de bons serviços desportivos, a medalha de prata do Instituto de Socorros a Náufragos e a medalha de ouro da Cidade do Funchal. Garantiu, ainda, 1 presença no Campeonato de Portugal (1927/1928), 6 presenças na I Liga (1989/1990, 1990/1991, 1991/1992, 1993/1994, 1994/1995 e 2015/2016), 5 presenças na Liga de Honra (1992/1993, 1995/1996, 1996/1997, 1997/1998 e 1998/1999), 6 presenças no Campeonato Nacional da II Liga (2002/2003, 2003/2004, 2011/2012, 2012/2013, 2013/2014 e 2014/2015), 2 presenças na III Divisão Nacional, 37 presenças na taça de Portugal, 62 presenças e 17 títulos no Campeonato da Madeira, 59 presenças e 15 títulos na taça da Madeira, 8 títulos na taça Cidade do Funchal e 3 títulos na taça de Honra e no torneio Autonomia.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 04.01.2017)

Sociedade e Comunicação Social

urbanismo do estado novo

A arquitetura em Portugal sofreu alguma estagnação entre o final do século XIX e a Primeira República, em parte motivada por um certo isolamento da sociedade da época e, neste caso particular, pelo frequente aproveitamento e adaptação dos edifícios das comunidades religiosas extintas para alojar serviços e repartições públicas. Para tal, muito terá contribuído a crescente contestação à governação monárquica e a afirmação dos ideais republicanos, que preconizavam o afastamento da Igreja do poder político, bem como a cativação de muitos dos seus bens, que passaram para a posse do Estado. Cumulativamente, podia constatar-se que os arquitetos, como classe profissional, tinham então também escassa relevância social e cultural, por um lado devido à escassez de projetos, mas também à concorrência com os engenheiros civis, que lhes disputavam as encomendas. Entre arquitetos e engenheiros travou-se um contínuo debate, pois considerava-se que aos primeiros se associavam, fundamentalmente, as questões formais e estéticas, minimizando os problemas construtivos, meramente técnicos ou estruturais. Deste modo, inicialmente os arquitetos não exploraram devidamente as potencialidades dos novos materiais e sistemas construtivos, dando oportunidade aos engenheiros de ensaiarem e concretizarem nas obras públicas e utilitárias os novos elementos como o ferro, o vidro, o aço e o betão armado. Assim, os engenheiros assumiram particular importância, pois a aposta estava na criação de um mundo moderno, baseado nas potencialidades e inovações da máquina. Em Oitocentos o contributo para o aparecimento de obras, sobretudo utilitárias, deveu-se ao avanço da industrialização no país, onde se evidenciou a arquitetura do ferro. Este material, conjugado com materiais tradicionais e trabalhado com desenhos e formas revivalistas, contribuiu para a expansão de uma arquitetura eclética, sendo gradualmente substituído pelo betão armado. A diversidade que se podia observar na arquitetura portuguesa de então traduzia bem as incertezas estilísticas da época. A esse ecletismo o arquiteto Raul Lino (1879-1974) soube contrapor, com grande intuição cultural, o seu princípio de casa portuguesa. Ao apelar para um romântico ruralismo e até mesmo eclético nacionalismo, a casa portuguesa de Raul Lino procurou a definição do sentido da cultura e da alma portuguesas. Lino baseava-se, sobretudo, na nostalgia e na procura metafísica das raízes culturais e mentais do nosso país, sendo contra a importação de modas estrangeiras, nomeadamente francesas, protagonizadas pelos arquitetos Ventura Terra (1866-1919) e Marques da Silva (1869-1947). O singular modo de Raul Lino abordar a arquitetura, bem diferente das ideias que Marques da Silva e Ventura Terra tinham adquirido em Paris, terá, certamente, provindo da sua educação repartida por Portugal, Inglaterra e, especialmente, a Alemanha. Ali, Raul Lino frequentou a Handwerker und Kunstgewerbeschule e a Technische Hochshule de Hannover tendo praticado no atelier de Albrecht Haup (1852-1932), arquiteto conhecedor e apreciador da arte portuguesa da Renascença. Com ele, certamente, terá aprendido que a reinvenção da arquitetura deveria basear-se no conhecimento da mais brilhante época de cada país, que em Portugal se situava por volta dos séculos XVII e XVIII. Na sua obra sente-se a procura constante por uma perfeita integração no meio, que o levou a adotar técnicas e materiais das regiões às quais se destinavam os projetos. Deste modo valorizou, por um lado, o nacionalismo, por outro, uma arquitetura de caráter regional. Miguel Ventura Terra e Marques da Silva, arquitetos da mesma geração, protagonizavam um outro modo de ver e projetar. De regresso a Portugal, ambos em 1896, fixaram-se o primeiro em Lisboa e o segundo no Porto. Ventura Terra, republicano convicto, ganha nesta data o concurso internacional de adaptação do velho convento de S. Bento a Palácio das Cortes e inicia assim o seu percurso de arquiteto em Portugal projetando a transformação de um espaço religioso às suas novas funções. Estes dois arquitetos cosmopolitas desenvolveram os seus projetos numa linha mais conforme com o gosto dos grandes centros europeus, aliando-os a uma prática eclética dominante na arquitetura portuguesa de inícios do século XX. Da sua produção destaca-se essencialmente a introdução de um racionalismo e de um sentido europeizante numa arquitetura que passara por um período de pouco desenvolvimento. À volta destes pressupostos construía-se o percurso da arquitetura moderna em Portugal. Foi um percurso com avanços e recuos, numa adesão formal a vários revivalismos historicistas ou ecletismos mais académicos, que se