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clima e meteorologia

O arquipélago da Madeira situa-se na região subtropical do Atlântico oriental, centrado aproximadamente a 32 ° 45 ’ de latitude norte e 17 ° 00 ’ de longitude oeste, a cerca de 900 km de Portugal continental (Sagres) e dos Açores (Santa Maria). É formado pelas ilhas da Madeira e de Porto Santo, com áreas da ordem dos 730 km2 e 23 km2, respetivamente, e pelos ilhéus das Desertas e das Selvagens, estes últimos a cerca de 300 km a sul da Madeira. A orografia é bastante acidentada, com as formações de maior altitude na parte oriental (pico Ruivo, com 1862 m) e na parte ocidental (planalto do Paul da Serra, com altitude da ordem dos 1300 m). De acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger, as ilhas da Madeira e de Porto Santo apresentam clima temperado húmido, com zonas de verão seco e quente e outras zonas de verão seco e suave, dependendo da proximidade ao mar, da exposição solar e principalmente da altitude. Em intervalos de tempo regulares, com base em instrumentos específicos, é feita no arquipélago a observação à superfície dos principais descritores meteorológicos, designadamente a pressão atmosférica, o vento, a temperatura e a humidade relativa do ar. A respetiva difusão sincronizada aos níveis regional, nacional e internacional constitui a informação primária para a descrição do tempo presente e, por acumulação sucessiva, do conhecimento do clima. As primeiras observações meteorológicas à superfície, executadas com regularidade e de forma continuada no Funchal remontam a meados do séc. XIX, tendo sido executadas até meados do séc. XX no Palácio de S. Lourenço, e posteriormente no sítio dos Louros, na orla costeira leste da cidade, onde foi instalado o Observatório Meteorológico do Funchal. Graças à observação regular efetuada, no mínimo diariamente, às 09.00 h, estava disponível, em 2015, uma série longa de dados para o Funchal, o que permitia conhecer, e.g., a variação da temperatura média do ar e da quantidade de precipitação dos 151 anos anteriores e da temperatura da água do mar à superfície dos 65 anos anteriores, executada no porto do Funchal. Fig. 1 – Gráfico com a média anual da temperatura do ar à superfície, registada no Funchal entre 1865 e 2015 (151 anos) (Palácio de S. Lourenço e sítio dos Louros); e a média anual da temperatura da água do mar registada na Pontinha entre 1951 e 2015 (65 anos). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. Dos registos anuais, destaca-se a subida da média anual da temperatura do ar a partir do início dos anos 70 do séc. XX. Desde 1971 até 2015, a temperatura média anual subiu cerca de 2,2 °C, o que corresponde a um valor médio da ordem de 0,5 °C por década. No entanto, entre 1996 e 2015, período em que as observações foram feitas sempre com o mesmo equipamento, devidamente calibrado, verificou-se que a temperatura do ar subiu cerca de 0,3 °C, o que corresponde a um valor da ordem de 0,15 °C por década, tendo a subida sido mais acentuada entre 1996 e 2004 (8 anos) do que entre 2005 e 2015 (11 anos). À semelhança da temperatura média do ar, a temperatura média da água do mar começou a subir no início da déc. de 70 do século XX, embora de forma menos significativa entre 1995 e 2015. Desde o início da déc. de 70, a diferença entre a temperatura média do ar e da água do mar variou entre 1,3 °C e 0,5 °C, embora nos últimos anos do intervalo essa diferença se tenha mantido próxima dos 0,5 °C. Entre 1995 e 2015, a temperatura média anual do ar variou entre 20,0 °C e 20,4 °C, e a temperatura da água do mar entre 20,4 °C e 21,1 °C. Fig. 2 – Gráfico com a evolução da precipitação média anual registada no Funchal entre 1865 e 2015, desde 1865 no Palácio de S. Lourenço e desde 1951 no sítio dos Louros (Observatório Meteorológico do Funchal). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. A partir de uma análise simples da fig. 2, conclui-se que a quantidade de precipitação apresenta variabilidade interanual significativa. No 65 anos que medeiam entre o momento em que começou a haver registos no Observatório Meteorológico do Funchal e 2015, a precipitação anual mais baixa foi registada em 2015 (299,5 mm), correspondendo ainda ao quarto valor mais baixo desde 1865 (em 151 anos). O maior valor da quantidade de precipitação anual ocorreu em 2010 (1477 mm) e um valor próximo deste foi registado em 1895 (1420 mm). Entre 2010 e 2015, registou-se o maior período de anos consecutivos com os valores mais baixos da quantidade de precipitação no Funchal. Rede de observação A rede meteorológica do Funchal começou a ser construída em meados dos anos 30 do séc. XX, com a instalação de vários postos meteorológicos. Nos anos 50, a rede meteorológica era constituída por 15 postos, tendo 7 sido desativados durante a déc. de 80; restaram as estações do Funchal (1865), do Areeiro (1936), de Santana (1937), do Porto Santo (1939), do Lugar de Baixo (1941), do Santo da Serra (1942), da Bica da Cana (1950) e de Santa Cruz/Aeroporto (1958). No acompanhamento da modernização tecnológica registada particularmente durante a déc. de 80 do séc. XX, iniciou-se em 1995 a modernização da rede meteorológica do arquipélago da Madeira, com a instalação de duas estações meteorológicas automáticas em Porto Santo/Aeroporto (78 m) e no Funchal/Observatório (58 m); em 2002, foram instaladas cinco estações: Funchal/Lido (25 m), São Jorge (257 m), Chão do Areeiro (1590 m), Lugar de Baixo (40 m) e Ponta do Pargo (298 m); em 2009, e para reforçar a melhoria da previsão meteorológica, foram ainda instaladas duas estações automáticas no Caniçal/Ponta de São Lourenço (133 m) e nas Achadas da Cruz/Lombo da Terça (931 m). Posteriormente, e após o violento temporal de 20 de fevereiro de 2010, reconheceu-se a necessidade de aumentar a densidade de estações, pelo que foram instaladas, em finais de 2010, mais cinco estações automáticas em Quinta Grande (580 m), São Vicente (97 m), Santana (380 m), Bica da Cana (1560 m) Santo da Serra (660 m), tendo as três últimas substituído as estações clássicas existentes, das quais havia apenas uma observação diária, às 09.00 h. Posteriormente, e para completar a rede planeada em 2010, foram instaladas, em 2013, uma estação no Pico do Areeiro (1799 m), e em 2014 três estações: Porto Moniz (35 m), Pico Alto (1118 m) e Santa Cruz/Aeroporto (58 m), aqui para substituir a estação clássica. Estas 18 estações estão equipadas com instrumentos de observação da temperatura e humidade relativa do ar, precipitação e radiação solar global, estando 12 – Funchal/Observatório, Funchal/Lido, São Jorge, Areeiro, Lugar de Baixo, Ponta do Pargo, Caniçal/Ponta de São Lourenço, Santo da Serra, Porto Moniz, Pico Alto, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto – equipadas com instrumentos de medição do vento. Três destas estações estão ainda equipadas com instrumentos de medição da pressão atmosférica: Funchal/Observatório, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto. Assim, para a Madeira, a densidade de estações meteorológicas é da ordem de uma estação por cada 45 km2 para a temperatura e humidade relativa do ar e radiação solar global, e uma estação por 65 km2 para o vento. Para ilustração, apresenta-se na fig. 3 a distribuição e a localização das estações meteorológicas no arquipélago da Madeira, em 2015. Fig. 3 – Mapa com a distribuição e localização das estações meteorológicas no Arquipélago da Madeira em 2015. A redução na densidade de estações decidida para o arquipélago da Madeira resultou, em particular, da necessidade de melhoria da vigilância meteorológica, sentida após vários episódios de tempo rigoroso, em particular associados a precipitação forte, registados a partir do início de 2009, dos quais se apresentam alguns mais significativos: 27 fevereiro 2009: Funchal 82,7 mm/Areeiro 145,1 mm; 18 de dezembro de 2009: Funchal 36,7 mm/Areeiro 130,1 mm; 2 de fevereiro de 2010: Funchal 42,5 mm/Areeiro 184,7 mm; 20 de fevereiro: Funchal 144,3 mm/Areeiro 389,6 mm; 21 de outubro de 2010: Funchal 82,7 mm/Areeiro 147,0 mm; 26 de novembro de 2010: Funchal 155,1 mm, tendo sido o maior valor diário registado desde sempre/Areeiro 185,2 mm; 28 de dezembro de 2010: Funchal 50,7 mm/Areeiro 95,7 mm; 26 de janeiro de 2011: Funchal 103,4 mm/Areeiro 321,0 mm; 30 de outubro de 2012: Funchal 55,7 mm/Areeiro 258,1 mm; 6 de novembro de 2012: Funchal 19,3 mm/Areeiro 201,1 mm; 3 de março de 2013: Funchal 40,9 mm/Areeiro 274,4 mm; e muitos outros episódios em toda a ilha da Madeira, sendo de registar também os da Ribeira da Janela no dia 5 de novembro de 2012: 186 mm no Lombo da Terça/Porto Moniz; e de Porto da Cruz a 29 de novembro de 2013: 325 mm no Santo da Serra durante dois dias.   Fig. 4.1 – Fotografia de balão meteorológico com radiossonda. A rede de observação no arquipélago da Madeira inclui ainda um sistema de radiossondagens para observação da pressão atmosférica, do vento, da temperatura e da humidade relativa do ar, desde a superfície até cerca de 30 km de altitude, recorrendo ao lançamento de balão com radiossonda (fig. 4.1), executado uma vez por dias às 12.00 h, e ainda quatro estações de tempo presente, instaladas no Funchal/Observatório Meteorológico, em Chão do Areeiro, Pico do Areeiro e São Jorge, para observação da visibilidade horizontal e identificação do tipo de meteoros (chuva, chuvisco, granizo, saraiva e neve).   Fig. 4.2 – Estação meteorológica automática, em teste no Observatório Meteorológico do Funchal, para ser instalada nas Selvagens. Para completar a rede do arquipélago da Madeira, foi instalada uma estação meteorológica automática nas ilhas Selvagens no verão de 2016 (fig. 4.2), a qual permitirá essencialmente acompanhar a evolução de sistemas meteorológicos que se formem a sul da Madeira, para além de que os dados registados nestes ilhéus permitirão o estudo do clima local e o apoio de estudos científicos nos domínios dos ecossistemas locais.     Condições meteorológicas caraterísticas na região da Madeira Fig. 5.1 – Imagem de aproximação de superfície frontal fria As condições meteorológicas predominantes na região do arquipélago da Madeira são principalmente determinadas pela intensidade e localização do anticiclone dos Açores e pelas perturbações da superfície frontal polar que se fazem sentir especialmente de novembro a março, quando se deslocam do Atlântico Norte em direção à Europa, vindas de oeste. Durante o inverno, o anticiclone dos Açores está geralmente deslocado para sul da sua posição média, a sudoeste dos Açores. Importantes também na determinação das condições meteorológicas nesta época do ano são as depressões frontais que se deslocam sobre o Atlântico, que dão origem à aproximação e passagem de superfícies frontais, em particular de superfícies frontais frias (fig. 5.1), mais frequentes e mais ativas do que as superfícies frontais quentes, as quais dão origem a grande nebulosidade, chuva e aguaceiros por vezes fortes, em particular nas zonas montanhosas, e a ventos fortes dos quadrantes de sul. Fig. 5.2 – Imagem de localização do anticiclone dos Açores em dia de verão. Durante o verão, o anticiclone dos Açores, desloca-se frequentemente para nordeste relativamente à sua posição média anual, a sudoeste dos Açores, fortalece-se e estende-se com uma crista de altas pressões, que atinge o Nordeste da Europa (fig. 5.2). Fig. 5.3 – Imagem de depressão estacionária centrada entre Portugal Continental e os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Também de outubro a março, estabelecem-se por vezes, entre a Península Ibérica, os Açores e a Madeira, depressões frias estacionárias que afetam as condições meteorológicas nesta região e podem permanecer cerca de uma semana, dando origem, na região da Madeira, a grande nebulosidade com ocorrência de períodos de chuva ou aguaceiros por vezes fortes (fig. 5.3). Importantes são também as situações em que se observa um anticiclone muito desenvolvido, centrado a norte da latitude da Madeira, e orientado na direção oeste-leste, por vezes associado a baixas pressões sobre o continente africano, e em que a região da Madeira é atingida por vento de leste, muito quente e seco, vindo do deserto do Sahara, com poeira fina que dá origem a bruma. Nesta situação, a temperatura do ar na Madeira pode chegar aos 35 °C e a humidade relativa do ar descer para valores da ordem de 5 % nas regiões montanhosas. O clima da Madeira Para a caraterização do clima da Madeira, recorreu-se à classificação climática de Köppen-Geiger, a qual divide os climas em cinco grandes grupos, identificados por letras maiúsculas, e na qual o arquipélago da Madeira se integra no grupo [C], definido como clima temperado húmido. Para cada grande grupo, o tipo de clima é ainda especificado através de uma letra minúscula que refere o regime da precipitação, que para o arquipélago da Madeira, definido como húmido, é [s]; e uma segunda letra minúscula, que está relacionada com a temperatura média mensal, que para o arquipélago da Madeira é [a] ou [b], correspondendo a verão seco e quente (VSQ) ou verão seco e suave (VSS). No fig. 6, apresenta-se a metodologia utilizada com os limites relativos às temperaturas e precipitações mensais, de acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger. [table id=88 /] Recorrendo à série de dados de 1971-2000 (30 anos), em particular às normais climatológicas, da temperatura do ar e da precipitação média mensal, para as estações do Funchal (costa sul, 58 m), do Areeiro (montanha, 1590 m), de Santana (costa norte, 380 m) e da ilha de Porto Santo (78 m), representadas graficamente na fig. 7, e aplicando a classificação de Köppen-Geiger, temos para o Funchal e para Porto Santo clima do tipo Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e para o Areeiro e Santana clima do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). Fig. 7 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 1971-2000, registadas nas estações meteorológicas do Funchal (58 m), do Areeiro (1590 m), de Santana (380 m) e de Porto Santo (78 m). Aplicando a mesma classificação para as estações que se apresentam na fig. 8, com séries de dados de cinco anos (2011-2015), verifica-se que no Funchal (58 m), no Lugar de Baixo (40 m), na Ponta do Pargo (298 m), em São Vicente (97 m), no Caniçal (133 m) e em Porto Santo (78 m) o clima é Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e nas estações de Quinta Grande (580 m), São Jorge (257 m), Santana (380 m), Santo da Serra (660 m), Areeiro (1590 m), Bica da Cana (1560 m) e Lombo da Terça (931 m) o clima é do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). [table id=89 /] Legenda: H – Altitude T1 – Temperatura média do ar do mês mais frio I1 – Grupo climático R1 – Precipitação no mês mais seco R2 – Precipitação no mês mais chuvoso I2 – Indicador de tipo T2 – Temperatura média do ar do mês mais quente I3 – Indicador de subtipo TC – Tipo de clima Csa – Clima temperado húmido com verão seco e quente Csb – Clima temperado húmido com verão seco e suave   Na fig. 9 apresenta-se de forma gráfica, para nove das estações indicadas na fig. 8, os valores médios mensais da temperatura do ar e da precipitação para o período 2011-2015. Fig. 9 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 2011-2015, registadas nas estações meteorológicas de São Vicente (97 m), São Jorge (257 m), Ponta do Pargo (295 m), Bica da Cana (1560 m), Santana (340 m), Lugar de Baixo (40 m), Funchal (58 m), Caniçal (133 m) e Porto Santo (78 m). Dos resultados anteriores, conclui-se que, para além da latitude, os fatores determinantes do clima da Madeira são a altitude e a proximidade ao mar. Assim, toda a faixa costeira sul até à cota de 500 m (a avaliar pelos valores da Quinta Grande), a faixa costeira norte até à cota de 100 m, aproximadamente (a avaliar pelos valores de São Vicente e de São Jorge), e o Porto Santo apresentam clima temperado húmido com verão seco e quente, e as restantes regiões clima temperado húmido com verão seco e suave. Resumo de apuramentos estatísticos (1971-2000) A fim de se conhecer com mais detalhe a variação dos vários parâmetros climáticos, apresenta-se uma descrição dos apuramentos estatísticos, também conhecidos por normais, para o período 1971-2000, relativos às estações do Funchal (58 m, costa sul), do Areeiro (1590 m, montanha), de Santana (380 m, costa norte) e do Porto Santo (78 m). (Todos estes dados foram recolhidos no Instituto do Mar e da Atmosfera.)   Temperatura do ar Nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo, a temperatura mínima do ar raramente desce abaixo de 10 °C no inverno e a temperatura máxima poucas vezes ultrapassa 30 °C no verão. No entanto, nas terras altas da ilha da Madeira, consideradas acima dos 1000 m, observam-se com frequência valores da temperatura mínima do ar inferiores a 0 ºC. A região do Lugar de Baixo, na vertente sul, a jusante dos ventos dominantes, é a mais quente da ilha da Madeira. Os valores médios anuais da temperatura do ar na ilha da Madeira são maiores na costa sul do que na costa norte e diminuem para o interior da ilha, com a altitude. A temperatura média anual é de 19,0 °C no Funchal (58m), 8,8 °C no Areeiro (1590 m), 15,5 °C em Santana e 18,6 °C na ilha de Porto Santo (78 m). A temperatura média mensal varia pouco ao longo do ano, sendo maior no verão – 22,6 °C no Funchal, 14,3 °C no Areeiro, 19,0 °C em Santana e 22,5 °C em Porto Santo – e menor no inverno: 16,1 °C no Funchal, 4,9 °C no Areeiro, 12,8 °C em Santana e 15,6 °C em Porto Santo. As amplitudes térmicas diárias são pequenas, com valores médios mensais que variam de 5,7 °C a 6,5 °C no Funchal, de 5,9 °C a 8,5 °C no Areeiro, de 4,8 °C a 6,2 °C em Santana e de 4,8 °C a 6,1 °C em Porto Santo. O número médio de dias de verão, definidos como dias em que a temperatura máxima do ar é superior ou igual a 25 °C, é de 72 no Funchal, 7 no Areeiro, 7 em Santana e 39 no Porto Santo; o número de noites tropicais, ou seja, dias de temperatura mínima do ar superior ou igual a 20 °C, é de 28 no Funchal, 1 no Areeiro, 1 em Santana e 37 em Porto Santo. Os dias quentes, com temperatura máxima do ar superior ou igual a 30 °C, podem ser registados tanto nas regiões costeiras como nas regiões montanhosas da ilha da Madeira e também em Porto Santo, mas são bastante reduzidos; em média, inferiores a um dia por ano. As temperaturas máximas absolutas registadas foram 38,5 °C no Funchal, 30,6 °C no Areeiro, 34,1 °C em Santana e 35,3 °C em Porto Santo; e as temperaturas mínimas absolutas foram 7,4 °C no Funchal, -7,0 °C no Areeiro, 5,1 °C em Santana e 6,4 °C no Porto Santo. O número médio de dias do ano com temperatura mínima inferior a 0 ºC é praticamente nulo, exceto no Areeiro onde é de cerca de 40 dias. Precipitação De todos os elementos climáticos, a precipitação é a que apresenta maior variabilidade, existindo um contraste significativo entre a vertente norte e as zonas mais altas, onde ocorrem valores muito elevados de precipitação, e a vertente sul e o Porto Santo, com valores baixos de precipitação. No inverno, a precipitação ultrapassa os 1000 mm nas zonas mais altas, enquanto na costa sul é inferior a 300 mm. Nos meses de verão, a quantidade de precipitação varia entre os 150 mm nas zonas mais altas e menos de 50 mm na costa sul da ilha. O facto de chover mais na parte norte da Madeira durante o verão está claramente associado à direção dominante do vento do quadrante norte nesta estação do ano, e ao facto de a precipitação ser essencialmente de origem orográfica. Os valores médios anuais da precipitação na ilha da Madeira são maiores na costa norte do que na costa sul, aumentando com a altitude, sendo em regra maiores nas encostas voltadas a norte do que nas encostas voltadas a sul para regiões da mesma altitude. Os valores variam de 596 mm no Funchal a 2620 mm no Areeiro, com 1383 mm em Santana. No Porto Santo, o valor médio anual da quantidade de precipitação é 361 mm. Os valores médios mensais da quantidade de precipitação variam muito durante o ano, sendo os meses de outubro a março os mais chuvosos, com valor médio mensal mais elevado nos meses de novembro a janeiro. As maiores quantidades de precipitação diárias variam de local para local, desde o máximo de 215,0 mm no Areeiro, passando por 194,0 mm em Santana, até aos 97,7 mm no Funchal; em Porto Santo, o maior valor diário registado foi 73,0 mm. O número médio anual de dias em que a quantidade da precipitação é igual ou superior a 10 mm é máximo no Areeiro (70) e mínimo em Porto Santo (9), sendo 19 dias no Funchal e 40 dias em Santana. A assimetria norte-sul do número anual de dias com precipitação (≥0,1 mm) é muito significativa. Com efeito, na região do Funchal e noutros pontos da costa sul, ocorrem menos de 90 dias com precipitação por ano, enquanto na costa norte se observam mais de 150 dias por ano. Por outro lado, nas zonas mais altas registam-se mais de 200 dias por ano com precipitação, dos quais mais de 70 são dias com precipitação elevada, superior a 10 mm. Insolação A insolação (número de horas diárias de exposição solar) mensal varia durante o ano com bastante regularidade, Fig. 10 – Gráfico da insolação mensal no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. tendo o valor mínimo em dezembro: 134 h no Funchal, 102 h no Areeiro e 133 h na Ilha de Porto Santo. O máximo mensal é 231 h em agosto no Funchal, 241 h em agosto no Porto Santo e 285 h em julho no Areeiro. A insolação apresenta uma ligeira descida em junho no Funchal e em Porto Santo, mas que não se observa no Areeiro. A insolação mensal média tem assim, para o Funchal e para Porto Santo, uma distribuição bimodal, com máximos em maio e em agosto (fig. 10). Anualmente, o Porto Santo totalizou, neste período, 2157 h de sol e o Funchal 2057 h, estando o maior número de horas de sol em Porto Santo associado à menor orografia, que não favorece tão fortemente a formação de nebulosidade local. O Areeiro totaliza 2053 h de insolação, apresentando uma amplitude mensal de 183 h; o Funchal, com um número anual de horas de sol quase igual ao do Areeiro, tem uma amplitude mensal de 96 h. O número anual de dias sem insolação é de 11 no Funchal, 9 em Porto Santo e 42 no Areeiro; para este valor, contribui essencialmente o número de dias com muita nebulosidade que se registam nos meses de outubro a março. Evaporação (mm) Os valores médios mensais da evaporação nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo variam pouco e com bastante regularidade durante o ano. Em geral, os máximos ocorrem em julho e agosto. A quantidade média anual de evaporação é maior em Porto Santo, com 1423 mm, seguindo-se, por ordem decrescente, na ilha da Madeira, o Funchal, com 1109 mm, o Areeiro, com 970 mm, e Santana, com 753 mm. A amplitude mensal é de 23 mm no Funchal, 117 mm no Areeiro, 19 mm em Santana e 36 mm em Porto Santo, sendo de concluir que a evaporação é máxima nas regiões montanhosas.   