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demerara

O território da costa norte da América do Sul integrou a Guiana inglesa desde 1838 até 1966, altura em que se tornou país independente e passou a designar-se República Cooperativa da Guiana. A sua capital, Georgetown, encontra-se na foz do rio Demerara, pelo que a região também ficou conhecida como Demerara. O território compreende uma faixa costeira pantanosa, conhecida, no séc. XIX, dos madeirenses pelos pântanos, onde terão morrido muitos destes emigrantes ilhéus. A América Central e do Sul surge como o principal porto de destino da emigração madeirense no séc. XIX, pois 98 % dos emigrantes saídos da Madeira rumaram a essas paragens, nas suas três vertentes: Antilhas, América do Norte e Brasil. As Antilhas inglesas destacam-se como o principal mercado recetor da mão de obra madeirense, recebendo 86 % dos saídos legalmente do arquipélago. Estes distribuíram-se, de forma irregular, por St. Kitts, Suriname, Jamaica e Demerara, áreas sobejamente conhecidas do madeirense e ligadas à Ilha por força do comércio do vinho. Na déc. de 40 do séc. XIX, Demerara foi o principal destino dos emigrantes, porque existiam facilidades com o custeamento da viagem e havia a perceção de que ali se enriquecia de forma rápida. A emigração para Demerara deverá ter começado em 1834, com a abolição da escravatura na colónia inglesa. Desta forma, a 3 de maio de 1835, 40 madeirenses foram trabalhar nas plantações de La Pénitance, Liliendaal e Thomas. Desses, 30 não se adaptaram às plantações, tendo regressado à Madeira. Todavia, partir de 1840, os madeirenses acabam por se fixar na cidade de Georgetown, vindo a assumir uma posição destacada no comércio, de tal forma que, em 1890, metade das lojas comerciais eram portuguesas. Para o período de 1841 a 1889, Demerara manteve uma posição dominante na emigração madeirense, tendo recebido 36724 emigrantes, maioritariamente de Machico e Santo António. É também com Demerara que se ensaia o processo da emigração clandestina, mantida através de uma cadeia de engajadores. Desde 1792 que temos medidas para combater este flagelo, mas faltam meios para o fazer num espaço como a Madeira. O movimento de clandestinos acontecia em toda a costa sul, nomeadamente no Caniço, na Praia Formosa, no Paul do Mar e na Ponta do Pargo. Na déc. de 40 do séc. XIX, volta-se a reforçar a legislação, apesar de a falta de meios não evitar este tipo de emigração. Em 1845, surge o primeiro caso de emigração clandestina para Demerara, com o aprisionamento de 31 indivíduos no Porto Moniz, quando se preparavam para embarcar no iate Glória de Portugal. Em 1847, temos a situação do bergantim português Mariana que, 15 dias após a sua saída do Funchal, ainda estava na Ponta do Pargo com o pretexto de fazer aguada. A bordo, encontrou-se 187 passageiros, sendo apenas 34 com passaporte (VIEIRA, 1993, 118). Muitos mais se seguiram, sendo de referir, ainda em 1846, a barca inglesa Palmira, que saiu do Funchal com 23 emigrantes com passaporte, e que chegou a Georgetown com 410 passageiros oriundos da Ilha. Em 1893, o Diário de Noticias do Funchal refere que António André Martins, aprendiz de tipógrafo, tinha embarcado clandestinamente, referindo que “o pobre rapaz fugiu com a ideia de melhorar de sorte e conta ser empregado em Georgetown no estabelecimento de bebidas que pertence a um seu tio” (DNM, 1 mar. 1893, 1). Apenas em princípios do séc. XX parou esta vaga de emigração de madeirenses para Demerara. Desta forma, em 1904, a polícia de emigração informa que “a corrente emigratória para Demerara acha-se paralisada há muito tempo” (DNM, 6 abr. 1904, 1). Todavia, em 1906 (DNM, 14 jun. 1906, 1), encontramos um pedido de barbeiro para este destino. A ideia dominante em muitos testemunhos, desde a déc. de 40 do séc. XIX, é de que era elevada a mortalidade entre os emigrantes madeirenses. A febre-amarela é o principal inimigo dos madeirenses em Demerara. Em 1842, há notícias de que, nos 4 anos anteriores, haviam fixado morada aí cerca de 5800 madeirenses, que acabaram por morrer desta enfermidade. A 25 de novembro de 1842, afirmava-se em O Defensor que “alvejam nos pântanos de Demerara os ossos de 5000 desgraçados que a fome afugentou dos nossos lares, e tu ó governo és responsável perante o Céu e perante os homens por tão funestos resultados” (O Defensor, 25 nov. 1842, 4). Daí o epíteto de “matadouro de Demerara”, atribuído aos pântanos desta área da América do Sul. No decurso do séc. XIX, as cartas de emigrantes foram usadas como meio de propaganda e publicadas na imprensa madeirense, com o objetivo de combater a emigração clandestina e denunciar os problemas e as dificuldades que se encontravam no destino. Algumas destas cartas testemunham a ilusão das promessas feitas à partida da Ilha, e apontam as condições difíceis em que viviam os madeirenses em Demerara. Numa carta de 26 de agosto de 1846, de Felicidade Chaves a José Teixeira, refere-se que o milho cozido chegou azedo, mas mesmo assim o comeram (VIEIRA, 2011, 758). Também o Echo da Revolução dá conta das dificuldades: “já não se ganha um vintém e da muita mortandade de portugueses que estão morrendo povo. Já não estão das partes um de portugueses vivos” (Echo da Revolução, 17 out. 1846, 4). Associaram-se a esta campanha de denúncia das condições que esperavam os madeirenses nos destinos de emigração outros jornais, sendo de realçar o Correio da Madeira (1850) e o Progressista (1851) onde este movimento emigratório surge sob o epíteto de “escravatura branca”. De acordo com o cônsul português em Demerara, os emigrantes “são tratados como verdadeiros escravos, e mesmo pior do que são os negros da costa d’ África”. A resposta a esta carta não se fez esperar, pela voz de Diogo Taylor, cônsul inglês e agente da emigração para estes destinos, que realça os mútuos benefícios da emigração (VIEIRA, 2011, 759). A isso se junta o testemunho abonatório de um grupo de Portugueses residentes na Guiana inglesa. Numa proclamação do administrador geral do Funchal, Domingos Olavo Correa de Azevedo, refere-se que “Demerara [...] é uma possessão inglesa, cujo clima por extremo ardente e doentio, terminara em pouco tempo, com a existência da maior parte dos emigrantes que para ali vão, e onde estes infelizes, reduzidos, durante sua vida, a uma situação desesperada, vendo-se em total desamparo, e privados de meios de regressarem, se sujeitam a uma sorte tão cruel como a que em outro tempo ali experimentavam escravos negros” (VIEIRA, 1993, 126). O Progressista, porta-voz do Partido Regenerador, que se publicou entre 28 de agosto de 1851 e 15 de maio de 1854, é o periódico que dedica maior atenção à problemática da emigração, atribuindo-lhe com insistência o designativo de escravatura branca, considerando Demerara e o Brasil como matadouros. O Imparcial, publicado de 14 de abril de 1840 a 20 de junho de 1846, refere, a propósito: “Parece que a cidade do Funchal se converteu de repente numa grande feira d'escravos brancos, destinados a irem perecer no clima mais infeto dos domínios britânicos – Demerara”. E diz que “A emigração para Demerara é uma infame lotaria cujos bilhetes contendo raríssimas sortes em preto são comprados com as vidas dos nossos concidadãos” (Id., Ibid., 129). Qual o balanço possível destas levas de emigrantes para Demerara? Poder-se-á considerar positivo para a Ilha e para as gentes emigradas? Não obstante subsistir, no séc. XIX, o epíteto de demerarista, como sinónimo de riqueza dos retornados da colónia inglesa, podemos concluir que o saldo foi negativo, como provam os dados quantitativos. Assim, dos 418 emigrantes orientados para este destino até 1849, só 5 (1 %) regressaram à Ilha, enquanto 224 (45 %) pereceram com a febre ou as agruras do calor tropical. Para o ano imediato, dos 2199 madeirenses que saíram rumo a esse destino, morreram 254 (12 %) e apenas 221 (10 %) regressaram, 120 dos quais doentes. Por outro lado, a fortuna acumulada não era aliciante, como comprovam os números: apenas 107 (48 %) conseguiram melhorar a sua situação económica, enquanto 50 (23 %) nada lucraram com a deslocação, antes pelo contrário, viram-se em apuros. Apesar disto, esta emigração teve algum retorno positivo na economia rural da Ilha, que se torna notado nas décs. de 50 e 60 do séc. XIX. Desta forma, em 1868, em informe do governo civil, diz-se que “pela desvinculação que trouxe a liberdade da terra, tem prosperado ali a cultura, muito auxiliada com os capitais circulantes, de milhares de pessoas que têm regressado de Demerara e outros lugares das West Indias, com muito mais de mil contos, e quase todo esse dinheiro está empregado nos Concelhos rurais. É por essa razão também, que a propriedade urbana nesses Concelhos tem dobrado e triplicado nos últimos anos” (ABM, Governo Civil, n.º 573, fls. 53v-66v). É evidente o impacto da emigração para Demerara na sociedade madeirense. Assim, eram habituais as notícias sobre esta comunidade, e o DNM chegava a publicar, na primeira página, uma rubrica intitulada “Noticias de Demerara”, transcrevendo diversas notícias do jornal Portuguez. Também era frequente outro tipo de notícias que atestam esta saída para Demerara, como os leilões de mobília e os anúncios de despedida dos que partiam para os que ficavam e não haviam tido condições de o fazer de forma particular. Assim, em 8 de outubro de 1889, Abel Maria de Silveira e mulher anunciam a partida para Demerara e despedem-se de todos os conhecidos (DNM, 8 out. 1889, 2). Temos, ainda, as notícias da última página, anunciando os vapores para os diversos destinos, que, até 1926, continuam a incluir Demerara. Ainda devemos notar a ação benemérita destes emigrantes face às situações de catástrofe que ocorriam na Ilha, como foi o caso com as inundações de 1895, com subscrições de donativos. Desta forma, podemos afirmar que, entre a déc. de 40 do séc. XIX e os primeiros anos do séc. XX, a presença de Demerara na sociedade funchalense é evidente, sendo o DNM, a partir de 1873, o seu porta-voz. A forte presença da comunidade portuguesa em Georgetown conduz a que esta comunidade adquira importância e visibilidade na sociedade local. Os Portugueses unem-se em torno das tradições de origem, com a proteção ou presença da estrutura da Igreja Católica, como na igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde celebram o Corpus Christi, assim como as festas do Espírito Santo. Em 1842, num relatório do governador da colónia, se refere que os emigrantes portugueses sentem a falta de “padres da sua religião que lhes administrem os confortos dela” (O Defensor, 19 fev. 1842, 4). O espírito associativo desta comunidade está evidenciado com a criação, em 1872, da Portuguese Benevolent Society, e do Portuguese Recreative Club, em 1923. Temos, ainda, uma escola portuguesa, que adquiriu algum renome no séc. XX. E, nesta comunidade, pratica-se desporto. A importância da comunidade portuguesa pode ainda ser atestada pela imprensa que se publica em português: o Voz Portuguez, a Uniao Portugueze, a Chronica Semanal, o Lusitano, o The Watchman e o The Liberal. Alguns jornais da Ilha eram aí vendidos, figurando, no cabeçalho, o preço da assinatura, como sucedia em 1868 com a Imprensa Livre, cuja anuidade era de 1$000rs. A par disso, deveremos referir que muitos madeirenses adquiriram importância na sociedade local como comerciantes e profissionais liberais, alargando a sua atividade à banca, como funcionários do The East Bank, Demerara, do Meadow Bank, Ruimveldt, etc.. De entre estes, temos notícia de Francisco Rodrigues, João A. de Sousa, José F. de Freitas, considerados abastados comerciantes em Georgetown, com múltiplas referências que atestam esta situação. Em 1896, o filho de José F. Freitas concluiu o curso de Medicina em Cambridge (DNM, 31 jul. 1896, 1). Em 1906, trabalhava no Hospital Publico de Georgetown um cirurgião de nome Quirino de Freitas, filho de madeirenses (DNM, 16 jul. 1906, 1). Neste mesmo ano, sabemos que Francisco Dias, também filho de madeirense, foi eleito membro do Parlamento de Georgetown, cidade onde exercia advocacia (DNM, 19 nov. 1906, 2). Temos ainda Peter D'Aguiar, que fundou o United Force Party, que alcançou 16.3 % do eleitorado nas eleições de 1961; em 1964, de coligação com The African, dominou o Congresso Nacional. A presença portuguesa continuou ainda a ser notada em Georgetown pelo séc. XXI, com empresas como G. Bettencourt & Co; D'Aguiar's Imperial House; Demerara Pawnbroking & Trading Co; The Eclipse, D. M. Fernandes Ltd; J. P. Fernandes; Ferreira & Gomes Ltd; Guiana Match Co Ltd; J. P. Santos & Co Ltd; e Rodrigues & Rodrigues. Fazendo jus a esta realidade da emigração e presença portuguesa em Demerara, temos a produção literária em torno dos emigrantes que conseguiram regressar, conhecidos como demeraristas. Assim, tivemos as peças teatrais A Família do Demerarista (1859), de Álvaro Rodrigues d’ Azevedo, O Alliciador (1859) de João de Andrade Corvo, A Virtude Premiada (1862), de João de Nóbrega Soares, e os romances Os Ibis Vermelhos da Guiana (2002), de Helena Marques, e O Fotógrafo da Madeira (2012), de António Breda Carvalho. Mas as relações da Madeira com Demerara não se resumiram à mobilidade humana. Por força da existência desta relação humana e de uma rota comercial que ligava o Funchal a Georgetown, tivemos o comércio assíduo de vinho, feijão-verde, tomate, cebola, alho, batata-doce, semilha, como, ainda, de figos, castanhas, azeitonas, passas, peros, cuscus, obras de vimes e bordados. Nesta relação de produtos que acompanhavam os emigrantes madeirenses no percurso até Demerara, muitos iam por solicitação desta comunidade, com o objetivo de garantir a sua subsistência; no mês de dezembro, seguiam os chamados géneros para o Natal que, em 1903, foram conduzidos pela escuna Esperança. No retorno ao Funchal, em visita à família, aparecem emigrantes com alguns produtos da produção local, como mel e açúcar mascavo, conhecido como açúcar demerara, assim como melaço para o fabrico de aguardente, também importado pelo engenho do Hinton. Note-se que até os bolos de mel madeirenses eram feitos com mel de Demerara. A este movimento de pessoas e mercadorias entre os dois destinos, junta-se a mobilidade de animais e plantas. Assim, de Demerara, trouxe João Duarte da Silva, de Câmara de Lobos, uma nova planta de batata-doce, que anuncia, em 1858, nos jornais (Semanário Oficial, 3 nov. 1858, 4). Tivemos, ainda, a aportação de diversas variedades de cana de açúcar, promovidas por iniciativa do visconde de Canavial, quando foi governador civil (1886-1888). Da Ilha para Demerara, temos informação de que se levou cerejeiras e pés de morangos, por iniciativa de Manuel Augusto Pereira, que ficou na história de Georgetown como o primeiro que aí produziu e vendeu morangos (DNM, 6 abr. 1904, 1). Existem, ainda, algumas curiosidades desta partilha entre Georgetown e o Funchal. Em 1895, os emigrantes encomendaram ao Caseiro, popular artista funchalense, uma escultura do Senhor Morto (DNM, 10 mar. 1895, 10). E, em 1911, a imagem de Nossa Senhora da Conceição da capela das Amoreiras, no Arco da Calheta, foi uma dádiva de emigrantes de Demerara (DNM, 12 jan. 1911, 1).     Alberto Vieira (atualizado a 07.12.2017)