articulavam com uma progressiva utilização de novos materiais. Num país política e culturalmente conturbado, a aprendizagem parisiense não pôde ser plenamente exercida, apesar dos esforços por encontrar caminhos de prosperidade para a sua implantação. A burguesia que se afirmava nos grandes centros urbanos não se revia numa arquitetura de feição europeia nem se ajustava ao gosto parisiense. Nos inícios da década de 20 de Novecentos alguns fatores contribuíram para relativas mudanças no domínio da arquitetura portuguesa. Por um lado, o registo de uma ligeira recuperação no setor económico português, que originou algum investimento na arquitetura, especialmente na de caráter particular. Por outro lado, a acompanhar este desenvolvimento esteve um fator de ordem política, mais concretamente a substituição do governo republicano pelo governo do Estado Novo, que apoiou a construção de alguns edifícios modernistas, apostou nas obras públicas e contribuiu para a crescente relevância e ascensão da classe dos arquitetos. A progressiva utilização do betão armado, inicialmente em paralelo com processos tradicionais de construção, favoreceu a assimilação de novas formas arquitetónicas ligadas a uma estética modernista. O betão armado permitiu uma grande flexibilidade na construção de elementos com maior simplicidade formal, numa clara adesão à art deco de características internacionais. Assistimos, nesta fase, a uma renovação técnica e estilística da arquitetura, a que correspondem edifícios que ainda ostentam uma estrutura convencional, com linhas verticais nas fachadas, paredes de alvenaria e tijolo, pavimentos de madeira e uso esporádico do betão. A decoração adotada é geometrizante e de alguma forma sublinha o abandono do gosto barroquizante, característico dos finais de século XIX. Ao longo dos anos 20 inicia-se a atuação da primeira geração de arquitetos modernistas, conhecida por Geração do Compromisso e constituída pelos cinco grandes: Cassiano Branco (1897-1970), Pardal Monteiro (1897-1957), Cristino da Silva (1896-1976), Carlos Ramos (1897-1969) e Jorge Segurado (1898-1990). As suas propostas deram o arranque para uma nova mentalidade arquitetural que se afirmou nos anos 30, sobretudo associada a programas fomentados pelo Estado Novo, que se caracterizou por um forte investimento em obras públicas, como programa de melhoramentos materiais e estratégia de absorção do desemprego. O engenheiro Duarte Pacheco (1900-1943) foi o grande impulsionador deste vasto programa, até à sua inesperada morte em 1943, tendo sido criadas novas oportunidades para os jovens artistas e arquitetos que foram chamados a intervir. Segundo José Manuel Fernandes, é evidente a apropriação de uma estética vanguardista com conotações diversificadas, que passam pelo futurismo italiano e o nacionalismo funcionalista alemão, se algumas vezes de forma superficial, noutras já bem eclética (OLIVEIRA, 2000, 10). Este programa estético encontrou obstáculos nos autores que pugnavam por uma arquitetura mais conservadora e nacionalista, que deveria mostrar a especificidade portuguesa com referências genuinamente retiradas dos chamados estilos nacionais. Em 1933, Raul Lino defendia que «o internacionalismo na arquitetura devia ser proibido superiormente, se não houvesse já razões de ordem técnica e material para ser condenado». E afirmava mesmo que deveria ser imposta a máxima: «Façam-se casas portuguesas em Portugal» (Ibid.). A discussão iria gerar ainda mais polémica nos anos 40, quando Arnaldo Ressano Garcia (1880-1947), presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes e seguidor das teorias estéticas nazis, se opôs determinantemente aos modernismos suspeitos de internacionalismo marxista e preconizou uma arte de regime celebrativa, monumental e fortemente académica. Com esta atitude, nos anos 40 ganharam força o gosto revivalista e um certo retrocesso estilístico que foi ao encontro de encomendas estatais de obras de representação com a sua monumentalidade, algo bem patente na arquitetura dos pavilhões da Grande Exposição do Mundo Português, de 1940. Esta iniciativa concretizou-se em Lisboa, na zona de Belém, junto ao Mosteiro dos Jerónimos, tendo reunido trabalhos dos principais arquitetos, artistas e decoradores portugueses e obedecendo plasticamente a um estilo português de 1940. É um estilo oficial, de cariz historicista e monumentalista, que associa elementos representativos da arquitetura nacional com elementos de tendências clássicas. Com este evento, sobressaiu não apenas o aspeto retrospetivo, mas também a celebração da política do Estado Novo. Duarte Pacheco [Campo] e António Ferro (1895-1956) foram os grandes mentores deste acontecimento, incluído num vasto programa de comemorações centenárias que aconteceram por todo o país. É a fase da exaltação do portuguesismo, em que a arquitetura é chamada a expressar os valores da tradição, ordem e autoridade, com António Ferro no Secretariado da Propaganda Nacional. Surgem assim projetos urbanísticos de grandes espaços, como o Parque Eduardo VII e a Fonte Luminosa, e nas cidades portuguesas os prédios de habitação dos anos 40 a 50 seguem este modelo. No caso de Lisboa, «A Câmara fornecia as plantas, convidava certos projetistas e obrigava à inspiração em fachadas de três ou quatro imóveis do século XVIII existentes em Lisboa» (FERNANDES, 1990, 279). Também na construção da habitação individual se recorre a uma gramática decorativa de cariz regionalista e ruralizante, bem como no equipamento das províncias, em escolas primárias ou edifícios dos correios. Muitas das intervenções dos primeiros anos da década de 40 espelham a busca do rigor clássico, da monumentalidade, de estádios e alamedas, de uma retórica de poder. São de assinalar, como núcleos de excelência, a construção da Cidade Universitária (1940 a 1953), da Biblioteca Nacional (finais da década de 50) ou do Estádio Nacional (1943-1944) de Miguel Jacobetty Rosa (1901-1970). Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a condenação internacional dos fascismos, instala-se um clima de agitação cultural e afirma-se um grupo de arquitetos oposicionistas liderados por Keil do Amaral (1910-1975). Forma-se o grupo ICAT (Iniciativas Culturais Arte e Técnica) e constitui-se no Porto a Organização dos Arquitetos Modernos (ODAM). Com a realização do I Congresso Nacional de Arquitetura, em 1948, que coincide com a Exposição Quinze anos de Obras Públicas, dá-se o ponto de viragem, pois são feitas ácidas críticas à arte oficial e exige-se a liberdade de criação e a valorização da modernidade. A década de 50 irá ser confrontada com a resistência dos modelos da Europa pós-guerra e de Brasília, que tiveram grande peso, enquanto se mantém o estilo oficial na construção dos hospitais escolares de Lisboa e Porto, do alemão H. Distel, ou da Cidade Universitária de Coimbra, de José Ângelo Cottinelli Telmo (1897-1948). Como sinais de uma certa renovação, são de salientar o plano de urbanização de Alvalade, do arquiteto urbanista João Guilherme Faria da Costa (1906-1971), também com obra no Funchal, em 1945, o cinema S. Jorge, em 1947, e o cinema Império, de 1949 a 1951, de Cassiano Branco. Na Madeira, no campo da arquitetura, poder-se-ão constatar idênticas facetas na evolução da arquitetura urbana de 1900. Tal como no Continente, poucas obras de vulto se edificaram nas duas primeiras décadas. Na cidade do Funchal, surgiram projetos de menor vulto, sobretudo de adaptação de edifícios urbanos a estabelecimentos comerciais ou pequenos projetos de habitação civil, que ficavam a cargo de mestres-de-obras ou desenhadores técnicos com formação adquirida na antiga Escola António Augusto de Aguiar, que passou a designar-se por Escola Francisco Franco. Fernando Augusto Câmara (1880-1949), nascido na freguesia de Santa Luzia, e António Agostinho Câmara (1872-1949), nascido em Machico, eram então desenhadores técnicos da edilidade funchalense que se ocupavam daquele tipo de projetos. No Funchal já os autores do Elucidário Madeirense referiam, em pleno Estado Novo, que «o número dos seus moradores vai diminuindo consideravelmente, porque o movimento comercial tende sempre a desenvolver-se e as casas de habitação vão-se transformando em estabelecimentos de comércio» (SILVA e MENESES, 1998, I, 183). Estes profissionais respondiam às solicitações do mercado regional traçando o panorama regional da arquitetura urbana. Eram escassos os edifícios de utilidade pública construídos para a função a que se destinavam, apesar das necessidades sentidas pela população. Com a visita dos reis de Portugal, D. Carlos e D. Amélia, ao Funchal, em 1901, surgiram novas promessas e no ano seguinte foi criado o Auxílio Maternal do Funchal. Ganhou força também a necessidade de construir sanatórios de altitude para tratamento de tuberculosos, constituindo-se no ano de 1904 a Companhia dos Sanatórios da Madeira. Foram adquiridos terrenos para esse efeito e no ano seguinte foi lançada a primeira pedra do edifício do Sanatório dos Marmeleiros, na freguesia do Monte. Já no ano de 1906 foi criado em São Gonçalo o Manicómio Câmara Pestana, cujos doentes do sexo masculino foram transferidos para a Casa de Saúde de João de Deus, no sítio do Trapiche, em 1924. No centro da urbe funchalense, tem lugar, em 1906, a demolição de edifícios na embocadura da Rua dos Ferreiros, para permitir o prolongamento da Rua do Príncipe, posteriormente chamada Rua 5 de Outubro, até à Ponte do Bettencourt e a conclusão do prolongamento da Rua do Bom Jesus, desde a Rua das Hortas até ao Campo da Barca, troço que passou a designar-se por Avenida João de Deus. Também nesse ano, efetuaram-se obras junto ao Forte de São Filipe do Pelourinho, ao lado do qual se ergueu um estabelecimento de moagem denominado Fábrica de São Filipe, e foi demolido o Portão da Rua dos Aranhas, localizado na confluência desta artéria com a Rua da Ponte de São Lázaro. Em 1911, um ano após a implantação da República, a Câmara do Funchal procedeu à demolição do Portão dos Varadouros e do Mercado da União, erguido em 1835 no local onde se levantava a Igreja de Nossa Senhora do Calhau, para alargamento da rua. Na sequência das alterações introduzidas pelos republicanos, o edifício do Paço Episcopal, situado na Rua do Bispo, e a respetiva cerca foram cedidos à Direção-Geral de Instrução Secundária no ano de 1913, para ali ser instalado o Liceu do Funchal, que funcionava na Rua dos Ferreiros desde 1881.  