Humidade relativa do ar A humidade relativa do ar é em regra maior na costa norte do que na costa sul da ilha da Madeira, sendo a variabilidade mensal maior nas regiões montanhosas. Fig. 11 – Gráfico dos valores médios mensais da humanidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera.   Nas regiões costeiras da ilha da Madeira, os valores médios mensais da humidade relativa do ar apresentam pequena variação durante o ano, sendo menores no inverno do que no verão. Com efeito, o mês mais seco é abril no Funchal, com 69 %, e fevereiro e março em Santana, com 80 %. No Areeiro, os valores médios são mais altos no inverno, 85 %, do que no verão, 64 %. Também na ilha de Porto Santo a humidade relativa é maior no inverno, com 80 %, sendo nos meses de abril a julho da ordem dos 76 %. Na fig. 11, apresentam-se os valores médios mensais da humidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.   Vento O regime anual do vento é diferente na costa norte e na costa sul da ilha da Madeira, sendo os ventos predominantes de NE (10 %) e SW (10 %) no Funchal, de NE (38 %) no Areeiro, de WNW (14 %) e SE (10 %) em Santana/São Jorge, e de N (20 %) em Porto Santo. A frequência de calma é de 13,4 % no Funchal, 1,7 % no Areeiro, 4,0 % em Santana/São Jorge, e 2,3 % no Porto Santo. As rajadas superiores a 40 km/h ocorrem no Funchal com frequência de 1 % e muito raramente são registadas rajadas superiores a 70 km/h. Rajadas superiores a 70 km/h são registadas no Areeiro em 5 % das observações, em Santana/São Jorge em 0,6 % das observações e em Porto Santo em 0,2 %. Entre 1995 e 2015, a maior rajada do vento no Funchal foi de 86 km/h, em março de 2010; no Areeiro, foi de 160 km/h, em Santana/São Jorge, de 159 km/h e em Porto Santo, de 104 km/h, todas no mês de fevereiro de 2010. Assinale-se que os ventos fortes e muito fortes a que por vezes correspondem temporais, particularmente nas terras altas da Madeira e em Porto Santo, estão associados normalmente aos valores mais baixos da pressão atmosférica que em regra ocorrem entre novembro e março.   Temperatura da água do mar Os valores médios mensais da temperatura da água do mar à superfície variam com regularidade durante o ano. Os valores máximos ocorrem em agosto ou em setembro e os mínimos em fevereiro ou março. A temperatura média mensal é relativamente alta ao longo do ano, variando entre 17,8 °C em março e 23,3 °C em setembro no Funchal, e entre 17,3 °C em fevereiro e março e 22,4 °C em setembro no Porto Santo. A temperatura média anual é 20,2 °C no Funchal e 19,5 °C em Porto Santo. A amplitude média da variação mensal é 5,5 °C no Funchal e 5,1 °C em Porto Santo. Os valores observados na região raramente descem abaixo dos 15 °C e raramente ultrapassam os 25 °C.   Ondulação A ondulação na região da Madeira é geralmente fraca ou moderada, com rumos predominantes de NW a NE, exceto junto ao litoral sul da ilha da Madeira, em que predominam rumos de SE a SW. As situações que ocorrem mais frequentemente nos meses de inverno, e que correspondem à ocorrência de depressões no Atlântico Norte em latitudes entre 35° e 55° N, conduzem à geração de ondulação do quadrante NW na região da Madeira. A ondulação do quadrante NE é proveniente, em geral, de áreas de geração localizadas no bordo SE do anticiclone dos Açores, quando este se estende sobre a Europa Ocidental. Durante os meses de verão, cresce a importância desta situação relativamente à anterior, quer pela localização habitual nestes meses do anticiclone dos Açores, quer pelo menor número de depressões a atravessar o Atlântico Norte a latitudes suficientemente baixas para que a ondulação por elas provocada atinja a Madeira.   Pressão atmosférica Os valores da pressão atmosférica ao nível da estação apresentam diferenças quase constantes de local para local, resultantes das diferenças de altitude. Os valores médios mensais reduzidos ao nível médio do mar, registados no Funchal e em Porto Santo, variam pouco durante o ano – 3 hPa no Funchal e 3,3 hPa no Porto Santo –, sendo maiores no inverno e no verão, com diferença de cerca de 1 hPa, e menores na primavera e no outono. A variabilidade interanual dos valores médios mensais nos vários anos é maior durante o inverno e menor durante o verão: 15,0 hPa em janeiro e fevereiro e 2,4 hPa em agosto. Os valores mínimos ao nível médio do mar observados em anos recentes foram 985,9 hPa no Funchal, em 20 de fevereiro de 2004, e 985,8 hPa em Porto Santo, em 4 de março de 2013; os valores máximos foram 1037,2 hPa no Funchal, em 1 de janeiro de 2007, e 1039,3 hPa, em 25 de Janeiro de 2014, em Porto Santo.   Trovoada, granizo, neve e nevoeiro O número de dias com trovoada é de 7 no Funchal, 4 no Areeiro, 4 em Santana e 5 em Porto Santo, sendo a frequência maior no outono e na primavera. O número de dias com precipitação de granizo e saraiva é de 1 no Funchal, 14 no Areeiro, 2 em Santana e inferior a 1 no Porto Santo; a frequência é maior desde meados do outono até à primavera. O número médio de dias do ano com precipitação de neve e com geada é praticamente nulo na Madeira, exceto no Areeiro, em que são registados 7 e 16 dias, respetivamente, com maior frequência em janeiro e março. O número de dias com nevoeiro tem valores desde 1 no Funchal e em Porto Santo, 8 em Santana e 227 no Areeiro, sendo pouco nítida a variação ao longo do ano. É muito nítida e acentuada a variação em altitude. Victor Prior (atualizado a 29.01.2017)

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sintaxe

    Variação sintática em variedades do português A investigação sobre a variação no domínio da sintaxe do português, sobretudo nas suas variedades europeias, ou Português Europeu (PE), não tem merecido a atenção dos linguistas. Como sublinha Ernestina Carrilho, “As informações disponíveis sobre aspetos da sintaxe do PE dialetal são, assim, normalmente escassas e encontram-se, em grande parte, dispersas em muitos trabalhos monográficos” (CARRILHO, 2003, 19), ocupando um lugar muito marginal nos trabalhos dialetológicos. Assinale-se, a título de exemplo, as poucas páginas consagradas à sintaxe por Leite de Vasconcelos na sua tese de doutoramento Esquisse d'une Dialectologie Portugaise, de 1901 (VASCONCELOS, 1987, 121-122), obra de referência na dialetologia portuguesa, ou ainda a ausência de critérios de tipo sintático na caracterização sistemática de dialetos portugueses proposta por Manuel de Paiva Boléo e Maria Helena Silva (1961) e por Luís Filipe Lindley Cintra (1971). A investigação em variação sintática tem sobretudo privilegiado o contraste entre variedades nacionais do português, o PE e o Português do Brasil (PB), não só no âmbito da Teoria da Variação e da Mudança Linguística, proposto no clássico artigo de Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (1968), “Empirical Foundations for a Theory of Language Change”, pioneiro da sociolinguística variacionista, mas também na perspetiva do Modelo de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981) ou doutros modelos compatíveis com os pressupostos teóricos da Gramática Generativa. Os principais fenómenos que têm chamado a atenção de investigadores portugueses e brasileiros encontram-se na secção “Colóquio Português Europeu/Português Brasileiro: Unidade e Diversidade na Passagem do Milénio”, integrada no volume dedicado às Actas do XVI Encontro da APL (CORREIA e GONÇALVES, 2001), e prendem-se, entre outros, com o parâmetro do sujeito nulo (BARBOSA et al., 2001, 539-550), as estratégias de realização de objeto direto (KATO e RAPOSO, 2001, 673-686), o artigo antes de possessivo (BRITO, 2001, 551-575), as construções relativas (CORRÊA, 2001, 615-626), a concordância verbal com a gente (COSTA et al., 2001, 639-656) e o uso do gerúndio (NETO e FOLTRAN, 2001, 725-735). O primeiro trabalho de referência sobre sintaxe dialetal, sob o título de “Aspectos da Sintaxe do Português Falado no Interior do País”, foi realizado por João Malaca Casteleiro (CASTELEIRO, 1975), a partir de uma amostra de dados de português falado coletados no âmbito do projeto corpus Português Fundamental (NASCIMENTO et al., 1987). O seu estudo focaliza-se, entre outros aspetos sintáticos, na estrutura da frase e na sintaxe verbal, mais especificamente nos usos dos tempos e modos verbais, e permite observar algumas tendências da sintaxe do português falado por 45 informantes com nível baixo de escolaridade (4.ª ano do ensino básico) ou analfabetos, de oito distritos do interior de Portugal Continental, tais como o uso do “gerúndio precedido de em, isto é, em + gerúndio. [...] com valor e é muito utilizada na linguagem popular”, como em “Entra às nove, e em sendo aí meia-noite, uma hora, tem ali cama, vai-se deitar (Rececionista de um hotel, instrução primária, de Beja, R-297)” (CASTELEIRO, 1975, 62), ou ainda o recurso de “frases simples justapostas, sem coordenação explícita [...]” (Id., Ibid., 64) e da repetição como forma de se fazerem entender, sendo a frase passiva pouco utilizada. No que se refere à sintaxe do verbo, são de referir o uso frequente dos pronomes pessoais, as formas sujeito, com os verbos, embora tal não seja necessário, uma vez que no português as desinências verbais fornecem a informação relativa às categorias gramaticais de pessoa/número, como em “Mas nós temos a impressão que nem toda a gente se adapta ao nosso ambiente, porque felizmente nós temos aqui um ambiente bom (Bordadora, 4ª classe, Castelo Branco L-183)” (Id., Ibid., 65), ou ainda o uso de a gente com o verbo na 1.ª pessoa do plural, sobretudo no Sul do país, como em “A gente não tivemos festa, andamos de luto (Trabalhadora rural, analfabeta, de Sta Suzana, Évora, Q-42)” (Id., Ibid.). Os resultados deste estudo são, segundo o autor, “apesar da exiguidade da amostragem, [...] no domínio sintático, [...] pertinentes” (Id., Ibid., 58). O autor chama ainda a atenção para algumas características linguísticas de falantes pouco instruídos, cuja fala “não é nem mais pobre, nem mais rica do que a dos falantes média ou altamente alfabetizados. É apenas diferente em vários aspetos da organização das estruturas sintácticas. [...]. As dificuldades de comunicação só surgem – e surgem nos dois sentidos – quando há intercâmbio entre falantes de meios sociais diferentes. Neste aspeto, tanto tem que aprender o falante altamente alfabetizado com o pouco ou nada alfabetizado, como vice-versa. A linguagem de uns e doutros tem, por conseguinte, o mesmo valor linguístico e deve ser igualmente descrita pela Gramática” (Id., Ibid., 74). Merece igualmente destaque a publicação de João Andrade Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa (PERES e MÓIA, 1995), na qual os autores selecionam seis áreas críticas do português contemporâneo a partir da análise de material linguístico retirado de uma amostra de textos jornalísticos produzidos entre 1986 e 1994. As áreas selecionadas, nas quais se observa o uso de variantes não normativas, são indicadas em (1), seguidas de alguns exemplos: 1) a. estruturas argumentais: e.g., “supressão de argumentos”, como em “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, colocando posteriormente sobre uns carris da linha de comboio” [Diário de Lisboa, 24/11/1989, p. 10] vs. “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, e colocando-o posteriormente sobre uns carris da linha de comboio”[versão padrão proposta] (PERES e MÓIA, 1995, 60); b. construções passivas: por exemplo, “supressão de preposição”, como em “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda fácil de entrar (apenas 1.460 contos) e agradável de estar” [Expresso, 31/12/1988, p. C-7 (publicidade)] vs. “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda em que é fácil entrar (apenas 1.460 contos) e agradável estar” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 233); c. construções de elevação: como em “As conclusões deste estudo estavam previstas virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [O Independente, Dinheiro, 23/12/1993, p. 5] vs. “Estava previsto as conclusões deste estudo virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 266); d. orações relativas: e.g., “supressão de preposição de constituinte relativo”, como em “Os temas que os portugueses gostam [...]” [O Jornal Ilustrado, 31/3/1989, p. 35] vs. “Os temas de que os portugueses gostam [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 290); e. construções de coordenação: e.g., “supressão de constituintes relativos”, como em “[…] é o caso de Aspects of Love, que estreou-se no mês passado em Londres e já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [Europeu, 18/5/1989, p. 24] vs. “[…] é o caso de Aspects of Love, que se estreou no mês passado em Londres e de que já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 413); f. concordâncias: como em “Desta vez coube-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [O Jornal Ilustrado, 12/5/1989, p. 20] vs. “Desta vez couberam-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 453). Cerca de 20 anos depois deste texto de referência, o projeto CORDIAL-SIN (Corpus Dialectal para o Estudo da Sintaxe), coordenado por Ana Maria Martins, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), vem dar ênfase à investigação em variação sintática no PE. Iniciado em 1999, este projeto visa estudar a variação sintática dialetal do PE, com recurso a dados empíricos, no âmbito da Teoria de Princípios e Parâmetros da Gramática Generativa. Para tal, foi constituído um corpus anotado de PE (CARRILHO e MAGRO, 2010), cuja extensão atual é de cerca de 600.000 palavras (70 horas de gravações que incluem um conjunto geograficamente representativo (42 pontos) de excertos de discurso livre e semi-dirigido). Estes dados foram selecionados a partir do arquivo sonoro do CLUL, construído ao longo de 30 anos, contendo no total cerca de 4500 horas de gravações, obtidas em mais de 200 localidades do território português, no âmbito dos projetos ALEPG (Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza, coord. de João Saramago), ALLP (Atlas Linguístico do Litoral Português, coord. de Gabriela Vitorino), ALEAç (Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores, coord. de João Saramago) e BA (Fronteira Dialectal do Barlavento do Algarve) (SEGURA, 1988). O desenvolvimento de uma área de interesse como a da descrição sintática do português trouxe, ao longo das duas últimas décadas, “avanços relevantes no conhecimento empírico dos dialetos e da variação sintática que as línguas naturais apresentam” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 125), e tal deve-se em grande parte ao projeto CORDIAL-SIN. Este recurso permitiu observar a dimensão geográfica da Sintaxe Dialetal, nomeadamente a distribuição geográfica de algumas construções sintáticas não-padrão do PE (CARRILHO e PEREIRA, 2011 e 2013). Para além destes trabalhos, há a registar, no domínio da sintaxe do gerúndio, e com recurso a dados do CORDIAL-SIN e a monografias dialetais, a presença da variante flexionada, numa área relativamente extensa do Sul de Portugal Continental e, pontualmente, no arquipélago dos Açores (LOBO, 2000, 2001, 2002 e 2008), de que são dados alguns exemplos a seguir, retirados de LOBO (2000): 2) a. orações adjuntas modificadoras da frase sem conector: “Sendem dois, são dois feixes, sendem quatro, são quatro feixes. (Odeleite, in Cruz (1969))”; “Tu querendos, podemos namorar às descondidas. (Monte Gordo, in Ratinho (1959))”. b. orações adjuntas introduzidas por preposição em (ou ende): “vendem a pessoa assim {pp} ou com uma idade {pp} [AB|ou, ou] ou mal ou qualquer coisa, {pp} uns têm consciência, outros não têm. (Cordial, PAL7)”; “Em sendem crescidos, levo-os a Lisboa. (Baixo Alentejo, in Delgado (1951))”. c. orações adjuntas introduzidas por advérbios: “Onde é que eles mesmo /trabalhandem/ /trabalhando/, em ganhando o dinheiro, podiam semear alguma coisinha para eles. (Cordial, PAL11)”. d. orações relativas livres introduzidas por onde e quando: “Onde estando a menina está alegria. (Nisa, in Carreiro (1948))”; “Quando ele estando demais, já cheira a azedo. (Cordial, PAL30) (27)”. Por fim, merece ser sublinhado o trabalho realizado por Eva Arim, Maria Celeste Ramilo e Tiago Freitas, do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), publicado em 2004, a partir de dados retirados do corpus Rede de Difusão Internacional do Português: rádio, televisão e imprensa (REDIP) (que contempla materiais de fala produzidos na rádio, televisão e imprensa, em Portugal, em 1998), sobre construções relativas em PE. Este trabalho põe em evidência o uso de construções relativas não-padrão nos meios de comunicação social portugueses, algo que já tinha sido observado para o PB. Com efeito, esta variedade, e de acordo com o trabalho de Marcos Bagno (2001), referido pelos autores, cujos resultados tiveram por base o corpus de PB falado do Projeto NURC (Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro) aponta para o uso de uma percentagem elevada de relativas não-padrão (79,5 %), com a seguinte distribuição: variante relativa cortadora, com supressão da preposição (94 %) e variante relativa resuntiva, com marcação não-padrão do caso do constituinte relativo (6 %). O mesmo autor mostra que na língua escrita, com base em material jornalístico, a percentagem de variantes não-padrão se mantém elevada (94 %). Tal como no PB, observa-se o uso de variantes de relativas não-padrão em PE, sendo a cortadora a mais frequente, com 59 % no registo oral, mas apenas 3 % no registo escrito, a seguir ilustrado, com dados retirados da publicação: 3) a. Relativa não-padrão (cortadora), oral: “A linha de crédito que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares” [Noticiário, RDP]; padrão: “A linha de crédito de que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares”; “O audiovisual também está neste conjunto que eu chamo multimédia e comunicações interativas” [Dinheiro Vivo, RTP2]; padrão: “O audiovisual também está neste conjunto a que eu chamo multimédia e comunicações interativas”; “São passos no sentido daquilo que se chama mais união política” [Noticiário, RDP]; padrão: “São passos no sentido daquilo a que se chama mais união política”; b. Relativa não-padrão (cortadora), escrita: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes que chamaram A, B, C e D” [Expresso, secção de ciência e tecnologia]; padrão: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes a que chamaram A, B, C e D”; “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem que dispõe sobre o trio perseguidor” [Expresso, secção de desporto]; padrão: “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem de que dispõe sobre o trio perseguidor”. Já a variante resuntiva é a menos produtiva e mais marcada. Como afirmam os autores, “das duzentas e sessenta e cinco orações relativas encontradas no corpus, apenas as duas que se seguem são claramente resuntivas” (ARIM et al., 2004): 4) Relativa não-padrão (resuntiva), oral: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar-lhes forma” [“Acontece”, RTP2]; padrão: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar forma”; “Pôr em causa um princípio que antes não pensavam muito nele” [Debate sobre o Referendo sobre a Regionalização, RDP]; padrão: “Pôr em causa um princípio em que antes não pensavam”. Variação sintática e sintaxe não-padrão nas variedades do português falado na Madeira Os estudos descritivos e sistemáticos sobre variação sintática da variedade do Português falado na Madeira (doravante, PFM), sobretudo sobre a “Variedade do Português Europeu falada no Funchal” (ou PE-Funchal), são muito recentes, como sublinhado por Aline Bazenga (BAZENGA, 2014b). As principais referências surgem após as coletas de dados empíricos realizadas por investigadores do CLUL nos anos 70 e 80 do séc. XX e no início do séc. XXI. Projeto CORDIAL-SIN (CLUL) O projeto CORDIAL-SIN, dedicado ao estudo da variação sintática, permitiu a reflexão e estudo de fenómenos variáveis do PE nos quais surgem algumas particularidades em uso na variedade do PFM. De entre os trabalhos publicados no âmbito deste projeto, merecem especial atenção aqueles que mostram a existência de algumas construções não sintáticas mais confinadas à Madeira e aos Açores, tais como os usos de (i) ter existencial, ilustrado pelo exemplo de uma ocorrência deste tipo num informante do Porto Santo, “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e (eu) não via a casa da minha mãe! (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 129); (ii) as construções com possessivo pré-nominal sem artigo, como no exemplo a seguir, de um informante de Câmara de Lobos: “Ah, meus filhos já vieram daí para cá. (CLC)” (Id., Ibid., 132); e (iii) com o uso do gerúndio, precedido de verbos aspetuais como “estar”, “ficar”, “andar”, como, por exemplo, no seguinte enunciado produzido por um falante madeirense do Porto Santo: “[…] toda a gente estava desejando de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne” (Id., Ibid., 130). Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias (CLUL-Portugal e UFRJ-Brasil) O estudo da variação sintática na variedade madeirense tem vindo a desenvolver-se essencialmente desde 2008, data de início do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias, projeto internacional coordenado por investigadores do CLUL (Portugal) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Brasil) e financiado pelo CAPES/GRICES (Brasil), mais concretamente a partir de 2010, data em que a Universidade da Madeira (UMa) passa a integrar o projeto, através da investigadora do CLUL e docente desta Universidade Aline Bazenga. Os primeiros estudos variacionistas sobre sintaxe do português insular, a partir de dados da variedade falada no Funchal, capital do arquipélago da Madeira, começaram a ser publicados a partir desta data. Os trabalhos publicados enquadram-se na perspetiva variacionista e laboviana da variação, na qual a heterogeneidade sistemática observada nos sistemas linguísticos é condicionada por fatores sociais. Para o corpus Concordância-Funchal, foram realizadas as primeiras entrevistas sociolinguísticas de informantes madeirenses do Funchal. O projeto de constituição do corpus, inicialmente previsto para obtenção de dados de falantes insulares e urbanos, tem vindo a ser alargado a outros pontos de localização na ilha da Madeira (Calheta/Paul do Mar, Porto Moniz, Funchal, Santa Cruz, Boaventura, Ribeira Brava, Caniçal, Santana e Câmara de Lobos), com vista à constituição de um corpus Madeira. Em 2014, o corpus Concordância-Funchal passa a ser designado por corpus Sociolinguístico do Funchal (CSF) e integra-se no Corpus Madeira, que inclui amostras de outras localidades insulares. No mesmo ano, o CSF contém dados de 60 informantes, num total de 34 horas e 45 minutos de gravações. Os informantes foram escolhidos em função dos critérios sociais defendidos por Labov, atendendo às variáveis idade, género, localidade e nível de escolaridade. Os dados recolhidos têm sido objeto de estudo e analisados em trabalhos de investigadores, não só por Aline Bazenga, em publicações, comunicações e trabalhos de alunos sob sua orientação, como também por Juliana Vianna, em Semelhanças e Diferenças na Implementação de a gente em Variedades do Português (dissertação de doutoramento, defendida em 2011), Lorena Rodrigues, sobre os pronomes e clíticos em variedades do português (dissertação de doutoramento, em curso em 2016), e Catarina Andrade, em Crenças, Perceção e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (dissertação de mestrado, defendida em 2015), todos membros do Centro de Investigação em Estudos Regionais e Locais da Universidade da Madeira (CIERL-UMa), dirigido por Paulo Miguel Rodrigues. Construções sintáticas não-padrão em uso na Madeira A investigação realizada no âmbito dos projetos anteriormente referidos permitiu aprofundar a investigação em torno de algumas áreas da gramática do PE, para as quais os falantes madeirenses mais contribuem, através de usos de variantes sintáticas não-padrão. Assim, para além da variante com gerúndio em construções aspetuais com o verbo estar e do uso de possessivo pré-nominal sem artigo, são de assinalar, nas construções existenciais, o uso da variante com o verbo ter e, nas construções pronominais, o uso de a gente e variantes com ele e lhe em função objeto direto (OD), entre outras particularidades ligadas à sintaxe posicional dos clíticos. São de referir ainda as variantes de terceira pessoa do plural (PN6) na morfologia verbal, em vogal [u], com ou sem traço de nasalidade, e em ditongo nasal [ɐ̃j̃] alargado a outros paradigmas verbais, o que conduz à regularização das classes temáticas dos verbos no presente do indicativo e no pretérito imperfeito, para além da variante em vogal, isomorfa de terceira pessoa do singular (PN3), cuja produção parece estar motivada por fenómenos de fonética sintática. Muitos destes fenómenos, que serão apresentados de modo mais sucinto nas secções seguintes, são referidos no trabalho de Elisete Almeida, publicado em 1998, sobre as “Particularidades dos Falares Madeirenses, na Obra de Horácio Bento de Gouveia”, elaborado a partir da recolha de dados retirados da escrita de Horácio Bento de Gouveia, escritor madeirense que, tendo a perceção do uso de algumas variantes não-padrão, sobretudo por informantes menos escolarizados da ilha da Madeira, procurou integrá-las na caracterização de personagens do povo nos seus romances. Construção com possessivo pré-nominal sem artigo O exemplo atestado em Câmara de Lobos “Ah, meus filhos já vieram daí para cá.” (CLC), e citado por Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 132), ilustra a variante da construção-padrão, com realização do artigo definido a preceder o possessivo, como em “Ah, os meus filhos já vieram daí para cá.”. As autoras acima referidas, apesar de observarem a realização da construção sem artigo em várias localidades situadas em Portugal continental, reconhecem “um padrão de distribuição geográfica predominante na área insular, em especial no arquipélago da Madeira” (Id., Ibid.), sobretudo quando os possessivos são seguidos de nomes de parentesco. Outras ocorrências desta variante não-padrão são citadas por Aline Bazenga (BAZENGA, 2011c), tendo por base uma amostra do CSF: 5) a. tava eu tua avó e teu avô [padrão: a tua avó e o teu avô] tava-se ali sentades (FNC11_MC1.1 159-60); b. mas mê maride [marido] [padrão: o meu marido] não podia ajudar em nada (FNC11_MC1.1 200); c. minha mulher [padrão: a minha mulher] teve seis filhes [filhos] (FNC11_HC1 207); d. salete _mas [mais] minha prima [padrão: a minha prima] (FNC11_MA1 016); e. quande mê [meu] pai faleceu [padrão: o meu pai] mê [meu] pai [padrão: o meu pai] foi tratado pior que um cão (FNC11_MB2 079-80). Construção aspetual estar + gerúndio Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011), com recurso a dados de informantes madeirenses integrados no corpus CORDIAL-SIN, observam também, em algumas zonas de Portugal Continental, sobretudo nas variedades dialetais centro-meridionais e insulares, o uso da variante da construção aspetual com o verbo “estar” seguido de gerúndio, para além da variante-padrão, com verbo no infinitivo. Na Madeira, esta construção está também atestada, conforme o exemplo a seguir indicado e retirado deste trabalho: 6) “[…] toda a gente estava desejando [padrão: estava a desejar] de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). A propósito desta construção e do seu uso no PFM, Elisete Almeida crê que esta se deve ao contacto linguístico e cultural da comunidade madeirense com os ingleses, a um processo de transferência linguística da construção inglesa “it’s rainning” para “está chovendo” (ALMEIDA, 1999, 75). Construção com ter existencial A construção com ter existencial tem sido referida como uma variável que permite contrastar duas variedades normativas do português, PE e PB, como nos exemplos a seguir indicados e retirados de Maria Helena Mira Mateus (2002): 7) a. PB: tem fogo naquela casa; PE: há fogo naquela casa. b. PB: no baile tinha muitos homens bonitos; PE: no baile havia muitos homens bonitos. Yvonne Leite, Dinah Callou e João Moraes observavam que o “uso de ter por haver tem sido objeto de estudo sistemático e costuma-se dizer que essa substituição, em estruturas existenciais, constitui uma das marcas que caracterizam o português do Brasil [sublinhado nosso], afastando-o do português de Portugal e aproximando-o do de Angola e Moçambique” (LEITE et al., 2003, 101). Muito estudada no âmbito do PB (VIOTTI, 1999; MATTOS e SILVA, 2002; DUARTE, 2003; LOPES e CALLOU, 2004; CALLOU e DUARTE, 2005; AVELAR, 2006a, entre muitos outros), só recentemente esta construção foi objeto de análise no âmbito do PE. O artigo de Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (2011), com base no CORDIAL-SIN, mostra que esta construção está presente em variedades do PE, nos arquipélagos dos Açores e Madeira (fig. 1): Fig. – Mapa com a distribuição de “ter” impessoal e existencial no CORDIAL-SIN (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). Trata-se de uma construção em que o verbo ter é usado não com o seu valor de posse, como na gramática da variedade normativa do PE, mas sim como verbo existencial, em vez da variante normativa com haver, fenómeno que se encontra ilustrado através dos exemplos, em (7), retirados deste trabalho: 7) a. “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e não via a casa da minha mãe! (PST16)”; b. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora. (CLH03)” (Id., Ibid., 129). Aline Bazenga (BAZENGA, 2012a, 2012b), com base no CSF, confirma a vitalidade desta construção: 8) a. “nunca tive oportunidade só_só italiano lá em baixo no centro onde tem [padrão: há] um italiano espetacular. (FNC11_HA1)”; b. “Porque no Continente tem as discotecas onde vai toda a gente e tem [padrão: há] as discotecas que são escondidas só vai quem quiser. (FNC11_HA2)”; c. “no meu trabalho onde eu trabalho tem [padrão: há] muita gente de idade e há velhotes que têm pensões. (FNC11_MB2)”; d. “tem [padrão: há] bastantes colégios aqui na Madeira. (FNC11_MA3 111-2)”; e. “tem [padrão: há] pessoas com estudos e não têm trabalho. (FNC11_MC1.2 177)”; f. “na rua dos ilhéus onde tem [padrão: há] dez_vinte prédios de apartamentos. (FNC_CH 3.1 102)”. Em trabalhos de mestrado realizados em 2014, sob a orientação de Aline Bazenga, foi possível realizar um estudo sociolinguístico, recorrendo a duas amostras de seis informantes cada. Estas duas amostras, uma com informantes pouco escolarizados (TER-Funchal 1) e a outra com informantes licenciados (TER-Funchal 3), permitiram obter os primeiros dados quantitativos e configurar a variação no domínio das construções existenciais na variedade do PFM. A seguir (cf. figs. 2 e 3), são apresentados os resultados globais obtidos, em termos de percentagens: [table id=84 /] Estes resultados permitem concluir que o uso da variante construção existencial com ter é frequente na variedade popular do Funchal, i.e., junto de informantes pouco escolarizados e, por esse motivo, com menor contacto com a variante-padrão veiculada pela escola, sobretudo do sexo masculino (63,70 %) e mais jovens (faixas etárias A e B, com 68,3 % e 53,8 %, respetivamente). É, também, de salientar a preferência deste grupo de falantes pelo uso do verbo ter neste tipo de construções com o verbo no presente do indicativo (58,5 %) e quando seguido de um sintagma nominal (SN) cujo nome (N) apresenta um traço semântico [+ animado] (62,3 %). Os dados deste tipo de informantes contrastam com os produzidos por informantes com formação universitária e maior contacto com a variante-padrão (fig. 3). Neste conjunto, observa-se uma percentagem reduzida de ocorrências da variante com ter. [table id=85 /] A variante com ter com valor existencial estava presente na língua portuguesa nos sécs. XV e XVI, em concorrência com a variante em haver, primeiro com valor de posse, mas também com valor existencial, conforme exemplos dados em (9) e em (10): 9) valor de posse (dados do séc. XV) a. ter: “quanta herdade eu ey” (MATTOS e SILVA, 1997, 270); b. haver: “Ele non pode aver remedio” (MATTOS e SILVA, 1989, 591). 10) valor existencial (dados do séc. XVI retirados de VIOTTI (1988,46)) a. haver: “Hum dos nobres que hy ha ca este aiuda os dous” (AX 120.5); “Avya hi hua donzella muy fremosa” (CGE 93.12/13); “Ouve hy muitos mortos e feridos” (CGE 94.17); b. ter: “Antre esta coroa darea e esta ilha tem canal pera poder sahir” (MNS 314.2); “Para cima tendo dous bons canais hum aloeste e outro ao leste” (MNS 324.9); “Na sua ponta da banda da sua tem hua terra alta” MNS 326.19. De acordo com Evani Viotti (1988) e Rosa Virgínia Mattos e Silva (1989), a percentagem de uso da variante com ter (42 %) em construções de posse no séc. XV já se aproximava da variante com haver. No séc. XVI, o uso de ter de posse (86 %) suplanta o de haver, começando também a ser usado em construções impessoais com valor existencial. Nas variedades do PE continental, observa-se uma fixação nos usos destes dois verbos: o verbo ter em construções de posse e o verbo haver em construções existenciais impessoais, o que não ocorre de modo categórico na gramática de alguns falantes madeirenses. Nas variedades insulares do PE e nas variedades extraeuropeias do português, manteve-se o uso conservador da variante ter existencial, com maior ou menor frequência, segundo as situações discursivas e a influência exercida por fatores linguísticos e extralinguísticos anteriormente referidos. Construções pronominais Neste domínio da gramática do português, alguns dos fenómenos que mais têm sido estudados na variedade do PFM prendem-se com (i) as diferentes estratégias de marcação da função OD e as construções sintático-semânticas com o pronome a gente. Estratégia de marcação de OD de terceira pessoa: pronome ele, clítico lhe e OD nulo – O CSF permitiu observar o uso de variantes não-padrão (BAZENGA, 2011c), tais como a variante com o pronome ele, em (11), e a variante com o clítico lhe, em (12): 11) a. “ponho ele [ponho-o] a ver bonecos. (FNC11_MA1 243)”; b. “meto ele [meto-o] a andar de bicicleta. (FNC11_MA1 243)”; c. “e depois o marido deixou ela [deixou-a] e ficou na quinta. (FNC11_MC1.1 453)”. 12) a. “Tento-lhe explicar e lhe informar [informá-lo] sobre as coisas. (FNC11_HA1426)”; b. “Levo-lhe [levo-o] à escola. (FNC11_MA1 006)”; c. “eu não gostava dele nem lhe [nem o podia] ver à frente. (FNC11_MA1 204-5)”. Outras estratégias utilizadas são a variante em OD nulo, em (13), e a repetição lexical, em (14): 13) a. “faço o jantar sirvo [sirvo-o] à família. (FNC11_MA1:010)”; b. “a minha licenciatura termina-se antes do tempo pretendido_ tive que me enquadrar no bolonha e tive que [a] acabar mais cedo – (FNC-MA3.1:013)”. 14) a. “gostava de comprar uma mota_ e os meus pais detestam [detestam-nas] motas – (FNC-HA1:004)”; b. “queria a minha roupa vestia a minha roupa [vestia-a]. (FNC11_MA1:067)”. A seguir, apresentam-se os resultados de estudos quantitativos realizados com amostras retiradas do CSF – OD-Funchal-A(jovens), OD-Funchal-C(idosos) e OD-Funchal-1(pouco escolarizados) –, cada uma composta por seis informantes, que permitem observar as principais tendências no que se refere às estratégias de marcação de OD, por falantes inseridos numa comunidade urbana e insular do PE, o Funchal, capital da ilha da Madeira.   Fig. 4 – Gráfico OD-Funchal-A(jovens) (NÓBREGA e COELHO, 2014).     Fig. 5 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) (CAIRES e LUIS, 2014).       Fig. 6 – Gráfico OD-Funchal-1 (pouco escolarizados) (AVEIRO e SOUSA, 2014).     Os resultados mostram que o uso do clítico em função OD (-o, -a, -os, -as e as suas variantes contextuais, -no, -na, -nos, -nas e -lo, -la, -los, -las), e que corresponde à variante-padrão, é a estratégia, logo a seguir à variante com lhe (9 % (fig. 4), 2 % (fig. 5) e 4,2 % (fig. 6)), menos utilizada pelos falantes do Funchal, quer sejam jovens (cf. fig. 4, com 16 %), idosos (cf. fig. 5, com 18,2 %) ou com nível de escolaridade baixo (cf. fig. 6, com 2,8 %). As estratégias preferenciais traduzem-se pelo recurso à repetição lexical e à não-marcação desta função ou OD nulo. O uso da variante com ele apresenta valores mais expressivos quando se trata de falantes mais idosos (16,4 %) e pouco escolarizados (19,6 %); já a variante em -lhe regista a sua maior percentagem de uso na amostra dos seis informantes jovens (9 %). O fator “nível de escolaridade” (que categoriza os falantes em três níveis: com formação até ao ensino básico (nível 1), secundário (nível 2) e superior (nível 3)) parece ser aquele que maior incidência tem no uso da variante-padrão com clítico -o. A título de exemplo, podemos observar os resultados obtidos quando se tem em conta este fator na amostra de informantes mais idosos (fig. 7), no gráfico a seguir apresentado:   Fig. 7 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) e variável nível de escolaridade (CAIRES e LUIS, 2014).     Os falantes idosos mais escolarizados (com estudos do ensino superior) não recorrem, por exemplo, à variante com ele, muito utilizada por aqueles que têm poucos estudos (22 %); inversamente, utilizam a variante-padrão (25 %), em contraste com o uso pouco significativo (5,6 %) por parte de falantes menos escolarizados. Um estudo posterior, de Lorena Rodrigues (RODRIGUES, 2015) e da mesma autora juntamente com Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2016), realizado junto de 412 estudantes da UMa, permite observar a forma como as variantes em ele e em -lhe, do PFM, sobretudo na variedade do Funchal, ou PE-Funchal, são avaliadas (fig. 8):   Fig. 8 – Gráfico com os resultados globais da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016).     A fig. 8 mostra que a variante não-padrão em ele é avaliada como de menor prestígio, sendo também maior o número de informantes que admite utilizar a variante em -lhe na oralidade. Relativamente à variante -lhe, dos 29 % que manifestam a sua discordância com a hipótese 1, a de se tratar de uma variante errada, e declaram não a usar nem na fala nem na escrita, são os jovens do sexo masculino aqueles que mais a aceitam (31 %), com 12 % dos inquiridos a afirmar a sua utilização na fala e na escrita e 8 % a considerar que se trata de uma variante correta (fig. 9).   Fig. 9 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fator social (género dos inquiridos).   A percentagem de aceitação desta variante aumenta quando estão reunidas duas propriedades linguísticas de N anafórico: nome [+humano] e do género masculino (vi-lhe [o Pedro] na missa). Assim, quando reunidas estas condições, 15 % dos inquiridos afirma utilizar esta variante na oralidade, em situações do discurso informais, e 11 % considera-a como sendo correta. Fig. 10 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fatores linguísticos (traço semântico [humano] e género de N).     Estes resultados parecem configurar uma ainda ténue distribuição na perceção social das duas variantes: a variante ele é mais estigmatizada pela jovem elite insular e a variante -lhe parece estar a progredir em termos de aceitabilidade. A variante a gente, forma estigmatizada e alternante com nós, é também muito usada na oralidade. Ambas as variantes podem denotar uma entidade plural, mas requerem, do ponto de vista normativo, formas verbais na 3PS (terceira pessoa do singular, no caso de a gente) e 1PP (primeira pessoa do plural, no caso de nós). No entanto, os falantes utilizam muitas vezes na oralidade uma estratégia regularizadora, transferindo os traços de nós para a variante a gente, de que resulta, por exemplo, a gente vamos. O trabalho de Juliana Vianna (VIANNA, 2011), intitulado Semelhanças e Diferenças na Implementação de a Gente em Variedades do Português, com recurso aos dados coletados em 2010 para o Projeto Concordância (UFRJ – CLUL), que integram o CSF atual, permite observar que, dentro das variedades do PE, o uso de a gente adquire maior expressão na variedade falada no Funchal (fig. 11). [table id=86 /] Este facto ganha ainda maior visibilidade quando considerados alguns fatores sociais, nomeadamente o fator nível de escolaridade (fig. 12) e género (fig. 13) dos informantes.     Fig. 12 – Tabela com os resultados dos usos das variantes a gente e nós em variedades do PE, atendendo ao fator nível de escolaridade dos informantes (VIANNA, 2011). Os resultados mostram que a variante a gente é utilizada pelos setores mais marginalizados da sociedade insular, ou seja, maioritariamente por informantes com um nível de escolaridade baixo (52 %) e do sexo feminino (51 %), gozando, por este motivo, de pouco prestígio social. Outra construção sintática não-padrão e na qual se encontra a forma pronominal a gente, estudada por Ana Maria Martins (MARTINS, 2009), encontra-se em (15), a seguir, com dados de um falante de Câmara de Lobos: 15) a. “Não sabem o que a gente se passámos aí. (CORDIAL-SIN. CLC)”; b. “Este pode ser a coisa que a gente se diz peixe-cavalo. (CORDIAL-SIN. CLC)”.   