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orçamento

Análise da forma e da evolução dos orçamentos, tendo em consideração os nacionais e os locais, através da Junta Geral e do Governo Regional. Palavras-chave: Orçamento; Junta Geral; Governo Regional. O orçamento é a previsão da receita e despesa para o ano económico. É a partir da Lei do Orçamento, aprovada pelo Parlamento, que o Estado está autorizado a cobrar receitas e a efetuar as despesas. Os orçamentos são uma realidade recente, em termos de contabilidade, pois iniciam-se, formalmente, em Portugal, em 1533. No entanto, há quem aponte a sua existência a partir de 1473. Até então, não passavam de meros relatórios de contas realizados por um contador, sob a supervisão do vedor da Fazenda. Nos sécs. XVI e XVII, eram apenas registos de previsão da despesa realizados pelo vedor da Fazenda; tratava-se de documentos de carácter irregular, que só eram feitos mediante solicitação superior. No que diz respeito ao Reino, temos referências a documentos orçamentais dos anos de 1526, 1534, 1557, 1607 e 1619. Destes, podemos referir para o Estado da Índia os de 1574, 1581, 1588, 1588-90, 1607, 1609-12, 1620, 1635, 1680 e 1687. O orçamento e modelo de gestão orçamental que vigora no começo do séc. XXI, como ato jurídico, foi estabelecido na Constituição de 1822, mas só teve execução a partir de 1834. De acordo com a Constituição de 1822 (arts. 103 e 227), a Carta constitucional de 1826 (arts. 15, 136 e 138) e a Constituição de 1838 (art. 37, 54, 132 e 136), competia às Cortes determinar a despesa pública e os impostos a arrecadar, assim como fiscalizar a sua execução anual. O orçamento foi reformado pela Constituição de 1911 (art. 23, 26 e 54) estabelecendo-se, no art. 54, que deveria ser entregue ao Congresso, para discussão e apresentação, até ao dia 15 de janeiro. Mas nem sempre esta situação aconteceu, por força da instabilidade política que se viveu durante a Primeira República. Assim, entre 1918 e 1926, apenas dois foram aprovados e, ainda assim, com algum atraso. Nestas circunstâncias, recorria-se às Leis de Meios e aos duodécimos. Com a Constituição de 1933 – que surge como resultado do golpe militar de 1926 e da reforma fiscal apresentada por Salazar –, retira-se à Assembleia Nacional a capacidade de aprovar e fiscalizar o orçamento, que passa a ser elaborado e posto em execução pelo Governo. Desta forma, a Assembleia aprova uma Lei de Meios genérica e, ao Governo, fica a liberdade de estabelecer o Orçamento Geral do Estado, que será publicado sob a forma de decreto orçamental. Em algumas circunstâncias, a situação passa por uma norma legal que estabelece o orçamento do ano anterior, como aconteceu entre 1896 e 1910. São aqui referidos os anos económicos sem orçamento definitivo: o período de 1821-1836, 1838-39, 1840-41, 1842-43, 1843-44, 1844-45, 1847-48, 1851-52, 1856-57, 1858-59, 1859-60, 1861-62, 1862-63, 1865-66, 1868-69, 1869-70, 1870-71, 1871-72, 1879-80, 1905-06, 1906-07, 1910-11, 1919-20, 1920-21, 1921-22, 1924-25 e 1925-26. Nesta enumeração, deveremos diferenciar o orçamento das propostas governamentais e dos diplomas de aprovação do mesmo: as propostas governamentais de orçamento reportam-se a 1913-14, 1917-18, 1919-20, 1925-26, 1926-27 e 1936-347. De acordo com os preceitos constitucionais do Estado Novo, a aprovação do orçamento pelo Parlamento fazia-se através de uma lei, chamada Lei da Receita e da Despesa. Assim, o Parlamento deveria aprovar, antes do início do ano económico, o respetivo Orçamento, apresentado pelo Governo. Antes de o submeter à apreciação da Assembleia, o Governo deveria aprová-lo por decreto-lei. Com a Constituição de 1976, foi criada uma Lei do Orçamento de Estado, e o Governo tem de aprovar o Orçamento através de um decreto orçamental. Junta Geral da Madeira (1903-1976) Com a definição da autonomia distrital a partir de 1901 surgiu a figura institucional da Junta Geral, que gere o Governo do distrito do Funchal. Era esta junta que exercia a administração do espaço do arquipélago, mediante competências delegadas. Os orçamentos desta Junta Geral eram elaborados e propostos pela Comissão Distrital do Funchal para aprovação à Junta Geral na última sessão ordinária do ano civil, devendo entrar em execução a partir do dia 2 de janeiro do ano a que se reportavam. A não existência do mesmo na data era considerada motivo para a demissão da comissão que presidia à Junta. Os orçamentos das Juntas Gerais eram equiparados, em termos de contabilidade, aos orçamentos a que estavam obrigados os concelhos de primeira ordem (art. 33), isto é, os mais importantes no quadro da administração municipal. Esta ideia, determinada no Estatuto, implicava uma exigência em termos procedimentos contabilísticos. A lei n.º 88 de 1913 dedica o capítulo II aos orçamentos, onde estão definidas as regras da sua estrutura e elaboração, bem como dos tipos de orçamentos que a Junta pode elaborar: ordinários e suplementares. Os últimos acontecem apenas como resultado de alterações que sucedam no decurso da execução dos primeiros, não havendo qualquer limite quanto ao número dessas alterações. Esta situação e a transferência de verbas orçamentais eram autorizadas pelo governador civil, depois de ouvida a Comissão Distrital. Em termos de política orçamental, a comissão executiva da Junta apenas estava autorizada a proceder a transferências de verbas entre as diversas rubricas. O valor anual do orçamento era imutável, i.e., os orçamentos suplementares não aumentavam nem diminuíam o valor inicial atribuído à receita e à despesa, a não ser que ocorresse uma receita extraordinária e existisse a necessidade de aplicá-la. As principais fontes de receita da Junta Geral eram os impostos (impostos distritais, contribuições diretas e adicionais, imposto do vinho de estufa, imposto para hospitalização de alienados e socorros a náufragos, impostos sobre o açúcar, o álcool e a aguardente, imposto sobre os combustíveis, fundo de viação e turismo, contribuição predial, contribuição industrial, imposto sobre capitais, imposto sobre transações, imposto de camionagem, imposto profissional, imposto de trânsito, imposto de compensação, imposto do tabaco, imposto do selo, imposto de circulação, as cobranças estabelecidas no art. 1.º do dec.-lei n.º 34051 e no art. 2.º do dec--lei n.º 34051, bem como os emolumentos, as multas e taxas, as receitas de diversos serviços, o rendimento das levadas do Estado, os recebimentos para outras entidades, os subsídios, os empréstimos, as dívidas, os subsídios do fundo de desemprego e outras receitas. Devemos ainda assinalar, desde 1956, o adicional de 10 % sobre o imposto profissional, assim como diversos adicionais consignados a certas despesas. Assim, por despacho ministerial de 30 de dezembro de 1953, foi estabelecida uma taxa sobre a entrada e saída de mercadorias para a assistência distrital. A isto acrescentara-se, em 1933, as comparticipações de 50 % do fundo de Desemprego para as obras de utilidade pública. As principais despesas obrigatórias eram: os vencimentos do pessoal; as pensões de aposentação; os encargos de empréstimos; o pagamento de dívidas exigíveis; as despesas com os litígios; as despesas de dotação dos serviços distritais; a hospitalização de alienados. Ainda temos as despesas relacionadas com o funcionamento do Governo Civil, com as escolas do ensino liceal e técnico; com a delegação do Tribunal do Trabalho e Previdência; com o Tribunal do Trabalho; com a direção do distrito escolar; com o Arquivo Distrital; e as despesas de representação do presidente da Comissão e do Governo do distrito. Governo Regional da Madeira A Constituição de 1976 estabelece um regime híbrido entre a Constituição de 1933 e os anteriores textos constitucionais. Deste modo, ao Governo compete elaborar o orçamento, publicado por decreto-lei orçamental, enquanto à Assembleia compete aprovar a Lei do Orçamento. O plano de atividades, que fundamenta a despesa e que até então era apresentado de forma separada, passou a estar integrado no orçamento. Com a revisão constitucional de 1982, a Assembleia aprova o orçamento, e ao Governo compete executá-lo. Na revisão de 1989, a mudança mais significativa prende-se com o regime do plano de atividades. A integração de Portugal na União Europeia implicou alterações da política orçamental, nomeadamente a partir da assinatura do Tratado de Roma, a 7 de Fevereiro de 1992, que determinou a necessidade de convergência económica e financeira. Nesse quadro, releva-se a fiscalização, pela Comissão Distrital, da evolução da situação orçamental, designadamente no que concerne à dívida pública, que, suplantando os limites estabelecidos, implicava pesadas penalizações de carácter financeiro. O orçamento regional é elaborado, desde 1976, pelas regiões autónomas da Madeira e dos Açores. A elaboração e execução destes orçamentos baliza-se pelo Estatuto Administrativo da Região, a legislação de enquadramento do orçamento e das finanças regionais, o programa do Governo regional, o Quadro Comunitário de Apoio e o Orçamento Geral do Estado. De acordo com o primeiro Estatuto, dito provisório enquanto o definitivo não é elaborado pela Assembleia Regional da Madeira, a Região deve elaborar um orçamento e plano económico regional, a enquadrar no Orçamento do Estado, que deve ser submetido à aprovação da Assembleia Regional. Recorde-se que o orçamento regional começou por ser integrado no Orçamento do Estado, o que implicava que a sua plena execução estava sempre pendente do orçamento nacional. A proposta de orçamento é elaborada pela Secretaria Regional das Finanças, aprovada em plenário do Governo por resolução, assinada pelo presidente e pelo secretário das Finanças, e depois submetida à aprovação da Assembleia Regional, quer sob a forma de decreto regional (apenas nos anos de 1977-1978), quer passando depois a resolução desta Assembleia (a partir de 1979), dando lugar a decreto legislativo regional (desde 1988). A execução deste documento é definida por decreto regulamentar regional, sendo as alterações ao mesmo orçamento feitas através de decreto legislativo regional. A situação de dependência do orçamento regional em relação à aprovação do Orçamento Geral do Estado, por forças das verbas, consideradas de acordo com o princípio de solidariedade do Estatuto de 1976 (art. 56), conduzirá a que seja aprovado muitas vezes de forma tardia, como sucedeu entre 1977 e 1986. Até 1988, o orçamento, depois de aprovado pela Assembleia Regional e assinado pelo ministro da República, era remetido ao Governo da República para ser integrado no Orçamento do Estado. A partir desta data, com base no artigo n.º 22 da Constituição, o Governo Regional passou a submeter o orçamento à Assembleia Regional sob a forma de proposta de decreto legislativo regional, que, depois de aprovado pela Assembleia, era assinado pelo presidente da mesma e pelo ministro da República, sendo depois publicado em Diário da República. Esta fórmula era também seguida quanto aos programas e projetos plurianuais do Plano de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração da RAM. As alterações orçamentais, que até 1990 estavam sujeitas à apresentação e aprovação, pela Assembleia Regional, de um orçamento suplementar, deixam de existir (de acordo com o art. 20 do dec.-lei 40/83, de 13 de dezembro), estando o Governo autorizado a realizá-las, desde que não impliquem alteração na despesa, procedendo à sua publicação no Jornal Oficial da RAM. Em termos de execução orçamental, surgiram alguns instrumentos legislativos. A lei n.º 28/92 DR 201/92 Série I-A, de 1 de setembro, estabeleceu as regras referentes ao Orçamento da Região Autónoma da Madeira, os procedimentos para a sua elaboração, discussão, aprovação, execução, alteração e fiscalização, e a responsabilidade orçamental. Foi alterada pela lei n.º 53/93 DR 177/93 Série I-A, de 30 de julho. A lei n.º 91/2001, de enquadramento do Orçamento do Estado, estabelece “as disposições gerais e comuns de enquadramento dos orçamentos e contas de todo o setor público administrativo”. Assim, define “as regras e os procedimentos relativos à organização, elaboração, apresentação, discussão, votação, alteração e execução do Orçamento do Estado, incluindo o da segurança social, e a correspondente fiscalização e responsabilidade orçamental, e à organização, elaboração, apresentação, discussão e votação das contas do Estado, incluindo a da segurança social”. A orgânica da Direcção Regional de Orçamento e Contabilidade foi aprovada pelo dec. reg. n.º 21/93/M DR 157/93 Série I-B, de 7 de julho. A falta de controlo sobre o sistema tributário e a sua arrecadação, associada à insuficiência de recursos financeiros, por parte do Estado, para satisfazer as necessidades de funcionamento das instituições, nomeadamente dos setores da saúde e da educação, criou insistentes problemas de tesouraria às finanças regionais, obrigando a constantes recursos a empréstimos. Assim, as políticas orçamentais geraram conflitos entre os Governos regional e central. A isto associa-se, muitas vezes, a aprovação tardia do Orçamento Geral do Estado, mecanismo que estipula o valor anual das verbas correspondentes às transferências do Estado, que conduz a atrasos na aprovação do Orçamento regional, bem como na definição de políticas orçamentais. Os anos de 1985 e 1986 foram de particular significado para esta conjuntura de difícil execução orçamental, tendo levado à negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República. Desta forma, pela resolução 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo Regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve novo programa de recuperação financeira, que vigorou até 31 de dezembro de 1997.   Alberto Vieira Eduardo Jesus (atualizado a 15.12.2017)