No âmbito urbanístico, as obras que se implementaram na cidade do Funchal nas duas primeiras décadas de 1900 seguiram o modelo de crescimento ditado na capital portuguesa. Ao conceituado arquiteto Miguel Ventura Terra, as entidades regionais solicitaram um Plano de Melhoramentos para o Funchal. Em 1915 a Câmara acusou a receção de uma das cópias; a segunda ficou com a então Junta Agrícola. Nos primeiros anos da República, se em Lisboa houvera a abertura da Avenida da Liberdade, assente na destruição do Passeio Público, no Funchal procedeu-se à demolição do velho edifício que servira de Cadeia, possibilitando o prolongamento do Largo da Sé até à Rua da Praia, dando origem à então Avenida António José de Almeida. Esta Avenida beneficiou de novo prolongamento em 1920, altura em que, com a necessária autorização do Ministério da Guerra, se procedeu à demolição de um troço da muralha da cidade. Neste arquipélago, o gosto pelas grandes vias públicas prosseguiu com a construção da Avenida Elias Garcia e de parte da Avenida de Oeste, projetada por Ventura Terra no seu Plano de Melhoramentos. Na primavera de 1914, a edilidade funchalense colocou-se em acordo com a Junta Geral do Distrito, tendo decidido destacar do projeto apenas a construção da parte compreendida entre a Sé e o Jardim Pequeno, troço que se concluiu em maio de 1916 e que foi designado por Avenida Dr. Manuel de Arriaga, altura em que a Junta Geral oficiou ao comandante militar da Madeira pedindo para que a banda regimental ali atuasse, visto «se acharem concluídos os trabalhos» (VASCONCELOS, 2008, 35). A instabilidade política da época, com sucessivas quedas de governo e a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra, a partir de março de 1916, fez agravar as dificuldades já sentidas no arquipélago madeirense, deixando para trás a concretização do plano de Ventura Terra que se revelou «demasiado luxuoso» para a época (Id., Ibid., 40). As circunstâncias da época arrastariam no tempo a concretização parcial de um projeto demasiado arrojado e megalómano que não foi capaz de reunir as condições para a sua efetivação, e que por isso, não passaria de uma intenção, tal como foi projetado. Precisamente no ano em que Ventura Terra conclui o seu Plano de Melhoramentos, que propunha uma profunda remodelação urbana do Funchal, a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal, criada em 1913, solicitou ao engenheiro Furtado de Mendonça a elaboração de um projeto para o prolongamento e alargamento do cais da Entrada da Cidade. Enquanto se projetavam estas ideias, vão realizar-se no Funchal imponentes festejos e um cortejo histórico comemorativo do V Centenário do Descobrimento da Madeira, que se prolongou até janeiro de 1923. Numa fase de amplo debate acerca do alargamento da autonomia insular e de grande instabilidade republicana, diversas personalidades difundiram na imprensa local a sua opinião, destacando-se o fundador do Jornal da Madeira, Luís Vieira de Castro (1898-1954), que defendia que a Madeira deveria “poder impor a sua vontade às orelhas demasiadamente surdas do Terreiro do Paço” (GUERRA, 2010, 194). Sobretudo, contestavam-se as precárias condições do porto do Funchal, os reduzidos recursos financeiros da Junta Geral e a excessiva carga tributária, acrescida de um adicional de 5% sobre os direitos de exportação para custear as obras do porto de Leixões. Muitas publicações de periódicos animavam as discussões em torno das questões políticas da época e faziam eco da visita ao Funchal do Presidente da República, António José de Almeida, bem como da participação de António de Oliveira Salazar (1889-1970), que visitou o Funchal, na qualidade de conferencista, por convite de Juvenal Henriques de Araújo (1892-1976), presidente da Juventude Católica do Funchal, em abril de 1925. Após o golpe militar de maio de 1926, chefiado pelo general Gomes da Costa, foi assinado o decreto que aprovou a reparação dos estragos causados no molhe do porto de abrigo da pontinha e seus cais, sendo a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal autorizada a negociar, com a Fumasil Company, de Londres, um contrato para a construção do porto do Funchal. No ano seguinte, foi inaugurado o primitivo Estádio dos Barreiros, construído por iniciativa do Clube Desportivo Nacional, e foram publicados vários decretos do Governo com disposições específicas sobre diferentes setores da vida dos madeirenses. Surgem assim novas determinações sobre o regime do açúcar, do álcool e da aguardente, e extinguem-se as administrações do concelho, revogando legislação anterior. Determina-se nessa altura a ligação do Caminho do Til com a Levada de Santa Luzia e o edifício do Sanatório dos Marmeleiros, que era pertença do Estado, é concedido à Misericórdia do Funchal. Os acontecimentos da época fizeram nascer, em 1929, o humorístico Re-Nhau-Nhau, com a promessa de deixar como grande obra a capacidade de acompanhar e criticar, com sabedoria e sentido de humor, tudo o que estivesse relacionado com a vida dos funchalenses. Nesse mesmo ano, a Câmara do Funchal pretendeu transformar a Quinta Vigia num jardim público com campos de jogos, tendo sido autorizada a contrair um empréstimo de 7000 contos destinados às diversas obras de saneamento da cidade. A vontade de transformar fazia-se sentir e a Junta Geral do Distrito deliberou o prolongamento da Avenida Dr. Manuel de Arriaga, desde a confluência com a Rua de São Francisco até à Ribeira de São João. Estas obras implicavam um corte na parte sul do Jardim Municipal para possibilitar o crescimento da nova avenida. No seguimento desta importante obra e no mesmo ano de 1930, a Junta Geral do Distrito, em parceria com a Câmara Municipal do Funchal, pretendeu ainda proceder à abertura da Avenida Zarco para norte. O projeto suscitou uma imensa polémica, pois implicava a demolição parcial do edifício seiscentista da Misericórdia, pelo que não se concretizou de imediato. A falta de verbas para o efeito serviu também de argumento, numa fase de crise generalizada com que se debatia o arquipélago, e que iria prolongar-se pelos anos 30. Logo em finais de 1930, com efeito, faliram as duas principais casas bancárias