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blanc, tibério augusto

Tibério Augusto Blanc nasceu em Santarém, cerca de 1810, entrando para o Real Colégio Militar em 1822, onde teve o número 34 e já se não encontra registado com os últimos apelidos. Terminado o curso, ingressou como cadete, a 9 de setembro de 1828, na Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho, onde “foi o primeiro em todos os exames” (SANTOS, 1991). Seria depois promovido a 2.º tenente, a 24 de julho de 1833, e a 1.º tenente, a 5 de setembro de 1837, sendo colocado nesse mês na ilha da Madeira. Fixou residência no Funchal na rua de Santa Maria, onde veio a conhecer a futura esposa, Marta Carolina de Abreu Rego, da família dos capitães de Ponta Delgada, com quem se casou a 16 de fevereiro de 1838. Passou depois a residir na antiga rua das Portas Novas, atual rua do Carmo, e, depois, junto à ponte do Ribeiro Seco, quando foi colocado à frente daquelas obras. Tibério Augusto Blanc parece ter ido para a Madeira a pedido do administrador-geral António Gambôa e Liz (1778-1870) e, provavelmente, por indicação do futuro barão de Lordelo, que fora nomeado para o Funchal em 1835, embora só se tenha aqui apresentado em setembro de 1838. Tibério Blanc casar-se-ia no Funchal em fevereiro de 1838 e, em abril do ano seguinte, nascer-lhe-ia uma filha, da qual em agosto foram padrinhos de batismo os barões de Lordelo, José da Fonseca e Gouveia, administrador-geral do Funchal, e Maria Leopoldina, sua esposa, demonstrando as boas relações que mantinha com as mais altas autoridades do distrito. Tibério Blanc terá ido para a Madeira trabalhar na canalização das ribeiras do Funchal, monumental obra que fora iniciada pelo brigadeiro Oudinot em 1804, após a aluvião do ano anterior. Integrou assim a comissão nomeada para superintender na inspeção e direção dos trabalhos de limpeza das ribeiras da cidade em 1839 e, no mesmo ano, ainda foi encarregado do conserto da igreja de São Lourenço da Camacha. Em 1840 seria encarregado de verificar o estado da igreja matriz de Machico e orçamentar os reparos necessários, assim como igualmente o estado das muralhas da ribeira daquela vila, indicando os melhoramentos urgentes de que necessitava, “visto recear-se qualquer desastre” (ABM, Governo Civil, liv. 132, fls. 104 e 131v.), o que viria a acontecer dois anos depois, com uma nova e destrutiva aluvião. Nesse ano de 1840 ainda veio a ser encarregado de vistoriar se os cemitérios de Machico, Água de Pena, Santo António da Serra e Caniçal estavam de acordo com as determinações dos decretos de 21 de setembro e de 8 de outubro de 1835, vindo, no final desse ano de 1840, a vistoriar também um terreno em Machico, no sentido de avaliar se tinha condições para servir de cemitério àquela vila, embora a sua autorização para ser destacado para o serviço do Governo Civil só tivesse vindo no ano seguinte. Em 1841, o tenente Tibério Blanc procedeu à medição das águas da levada do Furado e orçamentou os reparos de que a mesma necessitava, vindo a ser o trabalho das levadas um dos aspetos mais relevantes da sua atividade na Madeira. No final do ano de 1842, face à importante aluvião, era chamado à Comissão Central de Auxílio, encarregada de avaliar os trabalhos a ser feitos. Nas reuniões e na presença do então administrador-geral, o Dr. Domingos Olavo Correia de Azevedo (1799-1855), estavam presentes os engenheiros militares da ilha: o então novo diretor das obras públicas, Manuel José Júlio Guerra (1801-1869), e os engenheiros Tibério Augusto Blanc, António Pedro de Azevedo (1812-1889), recentemente regressado à Madeira, e o velho e experiente Vicente de Paula Teixeira (c. 1790-c. 1850), como representante das obras camarárias do Funchal. A aluvião ocorrera a 24 de outubro de 1842, tendo sido despachado para o Funchal, a 26 de novembro, o então major Manuel José Júlio Guerra, experiente militar liberal, com larga folha de serviço nos Açores, no Porto, no Algarve e em Setúbal, mas, em princípio, sem as capacidades científicas dos outros dois engenheiros na altura também presentes na ilha. A sua colocação à frente das obras públicas não deve ter agradado a Tibério Blanc que, até certo ponto, se apaga nos anos seguintes, assim como a António Pedro de Azevedo, que pouco tempo depois volta para o continente, embora regressasse, também em pouco tempo, à Madeira. Entre as mais importantes obras públicas da Madeira dos meados do séc. XIX encontram-se a ponte do Ribeiro Seco, a Estrada Monumental para Câmara de Lobos e as várias pontes para tal construídas, assim como a levada do Rabaçal. Este conjunto de obras teve a direção do Eng. Tibério Augusto Blanc e, dados os interesses políticos e económicos que envolveu, foi objeto de ampla discussão nos periódicos da época. Não lograram assim estes trabalhos, durante a sua execução, face aos sucessivos encargos que todos tiveram e que quase duplicaram os orçamentos iniciais, a larga aceitação que viriam a conhecer após a sua conclusão. Em fins de 1846, já o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) iniciara as consultas sobre o modo de levar a efeito a obra da ponte projetada pelo seu antecessor Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1847), mas só em 1848 se pôde dar começo aos trabalhos, depois de o conselheiro ter obtido a promessa de donativos que chegassem para satisfazer a quarta parte das despesas em que haviam sido orçados os trabalhos. A arrematação das obras da ponte teve lugar no dia 27 de fevereiro de 1848, e, no dia 6 de março seguinte, começaram os trabalhos, tendo pouco antes o governador aberto uma subscrição para os gastos da ponte. Em junho desse ano, José Silvestre Ribeiro partiria de licença para o continente, não deixando de, antes de partir, louvar Tibério Blanc pelos trabalhos já desenvolvidos na ponte e no traçado da futura Estrada Monumental. As obras da ponte do Ribeiro Seco foram arrematadas pela quantia de quase 6 contos de réis, sendo arrematantes o mestre-de-obras José Pereira e seus sócios António Joaquim Marques Basto, João António Bianchi e Francisco Luís Pereira. Os trabalhos ficaram acabados em fevereiro de 1849, altura em que Tibério Blanc comunicou ao governador civil interino, Sérvulo Drumond de Meneses (1802-1867), em ofício de 5 de dezembro do mesmo ano, estar concluída a grandiosa obra com toda a “solidez e perfeição” requeridas, tendo o governador interino louvado a forma como tinha “dirigido a execução do plano que habilmente traçara da mesma obra”. Mais tarde, toda a documentação respeitante à obra seria publicada em volume independente, integrada nas várias obras respeitantes à atuação da administração de José Silvestre Ribeiro (MENEZES, 1848). Tibério Blanc, talvez para poder acompanhar mais de perto a obra da Estrada Monumental, tinha adquirido um terreno junto à ponte do Ribeiro Seco, onde fizera construir uma residência. Assim, em breve era atacado pelo jornal O Archivista, insinuando-se que na execução dessa casa se servira dos materiais do Estado destinados à Estrada Monumental. Face às insinuações, o engenheiro enviou um ofício ao governador dando conta do andamento dos trabalhos e, ao mesmo tempo, demonstrando que nada de censurável havia feito. Acrescenta ainda que entretanto resolvera vender a dita casa e regressar à que adquirira anteriormente, em setembro de 1848, no Salto de Cavalo. O Archivista viria a publicar os esclarecimentos de Tibério Blanc, mas acrescentaria que, apesar de tudo, o engenheiro deveria de futuro fazer a sua residência um pouco mais afastada das obras que dirigia. O incidente não deve ter afetado a ação e aceitação institucional de Tibério Blanc, que desde o ano de 1850 integrava a direção da Sociedade Agrícola Madeirense, composta por quase 30 pessoas, dando nesse ano orçamento para umas obras a executar na cadeia da cidade para a construção de uma lareira e respetiva chaminé a fim de evitar que os presos fizessem lume ao longo dos muros, provocando fumos. Também no final desse ano se deslocara a Santa Cruz para escolher o terreno para o futuro cemitério. No ano seguinte, continuaria os seus trabalhos e, inclusivamente, responderia, por indicação também do Gov. José Silvestre Ribeiro, aos quesitos apresentados pela Câmara Municipal do Funchal sobre a iluminação a gás da cidade. O problema mais grave viria a ocorrer, entretanto, em relação à levada do Rabaçal. O Eng. Tibério Blanc foi colocado em agosto de 1848 à frente dos trabalhos da construção da levada, cujos primeiros estudos datavam dos meados do século anterior, de outubro de 1768, do tempo do sargento-mor Francisco de Alincourt (1733-1816), do ajudante Salustiano da Costa (c. 1745-c. 1820) e do governador João António de Sá Pereira (1719-1804). Os trabalhos de perfuração do importante túnel decorreram nos dois anos seguintes, comunicando o engenheiro, a 5 de novembro de 1850, em ofício escrito do lugar do Rabaçal, a finalização daquela fase dos trabalhos. No mesmo documento ainda dava conta de ter informado os vigários da Calheta, Estreito, Prazeres, Fajã da Ovelha e Ponta do Pargo, localidades que mais tarde haveriam de beneficiar dos trabalhos em curso. Acrescentava, também que encarregara os portadores das cartas de, nos adros das respetivas igrejas, darem girândolas de foguetes pela consumação do importante túnel de ligação das partes norte e sul do monte das Estrebarias. As questões entre Tibério Blanc e António Pedro de Azevedo, no entanto, datavam de, pelo menos, os inícios de 1848. Tibério Blanc fora nomeado por despacho régio de 23 de janeiro de 1839, em comissão de serviço civil, como encarregado da direção das obras públicas civis do distrito, ou seja, passara para a dependência direta do governador civil. Ora, com o afastamento de Júlio Ribeiro Guerra, passara o capitão António Pedro de Azevedo a chefiar o Comando da Engenharia da 9.ª Divisão Militar, pelo que entendeu dever Tibério Blanc dar-lhe conhecimento dos trabalhos em que andava. A questão entre os dois chegou a Lisboa e teve como despacho a suspensão de ambos em 31 de março desse ano de 1848, nomeando-se mesmo um capitão engenheiro, de nome Cunha, para substituí-los, como consta do processo arquivado no Arquivo Histórico Militar. A suspensão acabou por não ter efeito com a chegada de José Silvestre Ribeiro a Lisboa, no mês de junho, e ambos se mantiveram em serviço na Madeira nos anos seguintes. No governo de José Silvestre Ribeiro, em meados de 1849, ainda se havia iniciado um interessante trabalho, que era o de classificar as várias acessibilidades, atribuindo-se depois as responsabilidades de conservação às várias autoridades concelhias e distritais. A iniciativa começou pela publicação de um edital convocando a Junta Geral para a discussão de um projeto sobre as estradas, apelando-se à participação dos cidadãos interessados no assunto. A junta veio a nomear uma comissão para a elaboração de um Projeto para as Estradas e Caminhos da Ilha da Madeira e do Porto Santo, que propôs então a sua classificação em estradas, caminhos do concelho, caminhos vizinhais e caminhos rurais, propondo ainda a constituição de uma Junta das Estradas e de um inspetor das estradas. O trabalho foi publicado na tipografia do palácio de S. Lourenço, mas parece que as contingências políticas posteriores o deixaram cair no esquecimento. O Eng. Tibério Blanc desenvolveu uma espantosa atividade durante o governo de José Silvestre Ribeiro, visitando toda a ilha e, especialmente, as antigas levadas, dando parecer sobre os melhoramentos a efetuar e as novas obras a empreender nas mesmas. Em outubro de 1848, receberia na levada do Rabaçal o então tenente de engenharia António Maria Fontes Pereira de Melo, que chegou no bergantim Mariana, a caminho de Cabo Verde, tal como em meados de 1849 receberia o príncipe Maximiliano de Beauharnais (1817-1852), duque de Leuchtenberg e irmão da ex-imperatriz do Brasil, D. Maria Amélia de Bragança (1812-1873), empreendimento que o príncipe muito apreciou, vindo a contribuir monetariamente para o mesmo. Com a montagem do novo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria de Fontes Pereira de Melo, Tibério Augusto Blanc foi mantido à frente das obras públicas do distrito do Funchal, situação que se conservou na vigência do novo governador, o visconde de Fornos de Algodres, João Maria de Abreu Castelo Branco Cardoso e Melo (1789-1878). As obras da levada do Rabaçal continuavam, entretanto, com a abertura de novo túnel, o das Levadinhas, para aumentar o caudal das águas. A época corresponde a uma nova inflexão política da regeneração, proclamando-se o major António Pedro de Azevedo adversário político do anterior governador José Silvestre Ribeiro, considerado localmente pelos “novos regeneradores” pouco dialogante e até autoritário. Com a nova situação, e não tendo sido nomeado diretor-geral das obras públicas do distrito, António Pedro de Azevedo consegue ser nomeado inspetor das mesmas obras, oficiando então a Tibério Blanc a comunicar-lhe as suas novas funções, solicitando-lhe vários elementos sobre as obras do Rabaçal e, alojamento no local para proceder à sua inspeção, ofícios depois divulgados nos periódicos do Funchal. O assunto foi acompanhado pelos periódicos do Funchal, que protestavam contra o atraso com que decorria a inspeção, a primeira a efetuar-se àquela obra, uma das mais importantes obras públicas da Madeira, chegando a alvitrar-se não estar o major António Pedro de Azevedo a cumprir cabalmente as suas funções, colocando-se mesmo a hipótese de não ter sido a pessoa certa para proceder à inspeção. A questão arrastou-se pelos meses de outubro e novembro de 1852, embora Tibério Blanc tivesse logo colocado toda a obra à disposição de António Pedro de Azevedo, incluindo os serviços do apontador-geral, José Maria Passos. Os resultados acabaram por revelar que tudo se encontrava a decorrer conforme os projetos iniciais definiam, havendo perfeita consonância entre os trabalhos desenvolvidos pelo Maj. Tibério Blanc e a inspeção efetuada pelo Maj. António Pedro de Azevedo, como consta na carta de 20 de novembro do apontador-geral (A Ordem, 25 set., 13 nov., 4 e 18 dez. 1852). O Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, em Lisboa, no entanto, parece não ter entendido assim a situação, passando a encarregar logo António Pedro de Azevedo de vários projetos na área das obras públicas e determinando a Tibério Blanc que entregasse o projeto final das obras da levada do Rabaçal. Na sequência disso, em fevereiro de 1853, exonerava Tibério Blanc do cargo da direção das obras públicas, indicando que deveria entregar a comissão a António Pedro de Azevedo. A passagem dos diversos materiais, e especialmente o arquivo, levantou inúmeros problemas, patentes em vários ofícios trocados entre o Governo Civil e o Ministério. O visconde de Fornos de Algodres encarregou de superintender à passagem de funções o administrador do concelho do Funchal, e, face à dispersão dos materiais pelas várias frentes de obras, os arquivos de plantas e projetos levaram imenso tempo a ser entregues. O assunto levou à intervenção do Ministério, que questionava se Tibério Blanc se recusava a entregar o arquivo, como se deduzia dos ofícios de António Pedro de Azevedo. O problema só se encontrava encerrado nos finais de março de 1853, com a entrega do relatório e do inventário do arquivo, assim como com a resposta taxativa do administrador do Funchal de desconhecer se o major Tibério Blanc se recusara a entregar o arquivo em causa, e dizendo que a elaboração do inventário final levara algum tempo a entregar por causa da acumulação de serviço no Funchal. Tibério Augusto Blanc acabou por ser destacado para diretor das obras públicas de Ponta Delgada, nos Açores, entendendo Fontes Pereira de Melo que dado existirem dois engenheiros no Funchal, e não havendo nenhum nos Açores, um deveria seguir para ali. A ordem para um dos oficiais engenheiros da Madeira passar a São Miguel foi assinada a 31 de outubro de 1853, mas sobre o ofício o ministro dos Negócios da Guerra informou que já a 14 de outubro se determinara o envio para os Açores do major Tibério Augusto Blanc. A sua atuação nos Açores deve ter sido bem aceite, pois a 19 de janeiro de 1861 era nomeado inspetor-geral das obras públicas dos Açores e do Funchal. Tibério Blanc optara, entretanto, por se radicar definitivamente no continente, vindo em 1854 à Madeira recolher a família, embarcando então para Lisboa no Galgo, acompanhado da esposa, da mãe, três filhas, uma irmã e a criada. No entanto, não teria sido impunemente que passara 17 anos ao serviço das obras públicas da Madeira, e, nos anos seguintes, regressaria pontualmente ao Funchal para a assinatura de uma escritura com o 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) e Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), em 1858, subscrevendo uma sociedade para execução de uma levada em Boaventura destinada a regar a Ponta Delgada, altura em que vende algumas propriedades que ainda possuía na Madeira. Voltaria ainda em 1860 e em 1862, neste último ano como inspetor das obras públicas, altura em que publica um artigo defendendo a sua obra da Levada Nova do Rabaçal, então atacada pelo jornal Voz do Povo. Ainda voltaria em 1866 e 1867, esta última vez para vistoriar aspetos da construção de uma “docka” no porto do Funchal, assim como em 1873 e 1875, quando a sua saúde já se encontrava bastante abalada, falecendo em Lisboa, em setembro desse último ano. O major António Pedro de Azevedo teria idêntico percurso, também se retirando para Lisboa em meados de 1865, onde foi promovido a general a 13 de dezembro de 1869, passando depois a diretor do arquivo da Engenharia. Reformado a 31 de dezembro de 1878, manteve-se à frente daquele arquivo até falecer em Lisboa, a 10 de agosto de 1889. Salvo melhor opinião, a ele se deve não ter ficado uma única planta assinada por Tibério Blanc nos arquivos militares, das inúmeras que do Funchal para ali foram enviadas ao logo de quase 20 anos.   Mapa de gastos da Pontinha. Out. 1847. Arquivo Rui Carita.   [gallery order="DESC" columns="4" size="medium" ids="3569,13460,13463,13466"] O único documento assinado por Tibério Blanc que resta é um mapa de gastos das obras da Pontinha, de outubro de 1847, e, se restam algumas plantas da sua autoria, como as da fortaleza do Ilhéu, do forte de S. José da Pontinha ou dos estragos da aluvião de 1842, só escaparam porque não estão assinadas. Inclusivamente desapareceu quase todo o conteúdo do seu processo individual nos arquivos de pessoal do exército, só dali constando seis documentos soltos provenientes de outros fundos.   Mapa dos estragos da aluvião de 1842     [gallery order="DESC" size="medium" ids="13487,13484,13481,13478,13475,13472"]   Rui Carita Imagens: Arquivo Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património Personalidades

arquitetura do turismo de lazer

