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O mais importante da ligação da Madeira com as Antilhas, a partir do séc. XVII, prende-se com as ilhas subordinadas ao império britânico. A partir de meados do séc. XIX, acontece uma importante vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas inglesas para substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo. Esta rota emigratória manteve-se entre a Madeira e Antigua, Demerara, Guiana, Grenada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, Saint Vincents e Trinidad. Para o vinho, teremos as ilhas de Antigua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curazau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Christopher, Anguilla, Saint Vincent e Trinidad. Palavras-chave: comércio; emigração; vinho; Caribe; Antilhas. Por esta designação se entende todas as ilhas da América Central que, a partir do séc. XVII, entram na esfera de domínio e controlo do império britânico, com quem a Madeira teve fortes laços comerciais, baseados, de forma especial, no vinho e na emigração de populações para suprir a falta de mão-de-obra ou por força da perseguição aos seguidores do Rev. Robert Kalley. Esta mobilidade humana e comercial concretiza-se pelo facto de a Madeira manter uma relação direta com todo o mundo atlântico, desde o séc. XV, por ter sido o primeiro espaço de ocupação europeia, o ponto de partida em termos da ocupação de novos espaços e ilhas, e, por fim, pela sua situação geográfica como base de apoio e de afirmação do império colonial britânico. Aliás, a Ilha serviu de modelo para Portugueses e Castelhanos neste afã povoador dos espaços insulares atlânticos e das Antilhas. Assim, os Castelhanos viram na Ilha a resposta para as dificuldades da sua ação institucional nas pequenas ilhas do Atlântico, como se depreende do desejo manifestado, em 1518, pelas autoridades das Antilhas em resolver a difícil situação das ilhas de Curaçao, Aruba e Isla Margarita, com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Há uma ligação direta da Ilha às Antilhas, que se perpetua no tempo, por diversas razões. A primeira situação de proximidade é provocada pela expansão da cultura da cana-de-açúcar. Os madeirenses intervêm na sua expansão em Santo Domingo, Cuba e Jamaica. Em 1647, encontramos referência a um capitão francês que pretendia contratar um mestre de açúcar madeirense para a ilha de Saint Kitts. Esta desusada intervenção da Madeira, a partir do séc. XVII, resulta ainda do facto de a sua posição geográfica o permitir, sendo considerada a última etapa antes da chegada às Antilhas. A Madeira estava às portas deste novo mundo e abria-as aos europeus desta rota, o que implicava e facilitava também uma intervenção ativa neste processo, estabelecendo-se pontos entre a Ilha e as Antilhas, em termos comerciais e de movimentos emigratórios. As Antilhas serão, a partir de meados do séc. XIX, a solução fácil para os excedentes populacionais da Ilha que, a partir de então, atuam como emigrantes, muitas vezes com a função de substituir a mão de obra negra, quando, no passado, haviam assumido a posição de negreiros, de lavradores e de técnicos experimentados nas indústrias ligadas à atividade agrícola. Estes madeirenses que partem na última vaga do séc. XIX são obreiros da situação das Antilhas nos sécs. XX e XXI, tornando-se a sua presença notória em muitas ilhas, expressa através de múltiplas manifestações culturais, donde se destaca a terminologia e a culinária. Por outro lado, parece existir, na maioria destes madeirenses que partem neste século, uma forte consciência da identidade ilhoa, que os mesmos pretendem seja diferenciadora dos demais Portugueses, afirmando-se como madeirenses e não gostando de ser considerados Portugueses. As Antilhas: séculos XVII-XIX São diversas as designações deste grupo de ilhas da América Central. Primeiro, por equívoco de Colombo, ficaram conhecidas por Índias Ocidentais (West Indies); depois, atribuiu-se-lhes a designação indígena, daí Antilhas. Este grupo insular é composto por várias ilhas. O processo europeu de reconhecimento e ocupação destas ilhas começou em 1492, com as três viagens organizadas por Cristóvão Colombo, entre 1492-1493, 1493-1496 e 1496-1500, com o reconhecimento das Baaamas, Cuba e Haiti, Jamaica, Trindade e Porto Rico. Todas estas ilhas começaram por ser, em 1492, de domínio espanhol, daí a designação de Antilhas Espanholas, permanecendo algumas nesta situação até à sua independência, a partir de 1865: República Dominicana (1865), Cuba (1898) e Porto Rico (1898). A partir dos princípios do séc. XVII, começou a disputa pela sua posse, sendo partilhadas com os Franceses, Holandeses e Ingleses. As Antilhas Francesas compreendem Martinica, Guadalupe (arquipélago composto por Grande-Terre e Bassse-Terre, La Désirade, Marie-Galante e as Îles Les Saintes), Saint-Barthélemy e São Martinho (lado francês). As Antilhas Neerlandesas, ou Holandesas, que surgem a partir de 1634, são formadas por dois grupos de ilhas, ficando um a norte das Pequenas Antilhas (Saba, Santo Eustáquio e São Martinho) e o outro ao largo da costa da Venezuela (Aruba, Bonaire e Curaçau). A presença britânica regista-se aqui a partir de 1612 e afirma-se na segunda metade da centúria. A ocupação das ilhas obedece a interesses estratégicos, comerciais e agrícolas, pois são estes que dão um novo impulso à produção açucareira. Quanto às Antilhas Britânicas, estas incluem: Bermudas, Saint Kitts, Barbados, Jamaica, Baamas, British Virgin Islands, Montserrat, Nevis, Angula, Tortola, Saint Croix, São Vicente, Saint Thomas, Dominica, Cartagena, Honduras, Trindade. Neste conjunto de Antilhas pequenas e grandes, regista-se, desde o séc. XVI, o estabelecimento de relações comerciais, relacionadas com o vinho e a emigração, que se processam em duas etapas: no decurso dos sécs.XVI e XVII, onde se destacam técnicos açucareiros para Cuba e Santo Domingo, bem como judeus, vindos da Ilha ou a partir de Pernambuco, e a partir de meados do séc. XIX, período em que se regista outra vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas Inglesas, com o intuito de substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo, numa forma especial conhecida como indentured labour. Esta rota migratória manteve-se entre a Madeira e Antígua, Demerara, Guiana, Granada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Para o vinho, as ilhas de Antígua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curaçau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Na costa atlântica da América do Sul, temos ainda a considerar a Guiana, partilhada por Ingleses, Franceses e Holandeses, que se enquadra neste grupo das Antilhas. Originalmente, a Guiana Holandesa consistia em três colónias: Essequibo, Demerara e Berbice. Em 1814, os Holandeses entregaram esta região aos Ingleses, que, a partir de 1831, lhe atribuíram a designação de Guiana Inglesa. Entretanto, os Holandeses mantiveram o Curaçau e Suriname. Esta última área, também conhecida como Guiana Holandesa, ficou subordinada aos Neerlandeses desde 1667, com o chamado Tratado de Breda, realizado entre a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos e o Reino da Grã-Bretanha, a 31 de julho de 1667, o qual pôs fim à Segunda Guerra Anglo-Holandesa através do controlo de rotas marítimas e do comércio, que decorreu entre março de 1665 e julho de 1667. Relativamente à Guiana Francesa, esta começou por ser um centro de negócios de comerciantes franceses, criado em Sinnamary (1624) e Caiena (1637). Esta última cidade foi ocupada por duas vezes pelos Holandeses (1664 e 1676), sendo legitimada a posse francesa pelo já referido Tratado de Breda. O comércio do vinho com as Antilhas deve-se a vários fatores. Primeiro, pelo facto de, a partir de meados do séc. XVII, os Ingleses terem escolhido a Madeira como base avançada para os seus interesses expansionistas no Atlântico, funcionando a Ilha como base de apoio e de reorganização das frotas militares e comerciais. Depois, pelo facto de ser um dos poucos vinhos europeus a suportar muito bem as mudanças de temperatura, atuando o efeito do calor como meio de envelhecimento do mesmo. Não deverá ser esquecido que um dos principais problemas da dieta de bordo das tripulações era a falta de vitamina C, que provocava o escorbuto, sendo o vinho um dos antídotos utilizados. Em relação às Antilhas, diz-se que o nome de Curaçau está relacionado com este facto, pois foi aqui que os Portugueses encontraram a cura do escorbuto, dando o nome à ilha. Comércio Uma das primeiras intervenções comerciais dos madeirenses nas Antilhas está relacionada com o comércio de escravos. Alguns ilhéus usufruíram de uma posição destacada nos entrepostos do tráfico negreiro em Santiago, São Tomé ou Angola, gozando mesmo, desde 1562, de privilégios especiais na captura de escravos para as suas fazendas ou para venda aos compatrícios que as possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso contrabando, alargando os seus negócios até ao Brasil ou às Antilhas. Fascinados pela aventura destas paragens, muitos decidiram-se por uma intervenção direta, fixando-se em Santiago ou na costa da Guiné, pois que a situação de vizinho era condição obrigatória para participar neste tráfico negreiro. A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa, a avaliar pelos testamentos que chegaram às nossas mãos. Destes, merece especial referência o de Francisco Dias, morador na Ribeira Grande, que, pelo testamento de 1599, é apresentando como sendo um dos mais importantes mercadores de escravos empenhados no tráfico com a Madeira e as Antilhas. A permuta baseava-se, pelo lado africano, em escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o algodão, milho, cuscuz, chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos. Francisco Dias foi um, de entre muitos, dos que se lançaram na aventura, fixando morada na Ribeira Grande. Aí, foi escrivão do almoxarifado e memposteiro-mor da rendição dos cativos, atuando como um ativo agente do tráfico negreiro da costa africana próxima. Todo o empenho de Francisco Dias estava no tráfico com a vizinha costa da Guiné, sendo os cargos de memposteiro-mor dos cativos e de escrivão do almoxarife mais um meio para reforçar a sua posição. Era mercador e armador com uma rede de negócios, tendo como principais eixos as ilhas (Açores, Cabo Verde e Madeira), a costa da Guiné e as Antilhas Espanholas. Aqui, estávamos perante uma empresa de tipo familiar, onde atuavam, por exemplo, Álvaro, Diogo, João, Jorge e Lopo Fernandes. Este João Fernandes, filho de Álvaro Fernandes, morreu, ainda jovem, quando se encontrava em missão comercial na costa da Guiné, deixando os seus negócios entregues ao tio. Do outro lado do Atlântico, nos contactos com os mercados negreiros das Antilhas, representavam-no Manuel Diogo Cavalheiro, Álvaro Dias, Mariscal e Diogo Cavalheiro das Honduras. A partir da Madeira, o estreitamento das relações comerciais com as Antilhas inicia-se na segunda metade do séc. XVII, mas com a intervenção dos Ingleses. A política mercantilista inglesa definiu a hegemonia da burguesia comercial britânica, consolidada, na Madeira, com frequentes tratados luso-britânicos. A par disso, a afirmação do império colonial britânico nas Antilhas, com a ocupação da Jamaica (1654) e das demais ilhas, veio a valorizar a posição da Madeira como porto de escala e fornecedor de vinho e, mais tarde, de emigrantes. Com Oliver Cromwell, definiu-se um mercado de monopólio para a burguesia comercial inglesa, no qual a Madeira será um das pedras-base do processo. As leis inglesas de navegação de 1651, 1660, 1663 e 1665 definiram os contornos desta política mercantilista ao estabelecerem que todos os produtos entrados nos portos das colónias britânicas deveriam ser feitos sob pavilhão inglês. Assim, de acordo com a ordenança de 1663, as ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores detinham o exclusivo do fornecimento de vinho às colónias inglesas na América, África e Ásia. Foi assim que Barbados suplantou os portos brasileiros e angolanos no consumo do vinho Madeira, ainda no séc. XVII. Os dados da exportação para o ano de 1699 são esclarecedores desta mudança. Num total de 4987 pipas, temos as Antilhas em primeiro lugar, com 1303. Aqui, o protagonista deste tráfico é o comerciante inglês, sendo William Bolton o primeiro a definir os contornos desta realidade. Note-se que, de acordo com os registos de saída da Alfândega do Funchal entre 1650 e 1699, as embarcações inglesas dominam, de uma forma esmagadora, o comércio. A correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 171 é o testemunho do porto do Funchal como entreposto nas ligações e atividade com as Antilhas Inglesas. Ao vinho que seguia para Lisboa, junta-se outro, de embarque direto no Funchal pelos navios ou armadas. Em 1664, uma armada francesa com destino às Antilhas foi provida de 40 pipas. O vinho era conhecido como de beberagem, pelo que, segundo a tradição, estava isento de direitos. Ao longo do séc. XVIII, vários comboios que se dirigiam às Antilhas passavam pela Madeira, onde tomavam grandes quantidades de vinho, destacando-se o de dezembro de 1744, com 33 navios, e o de 1788, com 70 navios, que carregou 2000 pipas de vinho, a que se juntou outro, em outubro de 1799, com 60 navios, que carregou 3041 pipas. Em 1788, um comboio de 70 navios carregou 2000 pipas e outro, no ano seguinte, saído de Portsmouth com destino às Índias Ocidentais, comandado por Roger Curtis, com 96 navios, carregou 3041 pipas e meia pipa. Entre 16 e 21 de setembro de 1805, a frota das Antilhas, composta por 52 navios, lançou âncora. Depois, de 29 de setembro a 3 de outubro, atracaram no porto do Funchal as 60 embarcações da frota das Índias (17 navios mercantes e numerosos transportes). Os registos de saída da Alfândega do Funchal no séc. XIX assinalam a saída de vinho para gasto de embarcações estrangeiras. As colónias inglesas das Antilhas e da América do Norte foram o objetivo e o vinho o principal negócio. O vinho, que até então tinha como destino exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os novos mercados, que assumiram um lugar dominante a partir de finais da centúria. Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro e Baía vieram juntar-se os de Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvânia, Virgínia, Maryland, Bermudas, Barbados, Jamaica, Antígua e Curaçau. No período de 1686 a 1688, das 688 pipas entradas em Boston, registam-se 266 da Madeira e 421 do Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do Norte, levados pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os seus contactos nas Antilhas Inglesas e Francesas. Para a Madeira, a já referida correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no séc. XVIII. Aqui, é evidente a definição de um circuito comercial hegemónico, delimitado pelos portos ingleses e das colónias da América Central e do Norte. As Antilhas (Curaçau, Barbados, Antígua, Nevis, Jamaica e Bermudas) surgem com uma posição destacada na importação de vinho, com 5005 pipas. William Bolton é o primeiro mercador inglês a enquadrar-se neste espírito, podendo a sua atividade comercial ser acompanhada através das cartas que nos deixou. Para as colónias inglesas das Antilhas, o vinho era o seu objetivo e principal negócio. O inglês John Ovington, que visitou a Madeira em 1689, afirma que “num cálculo modesto, a produção anual de vinho pode ser calculada em vinte mil pipas, sendo este número totalmente gasto. Pensa-se que oito mil serão bebidas na ilha, três ou quatro despendidas no tratamento ou melhoramento (através de aguardente destilada) e o restante exportado, principalmente para as Índias Ocidentais, especialmente Barbados, onde tem mais aceitação que os outros vinhos europeus” (ARAGÃO, 1981, 198). Um dos primeiros intervenientes neste negócio foi precisamente William Bolton. Sabemos da sua ação comercial com estas Índias através das já referidas cartas comerciais disponíveis, para o período de 1696 a 1714. Os navios saíam de Bristol, Dublin e Londres e, após escala no Funchal, seguiam para Antígua e Barbados. [table id=68 /] Para o período de 1780 a 1801, destaca-se a Jamaica como centro de redistribuição nas Antilhas: [table id=69 /] O momento de apogeu da exportação do vinho da Madeira para estes mercados situa-se entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, altura em que a saída atingiu a média de 20.000 pipas. Mais de dois terços do vinho exportado destinavam-se ao mercado colonial americano, de que se destacam as Antilhas. Para o período de 1780-1799, a Ilha exportou 210.057 pipas, sendo 103.703 para as Antilhas. Duarte Sodré Pereira, governador e capitão da Madeira, comprometido com o comércio atlântico, dá-nos conta da situação do mercado no séc. XVIII. De acordo com o copista da sua correspondência, aquele esteve envolvido no comércio com Inglaterra, Lisboa, Estados Unidos da América, América Central (Barbados, Jamaica e Curaçau) e Brasil. As várias casas de vinhos inglesas mantinham laços estreitos com estas ilhas. Assim, por exemplo, a casa Phelps Page & Co. tinha uma rede de agentes, com especial incidência na Jamaica. Do mesmo modo, D. Guiomar de Sá de Vilhena troca vinho por cereais na Jamaica, Suriname e Santo Eustáquio. A firma Cossart Gordon & Co. manteve igualmente um comércio ativo com estas ilhas, de forma que, entre 1823 e 1834, regista-se: [table id=70 /] Muitas vezes, o retorno destas ilhas resumia-se a pipas vazias da Jamaica ou a carne de vaca, manteiga e farinha de Barbados. Entre 1831 e 1850, estas ilhas continuaram a receber importantes quantidades de vinho Madeira, o que significa igualmente que funcionariam como centros de redistribuição no Caribe. Só assim se justificam as 3464 pipas da Jamaica e as 2179 de Trindade. [table id=71 /] Para o séc. XIX, continuam a afirmar-se esta posição e interesse pelo vinho Madeira, no vasto universo insular das Antilhas. Assim, para o ano de 1843, temos: [table id=72 /] É evidente a afirmação do mercado das Caraíbas, dominado pelas colónias inglesas, com especial destaque para a Jamaica e Barbados. O centro de consumo estava nas Antilhas: o vinho Madeira era a bebida alcoolizada mais difundida. Bebia-se geralmente no sangaree, mistura de vinho, água e sumo de limão. Para os Ingleses, se o Porto é o vinho da metrópole, o Madeira é o vinho das Antilhas, mas também o das Índias. Este vinho corria nos serões de quase todas as ilhas, mas, em especial, na Jamaica, Barbados, Martinica, Santa Cruz, Santo Eustáquio e São Vicente. Emigração Desde o séc. XVI que notamos a presença de madeirenses nestas ilhas, seja como técnicos açucareiros, seja como agentes do tráfico negreiro. Contudo, a sua presença torna-se mais evidente numa segunda fase, quando a emigração madeirense atingiu o seu auge, na déc. de 40 do séc. XIX, tendo, para isso, em muito contribuído a perseguição aos protestantes (1844-1846), a crise do comércio do vinho Madeira, principal sustento das populações, a partir de 1830, e a fome que alastrou a toda a Ilha, em 1847. Entre 1834 e 1872, saíram da Ilha mais de 30.000 madeirenses, com destino ao Brasil e às Antilhas. Só a ilha de Demerara recebeu, entre 1841 e 1889, cerca de 40.000, enquanto o Havai, entre 1878 e 1913, atraiu mais de 20.000, na primeira grande leva da emigração madeirense para este destino, sendo, na centúria oitocentista, o principal motivo a questão religiosa em torno do Rev. Robert Kalley, pastor protestante e distinto médico que se fixara na Madeira em 1838, com o intuito de encontrar cura para a tuberculose da sua mulher, e que se tornou no principal chefe do movimento anglicano, arrastando consigo as gentes de Santa Cruz e Machico. As hostilidades, originadas pelo clero tradicional do Funchal, levaram à sua saída forçada em 1846, acompanhado de perto de 3000 madeirenses: 945 em navios portugueses e 2054 em ingleses. A 23 de agosto, 200 embarcaram no navio William. Primeiro, dirigiram-se às Antilhas menores (Trindade, Antígua e Saint Kitts) e daqui alguns passaram a Illinois, na América do Norte. Esta situação ia ao encontro dos interesses britânicos, uma vez que a abolição da escravatura tornava imprescindível o recrutamento de mão-de-obra livre. A segunda fase desta diáspora, mais importante do que a primeira, surge a partir de 1847, como resultado da grave crise vitivinícola. Perdidas as esperanças de uma imediata recuperação do mercado do vinho, o colono ou lavrador deixou-se aliciar pelas propostas enganosas de trabalho e bem-estar nas colónias britânicas. Um facto interessante, nesta conjuntura de fuga à fome, é que o movimento se retrai na época das vindimas, entre agosto e outubro, isto é, no momento em que era maior a procura de mão-de-obra na Ilha. Na déc. de 50, irremediavelmente perdida esta única fonte geradora de trabalho, o madeirense só tinha uma saída: a emigração. As gentes do norte abandonaram as terras e os seus miseráveis casebres, dirigindo-se à cidade, onde esperavam uma oportunidade para o salto até às promissoras Antilhas. Em 1854, dá-se uma paragem no movimento, nomeadamente de clandestinos, mercê de uma melhoria das condições da Ilha, propiciada pela iniciativa dos governadores civis. O fim do tráfico negreiro obrigava à procura de novas soluções e esta era uma delas, certamente a mais eficaz. Na déc. de 70, o fenómeno emigratório ganha novo vigor. Para isso, contribuíram o acelerar da crise económica e o reforço das promessas aliciadoras. Também as doenças que atacaram a cultura da vinha (o oídio, em 1852, e a filoxera, em 1872) deitaram por terra a única esperança económica dos madeirenses. Desta vez, o rumo é diferente: as Kanaka Islands (Sandwich ou Havai). Entre 1841 e 1889, Demerara manteve uma posição dominante enquanto destino da emigração madeirense, tendo recebido 36.724 emigrantes. Tais números dão conta de dois momentos da emigração para Demerara, a déc. de 40 e as de 70 e 80, coincidindo o último com o aparecimento de um novo destino, o Havai. Uma relação dos navios saídos com os emigrantes, no período de 11 de maio de 1854 a 11 de janeiro de 1855, reforça, mais uma vez, a posição dominante de Demerara, registando-se 88 navios para Antígua e 376 para Demerara. Devemos aqui realçar a iniciativa de alguns proprietários e consignatários de navios, como Diogo Taylor e João de Freitas Martins, este último proprietário de três embarcações: Christina, Divina Providência e Funchal. Demerara é, com efeito, nas décs. de 40 e 50, o “Eldorado do madeirense”, disputando esta posição nas décs. de 70 e 80 com o então recém-descoberto paraíso havaiano. Assim, só em 1841 terão partido mais de 4000 madeirenses para Demerara, chegando a comunidade portuguesa a representar mais de 30.000 residentes, maioritariamente da Madeira. A emigração clandestina é um fator determinante neste movimento para as Américas, dominadas pelas Antilhas e pelo Brasil, que assumem uma posição ímpar. Deste modo, torna-se difícil abalizar o valor numérico desta sangria na população da Ilha. Os números apontados pela imprensa madeirense da época são assaz elucidativos. Assim, de setembro de 1834 a junho de 1852, apontava-se que as saídas clandestinas correspondiam ao dobro das legais, que representavam 18.346 emigrantes. Depois, em 1845-1846, são referenciados 6000 clandestinos. Ainda na Ponta do Sol, no período compreendido entre abril de 1841 e outubro de 1852, outros 500. Note-se que, entre 1851 e 1853, regista-se apenas a saída de 1593 madeirenses com passaporte, quando os dados apontam a chegada de 2299 a Demerara, 281 a Antígua e 16 com a designação Índias Ocidentais, o que prova a importância da emigração clandestina. Para o período de 1843 a 1866, é possível acompanhar os destinos destes migrantes. Temos, portanto: [table id=73 /] Noutro registo de informação de 1846 a 1847, época de forte emigração madeirense, os destinos são parecidos. [table id=74 /] Mais uma vez, Demerara mantém-se como o principal destino desta emigração legal e clandestina. Em outubro de 1846, dos 16.297 emigrados, 5548 (54%) viajaram sem passaporte. No mesmo ano, aportaram em Demerara três embarcações com 547 passageiros clandestinos: a embarcação inglesa Palmira conduziu 160, enquanto o brigue português Visconde de Bruges, que saíra do Funchal com 25 passageiros, desembarcou 410 e outro bergantim português, Duas Anas, 171, quando, no Funchal, nele haviam embarcado apenas 71 com passaporte. Esta última embarcação, sete anos mais tarde, rumou ao mesmo destino, levando a bordo 173 passageiros clandestinos. Tais números são suficientemente elucidativos para demarcar a importância que assumiu na Madeira a emigração clandestina, ao mesmo tempo que demonstram a ineficácia da intervenção das autoridades locais no seu controlo. A disponibilidade de passaportes entre 1872 e 1915 permite acompanhar o movimento para estas ilhas, de forma legal, e, ao mesmo tempo, documentar a sua incidência geográfica. Apenas encontramos dados para as ilhas de Demerara, Antígua, Barbados, Trindade, Granada e São Vicente, sendo a maior incidência em Demerara, com 3732 pedidos de emigração. Pelo contrário, a ilha de Trindade regista apenas 539. A maior incidência registou-se no último quartel do séc. XIX, com 3312 pedidos. Por alvará de 4 de julho de 1758, fica estabelecida a obrigatoriedade do uso do passaporte, como forma de coibir a saída anómala de gentes da Ilha. Todavia, estavam longe os tempos da grande emigração e de afirmação desta forma de êxodo. Com o alvorecer da emigração para as colónias britânicas, o Governo Civil reclama esta medida moderadora do movimento emigratório. Em 1841, o governador civil chama a atenção ao oficial de visitas do porto para que não permitisse a saída de qualquer embarcação para Demerara, sem antes verificar se os seus passageiros eram portadores do passaporte e da licença respetiva da freguesia que os isentava de qualquer serviço ou encargo. Contudo, só em outubro de 1845 surge o primeiro caso, com o aprisionamento de 31 indivíduos no Porto Moniz, quando estes se preparavam para embarcar no iate Glória de Portugal, com destino a Demerara. Perante esta situação, o governador civil mandou publicar um edital sobre a emigração clandestina, alertando os intervenientes e cúmplices para as penas em que incorriam, de acordo com a portaria de 19 de agosto de 1842. Pela lei de 25 de maio de 1825, o capitão do navio incorria na pena de 400.000 réis, enquanto os passageiros, de acordo com a lei de 9 de janeiro de 1792, sujeitavam-se a 100.000 réis de multa. Estas medidas não alteraram em nada os planos da emigração clandestina, apenas aumentaram o risco dos seus intervenientes. Um exemplo disso é testemunhado em janeiro de 1846, quando o oficial do registo da Alfândega encontrou, a bordo do bergantim Claudine, com destino a Demerara, cinco passageiros sem passaporte. Passados dois meses, também o administrador do concelho do Funchal surpreendeu, nos Piornais, 88 pessoas que pretendiam embarcar clandestinamente para a barca inglesa Newilla. Até 1866, são frequentes as referências à intervenção de embarcações de cabotagem no apoio a este tráfico clandestino. A costa do Caniço, à Ponta do Pargo, oferecia enseadas adequadas a tal tipo de abordagem. O contacto com as embarcações de saída fazia-se, habitualmente, a partir do Caniço, Praia Formosa, Paul do Mar e Ponta do Pargo. Na última localidade, foram apresadas, por diversas vezes, embarcações saídas do Funchal com destino a Demerara. Destas, destaca-se, em 1847, o bergantim português Mariana, que, após 15 dias de saída do Funchal, ainda se encontrava na Ponta do Pargo, com o pretexto de fazer aguada. Numa inspeção a bordo, foram encontrados 187 passageiros, dos quais apenas 34 apresentavam passaporte. As Desertas surgem também como local de apoio a este tráfico clandestino. Aí foram encontrados, por diversas vezes, barcos costeiros a aguardar a passagem dos navios para Demerara. Entre fevereiro de 1845 e abril de 1847, foram aí apresadas duas embarcações que conduziam clandestinos do Caniço para a escuna portuguesa Eugénia. O recurso às Desertas e à Ponta do Pargo como locais de receção de clandestinos foi resultado da acentuada vigilância estabelecida para o porto do Funchal e para as áreas circunvizinhas. No início, este serviço de recrutamento de clandestinos para embarque era realizado no Funchal, sendo os emigrantes reunidos num armazém, à R. do Sabão, e, depois, embarcados, pela noite, para bordo das embarcações, porém, a apertada vigilância da Alfândega e a administração do concelho condicionaram a sua dispersão pela costa sul da Ilha. A intervenção das autoridades desdobrava-se entre um apertado controlo às embarcações que saíam do porto do Funchal e o estabelecimento de um sistema de vigilância de toda a costa e ilhas Desertas. Primeiro, usou-se o barco do contrato do tabaco, depois, estabeleceu-se um serviço de barcos para rondar a costa nas datas próximas da saída de qualquer embarcação. Por outro lado, o administrador do concelho tinha ao seu dispor 12 baionetas para a ronda noturna do litoral da cidade e, em toda a costa da Ilha, contava com o apoio dos cabos da polícia e artilheiros. Em julho de 1846, a saída dum bergantim elucida-nos sobre a forma como era ativado este plano de vigilância. O administrador do concelho montava, por seis dias, um serviço de vigilância em toda a costa, contando com o apoio dos regedores, cabos da polícia e de duas embarcações de ronda. A cabal intervenção das autoridades dependia do apoio de uma embarcação de guerra, daí a solicitação, em 1847, de uma escuna de guerra, o que veio a suceder com o envio do brigue de guerra Douro. Porém, a falta de dinheiro levou à sua substituição por uma escuna, retomando, em 1853, o anterior tipo de embarcações. A permanência e a insistência da prática clandestina da emigração atestam a pouca eficácia das medidas proibitivas ou de vigilância e a grande determinação do madeirense, bem como o empenho dos engajadores e seus acólitos. Deste modo, a quebra acentuada do movimento, a partir de 1863, deverá ser apontada não como uma consequência da intervenção repressiva, mas sim como resultado da diminuição da procura de mão-de-obra nos tradicionais destinos. Daí que, em 1885, estas medidas se tornem necessárias, uma vez que a emigração clandestina começa a fazer-se notar. Fator determinante no surto da emigração clandestina foi a ação destes engajadores, os principais sustentáculos do movimento. Desde o séc. XVIII que estes atuam na Ilha, pelo que, em 1779, o governador intervém junto do corregedor do Funchal, no sentido de se estabelecer medidas punitivas, sendo preso Álvaro de Ornelas Sisneiro, um desses engajadores. Todavia, só a partir da déc. de 30 do século seguinte, a ação destes agentes se torna preocupante, uma vez que atacam em todas as frentes, com particular incidência na vertente norte. Para dissimular a sua real intervenção, surgem como adelos ou compradores de vinho. Por meio de cartazes afixados na porta das igrejas, e com a conivência de algumas figuras importantes dos sítios, conseguem aliciar muitos lavradores com a promessa de enriquecimento no Brasil, Antilhas ou Havai. O transporte era, muitas vezes, gratuito e o ilhéu deveria desembolsar apenas 5000 réis para os custos