desta Ilha, Henrique Figueira da Silva e o Banco Sardinha & Ca. Foi criada uma Comissão Liquidatária e determinou-se que a liquidação da casa bancária de Henrique Figueira da Silva (1868-1956) se efetuasse no prazo de dois anos. O vasto património do banqueiro foi arrematado em praça e incluía a Fábrica de São Filipe do Pelourinho. Os ingleses Harry Hinton (1859-1948) e John Ernest Blandy (1866-1940) foram comprando o que puderam, não só do seu espólio mas também de algumas firmas que o banco financiava. No início do ano seguinte, entre 4 e 8 de fevereiro, surgiram perturbações de ordem pública que ficaram conhecidas pela Revolta da Farinha e associadas ao decreto que concedia aquele monopólio a um grupo específico de moageiros. Dois meses mais tarde, surgia novo levantamento, então um pronunciamento militar, conhecido pela Revolta da Madeira, levando o governo a declarar o estado de sítio na Madeira e a determinar o encerramento do porto a toda a navegação e comércio até ao final do ano. Em 1936, nova perturbação que ficou conhecida pela Revolta do Leite. Perante estes acontecimentos, e considerando o descontentamento acumulado, as vozes de mudança falaram mais alto. A Câmara do Funchal pretendia a modernização da cidade e, em parceria com a Junta Geral do Distrito, encarregou o arquiteto Carlos Ramos, após a sua passagem pela Madeira, em dezembro de 1930, de elaborar um projeto de embelezamento da cidade. Carlos Ramos fora aluno de Ventura Terra e não é de estranhar que tenha retomado algumas propostas do seu mestre e as tenha aplicado no Plano de Urbanização para o Funchal de 1931-1932. Os vários trabalhos que constituíam este plano de 1931-1932, de Carlos Ramos, ficaram expostos, no início de fevereiro de 1932, primeiramente no atelier do arquiteto, em Lisboa, e, logo a 29 do mesmo mês, nos Paços do Concelho, no Funchal. O plano de Carlos Ramos para o Funchal deu seguimento à linha de atuação do novo regime que, sobretudo na sua fase de desenvolvimento e consolidação (1933-1938), já Estado Novo, utilizou o Ministério das Obras Públicas, liderado pelo engenheiro Duarte Pacheco, como veículo de propaganda ideológica, com uma série de realizações que apoiaram e desenvolveram uma política de combate ao desemprego e de fomento económico do país. Este Ministério constituiu, desde logo, a grande aposta do novo poder, em tantos aspetos comparável ao fontismo oitocentista. Mas, enquanto naquele período a política de obras assentou sobretudo em investimentos particulares e na iniciativa privada, no novo regime estas obras foram, acima de tudo, um investimento do Estado e uma forma de combate ao desemprego. Faziam parte do plano de Carlos Ramos o estudo de fontenários para a cidade e a construção de um Pavilhão para Tuberculosos, destinado a construir-se no terreno junto aos Marmeleiros, pertencente à Misericórdia do Funchal. O Plano contava, igualmente, com a abertura de avenidas, onde o arquiteto retomou algumas propostas do seu mestre Ventura Terra quando pretendeu fechar a Ribeira de João Gomes, cobrindo-a de betão, assim como a de S. João e de Santa Luzia, transformando-as em avenidas. Apontava o prolongamento da Avenida Arriaga, para a qual projetou um conjunto de quatro moradias modernistas, tendo-se iniciado o processo de expropriações para o efeito. Tratava-se aqui da Avenida Oeste do projeto de Ventura Terra, reformulado por Carlos Ramos em 1931. Para dar continuidade a esta avenida, em 1934 são concedidos 293 contos à Junta Geral do Distrito para os trabalhos do segundo lanço da obra, entre a Rua do Jasmineiro e a Rua do Favila. Por via do mesmo plano iniciam-se também os trabalhos preliminares para as obras da Avenida Marginal, na Rua da Praia, cuja proposta inicial surgira com Ventura Terra, realizando-se levantamentos topográficos nessa área da cidade e mandando retirar as barracas da praia fronteira à Praça do Marquês de Pombal, antiga Praça da Rainha. Nesta data, iniciaram-se ainda as obras do porto do Funchal com a perfuração do Ilhéu de Nossa Senhora da Conceição e foi apresentado na Junta Geral o projeto de prolongamento da Avenida Zarco até ao Largo da Igrejinha, da responsabilidade do arquiteto Edmundo Tavares (1892-1983) e do engenheiro Abel Vieira (1898-1972) tendo a mesma Junta, devido às polémicas em torno desta obra, oficiado ao ministro das Obras Públicas e Comunicações a vinda ao Funchal de uma comissão para que emitisse em definitivo a sua opinião sobre a abertura ou não desta artéria no prolongamento da entrada da cidade. Determinou, igualmente, esta comissão da Junta Geral que no cruzamento destas duas avenidas seria colocada a estátua de Gonçalves Zarco, da autoria do escultor madeirense Francisco Franco (1885-1955), vindo a inaugurar-se nos inícios de setembro de 1937 esta nova avenida, que seguiu a direito, não obstante implicar a demolição da parte oeste do frontispício do edifício da Misericórdia do Funchal. Enquanto isto, o engenheiro Aníbal Augusto Trigo (1865-1944) procedia a uma revisão do projeto da rede geral de esgotos elaborado por ele e seu irmão Adriano Augusto Trigo (1862-1926), em 1899. Para rever o projeto, foi chamado também o diretor das obras públicas municipais, em março de 1933. O plano de Carlos Ramos previa outros melhoramentos, como a plantação de árvores no Largo do Socorro e a colocação de bancos de jardim. Previa ainda um jardim público do litoral entre o Savoy e o Hotel Atlantic, até ao Largo António Nobre, com miradouros, relógios de sol, relvados, bar e espaços destinados às crianças. Integrado