História Económica e Social Madeira Global

atividades marítimo-turísticas

As empresas de animação turística são as entidades que exercem regularmente atividades lúdicas, culturais, desportivas ou de lazer, destinadas a turistas ou visitantes. O licenciamento, o exercício da atividade e a fiscalização das empresas de animação turística na Região Autónoma da Madeira (RAM) é regulamentado pelo dec. leg. regional n.º 30/2008/M, de 12 de agosto, o qual subdivide as atividades em três grandes áreas: 1 – Atividades de animação turística geral; 2 – Atividades de animação marítimo-turística; 3 – Atividades de animação turístico-ambiental. As atividades de animação marítimo-turística são as seguintes: passeios marítimo-turísticos organizados; mergulho, escafandrismo, caça submarina e snorkeling; observação e natação com cetáceos; observação de aves; pesca turística ou pesca desportiva; pesca-turismo (pesca artesanal dirigida a turistas efetuada em embarcações de pesca); passeios em submersível; aluguer de embarcações com ou sem tripulação; serviços efetuados por táxis marítimos; esqui aquático, vela, remo, canoagem, windsurf, surf, bodyboard, wakeboard e kite surfing; serviços de natureza náutica prestados mediante a utilização de embarcações atracadas ou fundeadas e sem meios de locomoção próprios ou selados; aluguer de motos de água e de pequenas embarcações dispensadas de registo e outros serviços, nomeadamente os de reboque de equipamento de carácter recreativo. O regime de acesso e exercício da atividade das empresas de animação turística, incluindo os operadores marítimo-turísticos, encontra-se regulamentado pelo dec.-lei n.º 108/2009, de 15 de maio, alterado pelo dec.-lei n.º 95/2013, de 19 de julho e pelo dec.-lei n.º 186/2015, de 3 de setembro. Em 2014, foi publicado o dec.-lei n.º 149/2014 de 10 de outubro, que aprova o Regulamento das Embarcações Utilizadas na Atividade Marítimo-Turística e estabelece as regras aplicáveis às embarcações utilizadas por empresas de animação turística e operadores marítimo-turísticos, no âmbito da atividade marítimo-turística, em todo o território nacional. Na Madeira, as atividades marítimo-turísticas surgiram com o mergulho e a pesca desportiva. O primeiro compressor de ar comprimido apareceu no posto náutico do Clube Naval do Funchal em 1968, clube que no ano seguinte organizou o I Curso de Mergulho Amador, dirigido por João Caldeira, da Federação Portuguesa de Atividades Subaquáticas, e contou com a participação de 40 pessoas e com a colaboração de Jorge de Castro e João Borges, já experientes no mergulho. A primeira escola de mergulho a surgir na Madeira foi o Garajau Madeira Diving, em 1980, no Garajau, propriedade de Rainer Waschkewitz que ficou para sempre associado à conservação e divulgação do mar da Madeira. Juntamente com seu amigo e parceiro de negócios Jorge de Castro, realizaram um sonho de criar a primeira reserva marinha em Portugal, a Reserva Natural Parcial do Garajau, em 1986, pressionando as autoridades e pedindo apoio a personalidades como Jacques-Yves Costeau. No início do séc. XXI, existiam 17 centros de mergulho na RAM, estando 15 localizados na Madeira e 2 na ilha do Porto Santo. A pesca desportiva na ilha da Madeira teve a sua origem com a fundação do Clube Naval do Funchal, em 1952, e a sua adesão à International Game Fish Association (IGFA) em 1953. A partir desta data o Clube Naval passou a estar associado à organização de pequenas provas desta modalidade. Em 1954, António Ribeiro (sócio fundador do Clube Naval) bate dois recordes nacionais de pesca, um a 19 de setembro com a captura de um espadim branco de 37,5 kg e outro a 24 de setembro com a captura de um atum patudo de 94,5 kg. Mas o grande impulso desta modalidade deu-se na déc. de 1970 onde inúmeros recordes foram alcançados, entre os quais o recorde da Europa, conquistado por António Ribeiro, ao capturar um espadim azul de 510 kg em 1977. Embora historicamente a prática desta modalidade esteja associada a este médico que ao longo da sua vida capturou os maiores exemplares de que há memória, nomes como o de Jorge Brum do Canto, realizador cinematográfico e escritor, e Américo Durão, também médico, não podem ser esquecidos, pelo importante contributo que deram para o desenvolvimento desta atividade na região. No início do séc. XXI, ainda existiam recordes mundiais obtidos na Madeira, como o recorde feminino para o espadim azul com 321 kg (708 libras) obtido em 1996 por Nikki Campbell (mulher do lendário pescador de records IGFA Stewart Campbell) ao largo da Madeira. Os fantásticos resultados obtidos no passado, tanto em provas nacionais como internacionais, em muito contribuíram para a dinamização de uma atividade que passou a ser considerada como um produto turístico distintivo da ilha da Madeira, fazendo dela um local único para a prática desta modalidade desportiva. Embora o turismo representasse a principal atividade económica da região, resultado do clima ameno e da posição geográfica privilegiada, a influência da corrente quente do Golfo mantinha a ilha da Madeira na lista dos destinos europeus de eleição para a prática da pesca grossa. Na época de pesca desportiva, que decorre entre os meses de maio e agosto, muitos eram os turistas que viajavam até à ilha da Madeira com a ambição de capturar uma das grandes espécies pelágicas e migratórias, como os espadins e os atuns, entre outros. A primeira empresa de pesca desportiva na Madeira, a Turispesca, surgiu na déc. de 1970 na marina do Funchal; a ela se juntaram outras oito empresas nesta marina e três na marina da Calheta. Na déc. de 1990, assim como nos inícios do séc. XXI, apareceram na Madeira várias empresas de passeios marítimo-turísticos organizados, empresas para observação e natação com cetáceos e observação de aves marinhas, operando em embarcações tão diversas como catamarans, embarcações semirrígidas, veleiros, e mesmo numa réplica em tamanho real da nau Santa Maria, de Cristóvão Colombo, propriedade de Rob Wijntje; este holandês construiu a nau no estaleiro de Câmara de Lobos com a ajuda de calafates locais, lançando-a à agua em junho de 1998. Este Santa Maria tem 22,30 m de comprimento, 3 mastros, o mais alto com 16 m, e foi construído em mogno. Operando com catamarans com mais de 100 pessoas, existiam duas empresas. A empresa VMT Madeira surgiu em 2004 com o nome Prazer do Mar, cujo objetivo inicial era proporcionar aos visitantes da Madeira uma viagem costeira para a observação da beleza morfológica da costa a bordo do seu primeiro catamarã, o Sea Pleasure. Quatro anos mais tarde surge o segundo catamarã, o Sea The Best, aumentando o número de lugares disponíveis para 168. Em 2013, a empresa mudou de nome, lançando a marca comercial VMT Madeira (Viagens Marítimo Turísticas da Madeira), e adquiriu o Sea Nature, um catamarã de dois decks, construído em Lagos, no Algarve, com capacidade para 220 pessoas. Existiam ainda empresas especializadas em nichos como a observação de aves marinhas, das quais se destacam a Ventura do Mar e a Madeira Windbirds. Surgiram igualmente empresas dedicadas a organizar atividades como formação e passeios de vela, canoagem, windsurf, surf e bodyboard. De referir o crescimento que se verificou nos primeiros anos do séc. XXI no que diz respeito a empresas e escolas de surf. Por último, resta mencionar as empresas que se dedicam ao coasteering, atividade que combina rappel, escalada, saltos para o mar, natação e mergulho, tudo numa única atividade que permite descobrir as escarpas sobre as baías, as grutas e os recantos com água translúcida existentes na Ilha. Um dos locais mais procurados para esta atividade é a Reserva Natural da Ponta de São Lourenço onde se pode desfrutar do percurso de coasteering que permite conhecer as belezas naturais da baía d’Abra.   Teresa Mafalda Freitas (atualizado a 09.10.2017)