do passaporte, quando, na realidade, a lei previa 4000 réis. Nas décs. de 40 e 50, surgem documentados 15 aliciadores no Funchal, Caniço, São Vicente, Ribeira da Janela, Arco de São Jorge e Ribeira Brava. Para coibir a sua ação, o Governo Civil adotara medidas repressivas, como a prisão e o julgamento, podendo a pena ir até quatro meses de cadeia. Em 1846, por exemplo, foi preso em São Vicente Manuel José Moniz, que aliciava emigrantes para Demerara. Nesta freguesia, sabemos que atuavam outros, como João Teixeira, Jorge Oliveira e Perpétua de Jesus. A ação dos aliciadores assumia, por vezes, situações rocambolescas: em julho de 1851, João Pestana, sapateiro, movera um auto contra Francisco, o poeta, por induzir e aliciar a mulher e o filho a emigrarem para Demerara; em agosto do mesmo ano, João Vieira ignora a mulher e filhos e entrega-se às promessas aliciadoras de Demerara; em 1853, uma mãe abandona duas crianças em São Jorge, enquanto uma rapariga de Boaventura foge para o Funchal, aliciada por Joaquim A. dos Reis. A política de emigração das autoridades locais define-se por duas formas de intervenção: o combate à emigração clandestina e a ação perniciosa dos engajadores, com medidas severas aplicadas a todos os infratores. Neste caso, incluía-se, ainda, o reforço de vigilância da costa madeirense. Depois, foi a procura de soluções conjunturais, capazes de travar o movimento de fuga, com a fixação das gentes à terra ou com a tentativa de desvio para regiões do Reino e colónias em vias de colonização. Estas medidas não foram suficientes para frenar o movimento emigratório, tanto legal como clandestino. A situação da Ilha continuava a ser difícil, pelo que ninguém estava capacitado para resistir às propostas risonhas dos aliciadores. Deste modo, houve necessidade de declarar guerra a este movimento, procurando atacá-lo em todas as frentes. Desde 1758, ficara estabelecido que nenhum madeirense poderia sair da Ilha sem o respetivo passaporte. Havia uma tradição de medidas limitativas, raramente recordadas e postas em prática. A elas recorria a Câmara do Funchal, em 1847, respondendo a uma circular de José Silvestre Ribeiro. Aí se recorda que a melhor providência estava na vinculação do povo à terra que o viu nascer. Na verdade, foi com este governador que se estabeleceu uma política pragmática de combate à emigração. O seu aspeto mais interessante não é o apelo a medidas punitivas à saída dos emigrantes, como reclamava o município funchalense, mas sim a definição de medidas capazes de inibir as gentes a esta fuga desesperada. Era preciso encontrar soluções para debelar a fome e empregar o máximo de força de trabalho inativa. Neste último caso, tivemos o plano de obras de construção civil, de acordo com o novo plano viário. A ação psicológica foi outra das armas utilizadas pelo governador para convencer os madeirenses a permanecerem na Ilha. Através de manifestos, divulgados pelos administradores do concelho e afixados nas portas das igrejas ou impressos em folhas volantes nos jornais, o governador fazia uso dos seus dotes literários para apelar ao sentimento dos seus súbditos. Num manifesto distribuído em agosto de 1852 pelo Clamor Público, é bastante evidente este apelo heroico: “Moradores das freguesias rurais! Não abandonais a vossa terra! Não fujais desses campos que vossos pais regaram com o seu suor! Não deixeis o teto das vossas moradas, onde nasceram vossos filhos! Não volteis as costas à vossa risonha ilha! Lembrai-vos que perdeis Pátria! Trazei à lembrança que muitas vezes tendes recolhido abundantes frutos, em recompensa às Vossas fadigas! E que não convém ceder aos primeiros golpes de adversidade” (VIEIRA, 1993, 122). Foram poucos os que entenderam a oratória do governador, secundados pelos incessantes apelos dos administradores do concelho ou pelos vigários das freguesias no sermão dominical. Aliás, é o mesmo governador o primeiro a reconhecer a necessidade de medidas práticas e eficazes: “A fatal tendência dos madeirenses para a emigração deve ser atalhada, principalmente por meios indiretos. Se os proprietários se lembrarem um dia de ir residir entre os seus caseiros, para os guiarem com ilustrados conselhos [...] a infeliz sorte dos habitantes dos campos melhorará consideravelmente, e eles ganharão afeição à terra do seu país, repetindo indignados as pérfidas sugestões de impios e desalmados embusteiros que os arrasta hoje para países longínquos” (Ibid.). Uma das suas grandes preocupações era o combate à política de engajamento feito por estranhos. O combate aos engajadores é antigo, sendo documentado desde 1780, altura em que foi processado o comandante de um navio inglês que havia levado clandestinamente a bordo 12 portugueses. Esta política implacável contra os engajadores continuou na centúria seguinte. Assim, em 1842, face à saída massiva de madeirenses, ficou estabelecido, por portarias de 19 de agosto e de dezembro de 1842, avançar com medidas de vigilância e de penalização dos mestres de navios. Ainda de acordo com a lei de 20 de julho de 1855 e a portaria de 27 de julho de 1857, o comandante do navio era obrigado a prestar uma fiança de 400 réis e a apresentar, no prazo de seis meses, um documento das autoridades ou do cônsul do porto de destino, tendo igualmente de indicar o número de passageiros desembarcados. O passaporte era uma das exigências obrigatórias para todos os que desejassem sair, contudo, nem todos tinham direito a ele, sendo negado a menores e mancebos. Desde 25 de setembro de 1841, deveria juntar-se a este um documento de freguesia referindo que o possuidor estava livre de encargos e serviços. É dentro desta opção que deverá ser entendida a guerra, sem tréguas, das autoridades aos agentes da emigração e aos seus colaboradores, como sejam os mestres de navio e barqueiros. A saída de qualquer emigrante só podia ser feita com passaporte, concedido a todos de maior idade, ficando excluídos os de 13 a 25 anos, abrangidos pela lei do recrutamento militar, e os mancebos. Todavia, era grande a apetência para o recurso à emigração clandestina, sujeitando-se os interessados a inúmeras privações para alcançarem o barco que os levaria a promissoras terras do outro lado do Atlântico. A grande preocupação das autoridades centrava-se no combate à emigração clandestina, que se desenvolvia em duas frentes: por um lado, a condenação dos engajadores e seus colaboradores e, por outro, a definição de um plano de vigilância em toda a costa da Ilha, procurando evitar-se a fuga dos clandestinos. O grande movimento de combate ficou reservado para as décs. de 40 e 50 do séc. XIX. Os casos sucedem-se com frequência e a atenção das autoridades foi reforçada, no sentido de evitar a fuga generalizada das gentes. Durante estas duas décadas, sucederam-se medidas repressivas, bem como o aprisionamento dos intervenientes, fossem engajadores ou mestres de navios. O cerco aos navios que entravam e saíam no porto do Funchal era permanente. Assim, para além do constante patrulhamento do mar madeirense e do alerta passado a todas as freguesias costeiras, as embarcações sujeitavam-se a um controlo apertado. Deste modo, estava proibido o contacto com qualquer navio mercante ou de guerra fora do porto. Além disso, em 1879, recomendava-se às embarcações com emigrantes que saíssem do porto durante o dia. As embarcações inglesas, que tocavam, com assiduidade, o porto do Funchal com destino aos locais de emigração, eram os alvos preferenciais para a saída dos clandestinos. Por essa razão, em 1845, o governador civil deu conhecimento ao cônsul inglês de tais medidas proibitivas. Todavia, em 1848, foi apresado na Ponta do Pargo o bergantim inglês Rowlay, com 16 clandestinos a bordo, correndo, por isso, um litígio entre o Governo Civil e o Consulado. O primeiro, através da administração do concelho e com o apoio dos cabos de polícia, regedores e forças militares, estabelecera um plano de vigilância da costa e do mar circunvizinho, até às Desertas, a ser ativado no momento de embarque no Funchal, através de uma visita a bordo, sendo depois reforçado a partir do momento da saída da embarcação do porto. Entre março e julho de 1846, foram gastos 86$695 réis com os barcos de ronda da costa. Por todo o ano de 1847, os barcos mantiveram-se em ação, tendo-se afirmado como um freio à emigração clandestina, o que levou a solicitar-se a presença de nova embarcação, não se sabendo, porém, ao certo se veio a concretizar-se. Não obstante estas medidas, a emigração clandestina continuava a ser uma realidade, não se esgotando aqui as oportunidades para controlar a saída dos madeirenses. Assim, a uma propaganda aliciadora por parte dos agentes, nomeadamente os cônsules brasileiro e inglês, contrapunha-se outra de alguns jornais e das autoridades que desmitificavam as esperanças do Eldorado. O debate teve início em 1841, resultado de uma proclamação do administrador geral, Domingos Olavo Correia de Azevedo, que, a determinado passo, referia que “Demerara [...] é uma possessão inglesa, cujo clima por extremo ardente e doentio, terminara em pouco tempo, com a existência da maior parte dos emigrantes que para ali vão, e onde estes infelizes, reduzidos, durante sua vida, a uma situação desesperada, vendo-se em total desamparo, e privados de meios de regressarem, se sujeitam a uma sorte tão cruel como a que em outro tempo ali experimentavam escravos negros” (Ibid., 126). A isto juntaram-se cartas de alguns emigrantes nas quais estes testemunham a ilusão das promessas feitas, apontando as condições difíceis em que viviam os madeirenses em Demerara. A todos responde Diogo Taylor, cônsul inglês e agente da emigração para estes destinos. À campanha, associaram-se outros jornais, sendo de realçar o Echo da Revolução, o Correio da Madeira e o Progressista, onde este movimento emigratório surge sob o epíteto de “escravatura branca”. De acordo com o cônsul português em Demerara, os emigrantes “são tratados como verdadeiros escravos, e mesmo pior do que são os negros da costa d’África” (Ibid.). A resposta a esta carta não se fez esperar pela voz do cônsul inglês Diogo Taylor, que realça os mútuos benefícios da emigração. A isso adicionava-se o testemunho abonatório de um grupo de portugueses residentes na Guiana Inglesa. Em oposição a este último testemunho, há registos de cartas de Demerara a dar conta da dura realidade da vida dos emigrantes. No primeiro destino, muitos madeirenses sucumbiram com febre-amarela. Para combater esta campanha contra a emigração, os agentes do Brasil e as colónias inglesas travaram uma luta sem tréguas. Para além dos desmentidos constantes, não se cansavam de anunciar os seus projetos aliciantes, devendo-se incluir, neste caso, a propaganda feita n’O Imparcial e na Revista Semanal. A esta situação, acresciam ainda os folhetos de promoção da emigração. Na segunda metade do séc. XIX, a imprensa insular deu desmesurado realce às consequências do surto emigratório. Sob a forma de notícia ou de trabalho de opinião, esta é uma preocupação central nas suas colunas, que se situa a dois níveis distintos: de um lado, os anúncios e descrições ou testemunhos laudatórios dos principais destinos de emigração; do outro, a opinião e os testemunhos reprovativos, apelando a uma intervenção das autoridades. Adensa-se o número de colunas dos periódicos O Progressista (1852-1854) e A Ordem (1852-1856). Neste contexto, a problemática da emigração para as terras ocidentais, no período de 1833 a 1873, marcou acesa discussão pública nos jornais que então se publicavam, ou nas Cortes, pela voz dos madeirenses aí representados. O Progressista, porta-voz do Partido Regenerador, é o periódico que dedica maior atenção à problemática da emigração, considerando Demerara e o Brasil como matadouros. Para os seus editores, o importante era travar o movimento emigratório, pelo que são frequentes os trabalhos de opinião, sob pseudónimo, a apelar a uma intervenção eficaz das autoridades locais, usando como ponto de referência a intervenção de 1847. Na déc. de 50, testemunhos de vária índole atestam a ineficácia das autoridades locais em coibir essa prática de emigração clandestina, acusando quer o administrador do concelho, quer o juiz eleito da Ribeira Brava, por não corresponderem ao estipulado nas leis de 1839, 1842, 1843 e 1849. O julgamento de 29 de fevereiro de 1852 de alguns aliciadores e barqueiros, comprometidos com a emigração clandestina, é motivo de regozijo no jornal. O ano de 1854 terá sido terrível para os madeirenses, permanentemente ameaçados pelo espectro da fome, pelo que a emigração, de acordo com o mesmo periódico, não resulta de ambição, mas da miséria dos colonos e da ineficácia do Governo. Em 1855, por iniciativa de três madeirenses, a embarcação Charles Keen conduziu 300 colonos a Demerara. Entre 1841 e 1846, O Defensor faz eco da intervenção do administrador geral do Funchal, Domingos Olavo Correia Azevedo. A reação dos principais interessados neste movimento promotor da emigração não se faz esperar. Assim, intervém Diogo Taylor, agente de emigração para a Guiana Inglesa. O primeiro refere, a propósito, que “Parece que a cidade do Funchal se converteu de repente numa grande feira de escravos brancos, destinados a irem perecer no clima mais infecto dos domínios britânicos – Demerara” (Ibid., 129), alertando mais adiante que “A emigração para Demerara é uma infame lotaria cujos bilhetes contendo raríssimas sortes em preto são comprados com as vidas dos nossos concidadãos” (Ibid.). Um dos aspetos que podemos assinalar com a emigração para Demerara, certamente o principal destino nesta época, é a questão do retorno, com forte impacto na sociedade local. O madeirense retornado deste destino passava a ficar conhecido como “o demerarista”, porque emigrante em visita ou regressado de Demerara. Assim, em 1853-1854, Isabella de França registava alguns casos de sucesso nessa vaga migratória. Numa das suas visitas à freguesia do Monte, descreve, a certa altura, ter visto “uma bela casa construída por um vilão que havia emigrado para Demerara e voltou rico, como tantos: deixam a terra natal sem outra coisa mais que uma camisa e calças, e carapuça na cabeça, e descalços, e regressam com seu colete de cetim e corrente de ouro, chapéu alto e botas de verniz” (FRANÇA, 1970, 9). Também o médico inglês Dr. Dennis Embleton, que visitou e testemunhou a Madeira entre 1880 e 1881, afirma que “Many country people have been abroad, made money, and returning, have bought land and settled” (EMBLETON, 1882, 31). Por fim, registe-se que os madeirenses levaram para estas ilhas muitas das suas tradições e hábitos alimentares. O facto de a Madeira exportar cebolas, por exemplo, deve-se ao facto de estas serem solicitadas pelos madeirenses para a sua dieta alimentar, que, segundo os registos de alguns observadores ingleses, se baseava em semilhas e cebola. Em 1843 e 1845, sabemos da chegada a Demerara de 162 caixas de batata comum e de 1000 arrobas de cebola, contando-se já 100 milheiros em 1851. Esta situação persiste em 1904 e 1910, com novo envio de cebola para Barbados. Não podemos igualmente esquecer as relações que se estabeleceram em torno da cana-de-açúcar. Em 1855, a Madeira recebeu, de Antígua, 294 barris de açúcar. Demerara, em finais do séc. XIX, e Barbados, de 1902 a 1905, abastecem com melaço o engenho do Hinton, no Funchal, acompanhando as diversas variedades de cana, quando se pretende restabelecer a cultura na Ilha. Em 1847, temos a variedade Bourbon de Caiena e, em 1903, outras variedades de cana (B208 e B147) de Barbados e a cristalina do Haiti.   Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