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pautas aduaneiras

As pautas aduaneiras podiam ser únicas ou múltiplas (ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem ou condições de importação), ou mistas. A partir da década de 30 do séc. XIX, ocorreram diversas alterações nas pautas, as quais foram apontadas por vários madeirenses como responsáveis pelas dificuldades comerciais do arquipélago. Palavras-chave: Alfândegas; Pautas.   As pautas aduaneiras eram tabelas de mercadorias, com as respetivas taxas de importação e exportação. Estas pautas podiam ser únicas ou múltiplas, ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem e as suas condições de importação. Havia, ainda, as chamadas pautas mistas, que contemplavam as duas situações. A necessidade da sua quase permanente adaptação às novas circunstâncias do mercado obrigou as autoridades a criarem comissões para a sua revisão. As alfândegas foram criadas na Madeira em 1477 e o seu funcionamento em termos de regulamentação das taxas foi estabelecido por regimentos (1499). Na documentação da antiga Alfândega do Funchal, existem: as avaliações de artigos de produção e indústria inglesa (1811); a Pauta Geral da Alfândega grande de Lisboa – impresso, cópia e emolumentos (1782-1836); e a Pauta Geral e inglesa para a avaliação das mercadorias (1834). A Pauta Geral da Alfândega era um documento onde se estabeleciam as normas precisas para avaliação dos géneros, sob o ponto de vista fiscal. Foi estabelecida em 1782, por D. Maria I, para a Alfândega de Lisboa, e tornou-se aplicável a todas as do reino, tendo-se mantido até 1832. Entretanto, em 1818, D. João VI, no Brasil, determinou, por alvará régio de 25 de abril, alterações aos direitos pagos nas Alfândegas de Portugal e do Brasil. O facto de as pautas terem sido estabelecidas, de forma geral, para o país, ignorando as especificidades, nomeadamente dos arquipélagos insulares, criou várias situações penalizadoras que fizeram levantar a voz dos insulares. O debate político local, nomeadamente após a revolução liberal, será muitas vezes alimentado em torno destas pautas e dos seus efeitos positivos ou negativos para a vida económica local, insistindo-se na necessidade de adaptações ou de uma pauta específica. Pelo dec. n.º 14, de 20 de abril de 1832, fez-se a reforma da Pauta Aduaneira, a que se seguiu outra, pelo dec. de 10 de Janeiro de 1837. A partir desta data, a Pauta passou a ser geral para todo o país, deixando de existir pautas específicas para cada Alfândega. É nítida uma intenção livre-cambista, mas a necessidade de receita impediu um maior progresso. A 4 de julho de 1835, foi criada uma comissão para proceder à revisão da Pauta. A nova Pauta entrou em vigor pelo decreto de 10 de janeiro de 1837. A Madeira não foi ouvida e apenas foram considerados os interesses da burguesia comercial do Porto e Lisboa. Por essa razão, a referida Pauta revelou-se danosa para as demais regiões, nomeadamente para a Madeira, tendo por isso merecido a contestação dos madeirenses, por permitir a entrada livre de vinhos e aguardentes do continente. Mesmo assim, alguns artigos considerados ruinosos para a Madeira foram suspensos pelas Cortes, por influência do deputado Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, que fora governador e era então deputado eleito pela Madeira. No séc. XIX, a cobrança dos direitos de exportação no Funchal estava regulamentada por duas Pautas: a geral e a inglesa. A última, feita de acordo com o tratado de comércio com Inglaterra (1810), determinava privilégios especiais aos Ingleses. Diogo Teles de Menezes (1788-1872), diretor da Alfândega, decidiu, por sua iniciativa, fundir ambas e criar uma nova Pauta Alfandegária, que motivou um aceso protesto da Associação Comercial do Funchal, que fora criada em 1836. Em 1839, a Associação Comercial submeteu à Câmara do Funchal uma proposta de alteração da Pauta, que não foi contemplada. Todavia, na revisão da Pauta de março de 1841, a Madeira continuaria a manter o regime de exceção para os vinhos aguardentes e os cereais. Neste mesmo ano, surgiu, no Funchal, uma comissão auxiliar da comissão permanente da Pauta Geral das Alfândegas. As diversas alterações e reformas da Pauta Aduaneira que tiveram lugar ao longo do séc. XIX (em 1837, 1841, 1850, 1852, 1856, 1860, 1870, 1882, 1885, 1887, 1892, 1924 e 1926) sempre mereceram reparos dos madeirenses, que a apontaram como responsável pelas dificuldades comerciais do arquipélago, nomeadamente devido à falta de competitividade com os portos vizinhos das Canárias. Com efeito, a Pauta será motivo de permanente reclamação, porque a Madeira está numa situação distinta dos demais portos do reino e as medidas protecionistas apenas ponderam as condições de Portugal continental. A este propósito, diz-nos Paulo Perestrelo da Câmara: “Finalmente deve-se contemplar, na massa dos males, que, ultimamente mais tem pesado sobre a Madeira, a lei das Pautas, que com os seus efeitos proibitivos, nada mais tem feito, senão aperfeiçoar a ciência do contrabando, dando cabo de um comércio já tão enfraquecido. A mania de tudo mudar, levou esses novos legisladores á demencia de por a Madeira na mesma escala de produções e interesses que Portugal, com quem esta ilha não pode comerciar, pois abundando em vinhos excelentes, não os consome aquela, a quem também não pode fornecer os artefactos, de que carece. A Madeira só pode negociar com países não vinhateiros, e deles receber os artigos de que carece, mas com direitos suaves” (CÂMARA, 1841, 95-96). Assentando a economia da Ilha apenas no comércio do vinho e, sendo este o principal alvo das tributações, era difícil conseguir algum lucro e competitividade no mercado externo. Por outro lado, a Madeira necessitava de importar tudo aquilo de que precisava para a sua manutenção, desde manufaturas a cereais. Na mesma linha, a possibilidade de trazer para a Madeira parte da navegação oceânica, como forma de animar o movimento do porto comercial, passaria por medidas que favorecessem essa situação, face às melhores condições oferecidas por outros portos como os das Canárias. Neste caso, existiria a necessidade de estabelecer condições mais favoráveis à entrada e saída no porto do Funchal, através da criação de infraestruturas e de medidas fiscais que não fossem penalizadoras, nomeadamente quanto à entrada e saída do carvão, o principal meio de combustível a partir desta centúria. O grande objetivo era fazer do Funchal a principal estalagem do oceano. Uma pauta penalizadora destas importações era, portanto, prejudicial para a Madeira, fazendo aumentar o clamor por soluções aduaneiras que tivessem em conta esta situação específica, que raras vezes merecia a aprovação e o entendimento dos pares e das autoridades da metrópole. As Pautas necessitavam de permanente atualização, criando-se para o efeito comissões específicas. A Comissão Revisora foi criada para aceitar as reclamações sobre as mesmas e propor a sua reforma, de acordo com a situação da indústria nacional e com as alterações das pautas estrangeiras. Reorganizada por decreto de 31 de março de 1845, foi extinta em 28 de dezembro de 1852, para dar lugar à Comissão para as Pautas Aduaneiras que, por sua vez, deu lugar, por decreto de 25 de outubro de 1859, à Comissão Revisora da Pauta Geral da Alfândega, que estava incumbida da missão de proceder à realização da estatística das fábricas e