Este tipo de construções, designadas por “duplo sujeito”, observada nos dados do CORDIAL-SIN, cujos informantes obedecem a um perfil social específico (geralmente idosos, analfabetos e que nunca saíram da região onde nasceram, sendo por este motivo considerados mais autênticos), está muito presente na ilha da Madeira, embora não seja específica da variedade insular, como referido pela autora em nota de rodapé: “The double subject SE construction is found in the archipelagos of Azores and Madeira as well as in continental Portuguese. It is much more common in the Centre and South of Portugal than in the North (where nonetheless it is also attested). It is fully ungrammatical in standard EP and has gone totally unobserved by philologists and linguists who dealt with dialect variation in European Portuguese” [A construção de duplo sujeito SE pode ser observada nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como no português continental. Esta é muito mais frequente no Centro e no Sul de Portugal do que no Norte. É totalmente agramatical no PE-padrão, tendo passado despercebida a filólogos e linguistas que trabalham a variação dialetal no Português Europeu] (Ibid.). O CSF fornece mais exemplos deste tipo de construção, o que atesta a sua vitalidade, que não se limita ao seu uso por parte de falantes de comunidade rurais ou piscatórias, mas também de uma comunidade urbana, como a do Funchal: 16) a. “eu ainda falo um pouco lá como a gente fala-se lá na Calheta. (FNC11_HA1152-3)”; b. “a gente pede-se o bilhete de identidade tira-se o nome tira-se tudo gravas e depois vão dormir. (FNC11_MC1.1 099)”; c. “e cada vez a gente ouve-se  mais falar sobre isso. (FNC-MA3.1 271)”. Variantes de terceira pessoa do plural no verbo em contexto de concordância verbal O estudo da aplicação variável da regra de concordância verbal de 3PP (ou PN6) é o fenómeno morfofonológico e sintático mais estudado na variedade do PE-Funchal, sendo possível observar algumas tendências, em termos quantitativos e qualitativos, no que se refere aos padrões de variantes em coexistência nesta variedade urbana e insular do PE. Em termos de resultados globais de realização da concordância verbal com PN6, incluindo produções padrão e não-padrão da marca de Pessoa e Número (PN) no verbo neste contexto, Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) registou, a partir de uma amostra de dados retirados do Corpus Concordância, 84 % de concordância, percentagem que se relaciona fundamentalmente com o facto de ter incluído ocorrências do tipo tem/têm e construções com o verbo ser antecedido de SN topicalizado. Num estudo posterior, Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), recorrendo também a uma amostra do mesmo corpus, mas adotando critérios uniformizados, registaram um índice de concordância de 94,7 %, valor que se situa numa posição intermédia, quando comparado com os resultados obtidos nas outras amostras, tanto europeias, como brasileiras e africanas: 99,1 % (Oeiras) e 99,2 % (Cacém), as duas amostras do PE continental; 89,1 % (Copacabana) e 78,2 % (Nova Iguaçu), do PB; e 92,1 % na amostra de São Tomé. Estes índices gerais permitem observar o contraste entre variedades do português, quanto ao tipo de regra (LABOV, 2003): as variedades do PE continental caracterizam-se por apresentarem uma regra semicategórica de concordância de terceira pessoa do plural, enquanto as variedades não europeias exibem uma regra variável. A variedade do PE-Funchal apresenta um comportamento que se situa no limite entre uma regra semicategórica e variável. Fica patente também neste trabalho, tal como em outros estudos variacionistas da concordância verbal de PN6 (MONGUILHOTT, 2009; RUBIO, 2012; MONTE, 2012), que o conjunto de fatores em atuação nas variedades do PE parece obedecer a condicionamentos morfofonológicos (sândi externo, um fenómeno de fonética sintática que ocorre no encontro de duas palavras, envolvendo uma vogal ou consoante final de uma palavra e uma vogal ou consoante inicial da palavra que está imediatamente a seguir, como em “bebe bem”, com a seguinte alteração ['bɛbɨ 'bɐ̃j̃]  ['bɛ 'bɐ̃j̃], ou em “gosta da amiga”, ['gɔʃtɐ dɐ ɐ’migɐ]  ['gɔʃtɐ da'migɐ]) e sintático-semânticos do tipo genérico ou de natureza “universal” (sobretudo posição e tipo de sujeito), restrições que afetam as línguas, independentemente da sua tipologia, como referido no trabalho de Greville Corbett (CORBETT, 2000). No entanto, tanto no trabalho de Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) como no já referido de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2013), a variedade do PE-Funchal distingue-se das variedades urbanas do PE por apresentar um conjunto de padrões de variantes flexionais de terceira pessoa do plural mais rico, comparável com os dados de subvariedades rurais ou semiurbanas (MOTA et al., 2003; MOTA e VIEIRA, 2008; MOTA, 2013) ou da variedade de Braga, estudada por Celeste Rodrigues (RODRIGUES,2012). Com efeito, na variedade do Funchal, para além das variantes flexionais-padrão (falam), foi possível constatar o uso de variantes não-padrão, marcadas pela realização de (i) um ditongo nasal não conforme com a morfologia verbal-padrão (falem, ou variante -EM) e (ii) da vogal oral (comero) ou nasal (comerõ) (variantes -U), para além da variante em vogal oral, resultante da não realização do traço de nasalidade, isomorfa de PN3, observada, ainda que de forma pouco produtiva, nas variedades do PE continental e normalmente analisada como não contendo a marca de número exigida pelo contexto de concordância verbal de PN6 (fala). Variantes flexionais não-padrão em contexto de concordância verbal de PN6 – A comparação das variantes flexionais não-padrão de PN6 (-EM e -U) atestadas no CSF (VIEIRA e BAZENGA, 2013) com as ocorrências observadas em amostras das subvariedades rurais/semirrurais do PE continental (dialetos setentrionais e dialetos centro-meridionais), retiradas de corpora (PE1, BB e AA) referidos no trabalho de Celeste Rodrigues e Maria Antónia Mota (RODRIGUES e MOTA, 2008), revela alguma especificidade da variedade urbana insular, caracterizada por uma maior diversidade, no que se refere tanto ao número de variantes como ao dos paradigmas verbais. Nesta variedade, o pretérito imperfeito do indicativo é objeto de maior variação, não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. As gramáticas de falantes madeirenses do Funchal incluem neste tempo verbal, para além da variante-padrão e a variante isomórfica de PN3, as variantes -EM e -U. Na fig. 14, onde consta o conjunto de variantes atestadas no Funchal no trabalho de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), é possível observar que, depois da variante de PN6-padrão, inequivocamente com a realização canónica da concordância verbal (85,7 %), a variante mais expressiva, em termos quantitativos, é a que corresponde à forma verbal com uma terminação em ditongo nasal “deslocada” do seu paradigma e estendida a outros, representada por -EM (8,2 %), logo seguida da variante em vogal oral, isomórfica de PN3, analisada no referido trabalho como de não aplicação da concordância verbal de PN6.   Variantes não-padrão em vogal oral = isomórfica de PN3 Variante não-padrão em –EM Variante não-padrão em –U Variantes-padrão N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % 48 /914 5,3 % 75/914 8,2 % 8/914 0,9 % 783/914 85,7 %   Fig. 14 – Tabela com as variantes flexionais em contexto de concordância verbal PN6 (VIEIRA e BAZENGA, 2013). As duas variantes (-EM e -U) representam cerca de 9 % dos dados, ou seja, 83 em 866 ocorrências totais de marcação explícita da concordância verbal, nos dados analisados por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA 2013), e quase o dobro das realizações sem a marca de número de PN6 (5,3 %). A realização em [ɐ̃j̃], presente no paradigma do presente do indicativo dos verbos com vogal temática (VT) /e/ e /i/, estende-se aos verbos com VT /a/, estabelecendo uma convergência na marcação PN6 Este processo de nivelamento na marcação de PN6 é também observado nos paradigmas do pretérito imperfeito do indicativo e do pretérito perfeito do indicativo (fig. 15), ilustrados pelos exemplos atestados em (17)-(19).   Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -EM [ɐ̃j̃] 19 oc. 24 oc. 16 oc. 9 oc 4 oc. - 3 oc. 75 oc. Totais 19 49 7   Fig. 15 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013). 17) Presente do indicativo a. “aqueles carres [carros] que andem [andam] de noite. (C1h)”; b. “os próprios portugueses massacrem [massacram] os outros.” (C2m). 18) Pretérito imperfeito do indicativo a. “tanto é qu’as minhas primas elas diziem [diziam]. (B1M)”; c. “eles me chamavem [chamavam] madeirense de segunda. (C2m)”. 19) Pretérito perfeito do indicativo a. “as casas caírem [caíram]. (C1m)”; b. “depois eles mandarem-me [mandaram-me] reformar. (C1h)”. Os paradigmas verbais do PE dispõem de duas formas para marcação de PN6, ambas ditongos nasais, [ɐ̃w̃] e [ɐ̃j̃], mas com distribuições distintas. No português-padrão, a variante [ɐ̃j̃] integra os paradigmas do presente do indicativo dos verbos com VT /e/ e /i/, os do presente do conjuntivo dos verbos com VT /a/ e os do futuro do conjuntivo e do infinitivo pessoal, no conjunto das três conjugações (verbos com VT /a/, /e/ e /i/). Observam-se ainda alterações nas realizações fonéticas dos radicais dos verbos pôr (no pretérito perfeito) e ter (no pretérito imperfeito), transcritas como em (20): 20) a. “ponhem [punham] em terra gastava no calhau. (C1h)”; b. “todos eles tenham [tinham] dom. (B2h)”. Estas alterações poderão estar condicionadas por uma combinatória de restrições, relacionadas com as alterações que sofrem as realizações fonéticas das vogais tónicas /u/ e /i/ na variedade madeirense, por um lado, e pela estratégia de regularização de radicais (p[o]nhem/p[o]r; t[e]nham/t[e]r), por outro. As variantes com ditongo de PN6 da não-padrão realizam-se maioritariamente em contextos sintáticos em que o sujeito expresso está anteposto ao verbo (53,3 % e 40/75 ocorrências). Também ocorrem em 45,3 % (34/75) em contexto de sujeito não expresso, sendo de registar apenas uma ocorrência com sujeito posposto. A realização desta variante não parece ser condicionada por esta variável sintática. O mesmo não acontece em amostras de localidades situadas na zona dos dialetos centro-meridionais do interior do PE analisados por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes, nas quais “a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito (no caso, uma ‘redução’ fonética, do tipo ditongo nasal > vogal nasal ou uma não ditongação da estrutura /vogal n/): 54 % das ocorrências estão em frases com sujeito nulo; 24 %, com sujeito nominal; 20 %, com sujeito pronominal” (MOTA et al., 2012, 172). Quando considerados os contextos fonéticos adjacentes (forma verbal seguida de palavra iniciada por vogal, consoante (C) nasal, consoante não nasal e de pausa), observa-se a seguinte distribuição das ocorrências (fig. 16):   Variante de PN6 não-padrão + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # -EM [ɐ̃j̃] 30 oc. 8 oc. 25 oc. 12 oc.   Fig. 16 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão e contextos fonéticos adjacentes (BAZENGA, 2015b). Esta variante não parece ser sensível ao contexto fonético à sua direita. Na variedade geográfica do Funchal, o ditongo [ɐ̃j̃], forma “peregrina” ou de “empréstimo” aos verbos com VT /e/ e /i/ cuja realização se estende aos verbos com VT /a/, insere-se num padrão marcado pela uniformização do marcador de PN6 no verbo, nos paradigmas verbais do presente, pretérito imperfeito e pretérito perfeito do indicativo. As variantes com final verbal em -U atestadas, no total oito, incidem apenas sobre o pretérito imperfeito (fig. 17), todas de um informante da faixa etária (36-55 anos), do sexo feminino e com escolaridade básica: 21) a. “quando os meus pais moravo na casa”; b. “eles vinho brincare”; c. “alevantavo-se durante a noite cede”.     Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -U [u] ou [ũ] - 5oc. 1 oc. 2 oc. - - - 8 oc.   Fig. 17 – Tabela com a variante flexional -U não-padrão e paradigmas verbais no CSF (BAZENGA, 2015b). Tal como a variante -EM, a variante em -U realiza-se maioritariamente em contexto de sujeito expresso (5/8 dos dados), situação que não parece corresponder ao observado por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes em dados de variedades centro-meridionais, nos quais existem “indícios de que a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito” (Ibid.). De acordo com as autoras, as realizações fonéticas em vogal nasal de PN6 corresponderiam a uma fase do processo morfofonológico anterior à realização canónica de ditongo nasal da forma fonológica /vogal N/. A variante em -U está também presente no conjunto de variantes observadas em fala espontânea informal na variedade urbana de Braga, que integra os dialetos setentrionais do PE, como mostra o estudo de Celeste Rodrigues (2012), com dados retirados do CPE-Var, um corpus que inclui 180 entrevistas sociolinguísticas de falantes de Lisboa e Braga, coletadas entre 1996 e 1998 (fig. 18). Variantes de PN6 [ɐ̃w̃] [ɐ̃w̃] 53 % [õ] 35,7 % [u] 8,1 % [ũ] 1,4 % Sem produção da terminação verbal = 1,6 % Variantes de PN6 [ɐ̃j̃] [ɐ̃j̃] 41,4 % [ẽ] 41,4 % [ẽj̃] 4,4 % Sem produção da terminação verbal = cerca de 12 % Fig. 18 – Tabela com as variantes flexionais de PN6 atestadas na variedade de Braga – PE (Corpus CPE-Var, utilizado em RODRIGUES, 2003; 2012, 221-222). Atendendo ao conhecimento histórico das mudanças ocorridas no português, a variante em -U (oral ou nasal) da forma padrão PN6 poderá ser considerada “histórica” ou “conservadora”, podendo ser associada às vogais nasais existentes no período arcaico da história do PE (-ã, -õ e -ão) (fig. 19), antes da convergência em ditongo nasal [ɐ̃w̃], que já no séc. XVI integrava a variedade-padrão do PE (português literário e língua culta do centro do país).   Nomes Flexão verbal -ã -áne -ánt -ant Indicativo presente dos verbos dar e estar e futuro de todos os verbos; Indicativo presente dos verbos da 1.ª conjugação, imperfeito, futuro do pretérito e pretérito mais-que-perfeito de todos os verbos e conjuntivo presente dos verbos da 2.ª e 3.ª conjugações. -õ -one - udine -unt -úm -unt Indicativo presente do verbo ser; 1.ª pessoa do singular do indicativo presente do verbo ser; Pretérito perfeito de todos os verbos. -ão -anu - anu   Fig. 19 – Tabela com as vogais nasais do português arcaico (CARDEIRA, 2005, 113). Clarinda de Azevedo Maia, fundamentando-se nas observações de Duarte Nunes de Leão, um gramático do séc. XVI, refere que “a pronúncia -õ era tida pelos gramáticos da época como característica da região interamnense” (MAIA, 1986, 604), o que leva Rosa Mattos e Silva a supor que durante o processo de convergência teriam convivido “como variantes no diassistema do português o ditongo [ɐ̃w̃], proveniente do etimológico [-anu], e do [ɐ̃], do etimológico [-ane] e [-ant]; e o ditongo [õw̃] de [õ], do etimológico [-one] e [-unt]”, com a norma que se estabelece no séc. XVI a selecionar o ditongo [ɐ̃w̃] como forma de prestígio em detrimento do ditongo [õw̃], avaliado negativamente e ainda hoje marcado como “popular, arcaizante e regional” (MATTOS e SILVA, 1995, 76). De salientar ainda o facto de as variantes em -U (vogal nasal [ũ] e vogal oral [u]) atestadas na amostra do Funchal analisada por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (2013) corresponderem à realização de PN6 apenas do pretérito imperfeito do indicativo, o que não está em conformidade com a vogal etimológica -o < -UNT) do pretérito perfeito de todos os verbos (fig. 19). Assim, apesar de poderem ser consideradas variantes não-padrão arcaizantes, as formas em -U da variedade urbana insular contêm traços inovadores. As variantes flexionais de PN6 não-padrão realizadas por uma vogal oral isomórfica de PN3 correspondem a 5,3 % dos dados atestados na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013), ou seja, a 49/914 ocorrências. Neste tipo de variantes, poderá estar em causa apenas a associação ou não do autossegmento flutuante /N/, tal como a representação formulada para o PE-padrão de Maria Helena Mira Mateus e Ernesto d’Andrade. Segundo esta proposta, as variantes sem ditongo podem resultar da propriedade de leveza que caracteriza os ditongos nasais finais não acentuados, de PN6 em formas verbais do PE-padrão. Estes ditongos, mas também aqueles que ocorrem em formas nominais simples (homem) ou com sufixo -agem (paragem, lavagem), são considerados pós-lexicais pelo facto de se encontrarem em palavras marcadas pela ausência de constituinte temático, por oposição aos ditongos nasais lexicais, gerados no léxico e que atraem o acento para o final de sílaba (pão) e admitem, como único segmento em coda, a fricativa /S/ (pães). Nos ditongos pós-lexicais, a semivogal é epentética, atendendo à sua inexistência a nível lexical, e surge após o processo de ditongação, ocupando os dois segmentos uma única posição no núcleo. O autossegmento flutuante /N/ projeta-se sobre o núcleo silábico, nasalizando os dois segmentos em simultâneo. O facto de este autossegmento nasal apenas se projetar no núcleo impede que qualquer segmento em posição de coda possa ser nasalizado (MATEUS e ANDRADE, 2000, 133). Considerando o efeito do contexto fonético à direita, observa-se que o contexto que mais favorece a realização da variante flexional em vogal oral é aquele em que a palavra seguinte se inicia por vogal (fig. 20).   + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # 29/48 oc. 60,4 % 8/48 oc. 16,6 % 8/48 oc. 16,6 % 3/48 oc. 6,25 %   Fig. 20 – Tabela com as variantes PN6 não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e contextos fonéticos à direita da forma verbal (BAZENGA, 2015b). Atendendo a que “o contexto precedendo pausa […] é o que mais favorece a ativação do padrão com ditongo nasal” (MOTA et al., 2012, 171) e que, no âmbito da fonética sintática (sândi externo), podem ocorrer alterações fonéticas, nomeadamente quando a palavra seguinte se inicia por vogal ou consoante nasal, podemos considerar que, do ponto de vista da realização da forma verbal requerida em contexto sintático de concordância verbal em contexto sintático de PN6, apenas 11 das 49 ocorrências com vogal oral final nas formas verbais correspondem à não aplicação da regra de concordância, desprovidas da ambiguidade (oito ocorrências em 49, seguidas de consoante não nasal e três ocorrências seguida de pausa). Esta questão será abordada posteriormente, quando considerada a hipótese de concordância implícita, já referida na análise das variantes em -EM e -U, mas na sua versão mais recente e desenvolvida no artigo de Maria Antónia Mota de 2013. As variantes em vogal oral não-padrão de PN6 (isomórficas de PN3) correspondem maioritariamente a verbos com VT /a/ e /e/, representadas por -A e -E, respetivamente, cuja distribuição pelos paradigmas verbais consta da fig. 21, em contexto de palavra seguinte iniciada por vogal (21 das 29 ocorrências), registando-se ainda um exemplo com o verbo ir (quando vai aqueles pa agarrar o coisa – C1m):   Variante em vogal oral Presente do Indicativo Pretérito Imperfeito do Indicativo Pretérito Imperfeito do Conjuntivo vogal -A 2/21 11/21 - vogal -E 5/21 - 2/21   Fig. 21 – Tabela com a realização de variantes não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e paradigmas verbais (BAZENGA, 2015b). Nestes paradigmas, a distinção entre PN3 e PN6 na morfologia verbal-padrão resulta apenas da ancoragem ou não do autossegmento nasal /N/. Por outro lado, o contexto [+vogal] corresponde, na sua maioria (15 das 21 ocorrências de variantes -A e -E, realizadas foneticamente pelas vogais átonas [-ɐ] e [-ɨ]), às realizações fonéticas [a] e [ɐ]. Este encontro intervocálico na fronteira de palavra (sândi externo) resulta na elisão das finais verbais átonas e na ressilabificação das duas sílabas em contacto, como exemplificado a seguir: 22) a. “as mercearias na altura fechava às onze. (B1m)”; [fɨʃavɐ + aʃ] [fɨʃavaʃ] b. “os outros tinha as costas quentes. (C2m)”; [tiɲɐ + ɐʃ] [tiɲɐʃ] c. “das consequências que daí pode advir. (C2h)”. [podɨ + ɐdvir] [podɐdvir] Observa-se ainda que muitas das ocorrências com vogal oral -E correspondem ao item verbal inacusativo existir. Atendendo unicamente ao contexto de sujeitos pospostos, regista-se um total de 20 ocorrências de existir em 34, ou seja, 58, 8% (11 dados com ditongo-padrão de PN6 e nove dados não-padrão com vogal oral -E), no presente do indicativo (19 dados), registando-se apenas uma ocorrência no imperfeito do indicativo (“voltou a se provar que existia ainda substâncias” – B2h) (BAZENGA, 2015). Para além do verbo existir, observa-se a ocorrência de alguns itens verbais, tais como ter (dois dados) e vir no imperfeito do indicativo, cujos radicais contêm a consoante nasal palatal (-nh-) e que em princípio deveriam induzir a realização do segmento nasal do PN6-padrão, como afirma Jorge Morais Barbosa, a propósito da nasalização de vogais em contacto com consoantes nasais: “il semble que celle-ci [a nasalização] soim de règle lorsque la consonne nasale précède la voyelle, et que par contre dane le type voyelle + consonne la voyelle se maintienne souvent pratiquement orale” [parece que este fenómeno [a nasalização] segue a regra quando a consoante nasal precede a vogal e que, pelo contrário, no tipo vogal +consoante, a vogal mantém-se muitas vezes praticamente oral] (BARBOSA, 1965, 82). Um outro verbo parece ser bastante vulnerável. Trata-se do verbo ser, com seis dados no total, todos seguidos de uma palavra iniciada por consoante não nasal. 