História Económica e Social Madeira Global

andrade júnior, francisco de

Francisco de Andrade Júnior nasceu em 1806, no dia 6 de junho, no Funchal, cidade onde recebeu a sua instrução inicial, cursando os estudos que então aí existiam, e onde morreria a 23 de fevereiro de 1881. Após a criação, em 1836, do ensino liceal, por decreto de 17 de novembro desse ano, que determinava a existência de um liceu na capital de cada distrito do continente e das ilhas, terminando assim a dispersão da lecionação das aulas pelo país, Francisco de Andrade Júnior foi nomeado, por decreto de 4 de setembro de 1838, professor de Gramática Portuguesa e Latina e de Clássicos Portugueses e Latinos no Liceu Nacional do Funchal (fundado em setembro de 1837 no edifício das antigas Aulas do Pátio), cargo que exercia já interinamente, por carta do Conselho Provincial de Instrução Pública de 23 de março do mesmo ano. Professor respeitado, considerado um dos mais distintos do Liceu do Funchal (posteriormente, a Escola Secundária Jaime Moniz), aí desempenhou também a função de reitor, de 1866 – sucedendo a Marceliano Ribeiro de Mendonça, autor da obra Principios da Grammatica Applicada á Lingua Latina (1835) – até ao ano da sua morte, sendo também, e por inerência do cargo de reitor que exercia, comissário dos estudos do distrito do Funchal, com responsabilidades de vigilância e direção das escolas do ensino primário e secundário com subordinação ao Conselho Superior de Instrução Pública. Neste âmbito, é da sua autoria o Relatorio sôbre as Escholas Municipaes de Instrucção Primaria do Concelho do Funchal, Seguido de um Projecto de Lei ácerca da Creação e Frequência das Escholas (1849). Além de desempenhar estes cargos, Francisco de Andrade Júnior, que foi também vereador na Câmara Municipal do Funchal, dedicou-se ao estudo da gramática da língua portuguesa, sendo autor das obras Principios de Grammatica Portuguesa, editada em 1844, Grammatica Portuguesa das Escholas Primarias, cuja primeira edição data de 1849, sendo reeditada cinco vezes até 1879, e Grammatica das Grammaticas da Lingua Portuguesa…, publicada em 1850.   Aida Sampaio Lemos (atualizado a 22.09.2016)