A arquitetura do turismo de lazer levou algum tempo a implantar-se na Madeira, tendo-se recorrido, ao longo do séc. XIX, a habitações senhoriais urbanas e periurbanas, as chamadas quintas de aluguer, sumariamente adaptadas às novas funções, como ocorrera anteriormente com o turismo terapêutico. O quase domínio absoluto do turismo de origem britânica e dos empresários dessa nacionalidade levou a que a arquitetura do turismo de lazer, na Madeira, não ganhasse características especificamente locais. Salvo na proliferação dos jardins envolventes e no aproveitamento dos declives para miradouros, embora utilizando mão-de-obra local e um saber artesanal ancestral, os modelos foram, essencialmente, importados dos mercados internacionais. Palavras-chave: arquitetura civil; arquitetura do turismo terapêutico; guias turísticos; miradouros; quintas românticas madeirenses; urbanismo. Até meados do séc. XIX, não é possível encontrar, na Madeira, o estabelecimento efetivo de serviços e de instalações de habitação temporária onde, para além da dormida, fosse prestada aos utentes toda uma série de serviços de certa sofisticação, como posteriormente veio a acontecer (Turismo). A apologia do ameno clima madeirense, especialmente vocacionado para o tratamento de doenças pulmonares, que corria pela Europa desde os finais do séc. XVIII, levou a que, especialmente no inverno, a Madeira fosse procurada pelas classes mais abastadas, na busca de um melhor clima e da almejada cura (Arquitetura do Turismo Terapêutico). Escritores e poetas, assim como publicistas em geral (Literatura de viagens), divulgaram nestes anos o nome da Madeira como sanatório natural, enaltecendo a temperatura e o espaço, propício ao lazer e à contemplação da natureza, convidando os doentes pulmonares dos rigorosos climas europeus a uma viagem reparadora à Ilha. As condições do coberto vegetal, a calma e a comodidade de que poderiam usufruir os doentes colocavam a Madeira muito à frente de outros destinos, como a maioria das cidades portuárias italianas, francesas e espanholas do Mediterrâneo, todas com uma vida muito agitada de negócios e de trânsito. Acrescia ainda a pureza e a suavidade do ar, assim como a quase constância da temperatura, quer de dia quer de noite. Estas temperaturas também existiam nas costas do Norte de África, e.g. no Cairo, mas a formação contínua de poeiras era uma desvantagem para os tuberculosos. Outra vantagem da Ilha era a quase inexistência de animais perigosos para os doentes, havendo uma muito baixa incidência, e.g., de mosquitos, pelo que os doentes nem necessitavam de cortinas nas camas. Havendo toda uma ampla encosta a proteger a cidade do Funchal, o doente poderia, inclusivamente, escolher a altitude ideal para se instalar, conforme necessitasse de ar mais quente ou mais fresco e conforme fosse inverno ou verão, embora a alteração da temperatura entre uma e outra estação fosse mínima. Em meados do séc. XIX, os hábitos europeus foram mudando progressivamente e, consequentemente, o tipo de viagens e de lazer das sociedades mais abastadas. Se na primeira metade do século, o turismo para a Madeira era essencialmente terapêutico, a presença de importantes figuras da mais alta aristocracia europeia foi aproveitada para a criação de uma nova imagem para a Ilha. Os mecanismos de divulgação da Madeira, essencialmente direcionados para os doentes, passam a salientar outros aspetos, como um certo exotismo da paisagem, um clima mediterrânico em pleno Atlântico, uma excelente temperatura da água do mar, e uma vida urbana cosmopolita. A mudança é patente, entre outros exemplos, no título da obra de Edward Vernon Harcourt (1825-1891), A Sketch of Madeira: Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor (1851), com litografias da autoria de sua mulher, lady Susan (1824-1894) (Harcourt, lady Susan Harriet Vernon), filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876), que, no ano anterior, já havia editado um álbum de litografias sobre a Madeira (Litografias e litógrafos). A primazia já é dada assim ao “traveller” [viajante] e, em segunda prioridade, ao “invalid visitor” [visitante inválido]. Os anos 80 marcam outra forma de visitar a Madeira, muito mais rápida, deixando assim de tratar-se de meses para se tratar de semanas e, posteriormente, somente de alguns dias, o que é compensado por um número muito maior de visitantes e faz crescer uma série de serviços de apoio a essas rápidas estadias. Na década seguinte começam a ser editados guias turísticos ilustrados por fotografias (Guias turísticos), progressivamente alargados a informações económicas, sociais, políticas e artísticas. O desenvolvimento turístico e portuário da baía do Funchal constituiu um instrumento de novas políticas sociais, envolvendo grandes investimentos públicos e privados na área dos transportes, do saneamento básico, das redes de distribuição de água ao domicílio, da iluminação pública e até no arranjo urbanístico da baixa da cidade, com a construção de jardins e de parques. Esta transformação teria o seu ponto alto já nos inícios do séc. XX, com a encomenda ao arquiteto Miguel Ventura Terra (1866-1919), em 1913, de um plano de urbanização para a cidade do Funchal (Urbanismo). Se, numa primeira fase, as obras tinham sido pensadas em função dos visitantes estrangeiros, a operação acabou por beneficiar toda a população residente, produzindo serviços, criando novas oportunidades de emprego, mudando mentalidades e reformulando radicalmente a estrutura urbana da cidade, virando-a, ainda mais, para o mar. Os primórdios da instalação turística Nas primeiras décadas do séc. XIX, os viajantes ainda se queixam da dificuldade dos alojamentos, como refere em 1826 Charles Heineken, que começara por visitar a Ilha como doente, acabando por se fixar. Conforme escreve por sua informação Alfred Lyall (1796-1865), por esses anos não existiriam mais que 4 boarding-houses, ou seja, edifícios urbanos para instalação temporária, onde os enfermos e as famílias se pudessem acomodar, embora tal fosse colmatado, pontualmente, pelo aluguer de outras casas na periferia, pertencentes a famílias inglesas residentes e a madeirenses (Quintas românticas madeirenses). Referem estes autores, no entanto, que não se poderia esperar encontrar na Madeira o amplo leque de escolha e de comodidades que já era possível encontrar no Sul de Inglaterra. Na década seguinte, o publicista John Driver ainda se queixa de que, embora a dimensão da cidade já fosse outra, não se encontravam hotéis nem cafés, o que já era comum nas congéneres cidades europeias da dimensão do Funchal. Este autor refere várias casas para aluguer, ou partes de casas, dizendo que pertenciam quase todas ao perímetro urbano, e que eram quase todas propriedade de residentes britânicos. Esta comunidade que se dedicava essencialmente ao comércio iniciava, então, um negócio sazonal paralelo que não pararia de crescer nos anos seguintes. O aluguer era geralmente feito à semana e incluía, para além do quarto, uma sala de estar, o mobiliário e o equipamento, onde se incluía, curiosamente, algumas vezes uma garrafeira com vinho da Madeira, embora a lavagem de roupas fosse paga como um extra. Em 1840, William White Cooper (1816-1886), no Invalid’s Guide to Madeira, refere já a existência de um pequeno hotel, relacionando os vários tipos de alojamento possíveis na área do Funchal: as casas de família, ou quintas de aluguer; as casas de aluguer; e os hotéis familiares. As primeiras eram quintas nos arredores da cidade e as restantes, residências urbanas adaptadas, diferenciando-se, essencialmente, pelo serviço de refeições: numas eram servidas aos hóspedes e à família, mas separadamente, noutras já havia uma sala de refeições comum onde todos os hóspedes almoçavam e jantavam. Ao longo da déc. de 40 começam a aparecer referências à existência mais efetiva destas instalações, mas longe de conseguirem responder à procura, como se queixa, em 1840, sir William Robert Wills Wilde (1815-1876), pai de Óscar Wilde (1854-1900). Na sua descrição da passagem pela Madeira, entre 1837 e 1839, considera, inclusivamente, ser muito desagradável que os comerciantes britânicos ali radicados não tivessem, até então, preenchido essa lacuna, construindo pequenas habitações minimamente confortáveis, até porque a procura já era exponencial. Somente por volta de 1852, lady Emmeline Stuart Wortley (1806-1855) refere ter-se instalado no Hotel Miles, na R. da Carreira, e que já possuía as características de um pequeno hotel, embora ainda não fosse uma construção de raiz, mas a adaptação de uma residência senhorial urbana a essa função, como aliás vai acontecer à grande maioria dos restantes hotéis. O encanto da experiente viajante inglesa, entretanto, foi para a magnífica vista da janela do seu quarto e do de sua filha, sobre a montanha por detrás da cidade, e para o pitoresco dos terraços, torres e balcões das casas vizinhas, com os seus pequenos jardins com bananeiras, laranjeiras e as mais variadas plantas e flores. A descrição do que eram estas antigas residências urbanas adaptadas para hotel pode ser conhecida através do Diário de 1853 de Isabella Hurst França (1795-1880), filha do arquiteto Aaron Hurst. A autora tinha-se casado tardiamente com o morgado madeirense José Henrique de França (1802-1886) e, perante a perspetiva de extinção dos morgadios na Madeira (Morgadios), o casal foi à Ilha vender essas propriedades. Instalaram-se numa hospedaria da Rua da Carreira, que pertencera à viúva do poeta e político Manuel Pimenta de Aguiar (1765-1832), Micaela Antónia de Sá Bettencourt, e que a alugara, em 1831, a uma inglesa, Isabel French, que passou a geri-la. Em 1839, o contrato de aluguer foi feito com o hoteleiro Jacinto Hannibal de Freitas, talvez um dos mais antigos hoteleiros da Madeira, que possuía outros estabelecimentos similares, como na R. das Hortas, e este manteve Isabel French à frente do estabelecimento até 1863. Isabella de França descreveria a sensação que havia tido ao passear pelas ruas mais altas e ao observar a vista das janelas da residência onde estava hospedada, no final da R. da Carreira, dizendo que “a cidade do Funchal é muito maior do que eu esperava: será a terceira das terras portuguesas, depois de Lisboa e Porto. Estende-se por mais de uma milha ao longo da costa e sobe a considerável distância até aos montes” (FRANÇA, 1970, 56). Isabella refere que chegaram de carro de bois a um pátio coberto interior, estruturante do edifício, do qual partia uma escada que, circundando o pátio, dava acesso aos quartos dos vários pisos. O pátio calcetado era coberto por claraboia, sendo os quartos nos andares superiores e na torre, onde o casal ficou, e sendo o piso térreo destinado a arrecadações e serviços. Se a residencial de início a encantou, encostada à antiga muralha da cidade e sob a fortaleza do Pico, quando chegou a informação do falecimento da Rainha D. Maria II (1819-1853) e se iniciaram os três dias de salvas de luto, em que os canhões do Pico e do ilhéu disparavam de 5 em 5 minutos, dia e noite, calculando a autora terem sido feitos 1440 disparos, a situação terá sido dramática. Data dos anos seguintes a passagem de hospedarias como esta à designação de hotel, registando-se em 1865, como mais os caros, o Hotel Jervis e o Hotel Luscomb. Em 1863, registam-se as hospedarias Reids, na R. do Mercado de S. João, depois denominado Royal Edimburgo Hotel; Neal, na R. do Pinheiro; Miles, na R. da Laranjeira (que havia de ser denominada R. do Carmo); e o Hotel Hollway, na entrada da cidade (Entrada da Cidade). Em 1864, registam-se como hotéis o Giuliet e o Freitas, sem indicação da rua, o Hotel Jervis, na R. da Carreira, e o Hotel Francês, na entrada da cidade. Em 1865, registam-se ainda o Hotel Luscomb, na R. da Carreira e os hotéis Pios, Dressen, J. Payne e Madeira, sem indicação da localização. Em 1866, registam-se os hotéis Duhset e Bella Vista, também sem mais indicação, embora o último ficasse a montante do Hospício, na margem da ribeira de S. João, com acesso pela R. do Jasmineiro, edifício depois ocupado pelo Seminário Diocesano que, graças ao parque envolvente e a outras caraterísticas, se veio a tornar bastante conhecido e dos mais fotografados. Nestes quase finais de século, no entanto, não estamos no domínio de uma arquitetura do turismo de lazer, mas da adaptação de edifícios a essas funções. César Augusto Mourão Pitta (1837-1907), então agente consular de França na Madeira, no seu Madère, Station Medicale Fixe (1889), regista a existência de sete hotéis ingleses de primeira ordem, quatro dos quais pertencentes aos irmãos Reid, três portugueses e duas pensões, uma inglesa e outra portuguesa. No entanto, só pouco depois dessa data, em 1891, para efeitos de cobrança de taxas, se diferenciariam os hotéis das hospedarias, sendo comum classificar os ingleses numa categoria superior à dos portugueses. Ellen Taylor, entretanto, em 1882, não recomendava aos seus leitores nenhum dos hotéis portugueses, embora os irmãos Adriano (1862-1906) e Aníbal Trigo (1865-1944), no seu Roteiro e Guia do Funchal, de 1910, mencionassem o Hotel Universal, situado na esquina do antigo passeio público para a Pç. da Sé, como sendo “um hotel de 2.ª ordem” recomendável “a todas as pessoas que desejem viver comodamente na cidade sem grande despesa” (MATOS, 2013, 173) Saliente-se, entretanto, a dificuldade de estabelecer as designações destas iniciais unidades hoteleiras, pois nem sempre os nomes de registo correspondiam aos nomes que se utilizavam correntemente, mudando de acordo com os proprietários e com as firmas e sociedades a que pertenciam, mas, por vezes, mantendo os antigos nomes, em oposição aos do registo, e utilizando os nomes da localização em relação às acessibilidades, etc. Entre muitos casos, e.g., numa das antigas fotografias do Jardim Municipal (Jardim Municipal), muito provavelmente ainda dos finais do séc. XIX, tirada por João Francisco Camacho (1833-1898) ou pelo irmão Augusto Maria Camacho (1838-1927) (Fotografia), aparece sobre o prédio onde depois se situou o restaurante Os Combatentes, na esquina das ruas de Roberto Ivens e S. Francisco, a indicação de Hotel Rosa, designação que não encontramos nos registos de licença, correspondendo à residencial que, em 1893 e em 1895, se encontrava em nome dos herdeiros de José Fernandes Rosa. A cadeia Reid A história da arquitetura hoteleira da Madeira e, inclusivamente do próprio turismo, são indissociáveis do nome Reid, ligado ao mais prestigiado hotel da Região e o primeiro construído efetivamente de raiz, nos finais do séc. XIX, dado que os anteriores utilizaram sempre construções preexistentes. O escocês William Reid (1822-1888) teria passado pela Madeira em 1836, então com 14 anos, mas parece só se ter fixado na Ilha por volta de 1844. Quarenta anos depois, com seus filhos William e Alfred Reid, teriam adquirido os mais importantes estabelecimentos hoteleiros do Funchal e preparava-se para construir de raiz o Reid’s New Hotel, depois Reid’s Palace Hotel (Reid’s Palace Hotel), eclipsando todas as restantes unidades, que passariam a hotéis de segunda categoria. O fluxo de visitantes e de passageiros em trânsito aumentava constantemente com os novos navios a vapor, que faziam a viagem para o Funchal, e.g., a partir de Liverpool ou de Southampton, em cinco dias, e de Lisboa em dois, havendo carreiras regulares desses três portos. Igualmente dos portos de Bordéus, Havre, Antuérpia ou Hamburgo era possível ter acesso à Madeira em carreiras mais ou menos regulares, com maior rapidez e por menor preço. Em 1874, ainda se montavam as comunicações telegráficas com o continente, através de cabo submarino, e tudo concorria para que a Ilha passasse a possuir capacidades para se equipar, dentro das suas dimensões, com um dos melhores parques hoteleiros europeus. Para a análise da arquitetura dos hotéis Royal Edinburgh e German Hotel, o antigo Schlaaff, que foram demolidos, teremos de recorrer ao amplo acervo cartográfico e fotográfico da Madeira, tal como às descrições de alguns dos seus hóspedes; no entanto, nem num caso nem no outro existem especiais novidades arquitetónicas, uma vez que se tratava de adaptações de construções já existentes. Deixando o antigo German Hotel para a secção seguinte, por se enquadrar no tema dos interesses alemães que a comunidade britânica soube, progressivamente, eliminar, importa referir que, tal como o Reid's Monte, noutro contexto, o interesse do Royal Edinburgh Hotel era muito reduzido. Instalado numa antiga residência senhorial no quarteirão a poente do Teatro Municipal (Teatro Municipal), sendo muito anterior a este, encontrava-se, na déc. de 80 do séc. XIX, ainda ligado ao então mercado de S. João (Mercados). Possuía um jardim a norte, que veio a desaparecer com a construção da Av. Arriaga, e, elevando-se sobre a R. das Fontes, uma muito boa relação com a baía do Funchal. O nome deste hotel adveio do patrocínio que lhe foi dado pelo duque de Edimburgo, título criado pela Rainha Vitória (1819-1901), em 1866, a favor do seu quarto filho, o príncipe Alfredo de Sax-Coburgo-Gota (1844-1900), que ao comando da fragata HMS Galatea, passara pelo Funchal em 1867. Se alguns utentes, como a jornalista norte-americana Charlotte Alice Baker (1833-1909), em 1882, embora reconhecendo que o pomposo nome estava longe de corresponder ao edifício, especialmente no seu aspeto exterior, consideravam que tal era compensado pelo agradável jardim murado por pedra de tufo de lava e se encantavam com a vista da sua varanda sobre o mar e com o silêncio noturno da cidade, outros utentes eram mais severos na sua apreciação. Um ano depois, e.g., o controverso sir Richard Francis Burton (1821-1890) queixava-se da informalidade do estabelecimento, que considerava ser mais próximo de uma taberna que de um hotel, com maus cheiros e pessoas que não seriam especialmente do seu agrado, o que também não deixa de ser interessante face à vida aventurosa e desbragada que este antigo militar e agente secreto havia tido. Em causa, por certo, estaria a qualidade do ar naquela área, como refere o médico Karl Mittermaier (1787-1867), que escreveu que os doentes não deveriam ali ficar, pois seriam obrigados a respirar “as poeiras de um armazém de carvão que lhe fica perto” (MATOS, 2015, 281-282). O Royal Edinburgh Hotel foi gerido pessoalmente pelo patriarca da família Reid, tendo sido um edifício de planta retangular com dois pisos, inserido num lote ajardinado virado para norte, como consta das várias plantas da cidade desses anos. O andar nobre tinha sete janelas de sacada de recorte clássico, dando sobre a R. das Fontes, então arborizada, como se parece verificar nas fotografias da época. Na propaganda que os Reid faziam da sua cadeia de hotéis, no entanto, este hotel quase nunca é apresentado em imagem, colocando-se sempre em destaque só as do Santa Clara e do Carmo. Em 1892, quando publicam o seu guia turístico da Madeira (1892), o seu nome já não consta, devendo assim ter encerrado antes dessa altura, conjetura que pode ser suportada pelo falecimento, em 1888, do patriarca da família, que o gerira pessoalmente. O Carmo Hotel, na rua do mesmo nome, cujo edifício subsistia nos começos do século XXI, embora profundamente alterado, era anteriormente propriedade da família Miles e foi adquirido nos finais da déc de 70 do séc. XIX pelos Reid. O portão lateral de acesso ao logradouro, em ferro forjado, ostenta a data de 1836, data provável de uma das suas últimas reconstruções. Apresenta à rua uma fachada clássica da arquitetura senhorial madeirense, com um piso térreo bastante alto e duas janelas laterais a enquadrar a porta principal encimada por lintel com balanço, um andar intermédio para serviços e, a servir de balanço às suas cinco janelas, a sacada da varanda do andar nobre, com o pormenor de ser corrida, apresentando as janelas remates por cornija relevada. O edifício, no entanto, era bastante profundo e complexo, devendo ter tido várias campanhas de obras, com uma larga e deselegante torre central de mais de dois pisos e as cozinhas no extremo noroeste do conjunto edificado. Numa das campanhas de obras o conjunto foi dotado de um corredor ao longo do piso superior, o que teria facilitado a sua adaptação a hotel, embora o tamanho das divisões fosse muito díspar. Os quartos, mesmo assim, tiveram fama de ser dos maiores e mais confortáveis da cidade. Este hotel teve um importante jardim – onde havia inclusivamente uma jaula com macacos – que contudo, nas fotos dos finais do séc. XIX ou inícios do XX, já não parece ter esse protagonismo, tal como teve um court de ténis, provavelmente o primeiro a ser instalado num hotel do Funchal e, no rés-do-chão, um restaurante aberto ao público. Ellen Taylor, em 1882, ainda o designando por Miles’s Hotel, regista-o como tendo sido durante muitos anos o melhor hotel do Funchal, não só pelo conforto, limpeza e atenção que dispensava aos hóspedes, como pela espaçosa varanda, torre-avista-navios, grande jardim, etc. Pelas palavras da norte-americana, no entanto, parece que nessa data já não era assim, tendo encerrando na segunda década do séc. XX e sido ocupado, pouco depois, pela sede do Grémio dos Industriais de Bordados da Madeira. O conjunto foi, em 2015, objeto de reabilitação para complexo habitacional, mas descaraterizado pelo aumento da área de construção envolvente. O maior hotel do Funchal, nas últimas décadas do séc. XIX, foi o Santa Clara Hotel, edifício adquirido pela família Reid em 1867 e objeto de inúmeras campanhas de obras. Ellen Taylor considera-o o “hotel par excellence” (TAYLOR, 1882, 15), o que não admira, uma vez que foi aí que se instalou, com o seu piano, na sua visita ao Funchal de 1882, tendo depois registado que o conjunto edificado seria muito complexo, com várias entradas independentes para os andares. O conjunto deve ter nascido de uma antiga residência senhorial dos finais do séc. XVIII, assente sobre uma forte sapata com jorramento, quase de feição militar, o que obrigou a construir um complexo piso de serviços nesse embasamento, inclusivamente rematado por cornija, e sobre o qual assentam os 2 pisos nobres, por sua vez igualmente rematados por forte cornija. No início do séc. XXI, esse conjunto ainda se articulava, mas mal, com outro corpo para nascente, sobre o qual existia uma torre trapezoidal, uma singularidade na arquitetura madeirense, e à frente do qual cresceu outro corpo. Ainda existia outro, quase perpendicular a estes dois, tudo indiciando diferentes etapas de construção. Ao nível da fachada principal do Santa Clara Hotel, com acesso pela Trav. das Capuchinhas e pela Calç. de Santa Clara – se é que o termo “fachada principal” se aplica ao conjunto –, para poente, ainda foi acrescentado outro corpo, sobre o qual assenta uma generosa varanda, com um alpendre sustentado por uma esbelta estrutura de ferro forjado. A vista da varanda, assim como dos quartos virados para sul, sobre a cidade e o mar, deslumbrou sempre os visitantes. Um deles, o pintor Edward John Poynter (1836-1919) (Poynter, Edward John), muito provavelmente de uma das janelas deste hotel, em 1877, executou uma excelente aguarela do Convento das Mercês (Convento das Mercês), que viria a ser demolido, sendo, por isso, o único elemento iconográfico que conhecemos desta construção religiosa. O edifício mantinha, no início do séc. XXI, toda a antiga volumetria, tendo deixado de funcionar como hotel na abertura da Primeira Guerra Mundial (I Grande Guerra) e vindo a ser adquirido pela Junta Geral (Junta