também neste plano de urbanização de Carlos Ramos estava o projeto, de pesado gosto neopombalino, para a Câmara Municipal de S. Vicente, que nunca chegou a realizar-se. A crise generalizada que persistiu no arquipélago ao longo dos anos 30 teve reflexos no bem-estar da população madeirense. No campo da saúde, perante o crescente número de casos de tuberculose, a Direção da Assistência Nacional aos Tuberculosos resolveu estender à Madeira a sua ação, deliberando mandar edificar no Funchal um dispensário cuja planta foi da autoria do arquiteto Carlos Ramos, que obteve o primeiro lugar no concurso. Com efeito, se analisarmos as características formais do Dispensário Antituberculoso, chamado depois Dr. Agostinho Cardoso (1908-1979), situado no Campo da Barca, no Funchal, concluído em abril de 1933, verificaremos que o mesmo obedece ao estilo adotado para todos os dispensários da Associação Nacional de Tuberculosos. Ali observam-se elementos típicos da arquitetura regional, numa adesão aos conceitos do português suave, de Raul Lino, apoderados pelo Estado Novo, como a utilização de alpendres e floreiras, mas também o uso sistemático de cantaria rija, material abundante na Ilha. O estudo da arquitetura na Madeira nos anos 30 de 1900 passa também por uma análise à obra do professor e arquiteto Edmundo Tavares que, em 1932, se fixou no Funchal após ter sido nomeado professor efetivo na antiga Escola Industrial e Comercial de António Augusto de Aguiar, depois Francisco Franco. Aquela nomeação estará certamente relacionada com a criação, por parte do engenheiro Duarte Pacheco, então ministro das Obras Públicas, de delegações nas diversas regiões do país para cuidarem da introdução do novo figurino oficial do Estado Novo. A obra de Edmundo Tavares é relevante no Funchal, nomeadamente no que respeita ao desenvolvimento da arquitetura moderna, pois são dele os primeiros exemplares arquitetónicos ao gosto moderno construídos na Ilha. O seu percurso no arquipélago reflete uma larga amplitude de opções estilísticas, que traduz uma procura constante e uma oscilação de gosto que então caracterizava o panorama da arquitetura nacional. Tavares assinou alguns exemplares dentro do gosto português suave, dos quais se destaca o Liceu Jaime Moniz, tendo privilegiado uma linguagem mais historicista, ou revivalista, no edifício da agência do Banco de Portugal, inaugurado em 1940, e na Capela de Nossa Senhora da Conceição, de 1936. Por outro lado não deixou de atender ao gosto art deco, com o qual assinou alguns exemplares de habitação doméstica, como a Vivenda Fátima, implantada na Avenida Infante, e o Mercado dos Lavradores, inaugurado em 1940. Edmundo Tavares publicou vários livros de carácter técnico-construtivo e outros sobre temas da arquitetura portuguesa dos quais se destaca a sua participação na obra de Reis Gomes (1896-1950) Casas Madeirenses, com ilustrações de modelos de habitações. Trata-se de uma publicação que coloca em debate a problemática da existência de uma arquitetura madeirense através da apresentação de elementos típicos regionais recolhidos a partir da observação de edifícios existentes na cidade do Funchal. O arquiteto deixou também as suas impressões sobre a Ilha no artigo «Quadros, Presépios e Lapinhas», de 1948. Liderado pelo dinâmico autarca Fernão de Ornelas (1908-1978), este programa de obras contribuiu para a renovação dos edifícios públicos da cidade do Funchal e nele estiveram também incluídos, entre outros, vários edifícios destinados a escolas primárias, o Liceu do Funchal, Bairros Económicos, o edifício do Banco de Portugal, erguido na esquina do novo troço da Avenida Zarco com a Avenida Arriaga, e o Sanatório Dr. João de Almada, edificado na antiga quinta de Santa Ana, no Monte. Foi também a oportunidade para alargamento da rede de água potável, com a construção de fontenários nas freguesias suburbanas, cujo modelo seguiu o projeto-tipo de Carlos Ramos, enviado à edilidade funchalense e redesenhado por Tavares, considerado, então, o arquiteto da Câmara do Funchal. Aproveitou-se o programa para se levarem a efeito importantes obras no porto do Funchal, que passa a ter um molhe com 464 m, e para se efetuarem reparações no Palácio de S. Lourenço, na Avenida Marginal e Avenida do Infante. Procedeu-se à demolição da antiga praça do peixe, denominada Praça de São Pedro, do antigo Matadouro e do Mercado de D. Pedro V, transferindo-se para o átrio dos Paços do Concelho Leda e o Cisne, escultura que remata o chafariz ali existente. Este conjunto de obras destaca-se de entre as muitas iniciativas levadas a cabo por toda a Ilha como forma de mostrar que o Estado Novo respondia às reivindicações da população, tendo sido disponibilizados todos os recursos materiais e humanos disponíveis para a sua efetivação. No âmbito cultural, aproveitaram-se as comemorações centenárias para lançar a obra As Ilhas de Zargo, de Eduardo Clemente Nunes Pereira (1887-1976), depois com várias edições e de excecional importância na cultura madeirense. A Madeira seguia assim, efetivamente, a tendência nacional e, com Fernão de Ornelas na presidência da Câmara Municipal do Funchal, e ao serviço do regime de Salazar, Raul Lino é convidado, em março de 1941, a dar o seu parecer sobre novas alas a edificar a norte e a sul do corpo principal do edifício camarário, que se encontrava em profundas remodelações, com vista a uma integração harmoniosa. Para dar lugar a estas obras, foi expropriado, a norte, o antigo Palácio Torre Bela, permitindo a abertura de nova rua e, mais