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milho

São conhecidas duas variedades de milho o chamado milho zaburro, que no Brasil corresponde ao sorgo (sorghum bicolor L. Moench) e o milho maçaroca (zea mays). Popularmente, temos ainda o chamado milho branco e amarelo: o primeiro era comum na alimentação humana, sendo o segundo usual para o gado. Porque o primeiro escasseou no último quartel do séc. XX, foi substituído pelo milho amarelo, que melhorou de qualidade quando se passou a importar da Venezuela, por força do retorno de muitos emigrantes madeirenses. Há um debate sobre a origem e divulgação das duas variedades deste cereal, mas o que nos interessa saber é que esta ultima variedade terá sido divulgada em todo o mundo, a partir do continente americano, no séc. XVI. E foi neste contexto, bem como no das ligações africanas, nomeadamente a São Tomé e Cabo Verde, que o milho terá chegado à Madeira. Desta feita, não será por acaso a expressão popular “render como milho de Cabo Verde”. Da mesma forma, é a partir do facto de o milho ser o alimento das classes pobres, a sua inexistência atingindo principalmente este grupo, que podemos talvez compreender a expressão “vai-se ganhando para o milhinho”. A primeira referência que temos ao milho surge num documento de 1485, incluído com outros cereais. A situação repete-se em 1495. Depois, no foral de 1515, refere-se o dízimo da produção do milho e, na mesma data, temos informação sobre a importação de milho de Cabo Verde, algo que se repete nas atas da vereação funchalense, em 1497. Aliás, as referências ao milho importado para venda passam a ser assíduas nas vereações do Funchal, a partir da segunda metade do séc. XVI, situação reveladora da importância que este cereal assumiu no quotidiano e alimentação dos madeirenses. Paulatinamente, adquiriu importância na dieta das populações, de forma que, no séc. XVII, as freiras do Convento de Santa Clara serviam milho aos homens que trabalhavam na cerca do convento, certamente da produção da sua terra. Por outro lado, a partir da déc. de 40 do séc. XIX, o milho é usado como forma de pagamento dos serviços dos jornaleiros. Disto nos dá conta o governador José Silvestre Ribeiro, em 13 de fevereiro de 1847, ao assinalar a tradição de os “abastados” pagarem aos trabalhadores em milho e outros cereais ou legumes. A informação é mais clara quanto ao milho importado de diversas proveniências, como as ilhas de Cabo Verde, Açores e, depois, América do Norte e Angola. Já para a produção, cuja data remonta ao séc. XIX, os dados de que dispomos apontam para a presença nas produções da Ilha desde o séc. XV, ainda que com uma importância reduzida. É certo que a sua popularização na sociedade madeirense acontece a partir de meados do séc. XIX. É a partir desta data que vemos o milho ser usado como forma de pagamento, por parte das pessoas abastadas, da jorna dos jornaleiros, havendo igualmente referências assíduas ao seu uso na alimentação, o que poderá ser sinónimo da sua abundância na cultura local. A data exata da sua cultura na Ilha não está determinada, mas sabemos então que deverá ter existido desde o séc. XV e que, em 1792, o corregedor António Rodrigues Velosa, ao referir-se à Calheta, dá conta de searas de milho, o que rapidamente se expande a todas freguesias da Ilha, sendo referenciado para São Vicente em 1784. Os testemunhos da presença do milho na paisagem madeirense estão na toponímia, com a Fajã do Milho no Porto da Cruz, um sítio que aparece com esta designação no séc. XVII, ou a Moitada do Milho em Ponta Delgada e no Porto Moniz. Porém, tudo parece acontecer em pequenas quantidades. Assim, para São Vicente, o administrador do concelho refere que a produção se iniciou em 1839 em pequenas quantidades. Já para 1847, a Câmara do Funchal refere a relativa produção, que se resumiria apenas a 15 moios