oficinas do país, à recolha de informações sobre a produção, o consumo e a exportação dos seus produtos e, ainda, ao estudo sobre a importação de produtos das indústrias estrangeiras. Foi substituída, a 3 de novembro de 1861, pelo Conselho Geral das Alfândegas. As reformas das Alfândegas foram estabelecidas pela portaria de 14 de outubro de 1864 e pelos decretos de 7 de dezembro de 1864, bem como de 28 de agosto e de 23 de dezembro de 1869, tendo o corpo auxiliar das Alfândegas sido transformado num serviço de rondas volantes. O decreto de 7 de dezembro de 1864 estabelece a reorganização das Alfândegas, com a extinção da Administração Geral do Pescado, e constitui duas circunscrições: a marítima e a da raia. Na Alfândega do Funchal, a regulamentação de toda a atividade da repartição, bem como o cômputo e a arrecadação dos direitos de entrada e saída regulavam-se através das Pautas de 1843, 1850, 1856, 1860, 1885 e 1887, e por meio das cartas de lei de 1844-1845. Os serviços da Alfândega diferenciavam-se dos do Almoxarifado por estes apenas poderem proceder à cobrança, funcionando, assim, como recebedoria. Com a Pauta de 1892 foram consideradas algumas especificidades locais das ilhas, com salvaguarda o comércio do açúcar na Madeira, nos Açores e no continente, com uma taxa reduzida de 1/4 do seu valor monetário. Com a implantação da República, introduziram-se alterações na cobrança dos direitos, sendo de destacar que apenas em 9 de fevereiro de 1915 se suspendeu a cobrança do imposto de farolagem no porto do Funchal, uma medida reclamada havia muito tempo, que ganhou força de lei pela intervenção do visconde da Ribeira Brava. Por força da desvalorização da moeda e da Primeira Guerra Mundial, ficou determinado, pelo dec. n.º 41.333, de 18 de abril de 1918, que os direitos de importação seriam pagos em ouro. Criaram-se, assim, dificuldades à exportação, assim como à entrada de mercadorias. Por outro lado, o dec. n.º 4682, de 27 de abril de 1918, estabeleceu sobretaxas relativas à importação de diversas mercadorias. A oneração fiscal das importações continuou, pois, pelo dec. n.º 6263, de 2 de dezembro de 1919, e foram duplicados todos os direitos e sobretaxas de importação estabelecidos em 1918, permanecendo a exigência do pagamento em ouro, mas aplicada apenas de metade do valor. Posteriormente, o dec. n.º 1193, de 31 de agosto de 1920, determinou que o quantitativo integral dos direitos e sobretaxas fosse exigido em ouro. A Pauta única nacional vigorou, por todo o séc. XIX, dando lugar, com a reforma de 1921, ao regime de pauta múltipla. Em 1922, insiste-se na falta de funcionários, mas a principal reclamação recaía sobre o quase permanente aumento das pautas, numa altura de grave crise económica, marcada por descidas, quase contínuas, da moeda portuguesa. Pelo dec. n.º 8747, de 31 de março de 1923, foi aprovada nova Pauta Aduaneira em que foram abolidas algumas sobretaxas. Ao mesmo tempo, em 17 de março, criou-se um adicional de 2 % sobre todos os direitos de importação para acudir às despesas com a Misericórdia do Funchal. Depois, a 10 de março do ano seguinte, surgiu mais um adicional de 5 % para o serviço de incêndios. A Pauta foi revista pela lei n.º 1668, de 9 de setembro de 1924, e não gerou consensos; era uma forma de regularizar o comércio externo no pós-Primeira Guerra Mundial. A 12 de outubro de 1926, os combustíveis sólidos ou líquidos passam a ser taxados a 0,5 % sobre o seu valor. No quadro da lista de produtos das pautas alfandegárias, os valores cobrados pelas farinhas e os cereais mereceram, por parte dos madeirenses, uma atitude de permanente repulsa, tendo em conta a dificuldade que tinham em se prover dos mesmos. Com o regime da Ditadura Militar, ocorreu uma reforma da Pauta, consoante o dec. n.º 17.823, de 31 de dezembro de 1929, que era já a expressão plena da mudança das conjunturas mundiais, política e económica. Todavia, as medidas protecionistas continuaram a marcar presença, como se poderá verificar pelos decs. n.º 20.935, de 26 de fevereiro de 1932, que impunha um adicional de 20 % aos direitos de importação, e n.º 24.115, de 29 de junho de 1934, por meio do qual foi estabelecido o regime de proteção de bandeira, ao serem taxadas, através de um adicional de 13,5 %, as mercadorias exportadas em navios estrangeiros. Já o dec.-lei n.º 30.252, de 30 de dezembro de 1939, duplicou o valor dos direitos de exportação específicos e fez incidir 2,5 % sobre a taxa dos direitos de exportação ad valorem. Esta situação perdurou até 1947. No período da guerra, a principal atenção foi para a exportação de volfrâmio.A partir de 1948, com a entrada de Portugal na Organização Europeia de Cooperação Económica, e depois em 1959, com a adesão à Associação Europeia do Comércio Livre, foram operadas outras mudanças nas pautas, pelo dec.-lei n.º 42.656, de 18 de novembro de 1959. Este processo culmina, em 1962, com a adesão de Portugal ao Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio. Entretanto, em 1961, havia sido criada uma zona de comércio livre entre Portugal e as colónias que, por ter sido um fracasso, foi abolida em 1971. Em 1972, Portugal assinou um tratado de associação à Comunidade Económica Europeia que seria o início de uma caminhada para a sua integração nesta comunidade em 1986, com reflexos evidentes, também, nas pautas aduaneiras, como expressado no dec.-lei n.º 19/92, de 5 de fevereiro, que aprovou a Pauta dos Direitos de Importação que conduziu à aplicação da Pauta Aduaneira comum, a partir de 1 de janeiro de 1993. Com a entrada de Portugal na CEE, houve uma alteração das pautas alfandegárias. Assim, a Pauta Aduaneira comum, um dos elementos constitutivos da união aduaneira, é publicada anualmente por regulamento comunitário, que altera o regulamento de base (regulamento CEE n.º 2658/87 do Conselho, de 23 de julho de 1987, relativo à nomenclatura pautal e estatística e à Pauta Aduaneira comum). A Pauta Aduaneira compreende, entre outros elementos, os direitos de importação e a nomenclatura combinada das mercadorias. Além desta, existe a Pauta de Serviço, que é o documento onde se estabelecem as informações sobre a tributação das mercadorias importadas de países terceiros. Constam ainda da mesma as medidas de política comercial comum, nomeadamente restrições quantitativas, direitos aduaneiros, direitos anti-dumping, suspensões e contingentes pautais, bem como as medidas de âmbito nacional, tais como o imposto sobre o valor acrescentado, os impostos especiais de consumo e as informações complementares sobre as condições de desalfandegamento das mercadorias. A Pauta de Serviço é elaborada com base nos elementos integrados da Pauta Integrada das Comunidades Europeias (TARIC) que são recebidos, diretamente, de Bruxelas. Contém, igualmente, informações de carácter nacional (taxas do IVA e informações sobre as condições a respeitar na importação e exportação de mercadorias). Por fim, existe a Pauta Integrada da Comunidade Europeia, que é a Pauta Aduaneira comum, em sentido lato, atendendo a que o regulamento anual não contém diversos elementos essenciais para o desalfandegamento das mercadorias, nomeadamente taxas dos direitos aduaneiros a aplicar no âmbito de regimes pautais preferenciais, suspensões de direitos de importação, direitos anti-dumping, licenças de importação, medidas de vigilância, proibições, etc.   Alberto Vieira (atualizado a 19.12.2017)