Geral) para alojamento de serviços de assistência social, passando depois ao Governo regional com similares funções. O aumento exponencial do fluxo turístico no Funchal, na penúltima década do séc. XIX, levou a família Reid a equacionar a construção de raiz uma unidade de luxo, o Reid’s New Hotel, que seria, assim, o primeiro hotel madeirense a ter sido levantado mediante um projeto de arquitetura prévio. Até então, existia uma certa informalidade na organização deste tipo de espaços, criando complicadas disfunções nos circuitos de circulação dos hóspedes e dos funcionários, não havendo, e.g., serviços de receção, pois os hóspedes ou iam já por contactos anteriores, ou eram angariados na sua chegada ao porto, ainda no navio. Os funcionários do hotel encarregavam-se das diversas formalidades, inclusivamente, do despacho da bagagem, o que não seria fácil, pois muitos dos viajantes deslocavam-se com mobiliário e com pessoal. Outro aspeto, só então planeado, foi o das instalações sanitárias, quase sempre comuns até essa data. A família Reid contactou, para o projeto do novo hotel, o arquiteto Somers Clarke (1841-1926) (Clarke, Somers), sobrinho do também arquiteto George Somers Leigh Clarke (1822-1882), que trabalhara, em 1849, na reconstrução do palácio de Westminster. Somers Clarke encontrava-se associado, em Londres, a John Thomas Micklewaite (1843-1906), tendo ambos sido formados no ateliê de George Gilbert Scott (1811-1878), que já havia projetado unidades hoteleiras em Inglaterra. O ateliê de Somers Clarke e de J. T. Micklewaite tinha já ficado conhecido por vários projetos revivalistas góticos para igrejas e, tendo Clarke, por motivos de saúde, estado na Madeira, provavelmente num dos hotéis da cadeia Reid, acabou por ser escolhido para fazer o projeto do Funchal. Somers Clarke deslocou-se, inclusivamente, depois à Ilha para acompanhar a construção do hotel, pelo menos no inverno de 1889, e, no ano seguinte, forneceria à conceituada revista The Buiding News, em Londres, as principais características do seu edifício, com dois blocos delimitados por torres e articulados por um corpo de varandas. Todos os quartos eram iguais e servidos por corredores internos, todos com varandas, equipados com lareira e demais comodidades da época. O novo hotel mantinha uma muito especial relação com o mar, possibilitando um fácil acesso à zona de banhos, e era previsto que viesse a ser servido por um amplo jardim. Nas informações fornecidas por Somers Clarke, parece ter havido alguma dificuldade em caracterizar estilisticamente o edifício, assunto na ordem-do-dia em Inglaterra, parecendo terem sido considerados apenas os aspetos económicos da construção e a sua opção pelos métodos de construção locais e pelos materiais habituais nos edifícios da Ilha. O êxito do novo hotel foi imediato, eclipsando toda a restante rede e, num curto espaço de tempo, seria uma das construções emblemáticas da hotelaria internacional, sendo citado como obra de referência praticamente em todas as publicações da área desde então. Para este hotel trabalhou ainda o pintor Max Römer (1878-1960), com cartazes, menus e bilhetes-postais, colaborando para a criação de um verdadeiro mito. Pelo Reid’s Palace Hotel, como já era designado, passaram algumas das mais famosas figuras europeias, entre ex-Imperadores, ex-Imperatrizes, aristocratas, governantes e ex-governantes, antigos ditadores, escritores internacionais, fotógrafos, atores de cinema, artistas, entre outros, fazendo circular a imagem do hotel por todo o mundo. Sucessiva e cuidadosamente ampliado, integrando courts de ténis, rinques de patinagem, etc., passando por vários proprietários, houve sempre a preocupação de manter o seu legado histórico-cultural e, também um arquivo histórico, tendo o seu nome incorporado sempre a inicial designação “Reid’s”. Os hotéis alemães do Funchal A fama da Madeira, como estância de turismo terapêutico, fora também divulgada na Alemanha pelo Dr. Kämpfer, falecido pouco antes de 1856, que esteve na Ilha entre outubro de 1841 e abril de 1842, e por Karl Mittermaier, médico especialista de Heidelberga, que se deslocara à Madeira com seu irmão, tuberculoso, em finais do verão de 1851, regressando depois, pontualmente, para o acompanhar, até 1854. Deve-se ao Dr. Mittermaier o primeiro livro em língua alemã a defender a Madeira como estância ideal para as doenças pulmonares. Em meados de novembro de 1866, o médico e zoólogo alemão Richard Greeff (1829-1892), e.g., constatou em Lisboa que, no Hotel Central, hotel muito bem situado à beira do Tejo, não só os empregados de mesa, mas também a maior parte das pessoas presentes na sala de jantar, eram alemães. Não eram, no entanto, comerciantes nem cientistas, mas sim doentes, que com os seus companheiros, e como o próprio Greeff, aguardavam embarcação para passarem o inverno na Madeira. A Madeira encontrava-se ainda muito bem equipada para responder a este tipo de doenças. O Dr. Mittermaier mencionava a presença no Funchal de seis médicos portugueses formados em França ou em Inglaterra e de seis médicos ingleses, estando, geralmente no verão, mais alguns médicos alemães. Nessa época, estava na Madeira, e.g., o Dr. Bahr, de Rendsburgo que, após ter curado a sua tuberculose durante quatro invernos passados na Ilha, tencionava radicar-se nela, a exercer clínica. O Funchal encontrava-se também muito bem apetrechado de farmácias, assim como de hospitais, aptos a fazer face a qualquer eventualidade das doenças pulmonares. O Dr. Mittermaier, refere ainda que, por volta de 1840, raramente se encontrava um alemão, mas que, nos anos seguintes, se registara um aumento anual de quase 15 a 20 doentes, calculando que no inverno de 1853 para 1854 estivessem na Madeira mais de 40 doentes alemães. A hegemonia dos interesses britânicos ao longo dos sécs. XIX e XX dificulta a pesquisa dos primórdios da implantação dos Alemães na Madeira. A rede de casamentos das famílias reais europeias igualmente dificulta a construção dessa perceção; assim, e.g., quando, em 1861, chegou à Madeira a Imperatriz Sissi de Áustria (1837-1898) (Áustria, Sissi de) deslocou-se num iate disponibilizado pela Rainha Vitória (1819-1901), instalando-se na Qt. Vigia (Quinta Vigia), onde uns anos antes tinha estado a Rainha viúva Adelaide de Inglaterra (1742-1849), de origem alemã. O aumento dos viajantes alemães e oriundos do centro da Europa na Madeira regista-se após a visita da Imperatriz Sissi e do seu séquito, curiosamente deslocando-se para Santana, no Norte da Ilha, o que justifica também a edição de duas litografias do Funchal, do pintor e litógrafo Joseph Selleny (1824-1875), em Viena, em 1862, por Leopold Theodor Neumann (1832-1875), uma das quais com a Imperatriz frente à Sé do Funchal (Sé do Funchal) e outra, com o título Brück über den Ribeiro Seco, mas que representa a ponte junto ao fontanário do Torreão, logo a ponte do Torreão da Ribeira de Santa Luzia e não a do Ribeiro Seco (Litografias e litógrafos). O primeiro hotel alemão, em princípio, teria sido o de M. Schlaaff, referido, em 1880, pelo tisiólogo alemão Julius Goldschmidt (c. 1840-1924), que exercera clínica na Madeira, pelo menos de 1867 a 1884, como de “primeira ordem” (WILHELM, 1993, 119), mas que já então também tinha sido adquirido pelos irmãos Reid, embora os mesmos tenham mantido à sua frente o anterior encarregado, Francisco Nunes (1831-1907). Francisco Nunes, um homem muito viajado e conhecedor da cultura alemã, era igualmente fluente na língua e proprietário da Qt. Nunes, na Camacha. A importância da comunidade viajante alemã levou a que os irmãos escoceses Reid mudassem a designação para German Hotel, embora localmente também fosse designado por Hortas Hotel, dado ficar localizado na R. das Hortas. Mantiveram ainda, no seu interior, uma pequena biblioteca naquela língua, à qual se refere Paul Langerhans (1847-1888) (Langerhans, Paul) no seu Handbucch für Madeira, de 1885. O German Hotel era um imponente edifício dos finais do séc. XVIII a inícios do XIX, situado a norte da R. do Bom Jesus, entre a R. da Conceição e a das Hortas, de que se conhece fotografia, com uma frente de três pisos e de oito janelas cada, tendo o corpo sul sete janelas. A fachada apresentava ao seu nível uma forte torre-avista-navios com mais dois pisos, com duas janelas por piso, viradas para nascente, e três para sul. Tratava-se, por certo, de uma antiga residência urbana senhorial, sumariamente ampliada para hotel e sem especial qualidade arquitetónica. O German Hotel deixou de funcionar nos primeiros anos do séc. XX e, na sua área, veio a ser levantado um complexo de edifícios da Caixa de Previdência do Funchal, entre 1960 e 1970, projeto do arquiteto Raúl Chorão Ramalho (1914-2001). Os viajantes alemães, no entanto, também frequentaram os restantes hotéis, em princípio, como teria sido o caso do grupo em que se integrou o investigador médico Carl Passavant (1854-1887), o seu amigo Wilhelm Retzer (1856-1883), o seu tutor Traugott Paulit e a família Tropenhelm, que nos inícios de 1883, saindo do porto de Hamburgo, passaram pelo Funchal com destino às colónias alemãs de África, mas chegando, pelo menos o investigador e o seu tutor, a Angola. Fizeram-se então fotografar no Funchal, por certo com outros alemães, numa fotografia de grupo perfeitamente hierarquizada e onde parece reconhecer-se Francisco Nunes. O local, no entanto, não parece de forma alguma ser o German Hotel, mas os anexos do parque do Hotel da Bela Vista. Os Hotéis do Monte A freguesia do Monte era, desde os meados do séc. XVIII, local de veraneio das famílias abastadas do Funchal. A primeira construção de lazer foi a chamada Qt. do Prazer, levantada pelo cônsul inglês Charles Murray (c. 1730-1808) em terrenos que tinham pertencido à confraria de N.ª S.ra do Socorro da igreja do Colégio dos Jesuítas do Funchal (Igreja do Colégio) e que haviam sido doados pelos irmãos João e José Saldanha. Com a extinção da Companhia de Jesus e o confisco de todos os seus bens, essas propriedades foram compradas, em 1770, pelo comerciante Francisco Theodor e, em 1773, vendidas a Charles Murray. A Qt. do Prazer também passou a ser conhecida como Belo Monte e Belmonte, aí tendo sido recebida, e.g., a 13 de setembro de 1817, a futura Imperatriz do Brasil, a arquiduquesa Leopoldina de Áustria (1797-1826), pelo comerciante inglês Robert Page (1775-1829). Com a construção do caminho-de-ferro do Monte (Caminho-de-ferro do Monte), e especialmente com a inauguração do troço final de ligação do Funchal ao Monte, em 1894, vão proliferar os hotéis nesta freguesia. O primeiro teria sido o Hotel Bello Monte, reformulando muito pontualmente a antiga residência dos finais do séc. XVIII, de que se conhecem algumas fotografias dos últimos anos do séc. XIX ou dos primeiros anos do séc. XX. A fachada aparece com portal rematado por lintel e cornija, encimado pelo que parece poder ter sido o brasão de armas do 1.º e único visconde de Monte Belo, João de Freitas da Silva (1849-1922) (Monte Belo, visconde de). Em 1896, a quinta já funciona como hotel, registado por Hilário da Silva Nunes, registo esse que se mantém até 1898, mas que, em 1900, passa a ser de William Reid, e, em 1901, de John Payne, confirmado pelo Brown’s Guide desse ano, onde aparece como proprietária deste hotel a firma John Payne & Son. Alguma influência alemã nesta área ainda se mantinha nesses anos, sendo o Hotel Belmonte referido no guia dos irmãos Trigo, em 1910, como Deutsches Hotel Restaurant, que era “mais especialmente frequentado por alemães, sendo muito conhecido e apreciado pela sua magnífica cozinha” (TRIGO, 1910, 30). Na primeira década do séc. XX houve a tentativa alemã de entrar no mercado turístico madeirense, com investimento no caminho-de-ferro do Monte e constituição de um projeto de construção de sanatórios, hotéis e casinos, através da Sociedade dos Sanatórios (Sociedade dos Sanatórios e Arquitetura do turismo terapêutico), que a comunidade britânica conseguiu inviabilizar. A situação de conflitualidade europeia levou ao deflagrar da Primeira Guerra Mundial e, com a entrada de Portugal no conflito, ao lado de Inglaterra, a memória da presença alemã na Madeira foi quase totalmente apagada. Entre 1915 e 1916, José Sotero e Silva, casado com Maria Augusta de Ornelas Frazão, filha natural mas herdeira do 2.º conde da Calçada, entretanto proprietário do hotel, efetua a reconstrução do imóvel. A propriedade veio a ser adquirida por volta de 1920 pela Companhia de Caminhos de Ferro do Monte e com a reativação do caminho-de-ferro, a 1 de fevereiro desse ano, procedia-se a importantes obras, inauguradas em 1926, como Grande Hotel Bello Monte, com uma zona de serviços a montante, um grande bloco central edificado e ainda uma casinha de prazer para Sul, rematando o jardim. A Segunda Guerra Mundial (II Grande Guerra) levaria ao encerramento do Grande Hotel e à extinção da Companhia em 1943 e, em 1958, instalava-se aí o Colégio Infante D. Henrique dos sacerdotes italianos do Sagrado Coração de Jesus. O edifício reflete o gosto que nas primeiras décadas do séc. XX inspira a maioria das restantes construções da freguesia do Monte, com três pisos e um andar de águas furtadas, grandes varandas a percorrer as fachadas ao longo dos dois pisos inferiores e as coberturas por empenas agudas, ressalvadas por decorações ao gosto dos lambrequins, genericamente designadas por chalés alpinos, gosto que proliferou então por toda a Europa. Em 1901, também o Brown’s Guide anunciava o Reid’s Mount Park Hotel, que, pelas fotografias que dele conhecemos, não passava de uma simples residência tradicional madeirense sumariamente dotada de alpendre para um pequeno bar exterior. Pelo contrário, algumas residências levantadas de raiz nos últimos anos do séc. XIX, como a do comerciante Alfredo Guilherme Rodrigues (1862-1942), a partir de 1897, data em que adquiriu a parte sul da antiga Qt. do Prazer, ganharam um espírito totalmente diferente. Alfredo Guilherme Rodrigues ter-se-ia inspirado nos palacetes que observara nas margens do Reno, numa viagem à Alemanha que fizera poucos anos antes, construindo um dos mais emblemáticos edifícios da freguesia, com a cobertura muito inclinada e rematada por pináculos, que, aliada às altas chaminés, ainda aumentava mais a elegância e verticalidade da construção. O edifício assenta numa larga plataforma com uma fantástica vista sobre a cidade do Funchal, articulando-se ainda com outra varanda adossada ao corpo principal e assente em arcaria. Os jardins dispõem-se em socalcos e possuem uma das mais românticas lagoas da Madeira, inclusivamente dotada de um fontanário inspirado num baluarte redondo militar. Em 1904 já estava adaptado a hotel, o então Monte Palace Hotel, e nos anos seguintes seria uma das imagens mais divulgadas da Madeira. O Monte Palace Hotel era muito procurado por estrangeiros na déc. de 20, assim como o local ideal de casamentos e outras festas, tendo ali ficado instalado António de Oliveira Salazar (1889-1970) (Salazar, António de Oliveira) na sua visita à Madeira, em abril de 1925, quando, juntamente com Mário de Figueiredo (1890-1969), e a convite de elementos do Centro Católico, foi apresentar as suas ideias de Governo para Portugal. O local tinha-se tornado igualmente lendário com as festas da Escola Laical de O Vintém (Escola Laical), entrando em dificuldades no final da déc. de 40, face à Segunda Guerra Mundial e às partilhas entre os herdeiros. Ainda veio a ser adquirido pela Companhia de Caminhos de Ferro do Monte, em 1957, numa efémera tentativa de relançamento da Companhia. Somente nos finais da déc. de 80 é que o edifício viria a adquirir o seu anterior esplendor, com a aquisição por Joe Berardo (1944-), para doação à fundação que tem o seu nome, tendo-se os seus jardins tornado igualmente um dos cartazes turísticos mais importantes da freguesia. Com o prolongamento da linha do caminho de ferro, em 1910, até ao Terreiro da Luta, a Companhia ali levantou, também, um Restaurante Esplanada, num local que, pela sua situação, se tornou igualmente emblemático, sendo internacionalmente divulgado, em especial através das reproduções das aguarelas do pintor Max Römer. O edifício não se afasta dos padrões de gosto dos chalés europeus dos inícios do século, embora de um só piso aparente, sendo equipado para nascente com uma torre ao gosto dos castelos medievais, encimada por ameias e merlões, de profundo sentido romântico. Foi dos poucos edifícios que conseguiu resistir às alterações de gosto e de mercado, ainda funcionando como restaurante e esplanada nos começos do séc. XXI. O mesmo não aconteceu com o enorme chalé do banqueiro Manuel Gonçalves (1867-1919) (Gonçalves, Manuel), o polémico homem forte dos interesses alemães na Madeira. O edifício inspira-se nos castelos medievais do Norte da Europa e é coroado por uma interessante torre com coruchéu sextavado de idêntica inspiração, sendo a fachada, virada para sul, totalmente percorrida por uma varanda corrida, tanto no piso térreo como no superior. O banqueiro faleceu neste chalé que, pouco tempo depois, foi adaptado a The Mount Royal Hotel, assim vindo publicitado no Power’s Guide de 1930. O início da época dos Grandes Hotéis O espaço entre as duas guerras mundiais marca já um volume exponencial do tráfego marítimo e a correspondente necessidade de aumento da capacidade hoteleira da área do Funchal. Assiste-se então a sucessivas ampliações dos anteriores edifícios e a uma progressiva apropriação da orla marítima pelas principais unidades hoteleiras, aspeto que, uns anos antes, já era patente na construção de raiz do New Reid’s Hotel, mesmo antes de passar a Reid’s Palace Hotel, o que também foi quase imediato. A cidade do Funchal vai expandir-se para poente, tendência geral das grandes cidades europeias, numa apropriação dos espaços de fim de tarde como horário privilegiado de lazer. As acessibilidades tinham começado com a construção da Est. Monumental, unindo a cidade do Funchal a Câmara de Lobos, o que obrigara à construção de uma série de pontes sobre as inúmeras ribeiras existentes e junto das quais iriam nascer as principais unidades hoteleiras. Em 1898, a fazer fé no Power’s Guide de 1914, foi estabelecido a Este da foz do Ribeiro Seco o Atlantic Hotel, ampliado em 1913. A edificação original não se afastava das anteriores quintas de aluguer, mas a reconstrução desse último ano já apresentava um andar nobre com varanda corrida para Sul e um andar superior em mansarda. Possuía ainda corpos adossados, sendo o corpo para poente dotado de terraço, e incorporava na área duas ou três residências preexistentes. Já possuía, assim, um importante jardim com terraço com vista sobre o porto e, em breve, apropriar-se-ia da praia, construindo aí instalações balneárias, divulgadas através das aguarelas promocionais de Max Römer, embora o edifício representado – dadas as fotografias que conhecemos – em princípio não fosse o do Atlantic Hotel. Em julho de 1936, entrava na Câmara Municipal do Funchal um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares (1892- 1983) (Tavares, Edmundo), que no ano anterior executara um projeto semelhante para o vizinho Savoy Hotel. O projeto não alterava a volumetria, limitando-se a reformular a entrada, dotando-a de um pórtico neoclássico exterior; no interior, criava um átrio de entrada com receção, que não existia. Por 1970, o conjunto seria totalmente demolido e, no seu local, levantado um importante edifício, então entregue à cadeia internacional Sheraton, inaugurado a 20 de novembro de 1972. O conjunto foi ainda prolongado pouco depois, descendo ao longo da falésia com novos apartamentos e piscinas e, alguns anos depois, foi adquirido pelo Grupo Pestana, que nele instalou o Pestana Carlton Hotel. Muito próximo e para nascente da margem do Ribeiro Seco, pelas últimas décadas do séc. XX, era construído o Royal Hotel, ainda dentro da tradição do turismo terapêutico, constituído por 2 corpos e uma torre central, sendo o 1.º andar totalmente preenchido por uma varanda de repouso, que recorria a uma armação estrutural de ferro fundido. O edifício parece ter recorrido a uma residência anterior, sendo a entrada no 1.