tarde, em 1962, a construção do Palácio da Justiça do Funchal, da autoria de Januário Godinho Sousa. As preocupações urbanísticas levam a que Raul Lino seja convidado a visitar novamente o Funchal em novembro do mesmo ano, a fim de se pronunciar sobre diversos problemas de estética citadina, designadamente no que respeita às obras das fachadas laterais do edifício dos Paços do Concelho. Aproveitando a nova passagem do arquiteto pela Madeira, em janeiro de 1942, acompanhado pelo engenheiro agrónomo Francisco Caldeira Cabral (1908-1992) e respetivas famílias, por ocasião dos estudos para a Praça do Município, a Junta Geral encarregou-o de efetuar o anteprojeto para o edifício que daria continuidade ao Palácio da Junta, a edificar na Avenida Zarco. Todavia, em dezembro do mesmo ano, Raul Lino escusou-se, oficiando à Junta que os serviços oficiais de que já ficara encarregado o ocupariam durante vários meses, não podendo deslocar-se à Madeira. A Junta lastimou a situação, tendo pedido de imediato à Direção dos Monumentos Nacionais a indicação de outro arquiteto, que veio a ser Januário Godinho. Em abril de 1943, este apresentou à Junta Geral ofício com as condições pretendidas para prosseguir a tarefa. Decorridos dois anos, o arquiteto esteve na Madeira a fim de assinar o contrato para a realização do projeto das novas instalações e assistir à execução das obras. A Câmara Municipal do Funchal resolveu, no entanto, a 11 de novembro de 1943, autorizar o presidente a assinar o contrato com o arquiteto urbanista João Guilherme Faria da Costa, tendo em conta o plano de urbanização desta cidade e as deliberações de 15 de julho e 5 de agosto respeitantes ao projeto de alinhamento da Rua dos Ferreiros, troço entre as Ruas dos Netos e Severiano Ferraz. Mais tarde, já em abril de 1945, é aprovado o projeto de urbanização da cidade do Funchal da autoria de Faria da Costa, que apresenta o seu estudo do arranjo da Praça do Município e sua zona imediata. O contributo deste arquiteto iria deixar a sua marca numa das principais praças da cidade, transformando toda a área entre a Igreja do Colégio, o edifício da Câmara Municipal e o Paço Episcopal numa das zonas mais privilegiadas da urbe funchalense. As obras de transformação deste quarteirão central são visíveis desde 24 de julho de 1941, data em que foi aprovada a terraplanagem e o calcetamento do largo do município, mas continuam depois de, a 23 de abril de 1942, se ter resolvido adjudicar o trabalho de forrar a parede da escada da Igreja do Colégio e demais trabalhos de arranjo da mesma escadaria. No seguimento destas transformações, em julho de 1942 foi resolvido aprovar e abrir concurso para a execução do projeto de uma Fonte Pelourinho no Largo do Município, da autoria de Raul Lino, obra que foi adjudicada a 17 de setembro do mesmo ano, depois de o chefe de gabinete do Ministro das Obras Publicas e Comunicações ter solicitado, uma cópia do referido projeto, que lhe foi enviada. Trata-se de um chafariz em cantaria rija, considerado uma bela peça de arquitetura civil ao gosto Estado Novo, onde se manifesta uma boa integração dos materiais regionais. Para que a transformação desta ampla praça fosse possível, foi pedida autorização à Junta Geral para ocupar a cerca do edifício do antigo Paço Episcopal, onde funcionava então o liceu Jaime Moniz. Esta obra de Raul Lino, datada de 1942, foi construída no centro da Praça do Município projetada por Faria da Costa em fevereiro de 1945. A planta da nova organização da Praça do Município e o projeto da Fonte Pelourinho deixam perceber as modificações que se pretendiam introduzir na nova praça, como espaço central do município e verdadeiro retrato da vereação de Fernão Ornelas. Outra obra emblemática da vereação camarária que ficou associada a Faria da Costa foi a nova rua de ligação entre a Ponte do Bettencourt e o Mercado dos Lavradores, rua que constava do seu projeto de urbanização para a cidade do Funchal, pensada para ser denominada Rua dos Mercadores e posteriormente conhecida como Rua Fernão Ornelas. Em abril de 1945, o presidente da Câmara foi autorizado a outorgar e assinar, com os respetivos proprietários, os contratos referentes às expropriações, demolições, reconstruções, indemnizações e vendas de terrenos sobrantes para ratificação dos alinhamentos dos prédios, não só nesta rua mas também no alargamento da Rua do Aljube, no Largo do Chafariz, na Rua do Bettencourt, na Rua do Phelps, na Rua do Monteiro e na Rua dos Medinas, e respetivas imediações. Para execução do plano de urbanização da cidade, foi necessário demolir o edifício onde estava instalado o Banco da Madeira, no Largo do Chafariz, levando a edilidade a adquirir o prédio da rua João Gago n.º 16, n.º 18 e n.