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susan harriet vernon harcourt

Lady Susan Harriet Vernon Harcourt nasceu em 1824 e recebeu o nome de Susan Harriet Holroyd. Era filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876) e casou-se, em agosto de 1849, com Edward William Vernon Harcourt (1825-1891). No ano anterior ao do seu casamento, lady Susan acompanhou o noivo à Madeira com sua mãe, a condessa de Sheffield. Edward já tinha estado na Madeira de outubro de 1847 a abril de 1848., e esteve com a noiva de novembro de 1848 a maio de 1849. Volta à Ilha depois do casamento, de novembro de 1849 a maio de 1850 e de novembro de 1850 a abril de 1851. Na família Harcourt parece ter sido tradição, entre os que apresentavam debilidades físicas, a passagem do inverno na Madeira, onde esteve o pai de Edward, Rev. William Vernom Harcourt, e, no inverno de 1847 para 1848, seu irmão William George Granville Venables Vernon Harcourt (1827-1904), depois ministro do Interior de um dos governos da rainha Vitória e uma das figuras políticas determinantes do seu tempo; mais tarde, o filho deste também frequentaria a Madeira (Turismo terapêutico). O álbum de lady Susan Harcourt Sketch of Madeira, editado em Londres, em 1851, por Thomas McLean, espelha a educação das classes abastadas da sua época, a que não escapava a autora e o marido, que edita na mesma data e pelo mesmo editor A Sketch of Madeira, Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor, dedicado à sogra, condessa de Sheffield. Edward também se interessava por ornitologia e daria à estampa as suas observações sobre as aves da Madeira, igualmente editadas em Londres, em 1855. Trocava, inclusivamente, correspondência com Charles Darwin; da qual se extraíram as informações sobre as suas deslocações à Madeira. O conjunto de litografias de lady Susan reúne 22 vistas da Madeira, litografadas pela própria ou pelo menos com a sua colaboração. Destas litografias 3 são em grande formato, demonstrando muito boa qualidade de desenho, com um traço suave, delicado e feminino, abarcando os grandes planos gerais e esboçando somente os pequenos detalhes. Desconhece-se o destino dos originais, bem como de posteriores trabalhos da autora, que terá passado a dedicar-se inteiramente à educação dos dois filhos. Morre aos 64 anos, em abril de 1894. A documentação da família encontra-se hoje integrada na Bodleian Library da Universidade de Oxford, onde, em conformidade com o que foi dito não constam os desenhos originais nem referência a trabalhos posteriores, que talvez se mantenham na posse da família. O conjunto editado do casal Harcourt enquadra-se no “grand tour” de educação das sociedades europeias abastadas, que olhavam para a Madeira como um destino no leque de possibilidades do turismo terapêutico. Ao mesmo tempo, este conjunto retrata uma nova posição e atitude da mulher ao longo do séc. XIX, que não só desenha em público, o que até então era quase impossível, como edita depois as suas obras, podendo, inclusivamente, trabalhar na sua passagem à litografia. Poucos anos antes, em 1845, também Jane Wallas Penford (1821-1884) editara os seus trabalhos em Londres, no conjunto Madeira Flowers, Fruits, and Ferns, este elaborado a partir de aguarelas feitas na sua propriedade da quinta da Achada – e não em público – e de litografias posteriormente aguareladas pela sua mão, também na sua quinta do Funchal. Edward Harcourt tece algumas considerações sobre os desenhos da sua então ainda noiva lady Susan, onde descreve a dificuldade em captar o cenário grandioso da paisagem madeirense, face à contínua mudança de luminosidade. Ao contrário da permanente neblina dos ambientes nórdicos, na Madeira a constância dos brilhos alterava-se constantemente pela simples passagem de uma nuvem. O autor conta ainda as dificuldades em que se via a pintora ao iniciar o seu trabalho, por ser de imediato rodeada de inúmeros observadores que, parecendo não ter mais nada para fazer, ali se mantinham inabaláveis durante horas a fio. Informa e alerta também os futuros leitores sobre a taxa imposta pela Alfândega do Funchal aos desenhos levados da Ilha, 6 xelins e 8 pences por libra de peso, o que considerava um verdadeiro exagero, mas que configura a consciência do interesse económico dos mesmos por parte das autoridades aduaneiras insulares.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