23) a. “enquanto elas fosse pequenas. (B1m)”; b. “as brincadeira era poucas. (C1m)”; c. “os professores chamados oficiais que era do_dos públicos. (C3m)”; d. “mas os dias foi [foram] passando. (A1m)”. Para além destes dados, é de registar o dado com o verbo ser, em (23d.), por ser semelhante a um dos tipos referidos (eles vai; eles cantou) por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga, como não sendo observado em variedades do PE, contrariamente ao que ocorre em algumas variedades do PB e em variedades africanas do português. Outros dados no pretérito perfeito do indicativo, sem o ditongo nasal final [ɐ̃w̃] de PN6, também são atestados, mas em contexto de sujeito posposto (“quando vai aqueles pa agarrar o coisa” (C1m); “caiu casas ali” (C1h); “aconteceu situações de tar [estar] em casa” (A1m)) (VIEIRA e BAZENGA, 2013, 23). Atitudes linguísticas de falantes madeirenses face à diversidade sintática da variedade insular do português: o continuum dialetal percetivo No âmbito da realização da dissertação de mestrado de Catarina Andrade, intitulada Crenças, Perceções e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (2014), foi possível proceder à avaliação percetiva de construções sintáticas não-padrão em uso em variedades do português falado na Madeira, por parte de falantes madeirenses. Esta avaliação realizou-se através da aplicação de um questionário a uma amostra de 126 informantes, 18 por cada um dos sete pontos de inquérito na ilha da Madeira (Funchal, Santa Cruz, Machico, Câmara de Lobos, Santana e São Vicente e Calheta). Neste trabalho, a autora propõe um continuum dialetal através do qual apresenta as variantes sintáticas não-padrão alinhadas desde o polo à esquerda, onde se encontram as mais estigmatizadas, até às que gozam de maior prestígio, à direita, a partir de dados percetivos de informantes madeirenses (fig. 23).   Código Variante não-padrão Descrição Q.C.1.A “Comprei na feira.” Ausência de OD Q.C.6.A. “Porque estava chovendo.” Preferência para a forma do verbo estar + gerúndio Q.C.4.B. “Sim, eu sei, eu vi ele ontem.” Realização de OD com o pronome ele Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” Preferência para o ter existencial Q.C.2.A. “Porque só no verão é que vai-se à praia.” Preferência para o uso do clítico se em posição incorreta Q.C.4.C. “Sim, eu sei, eu o vi ontem.” Realização de OD com o clítico o em posição incorreta Q.C.2.B. “Porque só no verão é que a gente vai-se à praia.” Realização da forma a gente com o se impessoal Q.C.3.A. “Não deve-se usar o telemóvel.” Realização do clítico se em posição incorreta Q.C.4.A. “Sim, eu sei, eu vi-lhe ontem.” Realização de OD com o clítico lhe Q.C.1.B. “Comprei-lhe na feira.” Realização de OD com o clítico lhe Fig. 22 – Quadro com as variantes sintáticas não-padrão consideradas para a construção de um continuum percetivo de falantes madeirenses (ANDRADE, 2014). A fig. 22 reúne o conjunto de variantes não-padrão consideradas para análise, cada uma associada a um determinado domínio gramatical do português. A forma de OD nulo parece ser privilegiada pelos madeirenses, especialmente na oralidade. Na sua dissertação, Catarina Andrade verificou, na sua abordagem geral no que se refere ao OD nulo, que, “dos 126 inquiridos, 59 % tem preferência para a omissão de OD e apenas 8 % para a sua realização com o clítico lhe” (ANDRADE, 2014, 151). A fig. 23 contém os resultados da avaliação realizada, com as variantes mais aceites à esquerda e as menos aceites e mais estigmatizadas à direita:   Fig. 23 – Gráfico com o continuum percetivo de variantes sintáticas não-padrão (ANDRADE, 2014).     Em traços gerais, as opções Q.C.1.A. (ausência de realização de OD), com 59 %, Q.C.6.A. (estar + gerúndio), com 58 %, e Q.C.4.B. (pronome ele OD), com 48 %, foram as variantes avaliadas de forma positiva pelos falantes madeirenses, em termos de aceitabilidade. Por seu turno, as opções/variantes Q.C.4.A. (12 %) e Q.C.1.B. (8 %), ambas relacionadas com a realização de OD através do clítico lhe, parecem ser fortemente estigmatizadas pelos inquiridos. Apesar de os falantes madeirenses terem acesso à norma-padrão através da escola, as variedades faladas na Ilha distanciam-se, em vários pontos do sistema linguístico, da variedade normativa, e os madeirenses têm consciência destas diferenças.   Considerações finais Tal como em outras variedades geográficas do português, a variação sintática está presente nas variedades faladas na Madeira, contribuindo para a caracterização sociolinguística e cultural da comunidade insular no seu todo. É notória também a presença de algumas variantes conservadoras, já não atestadas no PE continental, mas presentes também em variedades extraeuropeias do português (brasileira mas também africanas). As variantes inovadoras resultam, em muitos casos, de fenómenos de simplificação de subsistemas de marcação morfológica de categorias verbais e nominais, sendo os falantes menos escolarizados os que mais produzem este tipo de variantes. A presença destas características linguísticas no espaço insular deve-se provavelmente a uma história de contacto linguístico, social e cultural individualizante, quando comparada com outros territórios onde se fala o português. Parece clara também, tal como ocorre no PB, amplamente estudado por linguistas variacionistas, a influência de fatores sociais na variação sintática observada. Deste ponto de vista, as variantes, produzidas por falantes iletrados ou pouco escolarizados, mais velhos e do sexo feminino na comunidade de fala urbana do Funchal, podem ser consideradas como indicadores de localidade e de classe, ou seja, combinam o traço típico de “madeirensidade”, por se tratar de variantes não atestadas em variedades do PE continental até agora estudadas, e de “popularidade”, ou de grupo social, cuja variedade falada é marcada por usos de formas linguísticas não prestigiadas, excluídas da variedade-padrão do PE e objeto de estigma social. Embora as formas não marcadas manifestem uma tendência para sobreviverem à custa das formas marcadas por uma maior saliência percetual, esta tendência pode estar em risco, sob a influência de estereótipos sociais e regionais. Assim, as variantes flexionais não-padrão mais marcadas, de tipo -EM, por exemplo, tendem a ser produtivas, em detrimento de nivelamento linguístico, desejado pela elite madeirense desde o início do séc. XX. Funcionam como “indício” (no sentido que é dado pela semiótica de Peirce) de um sentimento de pertença a um território social. Numa comunidade de fala com as características marcadas pela insularidade, a mudança linguística poderia, assim, ser mais lenta, observando-se uma tendência para preservar as formas fortes e identitárias. A Dialetologia Percetual e os três estudos atitudinais e percetivos sobre a diversidade dialetal do PE (CABELEIRA, 2006, HADDAR, 2008 e FERREIRA, 2009), baseados em amostras com falantes que vivem em regiões de Portugal, fornecem outros argumentos para a individualização dos dialetos insulares, de um modo geral, e dos da Madeira, em particular. Nestes trabalhos, e no que se refere ao atributo “inteligibilidade”, as variedades do português falado nas ilhas portuguesas são avaliadas como menos inteligíveis, quando comparados com outras variedades do PE continental. Para tal contribuem não só alguns traços fonéticos e prosódicos, o léxico, mas também fenómenos morfossintáticos que efetivamente fazem parte da realidade linguística insular. O estudo similar, mas realizado junto de uma amostra de 126 informantes madeirenses, de Aline Bazenga, Catarina Andrade e António Almeida (2014) revela uma tendência para avaliar positivamente, em termos de prestígio, a variedade do português falado na Madeira, imediatamente a seguir à variedade-padrão (de Lisboa). A variedade dos Açores, contrariando a descrição linguística que a considera próxima da madeirense, é avaliada, pelos informantes madeirenses, como a menos compreensível e a mais distante da sua própria maneira de falar. Parece desenhar-se, assim, nos madeirenses uma representação de dupla filiação linguística: portuguesa, em primeiro lugar, seguida da “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010), simbolizada por uma variedade falada distinta, também ela considerada de prestígio, um centro (regional/insular) dentro do centro do todo nacional – Lisboa, a capital –, a variedade de prestígio legitimado. A atitude positiva manifestada pelos madeirenses em relação à sua variedade falada poderia ser entendida a partir do conceito de “prestígio encoberto” (couvert), introduzido por Labov e também desenvolvido por Trudgill (1972), que procura explicar o uso de formas linguísticas não-padrão por parte de alguns grupos de uma comunidade de fala (os homens mais do que as mulheres, em particular). Estes usos constituem um padrão de prestígio implícito dentro da comunidade, com um valor simbólico de solidariedade para o grupo, em contraste com os valores de autoridade (clareza, elegância, pureza, competência) que caracterizam o prestígio legítim     Aline Bazenga Catarina Andrade (atualizado a 03.02.2017)  

Linguística Literatura

gain, louis

O cientista francês Louis Gain participou em várias expedições oceanográficas e foi autor de numerosos estudos. Passou pela Madeira em 1911 e recolheu algumas algas marinhas nas praias e rochas do arquipélago, publicando o estudo “Algues provenant des campagnes de l’Hirondelle II-1911 à 1912”, no Bullet de l’Institut Océanographique (1914). Palavras-chave: ciências; expedições científicas; Madeira.     Louis Gain foi um naturalista francês que participou em várias expedições científicas. Neste âmbito, terá passado pela Madeira em 1911, com alguns companheiros. Nasceu em Mortain (Manche), a 22 de setembro de 1883 e faleceu em Dreux, a 31 de janeiro de 1963. Era filho de Désiré Gain e de Léonie Briard e tinha três irmãos (Alice, Gustave e Luce). Licenciou-se em Ciências, candidatou-se ao doutoramento em Anatomia Comparada do Museu de História Natural de Paris, pertenceu ao regimento de infantaria 101 do Exército e foi vice-diretor do Instituto Nacional de Meteorologia. Participou em diversas expedições científicas, passando pela Antártida, África e Ásia Central. Nos alvores do séc. XX, depois de já terem sido realizadas inúmeras explorações pelo mundo, as atenções dos cientistas centram-se em terras mais distantes e ainda pouco conhecidas. Neste contexto, Louis Gain, naturalista do Museu Nacional de História Natural, fez parte da expedição à Antártida, que durou quase dois anos (1908-1910), a bordo do veleiro Pourquoi Pas?, comandada por Jean-Baptiste Charcot. Na comitiva seguiam outros cientistas, incluindo o meteorologista Jules Rouch, que viria a ser seu cunhado em 1913, ao casar-se com sua irmã Luce. Gain observou a flora e fauna da Antártida, mas também se interessou pelo trabalho de Jules Rouch, anotando no seu diário numerosas observações meteorológicas. Fez ainda registos detalhados da expedição e mais de 2000 fotografias. Parte das imagens que captou, sobretudo de pinguins, foi exposta em 2010, numa mostra intitulada Visions d’Antarctique, les compagnons du Pourquoi Pas?, nos Archives Départementales de Seine-Maritime, na cidade de Rouen. Depois de regressar a França, após a primeira missão, participou noutras expedições naturalistas. De 1911 a 1913, seguiu a bordo do navio Hirondelle II, sob o comando do príncipe Alberto I do Mónaco, tendo passado pelos arquipélagos portugueses da Madeira e dos Açores. De acordo com os autores do Elucidário Madeirense, Gain “colheu algumas algas nas praias e rochas marítimas da Madeira e Deserta Grande, nos dias 11 e 12 de agosto de 1911. […] Também estudou as algas das Selvagens” (SILVA e MENESES, 1984, II, 75). Estas recolhas originam, mais tarde, a publicação do artigo “Algues Provenant des Campagnes de l’Hirondelle II-1911 à 1912”, no Bulletin de l’Institut Océanographique, do Mónaco. Ainda em 1913, com Jean Polignac ao comando de uma campanha que durou cerca de cinco meses, viajou no navio Sylvana e escalou a costa africana, passando pelo Senegal e pela Guiné. No ano seguinte, de abril a julho, realizou uma missão na Ásia Central com seu irmão Gustave. Os irmãos Gain fotografaram os povos dos países visitados, levando um registo de imagens coloridas (que eram raras na época) do seu contacto com outras culturas. No decorrer da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) tornou-se oficial meteorologista, sendo nomeado, em setembro de 1919, chefe do Serviço de Meteorologia da Navegação Aérea; em 1921, tornou-se inspetor-geral do Instituto Nacional de Meteorologia (ONM) e em 1934 vice-diretor daquela instituição, cargo que ocupa até 1940, realizando importantes trabalhos para o desenvolvimento da rede nacional de observação meteorológica. Em 1924 e em 1931, L. Gain embarcou em mais duas expedições de carácter científico, embora nestas vezes seguisse como meteorologista, tendo também participado na preparação do Ano Polar Internacional (1932-1933). Louis Gain aposentou-se oficialmente a 9 de julho de 1939, ainda que, na verdade, tivesse garantido a gestão operacional até 1 de outubro de 1940. Mesmo reformado manteve-se ativo, cooperando na criação do Museu de Arte e História de Dreux e assumindo a presidência dos Amigos do Museu, Biblioteca e Arquivos, de 1960 a 1963. Gain deixou ao Museu um importante legado constituído por álbuns de fotografias e diários, registados durante a sua expedição à Antártida com Jean-Baptiste Charcot. O seu trabalho como cientista foi reconhecido em 1913, ano em que lhe foi atribuído o grau de Chevalier de la Légion d’Honneur (decreto presidencial de 8 de agosto); em 1932, recebeu o grau de Officier de la Légion d'Honnneur (decreto presidencial de 15 de dezembro). Sendo autor de uma vasta bibliografia, publicou diversos estudos, muitos dos quais relacionados com a sua experiência nas expedições científicas, em volume e em periódicos especializados, como a revista La Météorologie e o Bulletin de l'Institut Océanographique, entre outros. Obras de Louis Gain: “Algues Provenant des Campagnes de l’ Hirondelle II-1911 à 1912” (1914).       Sílvia Gomes (atualizado a 01.02.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

cavala

A cavala, Scomber colias (Gmelin, 1789), é um pequeno peixe da família Scombridae, que está representada, na área do arquipélago da Madeira, por 10 espécies, que, para além desta, incluem os atuns (Atum), a cavala da Índia, o serralhão ou serrajão, o chapouto ou judeu, e o gaiado (Gaiado). A cavala possui um corpo fusiforme, uma cabeça cónica, e olho e boca grandes. A primeira barbatana dorsal é curta e alta, bastante separada da segunda, com o início na mesma linha vertical da barbatana pélvica. A segunda barbatana dorsal é quase simétrica com a anal, ambas seguidas de cinco pínulas. A base da barbatana caudal possui duas pequenas quilhas longitudinais. A coloração é esverdeada-azulada na parte dorsal, com manchas escuras de tipo vermiforme. É uma espécie epipelágica e migratória, podendo ocorrer também a meia água até 250-300 m de profundidade. Forma cardumes densos. Pode atingir 50 cm de comprimento, sendo mais comum com 25-30 cm. É carnívora e alimenta-se de pequenos peixes e invertebrados pelágicos. Por sua vez, serve de alimento a peixes maiores (e.g. tunídeos, peixes-agulha e charuteiros) e a aves marinhas (Aves marinhas pelágicas), e.g. as cagarras. Na Madeira, a reprodução ocorre durante o inverno (de janeiro a fim de março). Distribui-se nas regiões tropicais e subtropicais temperadas de ambos os lados do oceano Atlântico, incluindo o golfo do México e o mar Mediterrâneo. A cavala é muito comum, sendo a espécie mais comum da sua família. Na Madeira, é pescada com redes de cerco durante a noite, sendo os peixes atraídos pelo engodo ou isco (mistura de peixes triturados), em simultâneo com a atração luminosa, método que favorece a concentração do cardume para o cerco. Conjuntamente com o chicharro, a sardinha e a boga, constitui aquilo que se designa na Madeira como “ruama”. É um peixe apreciado localmente e costuma ter um valor comercial baixo ou moderado. Esta espécie está sujeita ao tamanho mínimo de desembarque, que é de 20 cm. Entre 2006 e 2016, foram descarregadas 2350 t de cavala, correspondendo a cerca de 4 % do total de pescado descarregado na RAM. Nas águas continentais europeias, a cavala que ocorre mais frequentemente pertence à espécie Scomber scombrus (Linnaeus, 1758), que é apanhada muito raramente nas águas da Madeira.   Manuel José Biscoito Graça Faria (atualizado a 28.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

biologia marinha

Biologia marinha é a parte da biologia que estuda os organismos que vivem nos ecossistemas de água salgada, a relação entre eles e a sua relação com o ambiente. Quase 71 % da Terra está coberta por oceanos. Estes funcionam como reguladores da temperatura no planeta e as suas características e alterações físicas afetam, direta ou indiretamente, as populações (Oceanografia). O fenómeno do El Niño, e.g., que provoca alterações no clima de muitas regiões do mundo, tem origem no oceano Pacífico. Da mesma forma, os níveis das ondas e marés afetam diretamente os contornos dos continentes e as populações costeiras. Além disto, os organismos marinhos são uma importante fonte de alimentação e produtos naturais para o mundo. Por isso, entender a relação e a interdependência entre os organismos marinhos entre si e com o ambiente é muito importante. História da biologia marinha Os primeiros estudos sobre organismos marinhos remontam à Grécia e Roma antigas. Aristóteles, e.g., descreveu cerca de 500 espécies, 1/3 das quais são marinhas, e interessou-se especialmente por entender o funcionamento das brânquias. Plínio, o Velho, um naturalista romano, incluiu diversas espécies de peixes, moluscos e mexilhões na sua História Natural. Foi, porém, nos sécs. XVIII e XIX que o estudo dos organismos marinhos cresceu exponencialmente com os avanços da tecnologia, nomeadamente com a construção de melhores barcos e instrumentos de navegação. A investigação das costas portuguesas foi alvo de numerosos estudos a partir do séc. XIX, sendo tal região nordeste do Atlântico denominada Província Lusitana. Nesta altura, colecionaram-se inúmeros exemplares de organismos marinhos, escreveram-se inventários de espécies e descreveram-se muitas espécies novas para a ciência. Neste período, a maior parte das amostras eram disponibilizadas por pescadores locais ou encontradas nos mercados. Algumas expedições oceanográficas, e.g. as organizadas por D. Carlos I (1863-1908), contribuíram significativamente para o avanço da biologia marinha em Portugal. Foi também o penúltimo rei de Portugal quem concebeu e impulsionou a fundação do Aquário Vasco da Gama, inaugurado em maio de 1898. Em meados do séc. XX, a publicação de Peixes do Portugal e Ilhas Adjacentes em 1956, por R. Albuquerque, foi um marco na biologia marinha em Portugal, constituindo-se na principal referência desta área durante mais de 30 anos. Esta obra incluía uma lista completa da ictiofauna (espécies de peixes) conhecida na época, assim como uma chave para a sua identificação. Durante a segunda metade do séc. XX, um dos grandes impulsionadores da biologia marinha em Portugal foi Luiz Saldanha (1937-1997), professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que publicou inúmeros estudos nesta disciplina, desde invertebrados e algas até à fauna das profundezas oceânicas, e impulsionou a proteção de áreas naturais marinhas. O desenvolvimento e melhoramento das técnicas de mergulho, no princípio do séc. XXI, assim como outros avanços tecnológicos, deram um novo impulso ao conhecimento da ictiofauna e dos habitats marinhos. É possível, e.g., aos cientistas irem até ao chão marinho com submergíveis de águas profundas ou enviarem robots com câmaras para estudarem os habitats mais profundos e os organismos que neles habitam. Zonas ou regiões oceânicas O lugar específico onde os organismos vivem é chamado habitat. Alguns exemplos de habitats marinhos são: costas rochosas, praias de areia, recifes de coral, mar profundo, entre outros. Os habitats e as suas condições dependem muito da zona ou região oceânica onde se encontram. Domínio bentónico: É a área mais próxima do fundo oceânico e pode ser subdividida em várias zonas. A zona litoral é o conjunto de habitats que estão sob a influência das marés, e a parte que fica exposta durante a maré baixa é denominada de zona entremarés. Estes habitats estão sujeitos à força mecânica das ondas, à alternância entre submersão e exposição ao ar, à água salgada (ondas), à água doce (chuvas), e a uma grande variação de temperatura, luz solar, salinidade, etc. Em virtude de tudo isto, os organismos que habitam nestas zonas têm de ter uma grande capacidade de adaptação. As zonas mais profundas do domínio bentónico são similares às zonas do domínio pelágico: a zona batial, situada no declive ou talude continental até aproximadamente aos 4000 m de profundidade; a zona abissal, com profundidades até aos 6000 m; e a zona hadal, que compreende o fundo das fossas oceânicas. Os organismos que habitam no domínio bentónico são denominados de bentos e vivem no substrato, sobre o sedimento ou enterrados nele, fixos ou não. Domínio pelágico: É a zona de mar aberto que começa a seguir à zona litoral e continua até ao alto mar. A sua profundidade vai desde os 10 m até quase aos 6000 m. A camada de água que cobre a plataforma continental é conhecida como província nerítica e é adjacente à zona litoral. A área por cima do oceano mais profundo é denominada de província oceânica. O domínio pelágico pode ser dividido em presença de luz solar em zona eufótica, até aproximadamente aos 200 m de profundidade, e em zona afótica, a parte do oceano que se mantém na escuridão. Este domínio também pode ser dividido segundo as diferentes profundidades: zona epipelágica, até aos 200 m de profundidade; zona mesopelágica, entre os 200 e os 1000 m; zona batipelágica, entre os 1000 e aos 4000 m; zona abisopelágica, dos 4000 aos 6000 m, incluindo as planícies abissais; zona hadopelágica, abaixo dos 6000 m, incluindo as fossas abissais (a fossa mais profunda conhecida é a fossa das Marianas que se encontra no oceano Pacífico e atinge 11.034 m de profundidade). Os organismos que vivem no domínio pelágico são de dois tipos: plâncton, organismos que ficam à deriva dos movimentos da água, e nécton, organismos capazes de nadar. Fig. 1 – Desenho com os diferentes domínios e as zonas oceânicas. Por P. Puppo.     