em toda a Ilha. Não obstante, as principais fontes de abastecimento continuam a ser as ilhas dos Açores, nomeadamente a ilha Terceira, a partir de 1847, a juntar-se a Cabo Verde. Desta forma, em 1847, José Silvestre Ribeiro apela aos administradores do concelho, no sentido da promoção desta cultura como forma de suprir as dificuldades alimentares da população rural, ao mesmo tempo que insiste em medidas facilitadoras da sua introdução. Contudo, os valores ainda são reduzidos: em Machico, e.g., em 1949 temos apenas 40 alqueires de milho. Ao mesmo tempo, aquele governador informa que não tolerará qualquer revolta dos agricultores, no sentido de obrigar os armazenistas a providenciar a venda do milho em armazém. Sabemos também que, no Porto Santo, esta cultura começou a ganhar importância nos princípios do séc. XIX, não existindo dados para a centúria anterior. Em 1809, a Ilha produzia 35 alqueires, passando, em 1811, para 1 moio e 30 alqueires, alcançando, em 1813, os 6 moios e 30 alqueires. Todavia, esta produção era muito insuficiente para as necessidades locais. Em 1821, a Ilha produzia 1100 moios e importava outros 7708 moios e 30 alqueires. O certo é que, desde o séc. XVIII, o milho era uma forma de matar a fome dos portossantenses e tinha de vir de fora, sob a forma de esmola. Foi isso que aconteceu em 1850, com a oferta de 8 moios por dois vasos de guerra americanos. Efetivamente, as circunstâncias de carência de cereais presidiram à entrada do milho na dieta alimentar dos portossantenses e madeirenses. Assim, no Porto Santo, ganhou espaço e importância a escarpiada, enquanto na Madeira as papas de milho – a polenta dos madeirenses, no dizer de Orlando Ribeiro – de algumas freguesias rurais mais pobres, e.g. Câmara da Lobos. Rapidamente o milho substituiu a falta do trigo na alimentação e ganhou importância no quotidiano e na mesa dos insulares. Este processo afirmativo do milho adquire dimensão a partir da déc. De 40 do séc. XIX, com as crises de fome e as facilidades na aquisição deste cereal, a preços mais competitivos em relação aos demais cereais, proveniente dos Açores mas acima de tudo dos Estados Unidos da América, a troco de vinho. Esta disponibilidade do milho a preços acessíveis conduziu à sua rápida afirmação na dieta alimentar, em substituição dos demais cereais e farinhas. Além do mais, a generalização do seu consumo sob a forma de papas tornava fácil a sua feitura. Não é, por isso, estranho que os Anais do Porto Santo refiram o caso de Félix de Melim Vasconcelos, que faleceu em 1837, com 73 anos, e que se alimentava de leite cozido com milho. Não só no Porto Santo, esta assiduidade do milho à mesa também acontecia na Madeira: em 1857, o cônsul inglês George Hayward notava que a refeição dos madeirenses consistia apenas em milho cozido, legumes e vegetais. Esta ideia do exclusivo do milho na alimentação surge já em testemunhos de estrangeiros desde 1827. Recorde-se que, em 1852, a Madeira importava já 9 a 10.000 moios de milho e apenas 5500 de trigo. O milho era servido de diversas formas na mesa rural madeirense: papas de milho, milho escaldado e estraçoado, maçaroca. A par disso, temos as chamadas bonecas de milho das romarias. Com a farinha, faziam-se as papas de milho e com o milho pilado fazia-se um caldo com cebo de carneiro ou boi, ou então umas papas com leite. Em 1813, na Camacha, comia-se o milho pilado com leite ou cebo de carneiro. Em 1889, na ementa do hospital de S. Lázaro, refere-se o prato de milho branco com peixe fresco ou bacalhau, que era servido aos doentes. Esta valorização do milho na dieta alimentar madeirense manteve-se no tempo e gerou alguma apreensão aquando das duas guerras mundiais. No princípio do séc. XX, a Madeira tinha em Angola um importante celeiro para o abastecimento de milho, sendo a região do Caála, no Huambo, conhecida como o celeiro