Artes e Design Madeira Global Sociedade e Comunicação Social

hearne, thomas

O gravador inglês Thomas Hearne nasceu em Marshfield, Gloucestershire, a 22 de setembro de 1744, tendo iniciado a sua atividade como ajudante de gravador em 1765, sob a orientação de William Woollett (1735-1785), que se tornaria, mais tarde, secretário da Incorporated Society of Artists. Nos primeiros meses de 1771, aceitou trabalhar com sir George Howland Beaumont (1753-1827), depois 7.º barão de Beaumont, pintor amador que esteve na base da fundação da National Gallery de Londres. Teria sido na sequência desse trabalho de seis semanas em Suffolk, onde desenharam paisagens e edificações, e aonde voltaria depois, que foi convidado a servir, como gravador e pintor, o governador das Antilhas, Ralph Payne (1739-1807), cuja armada passou pela Madeira pelos finais de 1771, altura em que executou os desenhos preparatórios da grande panorâmica da cidade do Funchal, senão mesmo todo o trabalho. A partir dos meados do séc. XVIII, os governadores ultramarinos, não só os britânicos, mas também os portugueses, começaram a fazer-se acompanhar por engenheiros militares e também por pintores-gravadores, cuja função era desenhar os principais portos e edifícios desses domínios, além da criação de representações de paisagens e de costumes (Descrições militares). Estes elementos eram imprescindíveis para apoiar as decisões dos governadores e para informar as instâncias superiores das propostas daqueles. Ao mesmo tempo, deveriam ilustrar os arquivos dos governadores, promovendo depois a sua ação governativa, o que a morte prematura de Payne não veio a permitir. Muito provavelmente, um dos pressupostos dos trabalhos que este gravador e aguarelista inglês executou ao longo da sua viagem às Antilhas era também o de virem a ser passados a gravura em Londres. Vista geral do Funchal Thomas Hearne terminaria a sua comissão de serviço com o governador Ralph Payne em 1775, altura em que regressa a Inglaterra e termina os trabalhos efetuados nas Antilhas: cerca de 20 grandes aguarelas semelhantes à do Funchal, as quais vieram a ser leiloadas em 1810 por lady Lavington, após a morte de Ralph Payne, então barão de Lavington, no ano de 1807, em Antigua, onde estava como governador pela segunda vez. Desconhece-se, entretanto, como foi que a grande panorâmica de 2 metros veio a integrar a coleção da câmara municipal do Funchal. Aquela permanecera no Museu Municipal até 1986 e, nesta altura, passou a integrar o acervo do Museu da Cidade – embora somente mais tarde viesse a ser identificada, pela legenda no verso (que apresenta a data de 1772), com a qual deverá ter sido vendida em Londres. Sé do Funchal   Nau-almirante A grande panorâmica da ilha da Madeira e da cidade do Funchal, feita a partir da nau-almirante, ancorada ao largo da cidade, é um dos melhores trabalhos do género – depois designado por “desenho topográfico” – alguma vez executados sobre a Ilha. A cidade foi meticulosamente desenhada, edifício a edifício, naqueles últimos meses de 1771, e deu origem a um registo único, com o qual nada criado até então pode ser comparado, embora nas décadas seguintes alguns engenheiros militares, para acompanharem as suas plantas da Madeira, tenham ensaiado trabalhos semelhantes; é o caso da “Geo Hydrographic Survey of the Isle of Madeira, with Dezertas and Porto Santo Islands. Taken in the Year 1788”, de William Johnston, uma representação editada em Londres, no ando de 1791 (Cartografia), e da “Geo-Hydrographic Survey”, editada em 1841 e para a qual trabalhou António Pedro de Azevedo (1812-1889), que quase parece copiar a vista de Thomas Hearne, mas sem a qualidade deste. Entre outros pormenores, por exemplo, aquele trabalho de Thomas Hearne apresenta a única representação conhecida da igreja matriz de N.ª S.ra do Calhau, perdida na aluvião de 9 de outubro de 1803. Trata-se assim de um documento imprescindível para o estudo da arquitetura e do urbanismo do Funchal até ao séc. XIX. Forte de São Filipe e Nossa Senhora do Calhau Thomas Herne haveria de se distinguir entre os melhores artistas topográficos do seu tempo, dedicando-se ao desenho da arquitetura, nomeadamente de ruínas e de edifícios antigos, na abertura do romantismo, e do culto dos revivalismos, e também seria um dos pioneiros da escola de aguarelistas britânicos que floresceria no século seguinte. A pedido de nobres e proprietários, elaboraria inúmeros desenhos de antigas mansões, de castelos e de outros edifícios, tendo alguns sido aproveitados para reconstruções revivalistas, ao gosto dessa época. Viria a falecer na sua residência em Macclesfield Street, Soho, Londres, a 13 de abril de 1817, e foi enterrado em Bushey, Hertfordshire.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

Artes e Design

teixeira, virgílio

Homenagem ao ator Virgílio Teixeira Galã do cinema dos anos 40, 50 e 60 do século XX, Virgílio Gomes Delgado Teixeira nasceu no Funchal a 26 de outubro de 1917. Desportista, fluente em inglês e de boa figura, Virgílio Teixeira, filho de Gastão Teixeira, comerciante e ex-emigrante em Demerara, começou por ser guarda-redes de futebol – alinhou pelo Sporting da Madeira e pelo Marítimo – e era bom em saltos acrobáticos e ténis. O seu primeiro contacto com a indústria do cinema – além dos filmes que ia ver – aconteceu numa partida de ténis com o realizador inglês Thorton Freeland, que passava férias na Madeira. Para não humilhar o adversário, Virgílio Teixeira deixou-o ganhar. O realizador não terá gostado mas, mesmo assim, disse ao madeirense para fazer as malas e o acompanhar até Londres, onde teria a porta aberta para uma carreira no cinema. Assim teria sido, se a situação política e a aproximação da Segunda Guerra Mundial não tivessem dificultado o seu percurso, pelo que o futuro ator regressou a casa. Em 1941, mudou-se para Lisboa e, por falar bem inglês, arranjou emprego na American Export Line, a única empresa que, na altura, fazia a ligação marítima entre a América e a Europa. Pouco tempo depois, mudou-se para uma companhia aérea, mas acabou por ser despedido por causa das noitadas. Vendo-se sem trabalho, penhorou os fatos e os sapatos numa tentativa de se manter pela capital; em desespero, pediu dinheiro ao pai que, em vez de um cheque, lhe mandou uma passagem para o Funchal. Virgílio Teixeira recusou e a decisão de ficar em Lisboa acabou por lhe abrir as portas do mundo do cinema. O convite para entrar em Ave de Arribação (1943) aconteceu pouco tempo depois, mas a fama só chegaria com Zé do Telhado (1945), a versão portuguesa do ladrão que rouba aos ricos para dar aos pobres. Este papel valeu-lhe o prémio de melhor ator do ano de 1945 e a sua vida no cinema estava apenas no começo; sem nunca ter estudado representação, o rapaz da Madeira iniciava uma carreira onde iria somar 92 participações em filmes, uma telenovela, séries televisivas e 2 papéis no teatro, ao lado de Carmen Dolores e de Eunice Muñoz. Antes de se mudar para Espanha - no fim dos anos 40 –, Virgílio Teixeira selou o seu estatuto de galã ao contracenar com Amália Rodrigues no filme Fado, História de Uma Cantadeira; a cena onde Júlio Guitarrista ensina a fadista Ana Maria é das mais célebres do cinema português. Viveu 12 anos em Espanha, e fez tantos filmes que chegaram a pensar que era espanhol; com efeito, o Sindicato Nacional do Espetáculo do país vizinho considerou-o, em 1955, um ator genuinamente espanhol. A conjuntura – o facto de os filmes rodados em Espanha ficarem mais baratos à indústria americana – permitiu-lhe contactar com atores, atrizes e realizadores de nome internacional, sobretudo americanos, abrindo-lhe portas em Hollywood. Virgílio Teixeira fez de Ptolomeu em Alexandre, o Grande (1956) e de general russo em Dr Jivago (1965) – e estes são apenas dois dos filmes em que participou. Virgílio Teixeira privou com atores como Ava Gardner, Lana Turner, Sofia Loren, Richard Burton, Tyrone Powell e Rita Hayworth. Nos cartazes dos filmes, o seu nome aparecia como Virgilio Texera ou John Texera. Em 1966, regressou à Madeira afirmando “Eu vim embora de Hollywood porque estava a sentir que aquilo ali começava a ser uma autêntica selva”. (SILVA, 2006, 60), mas, ao longo dos anos, continuou a participar em filmes, nomeadamente A Mulher do Próximo (1988), de José Fonseca e Costa Em 1984-85, entrou na telenovela Chuva na Areia, onde fazia o papel de homem rico mas, pesar de ter representado em mais alguns papéis, esta já não era a sua principal atividade, pois vivia dos negócios; foi também agente da Ibéria, delegado das Páginas Amarelas, da Rádio Televisão Comercial e da Sociedade Portuguesa de Autores. Teve uma curta passagem pela política, como vereador do PSD na Câmara Municipal do Funchal no início dos anos 80. Foi homenageado pela TVE e pelo Governo Regional da Madeira, sendo condecorado pelo Presidente da República com a comenda de oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Morreu no Funchal, com 93 anos, a 5 de dezembro de 2010.   Marta Caires (atualizado a 08.12.2017)