Fatores ambientais Cada um dos habitats marinhos possui um conjunto de características físicas que, juntamente com a capacidade dos organismos para se adaptarem a elas, determina a distribuição de espécies. Cada espécie tem requisitos diferentes para cada um destes fatores e a sua capacidade de adaptação às mudanças pode alterar a sua distribuição ou mesmo levar a que uma espécie não se reproduza ou morra. É este conjunto de fatores, e.g. luz solar, temperatura, salinidade, pressão, nutrientes, que determina a distribuição das espécies. Luz solar: Este é um dos fatores mais importantes nos habitats marinhos. A luz solar penetra até diferentes profundidades, dependendo da qualidade da água. Em zonas onde a água é mais turva, a luz solar pode chegar a um metro de profundidade, enquanto, em zonas onde a água é mais transparente, a luz solar pode chegar aos dois metros de profundidade. A luz solar é essencial para os processos de fotossíntese de muitos organismos, e.g. plantas marinhas, algas e fitoplâncton. Também é necessária para a visão, já que muitos animais dependem deste sentido para caçar, fugir aos predadores ou para comunicar entre si. Os animais das profundezas, onde a luz solar é escassa ou não chega, dependem de outros sentidos, como o cheiro e o gosto, ou desenvolvem formas de produzir luz (bioluminescência). Temperatura: Da mesma forma que a luz solar, a temperatura também varia consoante a profundidade. A maior parte dos animais marinhos são ectotérmicos, ou seja, a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior e, por isso, são mais ativos quando a água fica mais quente. Os mamíferos e aves, por outro lado, são endotérmicos, produzem o seu próprio calor, e possuem uma temperatura interior normalmente maior que a temperatura da água. Os animais endotérmicos precisam de adaptações especiais que lhes permitam isolar a temperatura do seu corpo da temperatura exterior. Salinidade: Salinidade é a concentração de sais orgânicos dissolvidos na água. Os organismos possuem membranas semipermeáveis que deixam passar a água, mas não os sais (osmose) e, por isso, é muito importante conseguirem manter o equilibro dos níveis de água nos seus corpos. Se os organismos deixarem sair água a mais, podem-se desidratar ou mesmo morrer. Pressão: A pressão do mar mede-se em atmosferas (atm), sendo 1 atm equivalente a 101.325 Pa (pascais, a medida padrão de pressão). A pressão que a atmosfera exerce sobre o nível do mar é de 1 atm e vai aumentando consoante a profundidade, à razão de 1 atm por cada 10 metros de profundidade. Assim, e.g., a uma profundidade de 4000 m, a pressão é de 400 atm. Com esta diferença em pressão, os animais que normalmente habitam na superfície do mar não conseguem sobreviver às profundezas oceânicas. Organismos como as baleias, que conseguem nadar tanto na superfície do mar como nas profundezas, possuem adaptações especiais que lhes permitem tolerar estas diferenças em pressão. Nutrientes: Os organismos também precisam de uma série de compostos orgânicos e inorgânicos para crescerem e se reproduzirem. O cálcio, que é abundante no mar, é necessário para que organismos como os crustáceos, caracóis, ostras, corais, etc., se possam desenvolver. Da mesma maneira, compostos como o nitrogénio e o fósforo são essenciais para os organismos que produzem fotossíntese, e.g. o fitoplâncton, as algas e as plantas marinhas. O oxigénio, por seu turno, é indispensável a muitos organismos, como as plantas, os animais e muitos micróbios. O excesso de nutrientes, por outro lado, também pode levar a problemas sérios, como a sobrepopulação de fitoplâncton, conhecida vulgarmente como explosão de algas – que, ao morrerem, se decompõem, consumindo todo o oxigénio e matando outros organismos. Normalmente, as zonas de águas rasas e as zonas intermareais apresentam uma maior variação em luz solar, temperatura, salinidade e nutrientes, e os organismos que nelas habitam necessitam de se adaptar a estas variações. Pelo contrário, as zonas de águas mais profundas apresentam níveis de temperatura, sal, pressão e nutrientes mais constantes, pelo que os organismos destas áreas são muito mais intolerantes a alterações abruptas nestes fatores. Ecossistemas e cadeias alimentares A interação entre as comunidades de organismos e o efeito que o meio (os fatores ambientais) tem sobre elas é designada por ecossistema. Uma das principais interações entre as comunidades bióticas é a cadeia alimentar, em que umas comunidades se alimentam de outras e, por isso, dependem delas para sobreviver. Estas cadeias alimentares são um ciclo que começa com os produtores, organismos capazes de produzir o seu próprio alimento e que servem de alimento a outros organismos, os consumidores, e que acaba com os decompositores, organismos que transformam cadáveres e excrementos em nutrientes, que podem ser reutilizados pelos produtores. Frequentemente, os consumidores alimentam-se de diferentes organismos, o que torna estas interações muito mais complexas. Produtores: Os produtores são organismos autótrofos, ou seja, são capazes de produzir o seu próprio alimento. A maior parte dos produtores faz isto através de um processo conhecido como fotossíntese, em que os organismos usam luz solar, dióxido de carbono e água para produzir glucose, libertando oxigénio. Consumidores: Os consumidores são todos os organismos incapazes de produzir o seu próprio alimento e que, por isso, se alimentam de outros organismos. Os consumidores podem ser herbívoros, que se alimentam dos produtores; carnívoros, que se alimentam de outros consumidores; ou omnívoros, que se alimentam tanto de produtores como de outros consumidores. Decompositores: São organismos que se alimentam de cadáveres ou de qualquer outro resto orgânico, transformando-os em compostos ou moléculas mais simples, que podem ser reaproveitadas pelos produtores. Microrganismos marinhos Os microrganismos são os organismos mais abundantes no oceano e, embora não sejam visíveis a olho nu, cumprem funções importantíssimas nos ecossistemas marinhos: são a base das cadeias alimentares, decompõem organismos mortos e reciclam nutrientes. Existem vários tipos de microrganismos marinhos: vírus, bactérias, fungos, diatomáceas, etc. Os mais significativos são mencionados com mais detalhe a seguir. Vírus marinhos: Os vírus não são considerados organismos, mas parasitas, já que só se podem reproduzir usando uma célula hóspede. Fora de um hóspede, os vírus são inertes e são chamados vírions. Uma vez dentro de uma célula, podem-se reproduzir rapidamente, produzindo milhares de novos vírus. As células infetadas morrem e, por isso, os vírus podem reduzir significativamente populações de bactérias e outros microrganismos, libertando nutrientes no mar. Bactérias marinhas: As bactérias são organismos unicelulares procariontes (que carecem de membrana no núcleo e organelos). As cianobactérias, também conhecidas como algas azuis ou algas verde-azuladas, são organismos capazes de produzir o seu próprio alimento através da fotossíntese. Grandes quantidades de cianobactérias podem formar tapetes que dão uma cor característica à água, e.g. o caso do mar Vermelho. As bactérias incapazes de produzir o seu próprio alimento alimentam-se de outros organismos e decompõem matéria orgânica, libertando compostos inorgânicos no mar. Algumas bactérias associam-se a outros organismos (simbiose), tal como acontece com alguns peixes dos abismos oceânicos que produzem luz (bioluminescência) por meio de uma simbiose com bactérias produtoras de luz. Arqueias: Estes organismos são procariontes e muito parecidos com as bactérias, mas as suas membranas celulares são muito resistentes e, por isso, conseguem habitar áreas extremas com temperaturas muito baixas ou muito elevadas (acima dos 100 ºC) ou com uma alta concentração de sais, alta pressão, ambientes muito ácidos, etc. Algumas arqueias não precisam de oxigénio para viver e libertam metano. Fungos marinhos: Os fungos são organismos eucariotas (as suas células têm um núcleo delimitado por uma membrana e por organelos) cuja membrana celular é composta de quitina, o mesmo composto que se encontra nas carapaças de animais como os crustáceos. Os fungos são organismos que precisam de oxigénio para viver e são incapazes de produzir o seu próprio alimento. Não são muito abundantes no mar e, de facto, menos de 1 % dos fungos são marinhos. Liquens: Estes organismos são uma simbiose entre um fungo e uma bactéria, o que lhes permite viver em zonas inóspitas para outros organismos como, e.g., zonas intermareais altas. Diatomáceas: As diatomáceas pertencem ao grupo das Straminopiles, um grupo variado de algas que inclui as algas castanhas. As diatomáceas são organismos protistas (grupo de organismos eucariotas), unicelulares e fotossintéticos caracterizados por possuir a membrana exterior à maneira de carapaça (conhecida por frústula), rica em dióxido de silício. Como a sílica é indissolúvel, quando estes organismos morrem, as suas frústulas depositam-se no fundo marinho, formando sedimentos de sílica que podem ser depois colhidos e usados como filtros ou abrasivos para usos comerciais. São um grupo numeroso de organismos, estimando-se que existem mais de 100.000 espécies de diatomáceas, e são o principal componente do fitoplâncton. Cocolitóforos: Parecidos com as diatomáceas, estes microrganismos fotossintéticos possuem, em vez de uma carapaça de sílica, escamas de carbonato de cálcio (conhecidas como cocólitos). Após a morte do organismo, estes cocólitos formam importantes depósitos de cálcio no chão marinho. Na Madeira, Kaufmann registou, em 2004, cerca de 37 espécies de cocolitóforos. Dinoflagelados: São organismos protistas, unicelulares cobertos por placas de celulose. Muitas espécies são autótrofas, outras são heterótrofas (alimentam-se de outros organismos), algumas são parasitas e outras vivem em simbiose com outros organismos. Algumas espécies produzem luz (são bioluminescentes) e outras produzem toxinas que podem matar outros animais. Estas toxinas podem-se acumular em alguns organismos (e.g. peixes) que se alimentam de dinoflagelados, e também afetar a saúde dos seres humanos. Em todos os verões, desde 2007, se têm registado casos, na Madeira e nas Selvagens, de pessoas intoxicadas por dinoflagelados. Um outro fenómeno originado por estes organismos são as marés vermelhas, uma concentração de dinoflagelados que aparece quando as condições são favoráveis e estes organismos se reproduzem rapidamente. As espécies autótrofas de dinoflagelados são o segundo componente mais importante do fitoplâncton, após as diatomáceas. Fig. 2 – Desenhos de dois microrganismos marinhos: cocolitóforo (esquerda) e dinoflagelado (direita). Por P. Puppo.   Protozoários ameboides: São organismos protistas e heterótrofos que se alimentam de bactérias e outros microrganismos. Possuem extensões no citoplasma, denominadas de pseudópodos, que usam para locomoção ou para apanhar presas. Pertencem a dois grupos: os foraminíferos, que possuem uma concha calcária, que, muitas vezes, é responsável pela tonalidade cor-de-rosa da areia em algumas praias, e os radiolários, que possuem uma cápsula porosa que deixa passar os pseudópodos e formam uma carapaça interna de sílica. Após a morte destes organismos, as conchas e carapaças formam depósitos importantes no fundo marinho. Fitoplâncton: é o conjunto de microrganismos marinhos capazes de realizar fotossíntese, e.g. as cianobactérias, diatomáceas, cocolitóforos, algumas espécies de dinoflagelados e algumas espécies de algas castanhas. Pertencem ao grupo dos produtores e são os principais responsáveis pela transformação de dióxido de carbono (CO2) em oxigénio, não só nos oceanos, mas também na atmosfera. Um estudo realizado em 2015 por Kaufmann, no oceano Atlântico ao redor da Madeira, concluiu que o fitoplâncton é composto de mais de 470 espécies, das quais 55 % são diatomáceas e 33 % são dinoflagelados.   Algas e plantas marinhas Embora os principais produtores marinhos sejam os microrganismos conhecidos como fitoplâncton, as algas e plantas marinhas também estão incluídas no grupo dos produtores. Na sua maioria, estes organismos não flutuam com as correntes marinhas, mas estão fixos no substrato. A exceção a esta regra é um grupo de algas castanhas conhecidas como sargaço, que formam tapetes flutuantes no oceano. Além da sua função como produtores, as algas e plantas marinhas proporcionam habitats para outros organismos e, por outro lado, as raízes das plantas são importantes para fixar o substrato marinho. Algas marinhas: Existem três grupos de algas: as verdes, as vermelhas e as castanhas. As algas verdes e as algas vermelhas são parecidas com as plantas, enquanto as algas castanhas estão mais relacionadas com as diatomáceas. O seu nome deriva dos diferentes pigmentos que cada um destes grupos de algas possui. Estes pigmentos ajudam estes organismos a absorver diferentes comprimentos de onda da luz e, assim, a adaptar-se às diferentes zonas do oceano. Também protegem as algas em caso de excesso de exposição à luz solar. As algas verdes, e.g., absorvem ondas de luz vermelha e, por isso, estas algas encontram-se mais perto da superfície. As algas vermelhas, por seu lado, absorvem ondas de luz azul (que penetram mais no oceano) e, por isso, encontram-se a maiores profundidades, enquanto as algas castanhas se distribuem tipicamente por profundidades intermédias. A temperatura também afeta a distribuição e abundância das algas, sendo que estes organismos são geralmente mais abundantes perto dos trópicos. As algas não têm folhas, caules, nem raízes como as plantas. O seu corpo é denominado talo, a parte plana é a lâmina, o estipe é a parte parecida com o caule das plantas, mas sem tecidos vasculares, e a zona parecida com uma raiz, que fixa o organismo ao substrato, chama-se rizoide. Algumas algas formam vesículas cheias de ar nas lâminas que ajudam os organismos a flutuar e, assim, a ficar mais perto da superfície e a captar mais luz solar. Muitas espécies de algas são exploradas pelo homem para consumo direto, e outras são usadas como fonte de alguns compostos usados na indústria farmacêutica e alimentícia, e.g. substitutos da gelatina (ágar) para produzir cápsulas, supositórios, anticoagulantes, cremes, geleias, etc. Plantas marinhas: As plantas que vivem em águas salgadas são plantas com flores que se adaptaram a estes ecossistemas. Diferentemente das algas, as plantas marinhas possuem folhas, caules e raízes pelas quais absorvem nutrientes do substrato. Vivem em zonas de pouca profundidade, formando prados marinhos, oferecem refúgio a muitos animais bentónicos e servem de alimento a algumas espécies de peixe-papagaio, ouriço-do-mar e tartarugas marinhas. Estas plantas, conhecidas também como ervas marinhas, fixam o sedimento marinho com as suas raízes, diminuindo a turbidez da água, e diminuem a velocidade da água com as suas folhas. A lista mais recente de algas e plantas marinhas do arquipélago da Madeira, publicada em 2001 por Neto e colaboradores, inclui uma espécie de planta marinha e 359 espécies de algas marinhas, das quais 231 são algas vermelhas, 64 são algas verdes e 64 são algas castanhas.   Fig. 3 – Desenho das partes de uma alga castanha. Por P. Puppo.      Invertebrados marinhos Os invertebrados são aqueles animais que carecem de coluna vertebral, ao contrário dos vertebrados (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos), que possuem esta estrutura. Os invertebrados são muito mais numerosos que os vertebrados e, entre os invertebrados marinhos, encontram-se as esponjas, cnidários, ctenóforos, vermes marinhos, moluscos, crustáceos, etc. Esponjas: As esponjas são os animais mais simples, pois não têm tecidos, órgãos ou sistema nervoso. O seu corpo apresenta uma forma de tubo, um dos seus extremos é fechado, por estar preso ao substrato, e o outro extremo, denominado ósculo, por onde sai a água, é aberto. O interior do corpo é chamado espongiocele. Alimentam-se de pequenas partículas (bactérias, plâncton, detritos) que apanham, filtrando a água que entra por vários pequenos orifícios – os óstios – no corpo. As esponjas são um componente importante de águas pouco profundas e ajudam na reciclagem de cálcio no oceano. Até 2012, foram registadas por Xavier e Van Soest 95 espécies de esponjas de águas rasas na região oceânica em redor das ilhas Canárias e da Madeira. Cnidários: Os cnidários são animais cujo corpo está organizado em redor de um único buraco (ou boca) rodeado de tentáculos urticantes que injetam uma toxina. A toxina de algumas espécies pode ser mortal, embora alguns animais, e.g. o peixe-palhaço, lhe sejam imunes. Os cnidários apresentam duas formas de vida, pólipo ou medusa, e estão subdivididos em quatro classes principais. Os Hydrozoa apresentam duas fases no seu ciclo de vida (pólipo ou medusa) e incluem as hidras e a caravela-portuguesa ou garrafa azul. Os Scyphozoa são sobretudo medusas, mexem-se, mas são incapazes de ir contra a corrente e são as comummente chamadas medusas, águas-vivas ou alforrecas. Os Cubozoa são medusas em forma de cubo, também conhecidas como cubozoários, e são predadores ativos que matam a sua presa, injetando-a com toxinas; alimentam-se sobretudo de peixe. Os Anthozoa são pólipos, vivem fixos no substrato marinho e incluem as anémonas, que apanham as suas presas com os seus tentáculos, e os corais, que segregam um esqueleto externo de cálcio e formam colónias de inumeráveis indivíduos (recifes). Os cnidários alimentam-se por filtração (Hydrozoa e corais) ou apanhando pequenos peixes e invertebrados com os seus tentáculos (Scyphozoa, Cubozoa e anémonas). A comida é digerida no interior oco dos organismos, na cavidade central ou gastrovascular, e os restos são expulsos para o exterior pelo único buraco que estes organismos possuem. Muitos cnidários também servem de alimento a outros animais, e.g. tartarugas marinhas e várias espécies de peixe, que comem medusas, e uma espécie de estrela-do-mar, que come corais. Os recifes de corais são as colónias de organismos maiores do mundo e são importantes em muitos aspetos: constituem o habitat de muitos outros seres vivos, servem de substrato para várias espécies do domínio bentónico e atenuam o impacto das ondas marinhas. Os cnidários são muito abundantes na Madeira e no Porto Santo; e.g., só para os Hydrozoa, Wirtz registou em 2007 a ocorrência de 53 espécies. Ctenóforos: conhecidos vulgarmente como carambolas-do-mar ou águas-vivas-de-pentes, estes organismos caracterizam-se pela presença de filas de cílios (à maneira de pentes), que utilizam para nadar, e por produzirem luz (são bioluminescentes). São parecidos com as medusas, mas normalmente não têm tentáculos ao redor da boca; poucas espécies possuem só dois tentáculos, que não produzem toxinas e que usam para apanharem as suas presas. Os ctenóforos são predadores e alimentam-se principalmente de plâncton, embora algumas espécies comam medusas. Vermes marinhos: Os vermes marinhos são muito numerosos e estão subdivididos em muitos grupos. Só alguns serão mencionados seguidamente com mais pormenor. Os platelmintos são vermes-planos, têm olhos rudimentares, que lhes permitem distinguir as diferentes intensidades de luz, têm um só buraco por onde entra o alimento e saem os resíduos, e são carnívoros, alimentando-se de pequenos invertebrados. Algumas espécies destes vermes-planos, os turbelários, medem entre alguns milímetros e 50 cm e vivem livremente no domínio bentónico; outras espécies são parasitas de outros animais e, em alguns casos, como as ténias das baleias, podem medir até 30 m de comprimento. Os nemátodos são vermes redondos cujo corpo é cilíndrico e alongado e possui uma boca e um ânus. Os seus hábitos alimentares são muito variados, desde varredores, parasitas e predadores, consumindo, alguns, bactérias e algas. Estes vermes são muito abundantes e, embora normalmente sejam pequenos (menos de 5 cm), algumas espécies podem atingir mais de um metro de comprimento. Os anelídeos são vermes segmentados cujo corpo é composto de muitos segmentos iguais entre si, o que lhes permite uma maior mobilidade. Os anelídeos marinhos mais comuns pertencem ao grupo dos poliquetas, que têm o corpo coberto de cerdas e são de vida livre (pelágicos) ou sedentários. Os vermes marinhos cumprem muitas funções importantes nos ecossistemas. As espécies que vivem enterradas no substrato ajudam na reciclagem de nutrientes, pois, ao cavar no sedimento, trazem à superfície nutrientes que podem ser reaproveitados por outros organismos. Outras espécies alimentam-se de pequenos organismos ou detritos ou servem de comida para animais maiores. Briozoários: Também conhecidos como animais-musgo, pertencem ao grupo dos lofoforados, já que possuem um círculo de tentáculos ciliados ao redor da boca. O seu aparelho digestivo tem a forma de um U, sendo que o ânus está muito próximo da boca. Os briozoários são animais que vivem formando colónias sésseis e se alimentam por filtração. Moluscos: É um grupo de organismos muito variado que inclui animais como lulas, polvos, mexilhões, etc. O seu corpo é mole e é composto de uma cabeça, onde estão os órgãos sensoriais, um pé, usado para a locomoção, e um manto, que