Educação História da Educação Personalidades

adelaide de inglaterra

Adelaide foi a rainha consorte do Reino Unido e de Hanover pelo seu casamento com Guilherme IV de Inglaterra em 1818, do qual enviuvou em 1837. Nasceu a 13 de agosto de 1792 em Meiningen, na Turíngia, Alemanha, filha de Jorge I, duque de Saxe-Meiningen, e de Luísa Leonor de Hohenlohe-Langenburg. A 11 de julho de 1818, casou-se com Guilherme, duque de Clarence, filho de Jorge II de Inglaterra, tornando-se rainha consorte após a ascensão de Guilherme ao trono em 1830, sucedendo a seu irmão mais velho, Jorge IV. As tentativas de Adelaide produzir um herdeiro ao trono foram sempre complicadas, culminando em abortos ou crianças que pouco sobreviveram depois do parto. Ao contrário do marido, que desprezava as cerimónias religiosas, Adelaide levava-as muito a sério, sendo louvada pela dignidade, a serenidade e a graciosidade com que participava nelas. Era amada pelo povo britânico pela sua piedade, modéstia, caridade e pelo seu trágico historial de gravidez. Apesar da sua própria incapacidade de gerar um herdeiro, e da manifesta hostilidade entre o rei e a cunhada, a duquesa viúva de Kent, Adelaide foi sempre bondosa e gentil para com a sobrinha, a futura rainha Vitória. Adelaide era também descrita como puritana e moralista, recusando-se a ter na corte mulheres de duvidosa virtude, e proibindo os decotes, que haviam estado muito em voga nos tempos de Jorge IV. Embora em público fosse discreta e não se manifestasse politicamente, tentou por vezes influenciar o marido, sendo declaradamente conservadora. Com a morte de Guilherme IV, a 20 de junho de 1837, Adelaide tornou-se a primeira rainha viúva desde Catarina de Bragança, sobrevivendo ao marido durante 12 anos. Em 1847, em atenção ao seu precário estado de saúde, foi aconselhada pelos médicos, como último recurso, a passar o inverno num clima temperado, e escolheu a Madeira. Era então governador civil do distrito do Funchal José Silvestre Ribeiro, que preparou à visitante uma brilhante receção. A fragata da marinha de guerra britânica Howe ancorou no porto do Funchal na tarde do dia 1 de novembro de 1847, sendo recebida por salvas de canhão do forte e da cidade, assim como de um brigue português que se encontrava ao largo. A comitiva real, composta por sua irmã, a duquesa Ida, pelo príncipe Eduardo e pelas princesas de Saxe-Weimar, seus sobrinhos, foi recebida na praia, pelas 14.00 h, por cerca de 4000 pessoas em ambiente festivo. O caminho por onde passariam foi coberto de flores e ramos de mirtilo, sendo cumprimentados pela população com o maior respeito. Após visitar o aposento que lhe havia sido preparado, a cerca de meia milha da praia, a rainha voltou para o Howe, jantando e dormindo a bordo. No dia seguinte, desembarcou na Pontinha, e ali recebeu a homenagem de todas as autoridades locais, que a acompanharam à sua residência, para onde foi de liteira e as outras senhoras em palanquins. A comitiva compunha-se da dama de honor Miss Seymour, dos camaristas Cor. Cornawall e esposa, do capelão, o Rev. G. F. Hudson, do médico, o Dr. David Davis, do secretário e esmoler, T. T. Bedford, do secretário do duque, M. Hartey, e de 32 criados. O seu cunhado Bernardo, duque de Saxe-Weimar, e o sobrinho Gustavo juntar-se-lhe-iam em meados desse mês. A rainha instalou-se na Qt. das Angústias, então propriedade da família Monteiro, transformada temporariamente em paço real. Apesar de se encontrar num estado de total invalidez, levando uma vida de absoluto retiro, a sua caridade não cessou. A 4 de janeiro de 1848, ofereceu ao governador civil do Funchal um cheque de 100 libras para ajudar os pobres, sendo por várias vezes contactada durante a sua estadia com vista à obtenção de contributos monetários e doações. José Silvestre Ribeiro alertou-a, com sucesso, para a importância da ponte do Ribeiro Seco, que então se encontrava em construção na Estrada Monumental. A rainha pretendeu mesmo custear a conclusão da ponte, mas a importância era tão grande, que acabou por renunciar ao seu primitivo desejo, limitando-se a conceder um subsídio avultado por intermédio do cônsul britânico, Henry Veitch. Foi igualmente contactada pela comunidade presbiteriana da Ilha, com vista à obtenção de fundos para a construção da sua igreja, vendo-se, neste caso, impedida de ajudar devido à adesão desta comunidade à Igreja Livre Escocesa em 1843. A rainha e a real comitiva contam-se ainda entre os beneméritos da escola Lancasteriana de Raparigas, fundada no Funchal pela família Phelps. Após cinco meses de permanência na Ilha, embarcou no dia 11 de abril de 1848 no mesmo navio que a conduzira à Madeira, conservando as mais gratas recordações dos dias que passara, como atesta a peça de prata em forma de serpentina, primorosamente lavrada, que enviou ao conselheiro José Silvestre em 1849, tendo gravada a inscrição: “Presented to his Excellency Senhor José Silvestre Ribeiro H. M. Majesty's Counsellor and Civil Governor of the Province of Madeira. In grateful recollection of his civility and kind attention during her residence in Madeira by A. R..” [Oferecida a S. Ex.cia o Sr. José Silvestre Ribeiro, conselheiro de Sua Majestade e governador civil da província da Madeira, em grata recordação da sua cordialidade e amabilidades durante a sua residência na Madeira, por A. R.]. A peça apresenta, num dos lados, a coroa real inglesa e, no outro, o nome da rainha Adelaide. A estadia na Madeira não parece ter surtido qualquer efeito na saúde de Adelaide e, no outono de 1849, era evidente que a rainha estava a morrer, nunca abandonando o seu quarto do priorado de Bentley, num estado de saúde extremamente debilitado. Adelaide expirou a 2 de dezembro desse mesmo ano, sendo sepultada na capela de São Jorge em Windsor. A cidade de Adelaide, capital da Austrália do Sul, foi nomeada em sua honra aquando da sua fundação em 1836.   Paulo Perneta (atualizado a 14.09.2016)

Madeira Global Personalidades

aljube

“Aljube” era a designação da prisão eclesiástica, que existiu em todas as dioceses portuguesas e não só, desde tempos muito antigos. A sua instalação no Funchal ocorreu com a chegada das primeiras diretivas do Concílio de Trento, em 1562, e com a vigência de D. Fr. Jorge de Lemos (c. 1510-1574), o primeiro bispo residente que a Madeira conheceu (Lemos, D. Fr. Jorge de). Situava-se, sensivelmente, naquele que veio a ser o Lg. João Gago e na rua que logo recebeu o nome “do Aljube”, durando todo o Antigo Regime. Saliente-se, no entanto, que o aljube servia de cárcere a todos aqueles que não fosse possível deter de outro modo, mas não aos eclesiásticos, que na generalidade eram presos na torre da Sé. Área da Sé com o Aljube-1804     Área da Sé com o Aljube-1805   Fr. Jorge de Lemos empreendeu uma vasta campanha de correção dos abusos resultantes da não residência de um prelado no Funchal, facto que permitira a instalação de um clima de pouca observância dos preceitos religiosos, muito especialmente dentro do novo quadro tridentino. Da veemência desta intervenção, adveio a fama de o bispo ser rigoroso e severo nas punições. O seu empenho na correção dos desmandos traduziu-se numa larga produção legislativa que acentuava a necessidade de as justiças secular e religiosa se auxiliarem mutuamente. Entrava-se, progressivamente, no período da Contrarreforma e, a 18 de fevereiro de 1558, o gabinete de D. Sebastião, à frente do qual se encontrava o cardeal D. Henrique e depois se haveria de colocar o P.e Martim Gonçalves da Câmara (c. 1539-1613), fazia publicar um alvará onde se ordenava que o corregedor da capitania do Funchal, o provedor dos resíduos e o juiz de fora se disponibilizassem para acudir ao bispo sempre que as pessoas condenadas, em visitação, a penas até 2$000 réis se recusassem a cumprir o castigo. Logo de seguida, a 12 de março, o gabinete régio promulgou uma nova determinação que obrigava o corregedor e outros oficiais de justiça na Madeira a prestarem ao prelado toda a ajuda e auxílio requeridos. Em 1564, o gabinete régio voltou a publicar outro alvará, insistindo que incumbia aos oficiais judiciais seculares punirem qualquer pessoa que afrontasse a justiça eclesiástica. Aljube e Câmara do Funchal -1870.   A produção de toda esta legislação demonstra bem a vontade régia de colocar os mecanismos de justiça mais diretamente dependentes da coroa ao serviço da administração eclesiástica, a quem, em contrapartida, era solicitado auxílio para intervir, nas pregações e visitações, caso fossem detetados devedores à Fazenda régia, mostrando bem a perfeita consciência da importância da Igreja, localmente representada pelos bispos, como instrumento do reforço da autoridade do poder central. O prelado era apresentado pelo Rei e pago pela Fazenda régia, sendo entendido como o número dois da hierarquia insular, pelo que, faltando futuramente o representante local do rei, aquele viria a assumiria o lugar, inclusivamente, com funções militares, embora tal ocorresse apenas alguns anos depois. Frestas das escadas da torre da Sé Deve-se, assim, ao bispo D. Fr. Jorge de Lemos a montagem do aljube. O edifício foi adquirido a 5 de março de 1562, a Mendo Ornelas de Moura e a sua mulher, moradores no Caniço. Consistia em umas “casas”, “com dois sobrados”, acima da “sé desta cidade, defronte da porta travessa da banda de cima, que partia duma parte com casas de Tristão de França e pela outra, com as dos herdeiros de Francisco Vieira (antigo prioste) e pela banda do norte, com os herdeiros de Tristão Vaz e da outra, com a rua pública”, tendo custado 80$000 réis, tudo “pago em dinheiro de contado” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, maç. 2, docs. 45 e 46). Com esta aquisição, ampliou-se a cerca da sé para norte e montaram-se as escadas no edifício, datando de 15 de abril de 1562 a autorização camarária para se fazer na “rua do concelho a escada do aljube” (Id., Ibid., doc. 46). A 6 de julho de 1562, por alvará régio, foi criado o lugar de aljubeiro, com uma remuneração anual de 4$000 réis e, a 12 de junho, foi ordenado “um acrescentamento de 2$000 ao dito aljubeiro, para ter de seu ordenado 6$000” (BNP, Índice do Registo da Provedoria..., 71v.-72). Nos anos seguintes registaram-se inúmeras prisões no aljube, essencialmente de populares, condenados por crimes diversos, como mancebia e prostituição.     Pormenor do Aljube e Câmara do Funchal -1870.   Pontualmente, no entanto, chegaram a estar ali presos (e por vezes na torre, por falta de espaço disponível) outros indivíduos, como vereadores e funcionários de justiça. Essa situação verificou-se, e.g., na vigência de D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742) (Coutinho, D. frei Manuel) ou de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (c. 1710-1784). Foi em Oitocentos que a ocupação das prisões da cidade, incluindo o aljube, conheceu a sua máxima ocupação, com as alçadas de 1823 e de 1828, no contexto dos conflitos entre liberais e absolutistas. O aljube veio a ser demolido nos finais do séc. XIX, em data que não conseguimos apurar, mas ainda surge em fotografias da déc. de 70 dessa centúria. A sua memória perdura ainda na rua com o seu nome e, embora ao longo do liberalismo e do rotativismo tenha sido uma das artérias a que Câmara tentou atribuir mais vezes outras designações, nenhuma outra persistiu.   Rui Carita (atualizado a 17.08.2016)