Cinema, Vídeo e Multimédia

aragão, antónio

António Aragão Natural de São Vicente, na ilha da Madeira, António Aragão foi uma figura cultural multifacetada do séc. xx. A poesia terá sido a sua área de eleição, mas fez igualmente experiências no âmbito da narrativa e do texto dramático. Também se dedicou a outros planos de intervenção e de estudo, e.g.: a formação do Cine Clube do Funchal para a visualização de cinema cultural. Dirigiu duas instituições madeirenses de relevo: o Museu da Quinta das Cruzes e o Arquivo Distrital da Madeira. Palavras-chave: António Aragão; historiador; promotor cultural; artista; escritor; escrita experimental. Existem algumas fotografias a preto e branco de António Aragão, no n.º 28 da revista Margem, que lhe é dedicado. Nelas, sobressai uma figura de pequena estatura e de porte cuidado, vestida com um casaco de fazenda e tendo a cabeça coberta com uma boina ou boné de cor preta. Na cara barbeada repousam uns óculos de vista (ou de sol) de aros escuros e grossos, não muito grandes, que estavam bastante em moda na déc. de 60 do séc. XX. Aqueles recobrem-lhe o pequeno rosto e possibilitam o seu reconhecimento: dão-lhe a marca da intelectualidade que o diferenciou. Praticamente todas as fotografias se reportam à fase de maturidade da sua vida, englobando, sensivelmente, o período da déc. de 60 à de 90 do séc. XX. Este retrato caricatural não permite adivinhar a sua genialidade criativa, revelada nas múltiplas classificações que lhe foram atribuídas. Através do índice da revista Margem referida, fica sem se saber se foi promotor patrimonial da comunidade local (ou melhor, regional), historiador, arqueólogo, poeta, ficcionista, dramaturgo, criador experimentalista, pintor, escultor, desenhista, cinéfilo, ou, simplesmente, um intelectual interessado em preservar o passado aberto à novidade do futuro, na vivência do seu tempo presente. Além de possuir outros epítetos, não se resumirá a nenhum deles, porque será a soma de todos. A personalidade de António Aragão recorda os artistas renascentistas, devido à sua insaciedade de saber e de inventar; era uma pessoa curiosa, nutrindo vários interesses. O acervo que foi constituindo, e que algumas entidades públicas, além de outras privadas, tentam adquirir, revela esta pluralidade de interesses e a sua curiosidade pela diversidade cultural. As balizas temporais, medidas entre o nascimento a 22 de setembro de 1921, em São Vicente, na ilha da Madeira, e o falecimento a 11 de agosto de 2008, no Funchal, indicam que António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia viveu quase 87 anos; fá-los-ia no mês seguinte à sua morte, depois de uma fase de doença prolongada. Embora haja uma biografia divulgada e reiterada, seria preciso observar muitos detalhes para compreender inteiramente este homem do séc. XX, amante do passado e do futuro, e para evidenciar a sua faceta artística: foi escritor, poeta, pintor, escultor e também historiador e investigador. De facto, António Aragão destacou-se como um importante vulto da cultura portuguesa, não só pela sua vasta formação académica como pela sua criatividade na cultura e na arte, o que lhe permitiu vencer as barreiras da insularidade e afirmar-se nos meios académicos e culturais nacionais e europeus. O seu carácter irrequieto e polémico afastou-o do conformismo criativo. Era assim na investigação histórica, na etnografia, na pintura, na escultura e na arte da palavra. Além de todas as suas potencialidades e capacidades, também possuía uma grande paixão pelo cinema. Aliás, em 1955, contribuiu para a formação do Cine Clube do Funchal, a fim de possibilitar a visualização de obras de cinema alternativas às classificadas como comerciais. Da sua vida pessoal, poucas informações são divulgadas nas biografias existentes. Provavelmente por vontade própria, intentou separar a sua vida privada da sua vida pública. É sabido que se casou, em Roma, com Estela Teixeira da Fonte, de quem teve um filho, Marcos Aragão Correia, advogado de profissão. Sua irmã, Ruth Aragão de Carvalho, formada em ballet na capital portuguesa, casou-se com o ator Ruy de Carvalho. A nível de formação académica, a vida desafogada dos pais permitiu-lhe ir estudar no Liceu Jaime Moniz, o que poucos jovens ilhéus, sobretudo os nortenhos, podiam almejar. Posteriormente, como acontecia com os setimanistas madeirenses, seguiu para o continente e frequentou a Universidade de Lisboa, instituição onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, fazendo depois uma especialização em Biblioteconomia e Arquivística na Universidade de Coimbra. Estudou ainda etnografia e museologia em Paris, sob a orientação do diretor do Conselho Internacional de Museus da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Finalmente, dedicou-se ao estudo do Restauro de Arte, em Itália, mais precisamente no Instituto Central de Restauro de Roma, tendo usufruindo de um estágio no Laboratório do Vaticano. Tanto em Paris como em Roma, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). No âmbito do seu percurso profissional, fruto da diversificada e rica formação que tinha adquirido, desempenhou, no plano regional, alguns cargos importantes, tendo dirigido o Arquivo Distrital da Madeira e o Museu Quinta das Cruzes, e sido delegado dos Museus e Monumentos Nacionais na Madeira, associado à Comissão de Arte e Arqueologia da Câmara Municipal do Funchal. Os lugares por onde passou, no domínio laboral, coadunavam-se perfeitamente com os interesses que nutria, quer quanto à museologia, quer quanto à arquivística e à dimensão histórica da sua formação inicial. Notável é a sua atividade enquanto investigador e arqueólogo, da qual derivou vasta e conhecida obra: Os Pelourinhos da Madeira (o seu primeiro livro, de 1959); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700 (1981); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992). A partir das escavações arqueológicas por si dirigidas no lugar do aeroporto, onde se situava o Convento quinhentista de N.ª Sr.ª da Piedade (Santa Cruz), foi possível proceder ao levantamento da planta geral do Convento franciscano, ao estudo das suas características tipológicas e à exumação de variado espólio, onde se inclui uma vasta diversidade de padrões de azulejaria hispano-mourisca ou mudéjar, proveniente do Sul de Espanha, bem como múltiplos exemplares de azulejaria portuguesa seiscentista e setecentista, e de elementos primitivos em cantaria lavrada: portais do Convento, janelas, arco triunfal da igreja, condutas de águas, lajes tumulares e pavimentos, que passaram a constar nos jardins da Q.ta do Revoredo, Casa da Cultura de Santa Cruz. É de destacar que todos os trabalhos por ele efetuados se encontram devidamente catalogados e documentados com plantas rigorosas, desenhos e fotografias. Também se deve realçar a ação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, que era então o poder executivo do arquipélago, que encomendou e incentivou este trabalho e que, depois de entregue pelo autor, o depositou em grande parte no Museu Quinta das Cruzes. A par da profissão oficial, foi dando realce à sua faceta de artista, como comprovam as suas ilustrações do livro Canhenhos da Ilha de Horácio Bento de Gouveia. Outro exemplo é a sua poesia espacial OVO/POVO, apresentada, em 1977, na XIV Bienal de São Paulo, tendo tido uma exposição em Lisboa, no ano seguinte, e outra em Coimbra, no decorrer de 1980. Outro exemplo ainda foi a exposição PO.EX. 80, que esteve na Galeria Nacional de Arte Moderna, na capital portuguesa, em 1980 e em 1981. A sua vertente artística culminou em 2007, com uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, tendo, porém, exposto