Biologia Marinha História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

borges, joão gonçalves

João Borges nasceu a 22 de setembro de 1922, na freguesia do Monte, concelho do Funchal, e faleceu nesta cidade a 26 de novembro de 2008. Empresário, desportista náutico e governante, destacou-se sobretudo nos sectores do turismo e do mar. A sua paixão pelo mar vem de muito novo quando, sendo asmático, encontra no mar alívio para a sua maleita. Ficaram célebres os seus mergulhos no Lido, pelo tempo que permanecia imerso. Foi pioneiro na caça submarina na Madeira, tendo ganho o primeiro lugar no primeiro concurso desta modalidade organizado pelo Clube Naval do Funchal, no Paul do Mar, em 27 de setembro de 1953. Foi também pioneiro no mergulho com escafandro autónomo, tendo acompanhado a equipa do Com. Cousteau (Cousteau, Jacques-Yves) durante a sua visita à Madeira em agosto de 1956. Em julho de 1966, acompanhou também os mergulhos do batiscafo francês Archimède na Madeira, tendo promovido uma conferência proferida no Funchal pelo Com. Georges Houot e pelo Eng. Henri-Germain Delauze, responsáveis pelo batiscafo. No plano associativo, pertenceu aos corpos dirigentes do Clube Naval do Funchal desde 1962 até 1988, tendo sido comodoro, vice-presidente e presidente da respetiva Assembleia-Geral. O entusiasmo pelo mar levou-o a interessar-se pela colónia de lobos marinhos, Monachus monachus, das ilhas Desertas, que nos anos 80 do séc. XX estiveram muito perto da extinção. Fruto deste interesse e das suas observações, participou na 1.ª Conferência Internacional sobre o Lobo Marinho, realizada em Rodes em 1978. Nesta apresentou uma comunicação intitulada “The monk seals of Madeira”, na qual deu conta da situação precária em que estes mamíferos marinhos se encontravam. Efetuou também várias deslocações às ilhas Selvagens, na companhia do seu amigo Paul Alexander Zino, tendo colaborado nos estudos das aves marinhas realizados por este ornitólogo amador. A sua capacidade de comunicação, as suas áreas de interesse e a fluência em línguas estrangeiras fizeram de João Borges um relações-públicas nato, levando-o a contactar com inúmeras personalidades que visitaram a Madeira. Em 1953, o realizador de cinema John Houston deslocou-se à Ilha para realizar algumas cenas do seu filme Moby Dick, tirando partido da existência, nessa época, de atividade baleeira. João Borges participa no filme, vestindo a pele de uma baleia branca. João Borges, na sua qualidade de “homem dos sete ofícios”, foi também um técnico de precisão muito conceituado, tendo fundado a relojoaria Big Ben em 1947, na então recentemente aberta Av. de Zarco. Na sua oficina, reparou muitos equipamentos náuticos de precisão, não só de desportistas locais, como também de iatistas que escalaram a Madeira. Esta sua aptidão levou-o a ser cronometrista de muitas provas náuticas, entre elas a Regata Oceânica Lisboa-Madeira, cuja primeira edição teve lugar em 1950. O seu talento para os contactos pessoais conduziu-o inevitavelmente ao sector do turismo. Assim, em 1969, ingressa na Delegação de Turismo da Madeira, ao lado de José Ribeiro de Andrade e António Bettencourt da Câmara, ficando responsável pelos sectores da promoção e das relações públicas. Torna-se assim o primeiro promotor oficial do turismo da Madeira, cargo que desempenhará por muitos anos, e que o levará aos principais países de onde são originários os turistas que visitam a Madeira. Na sequência da Revolução de 25 de abril de 1974, foi nomeado membro do Gabinete de Informação situado no Palácio de S. Lourenço e encarregado de dar informações aos jornalistas estrangeiros presentes, assessorando a primeira conferência de imprensa dada pelas novas autoridades no Funchal. Já na Direção Regional de Turismo, foi nomeado em 1981 diretor dos serviços de promoção, relações públicas e publicidade, e recebeu nesse ano o Golden Helm, galardão atribuído pela Associação Internacional de Relações Públicas. A 10 de janeiro de 1984, foi nomeado diretor regional de Turismo, cargo que ocupou até à sua aposentação, em 1992. A 18 de maio de 1986, o Governo regional da Madeira atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Turístico, e em 1987 recebeu a Medalha de Mérito Turístico instituída pela Associação Portuguesa das Agências de Viagem e Turismo, no decurso do seu XIII Congresso, em Marraquexe. Aquando da sua aposentação, os diretores dos centros de turismo de Portugal, reunidos no Funchal, homenagearam João Borges oferecendo-lhe uma placa na qual se lê a seguinte inscrição: “Ao ilustre embaixador da Madeira em todo o mundo, João Gonçalves Borges, como homenagem pelos relevantes serviços prestados ao turismo português”. A 10 de junho de 1993, é agraciado com o grau de comendador da Ordem de Mérito pelo Presidente da República, Mário Soares. João Borges foi casado com Deirdre Mary Isabella Shanks Borges, e teve dois filhos.   Obras de João Gonçalves Borges: “The Monk Seals of Madeira” (1978).   Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