Direito e Política

alçadas

Infante D. Henrique Leopoldo de Almeida   A justiça era o atributo máximo dos reis; em relação à Madeira, logicamente, e dada a distância e descontinuidade territorial, foi de início delegada, mas parcialmente, nos representantes dos monarcas. Primeiro, no donatário, o infante D. Henrique (1395-1460), e nos seus capitães, pois o Rei D. João I, na doação do arquipélago ao infante, a 26 de setembro de 1433, reservara para a coroa o princípio da maioria da justiça e da cunhagem da moeda. Depois, nos capitães do donatário e, logo, também nas vereações camarárias, que eram ainda um tribunal; mais tarde, igualmente nos ouvidores e corregedores, eles próprios “com alçada”, ou seja, com determinado âmbito de jurisdição. Denominavam-se alçadas, antigamente, os tribunais coletivos e ambulantes que, percorrendo o território, administravam a justiça em nome do rei. Escreve António de Morais Silva, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, a partir de Vida do Arcebispo de frei Luís de Sousa, que “chamamos alçada a uns tribunais ou casa de justiça, que constam de presidente e companhia, e autoridade de ministros, os quais em forma de ‘Relação’ discorrem por todos os povos com poderes reais, como em visita geral, a desfazer agravos, castigar insultos, tolher forças e humilhar poderosos, que mal usam do seu poder” (SILVA, 1949, I, 568). O termo é, ainda, sinónimo de competência, jurisdição, limite de ação e influência, e aplica-se igualmente à Igreja (Auditório eclesiástico, Jurisdição eclesiástica). Certamente, não com a frequência com que ocorreu com a jurisdição real e não-alçadas eclesiásticas vindas do reino, cuja competência canónica era muito restrita na diocese do Funchal, nem de Roma, cuja distância colocava a Ilha a coberto de uma intervenção desse género através do prelado diocesano, que, face a queixas recebidas e a informações transmitidas pelos seus visitadores, e encontrando-se por vezes em Lisboa, determinava o envio de alçadas a várias freguesias da Madeira. Assim aconteceu com a maioria dos prelados, primeiro, pessoalmente e, depois, por delegados, com especial relevância no caso de D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742) (Jacobeia). Inclusivamente, o bispo possuía prisão própria para os chamados delitos de foro misto, o aljube, sendo os eclesiásticos presos na torre da Sé, embora também tenha havido não eclesiásticos aí detidos. Nos meados do séc. XV, aparecem de imediato na Ilha elementos com determinadas alçadas ou jurisdições enviados pelo donatário como ouvidores, surgindo os primeiros a pedido dos moradores, para uma mais eficaz e correta aplicação da justiça. O primeiro ouvidor do duque D. Fernando (1433-1470), sobrinho e herdeiro do infante D. Henrique, foi Dinis Anes da Grã, nomeado a 10 de maio de 1466 e enviado a pedido dos procuradores da Ilha, então Mem Rodrigues de Vasconcelos, fidalgo da casa do duque, e Gonçalo Anes de Velosa, escudeiro, que o solicitaram por entenderem ser necessário “mandar prover sobre a justiça e boa governação” da Madeira (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 1, fls. 134-135). A jurisdição ou alçada de Dinis Anes da Grã, sob a forma de regimento ou de carta, com competência em ambas as capitanias, Funchal e Machico, permitia-lhe realizar a eleição dos juízes e oficiais do concelho, encarregar-se de “todos os feitos crime que a mim pertencer livrar, e cíveis, que forem sobre dívidas e contratos, e outros feitos semelhantes, ora sejam começados ou por começar”, como escreveu o duque, determinando ainda que “os despacheis”, para “livres, sem mais, virem a mim” (Id., Ibid.). Competia-lhe também decidir conjuntamente com o capitão e o almoxarife sobre “os feitos e demandas” relativos às águas e “doações de terras”, e quando estivesse em desacordo com o capitão nessas matérias, deveria fazer registo de tudo para ser presente ao duque-donatário (Id., Ibid.). Não sabemos quanto tempo Dinis da Grã esteve na Ilha. Ainda aí se encontrava a 4 setembro desse ano de 1466, quando o duque enviou uma carta ao mesmo ouvidor sobre a coutada a estabelecer no Funchal para “os bois de arado e bestas de servidão”, dado que para o trabalho das sementeiras não havia “bois que os possam servir” e que seria situada acima da praia Formosa (Ib., Ibid., fls. 136-136v.). O ouvidor faleceu, entretanto, mas não sabemos se na Madeira. Com efeito, em carta de 6 de agosto de 1468, sobre a jurisdição do Funchal em relação ao lugar de Câmara de Lobos, já o duque refere que “umas posturas que Dinis Anes da Grã, meu ouvidor que Deus perdoe”, tinha dado aos moradores daquele lugar atribuía-lhes determinadas prerrogativas sobre “penas e coimas”, pelo que os mesmos moradores entendiam não ter de participar na procissão de Corpo de Deus da vila do Funchal, determinando-se então que eram parte integrante da mesma vila, devendo obediência à dita (Id., Ibid., fls. 270-271). Simão Gonçalves da Câmara_1527-1531   Com o falecimento do infante e duque D. Fernando, em 1470, assumiu a administração da Ordem de Cristo a infanta D. Beatriz (1430-1506). Na menoridade dos seus filhos, enviou também logo ouvidores com idêntica alçada, designadamente Luís Godinho, em 1478, que serviria depois sob a administração do duque D. Manuel (1469-1521). Seguiu-se, em 1485, Brás Afonso Correia e, em 1493, Fernão de Parada. Nos anos sequentes, subindo D. Manuel ao trono e integrando a Madeira na coroa “para sempre”, a 27 de abril de 1497 (Id., Ibid., fls. 272-273v.), face ao protagonismo excessivo assumido pelo Cap. Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) (Câmara, Simão Gonçalves da) e a arbitrariedades várias, houve que proceder de uma outra forma, enviando especificamente um corregedor, que veio a suspender aquele capitão e os seus ouvidores. Já antes, o rei D. Manuel, logo após o falecimento do segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501), fizera partilhar a capitania do Funchal, criando mais duas câmaras: Ponta do Sol, em 1501 e Calheta, em 1502. Depois, em 1508, estando a “igreja grande” do Funchal quase pronta e sagradas as suas paredes, elevou a antiga vila a cidade e ainda, em 1514, conseguiu de Roma a elevação a sede de diocese para a mesma, medidas que fizeram diminuir progressivamente o referido protagonismo local do terceiro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, que veio a ter o cognome de O Magnífico. Porém, tendo chegado a Lisboa queixas da sua atuação, o rei despachou para a Ilha, a 20 de fevereiro de 1516, Diogo Taveira, em correição, que suspendeu o dito capitão do Funchal. As queixas não eram recentes e já o anterior corregedor, Álvaro Fernandes, enviara ao rei, a pedido do mesmo, a 8 de julho 1504, um auto com o rol das dívidas do capitão. Mais tarde, em carta de 25 de outubro de 1515, também a Câmara do Funchal se queixava da intromissão do capitão nos seus assuntos e na jurisdição dos seus ministros. Simão Gonçalves da Câmara tomou a chegada do corregedor como uma afronta e ingerência nos assuntos da sua capitania, queixando-se às instâncias superiores do reino, invocando estar na posse da jurisdição do cível e do crime, sem dar apelação nem agravo, exceto nas sentenças de morte e talhamento de membro, como constava da sua confirmação à frente da capitania, pelo que não via razão para a sua suspensão e dos seus ouvidores. A 8 de outubro de 1516, o corregedor escreveu ao rei, dando conta das diversas irregularidades, nomeadamente fraudes à Fazenda cometidas pelos rendeiros, falta de administração da justiça e demoras nas demandas. Entretanto, também a Câmara se queixava do aumento da tabela dos selos determinada pelo capitão, que subira o imposto de 9 para $036 réis, provocando assim um substancial aumento das suas receitas, pelo que D. Manuel, a 6 de abril de 1517, ordenou ao corregedor que inquirisse dessa ocorrência e não consentisse o aumento. O Cap. Simão Gonçalves da Câmara, logo em 1516, perante a gravidade das acusações recolhidas pelo corregedor, saiu da Ilha com intenções de passar a Castela. No Algarve, terá tido conhecimento de que os reis de Fez e de Mequinez apertavam o cerco a Arzila, mandando organizar um socorro, após o que se instalou em Sevilha, onde ficou a aguardar notícias de D. Manuel. O rei pareceu sensibilizar-se com este rasgo imprevisto e até grandioso e, para não o ver ao serviço de Castela, “escreveu-lhe uma carta com grandes promessas e esperanças de lhe fazer as honras e mercês que tais serviços mereciam, mandando-lhe que viesse logo e tornasse para o reino que ele o despacharia conforme os seus merecimentos” (FRUTUOSO, 1968, 246-247). Mas isso escreveu Jerónimo Dias Leite e transcreveu, depois, Gaspar Frutuoso, assim tentando justificar a conduta do capitão do Funchal, pois o mesmo, em princípio, não voltou à Madeira, tentou vender a capitania e veio a falecer em Matosinhos, em 1530. Nas décadas seguintes, e no âmbito da história da Madeira, o termo “alçada” indica, especialmente, a chegada de um corregedor do desembargo régio com pessoal ao seu serviço, em resposta a um desmando grave ocorrido na Ilha e que alcançara ao conhecimento da corte. A partir dos finais do séc. XVI, o governador passou a ir à Madeira acompanhado de um corregedor; e, em 1681, o Rei começou a nomear também um juiz-de-fora para a Câmara com funções de correição, similar ao provedor que atuava na esfera da Fazenda. Mas a opção foi para desfasar temporalmente os períodos de estadia dos governadores e dos corregedores, que passaram a responder autonomamente à corte de Lisboa e, durante a União Ibérica, também à de Madrid; assim, estes dois elementos passaram a encarnar os lugares cimeiros da administração periférica da Coroa, vindo a ser designados, amiúde, ministros do Rei, tal como consta em muita documentação coeva. Nos finais do séc. XVI, em 1597, o vice-rei bispo de Leiria, D. Pedro de Castilho, que fora bispo de Angra, enviou o corregedor André Lobo, “do desembargo de S. Majestade, el-rei e com alçada nestas ilhas”, à Madeira. André Lobo tomou posse a 26 janeiro de 1598 e compareceu no Funchal nos últimos dias do ano, tendo-se apresentado na Câmara a 1 de janeiro de 1599. Com este corregedor produziu-se um dos acontecimentos mais marcantes da organização governativa insular, ocorrido com a saída da Ilha do governador Diogo de Azambuja de Melo, em meados de outubro de 1599.   Membros do senado camarário_1821   Assim, a 31 de outubro, reuniram-se os vereadores na sede da Câmara, então nas traseiras da sé, com o bispo do Funchal, D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), o desembargador André Lobo, os vereadores camarários, “fidalgos, gente da governança e capitães” do presídio, “e saiu o bispo”, por 21 votos contra os 9 que teve o desembargador (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações 1599-1600, liv. 1314, fls. 45-47). A eleição faria jurisprudência na administração madeirense e, nos casos seguintes, não houve sequer votação, sendo o governo entregue, de imediato, ao prelado; esta situação do prelado como governador foi, depois, confirmada pela corte de Lisboa.     Vereadores da Câmara do Funchal em uniforme de gala-1816-1821   A primeira alçada do séc. XVII ocorreu em 1606, com o envio do desembargador António Ferreira, face às informações chegadas a Lisboa de que o governador João Fogaça d’Eça, descendente de Zarco, se recusara a expulsar quatro holandeses que viviam na Ilha, acusados de serem “correspondentes de rebeldes” (AGS, Secretarias Provinciales, liv. 1476, fl. 41). A indicação fora dada por Filipe III de Castela e configura um certo desnorte do governo, entre Madrid e Lisboa, com ordens e contraordens, acabando o governador por não ser suspenso, mas vindo a ser indiciado, em seguida, o do Porto Santo, Diogo Perestrelo Bisforte, a de 31 de outubro do mesmo ano, sendo impedido de continuar o exercício do cargo somente na alçada seguinte e tendo tido então ordem para se fazer apresentar na corte. Ao longo da primeira metade do séc. XVII e na vigência do governo filipino, foram, ainda, enviadas para a Ilha as alçadas do desembargador Simão Cardoso Cabral, em 1610; do desembargador da Casa da Suplicação, Gonçalo de Sousa, em 1614; do desembargador da Relação do Porto, Estêvão Leitão de Meireles, em 1627; e do desembargador da Casa da Suplicação, Ambrósio de Sequeira, em 1634. Estavam em causa, essencialmente, questões gerais de justiça que iam sendo notícia nas cortes de Lisboa e de Madrid, como queixas de assassinatos e, também, queixas relacionadas com o desvio de dinheiros da Fazenda, aspeto a que essas cortes estavam bastante mais atentas. A última alçada visou a cobrança do “donativo” ou “empréstimo” para o socorro do Brasil no valor de 30.000 cruzados (AGS, Secretarias Provinciales, liv. 1527, fl. 112v.; ANTT, Corpo Cronológico, parte 1, mç. 119, doc. 43; ARM, Câmara. Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1327, fl. 31v) e revela já alguns aspetos do levantamento geral que ocorria em Portugal contra o governo filipino. Face àquele pedido, a 18 de fevereiro de 1637, os representantes dos vinte e quatro mesteres do Funchal (Casa dos 24) apresentaram mesmo em Câmara uma contestação à nova contribuição; ela começa com a declaração seguinte: “A mais natural obrigação que têm os senhores reis e príncipes católicos é não usurparem aos seus povos e vassalos, etc., aqueles privilégios, leis e isenções que os seus” antecessores haviam dado (ARM, Registo geral, tombo 3, fls. 19v.