º andar ladeada por dois óculos de cantaria aparente, dentro da tradição local. A entrada efetuava-se pela R. Imperatriz D. Amélia e, nos seus jardins, contava também com um court de ténis. No final da última década do séc. XIX foi adquirido por José Dias do Nascimento (1868-1934), passando a designar-se Savoy Hotel e, em 1912, já tinha 24 quartos. Nos meados da déc. de 20 do séc. XX , seria totalmente demolido, levantando-se no seu local uma enorme estrutura, para a época, com uma fachada voltada para sul de cinco pisos e integrando ainda duas torres de mais dois pisos. Em 1928, abria, assim, com 220 camas, tendo o espaço até à R. Imperatriz D. Amélia sido de novo ajardinado. Em abril de 1935, entrava na Câmara Municipal do Funchal um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares, mas que não alterava significativamente o que estava construído e que se limitava à construção de um anexo para salão de jantar. Cerca de 10 anos depois, à semelhança do Reid’s Palace Hotel e Atlantic Hotel, o Savoy Hotel conseguiria também acesso ao mar, construindo uma nova estrutura na falésia, então independente do edifício principal, que chegou a ter a designação de Savoy Hotel Lido. As instalações balneárias do Savoy Hotel não pararam de crescer e, na déc. de 60, o edifício principal seria parcialmente demolido, construindo-se, no mesmo local, um dos maiores hotéis da cidade, que, em 1970, abria com 750 camas. O edifício tinha já entrada pela nova Av. do Infante e apresentava oito pisos em dois blocos compactos, rematados no piso superior por um restaurante panorâmico e uma boîte. Em 2002, a área das piscinas reformulava-se como Royal Savoy, num mega projeto de luxo, e o edifício superior dos finais da déc. de 60 era objeto de idêntico mega projeto, sendo demolido em 2011, mas acabando o projeto por ficar pelas fundações. Em 2013, um dos herdeiros do fundador e dos últimos gestores desta unidade hoteleira, António Drumond Borges, editou uma coleção de memórias destes três emblemáticos hotéis madeirenses. Alguns pequenos hotéis foram resistindo à concentração nas grandes cadeias, mantendo-se quase privados, como ocorreu com o Hotel da Bela Vista, situado atrás do Hospício da Princesa D. Maria Amélia e com acesso pela R. do Jasmineiro, que foi crescendo nos últimos anos do séc. XIX. O hotel teve por base uma residência dos meados do séc. XIX, com um bom parque envolvente e uma situação invejável que lhe deu o nome de Bela Vista ou Bella Vista. Este hotel é mencionado no guia de Paul Langerhans, em 1885, como Falkner’s Private Hotel, embora, entre 1891 e 1901, esteja registado em nome de Eugénio Jones. A construção da aparatosa e enorme varanda de repouso deverá ter sido feita pouco depois, ocupando o espaço que foi depois a sala de jantar do Seminário Diocesano, entidade que viria a ocupar o imóvel. Este hotel deveria ter gozado de uma certa independência em relação às estruturas turísticas e deveria ter captado uma especial clientela, pois é, porventura, uma das unidades turísticas mais fotografadas nos finais do séc. XIX e nos inícios do séc. XX, especialmente a base das escadas de acesso ao jardim, onde os vários turistas aparecem fotografados em redes e em carro de bois. Com a expansão da cidade para poente, a construção do complexo desportivo do Lido (Complexo desportivo do Lido), do Clube Naval (Clube Naval) e do Clube de Turismo (Clube de Turismo), entre outros, ainda na déc. de 30 do séc. XX , surgia no caminho velho da Ajuda, mais um hotel, o New English Hotel, adaptando uma anterior residência ao modelo dos velhos hotéis do turismo terapêutico, com a justaposição à fachada de um corpo de varandas apoiado em colunas de ferro forjado, a que se acrescentou, para poente, idêntico corpo mais pequeno. O esquema repetia quase o do inicial Royal Hotel, que tinha dado origem ao Savoy Hotel, transformando somente em torre aparente a anterior janela de mansarda, num esquema tradicionalista e já perfeitamente retrógrado para a época. Nos finais do século, o edifício viria a ser adaptado para sede da Fundação Cecília Zino (Fundação Cecília Zino). A construção do aeroporto e o aumento do porto Os meados do séc. XX foram marcados, na Madeira, pela emergência do grande turismo internacional, com a montagem da primeira empresa privada britânica de transporte aéreo a operar um serviço internacional regular, em 1949, com os chamados “barcos voadores” da Aquila Airways (Aquila Airways), a que se seguiu a ampliação do porto do Funchal (Porto do Funchal), então capaz de receber, com cais de acostagem, os grandes paquetes internacionais e, na déc. de 60, a construção do aeroporto do Porto Santo e, mais tarde, do aeroporto de Santa Catarina, em Santa Cruz, na Madeira, sucessivamente Aeroporto da Madeira e Aeroporto Cristiano Ronaldo (Aeroportos). A adaptação, evidentemente, não foi imediata, voltando-se, para o efeito, a reformular anteriores residências, como foi o caso da inicial residência levantada por Salomão da Veiga França (1893-1961), na Est. Monumental, que já aparece no Power’s Guide de 1930 como Miramar Hotel. O Miramar Hotel foi objeto, em julho de 1938, de um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares, que alterou significativamente a volumetria, acrescentando um amplo corpo de dois pisos para poente, tendo sido utilizado para apoio às tripulações da Aquila Airways, tal como, na Segunda Guerra Mundial já tinha sido utilizado para a comunidade refugiada britânica de Gibraltar (Gibraltinas). Este antigo hotel, profundamente ampliado e reinterpretado, deu origem, em 1990, ao Pestana Miramar Hotel. Idêntico percurso teve a antiga residência de Francisco Conceição Rodrigues, que fora diretor do Diário de Notícias, junto da ponte do Ribeiro Seco, na R. do Favila, cuja construção foi interrompida em 1927 com a saída do proprietário do Funchal. O edifício de dois pisos, com uma ampla varanda corrida ao longo da fachada, viria a albergar o Casino Monumental, assim chamado dada a proximidade da Est. Monumental e, ainda na déc. de 30, seria ampliado para poente com mais dois pisos, dando origem, na déc. de 40, ao Hotel Nova Avenida, ou New Avenue Hotel, em homenagem à ampliação da Av. do Infante. Sem especiais alterações, nos finais do século, viria a albergar o Conservatório e Escola Profissional das Artes Engº Luiz Peter Clode. As décs. de 50 e 60 abriram perspetivas totalmente novas à Madeira, com as novas ligações aéreas da Aquila Airways, que a 1 de janeiro de 1950 trouxeram à Madeira o chefe do partido conservador inglês, sir Winston Leonard Spencer Churchill (1874-1965), que se instalou no Reid’s Palace Hotel, onde permaneceu 11 dias, embora regressando a Londres de navio; tal como, no final do ano seguinte, a jovem Margaret Thatcher (1925-2013) que, em lua de mel, se hospedou no Savoy Hotel. O novo ciclo económico, especialmente vocacionado para o turismo, é patente, e.g., na diversificação dos investimentos da Casa Hinton, essencialmente vocacionada para a moagem, que, ao longo desses anos, diminui a atividade, passando a Fábrica do Torreão a funcionar sazonalmente. O comendador Harry Hinton (1857-1948) (Hinton, Harry) falece a 16 de abril de 1948 e, num curto espaço de dois anos e pouco, o herdeiro, George Welsh (1895-1981), investe igualmente na indústria hoteleira, abrindo o Hotel Santa Isabel, junto ao Savoy, na Av. do Infante, em frente ao então recente Hotel Nova Avenida, pouco depois ampliado e pronto para a abertura no outono de 1960. Em termos de política económica nacional, a déc. de 50 iniciou-se com o I Plano de Fomento (1953-1958) que, entre vários objetivos, apontava para um plano de realizações no campo da agricultura, privilegiando a colonização interna e tentando assim fixar as populações no campo, de onde cada vez mais fugiam. Tal como no continente, o plano, na Madeira, era essencialmente direcionado para o aproveitamento hidroelétrico e para os aspetos gerais dos transportes, onde o país apresentava um franco atraso. O projeto vinha da Lei de Reconstituição Económica de 1935 e deu origem, na Madeira, à reformulação do sistema de levadas (Levadas) e ao seu aproveitamento para o fornecimento de energia elétrica à cidade do Funchal e ao respetivo parque hoteleiro. A cidade expandiu-se, então, decididamente para poente, sendo na área do Lido que vão surgir progressivamente novos hotéis, cuja construção, ao longo da déc. de 60, chega quase à praia Formosa, com o Hotel Madeira Palácio, em cujo capital chega a participar a TAP, transportadora aérea portuguesa. Com a abertura do aeroporto de Santa Catarina, inaugurado a 8 de julho de 1964, a empresária Fernanda Pires da Silva (n. 1926), presidente do Grupo Grão-Pará, iniciou os trabalhos para a montagem na área do complexo turístico da Matur, em Água de Pena (1972-1999). A 20 de novembro de 1972 eram assim inaugurados os grandes hotéis construídos de raiz na época, a saber, o Sheraton, no Funchal, onde se havia levantado o antigo Hotel Atlântico, e o Atlantis Holiday Inn, junto ao aeroporto, como os restantes hotéis dessa cadeia internacional. Para a inauguração, deslocou-se, mais uma vez, à Madeira, o chefe de Estado, Alm. Américo Thomaz (1894-1987), que ainda inauguraria o bairro social do Grémio dos Bordados (Grémio dos Bordados), acima da Qt. do Til, no Funchal. O complexo da Matur representava uma inovação no contexto da hotelaria insular, afastando-se do Funchal algumas dezenas de quilómetros. Era filosofia da cadeia hoteleira Holiday Inn, com a qual o Grupo Grão Pará trabalhava, procurar novos espaços e localizar-se nas imediações de aeroportos, permitindo uma rápida instalação dos utentes e, igualmente, uma rápida saída. O complexo possuía outro aspeto mais ou menos inovador à época, que era a articulação com pequenos apartamentos de férias, independentes da unidade hoteleira-mãe, o que, na área do Lido, no Funchal, igualmente se ensaiava com os apartotel. A Matur encontrava-se dotada também de um amplo parque ajardinado, com instalações para congressos, clube de bridge, restaurantes, piscina olímpica, etc. As alterações do mercado turístico, nos anos seguintes, colocaram em causa o projeto e a ampliação do aeroporto levou à necessidade de demolição do Atlantis, que, com os seus 17 pisos, levantava questões de segurança ao tráfico aéreo, o que veio a acontecer, por implosão, a 22 de março de 2000. A grande obra de arquitetura desta época foi o complexo do Casino Parque Hotel (Casino Parque Hotel), posteriormente Pestana Casino Park, projetado sumariamente pelo arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer (1907-2012), em 1966, e executado pelo arquiteto português Alfredo Viana de Lima (1913-1991) que, tal como Niemeyer, fora discípulo do arquiteto francês Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido como “Le Corbusier” (1887-1965). A atuação de Niemeyer foi muito limitada, não passando de esquiço e, depois, de um anteprojeto na escala de 1:500, tendo o desenho definitivo, de 1970, os detalhes e o acompanhamento sido feitos pelo arquiteto português. Teria havido, inclusivamente, divergências ao longo da execução do projeto, e.g. em relação a parte da estrutura ficar assente em pilares, uma vez que o Casino Parque Hotel era construído nos terrenos da antiga Qt. Vigia, que eram terrenos públicos, tendo Viana de Lima sido inflexível no respeito do anteprojeto, enquanto Niemeyer, então em Paris, chegara a condescender. O resultado é uma obra-prima de desenho e de arquitetura brutalista dessa época, acrescida ainda da participação, no desenho da arquitetura de interiores, do arquiteto Daciano Costa (1930-2005). Uma das poucas características da arquitetura do turismo de lazer na Madeira parece ser a sua muito especial relação com a paisagem envolvente, através da contínua criação de possibilidades múltiplas de observação e de usufruto da mesma, através de miradouros. Nos inícios do séc. XX, quando o arquiteto Ventura Terra elabora o seu plano de urbanismo para o Funchal, o acesso e a construção de miradouros foi uma das diretivas mais expressas. Nos anos seguintes, estas estruturas situadas nas encostas da cidade serão uma das prioridades camarárias, e, a partir da déc. de 40, uma das preocupações da Delegação de Turismo da Madeira (Delegação de Turismo da Madeira). O domínio quase absoluto do turismo de origem britânica e dos empresários dessa nacionalidade levou a que a arquitetura do turismo de lazer, na Madeira, não ganhasse características especialmente locais, embora utilizando mão de obra local e um saber artesanal ancestral, que informara de uma forma geral a arquitetura insular como uma arquitetura sem arquitetos. Os modelos vão ser, assim, importados, como os chalés do norte e centro da Europa e, depois, os modelos internacionais ensaiados nos grandes centros turísticos internacionais. Nem o recurso a arquitetos de gosto nacionalista, como o caso de Edmundo Tavares, que fez pelo menos três projetos de reforma em hotéis nos meados da déc. de 30 do séc. XX, permitiu criar alguma coisa que lembrasse muito especialmente esse tipo de gosto, até por estar a trabalhar para uma clientela internacional. Nas décadas seguintes, e dada a circulação exponencial dos modelos internacionais, também serão esses a ser levantados na Madeira, tendo sempre em vista que o turista só muito raramente poderia ser nacional. Acresce que, sendo o mercado turístico altamente competitivo e sujeito às constantes alterações do gosto internacional, a tendência para a constante reformulação dos edifícios e dos seus equipamentos leva à eliminação de quase todas as preexistências em nome da novidade e do moderno. Mesmo em casos de indiscutível e internacional qualidade, como o do Reid’s Palace Hotel e do Casino Park Hotel, a tendência e a necessidade de inovação representam sempre um alto risco para o património arquitetónico edificado e, mais ainda, para a arquitetura de interiores. O desenvolvimento da cidade para poente, como acontece nas principais congéneres portuárias do Sul da Europa, levou à criação de uma zona de lazer especialmente vocacionada para parque hoteleiro, a área do Lido, a par de uma zona de montanha, a freguesia do Monte. No entanto, se a zona do Lido preservaria essas características, embora mesclada de parque habitacional, tal parece, de certa forma, ter-se gorado no Monte. A construção de acessibilidades múltiplas e, especialmente, a construção do teleférico, associada a uma cada vez mais rápida passagem do turista, tem dificultado a manutenção, no Monte, de determinado tipo de serviços, tais como a restauração e o alojamento, face à sua pouca rentabilidade. A passagem do séc. XX para o séc. XXI apresentou alguns aspetos inovadores, com uma nova apetência de alguns segmentos do turismo nacional e internacional para outros tipos de lazer, fora das grandes cidades e com outro género de ocupação do tempo. Tal permitiu a execução de projetos arquitetónicos de raiz muito inovadores, tal como a reabilitação de antigas quintas e propriedades rurais, que se afastam profundamente dos pressupostos gerais que nortearam o turismo ao longo da segunda metade do séc. XX, especialmente o de massas.     Rui Carita (atualizado 14.12.2016)

Arquitetura Património História Económica e Social

archais, associação de arqueologia e defesa do património da madeira

A ARCHAIS nasceu a 15 de abril de 1998. A sua atuação engloba a área da arqueologia e luta pela defesa do património cultural. Como obra fundamental de arranque, realizou o projeto cultural do Solar do Ribeirinho, em Machico, distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Realizou inúmeros encontros, seminários e publicações diversas. Palavras-chave: arqueologia; associações culturais; defesa do património; inventários; recriações históricas.   A ARCHAIS, acrónimo da Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira, inspirado na palavra grega Arkhais que significa “antigo”, nasceu a 15 de abril de 1998, data em que formalmente registou os seus estatutos, então com sede no Sítio do Povo, em Gaula, Santa Cruz. A ARCHAIS surgiu na sequência de uma série de associações deste âmbito que proliferaram em Portugal continental e na ilha da Madeira durante as décs. de 80 e de 90, mas quase sempre, por razões de ordem vária, quer políticas quer sociais, de duração efémera. Os sócios fundadores foram Arlindo Quintal Rodrigues, Richard da Mata e Élvio Sousa. A associação assumiu-se desde logo como sociedade sem fins lucrativos, apartidária e não religiosa, visando desenvolver na RAM uma série de atividades de forma a defender os valores relacionados com a arqueologia e com o património, e a enriquecer o espírito de grupo e a cidadania. Os elementos fundadores já se encontravam a trabalhar desde 1997 pelo menos, procurando fazer um diagnóstico da situação do património cultural a nível regional. Foi com base nesse diagnóstico que vieram a assumir intervenções em várias frentes, especialmente na promoção de campanhas e de trabalhos na área da arqueologia, criando, inclusivamente, não só uma escola de arqueologia para o ensino, a formação e a promoção das campanhas a efetuar, e a promoção de cursos técnicos de introdução e de iniciação à arqueologia, à conservação e ao restauro, mas também visitas de alerta para a preservação geral do património cultural material do passado. No final da primeira década do séc. XXI, foi lançado o Portal do Arqueólogo, dedicado a todos os profissionais da área da arqueologia. Este serviço pretendia facilitar e agilizar os procedimentos decorrentes da prática profissional da arqueologia no território continental e promover a dinâmica entre a tutela do património arqueológico e o trabalhador/investigador. A obra fundamental de arranque do projeto cultural da ARCHAIS foi o trabalho de arqueologia desenvolvido a partir do Solar do Ribeirinho, em Machico, coordenado pelo Prof. Arlindo Rodrigues, que se estendeu a outros locais da cidade, tendo depois o solar sido transformado em museu, com projeto do arquiteto Vítor Mestre, que, em 2016, foi distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Solar do Ribeirinho. Tapete.     Escavação Junta de Freguesia de Machico   Foi no projeto de escavação da área do solar que se alicerçaram, de imediato, outras iniciativas, tal como a realização do I Encontro Regional de Arqueologia e Património, no Funchal, a 26 e 27 de abril de 2000, cujos conteúdos foram depois publicados no Livro Branco do Património (2003). Outros encontros seguiram-se, e.g.: Legislação e Património, Arqueologia e História e Mesa-Redonda sobre a Nova-Lei de Bases do Património. Partindo da premissa de que publicar seria a melhor forma de defender e de valorizar o património e o trabalho desenvolvido, foram sendo dados à estampa não só vários estudos temáticos, tais como A Propósito do Solar do Ribeirinho (2000) e Iluminação Pública em Machico (2001), mas também inventários gerais de património de cidades e de freguesias da Região, com o apoio fundamental das Câmaras Municipais e de outras instituições.   As atividades de defesa do património da ARCHAIS estenderam-se ainda ao património cultural e ao imaterial, tendo-se tais ações integrado especialmente nos chamados mercados quinhentistas (recriações históricas muito divulgadas por toda a Europa desde os finais do séc. XX, de que o mercado de Machico se tornou paradigmático na Região). Estes eventos começaram com vários elementos ligados à Associação, com o apoio da Câmara de Machico e da Escola Básica e Secundária de Machico, quer na orientação dos professores quer na participação dos alunos, tendo-se alargado progressivamente. Naqueles mercados quinhentistas organizaram-se também colóquios sobre o património cultural imaterial que, embora não surgissem com a chancela da ARCHAIS, tinham a sua marca de origem. A atividade da ARCHAIS é indissociável da revista Ilharq, cujo n.º 0 apareceu em 2000 e o n.º 1, em 2001,e que abarca um amplo leque de temas, especialmente na área do património arqueológico. A partir do seu n.º 8, a revista começou a apresentar uma periodicidade bianual com o apoio da Câmara Municipal de Machico, e a ARCHAIS começou a ter a sua sede na antiga escola do Sítio dos Maroços, em Machico. O n.º 11 foi apresentado no Solar do Ribeirinho, a 11 de dezembro de 2015, reunindo um conjunto de artigos sobre o concelho de Machico, e revelando temáticas tais como a história regional e local, o património arquitetónico, a arte, a azulejaria, a etnografia, as tradições e as vivências quotidianas. Desde o nascimento da ARCHAIS, em 1998, foram sendo publicados também boletins informativos, acompanhados de imagens das atividades da Associação, tendo os primeiros boletins começado com uma periodicidade quadrimestral, evoluindo para uma periocidade semestral, e acabando, finalmente por se tornar anuais. A atividade da Associação, embora gozando do apoio de inúmeras personalidades nacionais ligadas à arqueologia, pretendendo intervir em toda a Ilha e arvorando-se de valores da cidadania participativa, encontrou alguma dificuldade no Funchal, devido a também existirem naquele local outras estruturas regionais e concelhias relacionadas com a área da arqueologia. Acresce que, embora assumindo-se como não partidária pelos seus estatutos, teria sido no seio desta associação, ou pelo menos com elementos ligados à mesma, que surgiu a formação partidária Juntos pelo Povo (Partidos políticos), que conquistou rapidamente representação autárquica e regional. Nesse sentido e torneando essas dificuldades, a ARCHAIS e os elementos ligados à mesma apostaram na diversificação de polos de desenvolvimento, fundando, por exemplo, o Centro de Estudos em Arqueologia Moderna e Contemporânea (CEAM), que, em união com outras entidades, desenvolveram projetos alternativos e apostaram em interessantes iniciativas vocacionadas para as camadas mais jovens (e.g., os chamados Giro de Património e os roteiros juvenis), com bastante sucesso. Estas ações, que pretendiam divulgar a realidade patrimonial local numa perspetiva de sensibilização para a necessidade de proteger, de preservar e de valorizar a mesma, conseguiram assim estender-se a quase toda a Ilha, inclusivamente às várias freguesias do Funchal, com o apoio das respetivas juntas de freguesia. O primeiro Giro, intitulado Património Histórico de Machico, editado com o apoio da Câmara Municipal de Machico, com textos de Isabel Gouveia e de Virgínia Nóia, e com design de Ricardo Caldeira, teve edição em abril de 2000; seguiu-se-lhe o Giro pelo Património Edificado de Santa Cruz, em 2001, com o mesmo design, texto de João Lino Pereira Moreira e fotografias de Élvio Duarte Martins Sousa. O sucesso da iniciativa levou a que ambos estes giros tivessem nova edição, seguindo-se, ainda em 2001, o Giro pelo Património Edificado da Ponta do Sol, com texto de Emanuel Gaspar e com o apoio da respetiva Câmara. Seguiram-se o Giro pelo Património Cultural de Santana, em 2002, e o Património Edificado da Ribeira Brava e Histórico-Arquitetónico da Calheta, em 2004, tendo sido depois promovidos, nas freguesias do Funchal, o Histórico de Santa Maria Maior, em 2005, o Histórico da Sé, em 2006, o Histórico de São Pedro, também em 2006, e o Histórico do Monte, em 2007. A ARCHAIS lançou ainda, em formato de livros de bolso, facilmente consultáveis em caminhadas, vários roteiros culturais das freguesias da zona leste da Madeira: o do Caniçal, o do Santo da Serra, o da Água de Pena, o do Porto da Cruz, o de São Jorge, e o de Gaula e de Caniço, entre outras.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