Biologia Marinha História Económica e Social Ciências do Mar

aragão, antónio

António Aragão Natural de São Vicente, na ilha da Madeira, António Aragão foi uma figura cultural multifacetada do séc. xx. A poesia terá sido a sua área de eleição, mas fez igualmente experiências no âmbito da narrativa e do texto dramático. Também se dedicou a outros planos de intervenção e de estudo, e.g.: a formação do Cine Clube do Funchal para a visualização de cinema cultural. Dirigiu duas instituições madeirenses de relevo: o Museu da Quinta das Cruzes e o Arquivo Distrital da Madeira. Palavras-chave: António Aragão; historiador; promotor cultural; artista; escritor; escrita experimental. Existem algumas fotografias a preto e branco de António Aragão, no n.º 28 da revista Margem, que lhe é dedicado. Nelas, sobressai uma figura de pequena estatura e de porte cuidado, vestida com um casaco de fazenda e tendo a cabeça coberta com uma boina ou boné de cor preta. Na cara barbeada repousam uns óculos de vista (ou de sol) de aros escuros e grossos, não muito grandes, que estavam bastante em moda na déc. de 60 do séc. XX. Aqueles recobrem-lhe o pequeno rosto e possibilitam o seu reconhecimento: dão-lhe a marca da intelectualidade que o diferenciou. Praticamente todas as fotografias se reportam à fase de maturidade da sua vida, englobando, sensivelmente, o período da déc. de 60 à de 90 do séc. XX. Este retrato caricatural não permite adivinhar a sua genialidade criativa, revelada nas múltiplas classificações que lhe foram atribuídas. Através do índice da revista Margem referida, fica sem se saber se foi promotor patrimonial da comunidade local (ou melhor, regional), historiador, arqueólogo, poeta, ficcionista, dramaturgo, criador experimentalista, pintor, escultor, desenhista, cinéfilo, ou, simplesmente, um intelectual interessado em preservar o passado aberto à novidade do futuro, na vivência do seu tempo presente. Além de possuir outros epítetos, não se resumirá a nenhum deles, porque será a soma de todos. A personalidade de António Aragão recorda os artistas renascentistas, devido à sua insaciedade de saber e de inventar; era uma pessoa curiosa, nutrindo vários interesses. O acervo que foi constituindo, e que algumas entidades públicas, além de outras privadas, tentam adquirir, revela esta pluralidade de interesses e a sua curiosidade pela diversidade cultural. As balizas temporais, medidas entre o nascimento a 22 de setembro de 1921, em São Vicente, na ilha da Madeira, e o falecimento a 11 de agosto de 2008, no Funchal, indicam que António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia viveu quase 87 anos; fá-los-ia no mês seguinte à sua morte, depois de uma fase de doença prolongada. Embora haja uma biografia divulgada e reiterada, seria preciso observar muitos detalhes para compreender inteiramente este homem do séc. XX, amante do passado e do futuro, e para evidenciar a sua faceta artística: foi escritor, poeta, pintor, escultor e também historiador e investigador. De facto, António Aragão destacou-se como um importante vulto da cultura portuguesa, não só pela sua vasta formação académica como pela sua criatividade na cultura e na arte, o que lhe permitiu vencer as barreiras da insularidade e afirmar-se nos meios académicos e culturais nacionais e europeus. O seu carácter irrequieto e polémico afastou-o do conformismo criativo. Era assim na investigação histórica, na etnografia, na pintura, na escultura e na arte da palavra. Além de todas as suas potencialidades e capacidades, também possuía uma grande paixão pelo cinema. Aliás, em 1955, contribuiu para a formação do Cine Clube do Funchal, a fim de possibilitar a visualização de obras de cinema alternativas às classificadas como comerciais. Da sua vida pessoal, poucas informações são divulgadas nas biografias existentes. Provavelmente por vontade própria, intentou separar a sua vida privada da sua vida pública. É sabido que se casou, em Roma, com Estela Teixeira da Fonte, de quem teve um filho, Marcos Aragão Correia, advogado de profissão. Sua irmã, Ruth Aragão de Carvalho, formada em ballet na capital portuguesa, casou-se com o ator Ruy de Carvalho. A nível de formação académica, a vida desafogada dos pais permitiu-lhe ir estudar no Liceu Jaime Moniz, o que poucos jovens ilhéus, sobretudo os nortenhos, podiam almejar. Posteriormente, como acontecia com os setimanistas madeirenses, seguiu para o continente e frequentou a Universidade de Lisboa, instituição onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, fazendo depois uma especialização em Biblioteconomia e Arquivística na Universidade de Coimbra. Estudou ainda etnografia e museologia em Paris, sob a orientação do diretor do Conselho Internacional de Museus da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Finalmente, dedicou-se ao estudo do Restauro de Arte, em Itália, mais precisamente no Instituto Central de Restauro de Roma, tendo usufruindo de um estágio no Laboratório do Vaticano. Tanto em Paris como em Roma, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). No âmbito do seu percurso profissional, fruto da diversificada e rica formação que tinha adquirido, desempenhou, no plano regional, alguns cargos importantes, tendo dirigido o Arquivo Distrital da Madeira e o Museu Quinta das Cruzes, e sido delegado dos Museus e Monumentos Nacionais na Madeira, associado à Comissão de Arte e Arqueologia da Câmara Municipal do Funchal. Os lugares por onde passou, no domínio laboral, coadunavam-se perfeitamente com os interesses que nutria, quer quanto à museologia, quer quanto à arquivística e à dimensão histórica da sua formação inicial. Notável é a sua atividade enquanto investigador e arqueólogo, da qual derivou vasta e conhecida obra: Os Pelourinhos da Madeira (o seu primeiro livro, de 1959); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700 (1981); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992). A partir das escavações arqueológicas por si dirigidas no lugar do aeroporto, onde se situava o Convento quinhentista de N.ª Sr.ª da Piedade (Santa Cruz), foi possível proceder ao levantamento da planta geral do Convento franciscano, ao estudo das suas características tipológicas e à exumação de variado espólio, onde se inclui uma vasta diversidade de padrões de azulejaria hispano-mourisca ou mudéjar, proveniente do Sul de Espanha, bem como múltiplos exemplares de azulejaria portuguesa seiscentista e setecentista, e de elementos primitivos em cantaria lavrada: portais do Convento, janelas, arco triunfal da igreja, condutas de águas, lajes tumulares e pavimentos, que passaram a constar nos jardins da Q.ta do Revoredo, Casa da Cultura de Santa Cruz. É de destacar que todos os trabalhos por ele efetuados se encontram devidamente catalogados e documentados com plantas rigorosas, desenhos e fotografias. Também se deve realçar a ação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, que era então o poder executivo do arquipélago, que encomendou e incentivou este trabalho e que, depois de entregue pelo autor, o depositou em grande parte no Museu Quinta das Cruzes. A par da profissão oficial, foi dando realce à sua faceta de artista, como comprovam as suas ilustrações do livro Canhenhos da Ilha de Horácio Bento de Gouveia. Outro exemplo é a sua poesia espacial OVO/POVO, apresentada, em 1977, na XIV Bienal de São Paulo, tendo tido uma exposição em Lisboa, no ano seguinte, e outra em Coimbra, no decorrer de 1980. Outro exemplo ainda foi a exposição PO.EX. 80, que esteve na Galeria Nacional de Arte Moderna, na capital portuguesa, em 1980 e em 1981. A sua vertente artística culminou em 2007, com uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, tendo, porém, exposto também na Madeira. Pese embora estas facetas, será sempre lembrado e reconhecido pela sua intervenção na literatura de cariz experimental, nomeadamente pela sua colaboração na organização dos dois números da revista Poesia Experimental (1964, 1966). A este propósito, como afirma Rui Nepomuceno: “Em Portugal, o experimentalismo poético e literário ocorreu em Lisboa nos meados dos anos 60, mais precisamente em 1964, com a publicação da ‘Revista Experimental 1’; muito embora desde os finais de 50 já tivesse começado a germinar, como até podemos verificar ao cotejar os trabalhos literários de António Aragão organizados e divulgados naquele decénio, na Madeira” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010). É curioso verificar que a linguística teve um papel preponderante neste movimento e, consequentemente, em António Aragão, algo que Rui Nepomuceno também sugere: “Deste modo, na teorização deste movimento, passaram a assumir grande importância e estatuto determinante os diversos fatores relacionados com a ‘Linguística Moderna’, a ‘Semiótica’, o ‘Estruturalismo’, e, obviamente, os diversos aspetos da ‘Teoria da Forma e da Informação’, de que foram principais intérpretes e seguidores no estrangeiro Abraham Moles, Saussure, Jakobson e, sobretudo, o muito citado Lévi-Strauss” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010); e esta influência tem reflexos em toda a sua criação literária (com particular incidência na linguagem verbal). Por conseguinte, foi pela dimensão literária e artística que António Aragão ganhou renome. Esta ligação com a linguagem manifestou-se em muitas das peças artísticas de António Aragão numa fase de maturidade da vida artística, já que teve um percurso marcado por diversos períodos. As artes plásticas associaram-se, de certo modo, à sua poesia, que usou a linguagem verbal como matéria de jogo em quadros ou em textos e não com o valor que tinha para os linguistas, algo que era próprio da poesia experimental. É preciso lembrar que, além de artista, foi curador de arte contemporânea e promoveu diversas exposições, inclusive na galeria associada à editora Vala Comum, que possuía em Lisboa. Ele próprio contribuiu muitíssimo para a produção de obras de arte de diversas tipologias. O fascínio pela impressão e pelos recortes, com colagens e montagens originalíssimas, acentuou esta veia artística, mais inovadora, se assim se pode dizer, do que a que concebeu em suportes como tela ou pedra. A sua obra vivenciou diversas fases, algo que foi mais notório na pintura. De um período figurativo inicial, com tendência naturalista, passou para uma vertente expressionista com opção pela abstração, por via de uma geometrização e autonomia do traço. Produziu, além de óleos, algumas aguarelas e, em determinada altura, recorreu à laca como material. Na última fase, concebeu composições a partir de colagens, construindo as suas pinturas essencialmente pela destruição do material-base (e.g., jornais). Os quadros, as gravuras, as esculturas e as outras peças concebidas por António Aragão, enquanto desenhista, pintor e escultor, têm merecido um estudo cuidado por parte de peritos. É o caso de Isabel Santa Clara, que releva três obras emblemáticas do artista: “Da obra pública de António Aragão, na qual o autor opta por uma figuração abstratizante, destacam-se, em 1960, o monumento comemorativo do quinto centenário da morte do infante D. Henrique, paralelepípedo com desenho inciso, no Porto Santo; os relevos da fachada da Escola Industrial, depois Escola Secundária de Francisco Franco; e um painel cerâmico no mercado de Santa Cruz, de 1962” (SANTA CLARA, “Artes plásticas”). Todas as obras foram fortemente marcadas pela época em que foram criadas. Assim, das peças mais conhecidas, destacam-se, primeiro, os painéis de cerâmica da Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal, onde sobressaem vultos que laboram. Depois, o colorido painel de cerâmica do mercado da localidade madeirense de Santa Cruz, que comunga da representação das ilustrações que António Aragão fez para o já referido livro Canhenhos de Horácio Bento de Gouveia. A terceira referência escultórica, que ficou localizada no Porto Santo, é designada popularmente por “pau de sabão”, pela analogia da forma que possui o bloco de pedra com uma medida de sabão azul. A rigidez do padrão comemorativo ficará para a eternidade a evocar o momento celebrativo e a criatividade de António Aragão. O padrão diferencia-se bastante dos painéis porque contém detalhes regionais, onde se observam trabalhadores, essencialmente agrícolas, mas também pescadores, quase todos sem rosto, que surgem a desempenhar tarefas do quotidiano, reportando uma vida de trabalho árduo. É de realçar igualmente a imagem de S.ta Ana, em cantaria rija, na Câmara Municipal de Santana, 1959. Desenho de António Aragão. 1944. Foto de Rui A Camacho   Óleo de António Aragão datado de 23 de Julho de 1946. Foto Rui A Camacho Na pintura, desde a déc. de 40 do séc. XX, evidenciou-se em diversas temáticas abordadas e na exploração de técnicas diferenciadas. Realizou exposições em Portugal (Galeria Divulgação, Quadrante, Galeria III, Galeria Diferença, FCG – II Exposição de Pintura Portuguesa) e no estrangeiro, nomeadamente em Espanha (Madrid, Sevilha, Barcelona), México, França (Paris) e Itália (Roma e Turim), encontrando-se representado em coleções particulares e oficiais em vários países, nomeadamente na Fundação Serralves, em Portugal. António Aragão concretizou um projeto artístico contemporâneo baseado em novas tecnologias numa casa que lhe pertenceu, situada na Lapa, em Lisboa. O projeto enquadrava uma associação de educação popular com uma galeria de arte vanguardista, ao qual foi atribuído mecenato pela Secretaria de Estado da Cultura. Antes da doença prolongada de que padeceu até à sua morte, António Aragão, de volta ao Funchal, pintou os seus últimos quadros, que constituíram uma série que intitulou Os Monstros e consistiram numa crítica corrosiva ao que considerava ser a hipocrisia dominante na sociedade. As últimas exposições individuais em vida de António Aragão foram realizadas na Madeira e comissariadas por António Rodrigues. A antepenúltima teve lugar em abril de 1996, na Casa da Cultura de Santa Cruz, e integrou 16 dos seus últimos quadros, bem como uma seleção retrospetiva de 13 trabalhos, em diferentes técnicas, realizados nas décs. de 50 e 60 do séc. XX. A penúltima, Exposição Retrospetiva, teve lugar na Casa da Luz, no Funchal. A última exposição de António Aragão antes da sua morte ocorreu no Museu de Arte Contemporânea da Madeira (Forte de S. Tiago, Funchal). Verifica-se que, por um lado, numa dimensão quase de intervenção social, se interessou por representar o povo, as pessoas, que não valem por si próprias porque não se identificam individualmente, mas configuram grupos profissionais; por outro lado, criou pinturas de paisagens, habitadas ou não, e exemplares de natureza morta. Estas últimas reportam-se, sobretudo, ao período inicial da produção artística, que foi mudando e se foi adaptando aos gostos e às vivências inspiradoras do criador. Em síntese, Isabel Santa Clara descreveu muito bem a versatilidade de António Aragão: “Uma vertente experimentalista sacudiu o panorama artístico de forma peculiar nas décadas de 70 e 80. No centro desta atividade está a multifacetada figura de António Aragão, de inesgotável disponibilidade para com os novos talentos, cujas inquietações e inconformismos lograva canalizar para uma profícua experimentação artística. Ganharam força as práticas de poesia visual e de mail art, potenciadas pelas capacidades técnicas, a acessibilidade, a rapidez e a liberdade de produção de múltiplos da eletrografia. Surgiu assim Filigrama, mail art zine editada entre 1981-1983, revista de folhas soltas, que ia sendo sucessivamente alterada na sua composição e enviada pessoalmente através dos circuitos internacionais da mail art, que passavam muito especialmente pelo Brasil” (SANTA CLARA, 2010, 186); tendo colaborado em diversas manifestações de mail art, divulgou os seus trabalhos em revistas da especialidade. Compreende-se a estreita interligação, assim sintetizada, entre a obra artística e a produção escrita do artista-escritor. António Aragão terá sido, na juventude, um dos poetas da Tertúlia Ritziana, e, em 1946, com cerca de 25 anos, viu o seu conto “Pressentimento” obter um prémio: o 2.º lugar nos Jogos Florais promovidos pelo Ateneu Comercial do Funchal. Em 1952, colaborou com Jorge de Freitas, com Florival dos Passos, com Rogério Correia e com Herberto Helder, entre outros, no caderno de poesia Arquipélago, e, em 1956, foi editor da revista literária Búzio, impressa e publicada a suas expensas, em que colaboraram, além do próprio, Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Eurico de Sousa, Jorge Sumares, José Escada, Esther de Lemos e David Mourão-Ferreira. A sua vasta obra foi publicada essencialmente no Funchal e em Lisboa, uma obra em que se encontram frequentemente textos criados em conjunto com outros autores. Dos seus trabalhos – livros inteiros, revistas ou composições singulares –, tanto de carácter científico como criativo, referenciamos, em seguida, alguns. São vários os seus textos na déc. de 60, designadamente no âmbito da ficção literária, incluindo a poesia e o teatro; participou em ações coletivas e antologias literárias. Em 1962, escreveu o Poema Primeiro; em 1964, o Romance de Iza Morfismo, e também, com Herberto Helder, Cadernos de hoje (uma antologia de poesia experimental); em 1965, colaborou no suplemento especial do Jornal do Fundão sobre poesia concreta com “Visopoemas” e “Ortofonias” (com Ernesto M. de Melo e Castro); em 1966, compôs Hidra I, Folhema 1 e Folhema 2; em 1967, Operação I; em 1968, Mais exactamente P(r)o(bl)emas; em 1969, “Hidra 2”. Na déc. de 70, publicou, para além da já mencionada monografia O Museu da Quinta das Cruzes, Poema Azul e Branco e o romance Um Buraco na Boca, em 1971; também neste ano, participou na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa. Em 1972, dirigiu a edição de Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal, e, em 1973, colaborou na Antologia da Poesia Concreta em Portugal. Em 1975, publicou Os Bancos antes da Nacionalização; em 1976, colaborou na Antologia da Poesia Visual Europeia; e, em 1979, produziu Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 e a já referida obra Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória. Nos anos 80, manteve o ritmo alucinante de escrita e de publicações. Assim, em 1981, apresentou não só o livro A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700, como também a peça de teatro Desastre Nu, que ganhou o 2.º prémio do Concurso de Peças de Teatro Inéditas promovido pela Secretaria de Estado da Cultura em 1980. Também neste ano, escreveu Metanemas e tornou-se um dos fundadores de Filigrama. Em 1982, publicou igualmente o opúsculo de carácter panfletário Pátria. Couves. Deus. Etc. e, ainda neste ano, Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly). Em 1983, compôs Líricas Portuguesas. Antologia e, no ano seguinte, iniciou as eletrografias: O Elogio da Loura do Ergasmo nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente e Merdade My Son, realizadas em 1984, 1985 e 1987, sendo publicadas em 1990. Em 1984, com Alberto Pimenta, deu à estampa Os 3 Farros. Descida aos Infermos (uma curiosa troca de correspondência entre os dois autores), além de ter publicado As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História. Ainda em 1984, numa divulgação em dois discos LP, resultado de trabalhos de investigação no campo etnográfico, ganharam visibilidade as suas recolhas de música tradicional das ilhas da Madeira e do Porto Santo, empreendidas na década anterior com Jorge Valdemar Guerra e com o músico Artur Andrade. Em 1985, fez uma exposição itinerante com Poemografias e, em 1987, apareceu uma nova edição, revista e aumentada, de Para a História do Funchal. Já com mais de 70 anos, ainda manteve alguma produção, tendo sido publicados, em 1992, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal, anteriormente mencionado, e o livro de contos Textos do Abocalipse, que colocaram várias questões, nomeadamente políticas. Além destes títulos, em 1993, foi reeditado o romance Um Buraco na Boca, que recria de algum modo a linguagem verbal, desafiando as convenções da norma. Escreveu ainda para várias publicações: Comércio do Funchal; Línea Sud, Nápoles; Letras e Artes, Lisboa; Expresso; Colóquio-Artes, FCG, Lisboa; Diário de Notícias, Lisboa; Comércio do Porto; Espaço Arte, Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira; e Diário de Notícias da Madeira. A nível internacional realça-se a sua participação em vários fóruns de natureza cultural e artística: Sevilha, 1980; em 1982, Itália e Brasil; 1983, Cuenca; 1984, Comuna de Milão, Itália; 1984, São Francisco, EUA, e Barcelona; 1985, Israel e Nova Iorque; 1986, México e Sevilha; 1987, México e França; 1989, Itália e Paris; 1990, Siegen, Alemanha, México e Washington; e 1992, Madrid. Em suma, as décs. de 60, de 70 e de 80, destacando-se, decerto, o ano de 1981, foram um período muito fértil, marcando toda a sua carreira. Quando se observa detalhadamente a listagem dos títulos, para se quantificarem as publicações não literárias e as literárias, verifica-se que estas se sobrepõem àquelas. Portanto, foi, indubitavelmente, um escritor insaciável e incansável, sendo-o mais de poesia do que de ficção ou de teatro. Contudo, os seus trabalhos não literários, quase todos dedicados à Madeira e ao Funchal, são referências incontornáveis para quem se dedica às temáticas de que trataram. António Aragão faleceu no Funchal, a 11 de agosto de 2008. A sua família doou ao Arquivo Regional da Madeira, posteriormente Arquivo Regional e Biblioteca Pública Regional da Madeira, grande parte do seu espólio histórico. No entanto, o legado do seu acervo artístico ao país e, particularmente, à Madeira foi reconhecido ainda em vida pela Câmara Municipal do Funchal, que atribuiu o seu nome a uma via citadina. Obras de António Aragão: Os Pelourinhos da Madeira (1959); Poema Primeiro (1962); Romance de Iza Morfismo (1964); Visopoemas (1965); Ortofonias (1965); Hidra I (1966); Folhema 1 (1966); Folhema 2 (1966); Operação I (1967); Mais exactamente P(r)o(bl)emas (1968); Hidra 2 (1969); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Poema Azul e Branco (1971); Um Buraco na Boca (1971); Os Bancos antes da Nacionalização (1975); Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 (1979); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); Desastre Nu (1981); A Madeira Vista por Estrangeiros (1981); Metanemas (1981); Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly) (1982); Pátria. Couves. Deus. Etc. (1982); Líricas Portuguesas. Antologia (1983); Os 3 Farros. Descida aos Infermos (1984); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Elogio da Loura do Ergasmo Nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente (1990); Merdade My Son (1990); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992); Textos do Abocalipse (1992).   Helena Rebelo Miguel Fonseca (atualizado a 14.07.2017)

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vasconcelos, joão da câmara leme homem de, visconde e conde do canavial