-20v.). Pediam, assim, que as suas “razões de justa escusa” fossem levadas ao conhecimento do rei, pois, “por particulares erros, não por ofensas públicas, que nunca as houve nesta Ilha contra o serviço real”, tinham sido castigados, desde 1615, “com três rigorosíssimas alçadas, com cujos custos não têm ficado aos moradores cabedal algum para acudirem às suas notórias e extremas necessidades” (Id., Ibid.). Os custos das alçadas caiam, logicamente, sobre os moradores, incluindo a residência do desembargador e do seu pessoal. Desta realidade já se havia queixado o governador D. Francisco de Sousa, em 1628, pedindo que fosse abreviado o tempo das alçadas, geralmente de três anos, mas, por consulta de 30 de janeiro de 1629, o seu requerimento não teve despacho favorável. A provisão régia de nomeação do desembargador Leitão de Meireles, p. ex., estipulava 1$000 réis por dia para o desembargador, $500 para o escrivão, $600 para o meirinho e mais $160 para cada homem armado, tudo ao dia, montantes que deveriam ser pagos pelos culpados, podendo-se fazer execução das suas fazendas. Mais tarde, em 1653, ao corregedor Dionísio Soares de Albergaria, determinava-se um salário de 1$200 réis por dia à custa da fazenda dos culpados executados; não havendo culpados ou não os podendo executar, seriam pagos 1$000 pela Fazenda Real. Grande parte destas averiguações corriam por denúncia, sendo os indiciados imediatamente espoliados dos seus bens e, não se confirmado depois as acusações, dificilmente os recuperavam, havendo inúmeras queixas a este respeito. A opinião dos representantes dos mesteres na Câmara do Funchal, alegando que “ofensas públicas” “nunca as houve nesta Ilha contra o serviço real”, está muito longe de corresponder à realidade, pois sempre existiram e continuariam a existir. Nos finais do séc. XVI, p. ex., organizou-se no Funchal, durante a noite, uma “matraca” contra o desembargador André Lobo (ANTT, Chancelaria de Filipe II, Perdões e legitimações, liv. 3, fl. 108), na qual terá estado envolvido o poeta e novelista Tristão Gomes de Castro (1539-1611) (Alferes-mor), que veio a ter carta de perdão pela acusação a 30 de março de 1605. Mais tarde, o desembargador Gonçalo de Sousa, temendo um atentado, deixou a cidade do Funchal para se refugiar em Machico, como refere, posteriormente, o provedor da Fazenda Francisco de Andrade, em carta de 30 de agosto de 1646, acrescentando que, depois, dois meirinhos e quatro homens da alçada do corregedor Ambrósio de Sequeira tinham sido violentamente atacados e ficado feridos. A 21 de outubro de 1628, os mercadores da cidade também tinham organizado “duas mangas de gente armada com cevadeiros de pedras e fundas” contra o desembargador Leitão de Meireles, ação que culminou com uma surriada e lançamento de imundices à porta deste e que incluiu a colocação de papéis “difamatórios” em vários locais da cidade (VERÍSSIMO, 1995, 262). Nos tumultos tinham estado envolvidos Francisco do Couto e Almeida, perdoado a 11 de outubro de 1640, e Manuel de Atouguia da Costa, que chegara a estar preso em Lisboa. A partir do final desse ano de 1640, a situação da ordem pública no Funchal piorou, não só em relação às questões da Fazenda, que motivaram a carta do provedor, mas também em relação a quase todos os poderes instituídos e, muito especialmente, aos “ministros do rei”. Após a aclamação de D. João IV, na organização dos festejos determinados pela Câmara, a 25 de janeiro de 1641, ocorreram uma série de tumultos graves. O edifício da Câmara foi invadido e foi eleita uma nova vereação; ocupou-se o edifício da Alfândega e foi demitido o provedor Manuel Vieira Cardoso, que teve de se refugiar no paço episcopal, sendo nomeando, por aclamação dita popular, um outro, João Rodrigues Teive. Registam-se, igualmente, tumultos contra o governador Luís de Miranda Henriques, acabando por ser nomeado, um ano depois dos acontecimentos, por provisão régia de 9 de fevereiro de 1642, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, que se fez acompanhar pelo oficial Amaro Godinho Borges, apresentando-se ambos na Câmara do Funchal a 22 de março seguinte. Logo nesta apresentação, e perante o novo governador Nuno Pereira Freire, o juiz do povo Francisco Gomes solicitou que não se iniciasse a devassa antes de o governador cessante partir, para se poder apurar a verdade do que se passara. O corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, no entanto, vinha também indigitado como provedor da Fazenda, com provisão datada de 6 de março de 1642, demitindo o provedor nomeado durante os tumultos de janeiro do ano anterior e iniciando uma série de averiguações que levaram a apurar diversas dívidas à Fazenda, especialmente, respeitantes ao comércio com o Brasil e de que conseguiu ainda recuperar algum dinheiro, em agosto. Deste mês em diante, continuaram a ser detetados outros atrasos nos pagamentos à Fazenda e, no final de dezembro, os vereadores Manuel Homem e Luís Manuel Leme da Câmara foram indiciados como tendo também dívidas e, inclusivamente, como tendo estado envolvidos nas nomeações populares para a Câmara e para a Fazenda realizadas em janeiro de 1641. Dada não apresentação de ambos ao corregedor e uma vez que tentaram refugiar-se na Câmara, aquele foi aos paços do concelho com o governador nos últimos dias de dezembro, interpondo-se Pedro Bettencourt de Atouguia, que, após curtas palavras, puxou da espada e atingiu o corregedor. Gaspar Mouzinho de Barba veio a falecer na sé do Funchal, ao lado da Câmara, para onde fora recolhido, registando o assento de óbito, de 29 de dezembro de 1642, ter sido aí “onde morreu e o ilustríssimo e reverendíssimo D. Jerónimo Fernando o mandou sepultar, e tudo se lhe fez grátis” (ARM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 73, fl. 163). Em nota à margem, ainda se regista que “levantou-se o povo que andava desenfreado e lhe deram uma estocada. Não se confessou” (Id., Ibid.). Pedro de Bettencourt de Atouguia veio a ser preso no castelo do Pico, mas fugiu com a ajuda do pai, acolhendo-se no convento de S. Bernardino (Convento de S. Bernardino), em Câmara de Lobos, de que a família era padroeira, acabando por ali ficar como leigo e ao abrigo da justiça, passando depois ao oratório de S. Sebastião da Calheta, que ajudou a fundar, vindo a professar como frei José da Encarnação, falecendo no local. O bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), conhecido como O Bravo, que ocupara por três vezes o lugar de governador, perante o caso e, acrescente-se, dado ter já uma certa idade, retirou-se para Lisboa, em finais de 1643, vindo aí a falecer; a diocese haveria de ficar em “sé vacante” durante mais de 20 anos. O rei D. João IV, numa primeira fase, condescendeu com a situação e, a 26 de janeiro de 1644, em carta ao governador, transcrita pelas câmaras do Funchal e de Machico e enviada ao cabido, recomendava que “se evitassem os efeitos de inimizades e ódios, ordenando-se às justiças que não procedessem contra pessoa alguma por coisas que sucedessem no tempo da sua feliz aclamação” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 6, fl. 53; Id., Câmara Municipal de Machico, tombo 2, fls. 92-94; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 17). À data, porém, não teria ainda conhecimento do assassinato do corregedor e, seis meses depois, a 28 de julho de 1644, como era hábito, enviou o juiz desembargador da Relação do Porto, Jorge de Castro Osório, com indicações especiais e ordem para investigar a morte do juiz corregedor anterior. Jorge de Castro Osório recebeu, na Madeira, o apoio do escrivão da alçada Amaro Godinho Borges, que, por uns tempos, chegara a servir como provedor da Fazenda. Faleceriam ambos num curto espaço de tempo, em princípio, envenenados: “mortos com peçonha”, como refere a mercê régia de D. João IV para a viúva do oficial de justiça e da Fazenda, concedendo dois lugares de freira para as filhas (Inventário dos Livros..., 1909, 110 e 213). Na Ilha, no entanto, refere-se apenas que morreram, como indicam os registos de óbitos da sé, de 17 de janeiro de 1646 e de 5 de maio seguinte, lendo-se, no primeiro: “Morre o Dr. Jorge Osório que andava em correição” (ARM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 73). O rei não tomou, de imediato, medidas especiais, limitando-se a mudar o governador. Escolheu um fidalgo com fortes ligações familiares à Ilha e com propriedade na mesma, Manuel de Sousa Mascarenhas, esperando assim sanar os ânimos, mas tal não veio a acontecer. O governador Manuel de Sousa Mascarenhas teve patente a 22 de fevereiro de 1645 e compareceu na Madeira a 11 de abril, com ordens para inquirir sobre a ação do governador anterior, tal como viria a acontecer consigo e com os governadores seguintes. Em 1647, foi despachado para a Ilha Gaspar Machado de Barros, servindo de provedor da Fazenda; em 1653, Dionísio Soares de Albergaria, juiz com alçada e superintendendo também sobre os assuntos da Fazenda; e, em 1662, João Cordeiro Leitão, igualmente com alçada e ordens secretas. A situação de sé vacante e o início da monarquia absoluta, com questões específicas em relação à Madeira, colocaram o novo governador, D. Francisco de Mascarenhas, numa situação insólita. Com efeito, foi preso por um conjunto de fidalgos locais, a 18 de setembro de 1668, e encarcerado na fortaleza do Pico, tendo os revoltosos eleito um governador e enviado o deposto para o continente, o que nunca tinha acontecido na Madeira (Sedição de 1668). Pouco tempo depois, em 29 de março de 1669, aportou no Funchal o desembargador com alçada João de Moura Coutinho, com regimento especial para tirar residência ao governador-geral deposto. Seguiu-se Manuel Dourado Soares, a 1 de fevereiro de 1677, com regimento especial para tirar residência ao novo governador-general; depois, a 15 de janeiro de 1683, o desembargador com alçada Domingos de Matos Cerveira, superintendendo principalmente sobre assuntos da Fazenda. Nos inícios do séc. XVIII, em 1703, terá havido uma sedição contra o governador João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho, “no salão da Índia da fortaleza de S. Lourenço”, “e uma conspiração que intentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a vida” ao governador e ao juiz de fora da Câmara (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 7, fl. 254v.ss.). No atentado ao governador, terá estado envolvido o velho capitão de artilharia António Nunes, que se ausentou do Funchal, imediatamente a seguir aos acontecimentos. Por causa da sedição, o doutor desembargador Diogo Salter de Machado deslocou-se ao Funchal com poderes excecionais. Assim, para proceder às averiguações, fez sair da cidade o governador, “em distância de dez léguas, para que não fosse, com a sua presença e poder, assistindo” às mesmas e interferindo nelas (Id., Ibid.). Nas ordens do desembargador, vinha expresso: “e na mesma embarcação em que fores tirar esta devassa, voltará o provedor da Fazenda Manuel Mexia, por não ser conveniente que fique na Ilha depois da vossa chegada, para se não dar tempo a negociações, e por ser o dito provedor da Fazenda em mais suspeições” (Id., Ibid.). As questões terão sido muito graves e terão envolvido também o prelado da diocese, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), pois ficou escrito no regimento do desembargador: “E a queixa contra o bispo deverá ser queimada, para dela não ficar nada, nem memória, e disso deverá ser dado conhecimento ao bispo, para o mesmo saber como o rei e as suas justiças tratam semelhantes casos” (Id., Ibid.), aspeto que passou ao lado dos autores do Elucidário Madeirense. As ordens para o desembargador e corregedor Salter de Machado foram passadas em janeiro de 1703, mas o mesmo só se apresentou na Ilha em junho. Entretanto, já tinha falecido, no Funchal, a 8 de março, o governador João da Costa Ataíde e já tinha tomado posse o novo governador, Duarte Sodré Pereira. Com o dito confronto, fora também designado um juiz-de-fora em Lisboa, em 1703, Francisco Torres Pinheiro, “que acabou de servir em Torres Vedras”, como se refere na nomeação e que tomou posse no Funchal, a 5 de maio de 1704, dado aquela comarca ser da repartição Estremadura e Ilhas (Id., Ibid.., fls. 252-252v.). A nomeação de um juiz-de-fora permanente para o Funchal obviou a necessidade de alçadas, embora, para Duarte Sodré Pereira, o principal problema residisse no Desembargo do Paço, sobre o que escreveu: “Deus me livre que ao Desembargo do Paço vão queixas, porque ou falsas ou verdadeiras, lá se não enjeitam” (ARM, Arquivos particulares, Copiador de cartas de Duarte Sodré Pereira). Com a crescente centralização do poder régio, a figura do juiz desembargador com alçada deixou de fazer muito sentido, vindo o gabinete pombalino a montar, progressivamente, as corregedorias e a suprimir as antigas ouvidorias (Ouvidorias), com a extinção das capitanias, entre outras. No entanto, a sua memória não se extinguiu no Desembargo do Paço, tal como alertou o governador Duarte Sodré Pereira, nos inícios do séc. XVIII. Assim, mais de 100 anos depois, dissolvidas as cortes e derrogada a constituição de 1822, sendo restabelecido o governo absoluto, em julho de 1823, a Madeira foi de novo alvo de uma alçada. Em causa estavam as questões das lojas maçónicas, dos partidos políticos emergentes e das ligações às ideias liberais, tudo indiciando que os madeirenses pretendiam subtrair-se à coroa portuguesa e ligar-se a Inglaterra. Num breve espaço de tempo, houve mais de uma centena de presos; embora só uma dezena deles viessem a ser condenados, os indiciados eram imensos, tendo muitos saído da Madeira. Deste modo, a Ilha foi decapitada de muitos dos seus principais quadros, entre morgados, funcionários públicos, cónegos e vigários, escritores e militares de todas as patentes, entre outros. Infelizmente, essa não foi a última alçada na Madeira, pois, com a tomada do poder pelo infante D. Miguel, em 1828, e conquistada a Ilha pelas forças absolutistas, uma nova alçada foi enviada. Os trabalhos dela ficaram a cargo do ministro sindicante Manuel Luciano Magalhães Abreu e Figueiredo. O processo existente na Câmara do Funchal mostra um conjunto verdadeiramente desonroso de 250 depoimentos, quase todos feitos por convocação do ministro sindicante, lendo-se neles acusações bastante vagas e com base nas quais chegaram a estar envolvidas e presas perto de 2000 indivíduos, acusados de “malhados” e maçons (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 6, fls. 305v.-327). Num curto espaço de tempo, a Ilha perdeu, novamente, parte dos seus principais quadros sociais e económicos, militares, administrativos e religiosos, não tendo muitos dos envolvidos regressado à Madeira, optando antes por ficar em Londres e depois no continente, havendo uma parte, de certa forma importante, que preferiu emigrar para o Brasil. A relação dos réus foi elaborada já em Lisboa, por ordem alfabética, e incluía 101 elementos, sendo o termo assinado a 18 de setembro de 1829. A ele juntou-se uma segunda relação, com data anterior, 19 de agosto, e com mais 216 elementos. As sentenças finais foram, assim, dadas em Lisboa, a 18 de setembro de 1829, sendo juízes João Manuel Guerreiro de Amorim, José Pereira Paula de Faria Garção e Romão Luís de Figueiredo e Sousa. Todavia, muitos mais madeirenses vieram a ser indiciados na mesma alçada ao longo daquele ano e do seguinte e a ser deportados para Cabo Verde, Angola e Moçambique.   Rui Carita (atualizado a 17.08.2016)