Arquitetura Património Madeira Cultural

arquitetura militar

A consciência da necessidade de fortificação das ilhas atlânticas com vista às alterações do quadro estratégico do Atlântico Norte foi tardia, ao contrário do que sucedeu no Norte de África, onde uma população islamizada nunca aceitou de bom grado a presença portuguesa, obrigando à rápida construção de estruturas defensivas. No entanto, o termo arquitetura militar envolve outros pressupostos, inclusivamente teóricos, pelo que a sua incipiente instalação na Ilha, ao longo do séc. XV e perante a inexistência de um inimigo imediato, dificulta a escrita sobre o tema. Claro que se construíram estruturas defensivas, como a torre do Capitão, em Santo Amaro, no Funchal ou a torre dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol, mas foi principalmente por questões de prestígio (Arquitetura senhorial). Mesmo o pedido de construção de uma fortaleza feito à infanta D. Beatriz, em 1475 e a construção do chamado baluarte do Funchal (a fortaleza e palácio de São Lourenço), em 1540, resultaram mais em edificações senhoriais do que militares, numa época em que já se começava a equacionar outro tipo de construções, mas não a entendê-las totalmente. Nos meados do séc. XV, começou a ser introduzido em Portugal armamento de fogo, o que, a par das novas bestas com tração mecânica, por exemplo, alterou os pressupostos das construções defensivas. A utilização de armamento de fogo pesado obrigou ao reforço das antigas muralhas com sapatas e, progressivamente, foram desaparecendo as altas torres de menagem, alvos facilmente reconhecíveis à distância e também facilmente derrubáveis. A primeira fortificação construída na Madeira, pedida em 1528, determinada em 1529, mas só levantada entre 1540 e 1541, dirigindo a obra o pedreiro Estêvão Gomes, era uma fortificação de transição, não sendo ainda aquilo que se denominaria posteriormente “fortificação moderna”, “regular”, divulgada pelos novos tratados internacionais. O baluarte do Funchal implicou a construção de uma torre semioval, assente nos afloramentos rochosos da praia, ostentando os emblemas e as armas reais, articulada com uma muralha a correr sobre o chamado altinho das fontes de João Dinis, que envolvia as casas do capitão. Ao lado das fontes, o baluarte ou fortaleza tinha um torreão-cisterna que, flanqueando a muralha, protegia a aguada dos navios e a população na praia do Funchal. A fortaleza do Funchal e a organização geral defensiva militar mostrou-se assim totalmente incapaz perante o ataque corsário francês de outubro de 1566. A fortaleza foi atacada por terra, onde não possuía qualquer proteção e, não sendo possível movimentar as pesadas bocas de fogo em direção ao mar, não resistiu ao ataque, sofrendo a cidade um pesado saque de cerca de 15 dias a que quase nada escapou. A partir de então, a atenção da corte de Lisboa virou-se para as ilhas atlânticas e, logo na armada de socorro enviada à Madeira, terá viajado um arquiteto militar altamente habilitado, o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), ligado à família dos arquitetos do mosteiro da Batalha, alguns militares continentais para reverem a organização das companhias de ordenanças e das vigias, ainda vindo alguns meses depois, dois técnicos militares italianos para o apoiarem. Data desta época a instalação em Lisboa de uma provedoria das obras reais, que passou a controlar a documentação expedida para o vasto império ultramarino português e à qual ficaria depois ligado o arquiteto mor do reino. O novo mestre das obras reais da Madeira, Mateus Fernandes, recebeu, nos primeiros dias de 1567, ordens várias, enviadas pela provedoria das obras, em Lisboa, entre as quais o Regimento das Vigias, datado de 22 de abril de 1567. Este documento serviu de ensaio ao regimento geral promulgado em todo o reino a 10 de dezembro de 1570. O Regimento das Vigias de 1567, dirigido ao capitão do Funchal, mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tomo 2, fl. 142v.). Este regimento avança ainda com outras diretivas respeitante à artilharia, tendo sido a base de muitos dos pequenos fortes ou fortins depois levantados pela Ilha. Assim, no reconhecimento que o capitão e os restantes elementos deveriam fazer dos lugares para “guarda do mar”, “surgidouros e desembarcadouros”, também deveriam ser contemplados os lugares “para guarda da terra” (Id., Ibid., fls. 109-112v.). Nesses lugares, deveriam ser levantadas estâncias para colocar artilharia, cuja praça deveria ser “chã e calçada como convém”, para que o pessoal depois ali em serviço se pudesse movimentar bem e as “rodas dos reparos estarem sempre enxutas, sem humidade de água ou lama” (Id., Ibid.). Deveria ainda ser montada uma casa sobradada para a pólvora, tal como uma guarita para observação e vigia. Em março de 1567, Mateus Fernandes recebeu a visita e o apoio de dois arquitetos italianos, Pompeo Arditi (c. 1520-1571) e Tomás Benedito (c. 1520-1567), ambos de Pézaro, que lhe entregaram um primeiro regimento de fortificação para o Funchal, datado de 14 de março desse ano. Estes italianos, com quem o mestre das obras reais já teria contactado no Norte de África, ficaram na Ilha cerca de um mês e seguiram depois para os Açores, onde aquele último reformulou e dirigiu a nova fortaleza de S. Brás, em Ponta Delgada. Com esta colaboração, o mestre das obras do Funchal levantou uma planta da cidade, algo que poderá também ter feito antes, hoje na Biblioteca Nacional do Brasil e imaginou uma enorme fortaleza para o morro da Pena, a descer até à praia do Funchal, ocupando toda a zona velha, conforme a entendemos no começo do séc. XXI, ou bairro de Santa Maria Maior. Fortaleza da Pena-1567. Arquivo Rui Carita.   A fortaleza do morro da Pena previa a construção de um importante complexo fortificado sobre esse morro, descendo parcialmente sobre o bairro de Santa Maria com dois núcleos defensivos abaluartados, sendo a fortaleza parcialmente rodeada por fosso e tendo o total do conjunto uma dimensão que só veio a ter paralelo em Portugal durante o séc. XVII e com as guerras da aclamação de D. João IV. Mateus Fernandes ultrapassou francamente a sua época com um planeamento desta envergadura, o mais antigo que conhecemos em Portugal e que poderia recolher no seu interior toda a população da cidade do Funchal em caso de perigo. A existirem algumas semelhanças, somente com a fortaleza de S. Filipe, planeada dez anos depois para Setúbal pelo italiano Jacomo Palearo, el Fratin (c. 1520-1586) e levantada sob a direção de Filipe Terzi (1520-1597), ou com a congénere da Ribeira Grande, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, em princípio, projetada pelo mesmo Filipe Terzi, sendo que nenhuma delas tinha a dimensão da delineada para a do Funchal. O planeamento compreendia dois núcleos abaluartados: um sobre o morro da Pena e outro na baixa do bairro de Santa Maria, que desapareceu totalmente com a construção da monumental fortaleza. O núcleo mais alto, sobre o morro, era dotado com dois terraplenos, tendo o de cima quatro baluartes pentagonais e o de baixo dois baluartes retangulares, com canhoneiras a flanquearem as muralhas de união dos dois terraplenos. Indicam-se no projeto as diferenças de altura das várias áreas para o leito da ribeira de João Gomes, que chegavam aos 140 palmos, ou seja, quase 30 m. Um corredor murado sobre a ribeira ligava os dois núcleos, com canhoneiras a flanquearem os muros a norte e a sul, utilizando-se a ribeira ainda como fosso. O núcleo inferior possuía uma enorme esplanada, delimitada por um baluarte pentagonal e dois meios baluartes. Mas o planeamento não foi aceite em Lisboa, optando-se por um esquema mais tradicional e reduzido para a futura fortaleza de S. Lourenço, articulado com panos de muralhas (Muralhas do Funchal). D. Sebastião enviou, assim, um novo regimento de fortificação, em 1572, no qual a cidade era envolvida, na frente mar e ao longo das ribeiras de João Gomes e de São João, por panos de muralhas que fechariam nos morros da Pena e de São João com pequenas posições fortificadas. A fortaleza central da cidade foi ampliada com o planeamento feito por Mateus Fernandes para o núcleo superior do morro da Pena, mas reduzida a menos de um terço das dimensões iniciais. Ficou com dois baluartes pentagonais gémeos virados a norte e um quadrangular, a proteger a zona ocidental, mantendo a nascente o baluarte joanino de 1541. Mais tarde, por volta de 1600, veio a ser dotada de um novo baluarte pentagonal, projeto de Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), para proteger a porta. Como apoio da fortaleza principal, foi executada uma pequena estância fortificada, a ocupar a foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes, a futura fortaleza de S. Filipe da Pç. do Pelourinho, havendo um pano de muralha a unir ambas, mas do qual quase nada ficou. A cidade considerada por D. Sebastião era já um pouco maior do que a de D. Manuel, isto é, o limite oriental passou da ribeira de Santa Luzia para a de João Gomes. No entanto, o primitivo bairro de Santa Maria do Calhau continuou a não ser considerado cidade, só vindo a possuir o seu troço amuralhado alguns anos depois e num outro enquadramento histórico. No verão de 1582, face à ameaça das armadas de D. António, prior do Crato, com base no arquipélago dos Açores, Filipe II mandou avançar, das Canárias, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598). As primeiras preocupações do conde de Lançarote foram para a segurança interna e externa da Ilha, começando por visitar as duas fortalezas com o mestre das obras reais Mateus Fernandes, inteirando-se do seu estado e das suas necessidades. Conforme informa a 18 e 26 de junho, a fortaleza velha era essencialmente um bom palácio residencial, mas encontrava-se cercada de edificações muito próximas e mais altas, pouco valendo, assim, como defesa. A nova ainda se encontrava em piores circunstâncias, pouco havendo a fazer para melhorar as suas condições, pois não só estava mal localizada como também se encontrava mal construída. Perante o conflito que opunha as forças de Filipe II às de D. António, prior do Crato, com franceses e ingleses, envolvendo muitas centenas de homens de parte a parte, a pequena estância “nova” da Pç. do Pelourinho do Funchal era mínima para as necessidades e a de S. Lourenço também oferecia muitas reservas face ao seu envolvimento. As fortalezas e o seu autor, o mestre das obras reais Mateus Fernandes, receberam as mais duras críticas dos governadores e técnicos desses finais de século, dado não estarem previstas para fazer frente a um conflito como o que se desenrolava. O problema de ampliação da muralha do Funchal à frente mar foi resolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), quando, em 1585, tomou posse da capitania do Funchal, determinando o prolongamento da muralha para nascente. Este troço de muralha ao longo do calhau chegou parcialmente ao séc. XXI, confrontando com o que é, no começo do segundo milénio, a entrada do hotel levantado no antigo arsenal de Santiago ou de S.ta Maria Maior. As obras do novo troço de muralha confinavam com os arrifes por de baixo da antiga igreja de Santiago Menor, justificando a construção de uma fortaleza nessa baixa. A fortaleza de Santiago deve ter tido projeto de Mateus Fernandes, mas terá sido reformulado depois por Jerónimo Jorge, enviado de Lisboa em 1595, até então a trabalhar nas obras de S. Julião da Barra e do forte do Bugio.   Penha de França. Arquivo Rui Carita.   Desde a união das duas coroas que se discutia no Funchal a muralha poente e a edificação de uma fortaleza no Pico dos Frias, “padrasto”, ou seja, mais alto que toda a cidade e, inclusivamente, com comandamento sobre a fortaleza de S. Lourenço, tendo sido elaborado, de imediato, um projeto da autoria de Mateus Fernandes (Fortaleza do Pico). A situação foi ultrapassada pelo governador Cristóvão Falcão de Sousa, que após tomar consciência das necessidades da defesa do Funchal, em finais de 1601, enviou a Lisboa o sargento-mor da cidade, Roque Borges de Sousa, com uma planta da nova fortificação, por certo, a que fora executada por Mateus Fernandes, pois só nessa altura voltou à Ilha o fortificador Jerónimo Jorge. Regressado o sargento-mor ao Funchal, logo a fortaleza foi levantada, mas somente em madeira, encontrando-se já guarnecida nos inícios de 1602 e sendo passada a pedra e cal ao longo do século. Durante a mesma centúria, ainda seria levantada a bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega), constituída por um baluarte triangular avançado ao mar, construído sobre a cortina da cidade e a fortaleza do Ilhéu, no meio do porto do Funchal, ambas com projeto e direção do mestre das obras reais Bartolomeu João, (João, Bartolomeu). Consolidava-se, assim, uma rede de fortalezas modernas, constituídas por conjuntos de baluartes pentagonais, de paredes inclinadas e reforçados nos cunhais, como a fortaleza do Pico, quase de traçado regular, sendo a artilharia colocada nas esplanadas dos mesmos. As novas fortificações adaptavam-se ao terreno e às restantes estruturas defensivas, como os muros da cidade, podendo ser apenas quase estâncias de tiro e formando um conjunto articulado, cruzando fogos obrigatoriamente entre si. O centro de comando era a fortaleza de S. Lourenço e, dada a sua localização, a do Pico funcionava como cidadela ou seja, de recurso e refúgio para o caso de invasão da baixa da cidade. A defesa e a fortificação da Madeira foram revistas várias vezes no séc. XVII, mas os elementos produzidos não chegaram até nós. Nos finais da centúria, por exemplo, deslocaram-se à Madeira o capitão de engenheiros António Rodrigues Ribeiro e o engenheiro Manuel Gomes Ferreira, mas apenas sabemos que teria sido então executado o portão dos Varadouros, datado de 1689. Mais tarde, em 1705, Manuel Gomes Ferreira, citaria que haviam feito um levantamento quase total das costas da Ilha, mas do qual nada conhecemos. Tudo leva a crer que estes trabalhos tivessem ido com os seus autores para Lisboa e aguardassem aí despacho favorável, perdendo-se no curso do tempo. A primeira grande campanha de obras de fortificação do séc. XVIII decorreu no governo de Duarte Sodré Pereira, um fidalgo mercador que tomou posse a 29 de abril de 1704. Como ficou exarado no demolido forte novo de S. Pedro (Forte novo de S. Pedro), na praia do Funchal e onde se construiu mais tarde o campo do Almirante Reis, o governador mandou levantar esse forte, juntamente com os de Machico (Fortes de Machico), Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz) e Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), que se guarneceram de artilharia, tendo-se concluído todos os trabalhos em 1707. A data é referente ao forte novo de S. Pedro, pois a campanha geral de obras só foi terminada entre 1708, data limite das lápides e 1711, ano das últimas nomeações para os mesmos fortes. As estruturas levantadas não se afastam especialmente das do século anterior, embora tenham definido um novo modelo de fortificação triangular de uma só bateria, em que o lado virado a terra, em algumas, aparece dotado de torreão de gola, como no de S. Bento da Ribeira Brava, datado de 1708, ou no de S. João Batista do Porto Moniz, mais tardio, datado de 1758 (Forte do Porto Moniz). Nos finais do séc. XVIII procedeu-se a novo estudo de defesa da Ilha, determinado por D. Maria I, com data de 11 de junho de 1797, como vem referido na cartografia então levantada, pois não conhecemos registos no governo local. Para cumprir o plano determinado por D. Maria I, deslocou-se no ano seguinte para a Ilha o major do regimento de artilharia da corte, Inácio Joaquim de Castro, nomeado cavaleiro da Ordem de Cristo a 4 de dezembro de 1778, depois governador da ilha de São Miguel, nos Açores e da torre de S. Julião da Barra, em Lisboa. A instabilidade política dos anos seguintes não permitiu qualquer obra de fortificação e o que fora proposto em nada alterava o que estava feito. Os acontecimentos dos inícios do século seguinte, com a saída da corte para o Brasil, as ocupações inglesas do Funchal e mesmo a terrível aluvião de 1803, não só alteraram profundamente estes estudos como os levaram a outras resoluções, onde houve que equacionar não apenas a defesa imediata contra um ataque exterior. Com a referida aluvião, ocorrida a 9 de outubro, foi destacada para o Funchal uma equipa de engenheiros militares chefiada pelo brigadeiro, de origem francesa, Reinaldo Oudinot (1747-1807) e da qual fazia parte o então tenente Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), cujo primeiro trabalho foi o levantamento da planta do Funchal e dos estragos causados pela aluvião, porventura a melhor peça cartográfica efetuada na Madeira até essa data. A equipa foi para a Madeira, essencialmente, para colmatar os estragos da aluvião de 1803, mas num curto espaço de tempo alargou o trabalho à reforma da carta topográfica da Ilha e à defesa do Funchal, não só das intempéries, mas também numa perspetiva militar propriamente dita. Ao longo do ano de 1805, em abril, por exemplo, o brigadeiro Oudinot e Paulo Dias de Almeida ainda executaram as plantas da nova bateria das Fontes, que representa toda uma outra forma de entender a defesa e a arquitetura militares. A ideia já não era construir fortificações adaptadas ao terreno, mas grandes esplanadas capazes de receber as novas bocas de fogo, muito maiores do que as anteriores, necessitando assim de todo um outro campo de manobra. A bateria das Fontes veio a receber grande parte da guarnição da fortaleza e palácio de S. Lourenço, que a partir dos últimos anos do século anterior passara, essencialmente a palácio. Mais tarde, em 1824, sob a direção do brigadeiro engenheiro Raposo, o então tenente-coronel Paulo Dias de Almeida planeou uma estrutura idêntica de bateria rasante para a frente da velha fortaleza de Santiago, integrada então no novo molhe do cais do Funchal e que o mar rapidamente destruiu. Nos anos seguintes, Paulo Dias de Almeida dirigiu uma ampla campanha de obras militares nos pequenos fortes e vigias, desde o Funchal até Machico, motivada pela possibilidade de desembarque dos absolutistas, o que veio a acontecer a 22 de agosto de 1828, na baía daquela vila. A mais importante estrutura defensiva desta área era o forte novo do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), reforçado com forças mercenárias inglesas, porém, a explosão do paiol do mesmo levou à debandada das forças liberais, entrando os absolutistas no Funchal sem qualquer resistência. Os meados do séc. XIX assistiram à emergência dos engenheiros militares, aliás, e ao longo de décadas, à frente do governo português, verificando-se o mesmo, embora apenas pontualmente, na Madeira. Mas o seu domínio revelou-se essencialmente nas obras públicas, sendo necessário esperar pelos alvores da Primeira Grande Guerra para se fazerem obras especificamente militares no Funchal, de certa forma improvisadas, com as novas baterias de costa da antiga Q.ta Vigia e a bateria da Cancela, que dotadas com material do século anterior, pouco efeito tiveram nos dois bombardeamentos alemães sofridos pela cidade. Os trabalhos levados a efeito, tal como os seguintes, de 1940, com o deflagrar da Segunda Grande Guerra, no entanto, não se enquadram já bem na área da arquitetura militar, mas sim na da defesa. Nos finais do séc. XX houve um especial interesse pela arquitetura militar na ilha da Madeira, dadas as caraterísticas, de certa forma inovadoras, que a mesma possuía. Assim, foi objeto de uma exposição, efetuada nas comemorações nacionais do Dia de Portugal no Funchal, em 1981 e, no ano seguinte, remontada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa e, ainda depois, na Casa do Infante, no Porto e em Vila Viçosa. Em sequência e dentro do processo autonómico, muitas dessas edificações, já então sem específico interesse militar, vieram a transitar para a tutela da RAM.       Rui Carita (atualizado a 10.10.2016)