A vida política, económica e social madeirense foi marcada no último quartel do séc. XIX pela personalidade conflituosa do futuro conde do Canavial, Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos. Filho do morgado António Francisco da Câmara Leme Homem de Vasconcelos e de Carolina Moniz de Ornelas Barreto Cabral, nasceu no Funchal a 22 de junho de 1829, foi simultaneamente clínico, professor, funcionário público, homem de ciência, jornalista e escritor, político e industrial, em todas essas ocupações revelando interessantes qualidades e capacidade e de trabalho, mas também uma personalidade algo conflituosa. Foi autor de uma vastíssima produção literária, quer científica, quer política, que é difícil trabalhar de forma científica, pois nem sempre se consegue separar o que era polémica científica e industrial do que eram atitudes políticas e pessoais. Concluídos os estudos secundários no Funchal, veio a formar-se em medicina pela Universidade de Montpellier, em França, bacharelando-se em 1852 e doutorando-se em 1857, colaborando ali em vários periódicos, fazendo traduções e tendo obtido o lugar de membro da Academia das Ciências e Letras daquela cidade. Começou assim logo por desenvolver um notável trabalho científico na sua área de especialidade a que, regressado à Madeira, juntou também a de investigador da área científico-industrial de tratamento do vinho da Madeira, de que era um dos mais importantes produtores. O Dr. João da Câmara Leme, regressado de França, fez em 1859 repetição dos seus atos académicos na Escola Médica de Lisboa, sendo no ano seguinte nomeado demonstrador de anatomia da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e, em 1867, professor proprietário. No ano seguinte, editava logo um Relatório e Projecto de Regulamento para a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal (1868), entrando de imediato em conflito com o Dr. António da Luz Pita (1802-1870), então deputado em Lisboa, polémicas que se prolongaram pelos anos seguintes. Escrevem os autores do Elucidário Madeirense, que o conheceram pessoalmente, que “teve de sustentar algumas lutas com os seus colegas no magistério, publicando a tal respeito dois grandes volumes, que, apesar da parcialidade com que possam porventura estar escritos, são trabalhos de incontestável valor” (SILVA e MENESES, 1998, I, 232). Paralelamente à sua atividade como médico e diretor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, promoveu ainda a fundação da Companhia Fabril de Açúcar Madeirense (CFAM), com sede junto à ribeira de São João, onde introduziu notáveis aperfeiçoamentos nos processos destinados ao fabrico da aguardente, essencialmente no sentido de um melhor aproveitamento da matéria-prima empregue. Registou de imediato patente da sua invenção, o que deu lugar a uma série de contestações e polémicas, voltando a, sobre esse assunto, publicar inúmeros folhetos. Na polémica viria a entrar outra das grandes figuras da Madeira do seu tempo, o depois comendador William Hinton (1817-1904), a qual polémica, embora não só, veio a inviabilizar alguns anos mais tarde a Companhia da ribeira de São João. A constituição e vida da CFAM, liderada pelo futuro visconde do Canavial, foi um bom exemplo do quadro geral em que se desenvolveu a atrasada revolução industrial na Madeira. Beneficiando do inegável espírito empreendedor do promotor, mas também da sua teimosia e, inclusivamente, de um experimentalismo algo deslumbrado, sempre à procura de uma nova tecnologia, e sem bases técnicas e científicas para tal, a vida da Companhia foi confrontada com a concorrência feroz dos comerciantes britânicos instalados na Madeira. A todo este quadro, juntaram-se as dificuldades de associação e de entendimento dos proprietários madeirenses, muito provavelmente ainda politicamente agudizadas pelos antigos morgados, entretanto radicados no espaço continental. Os estatutos da CFAM só foram aprovados em 1867, arrastando-se a constituição da Companhia por mais de 10 anos, o que implicou que a fábrica de São João só entrasse em funcionamento em 1871. O futuro visconde apetrechou-a com sofisticada aparelhagem, a que ainda associou outros aperfeiçoamentos da sua autoria, de que imediatamente registou a patente. No entanto, não só William e o filho Harry Hinton (1859-1948) vieram a contestar o registo dessa patente, como a sofisticada aparelhagem acabou por não se mostrar rentável. A 26 de agosto de 1878 foi solicitada a intervenção do Banco de Portugal por insolvência financeira da CFAM. A ideia voltou a aparecer em 1892, tomando como exemplo a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, chegando-se mesmo a propor em reunião camarária, de 11 de outubro desse ano, um subsídio anual de 100 mil réis e que a nova associação fosse presidida pelo conde do Canavial. Mas tal como já se inviabilizara o anterior projeto da fábrica de São João, também a associação se extinguia em 1902. Em 7 de setembro de 1876, organizava-se a partir do Pacto da Granja, no continente, uma nova fusão, então entre elementos das antigas formações histórica e reformista, de que nasceu o Partido Progressista, de Anselmo José Braamcamp, que foi o primeiro partido no sentido moderno do termo com programa, apresentando um regulamento interno, com assembleia geral e centros locais. O líder na Madeira viria a ser o Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos, depois visconde do Canavial, aderindo ao partido parte dos antigos membros do Partido Fusionista e do Regenerador. O Partido Fusionista teve como órgão o Correio do Funchal, substituído depois pelos periódicos A Fusão, A Voz do Povo e A Imprensa Livre. Em meados de 1879, com a queda do executivo, saía da Madeira o governador e conselheiro Afonso de Castro, logo assinando, a 21 de julho, a correspondência do governo civil, como membro do conselho do distrito, João da Câmara Leme, como visconde do Canavial, embora a 28 de agosto já não o faça, só voltando a assumir-se como visconde a partir de agosto do ano seguinte. Estranhamente, não se encontra qualquer documentação oficial da sua nomeação como visconde, mas apenas o dec. de 22 de abril de 1888, que o nomeia como conde, citando-se ainda a carta de 28 de março e o alvará de “mercê nova” de 15 de dezembro de 1888 (CLODE, 1983, 107), não havendo contudo confirmação alguma na chancelaria régia. A partir de então, desenvolveu o futuro visconde uma verdadeira campanha para vir a ocupar o lugar de governador civil do Funchal, assim como para passar a utilizar o título de visconde do Canavial. A luta política deve ter sido terrível, a avaliar logo pelos membros do conselho do distrito que assinam alternadamente a correspondência como governador substituto: o visconde do Canavial a 21 de julho e o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) a 30 do mesmo mês. Luta que deve ter tido eco também nos corredores do poder em Lisboa, até pela utilização então intensiva do telégrafo submarino, através da Madeira Station no Funchal da Brazilian Submarine Telegraph Company Limited. A nomeação de João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos como governador substituto para o distrito do Funchal só viria a ser assinada a 30 de julho de 1879. O decreto terá chegado ao Funchal poucos dias depois e o futuro visconde, a 8 de agosto, logo emite proclamação impressa e inflamada ao sabor de alguns dos governadores anteriores, que eram, no entanto, efetivos, pois nenhum até então tinha feito especial alarido com o facto de ser “governador substituto” (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 683). O novo governador substituto teria alguns curtos meses de estado de graça, pois em breve O Direito o acusava de se encontrar a receber três ordenados: o de governador substituto, o de professor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e o de delegado de Saúde. A 15 de fevereiro, o governador distribuía um comunicado com um desmentido atestado pelo delegado do Tesouro em como, passando a receber o ordenado de governador substituto, suspendera os outros. O futuro visconde do Canavial não seria confirmado naquela altura, pois, caindo o gabinete progressista em Lisboa, o novo gabinete regenerador demitiu de imediato os governadores civis progressistas e, a 26 de abril de 1881, já assina a correspondência do Funchal o vogal do Concelho do Distrito servindo de Governador Civil, João Maria Curado de Vasconcelos (1825-1896). A breve trecho, um autêntico terramoto político varreria o país, com epicentro na Madeira: a eleição do Dr. Manuel de Arriaga, candidato pelo Partido Republicano às cortes, a 26 de novembro de 1882, em eleições suplementares, dado o falecimento do deputado madeirense Dr. Luís de Freitas Branco (1819-1881). Ainda antes do anúncio oficial do apoio dos regeneradores ao líder do Partido Progressista, já O Direito alardeava não poder haver qualquer compromisso com os progressistas, temente, talvez, de ver candidatar-se pela Madeira o visconde do Canavial, até há pouco governador civil substituto do Funchal. Numa intensa campanha ao longo do ano entre os partidos monárquicos, acabou por ser eleito na Madeira o candidato republicano. Nos inícios do ano 1886, o presidente do ministério Fontes Pereira de Melo propunha um adiamento das eleições, para poder organizar uma série de diferendos, o que se estava a tornar um crescente motivo de tensão entre governo e oposição. O rei D. Luís não acedeu à proposta do chefe do governo, pelo que Fontes se viu na contingência de ter de pedir a demissão do gabinete. Foi então chamado ao governo o Partido Progressista, liderado por José Luciano de Castro, mas o início do novo governo progressista foi ocupado com as complicadas negociações que levaram ao casamento do príncipe herdeiro D. Carlos, atrasando uma série de nomeações. Teria sido o caso da nomeação do governador civil do Funchal, para o então líder dos progressistas, visconde do Canavial, lugar que só foi preenchido por dec. de 1 de julho de 1886. Após as eleições de março de 1887, o governador civil, visconde do Canavial, iniciou a convocação das eleições das juntas de paróquia, que somente ocorreram no Funchal e em Machico. O visconde do Canavial insistiu nas convocatórias por três vezes, sem resultado, essencialmente pelos custos que mais uma estrutura política acarretava, mas também por causa da conotação com a divisão eclesiástica tradicional e da ideia rural de que a paróquia era dirigida pelo “senhor pároco” ou “senhor vigário” e não por um elemento eleito entre os “senhores morgados”. A pressão do visconde do Canavial conduziu a um levantamento geral na ilha, que, começando nos meios rurais, quase envolveu o Funchal: a Parreca. Perante a contestação geral, mas só depois de muito pressionado, o visconde do Canavial veio a apresentar demissão a 26 de março de 1888, tendo sido entregue o governo ao visconde da Calçada, Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa (1812-1902). Apesar das dificuldades do seu governo e dos resultados da comissão de inquérito à Parreca, seria elevado a conde do Canavial no final desse ano de 1888, embora se desconheça a documentação oficial, como mencionámos acima. O conde do Canavial viria a falecer na sua residência, à rua da Carreira, a 13 de fevereiro de 1902. Quase 20 anos depois, surgiu a ideia de se levantar um monumento à sua memória, iniciativa de Abel Capitolino Batista; o trabalho foi entregue ao jovem escultor macaense Raul Xavier (1894-1964) e erguido sobre plinto de mármore branco, projeto do arquiteto Fernando Pires. A primeira pedra foi lançada a 1 de dezembro de 1921 e o monumento inaugurado a 2 de março de 1922, no passeio público, frente à sé do Funchal, tendo usado da palavra Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), em nome dos alunos do liceu (Diário de Notícias, 22 fev. 1922). A inauguração do monumento naquela altura e naquele local levantou enorme celeuma, dado o seu enquadramento monárquico, vindo a ser transferido para o Campo da Barca, a 6 de dezembro de 1932.     Rui Carita (atualizado a 31.12.2016)

Ciências da Saúde História Económica e Social História Política e Institucional Personalidades