protege a maior parte do corpo e que muitas vezes segrega uma concha. Os moluscos apresentam um sistema digestivo completo (boca-ânus) e, com exceção dos bivalves, possuem uma estrutura conhecida como rádula, um tecido que contém dentes usados para raspar, rasgar ou cortar os alimentos. Os moluscos são uma importante fonte de alimento para animais e seres humanos e constituem uma importante fonte de cálcio para algumas aves marinhas. Os moluscos estão subdivididos em várias classes, algumas delas extintas (só se conhecem por fósseis). As espécies marinhas encontram-se, sobretudo, em quatro classes: Polyplacophora (cerca de 1200 espécies), Gastropoda (40.000-50.000 espécies), Bivalvia (cerca de 800 espécies), e Cephalopoda (cerca de 790 espécies). Os Polyplacophora são organismos exclusivamente marinhos que habitam sobretudo na zona entremarés, o seu corpo é plano, estando coberto por oito placas calcárias, e alimentam-se de algas e plantas que raspam do substrato com a rádula. Os quítons pertencem a este grupo. Os gastrópodes mexem-se deslizando pelo substrato com o pé musculado; a maioria das espécies possui uma concha, enroscada (caracóis) ou mais ou menos lisa (lapas), e outras espécies, como os nudibrânquios, carecem de concha. A sua alimentação é igualmente variada: algumas espécies são herbívoras e alimentam-se de algas ou plantas marinhas, outras são carnívoras e comem cnidários, equinodermos e bivalves, e outras espécies alimentam-se por filtração. Os bivalves são moluscos que têm o corpo protegido por uma concha carbonatada dividida em duas valvas que se abrem e fecham pela contração de um músculo. Não têm cabeça, nem rádula, usam o pé para se enterrarem no substrato e para se movimentarem, e alimentam-se por filtração. Os cefalópodes são moluscos carnívoros; caracterizam-se por ter o pé modificado à maneira de cabeça e por uma boca rodeada de tentáculos que usam para capturar presas, defender-se de predadores e mover-se. Os cefalópodes são um grupo numeroso e variado que inclui: os nautilus, que têm concha e de 60 a 90 tentáculos; os chocos e lulas, que têm uma pequena concha interna e 10 tentáculos (tendo 2 mais compridos que os outros), e os polvos, que carecem de concha e têm 8 tentáculos. Os chocos, lulas e polvos têm o sistema nervoso mais complexo de todos os invertebrados, possuem olhos bem desenvolvidos, libertam uma nuvem de tinta para distrair os predadores, e conseguem mudar de cor e textura. O grupo dos moluscos é muito abundante na Madeira, sendo que, em 2009, Segers e colaboradores registaram a ocorrência de cerca de 850 espécies destes organismos no arquipélago da Madeira. Artrópodes: Os artrópodes são um grupo muito numeroso de invertebrados que inclui os insetos e constituem cerca de 75 % de todas as espécies de animais. Caracterizam-se por um exosqueleto feito de quitina, corpo segmentado e apêndices articulados especializados para a locomoção, alimentação ou perceção sensorial. Os artrópodes marinhos pertencem sobretudo a dois grupos, os Chelicerata (grupo onde também estão incluídos as aranhas, ácaros e escorpiões) e os Crustacea ou crustáceos. Os Chelicerata carecem de mandíbulas e, por isso, digerem a comida antes de a ingerirem; o representante aquático deste grupo é o límulo ou caranguejo-ferradura-do-atlântico, que vive em zonas de águas rasas e se alimenta de pequenos invertebrados e algas. Os crustáceos possuem mandíbulas, que usam para esmagar e mastigar os alimentos, duas antenas e, dependendo da espécie, patas modificadas para caminhar e para nadar, ou apresentam pinças para caçar ou para defender-se. Os crustáceos são muito numerosos, cerca de 50.000 espécies, e incluem as lagostas, caranguejos e camarões, que possuem duas pinças e quatro pares de patas, sendo, na sua maioria, predadores (embora alguns sejam varredores ou filtradores), e também percebes e cracas, os únicos crustáceos sésseis, além de outros organismos como os krill, anfípodes e copépodes, que são importantes componentes do zooplâncton. Na Madeira, Wirtz e colaboradores registaram, em 2006, a ocorrência de 27 espécies de percebes, e Araújo e Wirtz, em 2015, registaram cerca de 215 espécies de lagostas, caranguejos e camarões. Equinodermes: São um grupo de organismos marinhos e bentónicos, particularmente abundantes no oceano profundo, mas também se encontram em águas rasas. Possuem um esqueleto interno (endoesqueleto) formado por placas calcárias e um grande poder regenerativo, podendo originar um novo organismo a partir de uma parte do corpo. Este grupo inclui: as estrelas-do-mar, cujo corpo é constituído por um disco central e cinco braços; os ofiúros ou estrelas-serpente, semelhantes às estrelas-do-mar, nos quais o disco central inclui todos os órgãos vitais e os braços são finos e compridos; os ouriços-do-mar e bolachas-da-praia, organismos redondos com espinhos; os pepinos-do-mar, que têm um corpo alongado; e os lírios-do-mar ou crinóides, que se fixam ao substrato e estendem os braços para se alimentarem. Os equinodermes são importantes herbívoros ou predadores e servem de alimento a uma variedade de espécies, e.g. moluscos, caranguejos, peixes, lontras marinhas e até seres humanos. Estes organismos são muito diversos na Madeira, sendo que De Jesus e Abreu registaram, em 1998, 52 espécies de equinodermes na Madeira, das quais 27 são espécies de percebes (segundo o estudo de Wirtz e colaboradores publicado em 2006) e 6 são ouriços-do-mar (segundo o estudo de Alves e colaboradores feito em 2001). Destas espécies, vale a pena mencionar Diadema antillarum, uma espécie dominante de ouriço-do-mar que se alimenta das extensas zonas de algas. Tunicados: Estes organismos são os mais parecidos com os vertebrados; estão incluídos no grupo dos cordados, mas, em vez de uma coluna vertebral, apresentam uma notocorda (corda dorsal) que surge só no seu desenvolvimento embrionário. Os adultos carecem desta estrutura. Os tunicados são organismos marinhos que se alimentam por filtração: algumas espécies são sésseis e outras vivem livremente no mar aberto; enquanto algumas são solitárias, outras formam colónias. Peixes marinhos Os peixes pertencem ao grupo dos animais vertebrados, pois possuem uma série de ossos ou cartilagens que dão suporte à medula espinal e proporcionam um lugar de fixação para os músculos do corpo. Os peixes marinhos são os animais vertebrados mais abundantes nos oceanos, distribuindo-se desde as zonas costeiras até ao mar aberto e desde zonas pouco profundas até zonas abissais. Muitas espécies de peixes têm adaptações para eliminar o excesso de sal dos seus corpos. Os tubarões, e.g., têm glândulas de sal localizadas no reto, enquanto outras espécies de peixes ósseos segregam o sal através de células especializadas nas brânquias. Os peixes estão subdivididos em três grandes grupos: os peixes sem mandíbulas (cerca de 80 espécies), que incluem as lampreias e as mixinas; os peixes cartilaginosos (cerca de 1000 espécies), que incluem os tubarões e as raias; e os peixes ósseos (cerca de 25.000 espécies), que incluem todos os peixes com esqueleto ósseo, e.g. as sardinhas, o bacalhau, o atum, etc. Peixes sem mandíbulas: Os animais neste grupo não têm mandíbulas, pares de barbatanas ou escamas, e os seus esqueletos são compostos só de cartilagem. As mixinas ou enguias-de-muco são animais parecidos com as lampreias, mas têm dois pares de tentáculos na boca que usam na alimentação, vivem no substrato a profundidades inferiores a 600 m, alimentando-se de pequenos invertebrados ou animais mortos, e produzem grandes quantidades de muco para afastar os predadores. As lampreias vivem tanto em água doce como em água salgada, têm uma boca à maneira de ventosa circular, com a qual raspam ou sugam o seu alimento, sendo muitas espécies consumidas pelo homem como alimento. Peixes cartilaginosos: Estes peixes têm mandíbula, barbatanas e o seu esqueleto é composto de cartilagem e coberto com sais de cálcio. A este grupo pertencem os tubarões, animais carnívoros que se alimentam de uma variedade de presas, desde os leões-marinhos ao fitoplâncton. As raias também pertencem a este grupo e caracterizam-se pelos seus corpos achatados, fendas branquiais localizadas por baixo do corpo, e um estilo de vida bentónico, alimentando-se de pequenos invertebrados, e.g. moluscos e crustáceos, ou de plâncton. As quimeras também são peixes cartilaginosos que, na sua maioria, habitam nas profundezas e se alimentam de peixes, crustáceos e moluscos. Os peixes cartilaginosos têm várias estratégias reprodutivas: algumas espécies são ovíparas (os embriões desenvolvem-se dentro de um ovo, fora do corpo da mãe), outras são vivíparas (o embrião desenvolve-se dentro do útero materno alimentado por uma placenta), e outras são ovovivíparas (o embrião desenvolve-se dentro de um ovo, alimentando-se das substâncias nutritivas do mesmo, mas o ovo fica dentro do corpo da mãe, proporcionando-lhe proteção). Peixes ósseos: São o grupo mais numeroso de peixes e caracterizam-se por ter esqueleto ósseo, escamas ósseas e uma bexiga-natatória, que ajuda o animal a manter uma certa profundidade. A forma do corpo varia muito consoante o estilo de vida das espécies; a forma típica é a fusiforme, que os ajuda a nadar, mas há espécies que têm um corpo globoso (e.g. o peixe-balão), ou achatado (e.g. o linguado), ou alongado (e.g. a enguia), ou com a cauda enroscada (e.g. o cavalo-marinho). O estilo de vida destes peixes também é muito variado: pelágicos (mar aberto), e.g. as sardinhas, atuns, etc.; mesopelágicos, que percorrem grandes distâncias verticais no oceano, porque vivem nas profundezas durante o dia e sobem à superfície à noite para se alimentarem; bentónicos, que vivem mais perto do substrato, enterrados nele, e.g. o linguado, ou escondidos entre as rochas, e.g. as enguias; batipelágicos e abissais, que vivem na zona batial ou abissal (de grandes profundidades). A sua alimentação também é muito variada: muitos são carnívoros e alimentam-se de pequenos invertebrados, muitos outros são herbívoros e comem plantas e algas, e outros, ainda, são filtradores e alimentam-se sobretudo de plâncton. A maior parte dos peixes ósseos é ovípara. Na Madeira, estima-se que existam cerca de 550 espécies de peixes. Entre estas, 226 são espécies costeiras e 133 são de peixes associados a recifes. Não há espécies de peixes marinhos endémicos só à Madeira (ou seja, que só ocorram no oceano ao redor da Ilha), mas há 11 espécies endémicas pertencentes aos arquipélagos da Madeira, dos Açores e das Canárias, uma espécie, Mauligobius maderensis, endémica à Madeira e às ilhas Canárias, e outra, Paraconger macrops, endémica aos Açores e à Madeira. As espécies que ocorrem na Ilha são muito variadas: raias, enguias, peixes-agulha, peixes-trombetas, cavalos-marinhos, arenques, barracudas, garoupas, sargos, peixes-papagaios, atuns, peixes-escorpião, linguados, peixes-balão, etc. Ocasionalmente, são avistadas na Madeira espécies do mar aberto, e.g. a caravela-portuguesa (Cnidário, Hydrozoa), e várias espécies de tubarões: tubarão caneja, tubarão branco, tubarão azul, tubarão martelo, tubarão baleia, entre outros. Os peixes oceânicos que ocorrem na Madeira são uma mistura de espécies similares às que ocorrem na região mediterrâneo-atlântica (espécies de águas temperadas) e de espécies tropicais que atingem o limite norte da sua distribuição nesta área, e.g.: Aluterus scriptus, Canthidermis sufflamen, Caranx crysos, Gnatholepis thompsoni, Heteroconger longissimus, entre outras. Alguns autores sugerem que há um aumento no número de espécies tropicais no mar da Madeira, presumivelmente devido ao aumento da temperatura da água ocasionado pelo aquecimento global (ver, e.g., o artigo publicado por Wirtz e colaboradores em 2008). Répteis marinhos Os répteis são um grupo de animais adaptados à vida terrestre, embora algumas espécies também habitem ecossistemas aquáticos. São animais de sangue frio, ou ectotérmicos, já que a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior; por isso, a maior parte destes organismos vive em zonas temperadas e quentes. Estes animais têm o corpo coberto de escamas, alimentam-se de diversos organismos, têm muito poucos predadores, e reproduzem-se colocando ovos amnióticos, onde o embrião está rodeado por uma série de membranas, tendo o ovo uma casca dura. Os répteis marinhos bebem água salgada e eliminam o excesso de sal através de umas glândulas especializadas localizadas na cabeça. Estes animais vão sempre a terra para depositar os seus ovos. As espécies de répteis adaptadas à vida marinha são poucas. A iguana-marinha é a única espécie de lagarto que vive em águas salgadas e só ocorre nas ilhas Galápagos; tem a glândula de sal no nariz. Existem cerca de 50 espécies de serpentes marinhas e todas ocorrem nos oceanos Pacífico e Índico. Só existem três espécies de crocodilos adaptadas à vida em águas salgadas: o crocodilo-marinho distribuído pela Ásia (Crocodylus porosus), o crocodilo americano (C. acutus), e o crocodilo do Nilo (C. niloticus). Estes crocodilos têm as glândulas de sal na língua. Das tartarugas, só sete são marinhas e têm uma ampla distribuição por águas tropicais e subtropicais, mas só uma espécie, a tartaruga-de-couro, consegue tolerar águas mais frias, tendo sido avistada em zonas como o Canadá e Alasca. Estas tartarugas são carnívoras, com exceção da tartaruga-verde, que é herbívora; têm as glândulas de sal localizadas por cima dos olhos. Seis das sete espécies de tartarugas marinhas estão em perigo de extinção devido ao impacto humano: o desenvolvimento do turismo nas praias afasta as tartarugas que vão até à areia depositar os seus ovos; muitas tartarugas ficam presas nas redes de pesca ou em lixo; outras comem sacos de plástico que encontram no mar, confundindo-os com medusas, e muitas espécies são também caçadas pelo seu couro. Os únicos répteis marinhos que ocorrem na Madeira são cinco espécies de tartarugas: a tartaruga-boba (Caretta caretta), que é a mais comum, a tartaruga-verde (Chelonia midas), a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), a tartaruga-de-Kemp (Lepidochelys kempii), e a tartaruga-de-escama (Eretmochelys imbricata). Aves marinhas As aves são animais endotérmicos ou de sangue quente, já que conseguem manter a sua temperatura corporal constante, apesar da temperatura exterior, devido à sua elevada taxa metabólica. Por isso, conseguem habitar zonas muito mais frias, como o Ártico e o Antártico. Além disto, os seus corpos estão cobertos de penas, o que lhes dá um maior isolamento. As aves também põem ovos amnióticos como os répteis e têm glândulas de sal sobre os olhos que as ajudam a libertar o excesso de sal através do nariz. Das quase 8000 espécies de aves que existem, cerca de 250 estão adaptadas a ambientes marinhos; estas aves alimentam-se no oceano, mas retornam a terra, onde se reproduzem e formam colónias de ninhos que as protegem de predadores. Aves costeiras: Estas aves não são propriamente aves marinhas, no sentido em que não nadam muito e não têm as patas palmadas (especiais para nadar); têm patas compridas e um bico longo e fino e alimentam-se sobretudo na zona entremarés. A este grupo pertencem espécies como as garças, ostraceiros, etc., e estão incluídas em várias famílias da ordem Ciconiiformes. Gaivotas, gaivinas e afins: Este grupo de aves é muito diverso e inclui espécies como a gaivota, gaivina, torda-comum, papagaio-do-mar, etc. Estas espécies estão incluídas em várias famílias da ordem Charadriiformes. Estas aves têm patas palmadas e glândulas de óleo para impermeabilizar as suas penas. Vivem perto do mar, formam grandes colónias na terra e têm distribuição a nível mundial. Pelicanos e afins: Este grupo inclui espécies como o pelicano, alcatraz, fragata, etc. São aves aquáticas que, na sua maioria, têm um saco extensível pendurado na sua mandíbula inferior e alimentam-se mergulhando na água e capturando peixes, cefalópodes e crustáceos. Estas espécies pertencem à ordem Pelecaniformes. Aves pelágicas: A este grupo pertencem espécies como as cagarras, albatrozes, petréis, e outras, todas incluídas na ordem Procellariiformes. Estas aves têm as narinas em forma de tubo e vivem em mar aberto, podendo passar vários meses no oceano. Alimentam-se de peixes e cefalópodes e, como as outras aves marinhas, nidificam em terra formando grandes colónias. Pinguins: São o grupo de aves mais bem adaptado à vida marinha: não voam, as suas asas estão modificadas à maneira de barbatanas para nadar e possuem uma camada de gordura por baixo da pele para isolar o corpo do frio exterior. Todas as espécies de pinguins, com exceção de uma (o pinguim-das-galápagos), vivem em zonas frias no hemisfério sul e alimentam-se de peixes, lulas e krill. Os pinguins pertencem à ordem Sphenisciformes. Na Madeira, os diferentes habitats e ilhas que compõem o arquipélago constituem importantes zonas de nidificação para numerosas aves marinhas. Os penhascos, assim como a ocorrência de pequenas ilhas e ilhotas como as Desertas, os ilhotes de Porto Santo e as ilhas Selvagens, são especialmente importantes para a reprodução de numerosas espécies, e.g. a freira-do-bugio, ave endémica da Macaronésia (Madeira, Selvagens, Canárias, Açores, Cabo Verde), que se reproduz em Bugio, uma das ilhas das Desertas. A própria ilha da Madeira, pela sua localização no meio do oceano, constitui um sítio ideal para a nidificação de muitas aves pelágicas, e.g. a freira-da-madeira, ave endémica desta Ilha. Outras aves pelágicas (ordem Procellariiformes) que ocorrem nestas ilhas são: alma-negra, roque-de-castro e pintainho, que nidificam nas Selvagens e Desertas; a cagarra, que nidifica na Madeira, Selvagens e Desertas; e o calcamar, que nidifica nas Selvagens. Outras aves marinhas, da ordem Charadriiformes (gaivotas e afins), que ocorrem nas ilhas são: gaivota-de-patas-amarelas, borrelho-de-coleira-interrompida, garajau-rosado e garajau-comum. Mamíferos marinhos Os mamíferos são animais endotérmicos, capazes de manter a sua temperatura corporal, e dão à luz crias que são alimentadas com leite materno produzido em glândulas mamárias. Os mamíferos marinhos vivem a maior parte da sua vida na água e, por isso, possuem adaptações especiais, como barbatanas; têm uma camada de pelos ou uma camada grossa de gordura por baixo da pele que os ajuda a isolá-los das temperaturas exteriores e, por isso, podem viver em águas geladas como a dos polos. Os mamíferos marinhos estão agrupados em seis grupos pertencentes a três ordens: Carnivora (lontras, ursos polares, focas), Sirenia (peixe-boi), e Cetacea (baleia, golfinho, etc.). Lontra-marinha: Estes animais têm uma camada grossa de pelagem que os protege do frio, as patas traseiras têm os dedos unidos à maneira de barbatanas e alimentam-se de ouriços-do-mar, crustáceos, moluscos e peixes que apanham no fundo do mar e, depois, levam até à superfície para comer, enquanto flutuam sobre as suas costas. As lontras-marinhas estão distribuídas pelo Norte do oceano Pacífico. Ursos polares: Os ursos polares habitam na região ártica, onde são os maiores predadores, alimentando-se sobretudo de focas. Estão em perigo de extinção, porque são caçados pelo homem e porque o seu habitat (o gelo do Ártico) está a diminuir drasticamente em virtude do aquecimento global. Estes animais têm uma camada de gordura debaixo da pele e uma pelagem densa que prende o ar, mantendo o corpo quente, mesmo quando o animal está dentro de água. Pinípedes: Os pinípedes são um conjunto de três famílias de mamíferos marinhos: Otariidae, que inclui lobos-marinhos e leões-marinhos; Phocidae, onde estão as focas e os elefantes-marinhos; e Odobenidae, que inclui as morsas. Estes animais passam a maior parte do tempo na água; só vão a terra (ou gelo) para se reproduzirem, dar à luz e amamentar as crias. Possuem uma grossa camada de gordura debaixo da pele e pelo que os ajuda a isolar o frio exterior, e têm patas modificadas em forma de aletas; alimentam-se de peixes e invertebrados, sendo que só o leopardo-marinho se alimenta de outras focas, pinguins e aves marinhas. Sirenia: Os sirénios são animais estritamente herbívoros que passam a totalidade da sua vida na água. Não têm pelo, apresentam só duas patas (à frente), à maneira de aletas, e uma cauda achatada que usam como remo. Existem duas famílias na ordem Sirenia: Dugongidae, que inclui os dugongos, animais estritamente marinhos distribuídos pelo oceano Índico, e os Trichechidae, a família dos peixe-bois, animais que habitam zonas de água salgada ou água doce no Oeste de África e no centro e Sul da América. Cetáceos: De forma semelhante aos sirénios, os cetáceos não têm pelo, têm uma camada grossa de gordura debaixo da pele para isolamento, só possuem duas patas (embora os embriões destes animais apresentem as quatro patas, perdendo depois as patas traseiras) e têm a narina (espiráculo) na parte superior da cabeça. Os cetáceos estão divididos em dois grandes grupos: as baleias sem dentes ou baleias com barbas (subordem Mysticeti) têm, em vez de dentes, cerdas feitas de queratina com as quais filtram a água para se alimentarem de plâncton e pequenos invertebrados, e.g. krill. Este grupo inclui os maiores mamíferos que existem na Terra, como a baleia-azul (até 27 m de comprimento), a baleia-comum (25 m) e a baleia-franca (20 m). As baleias com dentes (subordem Odontoceti) incluem animais como os cachalotes, as orcas, os golfinhos e os narvais. À exceção do cachalote (20 m), as espécies deste grupo são muito mais pequenas que as baleias sem dentes e alimentam-se de peixe, lulas e outros cefalópodes, sendo que as orcas também consomem focas, tartarugas e tubarões. No oceano em redor da Madeira, foram registadas 19 espécies de mamíferos marinhos: uma espécie de foca e 18 espécies de cetáceos. A foca-monge-do-mediterrâneo é a única espécie de foca que se encontra no arquipélago, tendo uma população residente nas ilhas Desertas, embora alguns indivíduos sejam avistados na Madeira. As espécies de grandes baleias (baleias com barbas), e.g. a baleia comum, passam nesta região durante as grandes migrações que realizam anualmente. Espécies de baleias com dentes, e.g. cachalote ou golfinhos, usam o oceano da Madeira para se alimentarem, para se reproduzirem ou como área de residência. Algumas das espécies de baleias com dentes (subordem Odontoceti) frequentemente avistadas na Madeira são: o cachalote, a baleia-piloto-tropical, o roaz e o golfinho-comum. Fig. 4 – Fotografia de golfinhos na Madeira. Por P. Puppo.   