Arquitetura História Militar Património

arquitetura popular

A designação “arquitetura popular”, reporta-se tradicionalmente às casas do povo. Contudo, esta não é uma designação consensual; no mundo anglo-saxónico, e.g., o termo correspondente utilizado é “vernacular”. Segundo Paul Oliver em Dwellings, o termo “vernacular” é relativo aos edifícios que são integrados numa comunidade e construídos pelo povo para seu próprio uso, pelo que, e tendo em conta o desdobramento da palavra “vernacular” (“vern” significa povo e “cular” significa linguagem), o mesmo autor considera que este termo pode traduzir-se por “linguagem do povo”. Em Shelter and Society, o mesmo autor destaca a posição que Bernard Rudofsky desenvolve na obra Architecture Without Architects: “Attempts to break down our narrow concepts of art of building by introducing the unfamiliar world of non-pedigreed architecture. It is so little known that we don't even have a name for it. For want of generic label we shall call it vernacular, anonymous, spontaneous, indigenous, rural, as the case may be [a tentativa de pôr em causa os nossos conceitos limitados a propósito da arte da construção introduzindo neles o estranho mundo da arquitetura sem pedigree. Trata-se de um estilo tão desconhecido, que nem sequer tem nome. À falta de uma designação genérica, chamar-lhe-emos vernacular, anónimo, espontâneo, indígena e rural, conforme os casos]” (RUDOFSKY, 1964, 1). Este autor teve dificuldade em aceitar uma única designação para as construções referidas, e, por isso, considerou a possibilidade de a ampla diversidade de designações revelar por si só que se está a tratar de uma matéria em permanente movimento.   Diário gráfico da investigação de campo, dia 1 Maio (revisão da 1ª campanha de 1984-1985) [1996]   Os arquitetos que realizaram os inquéritos sobre arquitetura no continente (1955-1961), nos Açores (1982-2000), e na Madeira (1983-2002) optaram pela designação “arquitetura popular portuguesa”, enquanto os antropólogos optaram pela designação “arquitetura tradicional portuguesa”, considerando que esta é “o produto de adaptação do homem ao meio, ele reflete não só o meio geográfico natural, mas também o meio humano, histórico e cultural” (OLIVEIRA e GALHANO, 1992, 361). Esta abrangência do conceito assenta na importância das atividades que são geradas no território em redor das construções e que formam com ele uma indissociável unidade sociocultural. A casa rural é “concebida não apenas como um abrigo, mas sobretudo como um verdadeiro instrumento agrícola, que é preciso adaptar às necessidades de exploração da terra, designadamente no que se refere ao seu dimensionamento e à importância e distribuição relativa dos alojamentos das pessoas, dos estábulos e das lojas de arrumação das alfaias e ferramentas da lavoura” (OLIVEIRA e GALHANO, 1969, 13).   Depreende-se desta abordagem que é das atividades geradas num contexto territorial específico e realizadas com o objetivo de assegurar a cadeia operativa inerente às produções agrícolas e ao artesanato que lhes está associado, que surgem necessidades de espaço e funcionais, também específicas. Pelo que, há uma forte correlação entre a organização da vida rural e a organização da casa, da qual se evidencia a antropologia da sociedade rural.   Pinha de maçarocas a secar. Espaço exterior fronteiro à casa. Referta, Porto da Cruz [1996]     Sob a latada, na vindima junto à casa. Ponta Delgada [1996]   A apropriação e transformação do território das ilhas da Madeira e do Porto Santo para produção agrícola, sem antecedentes históricos, e a produção artesanal de ferramentas e artefactos, incluindo engenhos, reflete-se nos edifícios e nos espaços gerados com o propósito de levar estas ações a cabo, e que são, por isso mesmo, o resultado de necessidades em permanente processo de apuramento. Neste contexto, desenvolveram-se diversos estudos sobre a materialidade associada às alfaias agrícolas e inerentes tecnologias em articulação com as construções, em particular com as construções da casa e dos espaços exteriores com ela conectados.   Casas elementares, espaço exterior de continuidade. Rochão, Camacha [1996]   As características geográficas e o perfil psicológico das populações sujeitas durante séculos ao regime de colonia trazem especificidade a este processo. Jorge Freitas Branco, no seu livro Camponeses da Madeira (1987), sem nunca aludir à arquitetura popular, e só raramente se referir à casa dos camponeses, deixa claro que esta é a base da pirâmide social, e que se encontra condicionada pelo contexto rural, que está amarrado a uma geografia agreste e, sobretudo, à condição de população que cultiva e vive numa terra que não é sua, tendo de pagar uma renda a um senhorio: “A ruralidade insular estava dividida em duas esferas sociais envolvendo toda a organização social. Uma delas integrava os grandes senhores, os quais os camponeses tratavam por senhorios; uma outra abarcava a maioria esmagadora da população, os colonos, que se iam sucedendo de geração em geração, pois o contrato era hereditário” (FREITAS BRANCO, 1987, 156). É neste contexto que terá surgido uma arquitetura elementar, que terá evoluído desde o primitivo abrigo, apropriado à própria geografia do lugar de instalação, até modelos que procuravam tornar a casa cada vez mais autónoma, embora esta continuasse igualmente precária quanto à materialidade e à escassez de espaço. O regime de colonia e as suas variantes ao longo dos séculos, relacionadas com os ciclos de novas culturas introduzidas pelos morgados, terão sido determinantes na cadeia e no processo evolutivo de alguns modelos de casas rurais madeirenses até ao séc. XX.   Povoamento disperso em lombos. Penha d’Águia, Porto da Cruz [1996]   Este regime de posse de terra era de tal modo restritivo em relação aos direitos dos colonos que o estabelecimento de pequenas hierarquias, dentro do próprio grupo, era regulado, com o objetivo de preservar os interesses dos senhorios, que, receando que as sucessivas benfeitorias feitas pelos colonos alcançassem valores de indemnização incomportáveis, condicionavam o seu poder discricionário para lhes retirar as terras, como refere o autor anteriormente referido: “Alguns deles que eram caseiros, porque, além das condições já conhecidas e inerentes ao contrato de colonia, desfrutavam de uma cláusula suplementar, segundo a qual o senhorio lhes concedia o direito de morar na terra tomada de arrendamento, ou ainda de nela construírem casa própria. Nestes casos, a situação torna-se crítica quando um dos filhos do caseiro queria também fazer a sua casa para contrair matrimónio” (FREITAS BRANCO, 1987, 158). O contexto societário rural madeirense revela-se paradigmático pela forma particular como surgiu, influenciando direta e indiretamente a identidade arquitetónica em alguns dos modelos deste território. Há suficientes razões para considerar que a arquitetura vernacular madeirense deve ser considerada numa perspetiva histórica, que avalie a data do início do povoamento e os ciclos socioeconómicos que se terão repercutido na casa rural e urbana, mediante o estudo do dimensionamento dos alojamentos para as pessoas, os animais e as alfaias, o estudo dos materiais e sistemas construtivos adotados, da volumétrica e dos aspetos artísticos.   Casa de morgado. São Vicente [1996]   Casa de morgado. Espaço de transição urbano-rural. Arco da Calheta [1996]   Os modelos das casas, principalmente rurais, terão viajado do continente, na memória dos primeiros povoadores, que se instalaram de forma dispersa à medida que se desbravava o território, formando os primeiros casais, pequenos aglomerados isolados, e os embriões de urbanidades, como as sedes de capitania. Outros grupos identitários, que teriam na sua moldura sociocultural estatuto intermédio em termos político-administrativos, ter-se-ão ajustado com distinção social, como é o caso dos terratenentes e dependentes da confiança do capitão donatário, que por sua vez também recrutavam colonos. Esta distinção constituiu a base em que assentou a exploração da terra e as assimetrias sociais. Terão sido estas as condições em que se fixaram os modelos mais primitivos, como as furnas, grutas, ou grotas (designação local para habitações em gruta natural ou resultantes da sua escavação), seguindo-se as casas elementares miniaturais.     Casa elementar (miniatural). Arco da Calheta [1996]   A par destas, embora já num outro patamar sociocultural, edificaram-se as casas que se designam de antigas, por corresponderem a modelos do princípio do povoamento que foram praticamente transpostos dos modelos continentais, de que destacamos as casas dos padres, construídas junto às respetivas igrejas e outras de famílias socialmente dominantes. Após a descoberta da Ilha, o tempo de reconhecimento, entre o mar e a terra, terá sido longo, considerando as dificuldades em presença: território densamente arborizado, orografia acentuada, ausência de plataformas agrícolas naturais, existência de vales aluvionares profundos e instáveis, águas de ribeiras abundantes e por vezes tempestuosas, principalmente na costa Norte, contrastando com a escassez de caudais regulares na costa Sul, ausência de rios e/ou ribeiras navegáveis, litoral rochoso e abrupto, sem desembarcadouros naturais, e apenas com algumas baías favoráveis e pequenas angras, nem sempre acessíveis. A configuração geográfica, associada a um clima subtropical, condicionado a uma orla abaixo dos 200 m de altitude, terá tido repercussões na escolha dos locais de instalação dos casais rurais. A ilha da Madeira contrasta com a ilha vizinha do Porto Santo, cujas características geológicas revelam uma formação distinta, apesar dos 50 km que as separam; a primeira ilha apresenta uma temperatura e humidade relativamente elevadas, associadas a uma maior pluviosidade. O desconhecimento dos territórios terá obrigado a um largo período de adaptação dos modelos a instalar, e, mesmo quando se instalava um dado modelo, ele mantinha um quotidiano moldado pela circulação, restrita ou alargada, de bens e de pessoas, em que a autossuficiência era mais imaginada que real. Em algumas regiões, inventaram-se modelos novos. No caso da ilha da Madeira, em virtude da inacessibilidade do terreno, alguns terão permanecido isolados durante séculos, enquanto outros, igualmente únicos na região, se foram difundindo, alguns com adaptações, outros adquirindo novas especificidades, tornando-se variantes dos originais, e outros como modelos de transição e/ou assimilação para/de novos modelos.   Povoamento em vale interior. São Vicente [1996]   As classificações elaboradas por investigadores como Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990), Benjamim Pereira (n. 1928), Fernando Galhano (1904-1995), A. Jorge Dias (1907-1973), Fernando Távora (1923-2005), Nuno Teotónio Pereira (1922-2016), entre outros, dão conta do tipo de alicerce que a fileira tipológica da casa madeirense segue. A arquitetura vernacular evoluiu a partir de modelos tipologicamente elementares, desde logo a casa-cozinha, ou seja, a casa com um único compartimento. A partir deste modelo, ter-se-á desenhado a base mínima do modelo padrão. A sua evolução resultou do somatório longitudinal de novos compartimentos comunicantes ou da criação de uma situação que corresponde a um primeiro nível de complexidade, a duplicação em paralelo do modelo, construindo apenas uma parede meã estrutural, embora duplicando a cobertura. Casa elementar com cozinha separada. Rochão de Cima, Camacha [1996]   A casa em esquadria, ou seja, a casa que forma um ângulo de 45 º num dos topos do volume elementar, poderá ser uma evolução ou inovação que resultou na construção da cozinha num lugar deslocado do centro da casa. As cozinhas integradas em casas com cobertura de palha causaram grandes danos, por propagarem fogo facilmente. Esta terá sido a razão do deslocamento da cozinha nas casas rurais: reduzir o risco de incêndio. Na cidade e nas vilas, as posturas municipais exigiram a substituição das coberturas de palha por outras de telha cerâmica – o que permite verificar que a classificação estabelecida e que aqui se segue, apesar de estar relacionada com processos construtivos, não está totalmente dependente deles. As casas com cozinha separada denotam a relevância que este compartimento tinha. A cozinha era o compartimento cerne da funcionalidade da habitação, e, por isso, caracteriza e define a estrutura matricial do modelo que a casa segue; logo, é a partir deste compartimento que se identifica a tipologia da casa.   Casas-cozinha Casa-cozinha com forno exterior. Carvalhal, Canhas, Ponta do Sol [1996] As casas-cozinha, elevadas em alvenaria de pedra aglomerada com barro, têm fachadas de pedra à vista (interior e exterior) ou fachadas rebocadas e caiadas. Interiormente têm um único compartimento, onde se destaca a boca do forno, complanar à face interna da parede. O desenvolvimento da casa ocorre no exterior, a partir da parede empena, onde se apoia o rincão da cobertura de palha de três águas. As únicas aberturas da casa são a porta, de altura reduzida, que está inserida na fachada longitudinal, e a janelinha mínima, que está inserida na parede oposta à do forno. Assinala-se um pormenor funcional relevante, a fresta triangular integrada sobre a boca do forno, que servia como fonte de luz e, principalmente, como respirador, através do qual o fumo saía quando era impulsionado pela corrente de ar que resultava da abertura da porta. Este respirador, tal como um toco de madeira carbonizado, revela através da cor preta adquirida, as sucessivas camadas de fumo aí depositado.   Casa de empena As casas de empena, circunscritas principalmente à zona dos Canhas, concelho da Ponta do Sol, têm uma área útil de aproximadamente 13,5 m² e integram o grupo das casas elementares. A sua elementaridade está associada à reduzida espacialidade e a um contexto construtivo e vivencial precário: pavimento de terra batida, lume de chão, uma quase ausência de mobiliário e de apetrechos, domésticos e de lavoura (os que haviam eram produzidos pelos próprios camponeses e arrumados sem diferenciação de uso dentro da própria casa), e espaço exterior envolvente exíguo, a ponto de a pequena horta se amanhar no patamar da própria casa, por não haver espaço de permeio, ou quaisquer construções de apoio envolvente. A fachada desta casa tem a configuração mais elementar conhecida. Por vezes a casa era aconchegada por uma árvore ou uma latada, que proporcionava um pouco de sombra e que formava um aparente lugar exterior que dava continuidade à casa. Este espaço exterior informal tinha como elementos de mobiliário um banco tripé de madeira e uma pedra baixa de basalto para apoio temporário dum moinho de mão. A empena, que integra o forno exterior, e que dará o nome a esta casa, terá resultado da necessidade de salvaguardar a cobertura de palha das fagulhas incandescentes que a queimavam. Estas casas evoluíram pouco e o seu modelo não se dispersou; regista-se apenas o surgimento de uma parede de tabique de pranchas de madeira ao alto, criando um minúsculo compartimento para dormir, e a presença ocasional de um sótão exíguo, que terá resultado do ligeiro aumento da largura, do comprimento e da altura, de forma a permitir que a cobertura acolhesse, através de um sobrado, o aproveitamento do sótão, cujo acesso se fazia por uma escada de encosto. Este modelo madeirense pode ser associado, devido à semelhança formal, a certos modelos do continente e dos Açores, provavelmente contemporâneos, razão pela qual, se estabelece um paralelismo entre estes modelos e o projeto de povoamento que se pretendeu para as ilhas. Apesar disso, verificam-se diferenças que distinguem os modelos de cada arquipélago; a existência de compartimentação e a exigência construtiva evidenciam caminhos de evolução distintos. Na ilha de São Miguel, as casas de empena com cobertura de palha, existentes nos Mosteiros e na Candelária, têm uma área útil de aproximadamente 15 m². A casa de empena açoriana integra inclusivamente, no modelo mais elementar, o conjunto lar, forno e chaminé na empena ou na parede tardoz, com a particularidade chaminé se afastar da parede, reduzindo a possibilidade de pegar fogo à cobertura. Também se observou, relativamente à casa açoriana, o modelo de três águas e empena com forno. O que distingue a casa madeirense de qualquer outro modelo, equivalente ou próximo, é a sua condição básica, relacionada com a escala e a proporção. A casa madeirense é elementar na espacialidade, mas também em toda a sua especificidade construtiva, destacando-se o aparelho de pedra e a respetiva aglomeração, que resulta numa volumetria baixa. A armação da cobertura era precária, feita de palha; desconhece-se se o remate da palha era feito através da cápea ou do lintel de sobreposição e/ou amarração. Tudo leva a concluir que este modelo terá sido criado integralmente de forma empírica na ilha da Madeira, em consequência da necessidade intransigente e imediata de se construir um abrigo básico. Casas de Santana Tal como este modelo, outros terão surgido neste contexto, de que se destacam, devido a um certo fascínio turístico pelo exotismo das formas, as casas de Santana, algumas construídas integralmente em madeira. Para se compreender este modelo tem de se seguir a evolução de modelos anteriores.   Casa elementar com forno interior. Rochão, Camacha [1996] As casas-cozinha, de cobertura de palha de quatro águas, com forno interior, localizadas com maior frequência na zona da Camacha, mantêm praticamente o mesmo dimensionamento das casas anteriormente descritas, embora se distingam delas pelo aprumo construtivo, do qual se destaca o processo construtivo da cobertura, ou seja, a armação, e a técnica de abafar a mesma. A cumeeira elevou-se como técnica de amarração devido à sua eficácia e à composição artística que permitia, conseguida por via da modelação de pequenos arranjos na palha, que em alguns exemplos se notam integrados com cuidada métrica e expressão, sendo denominados pelos mestres por bonecos de palha.   