sociedade

O processo que se inicia com o povoamento da Madeira é o gérmen de uma nova sociedade onde a estrutura social terá novos mecanismos de consolidação e crescimento, fazendo com que os grupos sociais também se estruturem de forma distinta, sem perder, no entanto, a matriz europeia. O processo de expansão europeia desencadeou uma rutura com as estruturas e grupos sociais existentes. Nessa altura, a aristocracia tinha uma posição consolidada no espaço continental e parecia não pretender partir em buscas de terras, e, quando isso acontecia, era por serviço e honra ao soberano, esperando títulos e honras. Estamos, assim, perante um campo livre para os grupos deserdados e sem lugar nesta sociedade. Trata-se dos filhos segundos, a quem a lei retira a possibilidade de sucesso na sua própria terra, dos mercadores e aventureiros, do povo em geral e, por fim, de um grupo que esta sociedade renega, o dos condenados ao degredo. São estes que, certamente, vão alimentar o serviço do mar e as tarefas de povoamento dos novos espaços, como a Madeira, imprescindíveis para a continuidade do processo de expansão atlântica. É neste grupo de deserdados ou marginalizados pela sociedade que se encontra o fermento das novas sociedades atlânticas, cujo processo se inicia na Madeira. Há aí condições para que isso aconteça: terra disponível e circunstâncias propícias ao processo de nobilitação junto do senhorio e da Coroa, de forma que a sociedade se hierarquize em conformidade com o padrão peninsular. Há lugar para uma nova burguesia e nova nobreza que têm, nitidamente, esta marca insular atlântica, que nasce entre o mar e as ilhas, entre a lavra da terra já reconhecida e a descoberta de novos espaços e conquistas. É gente que se movimenta num espaço de grande mobilidade e protagonismo e que vai ao encontro de novas descobertas, fazendo valer os seus serviços para receber, em troca, títulos e cartas de nobilitação. Foi, pois, nas ilhas e no mar que começou a ganhar forma a nova aristocracia e burguesia dos descobrimentos. A Ilha era, no início, uma incerteza. Ninguém tinha razões visíveis para acreditar no sucesso imediato desta campanha, mas havia uma esperança de mudança. Daí a adesão dos vários grupos sociais, renegados de uma posição de destaque pela sociedade peninsular. Nesta primeira população, gérmen da madeirense, surgem diferenças de condição social que determinaram os diversos estatutos ou categorias sociais privilegiados, o povo e as minorias. O facto de a Madeira estar desabitada facilitou a fixação dos primeiros povoadores europeus, mas atribuiu-lhes redobradas responsabilidades quanto ao lançamento dos alicerces da nova sociedade. Aos obreiros e cabouqueiros iniciais, seguiram-se diversas levas de gente para o rápido arranque de ocupação. A partir do núcleo inicial de povoadores, disseminados pelas diversas frentes de arroteamento da ilha, ganha forma uma nova sociedade com uma estrutura semelhante à do reino. A sua organização partirá do estatuto preferencial dos primeiros habitantes e evoluirá com a afirmação da estrutura institucional e económica. O primeiro grupo de europeus teve uma importância primordial na formação da nova sociedade, sendo pouco representativa a presença de outros grupos étnicos. A presença de africanos (mouros, negros e guanches) é distinta, na medida em que surgem na Ilha numa condição servil, acabando, porém, por desempenhar um importante papel relacionado com o arranque da economia açucareira. A sociedade madeirense foi estabelecida no séc. XV, num contexto de expansão europeia no espaço atlântico que permitiu algo diferente do que acontecia no reino. A Madeira é a primeira sociedade atlântica onde os escravos assumem um papel na nova sociedade, que preludia o que acontecerá nas outras ilhas atlânticas e continentes americanos. Estes representam a força de trabalho, com uma forte ligação à produção açucareira, o que determinará variadas mudanças na estruturação da nova sociedade. É o primeiro elemento novo da sociedade atlântica que aqui começa a gerar-se. Daí a importância que a historiografia americana atribui ao estudo do caso madeirense. Neste sentido, os estudos de Charles Verlinden, secundados por Sidney M. Greenfield, atribuem um relevo especial à situação particular da escravatura da Madeira. Para eles, a Madeira, sendo modelo institucional e económico, também o é ao nível social. O estudo da escravatura é uma questão complexa que requer desusados cuidados. O seu rastreio na documentação é difícil, mercê do facto de este ser um grupo marginal e sem personalidade jurídica. Deste modo, é difícil e, por vezes, impossível encontrar o rasto do seu quotidiano nos núcleos documentais disponíveis. A sua presença é esporádica e quase que se resume aos atos escritos relacionados com o ritual religioso, por imposição da Igreja, e outros de carácter privado do proprietário, como sejam os testamentos e demais atos notariais. Mas, aqui, o escravo aparece sempre em razão da mundividência do livre, a quem está subordinado. Por isso, não é fácil reconstituir o seu dia a dia, que andava sempre associado ao do proprietário. Até mesmo em momentos em que o escravo é protagonista de algum acontecimento, normalmente de carácter violento, o seu amo está presente. Era sobre ele que recaíam todas as correspondentes responsabilidades civis. A excessiva vinculação do escravo ao dono é um dos aspetos marcantes da expressão da escravatura no arquipélago, sendo também testemunho de uma vivência comum e não segregativa. Por isso, as suas particularidades tornam-se dificilmente expressivas ao nível documental. O recurso a testemunhos de estranhos, legados pela literatura de viagens, poderá ser uma valiosa fonte de informações a tal respeito. O rastreio da mundividência dos libertos é outra via possível, uma vez que poderá ser um indício da anterior situação. A presença do escravo na constituição da sociedade madeirense desde o séc. XV não é um fenómeno isolado, enquadrando-se no contexto socioeconómico em que o arquipélago emergiu: a falta de mão de obra braçal para as novas arroteias e a maior necessidade desta por parte de culturas como a cana sacarina geraram esta procura. A iniciativa descobridora do Atlântico, de que os madeirenses foram ativos protagonistas, propiciou as vias para o seu encontro. Foi de acordo com esta conjuntura que a escravatura ganhou importância na sociedade madeirense, que lhe atribuiu uma situação particular. O evoluir do processo socioeconómico interno, associado às novas condições estabelecidas pelo mercado atlântico, contribuiu, ainda que paulatinamente, para a desvalorização da componente da escravatura na estrutura social do arquipélago. A menor utilidade do escravo no sector produtivo e a maior procura por outros mercados e sociedades condicionaram a deslocação da mão de obra escrava. A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada, tinha as portas abertas a este vantajoso comércio. Deste modo, a Ilha e os madeirenses demarcaram-se, nas iniciais centúrias, pelo empenho na aquisição e comércio desta pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico. A ela chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que contribuíram para o arranque económico do arquipélago. Deveremos ter ainda em conta algumas particularidades da Ilha, nomeadamente no que respeita à definição do sistema de propriedade. A Madeira, mercê da sua configuração geográfica, foi definida por uma paisagem agrária específica, diferente dos grandes espaços continentais. O excessivo parcelamento das áreas agrícolas (poios), única forma de aproveitamento do solo arável disponível, e a sua ampla disseminação na vertente sul e norte, condicionaram o sistema de arroteamento e de posse de terras. As grandes e iniciais concessões de terreno foram-se dividindo de acordo com o progresso da população e as experiências agrícolas. A primeira exploração extensiva deu lugar ao aproveitamento intensivo do solo, baseado nos inúmeros poios construídos pelos proprietários, arrendatários ou meeiros. Deste modo, é extremamente difícil falarmos da grande propriedade de canaviais, se nos situamos ao mesmo nível do mundo americano. No caso americano, uma plantação de canaviais encontra-se indissociavelmente ligada a um complexo industrial – o engenho – para a sua transformação, o que não sucede na Madeira. Aí, são muitos os proprietários de canaviais, mas poucos os donos de engenho. Esta diferente estrutura da faina açucareira condicionou outra forma de posicionamento do escravo. No caso da exploração agrícola madeirense, torna-se necessário distinguir dois grupos de proprietários: aqueles que haviam entregado as terras a foreiros ou arrendatários e os proprietários plenos. Esta forma de dupla posse da terra marcou de modo evidente a atividade agrícola e favoreceu o aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a partir de finais do séc. XVI. Por outro lado, a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência de um engenho para a transformação da cana, tão pouco de um grupo numeroso de escravos. Na Madeira, é evidente uma forte incidência da escravatura no meio urbano, relacionada com os serviços e ofícios, o que condiciona o baixo nível de arrobas de açúcar por escravo. Por tudo isto, não será despropósito afirmar que a situação evidenciada pela escravatura madeirense nesse momento não resultou apenas da cultura da cana de açúcar, que influenciou a estrutura económica da Ilha nos sécs. XV e XVI. A exemplo do que sucedeu nas Canárias, a mão de obra utilizada nos engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, os quais executavam tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar. Neste grupo de escravos, incluíam-se os que pertenciam ao proprietário do engenho, mas também outros que aí serviam como gente de soldada. Também no Brasil encontramos uma mão de obra mista, sendo, no entanto, os escravos que dominavam estes serviços. Estes tanto podiam ser pertença do proprietário do engenho de canaviais, como de outrem, que os alugava. Outro grupo ganha importância nesta nova sociedade por força do interesse manifestado pelos novos produtos, como o açúcar: os estrangeiros. Tal interesse obrigou a novos desafios que permitiram que a Madeira entrasse rapidamente no mercado europeu. Estes estrangeiros manifestam desusado interesse em contribuir na construção da nova sociedade, não apenas como mercadores, mas também como povoadores e lavradores. Daí que busquem cartas de vizinhança e naturalização, favores do senhorio e capitães que encimam as três capitanias. Casam com as filhas dos principais e primeiros povoadores madeirenses. Há, assim, a busca de um lugar na nova sociedade, que lhes foi negado na terra de origem, e uma estratégia adequada de adaptação capaz de suprir frutos e vantagens para a nova sociedade e espaço. Desta forma, a sociedade da Ilha é a mistura de portugueses, estrangeiros e escravos. Assim, a uma estrutura tradicional transplantada há que gizar uma nova estrutura em que tenham lugar os novos grupos. Daí a importância do arquipélago na criação e definição da nova sociedade atlântica. Na caracterização desta nova sociedade, há que atender os grupos sociais que responderam à chamada desta mobilidade, importando também saber a categoria socioprofissional daqueles que foram lançados para a aventura do descobrimento e ocupação dos novos espaços. Militares, missionários – sobretudo com destino ao Norte de África e à India – e funcionários da Coroa têm lugar cativo em todas as expedições. Para o séc. XV, estabelece-se uma dualidade de opções entre a burguesia e a aristocracia, expressa também no confronto de duas figuras: os infantes D. Pedro e D. Henrique. Enquanto os primeiros estariam empenhados nas campanhas de defesa das praças africanas ou de conquista dos entrepostos orientais, os segundos postaram na linha da frente do descobrimento de novas terras, na senda de encontro de novos mercados e produtos. Dualidade de políticas, de rumos e protagonistas, eis a forma simplista de definir este processo. A preocupação da nobreza pelos descobrimentos é considerada posterior às campanhas marroquinas e à morte do infante D. Henrique. Até 1460, a nobreza, exceção feita a Nuno de Góis e Cide de Sousa, estava empenhada na conquista e defesa das praças marroquinas. Para alguns, até esta data, os descobrimentos foram protagonizados, maioritariamente, por aqueles que estavam próximos da sua Casa. Há uma continuidade das famílias no processo de descobrimento e ocupação. Esta ideia pode ser certificada com o testemunho de um dos descendentes do primeiro capitão do Funchal, João Gonçalves Zarco. Em 1526, João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, justificava a sua capacidade de povoador do seguinte modo: “[...] porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel e meu tio a de São Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que se vê [...]”