também na Madeira. Pese embora estas facetas, será sempre lembrado e reconhecido pela sua intervenção na literatura de cariz experimental, nomeadamente pela sua colaboração na organização dos dois números da revista Poesia Experimental (1964, 1966). A este propósito, como afirma Rui Nepomuceno: “Em Portugal, o experimentalismo poético e literário ocorreu em Lisboa nos meados dos anos 60, mais precisamente em 1964, com a publicação da ‘Revista Experimental 1’; muito embora desde os finais de 50 já tivesse começado a germinar, como até podemos verificar ao cotejar os trabalhos literários de António Aragão organizados e divulgados naquele decénio, na Madeira” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010). É curioso verificar que a linguística teve um papel preponderante neste movimento e, consequentemente, em António Aragão, algo que Rui Nepomuceno também sugere: “Deste modo, na teorização deste movimento, passaram a assumir grande importância e estatuto determinante os diversos fatores relacionados com a ‘Linguística Moderna’, a ‘Semiótica’, o ‘Estruturalismo’, e, obviamente, os diversos aspetos da ‘Teoria da Forma e da Informação’, de que foram principais intérpretes e seguidores no estrangeiro Abraham Moles, Saussure, Jakobson e, sobretudo, o muito citado Lévi-Strauss” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010); e esta influência tem reflexos em toda a sua criação literária (com particular incidência na linguagem verbal). Por conseguinte, foi pela dimensão literária e artística que António Aragão ganhou renome. Esta ligação com a linguagem manifestou-se em muitas das peças artísticas de António Aragão numa fase de maturidade da vida artística, já que teve um percurso marcado por diversos períodos. As artes plásticas associaram-se, de certo modo, à sua poesia, que usou a linguagem verbal como matéria de jogo em quadros ou em textos e não com o valor que tinha para os linguistas, algo que era próprio da poesia experimental. É preciso lembrar que, além de artista, foi curador de arte contemporânea e promoveu diversas exposições, inclusive na galeria associada à editora Vala Comum, que possuía em Lisboa. Ele próprio contribuiu muitíssimo para a produção de obras de arte de diversas tipologias. O fascínio pela impressão e pelos recortes, com colagens e montagens originalíssimas, acentuou esta veia artística, mais inovadora, se assim se pode dizer, do que a que concebeu em suportes como tela ou pedra. A sua obra vivenciou diversas fases, algo que foi mais notório na pintura. De um período figurativo inicial, com tendência naturalista, passou para uma vertente expressionista com opção pela abstração, por via de uma geometrização e autonomia do traço. Produziu, além de óleos, algumas aguarelas e, em determinada altura, recorreu à laca como material. Na última fase, concebeu composições a partir de colagens, construindo as suas pinturas essencialmente pela destruição do material-base (e.g., jornais). Os quadros, as gravuras, as esculturas e as outras peças concebidas por António Aragão, enquanto desenhista, pintor e escultor, têm merecido um estudo cuidado por parte de peritos. É o caso de Isabel Santa Clara, que releva três obras emblemáticas do artista: “Da obra pública de António Aragão, na qual o autor opta por uma figuração abstratizante, destacam-se, em 1960, o monumento comemorativo do quinto centenário da morte do infante D. Henrique, paralelepípedo com desenho inciso, no Porto Santo; os relevos da fachada da Escola Industrial, depois Escola Secundária de Francisco Franco; e um painel cerâmico no mercado de Santa Cruz, de 1962” (SANTA CLARA, “Artes plásticas”). Todas as obras foram fortemente marcadas pela época em que foram criadas. Assim, das peças mais conhecidas, destacam-se, primeiro, os painéis de cerâmica da Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal, onde sobressaem vultos que laboram. Depois, o colorido painel de cerâmica do mercado da localidade madeirense de Santa Cruz, que comunga da representação das ilustrações que António Aragão fez para o já referido livro Canhenhos de Horácio Bento de Gouveia. A terceira referência escultórica, que ficou localizada no Porto Santo, é designada popularmente por “pau de sabão”, pela analogia da forma que possui o bloco de pedra com uma medida de sabão azul. A rigidez do padrão comemorativo ficará para a eternidade a evocar o momento celebrativo e a criatividade de António Aragão. O padrão diferencia-se bastante dos painéis porque contém detalhes regionais, onde se observam trabalhadores, essencialmente agrícolas, mas também pescadores, quase todos sem rosto, que surgem a desempenhar tarefas do quotidiano, reportando uma vida de trabalho árduo. É de realçar igualmente a imagem de S.ta Ana, em cantaria rija, na Câmara Municipal de Santana, 1959. Desenho de António Aragão. 1944. Foto de Rui A Camacho   Óleo de António Aragão datado de 23 de Julho de 1946. Foto Rui A Camacho Na pintura, desde a déc. de 40 do séc. XX, evidenciou-se em diversas temáticas abordadas e na exploração de técnicas diferenciadas. Realizou exposições em Portugal (Galeria Divulgação, Quadrante, Galeria III, Galeria Diferença, FCG – II Exposição de Pintura Portuguesa) e no estrangeiro, nomeadamente em Espanha (Madrid, Sevilha, Barcelona), México, França (Paris) e Itália (Roma e Turim), encontrando-se representado em coleções particulares e oficiais em vários países, nomeadamente na Fundação Serralves, em Portugal. António Aragão concretizou um projeto artístico contemporâneo baseado em novas tecnologias numa casa que lhe pertenceu, situada na Lapa, em Lisboa. O projeto enquadrava uma associação de educação popular com uma galeria de arte vanguardista, ao qual foi atribuído mecenato pela Secretaria de Estado da Cultura. Antes da doença prolongada de que padeceu até à sua morte, António Aragão, de volta ao Funchal, pintou os seus últimos quadros, que constituíram uma série que intitulou Os Monstros e consistiram numa crítica corrosiva ao que considerava ser a hipocrisia dominante na sociedade. As últimas exposições individuais em vida de António Aragão foram realizadas na Madeira e comissariadas por António Rodrigues. A antepenúltima teve lugar em abril de 1996, na Casa da Cultura de Santa Cruz, e integrou 16 dos seus últimos quadros, bem como uma seleção retrospetiva de 13 trabalhos, em diferentes técnicas, realizados nas décs. de 50 e 60 do séc. XX. A penúltima, Exposição Retrospetiva, teve lugar na Casa da Luz, no Funchal. A última exposição de António Aragão antes da sua morte ocorreu no Museu de Arte Contemporânea da Madeira (Forte de S. Tiago, Funchal). Verifica-se que, por um lado, numa dimensão quase de intervenção social, se interessou por representar o povo, as pessoas, que não valem por si próprias porque não se identificam individualmente, mas configuram grupos profissionais; por outro lado, criou pinturas de paisagens, habitadas ou não, e exemplares de natureza morta. Estas últimas reportam-se, sobretudo, ao período inicial da produção artística, que foi mudando e se foi adaptando aos gostos e às vivências inspiradoras do criador. Em síntese, Isabel Santa Clara descreveu muito bem a versatilidade de António Aragão: “Uma vertente experimentalista sacudiu o panorama artístico de forma peculiar nas décadas de 70 e 80. No centro desta atividade está a multifacetada figura de António Aragão, de inesgotável disponibilidade para com os novos talentos, cujas inquietações e inconformismos lograva canalizar para uma profícua experimentação artística. Ganharam força as práticas de poesia visual e de mail art, potenciadas pelas capacidades técnicas, a acessibilidade, a rapidez e a liberdade de produção de múltiplos da eletrografia. Surgiu assim Filigrama, mail art zine editada entre 1981-1983, revista de folhas soltas, que ia sendo sucessivamente alterada na sua composição e enviada pessoalmente através dos circuitos internacionais da mail art, que passavam muito especialmente pelo Brasil” (SANTA CLARA, 2010, 186); tendo colaborado em diversas manifestações de mail art, divulgou os seus trabalhos em revistas da especialidade. Compreende-se a estreita interligação, assim sintetizada, entre a obra artística e a produção escrita do artista-escritor. António Aragão terá sido, na juventude, um dos poetas da Tertúlia Ritziana, e, em 1946, com cerca de 25 anos, viu o seu conto “Pressentimento” obter um prémio: o 2.