Casa elementar com forno interior, em actividade. Rochão, Camacha [1996] Este trabalho consiste em apanhar pequenos molhos da última carreira, que ficam pendentes para a base e sobrepô-los a uma cana de amarramento que contorna toda a cobertura. O pial alto para o fogo, situado nestas casas ao lado do forno, surge como uma inovação do fogo de chão, tal como o empedrado do pavimento em calhau rolado ou basalto miúdo substitui a terra batida que por vezes se cobria com urze ou fetos. Mais tarde, a cozinha passa a surgir encostada ao volume da casa, sem comunicação interna, ou afastada, gerando e mediando uma relação espácio-funcional entre distintos volumes. Esta associação da cozinha a um compartimento autónomo constituiu uma evolução tipológica e uma síntese que melhor se adaptou às necessidades e possibilidades dos colonos, o que fez com que este modelo tivesse tido grande difusão, principalmente na costa Sul da Ilha. Tal ocorrência determinou a separação entre a zona de confeção, a zona de refeição e a zona de dormir, originando, dentro da elementaridade do modelo, uma diferenciação funcional mais complexa. Relativamente ao corpo dos quartos também se inovou, com a autonomização de uma espécie de sótão térreo, que surgiu quando se retomou uma parte do espírito da fachada empena, agora liberta do forno e transformada em fachada do piso superior, já que o terreno oculta neste ângulo um piso inferior com fachada lateral. A porta surge protegida por um aparente alpendre, resultado do prolongamento da cobertura de palha de uma casa de quatro águas, que depois é interrompida pela introdução da empena fachada. Este piso, que é meio sótão, divide-se em dois compartimentos lineares através de um tabique com porta central, construído em pranchas de madeira ao alto, pregadas numa estrutura de barrotes. O compartimento de dentro destinava-se ao quarto do casal e o de fora ao quarto das crianças. Uma pequena janela, quase rasa ao pavimento, protegida pelo prolongamento da cobertura de palha, ventilava e iluminava o quarto de dentro, enquanto um pequeno postigo, na porta do quarto de fora, cumpria a mesma função relativamente ao quarto das crianças. Sob este piso ficam as lojas, onde se guardavam as alfaias e os produtos provenientes da agricultura. O vale de Machico e a zona interior da Camacha, como o Rochão de Cima e, mais raramente, a zona da Ribeira Brava, foram áreas de difusão e locais onde estas casas persistiram até à sua extinção, nos finais do séc. XX. O modelo da casa elementar térrea, com cobertura de palha e cozinha encostada, terá sido o mais divulgado na costa Sul, ainda que com zonas de maior predominância, de que destacamos o Caniço e Santa Cruz. Esta casa, ligeiramente maior do que as antecessoras, tem a particularidade de integrar de forma regular, portanto intencional, um terraço-alpendre, delimitado por um muro, onde se apoiam os esteios de madeira da latada e alguns bancos. Este espaço fronteiro à casa, que se distingue do espaço informal em idêntico posicionamento nos modelos anteriores, corresponde a um prolongamento da casa para o exterior, pois aí se efetuam diversas atividades da lide doméstica e de apoio à lavoura e, em dias de festa, se põe a mesa e se confraterniza. Um elevado número das casas observadas que seguiam este modelo tinha cobertura de palha no corpo dos quartos e de telha no corpo da cozinha, com a particularidade de a cozinha voltar a ser o modelo físico, e, portanto, não funcional da casa-cozinha, ou seja, da casa-empena, com o forno exterior a integrar a inovação do conjunto de lar, forno, chaminé. Gradualmente, as coberturas de palha deram lugar a coberturas de telha cerâmica, primeiro de canudo, depois de cerâmica marselha e, finalmente, antes do seu declínio, de marselha de cimento. O modelo terá evoluído de dois compartimentos e cozinha, para três compartimentos comunicantes com duas ou três portas, janela e cozinha, não comunicante. Estas casas instalavam-se, de um modo geral, em plataformas com alguma extensão, voltadas para Sul. Em muitos casos, parecem estar submersas num denso manto verde, efeito proporcionado pela latada de vinha, ficando apenas visível a zona superior da cumeeira. Esta realidade permitia reduzir significativamente a temperatura do estio e, quando a latada não era demasiadamente baixa, controlar a elevada humidade, proporcionando um ambiente mais favorável à faina agrícola e à lide doméstica, que se desenvolvia do lado de fora da casa. António Ribeiro Marques da Silva, João Adriano Ribeiro, António Aragão, João Sousa e Rui Cardim, entre outros investigadores e historiadores da região autónoma da Madeira, consideram as casas elementares de Santana o paradigma da arquitetura vernacular. Se abstrairmos das leituras simplicistas a que estas casas estão sujeitas, é legítima a sua valorização, pela originalidade construtiva e espacial e pela expressividade artística. As casas de Santana, pela sua área exígua, permanecem classificadas como elementares, mas distinguem-se, pela sua aparência, das que foram descritas até aqui. São construídas parcial ou totalmente em madeira, tendo uma fachada triangular, em resultado de a cobertura, que assenta num espesso lintel de madeira elevado do chão através de apoios pontuais de pedra, descer praticamente até ao nível do pavimento. A tradição local denominou este modelo, que resulta de um sistema primitivo e elementar de construção em madeira, de casas de fio (que a seguir se distinguirão das casas de meio-fio) ou de empena, em virtude da técnica de assemblagem, levada a cabo a partir de lintéis inferiores, prumos verticais e réguas horizontais de travamento. A este sistema apõe-se o ripado da cobertura, o tabuado do pavimento e os painéis de pranchas verticais de madeira da fachada e do tabique, na divisória do interior. As janelas e a porta são colocadas nos espaços livres previstos no engradado da fachada. Por fim, abafa-se a casa, ou seja, cobre-se com palha a armação da cobertura, que é antecipadamente preparada através de procedimentos exigentes na preparação e no manuseamento do material vegetal, o que obriga a que sejam outros mestres a desempenhar-se desta tarefa. A técnica de restolhar ou abafar a casa inicia-se com a escolha da palha e a sua respetiva compra, o que é feito quando a palha ainda está no campo a amadurecer. Esta deverá ter uma altura similar para que a secção de cada planta se assemelhe. Uma casa leva entre “24 a 26 maranhos de palha de trigo e 8 dúzias de varas por casa. O vime, com que se cose a palha à armação de madeira, é seco à sombra e posto ao fumeiro, sendo depois mergulhado em água durante 21 dias, seguindo-se mais uma semana para o enxugar” (MESTRE, 2002, 111). A colocação dos maranhos com as raízes das plantas viradas para cima permite uma amarração duplamente eficaz, ou seja, a altura diferenciada das raízes em relação aos caules permite que o vime as envolva de modo a garantir que as plantas não deslizem e assegurem uma zona de apoio da fieira seguinte. O trabalho desenvolve-se com um homem no exterior e outro no interior que vão passando alternadamente a agulha, denominada abafadoura, com o vime; o homem de dentro ajusta o vime à vara, o do exterior envolve os maranhos e assegura a sua horizontalidade. O fim de cada fieira é cuidadosamente cozido à dobra da aba balançada correspondente e, no seu conjunto, estas emolduram e protegem a fachada de madeira.   Casa de fio, frontal de madeira. Santana [1996] Estas casas, de cerca de 15 m², incluindo o esconso raso ao pavimento, abrigam no máximo dois compartimentos de dormir, que se situam em linha. A cozinha integra-se em outro volume de idêntico desenho e não raras vezes é disposta em frente, ainda que a implantação lateral seja a mais comum. Esta pequena construção de cerca de 6 m² tem pavimento de terra batida ou um irregular pavimento de pedra de basalto. Algumas destas cozinhas procuram adaptar-se ao declive do terreno, beneficiando de uma escavação em três faces, de que resulta uma economia de recursos. A rocha escavada, pela sua estabilidade e qualidade, assegura três paredes acabadas, e estas, uma vez que não havia condições autoportantes, são revestidas a pedra. A fachada, construída entre estas paredes escavadas, tem, de um modo geral, apenas uma porta. A cozinha instala-se no piso térreo, onde o forno interior está por vezes associado a um pequeno lar, embora nas situações mais elementares exista apenas o lugar do fogo de chão. Sobre este piso implanta-se um outro, uma espécie de sobrado, construído um pouco à semelhança do volume de dormir. Este processo ocorre do mesmo modo que na elevação das casas de meio-fio (que a seguir serão caracterizadas), mas é simultâneo aos dois volumes (casa de dormir e cozinha), o que, como se verá, não ocorre nas casas de meio-fio. Casas de fio e de meio-fio O modelo das casas de fio diferencia-se do modelo das casas de meio-fio pelas diferentes dimensões que apresenta e por ter mobilidade. As casas de fio foram construídas como uma padiola, permitindo que sob o volume se corressem toros, para que um grupo de homens o elevasse e o pudesse (re)nivelar ou deslocar quando os seus proprietários mudassem de lugar.   O regime de colonia está diretamente relacionado com as dimensões e com a mobilidade das casas de fio. Jorge Freitas Branco refere a evolução “deste regime que foi adquirindo ao longo dos séculos, complexidade e tensões sociais entre senhorios, arrendatários e colonos”. Num tempo em que os terrenos agrícolas eram “cada vez mais divididos, fenómeno acentuado pela prática de partilhas das benfeitorias edificadas em propriedade de outrem” (FREITAS BRANCO, 1987, 171), em que muitos colonos, por terem as benfeitorias hipotecadas, desistem delas e abandonam as terra respetivas, para emigrar ou mudar de senhorio, levando consigo os seus haveres e, em alguns casos, deslocando as próprias casas, precárias mas eficazes, surge a tentativa de procurar uma equidade justa. Segundo o mesmo autor, “após a grande fome de 1847, o governador José Silvestre Ribeiro, tenta propor um compromisso para resolver a situação. De acordo com a sua proposta, o problema poderia ser sanado se todos os contratos do colono existentes fossem transformados em contratos de arrendamento na base do Código Civil, implicando o pagamento da renda, somente em dinheiro, e a supressão definitiva da apresentação de géneros”. Esta proposta advém de um contexto político e social comprometido com o advento do liberalismo, com a alteração do antigo regime e, por consequência, com a união das partes desavindas: “cada senhorio teria de chegar a acordo com cada colono, para que de futuro a propriedade da terra já não pudesse ser separada das benfeitorias nela edificadas” (FREITAS BRANCO, 1987, 168).   Casa de meio fio. Santana [1996] Deve considerar-se que até aos anos 50 e 60 do séc. XX, na plataforma de Santana, em redor do pequeno núcleo urbano, existiam dezenas de casas de fio e de meio-fio em pequenas parcelas, que apenas garantiam uma precária e insuficiente dieta alimentar. Estas construções refletiam a ausência de conforto do alojamento, conforme relatou o romancista madeirense Horácio Bento de Gouveia: “O casebre do Miséria, coberto de palha de trigo, negreja, como triste anacoreta, nas cercanias brenhosas da Serra. Um só piso, com o soalho feito de tábuas carunchosas de pinho, arrimadas umas às outras, e uma porta com postigo, voltada para nascente. À ilharga, separada daquele por um chiqueiro sem porco, está a cozinha, que é telheiro desabrigado que nunca teve porta. No interior a lareira limita-se a umas pedras que servem de suporte às panelas de ferro de três pés. O tugúrio onde reside o João Miséria compõe-se de um quarto indiviso. Ali dormem ele, a mulher e cinco filhos. A cama é um maranho de palha de milho espalhado no canto do quarto que tem por ventilação as frestas das pedras das paredes” (GOUVEIA, 1949, 99-100). Estas casas miniaturais serão em parte o reflexo da própria dimensão exígua das parcelas onde se implantavam. As produções eram facilmente controláveis pelos feitores, quer na leira de terra, quer na eira. O que sobrava era guardado no pequeno sótão, ou apenas no desvão, onde algumas varas faziam de estrado improvisado para apoio dos produtos. Em casos raros este espaço constituía uma divisão, cujo acesso era feito pelo exterior, através de uma escada de encosto, acedendo-se a uma portinhola ou a uma janela de joelhos. Nas casas de meio-fio de maior dimensão este desvão permitia guardar uma maior produção de trigo, milho ou de outros produtos, como abóboras e frutos. No caso de famílias numerosas, servia de quarto para os filhos mais velhos, adquirindo o nome de quarto de empeno. As casas de meio-fio correspondem a uma inovação que permitiu elevar as paredes periféricas até aproximadamente 0,90 m a 1,10 m de altura, para assentamento do lintel de apoio de toda a armação. Num período inicial desta inovação as paredes terão sido de madeira e de troços de alvenaria. O módulo autónomo da cozinha beneficiou com esta mudança, talvez em resultado da experiência das cozinhas das casas de fio. As lojas no piso inferior e a elevação das paredes periféricas, feita a partir do nível do sobrado, permitiram um maior aproveitamento do decaimento do telhado, o que resultou na ampliação do espaço periférico e na integração de um sobrado superior. Este modelo, que sofreu uma acentuada decadência até aos anos 70 do séc. XX, teve deste modo um novo fôlego. Regista-se ainda, apesar de ter pouca relevância, a casa de meio-fio de dois pisos, com varanda ou balcão e escada de madeira. O piso inferior (loja) desta casa era construído em madeira, sem aproveitamento do declive do terreno. Esta última inovação e/ou evolução não terá tido oportunidade de se consolidar, porquanto o seu desaparecimento estará associado ao êxodo rural das décs. de 1960 e de 1970, rumo à cidade e ao exterior (Europa). Surgiram outras pequenas inovações pontuais, que também não tiveram continuidade e que se tornaram apenas singularidades, como a passagem lateral da casa de dormir para a cozinha destacada.   Casa elementar com cobertura de palha, piso térreo escavado e cozinha separada. Serra d’Água, Machico [1996]   As casas de fio e as casas de meio-fio mantiveram a sua área de implantação restrita ao concelho de Santana, ainda que o modelo que proliferou no vale de Machico, com particularidades diferentes (sendo a mais relevante a elevação das paredes em alvenaria, o que libertava a casa da necessidade de uma armação de madeira), possa constituir um seu parente.     Casa redonda Casa redonda (antiga). Achada do Marques, Santana [1996]   A casa redonda representa outro modelo de casa em madeira, este circunscrito à zona de São Jorge, paredes meias com o concelho de Santana. Esta designação estará relacionada com o aspeto da cobertura de quatro águas, tendencialmente uniforme em virtude de a planta se aproximar do quadrado. A forma arredondada da mudança de água da cobertura destas casas e o seu prolongamento para além dos planos da fachada, como que adoça a geometria no seu conjunto, contudo, “uma das características fundamentais destas casas será a sua excecional carpintaria, expressa na elevação das paredes e respetivas assemblagens, e nas janelas de correr exteriores e nas portadas de correr” (MESTRE, 2002, 115). A sua classificação indica que está entre o grupo de casas elementares e o grupo de casas complexas, sendo o modelo mais evoluído do primeiro grupo e o modelo mais básico do segundo. Este modelo, tal como os outros com cobertura de palha, apresenta o corpo dos quartos separado da cozinha. Face à planta quadrangular, os compartimentos não são dispostos sucessivamente, mas subdividem-se internamente, através de uma cruzeta central. O compartimento que está mais próximo da porta principal faz de sala, e é a partir desta que se acede aos outros dois compartimentos, os quartos, e de cada um deles a um quarto espaço, igualmente utilizado como quarto. A cozinha é autónoma, ampla e tem um forno interior encostado a um canto e associado a um lar ou pial alto para atear o fogo, o que se fazia por vezes com uma pequena fornalha para cozinhar o bolo do caco. Tal como nas cozinhas das casas de Santana, não existe chaminé, o fumo concentrava-se no desvão da cobertura, enegrecendo a armação e a palha, embora por vezes encontrasse uma fuga, ocasional ou forçada temporariamente, escapando para o exterior em novelos densos, provocados pela abertura da porta da rua, o que daria a sensação de a casa estar a arder. Estas casas perduraram, integralmente em madeira, na Achada do Marques, que se situa numa espécie de fajã interior, até ao início dos anos 80 do séc. XX, altura em que se abriu um túnel para melhorar a acessibilidade desta localidade, até então, isolada. A introdução de paredes de alvenaria, ocorrida na Feiteira de Cima, concelho de Santana, resultou numa evolução do modelo, que deste modo permitia uma inusitada elevação das coberturas, que chegavam a albergar dois níveis de sobrado, quando a dimensão e altura eram maiores. O acesso a estes níveis realizava-se por escada interior, de pôr e tirar, a partir do piso térreo, e através de uma escada exterior idêntica, fixa ao nível superior. Neste modelo, a cozinha também era autónoma do corpo dos quartos. Ao ser construída em alvenaria, seguia o propósito de maior cubicagem, como o módulo dos quartos, permitindo elevar a cobertura. O forno integrado, o pial alto para o lume e o espaço resultante da altura da armação da cobertura, caracterizam esta unidade funcional, por vezes mista, como zona de preparação e confeção dos alimentos, também associada a atividades artesanais, como a fabricação e/ou reparação de alfaias agrícolas e outro equipamento. Casa redonda (moderna). São Jorge [1996] A casa redonda de médias e grandes dimensões, construída integralmente em madeira (estrutura, paredes exteriores e interiores e armação da cobertura), constitui o apuramento e/ou a evolução máxima deste modelo. Em termos tipológicos, esta casa evoluiu para um nível de complexidade que podemos classificar como de transição, ao introduzir a unidade do corredor, evitando-se a passagem pelos compartimentos a que a planta em cruzeta obrigava. Nesta solução, entra-se para uma sala e desta para um pequeno corredor com várias portas laterais, que dão para os quartos, e uma outra, no extremo final, que abre para a sala de jantar com porta no mesmo enfiamento. A cozinha é autónoma e fica a poucos metros deste volume. A qualidade de execução e de acabamento das carpintarias, nomeadamente das janelas e portas de correr, revela uma técnica e uma expressão artística apurada. A casa demonstra rigor pela distribuição das pranchas dispostas ao alto, articuladas com as réguas mata-juntas e as travessas horizontais, que percorrem todos os alçados da edificação e apoiam as calhas de correr das janelas e das portadas. Este modelo atingiu níveis de conforto significativo, se o compararmos, por exemplo, com o modelo das casas de fio.     Casa elementar e casa complexa Ainda no âmbito das casas elementares, registamos a casa elementar corrente de um piso, de alvenaria de pedra e cobertura de telha cerâmica, generalizada em toda a Ilha. Esta distingue-se pelo volume alongado e baixo, com telhado abatido de quatro águas. Na fachada, abrem-se duas ou três portas, ou uma porta e duas janelas, emolduradas por cantaria ou por caiação pigmentada, que as destaca da austeridade do conjunto. A chaminé é prismática, com grelha lacrimal e capelo pontiagudo, associada ao forno exterior. Nela revela-se a cozinha integrada no volume único da casa, com acesso autonomizado ou interior. As casas mais austeras têm uma bancada construída em pedra sobre a qual se integra o fogo entre pedras para pousar uma grelha. Esta casa tem apenas um pequeno sanitário, quando existe, que se localiza autonomizado no tardoz da casa. Trata-se de um pequeno volume onde se implanta uma retrete construída artesanalmente, com tampo quadrado e um círculo aberto a meio. Casa elementar de alvenaria. Sítio das casas, Rochão, Porto da Cruz [1996] Reconhecem-se como mais recentes as casas em que todos os compartimentos comunicam interiormente, através de um percurso alinhado junto aos vãos da fachada principal, ou através de uma zona central. Nesta última situação, observam-se exemplos em que o compartimento do meio se subdivide no sentido transversal, permitindo uma saleta de passagem entre a cozinha e o quarto autonomizado, ou seja, um quarto compartimento ainda dentro da linearidade do volume. A esta continuidade é comum chamar-se o meio da casa e o quarto de fora. Este modelo revela uma transição tipológica do modelo linear para um mais complexo, em que o espaço referido introduz sofisticação à casa, que se complementa com um pequeno terraço, coberto por uma latada de vinha e rodeado por um murete com bancos de alvenaria e alegretes, onde é possível realizar atividades do âmbito doméstico e de apoio aos trabalhos agrícolas.   Casa elementar de duas águas. Curral das Freiras [1996]   Ainda no âmbito das casas elementares de alvenaria de pedra, encontra-se um modelo exclusivo do Curral das Freiras, constituído por volumes autónomos (quartos e cozinha) com cobertura de duas águas. O volume dos quartos, com dois pisos, resulta do aproveitamento do encaixe no terreno, o que permite autonomizar as entradas (a inferior, no plano da fachada longitudinal, e a superior, que se integra na fachada empena, como nas casas de Santana). Estas casas raramente têm mais do que um compartimento por piso, sendo o primeiro a loja, que tem o mesmo volume que os quartos. Na cozinha, que se articula com a loja, onde se guardam diversos produtos de consumo, confecionavam-se e tomavam-se as refeições. A loja, além das alfaias, raramente servia para realizar as refeições, embora também se utilizasse com esse fim em ocasiões de festa, por ter maior dimensão. Além do Curral das Freiras, localizou-se entre a freguesia dos Prazeres e o sítio dos Lombos um modelo com semelhanças arquitetónicas. Este modelo apresenta compartimentação sequencial, no máximo com dois compartimentos sobre uma loja, comunicação entre pisos feita por uma escada interior em madeira, estreita e empinada, resguardada por um alçapão, cozinha sem forno, e uma implantação que resultou da escavação parcial de uma ladeira, o que também ajudaria a libertar um terraço fronteiro e quando possível lateral, que dava continuidade à casa. Casa elementar de dois pisos. Sítio da Ingriota, Lombo das Terças, Ponta do Sol [1996] A casa elementar de dois pisos, na sua identidade mais simples, resulta da sobreposição de um piso com a área de uma casa de piso térreo, que não tem comunicação interior, acedendo-se ao piso superior pelo conjunto escada e balcão, geralmente integrada num topo. Esta escada permitia entrar para uma sala e aceder aos restantes compartimentos através de um meio corredor que está junto à parede tardoz e integra a porta lateral, que dá para o compartimento central, e a porta fronteira, que dá para a cozinha que comunica com o terreno que está ao mesmo nível. O piso inferior destina-se mais uma vez a lojas. A casa linear de dois pisos que mais se terá generalizado aparenta um aspeto mais compacto, portanto, menos longitudinal, tendo-se desenvolvido uma compartimentação no piso superior em cruzeta, ou seja, com quatro divisões sem corredor. O acesso aos compartimentos interiores é feito a partir dos compartimentos da entrada e segue uma hierarquia que distingue as pessoas de fora, que permanecem no espaço da entrada, e os residentes, que avançam pelo compartimento da cozinha ou de transição até ao quarto do casal, isto quando a cozinha é autónoma ou implantada por encosto. Alguns destes exemplos transitam depois para uma casa em esquadria por via da posição da cozinha, formando um L. Curiosamente alguns deles integram um pequeno corredor que autonomiza os quartos, a sala e a cozinha, e introduz maior complexidade. O piso inferior destina-se a lojas ou a um lagar de pedra com o equipamento e o vasilhame. A casa elementar de dois pisos na sua dimensão reduzida e compacta transmite uma expressão da casa antiga. O telhado de quatro águas muito abatido, um contrafeito muito prolongado e a implantação a meia encosta, resultado da escavação para integrar o volume com duas cotas altimétricas acessíveis, sugere uma métrica e uma maneira de construir antiga, relacionada com um longo processo e uma tradição de fazer casas, que vem desde os modelos continentais. Algumas quase parecem pequenas casas torre, pela densidade, pela quase ausência de vãos no piso térreo e pela implantação vigilante na paisagem. O modelo da casa-torre é um dos modelos que diríamos decalcado do modelo da região de Lisboa e que foi registado com idêntica métrica, proporção e espacialidade nos Açores e nas Canárias. Casa torre. Sítio do Jogo da Bola, Lombo Canhas, Ponta do Sol [1996]   Contudo, o caso madeirense apresenta ainda uma variante rara: a cozinha é integrada no piso inferior do torreão e não no volume lateral encostado. Este nem sempre tem três águas como se vê nos modelos continentais, mas isso talvez de deva à adaptação a uma realidade física e sociocultural diferente.   