. Propunha levar para a colonização do Brasil dois mil colonos, que não eram “da espécie de tomarem índias por concubinas e de viverem na terra sem a fazerem produzir” (DIAS, 1924, III, 90). Outra família é também protagonista de rumo idêntico. São os Betencourts que, da Normandia, através das Canárias, avançam para a todo o espaço atlântico, transformando-se num exemplo de família atlântica. Outra questão, de não somenos importância, prende-se com a forma como se procedeu ao recrutamento. Há os que partem de livre vontade, à aventura, os que cumprem uma missão como funcionários da Coroa ou os que se dispõem a qualquer serviço, na mira de uma compensação e prestígio social. A estes junta-se um grupo com grande destaque em todo o processo, os degredados ou prisioneiros. No momento de organização das armadas de defesa das praças marroquinas, de ocupação das ilhas ou do Oriente, a Coroa permitia aos seus organizadores o recrutamento de homens entre os condenados por diversos delitos e os degredados. A política moderna de degredo como forma de incentivo ao povoa­mento dos lugares ermos não era novidade, pois vinha sendo utilizada para o povoamento do litoral algarvio e zonas fronteiri­ças de Caste­la. A Coroa, de acordo com o seu interesse, ordenava, aos correge­dores, o destino a atribuir aos degredados. Depois do Algarve, foi o caso de Ceuta e demais praças marroquinas, e as ilhas atlânticas. No caso das ilhas, as orientações de envio dos degredados sucedem-se conforme a evolução do processo de povoamento do espaço atlântico: primeiro, a Madeira, depois, os Açores, Cabo Verde e São Tomé. Note-se que, a partir de 1454, D. Afonso V determina, a pedido do infante D. Henrique, que todos os homens condenados a degredo fossem povoar as ditas ilhas. Em todos estes espaços insulares, as dificuldades sentidas no momento da ocupação foram inúmeras, variando o grau à medida que se avançava para oci­dente ou sul. A Coroa e o senhorio sentiram-se na necessi­dade de atribuir incentivos e apoios à fixação de colonos. De entre as medidas adotadas nesse sentido, podemos salientar a entrega de terras de sesmaria, privilégios e isenções fiscais variadas e a disponibilização dos prisioneiros sentenciados em degredo. Esta ideia da presença e formação das sociedades insulares a partir deste grupo de renegados estava presente no imaginário do mundo ocidental. Assim, foi com grande espanto que o inglês Hans Sloane constatou, em 1687, que a sociedade madeirense era distinta das outras que conhecia. Tudo isto começou na Madeira, alar­gando-se depois às restantes ilhas. A avidez de terras e títu­los, por parte dos filhos segundos e da pequena aristocracia do reino, contribuíram para alimentar a diáspora. Sabe-se, de acordo com uma carta de D. João I, que foi o rei quem regulamentou a forma de entrega das terras na Madeira. Esta deveria ser feita de acordo com o estatuto social do colono. Assim, os vizinhos de mais elevada condição e possuidores de proventos recebem-nas sem qualquer encargo. Os po­bres e humildes que viviam do seu trabalho só a elas tinham direito mediante requisitos especiais, e apenas as terras que pudessem arro­tear e tornar aráveis num prazo de 10 anos. Com estas cláusulas res­tritivas, favorecia-se a concentração da propriedade num reduzido número de povoadores. O povoamento faz-se em consonância com as condições oferecidas pelo meio e o satisfazer das necessidades cerealíferas, ou como válvula de escape para os atritos sociais e políticos da Península Ibérica.­ No caso português, a inexistência de população nas ilhas entre­tanto ocupadas levou ao escoamento dos excedentes populacionais e dos disponíveis no reino. O fenómeno de transmigração da época quatrocentista apresenta, ao nível da mobilidade social, um aspeto particular das sociedades insulares. Elas foram, primeiro, polos de atração e, depois, viveiros disseminadores de gentes para a faina atlântica. No começo, a novidade aliada aos inúmeros incentivos de fixação definiram o primeiro desti­no, mas, depois, as escassas e limitadas possibilidades económicas das ilhas e o fascínio pelas riquezas das Índias condu­ziram a novos ru­mos. No primeiro caso, a Madeira, porque foi rápida a valorização eco­nómica, galvanizou as atenções portugue­sas e mediterrâneas. Só de­pois surgi­ram novos destinos insulares, como as Canárias, Açores, Cabo Verde e São Tomé, onde os madeiren­ses desempenharam um importan­te papel. Desta forma, a Madeira do séc. XV poderá ser definida como um polo de convergên­cia e de redistribuição do movimento migratório no mundo insular. Os fermentos da geografia humana das ilhas foram peninsulares, de origens diversas, cuja incidência as fontes históricas nos impedem de afir­mar com firmeza. Insiste-se, no caso da Madeira, Açores e Cabo Verde, que as pri­mei­ras levas de povoadores foram de proveniência algarvia, mas não há dados suficientemente claros sobre a sua dominância. Esta dedução resulta do facto de o infante D. Henri­que ter fixado morada no lito­ral algarvio e de lá terem partido as primeiras caravelas de reconhe­ci­mento e ocupação das ilhas. Mas, como encontrar colonos disponíveis gente numa área que carecia deles? Os que partiam do Algarve eram mesmo daí oriundos ou gentes que aí afluíam atraídas pela azáfama marítima que lá se vivia? O processo de povoamento foi faseado. Na déc. de 20, chegaram os aventureiros e companheiros de Zargo e Tristão. Depois, em meados da centúria, surgiu novo grupo, atraído pela fama das riquezas da ilha, alguns deles filhos segundos de famílias nobilitadas do Norte que buscam neste espaço aquilo que lhes foi retirado no reino. Já na déc. de 60, após a morte do infante, foi a vez do entusiasmo contagiante dos estrangeiros, nomeadamente dos oriundos das repúblicas de Itália, a quem as portas se abriram para promoção do mercado do açúcar. De entre o grupo de povoadores, merecem referência os 36 homens da Casa do mesmo infante, na sua maioria escudeiros ou criados, que adquiriram uma posição relevante na estrutura administrativa e fundiária. Eles pertenciam ao numeroso grupo de filhos segundos do reino ou à pequena aristocracia, todos à procura de títulos e bens fundiários. A estrutura social começou a ser definida logo nos começos do povoamento, sendo a possibilidade de posse de terra o primeiro elemento diferenciador dos primeiros colonos. Tinham acesso a esta, sem qualquer impedimento, os de “maior qualidade” e aqueles que tivessem capacidade para as aproveitar. Já os que viviam do seu trabalho de cortar e pilhar madeiras e das criações de gado deveriam proceder ao seu aproveitamento, num prazo de 10 anos, e só receberiam as terras que pudessem aproveitar neste prazo. Começa aqui a expressar-se uma forma de diferenciação social assente na riqueza e posse da terra. A baixa condição social da maioria dos povoadores poderá estar na origem da atitude de João Gonçalves Zarco, que solicitou ao rei varões de qualidade para casarem com as suas filhas. D. Afonso V acedeu, enviando Garcia Homem de Sousa, Diogo Afonso de Aguiar e Martim Mendes de Vasconcelos. Numa lista dos homens-bons da capitania do Funchal, elaborada em 1471, surgem apenas 10 % de cavaleiros e 5 % de fidalgos. Mas, a partir de então, o número aumentou, mercê dos títulos conquistados com a participação na defesa das praças marroquinas e no reconhecimento da costa africana, assim como do enobrecimento pela intervenção na estrutura administrativa e na economia açucareira. Tudo isto condicionou o impacto do surto imigratório que se repercutiu no movimento demográfico da ilha: Zurara, em cerca de 1453, fala em 150 fogos, enquanto Cadamosto, em 1455, refere já 800 fogos. Ao grupo de mando, de ócio e façanhas bélicas no Norte de África, associou-se uma numerosa plêiade de subordinados (rendeiros, assalariados, mesteres e escravos), que contribuía para o progresso agrícola e mercantil da Madeira. A sua importância na sociedade madeirense reforçava-se, assim, com o progresso económico da Ilha. Só em 1484, os mesteres fazem ouvir a sua voz na vereação por meio da criação da Casa dos Vinte e Quatro. Dois anos mais tarde, assumiram uma participação ativa na procissão do Corpo de Deus. O lugar que os mesteres nela ocupavam poderá significar uma hierarquização dos ofícios, que se fazia de acordo com o estabelecido em 1453, para Lisboa. A relação dos mordomos dos ofícios, feita no ano de 1486 pela vereação, indica a estrutura socioprofissional: pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros, tecelões, besteiros, hortelões, almueiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives, tabeliães e tanoeiros. Para os anos imediatos, surgem dados referentes à fiança e aos juízes dos ofícios (ferradores, ferreiros, barbeiros e moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pela estrutura oficinal, mercê da exigência da sociedade para serem asseguradas as necessidades básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contacto com a Europa impossibilitava o abastecimento dos artefactos de uso corrente aí produzidos. A importância e a fixação dos mesteres em determinadas áreas do burgo veio dar origem a ruas com o nome dos diversos ofícios aí sedeados, como a dos ferreiros, a dos tanoeiros, a dos caixeiros, etc. O desenvolvimento das pequenas indústrias e dos grupos oficinais foi evidente no decurso do séc. XVI e, paulatinamente, as diversas corporações oficinais foram ganhando importância social, económica e política. A sua presença na vereação passa a ser assídua, para defender os interesses da classe e intervir na regulamentação da sua atividade. A vereação atuava, de forma constante, na regulamentação dos ofícios e na qualidade do serviço prestado, bem como na tabela de preços das diversas tarefas e produtos daí resultantes. Cada ofício tinha um juiz que se encarregava de examinar os demais aprendizes, garantindo a qualidade do serviço a prestar. A tendência para a fixação dos mesmos em arruamentos determinados resultava também da necessidade de um maior controle. A cada ofício, de acordo com o número de oficiais e a sua importância na sociedade, liga-se a sua estruturação em corporações, a sua presença na vida política local e a posição atribuída no Corpo de Deus. Note-se que a cada grupo de ofícios correspondia um santo patrono, cujo dia era de redobrada festa para os associados. Aos ofícios, juntaram-se os trabalhadores braçais ou assoldadados, que se dedicavam a diversas tarefas no campo e no burgo. O seu serviço era onerado com a redízima; este tributo, prejudicial ao exercício dessas atividades, punha em causa a segurança da terra. Segundo se dizia em 1466, tal situação conduzia ao aumento dos escravos. A mesma preocupação evidencia-se em 1489, apontando-se a saída de homens para as campanhas africanas como um perigo para a segurança da Ilha, dado o elevado número de escravos que nela havia. O grupo servil teve importância relevante na sociedade madeirense na segunda metade do séc. XV, o que gerou preocupação e tornou necessária a regulamentação dos seus movimentos e do convívio. Daqui surgiu a exigência de usarem sinal, de se recolherem à casa do senhor, ao mesmo tempo que se ordenou a explosão dos forros, com exceção dos canários. Os escravos negros surgem como assalariados, vendedores de fruta dos seus senhores, enquanto os guanches eram pastores e mestres de engenho. O progresso socioeconómico do arquipélago acentuou a diferenciação de estatuto social entre os madeirenses. Esta situação espelha-se na forma de tratamento do senhorio e da Coroa para com os moradores da Ilha. Em 1425, o rei saudava apenas os fidalgos, cavaleiros, escudeiros e povo, mas, em 1466, o senhorio detém-se apenas no grupo cujo estatuto depende da condição de nobre ou do exercício de certas funções: capitães, fidalgos, cavaleiros, juízes, vereadores, procurador e homens-bons. Já em 1494, a diferenciação social torna-se mais explícita, surgindo o “povo miúdo” e os mesteres em oposição aos “principais”, referindo-se, em 1508, que estes últimos eram as pessoas “honradas e de grandes fazendas” (ALBUQUERQUE e VIEIRA, 1987, 69). Como vemos, o estatuto social define-se não só pela origem, mas também pela riqueza e exercício do poder. O processo da expansão portuguesa favoreceu ambos os grupos e permitiu que se misturassem, sendo difícil diferenciar um do outro. A caracterização da sociedade madeirense está presente nos inúmeros testemunhos dos estrangeiros que, desde o séc. XVI, visitaram a Ilha. Releva-se, por exemplo, o testemunho de Giulio Landi, que, 1530, define a sociedade madeirense em dois grupos opostos: nobres e plebeus. Para a maioria dos visitantes britânicos, aquilo que mais chama a atenção é o papel assumido pelo clero na sociedade madeirense, sendo incisivos na crítica que lhes fazem. Mesmo a um capelão anglicano como John Ovington espanta que “tantos ricos eclesiásticos podem ser sustentados com o labor de tão escassa população” (ARAGÃO, 1981, 203). A presença estrangeira nas ilhas portuguesas é evidente desde o início do povoamento. Primeiro, a curiosidade de novas terras, depois, a possibili­dade de uma troca comercial vantajosa: eis os principais móbiles para a sua fixação nas ilhas. A sua permanência na Madeira está já do­cu­mentada, sendo fixada a partir de meados do séc. XV, o que os integra nas segundas levas de povoadores. E mais não entraram porque estavam, até 1493, condicionados à concessão de carta de vizi­nhança. Aliás, foi a Ma­deira a primeira ilha a despertar a atenção dos mercadores es­trangeiros, que encontraram nela um bom mercado para as suas opera­ções comerciais. Note-se que o rincão madeirense foi o primeiro a merecer uma ocupação efetiva e imediata, apresentando um conjunto variado de produtos com valor mercantil, o que despertou a cobiça dos mercadores nacionais e estrangeiros. Nos demais arquipélagos, este processo foi moroso e tardaram os produtos capazes de gerar as trocas externas. No caso das Canárias e dos Açores, isso só foi conseguido em pleno a partir de princípios do séc. XVI, com a oferta de novos produtos, como o açúcar, o pastel e ce­reais. Depois, no último arquipélago, a sua afirmação como importante entre­posto do comércio oceano fez convergir para aí os interesses de algumas casas comerciais empenhadas no contrabando dos produtos de passagem. Na Madeira, ultrapassadas, a partir de 1489, todas as barreiras à presença de estrangeiros, a comunidade forasteira amplia-se e ganha uma nova dimensão na sociedade e economia. A presença de agentes ha­bilitados para a dimensão assumida pelas transações comerciais e a injeção de capital no sector produtivo e comercial favoreceram a evolução do sistema de trocas. Neste contexto, destaca-se a comunida­de italiana, que veio em busca do açúcar. A importância assumida pela cultura na Ilha e comércio do seu produto no mercado europeu foi re­sultado da intervenção desta comunidade. Florentinos e genoveses fo­ram os seus principais obreiros. Os primeiros evidenciaram-se nas transações comerciais e financeiras do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, controlavam à distância, por meio de uma rede de feitores, o comércio do açúcar madeirense. Para isso, conse­guiram da Fazenda Real o quase exclusivo do comércio do açúcar resul­tante dos direitos cobrados pela Coroa na Ilha, bem como o monopólio dos con­tingentes de exportação estabelecidos pela Coroa, em 1498. No­mes como Benedito Morelli, Marchioni, João Francisco Affaitati ou Jeró­nimo Sernigi têm interesses na Ilha, onde atuam por iniciativa pró­pria ou por intermédio dos seus agentes, madeirenses e