Os habitats marinhos da Madeira e os organismos que neles habitam A Madeira é uma ilha de origem vulcânica; este tipo de ilhas aparece primeiro debaixo da superfície do mar como um monte que se forma no fundo marinho e depois cresce por atividade vulcânica até emergir (topografia marinha). Assim, quando uma ilha emerge (é visível por cima do nível do mar), está vazia e é colonizada por elementos da flora e fauna de regiões circundantes. No caso dos organismos marinhos da Madeira, estes têm diferentes origens e, na sua maioria, provêm da região atlântico-mediterrânica. Várias espécies do Atlântico colonizaram a Madeira e também o Mediterrâneo, daí que estas regiões tenham organismos semelhantes. Espécies do Norte do Atlântico e espécies provenientes de outras ilhas do Nordeste do Atlântico também colonizaram a Ilha. Afinidades das espécies marinhas da Madeira com outras de regiões mais longínquas também têm sido observadas, e.g. espécies provenientes de regiões tropicais e subtropicais do Atlântico, que atingiram o limite norte da sua distribuição na Madeira, juntamente com espécies do Norte de África, como Marrocos, encontrando-se também, na Madeira, espécies cosmopolitas, que habitam a maioria das regiões marítimas da Terra. A diversidade de espécies marinhas na Madeira também depende das diferentes zonas ou regiões oceânicas, como se verá em seguida. Domínio bentónico: O mar à volta da Madeira é geralmente frio devido às correntes que vêm do Nordeste, atingindo 22 ºC durante o verão. É frio demais para a construção de recifes de corais e, por isso, os corais que existem na Madeira vivem isoladamente (não formam recifes). A diversidade de peixes é grande, cerca de 550 espécies são conhecidas na Madeira, coincidindo a maior parte com as da zona do Mediterrâneo. Algumas espécies são de origem tropical e atingem na Madeira o limite norte da sua distribuição, como, e.g., o peixe-globo Diodon hystrix ou o peixe-trombeta Aulostomus strigosus. Algumas espécies de peixes, e.g. os sargos, são muito comuns nas costas da Madeira, nadando no substrato rochoso e alimentando-se das algas que crescem nele. Zona costeira: Na Madeira, a costa é caracterizada por penhascos abruptos. Estes penhascos, sobretudo os do lado Norte da Ilha, servem de habitat a muitas espécies de aves marinhas que nidificam nestas zonas. Por outro lado, as extensões de areia das outras ilhas, que compõem os arquipélagos da Madeira e Selvagens, também servem como lugares de nidificação para espécies de aves importantes, e.g. o calcamar, que ocorre no ilhéu de Fora e Selvagem Grande, ou o borrelho-de-coleira-interrompida, em Porto Santo. Nas Desertas, a foca-monge-do-mediterrâneo Monachus monachus, a única espécie de foca que vive em águas temperadas, tem nestas ilhas um importante refúgio, já que a espécie se encontra em perigo de extinção. Poças de maré: Estas poças formam-se quando uma depressão na rocha fica inundada com água do mar, durante a maré-baixa. Na Madeira, estas poças de maré constituem o habitat de uma série de espécies de invertebrados: e.g. o camarão Palaemon elegans, os caranguejos Percnon gibbesi e Eriphia verrucosa, estrelas-do-mar, ouriços-do-mar, anémonas, caracóis marinhos, como Monodonta edulis, espécie endémica da Macaronésia, entre outros. Entre as algas comuns nestas zonas, encontramos algas castanhas como Padina pavonica, uma alga em forma de funil, ou espécies do género Cystoseira, algas com lâminas ramificadas que criam uma aparência frondosa. Algumas destas poças de maré podem ser observadas em Porto Moniz e em Seixal. Zona entremarés: A zona entremarés é a zona que fica coberta de água quando a maré é mais alta e que fica a descoberto quando a maré é mais baixa. É uma zona onde a exposição ao ar, à humidade, à luz solar, à temperatura, à salinidade, etc. muda constantemente. Na Madeira, esta zona é frequentemente habitada por algas vermelhas dos géneros Lithophyllum e Corallina. Nesta zona, também são comuns as lapas, moluscos que permanecem fixos no substrato durante o dia e saem à noite para comer as algas que raspam com a sua rádula, sobretudo as espécies do género Patella, e.g. P. candei, que é endémica da Macaronésia. As lapas são muito apreciadas na gastronomia local. Outros organismos abundantes desta zona são os percebes ou cracas, caranguejos, caracóis marinhos (e.g. as litorinas Tectarius striatus (=Littorina striata), espécie endémica da Macaronésia), a barata-do-mar, a Ligia oceanica (espécie de crustáceo da ordem Isopoda), entre outros. Muitas espécies de aves também se encontram nestas zonas, e.g.: a rola-do-mar, a gaivota-de-patas-amarelas, o garajau, o guincho-comum, maçaricos, borrelhos, entre muitas outras. Domínio pelágico: O facto de a Madeira estar tão longe da costa continental faz com que o alto mar seja o sítio ideal para que muitas espécies se alimentem e reproduzam, e.g. cachalotes, golfinhos e também muitas aves pelágicas. Outras espécies, que também se encontram algumas vezes no alto mar da Madeira, são o tubarão branco e muitas outras espécies de tubarões e baleias, e.g. a baleia azul, etc. Uma espécie muito conhecida e apreciada na culinária madeirense é o peixe-espada-preto, Aphanopus carbo, espécie de peixe batipelágica, comum nas profundezas oceânicas, que habita a profundidades entre os 200 e os 1600 m. Conservação das espécies marinhas da Madeira A conservação na Madeira foi sempre levada a sério. Nenhuma árvore, e.g., na Madeira pode ser cortada sem autorização desde 1515. A 10 de novembro de 1982 foi fundado o Parque Natural da Madeira (PNM), pelo dec. regional n.º 14/82/M. O PNM abrange cerca de 67 % da superfície da ilha da Madeira e está subdividido em zonas com diferentes estatutos de proteção. Algumas destas zonas, onde estão protegidas espécies marinhas de interesse, encontram-se descritas em baixo. Reserva da Ponta de São Lourenço: A ponta de São Lourenço é uma pequena península de 9 km de comprimento e 2 km de largura, localizada a leste da ilha da Madeira, e tem um clima muito diferente do resto da Ilha, sendo muito mais seca. Esta região não só tem uma série de espécies de plantas e animais terrestres endémicas, como também é o local de nidificação de muitas espécies importantes de aves pelágicas, e.g. a alma-negra (Bulweria bulwerii), a cagarra (Calonectris borealis), o garajau-comum (Sterna hirundo), ou o roque-de-castro Hydrobates castro. Num dos ilhéus adjacentes a esta região, o ilhéu do Desembarcadouro, encontra-se o local de nidificação de uma das maiores colónias da gaivota-de-patas-amarelas (Larus cachinnans atlantis), espécie endémica da Macaronésia. Na ponta de São Lourenço, também se podem observar cachalotes, golfinhos, focas-monge-do-mediterrâneo e tartarugas marinhas. A ponta de São Lourenço pertence ao PNM desde que este foi criado e, a partir de 2001, esta península, juntamente com o mar adjacente até à batimétrica de 50 m, foram incluídos na Rede Natura 2000 da União Europeia como Zona Especial de Conservação. Os ilhéus do Desembarcadouro e do Farol são Áreas de Proteção Total, sendo que quaisquer atividades humanas, fora da investigação científica, assim como ações de conservação e de educação ambiental, estão proibidas. A península da ponta de São Lourenço é Área de Proteção Parcial, onde qualquer atividade humana deve ser primeiro autorizada, e as zonas de praias e miradouros são Áreas de Proteção Complementar, em que as atividades humanas são permitidas sempre que não ponham em risco o equilíbrio ambiental. A região da ponta de São Lourenço, juntamente com os ilhéus adjacentes, está classificada como Important Bird Area (IBA) pela Birdlife International, em virtude de ser o local de nidificação de várias espécies de aves pelágicas protegidas. Reserva Natural Parcial do Garajau: Esta reserva foi estabelecida em 1986 e compreende uma área aproximada de 3,76 km2, contando com uma extensão de 6 km ao largo da costa sul da Madeira entre a ponta do Lazareto e a ponta da Oliveira, e chegando até os 50 m de profundidade. Esta área é caracterizada pelas suas águas transparentes e a sua rica biodiversidade. Nesta Reserva, está proibida a pesca e recoleção de organismos vivos, assim como chegar à costa num barco a motor; o mergulho é permitido, mas é necessária uma autorização do PNM. Algumas das espécies mais frequentes da zona entremarés da Reserva são: litorinas, líquens, cracas, lapas, caranguejos, algas, esponjas, anémonas, estrelas-do-mar, etc. Nos bentos, o ouriço-de-espinhos-longos, Diadema antillarum, é bastante frequente. No domínio pelágico, ocorrem numerosas espécies de peixes: a garoupa ou mero Epinephelus marginatus, que chega a medir 150 cm, a raia ou manta-diabo Mobula mobular, moreias como Muraena helena, e enguias como Heteroconger longissimus, e outras espécies de peixes, e.g. o sargo, a salema, o bodião, o boga, a dobrada, a tainha, o peixe-verde, a castanheta, etc. Também é possível observar nesta reserva tartarugas-marinhas, golfinhos e focas-monge-do-mediterrâneo. O Miradouro do Pináculo, na parte elevada da reserva, também está incluído na Rede Natura 2000, pois é importante para aves como a cagarra e o garajau. Fig. 5 – Fotografia da ponta de São Lourenço. Por P. Puppo.     Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio: Esta Reserva foi criada em 1997 e estende-se desde a ponta de São Jorge até à ponta de Clérigo, no Norte da Madeira, no concelho de Santana, contando com uma área aproximada de 1700 ha e incluindo a linha batimétrica dos 100 m, o ilhéu da Rocha das Vinhas ou ilhéu de São Jorge, e o ilhéu da Viúva ou ilhéu da Rocha do Navio. Esta Reserva também faz parte da Rede Natura 2000, sobretudo porque constitui uma representação da flora típica do litoral madeirense. Esta Reserva também é um local importante de nidificação para algumas espécies de aves marinhas, e.g. a cagarra, a alma-negra, o garajau-comum, o roque-de-castro e a gaivota-de-patas-amarelas. A diversidade da ictiofauna (peixes) também é considerável, contando, e.g., com espécies como o mero, sargo, peixe-cão, bodião, badejo, peixe-verde, a castanheta, a moreia, entre outros. Nesta Reserva, também se encontram lapas, caramujos, golfinhos, tartarugas-marinhas e focas-monge-do-mediterrâneo. São permitidos, além do mais, o mergulho amador e a pesca, mas não o uso de redes ou de barcos motorizados. Rede de Áreas Marinhas protegidas do Porto Santo: Esta Rede foi criada em 2008 e inclui a ilha de Porto Santo e os seis ilhéus circundantes: ilhéu das Cenouras; ilhéu de Baixo ou da Cal; ilhéu de Cima, dos Dragoeiros ou do Farol; ilhéu de Fora ou Rocha do Nordeste; ilhéu da Fonte da Areia; e o mar circundante aos ilhéus de Cal e de Cima, incluindo a zona onde o barco O Madeirense se afundou, até à linha batimétrica dos 50 m. Os ilhéus estão também incluídos na Rede Natura 2000 e três deles (ilhéu de Cal, de Cima e de Ferro) têm sido designados como IBA, por serem locais de nidificação de aves importantes, e.g. a cagarra, o pintainho, o roque-de-castro e a alma-negra, e outras espécies como a gaivota-de-patas-amarelas e o garajau. O Porto Santo e os ilhéus também são importantes pela quantidade de fósseis que se encontram neles. Os ilhéus de Fora, de Ferro, das Cenouras e da Fonte da Areia são considerados Áreas de Proteção Total, enquanto os ilhéus de Baixo e de Cima, assim como a parte marinha da Rede, são considerados Áreas de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Desertas: As ilhas Desertas estão localizadas a cerca de 20 km da ponta de São Lourenço e têm um clima muito semelhante ao da região da Madeira. Estas ilhas estão desabitadas, possuindo uma estação de vigilância localizada na Deserta Grande, onde vivem guardas do Corpo de Vigilantes da Natureza. As Desertas estão protegidas por lei, desde 1990, como Área de Proteção Especial, sobretudo para proteger a colónia de foca-monge-do-mediterrâneo que nelas se encontra. Em 1992, foram reconhecidas pelo Conselho de Europa como Reserva Biogenética e, em 1995, como Reserva Natural. Estas ilhas integram a Rede Natura 2000 como Zona de Proteção Especial e Zona Especial de Conservação, e também são consideradas como uma IBA. Esta Reserva tem uma área total de cerca de 82,5 km2 e é formada por: Deserta Grande, Bugio, ilhéu Chão, e os ilhéus adjacentes, incluindo o mar até à linha batimétrica dos 100 m. As Desertas são importantes, porque são um dos últimos refúgios no Atlântico, juntamente com a Mauritânia, da foca-monge-do-mediterrâneo. Estas ilhas também são relevantes por serem locais de nidificação de espécies importantes de aves, e.g. a freira-do-bugio, que só nidifica em Bugio, a alma-negra, que forma na Deserta Grande a maior colónia do Atlântico, a gaivota-de-patas-amarelas, que nidifica em Chão, e outras espécies, e.g. a cagarra e o roque-de-castro. Nas Desertas, também se encontram inúmeras espécies de peixes, e.g. tainha, boga, castanhetas, sargo, bodião, garoupa, peixe-cão, cavaco, peixe-verde, e várias espécies de tartarugas-marinhas e cetáceos. As ilhas e os ilhéus, juntamente com o mar adjacente a elas até aos 100 m de profundidade, estão classificados como Áreas de Proteção Total. A zona marinha circundante é considerada como Área de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Selvagens: As ilhas Selvagens são um conjunto de ilhas inabitadas, sobretudo pela carência de água doce, e, embora estejam localizadas a cerca de 250 km da Madeira, pertencem politicamente a esta região autónoma. As Selvagens são formadas por: Selvagem Grande, Selvagem Pequena, ilhéu de Fora, e outros ilhéus adjacentes. A Reserva inclui estas ilhas e ilhéus e todo o mar circundante até uma profundidade de 200 m, tendo uma área total de cerca de 94,5 km2. Estas ilhas estão legalmente protegidas desde 1971, ano em que foram compradas pelo Governo português a um particular, constituindo-se na primeira reserva de Portugal. Esta zona foi protegida, sobretudo, pela diminuição na população de cagarras, após terem sido durante anos exploradas pela sua penugem e a sua carne ter sido salgada e vendida como petisco nos mercados madeirenses. Esta Reserva começou a ter uma vigilância permanente desde 1976 e, a partir de 1991, passou a ser da responsabilidade do PNM. Em 1992, recebeu o Diploma do Conselho Europeu para Áreas Protegidas e, em 2001, integrou a Rede Natura 2000 como Zona Especial de Conservação e Zona de Proteção Especial, sendo também considerada uma IBA. Esta Reserva foi criada, sobretudo, para a proteção das aves marinhas que nidificam nestas ilhas: a cagarra, que tem a população mais densa do mundo nesta área, o calcamar, a ave mais abundante nas ilhas, o pintainho, o roque-de-crasto e a alma-negra. No total, estima-se que, nas Selvagens, haja perto de 39.000 pares reprodutores de aves marinhas, o que, no seu conjunto, é um número superior ao que ocorre na Madeira, Porto Santo e Desertas em conjunto (dados publicados por Peter Sziemer em 2010). O mar adjacente às Selvagens é de águas transparentes e possui uma variada biodiversidade: gastrópodes como os caramujos, lapas, cracas e litorinas são abundantes nas zonas rochosas, assim como as esponjas, anémonas, ouriços-de-espinhos-compridos e estrelas-do-mar. A ictiofauna é também muito variada: sargo, tainha, castanheta, boga, bodião, garoupa, peixe-verde, peixe-cão, tartarugas-marinhas, e espécies de cetáceos, entre outras, podem ser observados nestas águas. Toda a Reserva é Área de Proteção Total, sendo as visitas permitidas, com prévia autorização do PNM.   Pamela Puppo (atualizado a 24.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

aquário municipal do funchal

  O Aquário Municipal do Funchal encontra-se localizado no rés do chão do Palácio de São Pedro, uma das mais significativas obras da arquitetura civil portuguesa, de meados do séc. XVIII, mandado construir pela família Carvalhal e adquirido pela Câmara Municipal do Funchal a 19 de setembro de 1929, quando se deu início às obras de reformulação do Palácio com o propósito de aí se instalar um museu. Inicialmente designado Museu Regional da Madeira, este foi oficialmente inaugurado a 5 de outubro de 1933, e mais tarde deu origem ao Museu de História Natural do Funchal. A primeira vez que se falou na criação de um aquário público no arquipélago da Madeira foi em 1937, através de uma deliberação do município do Funchal, ficando esta sem efeito até 1951. Foi devido em grande parte a Charles L. Rolland, industrial norte-americano de bordados na Madeira e grande admirador da fauna ictiológica da ilha, que em 1951 a sua construção teve lugar. Este filantropo ofereceu à Câmara Municipal do Funchal 30.000 escudos (cerca de 150€) e o material necessário para que as obras tivessem o seu início. Sob a orientação, técnica e científica, de Günther Maul, conservador do Museu, inaugurou-se a primeira fase do Aquário, em dezembro de 1953, com três grandes tanques, sendo parte do material necessário para a construção do Aquário obtida graças à generosidade de vários entusiastas, de entre os quais se destacou o importador E. Brendle. Na segunda fase, concluída em 1957, o Aquário passou a ter 15 tanques de exposição de diversos tamanhos, nos quais passaram a estar representados alguns dos mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira, tais como meros, moreias, sargos, castanhetas, cabozes, caranguejos, lagostas, camarões, polvos, búzios, estrelas, ouriços do mar, etc. A captura de organismos para serem colocados nos tanques de exposição deveu-se à generosidade e dedicação de um grupo de pescadores amadores, Américo Durão, A. Correia da Silva, David Teixeira e João de Freitas, entre outros. A renovação regular dos exemplares vivos em exposição nos tanques é assegurada essencialmente através de dois métodos de captura, dependendo do tipo de organismo: alguns invertebrados marinhos são colhidos, à mão, nas poças de maré (zona do intertidal) ou no subtidal, através de mergulho com escafandro autónomo ou de mergulho em apneia; quanto à maioria das espécies piscícolas, bem como de outros invertebrados, a captura é feita recorrendo a diferentes tipos de artes de pesca, sendo muitas vezes necessária a utilização de uma embarcação para o lançamento e a recolha dos respetivos aparelhos de pesca. Durante muitos anos o Aquário dispôs de uma pequena embarcação de apoio, a Ianthina, para a captura de espécimes; através desta eram utilizados essencialmente dois métodos tradicionais de pesca: pesca à linha e covos. Posteriormente, deixou de ser utilizada qualquer embarcação de apoio, o que condicionou muito não só a própria renovação dos exemplares do Aquário, como a diversidade de espécies. O sistema de circulação de água do mar existente funciona em circuito fechado, tendo um volume total de cerca de 200.000 l, que estão distribuídos pelos tanques de reserva (cerca de 150.000 l) e pelos tanques de exibição (cerca de 50.000 l). A qualidade da água do mar é mantida não só através de sistemas de filtração de natureza biológica e mecânica, como também de um sistema de arejamento, pelo qual é introduzido ar em cada um dos tanques de exposição. A água do circuito é renovada uma vez por ano, sendo colhida diretamente no mar e transportada em autotanque para o Aquário. Toda a iluminação nos tanques é de natureza artificial; são utilizadas as lâmpadas mais adequadas para que as cores dos organismos expostos se aproximem o mais possível das que podem ser observadas quando estes se encontram no seu meio natural. A alimentação dos organismos é baseada essencialmente em cavalas, chicharros e espada preto, adquirido na praça e administrado três vezes por semana. Aquando da existência da embarcação Ianthina, para além das espécies anteriormente referidas, era adicionado à dieta dos espécimes do Aquário um crustáceo, conhecido vulgarmente como camarão comestível (Plesionika narval), que era capturado através da utilização de covos apropriados, sendo depois armazenado em arcas congeladoras e administrado de acordo com as necessidades e as características alimentares das espécies existentes. A manutenção diária do Aquário Municipal do Funchal é realizada por uma equipa técnica constituída por três funcionários com formação adequada às exigências de uma estrutura desta natureza: um técnico superior (biólogo) e dois assistentes técnicos. O Aquário Municipal do Funchal é uma das principais atrações da visita ao Museu de História Natural do Funchal, recebendo em média cerca de 11.000 visitantes por ano, 3500 dos quais são alunos provenientes dos vários níveis de escolaridade do ensino básico e secundário da Região Autónoma da Madeira.   Ricardo Araújo (atualizado a  23.01.2017)

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