Casa duplicada O modelo da casa duplicada, com dois pisos, está relacionado com o modelo da casa em esquadria, e resulta da associação em paralelo de duas unidades lineares com uma única parede estrutural por permeio, com a cozinha a integrar um dos compartimentos de topo ou a manter-se encostada fora desta associação, mas com ligação interior. Tanto no modelo da casa em esquadria como no modelo da casa duplicada, cada compartimento tem um teto tipo masseira, autonomizado relativamente à armação corrida de quatro águas em madeira. Nas casas de maior capacidade económica, a armação é coberta por um teto único de gesso que tem elementos decorativos, ou então é exibida uma armação e forro de tabuado, com junta de meia cana nas junções das tábuas e com um tapa-pó junto ao frechal, revelando o aprumo da carpintaria, como se fazia na casa em esquadria. A casa duplicada, pela dimensão e o número de compartimentos que apresenta, terá permitido experimentar novas soluções tipológicas, constituindo um modelo de transição para a casa complexa. Esta possibilidade ganha força se se atender ao facto de algumas casas duplicadas se aproximarem, nas dimensões e na volumetria, de outras, mais antigas, que foram designadas anteriormente por complexas, de cobertura de quatro águas, com corredor no primeiro piso e acesso por escada exterior. Contudo, o que distingue o modelo da casa duplicada não é apenas a existência de um corredor que gere as espacialidades, mas a escada interior de que está capacitada. As casas complexas mais antigas são mais compactas, têm uma forma quadrangular e mantêm as dimensões tradicionais do pé-direito. As mais recentes são alongadas, o seu desenvolvimento espácio-funcional é retangular, a altura exterior é maior e o pé-direito é mais amplo nos dois pisos, com especial incidência no superior, onde se destaca uma maior elevação do paramento a partir da linha de padieira da cantaria dos vãos. O conjunto denota outra escala e proporção, um processo construtivo dependente de alinhamentos estruturais, associados aos vãos ordenados a partir de um eixo de simetria. A todo este aprumo não será alheia a exigência estrutural das secções dos madeiramentos para vencerem maiores dimensões. Todos os alçados, mesmo aqueles em que os vãos não integram cantarias, denotam essa rigidez, essa métrica construtiva impositiva, onde está implícita a regularidade das secções e dos comprimentos dos estrados de piso e armação de cobertura, ambos em madeira. Este é um modelo que não foi pensado e construído para poder receber adições, “ou seja, trata-se de uma tipologia acabada, que foi pensada como um todo finito, individual e sem associações possíveis, uma tipologia que talvez nos revele o fim da arquitetura popular em termos de uma potencial cadeia tipológica evolutiva e construída em moldes construtivos artesanais” (MESTRE, 2002, 147).     Casa demerarista A casa demerarista, que resultou do retorno de emigrantes bem-sucedidos da Demerara (posterior Guiana britânica e depois República da Guiana), em finais do séc. XIX, é o corolário do processo de aperfeiçoamento do modelo da casa complexa. A tipologia e a técnica que desenvolve seguem os princípios descritos relativamente às casas complexas, mas com assimilações diversas que as aproximam, na identidade e expressão artística, das casas urbanas que têm múltiplas influências. São um misto de casa de morgado e de casa burguesa, onde sobressaem alguns estereótipos, como os alpendres, as grelhagens e os guardas de balcões de gosto neoclássico, bem como os desenhos de pavimento de seixo rolado abertos a branco em fundo preto. No interior, um amaneiramento e/ou aparato nas zonas de receber e/ou estar, como a saleta de entrada, que antecede o corredor e a sala de jantar; as madeiras de rodapés e lambrins dos compartimentos interiores, alisares, roda-tetos, e a dimensão das portas, que integram grandes bandeiras de vidro, bem como almofadas, expõem alguma exuberância decorativa ou exaltação de cor. As janelas de guilhotina atingem maior dimensão e a quadrícula composta por esbeltos membros é quase uma filigrana. Esta integra ainda um sistema de contrapesos que se oculta num elaborado conjunto, construído à medida da espessura da parede que absorve portadas desdobradas em duas folhas rebatíveis e ocultáveis atrás dos alisares. As almofadas destas portadas estão em continuidade com idêntico trabalho de carpintaria que cobre as paredes frontal e laterais e o fecho superior do interior de cada vão. Este modelo de casa é uma obra completa, previamente planeada; pode mesmo admitir-se que tenha partido de um desenho-projeto ou de esquemas simplificados. O detalhe da carpintaria revela por outro lado a importância das ferramentas utilizadas, não apenas pela tecnologia de que se compõem, mas por incorporarem o desenho da arquitetura nos pormenores construtivos. Na carpintaria, é notória a utilização de um conjunto de ferros instalados em plainas, garlopas, guilhermes e tacos que definem frisos salientes, com diversos geometrismos e incisões de linhas abertas propositadamente, de modo a evidenciar uma determinada expressão artística. Algumas destas obras terão beneficiado das primeiras carpintarias mecânicas com propulsão a vapor, transmitida por correias tensionadas em tambores dispostos num eixo em linha ou terão sido trabalhadas em pequenas carpintarias manuais, depois de receberem as pranchas e os prumos das serras de água ou dos serradores da serra. Trabalhar a madeira em carpintarias para a construção de casas e edifícios urbanos foi uma longa tradição nesta região, que perdurou até meados do séc. XX, primeiro em moldes tradicionais e mecânicos primitivos, depois com a primeira geração da carpintaria mecânica. Para além das casas de Santana e São Jorge, são observadas no centro histórico do Funchal e em alguns núcleos de vilas muitas ampliações de casas, especialmente torres avista-navios, ou o tardoz e as fachadas laterais das mesmas. Esta tradição está ainda presente em aspetos de otimização e composição arquitetónica de que destacamos os rendilhados e lambrequins, que ocultam os estores de lâminas horizontais de madeira, ou os tapa-sóis com a bilhardeira para espreitar o exterior sem ser visto. Mas a construção em madeira porventura mais representativa da região é a casa de fresco, localmente denominada casa de prazer, que se implanta num local fresco, com boas brisas e com boas vistas, sobre os muros dos jardins, em contexto urbano, ou em quintas madeirenses. Estes templetos de jardim, que por vezes revelam detalhes construtivos e uma composição artística de elevado rigor e requinte, são de certo modo o reflexo da identidade dos seus proprietários. O romantismo, com especial relevo para o de influência inglesa, e os estilos mais ou menos evidentemente ecléticos, rivalizam com a expressão da arquitetura tradicional da Região que, sem arrebiques estilísticos, reduz a forma e a composição a um caramanchão com cobertura de telha, onde plantas, flores de suaves odores e tapa-sóis disputam harmoniosamente o seu lugar.   Casas de salão A ilha do Porto Santo e a ilha da Madeira, apesar de terem a mesma origem vulcânica, distinguem-se, geológica e geomorfologicamente. O solo claro da ilha do Porto Santo deve-se ao calcário e respetiva desagregação em arenitos ou pedra de areia, como são conhecidos localmente. A zona central da ilha é tendencialmente plana, interrompida por alguns valados que, devido à fraca pluviosidade, apenas conduzem as águas das enxurradas sazonais, agravando a erosão dos solos. A permanente falta de chuvas, devido a um clima seco influenciado pelos ventos predominantes do Norte de África (de Nordeste e de Norte), e a falta de vegetação nas zonas altas, têm dado lugar a solos pobres em espessura e em matéria orgânica, dificultando a agricultura. Casa elementar de salão. Achada, Serra de Fora, Porto Santo [1996] A casa vernacular que representa o Porto Santo expressa e é consequência do contexto físico da ilha, ainda que outros fatores também influenciem o modelo. Seguindo o mesmo critério de classificação aplicado à ilha da Madeira, trata-se de uma casa elementar, da qual sobressai a cobertura de barro, localmente denominada salão. É uma casa térrea com dois ou, no máximo, três compartimentos. Por vezes, quando se trata de uma casa de lavoura de média dimensão, desenvolve-se linearmente, associando compartimentos com acesso interior ou exclusivamente exterior, como são os casos estudados na Serra de Dentro e no Farrobo de Cima. Um dado curioso, que poderá ter resultado de uma evolução planeada em virtude do número de exemplos conhecidos, é a incorporação de um volume perpendicular num dos topos, formando uma configuração espácio-funcional em esquadria, como os exemplos de Pedregal de Dentro e em Farrobo de Cima. Alguns destes compartimentos, resultantes de adições, destinavam-se a novos quartos e/ou salas, em virtude do aumento da família, em consequência de casamentos e da formação de novos agregados familiares. Contudo, algumas destas configurações arquitetónicas estavam estabelecidas desde a origem da casa e destinavam-se a apoiar a lavoura com estábulos e adegas. Nos casos referidos aproveitou-se um declive do terreno, construindo este volume em cota inferior de modo a prolongar a água da cobertura da casa. Esta solução favorecia a limpeza destes compartimentos: ao manterem uma suave inclinação do piso, os fluidos e os resíduos produzidos escoavam naturalmente para o exterior. A cobertura de salão é constituída por uma armação de toros ou barrotes de madeira formando pendentes de duas ou quatro águas. Sobre esta armação, nos casos mais básicos, dispõem-se feixes de arbustos locais muito bem cruzados e apertados, de modo a formarem uma densa teia, sobre a qual é espalhado o salão, com 7 a 10 cm de espessura. No caso de uma construção feita por alguém com mais capacidade económica, as fibras vegetais são substituídas por um tabuado. A técnica de salão requer cuidados especiais. Desde logo na extração e na limpeza, retirando impurezas e pedras, seguindo-se um período de descanso a céu aberto, antes de ser colocado. Uma vez distribuído uniformemente, é batido ou calcado com uma pá de madeira, sendo borrifado com água, de modo a reagregar uniformemente. As qualidades deste material que incorpora argila, que é o seu elemento agregante mais notável, a par da arte de o utilizar, devem-se a uma longa prática, posta à prova com as primeiras chuvas do ano. Estas, em contacto com a superfície gretada, repleta de linhas de micro e macro fendilhação, agregam os elementos, que rapidamente, e dada a plasticidade destes agregantes, tornam a cobertura impermeável. Ao invés, com o tempo seco, a cobertura retoma a fendilhação e permite a circulação de ar entre o interior e o exterior, favorecendo a ventilação. Estas coberturas proliferaram por todo o Mediterrâneo, desde as ilhas mediterrâneas a toda a costa africana e ilhas das Canárias. A casa complexa de dois pisos e telhados múltiplos é outro modelo singular da ilha do Porto Santo. Localiza-se no único núcleo urbano que lá existe, distinguindo-se pela dimensão e pelos dois telhados dispostos paralelamente. Casa complexa de telhados múltiplos. Vila Baleira, Porto Santo [1996]   O corredor central no piso superior individualiza todos os compartimentos e a escada é exterior. A cozinha é integrada e associa o lar à boca do forno, que se integra pelo exterior. O piso térreo destina-se a lojas e por vezes ao lagar, em alguns casos feito de um tronco de árvore escavado. Na ilha do Porto Santo, predominava uma agricultura de sequeiro, os moinhos de vento testemunham a cerealicultura prevalecente, assim como a técnica do seu armazenamento em silos subterrâneos, que consistiam em covas feitas junto às casas, conforme ocorria também no continente, no Mediterrâneo e nos Açores, silos que, no princípio do séc. XXI, ainda existiam na Serra de Dentro, na Serra de Fora e na Lapeira. Havia ainda um de grandes dimensões, para uso comum, no largo central, que se tornou posteriormente alvo de interesse museográfico.   Casas modernas, o popular e o regional Casa moderna. Sítio do Pico de António FernandesSantana [1996]   O período pós-Segunda Guerra Mundial terá dado início a novo ciclo da arquitetura vernacular madeirense através de uma revisitação organizada aos modelos mais comuns. O ou os protagonistas deste movimento estão por identificar, assim como qualquer documentação que lhe diga respeito. É possível que este esteja relacionado com duas levas de regresso de migrantes: uma que ocorreu entre as guerras, outra que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. A construção de uma rede viária para circulação automóvel, assim como a reorganização urbanística das sedes de concelho, terão propiciado novos bairros e a transformação de terreno agrícola em solo urbano, onde se ergueram novas casas. A investigação feita no terreno comprova a existência de um ciclo construtivo, cujos modelos, denominados casas modernas e datados pelos seus proprietários, mostram um processo repetitivo e organizado. Nos anos 30 do séc. XX, ocorreram significativas alterações no contexto urbanístico e arquitetónico em Portugal. A denominada casa portuguesa, muito propagada e defendida no meio cultural do regime político que se instalara, ressurge no final do séc. XIX, apesar de não ter sido uma ideia consensual. Alguns intelectuais apontaram erros de leitura e o efeito negativo da sua aplicação, por corresponder a um retrocesso e inviabilizar os princípios da arquitetura moderna. Contudo, os defensores da corrente conservadora terão tomado à letra escritos e projetos do arquiteto Raúl Lino (1879-1974) e procuraram nacionalizar a paisagem arquitetónica das cidades, vilas e aldeias de Portugal continental, das ilhas adjacentes e das colónias. A casa de quatro águas, beirais prolongados, alpendre, e aberturas contidas, com integração de arrebiques decorativos nas fachadas, rodeada por jardim, horta e árvores de fruto, de modo a expressar uma pseudorruralidade, ou uma urbanidade rural, adquire estatuto de casa portuguesa, ou de casa em sintonia com uma ideia de portugalidade; pretendia-se, por isso, que este modelo se instalasse desde o Minho a Timor. A ilha da Madeira acolheu este movimento e elegeu os seus protagonistas, que se limitaram a implementar no terreno as diretivas e/ou os projetos que lhes chegaram por via administrativa, embora uns estivessem mais envolvidos ideológica e culturalmente com a causa que outros, que seriam indiferentes à mesma. O arquiteto Edmundo Tavares (1892-1983), adepto das convicções de Raúl Lino, viveu no Funchal entre 1932 e 1939, período durante o qual concebeu projetos para edifícios públicos e para casas que procuravam expressar um enquadramento regional madeirense. Alguns destes exemplos foram publicados no livro Casas Madeirenses de J. Reis Gomes (1869-1950), um intelectual influente na região e partidário da corrente supra mencionada, cuja opinião influenciou diversos autores e vários projetos realizados no Funchal. Também não lhe terão ficado indiferentes as autoridades do setor da administração do território e das obras públicas, assim como os projetistas, de diversa formação; os seus projetos ter-se-ão vestido de novas roupagens arquitetónicas, algumas resultantes da consulta de jornais e revistas que circulavam em repartições públicas, em livrarias e em pequenos ateliês. As obras de Raúl Lino e de Fernando Perfeito de Magalhães (1880-1958), a par do livro de Edmundo Tavares, Vivendas Portuguesas: Projetos, Pormenores, e de ilustrações de sua autoria, escolhidas para a publicação de J. Reis Gomes, exerceram grande influência e terão tido um forte papel no surgimento de um pseudorregionalismo da casa madeirense. Edmundo Tavares, nas palavras prévias à obra Vivendas Portuguesas afirma: “Perversão do gosto das pessoas sem cultura estética, nem consciência nacional” (TAVARES, 1952, 11). O que faz acreditar que a intenção da sua ação seria a de nacionalizar a arquitetura que se deveria construir. Em Casas Madeirenses, publicado em 1937, Reis Gomes refere que num novo bairro do Funchal, levado a efeito pela Junta Geral “as casas seriam recolhidas, tendo um espaço sempre ajardinado à frente da via pública”. Sobre outros prédios previstos para a mesma zona, diz que seriam construídos “em obediência a condições de perspetiva e tipo regional que, tendo a casa portuguesa por base, conta com elementos construtivos e de decoração interna e externa, mais particularmente madeirenses” (GOMES, 1968, 89). No mesmo livro, deixa ainda bem claras as suas convicções sobre a casa madeirense e os seus objetivos: “A casa regional poderia ter nesse bairro, como nos arredores, condições de liberdade para pôr em evidência todo o seu grande pitoresco, superior, ainda ao da casa original, pelas ornamentações do frontispício, onde as notas de forma e cor, e as ligações das cantarias, bem como o emprego de azulejos policromados portugueses e moçárabes vieram juntar-se às características do estilo originário” (GOMES, 1968, 89). E, numa vertente mais específica, continua, para melhor vincar esse caráter distintivo: “E se a tudo isto acrescentarmos o efeito decorativo dos nossos mirantes, balcões e ‘casinhas de prazer’, cobertos de trepadeiras e ornatos de flores, [...] faria deste Funchal moderno um dos mais belos e pitorescos espécimes de bairros novos construídos em qualquer parte do mundo” (GOMES, 1968, 89).   Casa moderna: interior da venda. Santo António, Santana [1996]     Casa moderna e venda. Santo António, Santana [1996] As construções em espaço rural, que surgiram no período entre guerras e principalmente a seguir ao confronto mundial são surpreendentes. Trata-se de réplicas construídas com novos materiais, como o tijolo de cimento e a telha marselha ou em xadrez, igualmente de cimento. São muito discretas as inovações tipológicas registadas; destacam-se as escadas interiores com alçapão de pavimento para uso pontual e os sótãos com acesso intermitente ou com acesso exterior. As paredes construídas com uma fiada de tijolo tornaram-se mais esbeltas e libertaram alguma área. As paredes de alvenaria de pedra continuaram a ser utilizadas em virtude do elevado custo do bloco de cimento. Os pavimentos, os tetos e as armações da cobertura continuaram a ser em madeira, de um modo geral, em pinho da terra. Os sanitários continuaram a não existir ou a estar integrados no interior das casas e as cozinhas mantiveram as configurações anteriores, não dispondo de água, nem de saneamento. Algumas delas integravam chaminés pré-fabricadas com um novo desenho, mas a saia e o lar no seu interior permaneceram arcaicos relativamente ao local do fogo e aos revestimentos. Os desejos de Edmundo Tavares sobre as “exigências da vida atual no que respeita à habitação” (TAVARES, 1952, 12) não foram cumpridos nestas casas, que se ficaram pelas aparências. Casa moderna. Sítio do Jogo da Bola, Lombo - CanhasPonta do Sol [1996]   Estes modelos inscrevem-se no último ciclo da arquitetura madeirense, que culmina e/ou coincide com a atribuição do estatuto de região autónoma à ilha da Madeira (1976). Segue-se um período de transição, onde alguns modelos, instalados no terreno nos anos 1970 e 1980, associados mas não de forma exclusiva à imigração sul-africana e venezuelana, se impõem. Estes substituem centenas de casas rurais, elevando-se em muitos casos em múltiplos andares a partir da cota da estrada até às cotas inferiores das escarpas. Nos começos do séc. XXI, a arquitetura vernacular suscitou algum interesse por parte dos seus proprietários antigos ou de novos, que começaram a procurar o caminho da reabilitação, alguns investindo em arquitetos reconhecidos pela sua atividade na conservação e readaptação das casas de tradição, por manter o uso antigo ou por adaptar as casas a pequenas unidades hoteleiras, contribuindo, com a indicação de materialidades que ajudam a sustentar um discurso votado à identidade insular e ao património local, para o processo de reinvenção e reinterpretação de valores culturais que ocorreram nas ilhas da Madeira e do Porto Santo.   Victor Mestre fotos: Arquivo Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

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