º lugar nos Jogos Florais promovidos pelo Ateneu Comercial do Funchal. Em 1952, colaborou com Jorge de Freitas, com Florival dos Passos, com Rogério Correia e com Herberto Helder, entre outros, no caderno de poesia Arquipélago, e, em 1956, foi editor da revista literária Búzio, impressa e publicada a suas expensas, em que colaboraram, além do próprio, Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Eurico de Sousa, Jorge Sumares, José Escada, Esther de Lemos e David Mourão-Ferreira. A sua vasta obra foi publicada essencialmente no Funchal e em Lisboa, uma obra em que se encontram frequentemente textos criados em conjunto com outros autores. Dos seus trabalhos – livros inteiros, revistas ou composições singulares –, tanto de carácter científico como criativo, referenciamos, em seguida, alguns. São vários os seus textos na déc. de 60, designadamente no âmbito da ficção literária, incluindo a poesia e o teatro; participou em ações coletivas e antologias literárias. Em 1962, escreveu o Poema Primeiro; em 1964, o Romance de Iza Morfismo, e também, com Herberto Helder, Cadernos de hoje (uma antologia de poesia experimental); em 1965, colaborou no suplemento especial do Jornal do Fundão sobre poesia concreta com “Visopoemas” e “Ortofonias” (com Ernesto M. de Melo e Castro); em 1966, compôs Hidra I, Folhema 1 e Folhema 2; em 1967, Operação I; em 1968, Mais exactamente P(r)o(bl)emas; em 1969, “Hidra 2”. Na déc. de 70, publicou, para além da já mencionada monografia O Museu da Quinta das Cruzes, Poema Azul e Branco e o romance Um Buraco na Boca, em 1971; também neste ano, participou na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa. Em 1972, dirigiu a edição de Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal, e, em 1973, colaborou na Antologia da Poesia Concreta em Portugal. Em 1975, publicou Os Bancos antes da Nacionalização; em 1976, colaborou na Antologia da Poesia Visual Europeia; e, em 1979, produziu Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 e a já referida obra Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória. Nos anos 80, manteve o ritmo alucinante de escrita e de publicações. Assim, em 1981, apresentou não só o livro A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700, como também a peça de teatro Desastre Nu, que ganhou o 2.º prémio do Concurso de Peças de Teatro Inéditas promovido pela Secretaria de Estado da Cultura em 1980. Também neste ano, escreveu Metanemas e tornou-se um dos fundadores de Filigrama. Em 1982, publicou igualmente o opúsculo de carácter panfletário Pátria. Couves. Deus. Etc. e, ainda neste ano, Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly). Em 1983, compôs Líricas Portuguesas. Antologia e, no ano seguinte, iniciou as eletrografias: O Elogio da Loura do Ergasmo nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente e Merdade My Son, realizadas em 1984, 1985 e 1987, sendo publicadas em 1990. Em 1984, com Alberto Pimenta, deu à estampa Os 3 Farros. Descida aos Infermos (uma curiosa troca de correspondência entre os dois autores), além de ter publicado As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História. Ainda em 1984, numa divulgação em dois discos LP, resultado de trabalhos de investigação no campo etnográfico, ganharam visibilidade as suas recolhas de música tradicional das ilhas da Madeira e do Porto Santo, empreendidas na década anterior com Jorge Valdemar Guerra e com o músico Artur Andrade. Em 1985, fez uma exposição itinerante com Poemografias e, em 1987, apareceu uma nova edição, revista e aumentada, de Para a História do Funchal. Já com mais de 70 anos, ainda manteve alguma produção, tendo sido publicados, em 1992, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal, anteriormente mencionado, e o livro de contos Textos do Abocalipse, que colocaram várias questões, nomeadamente políticas. Além destes títulos, em 1993, foi reeditado o romance Um Buraco na Boca, que recria de algum modo a linguagem verbal, desafiando as convenções da norma. Escreveu ainda para várias publicações: Comércio do Funchal; Línea Sud, Nápoles; Letras e Artes, Lisboa; Expresso; Colóquio-Artes, FCG, Lisboa; Diário de Notícias, Lisboa; Comércio do Porto; Espaço Arte, Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira; e Diário de Notícias da Madeira. A nível internacional realça-se a sua participação em vários fóruns de natureza cultural e artística: Sevilha, 1980; em 1982, Itália e Brasil; 1983, Cuenca; 1984, Comuna de Milão, Itália; 1984, São Francisco, EUA, e Barcelona; 1985, Israel e Nova Iorque; 1986, México e Sevilha; 1987, México e França; 1989, Itália e Paris; 1990, Siegen, Alemanha, México e Washington; e 1992, Madrid. Em suma, as décs. de 60, de 70 e de 80, destacando-se, decerto, o ano de 1981, foram um período muito fértil, marcando toda a sua carreira. Quando se observa detalhadamente a listagem dos títulos, para se quantificarem as publicações não literárias e as literárias, verifica-se que estas se sobrepõem àquelas. Portanto, foi, indubitavelmente, um escritor insaciável e incansável, sendo-o mais de poesia do que de ficção ou de teatro. Contudo, os seus trabalhos não literários, quase todos dedicados à Madeira e ao Funchal, são referências incontornáveis para quem se dedica às temáticas de que trataram. António Aragão faleceu no Funchal, a 11 de agosto de 2008. A sua família doou ao Arquivo Regional da Madeira, posteriormente Arquivo Regional e Biblioteca Pública Regional da Madeira, grande parte do seu espólio histórico. No entanto, o legado do seu acervo artístico ao país e, particularmente, à Madeira foi reconhecido ainda em vida pela Câmara Municipal do Funchal, que atribuiu o seu nome a uma via citadina. Obras de António Aragão: Os Pelourinhos da Madeira (1959); Poema Primeiro (1962); Romance de Iza Morfismo (1964); Visopoemas (1965); Ortofonias (1965); Hidra I (1966); Folhema 1 (1966); Folhema 2 (1966); Operação I (1967); Mais exactamente P(r)o(bl)emas (1968); Hidra 2 (1969); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Poema Azul e Branco (1971); Um Buraco na Boca (1971); Os Bancos antes da Nacionalização (1975); Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 (1979); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); Desastre Nu (1981); A Madeira Vista por Estrangeiros (1981); Metanemas (1981); Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly) (1982); Pátria. Couves. Deus. Etc. (1982); Líricas Portuguesas. Antologia (1983); Os 3 Farros. Descida aos Infermos (1984); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Elogio da Loura do Ergasmo Nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente (1990); Merdade My Son (1990); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992); Textos do Abocalipse (1992).   Helena Rebelo Miguel Fonseca (atualizado a 14.07.2017)

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