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aguiar, manuel caetano pimenta de

Poeta e dramaturgo. Foi representante da ilha da Madeira nas Cortes Constituintes de 1822 a 1823, tendo sido também deputado, pela Madeira, para a sessão legislativa de 1826 a 1828. Escreveu muitas tragédias de que se conhecem dez: Virgínia (1815); Os Dois Irmãos Inimigos (1816); D. João I (1817); Destruição de Jerusalém (1817); Conquista do Peru (1818); Eudoxa Licinia (1818); Morte de Sócrates (1819); Carácter dos Lusitanos (1820); Arria e D. Sebastião em África. Existe uma tradução francesa do livro Carácter dos Lusitanos publicado em Paris (1823), por Ferdinand Denis. Palavras-chave: poesia; dramaturgia; tragédia; política.   Poeta e dramaturgo, nasceu na ilha da Madeira, na freguesia da Sé, a 16 de maio de 1765 e faleceu, com 67 anos, em Lisboa, na R. Direita da freguesia de São Paulo, a 19 de fevereiro de 1832, vítima de um ataque apoplético. Foi sepultado na igreja paroquial de S. Paulo. Era filho de Bartolomeu Luís Pimenta de Aguiar, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, que foi para a Madeira exercer o lugar de curador geral dos órfãos e lá teve administração duma casa vinculada, e de Maria Felícia de Carvalho. Casou-se com Micaela Antónia de Sá Bettencourt, filha do Cap. Manuel José de Bettencourt e Andrade e de Ana Bárbara de Freitas Drumond Aragão. Teve sete filhos. Um deles, Luiz Pimenta de Aguiar, foi desterrado para Moçambique por ser liberal e lá morreu; outra filha, Isabel Bettencourt de Aguiar, casou-se com António João da Silva Bettencourt Favila. Pimenta de Aguiar habitou uma casa da antiga R. da Carreira, situada um pouco abaixo da travessa com o nome deste notável dramaturgo, poeta de pendor trágico, filósofo das novas ideias do século das Luzes e romântico soldado. Consta que nessa casa escreveu algumas das suas tragédias. Nascido numa família de exemplares virtudes que, formada à sombra da Igreja, gozava de prestígio conquistado desde António Gomes de Aguiar, experienciou uma infância de severo tradicionalismo; foi para Lisboa em 1778, onde deu entrada no Colégio Real de Nobres, fundado pelo marquês de Pombal. Não se sabe se concluiu ali os estudos, mas em 1785, desviado do seu destino de família que apontava para a Universidade de Coimbra, mudou-se para França, como emigrado em busca de glória, a fim de seguir um curso de artes e ciências; durante este período conheceu a literatura francesa, que influenciou toda a sua obra. Durante a Revolução que sairia de França para abalar o mundo, encontrava-se ao serviço do governo francês, tendo alcançado, alistando-se nos exércitos revolucionários, em concreto nas fileiras da cavalaria, o posto de capitão e, pelo seu heroísmo, recebido a Cruz da Legião de Honra. Terminada a luta civil contra o Rei, foi demitido do serviço militar. Até 1815, nada sabemos, de positivo, da sua vida, a não ser o nascimento de quatro filhos. Em 1816, publicou a sua primeira obra, Virgínia, dando à luz o seu último trabalho em 1820. Em tão curto período, trabalhou intensamente, criando 10 tragédias, todas elas obras extensas, seguindo os trâmites clássicos e cultivando o verso. Depois de 1820, com a revolução do Porto – tendo frequentado, na companhia de Borges Carneiro, a casa de Francisco Freire de Melo, deputado da Mesa da Santa Inquisição e amigo de filósofos –, abandonou a atividade literária, desconhecendo-se os motivos que o conduziram a tal decisão. Em 1821 encontrava-se na Madeira; de 1822 a 1823, foi representante da ilha da Madeira nas Cortes Constituintes, tendo sido também deputado pela Madeira para a sessão legislativa de 1826 a 1828. Antes de seguir para Lisboa, apela aos seus concidadãos, no jornal Patriota Funchalense, para que lhe comuniquem os seus anseios para a Madeira. E é com este espírito que vai ocupar a sua cadeira nas Cortes. Cultivou a natureza e a razão, iluminado pelas esperanças de liberdade, entregando-se principalmente ao estudo e ao desenvolvimento das suas predileções literárias. Apresentou vários projetos, entre os quais um que permitia a livre exportação do Vinho da Madeira. No dia 28 de Janeiro de 1822, solenizou-se o aniversário da proclamação da Constituição na Ilha da Madeira. O estabelecimento, em 1828, do governo absoluto obrigou-o a fugir para escapar às perseguições dos emissários miguelistas, que não poderiam poupar quem fora partidário entusiasta da Constituição de 1820 e da Carta Constitucional de 1826. Durante a guerra civil de 1828-34, sofreu as perseguições dos seus inimigos. Intuindo que não havia um verdadeiro teatro em Portugal e inspirando-se nos trágicos franceses, desenvolveu o gosto por este género de literatura. As suas tragédias foram bem recebidas pela crítica. Conhecem-se 10: Virgínia (Lisboa); Os Dois Irmãos Inimigos; D. João I; Destruição de Jerusalém; Conquista do Peru; Eudoxa Licinia (estas 5 publicadas em Lisboa, pela Impressão Régia); Morte de Sócrates; Carácter dos Lusitanos (estas 2 publicadas em Lisboa); Arria e D. Sebastião em África, obras de que se desconhecem capas ou folhas de rosto e sem local ou data de publicação. Existe uma tradução francesa de O Carácter dos Lusitanos, publicada em Paris, em 1823, por Ferdinand Denis. Publicou ainda poemas no Defensor da Liberdade, um semanário do Funchal. Alguns conhecedores da sua obra consideram-no precursor de Almeida Garrett, nomeadamente no que diz respeito à criação do teatro trágico nacional, evidenciando, assim, a importância de Pimenta de Aguiar na história da literatura portuguesa. Muito reconhecido no seu tempo, as suas tragédias, contextualizadas pelos defeitos próprios da época, evidenciavam, sem dúvida, a sua originalidade, um estilo distinto e uma elegância admirável, características pouco comuns naquele período, pelo que o autor era frequentemente aclamado com entusiasmo pelo público. Nascido numa época privilegiada da intelectualidade portuguesa, foi um estilista inteligente e original. No seu Résumé de L'Histoire Littéraire du Portugal, Ferdinand Denis refere-se-lhe de modo bastante lisonjeiro. Ilustre madeirense e distinto escritor, que seguiu a causa de D. Pedro IV, patriota zeloso e intransigente na defesa da independência nacional, M. C. Pimenta de Aguiar não ficou conhecido entre os madeirenses. Contudo, e apesar de ter residido fora da Madeira a maior parte da sua vida, a Câmara Municipal do Funchal decidiu atribuir o seu nome a uma travessa da cidade. Obras de Manuel Caetano Pimenta de Aguiar: Virgínia (1815); Os Dois Irmãos Inimigos (1816); D. João I (1817); Destruição de Jerusalém (1817); Conquista do Peru (1818); Eudoxa Licinia (1818); Morte de Sócrates (1819); Carácter dos Lusitanos (1820); Arria (s.d.); D. Sebastião em África (s.d.).   António José Borges (atualizado a 01.08.2016)

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