compatrícios. A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense é por demais evidente. O usufruto de privilégios reais e o relaciona­mento matrimonial favoreceram a sua integração na aristocracia madei­rense. Eles são maioritariamente proprietários e merca­dores de açúcar. São exemplo disso: Rafael Cattano, Luís Doria, João e Jorge Lomelino, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, Simão Accia­iolli e Benoco Amatori. Os flamengos e franceses surgiram na Ilha, desde finais do séc. XV, também atraídos pelo comércio do açúcar. Todavia, destes são poucos os que criam raízes na sociedade madeirense, sendo João Esmeraldo uma exceção. Rapidamente, a sociedade madeirense aparece como uma cópia da do reino e os problemas e conflitos aparecem. Estas clivagens tornam-se evidentes a partir do séc. XVII, por força das transformações sociais ocorridas. Na primeira linha do processo, esteve a afirmação de morgados e capelas. A vinculação da terra por este meio foi o estratagema usado pelos proprietários para segurar a sua manutenção, uma vez que estas passavam a ser inalienáveis e indivisíveis, sendo a sucessão feita pelo filho varão. Esta situação obrigou à afirmação de novas relações de trabalho no sistema produtivo, surgindo o colono ou arrendatário a substituir o escravo. O contrato de colonia é resultado deste processo de transformação do regime fundiário provocado pelas transformações económico-sociais. O afastamento do senhor da terra e a sua falta levou ao aparecimento desta figura intermédia a valorizar o sector produtivo. A situação rapidamente alastrou a toda a Ilha, de modo que, em meados do séc. XIX, mais de 90% da terra estava vinculada. O seu relacionamento com o senhor fazia-se por intermédio da figura do feitor, que exercia sobre eles uma forte vigilância, ao mesmo tempo que não se furtava a excessos e especulações. O sistema gerou, ao longo dos tempos, inúmeros conflitos entre os diversos intervenientes por causa da oposição de interesses quanto às culturas e da opressão exercida com a venda da água e a partilha das colheitas. No séc. XVIII, um movimento de colonos reivindicava a diminuição de metade para um terço da renda a pagar ao senhorio. As medidas de amortização do Marquês de Pombal foram ao encontro dos interesses dos morgados, facilitando a concentração da propriedade e o acesso dos ingleses à sua posse. A Revolução Liberal acabou com a situação, mas só em 1863 aconteceu a sua extinção. Esta crise do sistema no decurso do séc. XIX favoreceu a concentração da propriedade na comunidade britânica. A partir do séc. XVI, torna-se clara a mobilidade populacional dos espaços insulares, tendo como centro a Madeira. As ilhas foram sempre espaços de permanente movimento de populações, funcionando esta situação como válvula de escape para as limitadas possibilidades do espaço. A posição e protagonismo no processo de expansão europeia condicionaram esta constante das sociedades insulares. A posição charneira do arquipélago madeirense no traçado das rotas oceânicas de ida e o facto de ter sido o primeiro espaço de ocupação e valorização económica condicionou a primeira leva e fez com que os madeirenses estivessem presentes em todos os espaços onde os portugueses chegaram, por força da atividade comercial e das armas. A sociedade atlântica teve, assim, as suas raízes na Madeira. O primeiro movimento de migrações insulares foi resultado de vários fatores. Para uns, foi o espírito de aventura e serviço da Coroa que os levou às façanhas no Norte de África ou no Índico. Outros há que foram forçados a sair pela falta de meios, pela crença religiosa, como foi o caso dos judeus, ou por fuga à alçada da justiça. A própria Coroa promoveu este movimento, primeiro de técnicos experimentados na cultura dos canaviais e fabrico do açúcar. A emigração do séc. XVIII enquadra-se, ainda, no contexto da ocupação e colonização dos novos espaços, correspondendo a um objetivo político decorrente das rivalidades entre portugueses e castelhanos quanto à definição das fronteiras do território da América do Sul. Pelo Tratado de Madrid (1750), a delimitação das fronteiras foi estabelecida de acordo com as barreiras naturais e o direito de uti possidetis, isto é, a posse estava assegurada aos territórios que estavam ocupados. Enquanto aconteciam as negociações para a assinatura do Tratado, Alexandre de Gusmão, o negociador português, propôs à Coroa a colonização do sul do Brasil por casais das ilhas, recomendando o envio de 4000 casais para o Rio de Janeiro e, depois, de casais com o objetivo de garantir a posse das terras brasileiras e angolanas. A primeira solicitação neste sentido aconteceu em 1742, a pedido do governador de Santa Catarina. Todavia, só a partir de 1748 a Coroa apostou nesta medida, financiado e promovendo a saída de madeirenses e açorianos. No período de 1748 a 1756, mais de 6000 ilhéus abraçaram este projeto. Os madeirenses referenciados até ao momento são superiores a um milhar. Da lista destes matriculados entre 1747 e 1751, surgem 226 casais, num total de 1277 pessoas. Depois desta data, temos o registo de outra leva de madeirenses que acabou tragicamente num naufrágio no litoral da Baía, em 1756. Foram 535 pessoas que viram os seus sonhos desfeitos na costa brasileira, tendo perecido quase todos, uma vez que só se salvaram 11 mulheres e alguns homens que fugiram para a mata e não quiseram mais embarcar. O processo de migração de populações insulares que aconteceu até ao séc. XVIII enquadra-se na dinâmica decorrente da expansão europeia, sendo os momentos de maior impacto resultado das dificuldades internas e solicitações dos novos espaços. Já a emigração a partir do séc. XIX é fruto do processo de internacionalização do trabalho, provocado pela necessidade de mão de obra para substituir os escravos nos espaços onde, desde 1834, foi acontecendo a abolição do tráfico dos mesmos. A emigração é o fenómeno do séc. XIX e assume características diferentes das migrações insulares dos períodos anteriores. Até agora, estávamos perante uma saída feita de acordo com as solicitações externas, onde se aliava o desejo de aventura aos interesses económicos e políticos. O movimento de gentes, de iniciativa da Coroa ou particular, rege-se por motivos colonizadores. A partir de então, foram os impulsos internos que conduziram à saída forçada dos insulares. A terra que os recebera há 400 anos apresentava-se, agora, madrasta, incapaz de satisfazer as suas necessidades vitais, e, por essa razão, impelia-os para a aventura americana. A partir do séc. XIX, os períodos de fome sucederam-se com alguma frequência. Entretanto, do outro lado do Atlântico, vivia-se um momento de euforia económica, com a mineração ou safra agroindustrial, que não se compadecia com as medidas de abolição da escravatura. Perante isto, o ilhéu, desapossado da terra pelo regime sucessório e de mando económico, abandona o seu próprio meio e, aliciado pelas propostas dos engajadores, sai rumo a tais destinos, substituindo o escravo. Por isso, muitos políticos da época consideravam esta forma de recrutamento de mão de obra como uma nova escravidão, isto é, a escravatura branca. A tudo isto acresce, ainda, nos anos de 1844 a 1846, o proselitismo religioso, protagonizado por R. Kalley, que veio a forçar a saída dos seus apaniguados. Esta vontade cega de partir era acalentada pelos aliciadores ao serviço do Governo inglês, que procuravam, na Madeira, a solução para as suas necessidades da mão de obra nas plantações e minas nas Antilhas. A partir de 1847, tivemos a segunda e mais importante fase da diáspora que a primeira, despoletada pela grave crise vitivinícola. As doenças que atacaram a cul­tura da vinha (o oídio, em 1852, e a filoxera, em 1872) deitaram por terra a única riqueza e geraram a fome. O continente americano é a principal esperança e destino da emigração madeirense no séc. XIX, recebendo 98% destes emigrantes. As Antilhas inglesas foram o principal mercado recetor da mão de obra madeirense, com 86 % dos saídos legalmente, que se distribuíram, de forma irregu­lar, por Saint Kitts, Suriname, Jamaica e Demerara, áreas conhecidas do madeirense e ligadas à Ilha através do comércio do vinho. Demerara pode ser considerado o principal destino dos emigrantes, tendo recebido 70%, contando-se, entre 1841 e 1889, 36.724 madeirenses. Houve dois grandes momentos de emigração dos madeirenses no séc. XIX: o primeiro, na déc. de 40 e, o segundo, os anos 70 e 80. O último coincide com o aparecimento de um novo destino, o Havai. Demerara foi, nas décs. de 40 e 50, o Eldorado do madeirense, disputando esta posição nas décs. de 70 e 80 com o recém-descoberto paraíso havaiano. De 1834 a 1872, saíram mais de 30 mil madeirenses com destino ao Brasil e Antilhas. Só a ilha de Demerara recebeu, entre 1841 e 1889, cerca de 40 mil, e o Havai, entre 1878 e 1913, atraiu mais de 20 mil. Isto conduziu a que os portugueses, e de forma especial os madeirenses, se evidenciassem no conjunto das comunidades étnicas de emigrantes, em que se incluíam os africanos e indianos. O colapso da indústria açucareira em Demerara, em contraste com o seu incremento nas ilhas ditas Canecas, levou os madeirenses para o Havai. A conjuntura emigratória oitocentista condicionou a taxa de crescimento da população na Madeira. Assim, o valor que, entre 1864 e 1878, havia sido de 18 % passa para 2 %, no período de 1878 a 1890. A situação agravou-se, porque estávamos perante uma emigração familiar. A escalada da emigração continuou, na última década do séc. XIX e princípios do XX, mantendo-se os países de destino, com especial destaque para o Brasil e Estados Unidos. A grande depressão dos anos 30 levou ao encerramento das portas de alguns, enquanto se abriram outros novos, como a África do Sul, reabrindo-se, em 1939, o Brasil. As duas guerras mundiais provocaram nova leva de emigrantes. O Brasil continuou a ser um dos destinos preferenciais da maioria dos madeirenses, mas as possibilidades de opção alargaram-se a outros mercados recetivos a mão de obra. Nos anos de 1936 e 1948, a emigração madeirense foi orientada pela companhia Shell para o Curaçau, que permitiu a saída de 4000 madeirenses. Muitos destes deram o salto para a Venezuela, que, conjuntamente com o Canadá, Austrália, América do Sul e as colónias portuguesas de Angola e Moçambique, integrava os novos destinos. A Venezuela manteve, desde princípios do séc. XX até 1958, uma política de portas abertas, o que permitiu a emigração de muitos europeus e, no caso português, de um grupo importante de madeirenses. Em 1960, a população portuguesa na Venezuela era superior a 40.000, sendo constituída na sua maioria por madeirenses. Nos anos 50, este foi o principal destino da emigração madeirense, tendo acolhido 14.424 emigrantes da Ilha. A presença madeirense alargou-se também a outros quadrantes, sendo de salientar a África do Sul e a Austrália. No primeiro, a vinculação portuguesa é muito antiga, remontando à viagem de Vasco da Gama, mas foi a partir do séc. XVIII que tivemos notícia dos primeiros portugueses no Cabo (Capetown). No séc. XIX, a rota regular dos vapores do Cabo que escalavam o Funchal permitiu a definição de um novo rumo para a emigração madeirense. Esta presença torna-se, contudo, mais notada a partir de 1904 no sector da pesca, mas foi nos anos 50 do séc. XX que este destino ganhou dimensão, tendo saído 5118 madeirenses para lá. Um fenómeno particular ocorreu a partir de 1952, com a emigração sazonal para Inglaterra, principalmente para as Ilhas do Canal. Estes madeirenses, ligados à hotelaria, deslocavam-se na época de verão rumo a este destino, para trabalhar no mesmo sector, regressando à Ilha para a época invernal. Esta tradição passou, depois, a estar ligada ao sector agrícola, uma vez que o turismo madeirense perdeu a sazonalidade. A presença de madeirenses no Canadá é anterior a 1953, altura em que se iniciou a emigração organizada de portugueses atrás da rota do bacalhau. Os primeiros portugueses que se fixaram no Canadá surgem já no séc. XVII. São eles: Jean Rodrigues e Pierre da Sylva de Lisboa e Martin Pierre de Braga. O primeiro açoriano, de apelido Miranda, surge em 1680, enquanto o primeiro madeirense terá sido Francis Silva, que surge em Halifax a partir de 1861. A viragem neste processo aconteceu na déc. de 70. O processo autonómico conduziu à valorização do espaço socioeconómico da Ilha, condicionando a emigração. As mudanças políticas a nível mundial, a situação dos habituais mercados recetores de mão de obra madeirense, em contraste com a melhoria das condições de vida na Ilha, fizeram com que o madeirense permanecesse na sua própria terra e que muitos regressassem. Primeiro, foram os chamados “retornados” das ex-colónias e, depois, os da Venezuela e África do Sul. No séc. XXI, a mobilidade está mais facilitada e a emigração adquiriu outros contornos. Assim, a saída definitiva deu lugar à temporária, para a Europa, nomeadamente Suíça e Ilhas do Canal. A Ilha continua a não ter condições para manter os seus naturais, não obstante, em épocas diversas, no decurso do processo de mudança política que levou à afirmação da autonomia, tenhamos assistido ao seu retorno, nomeadamente da África do Sul e Venezuela, e à presença de emigrantes europeus, por força dos grandes empreendimentos que marcaram o progresso do arquipélago – as obras do aeroporto e da rede viária. A sociedade madeirense estruturou-se, não apenas de acordo com a condição social dos seus moradores, mas também da sua origem e nacionalidade, ganhando um estatuto particular nesta nova sociedade. As diversas comunidades de estrangeiros, que se foram fixando no arquipélago e ganhando importância nos negócios e mesmo na estrutura social, fazem parte desta amálgama que gerou a nova sociedade, processo a que não foi indiferente a origem de tais estrangeiros e a forma como a política e os interesses hegemónicos e imperiais valorizaram a Ilha. Daí a ação e a importância dos ingleses, como sucedeu no início com os genoveses e flamengos. É, pois, a partir desta estruturação social guiada pela atividade comercial e pelo mando que a sociedade madeirense se organiza e os grupos sociais se definem.   Alberto Vieira (atualizado a 10.02.2017)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social