º 20 de polícia, para demolição e posterior entrega do terreno ao Banco da Madeira, a fim de, conjuntamente com o sobrante do seu edifício, se proceder à sua reconstrução. Dada a importância e localização deste prédio, junto da Sé, torna-se conveniente a aplicação de cantarias que guarnecerão o edifício. A Câmara compromete-se a pagar o custo orçamentado das cantarias e o Banco da Madeira obriga-se a requerer imediatamente o projeto da obra, que será fornecido pela Câmara mediante o pagamento de 2% sobre o orçamento das obras, devendo a reconstrução iniciar-se em junho e estar concluída no prazo de um ano, tudo em harmonia com as indicações da Câmara, designadamente quanto a alinhamentos. Faria da Costa ficaria associado a diversas obras da cidade do Funchal aprovadas sob a presidência de Fernão Ornelas, mas concretizadas já depois do seu afastamento da governação camarária, em finais de outubro de 1946. As muitas obras de urbanização e modernização que se sucederam ao longo dos seus mandatos permitiram uma transformação sem precedentes na organização do espaço citadino do Funchal. Permitiram também a vinda de importantes figuras da arquitetura e da engenharia portuguesa, que deixaram na ilha as marcas do seu conhecimento e da sua arte, construindo com base nos ideais do regime. A continuidade das grandes obras de urbanização do Funchal vai ser uma realidade, apesar da saída do presidente que ficou conhecido como “o terramoto”, porque destruiu para reconstruir, erguendo uma nova cidade, moderna e virada para o progresso. Na tomada de posse do seu último mandato, a 2 de janeiro de 1946, e que se prolongaria até 1949, a equipa camarária propunha-se intensificar ainda mais a sua ação. Para além da conclusão da Rua dos Mercadores, do arranjo e alargamento do Chafariz, da Rua do Bettencourt e do Largo do Phelps, iria retomar as obras interrompidas da Avenida do Mar, concluir a Praça do Infante e sua ligação à Avenida do Mar e a parte municipal do Parque da Cidade. A nível social propõe-se iniciar a construção de mais um bairro para as classes pobres da Madalena em Santo António, propõe-se instalar o Posto Clínico Central em novos edifícios a construir, onde funcionará também a Sede do Serviço de Saúde Municipal. Será também construído um novo edifício para instalação dos Bombeiros Municipais, vários edifícios para instalação de escolas e o novo Cemitério Oriental, e concluído o estudo do abastecimento completo de água ao Funchal e freguesias suburbanas, bem como o estudo da urbanização dos Ilhéus até à Cruz de Carvalho e o estudo do bairro da Ajuda. Nos novos projetos, foi apresentado o da cobertura da Ribeira de Santa Luzia, da Avenida do Mar ao Torreão, onde era construído um largo, que seria o topo desta avenida e da Avenida Zarco. Como complemento das obras de urbanização da parte central do Funchal, estudava-se uma artéria que delimitava a parte baixa da cidade, sendo a continuação da Rua Elias Garcia até ao Torreão e daí pelas Capuchinhas e pelas Cruzes até São Paulo. Com estas ações devem considerar-se concluídas as grandes obras de urbanização do Funchal, reforçando-se a grandeza dos melhoramentos que marcam uma época na história da cidade. Alguns desses melhoramentos destacam-se quer pela sua grandeza e significado, quer pela importância e dimensão dos seus autores. O arquiteto Adelino Nunes (1903-1948) foi o responsável pelo projeto do edifício dos correios na Avenida Zarco, inaugurado em 1942, enquanto Januário Godinho elabora em 1945 um projeto de remodelação do edifício da Junta Geral do Distrito, na sequência da abertura do troço norte da Avenida Zarco. Este projeto englobava também as novas instalações adjacentes à antiga Misericórdia, com entrada pela mencionada avenida. Moreira da Silva (1909-2002), arquiteto urbanista do Porto, envia a sua proposta para a elaboração do projeto do Parque de Santa Catarina em março de 1944, mas após ponderada apreciação, a Câmara classifica de inaceitável o anteprojeto apresentado, desinteressando-se do mesmo. Todavia, em julho de 1946, o engenheiro Raul Andrade de Araújo (1918-1957) propõe a contratação de um técnico especializado para orientar a preparação dos terrenos e plantações do Parque de Santa Catarina. Este mesmo engenheiro é encarregado de ir a Lisboa adquirir o material necessário para a repartição de obras e contratar o pessoal técnico necessário para os serviços de urbanização do Funchal e plano complementar do abastecimento de águas ao concelho. Em 1949, é elaborado novamente um anteprojeto para o mesmo Parque de Santa Catarina, desta vez da autoria de Miguel Jacobetty (1901-1970). A 28 de maio de 1947, é inaugurado o monumento ao Infante D. Henrique, na rotunda do Infante, e, no ano seguinte, o fontenário da mesma rotunda. Já em 1951, é inaugurada a Ponte do Mercado, estabelecendo-se a ligação entre as obras pensadas ao tempo de Fernão Ornelas e a sua efetiva concretização nos anos posteriores à sua saída. Na verdade, nem todas as obras acabariam por ser realizadas mas a transformação do Funchal, essa ficaria manifesta aos olhos dos seus habitantes. Quando, em 1934, se nomeou Fernão de Ornelas para a presidência da Câmara Municipal do Funchal, abria-se uma nova era no município, colocando na praça pública a discussão das grandes obras de arquitetura e urbanismo, dos grandes projetos e dos seus autores, que moldaram a cidade do Funchal na primeira metade do século XX, com uma assinalável transformação da malha urbana do Funchal que teve a colaboração de importantes personalidades. Com a afirmação do Estado Novo e a nomeação de novos dirigentes à frente dos principais destinos da Madeira, vamos assistir, de facto, a um controlo da ação política local e a um estreitar do relacionamento entre a região e o continente. Para essa aproximação muito contribuíram as ideias políticas, mas também a visão de personalidades como Duarte Pacheco e Fernão Ornelas. O primeiro criou condições para o aparecimento de grandes obras de arquitetura e urbanismo que se destacaram a nível nacional, enquanto o segundo teve a dinâmica e ousadia necessárias para implementar no Funchal programas de modernização da arquitetura e do urbanismo que redesenharam a imagem da cidade para o século XXI.   Agostinho Lopes Teresa Vasconcelos (atualizado a 04.01.2017)

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