de Angola, o seu principal provedor. Recorde-se a presença de madeirenses, desde finais do séc. XIX, na colonização deste planalto, com a ida de colonos apoiados pelo Governo, o que permitiu certamente a abertura desta via. A disponibilidade de vários mercados, bem como uma política governamental regulamentadora e protetora do abastecimento deste produto não impediu que, por diversas vezes, a Madeira fosse confrontada com situações de ruptura. Releve-se, e.g., a ação do conselheiro António Jardim Oliveira, secretário do Governo Civil, que, no decurso da guerra, em 1917, intimou o vapor Beiras e Portugal a descarregar milho que transportava para Lisboa, de forma a valer a população madeirense, o que lhe valeu a ele a perda do cargo, a favor do comandante militar, o Cor. Sousa Rosa. Nesta mesma data, pediu-se a Lisboa o fornecimento de 2000 t. No período da guerra, a situação de ruptura deste produto foi uma constante, de forma que sucederam várias situações, como a de 7 de julho de 1915, com o assalto popular ao armazém da firma Viúva de Romano Gomes & Filhos. Neste contexto de crise e racionamento da distribuição do milho, deveremos relevar a ação da Comissão Reguladora do Comércio de Cereais. A política de intervencionismo económico definida por Salazar levou à criação, em 1934, do Grémio do Milho Colonial Português e, em 1938, surgiu a delegação madeirense da Junta de Exportação dos Cereais, cujo papel no assegurar do abastecimento local foi fundamental na altura da Segunda Guerra Mundial, evitando situações de ruptura que haviam acontecido antes: o governador José Nosolini, apreensivo com a situação da guerra, solicitou ao Governo medidas especiais para a Junta, o que aconteceu pelo decreto 30.336, de março de 1940, na sequência do qual a Junta passou a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços do grão e farinha. Um dos aspetos mais evidentes da ação desta Junta foi a manutenção dos preços de venda ao público do milho, não obstante a sua oneração no período da guerra em mais de 115 %, não se refletindo até 1950 os valores referentes às despesas da comercialização. A déc. de 40 ficou marcada pelas medidas de racionamento lançadas pela Junta, que permitiram o abastecimento do espaço urbano e rural. Mesmo assim, em 1941 notam-se situações de ruptura nos meses de agosto, outubro e dezembro, tal como, depois, em abril de 1945. As medidas de racionamento obrigaram a que se estabelecesse a capitação semanal por pessoa de 1 kg nos centros populacionais mais importantes e de 1,8 kg no Porto Santo, enquanto nas freguesias rurais o estipulado eram 250 a 600 g. Neste período da guerra, passavam pelas mãos da Junta mais de 10.000 t de milho, maioritariamente de Angola, Cabo Verde e Açores. A publicação do decreto 43.874, de 24 de agosto de 1961, que extinguiu a delegação da Junta de Exportação dos Cereais, lançou algum alarmismo na cidade, tendo em conta os serviços prestados durante a guerra e o temor de que se gerasse alguma situação de ruptura no comércio do milho. Daí o apelo da Associação Comercial do Funchal, no sentido da substituição da Junta: os armazenistas de víveres fizeram sentir as suas preocupações através de Juvenal Henriques Araújo, presidente da Associação Comercial, em representação pública de outubro de 1961. Em 1962, no momento da extinção da Junta, Ramon Honorato Rodrigues, na qualidade de seu antigo presidente, publicou uma memória sobre os serviços prestados pela Junta em que revelava as dificuldades sentidas nos anos da guerra e a ação da Junta e do governador civil para solucionarem a situação, por meio do racionamento do milho. Para termos uma ideia das dificuldades, basta-nos aludir à capitação estabelecida pelo racionamento e relacioná-la com a média anterior à guerra: entre 1937 e 1939, o seu valor foi de 123 kg/ano, enquanto de 1942 a 1944 passou para apenas 80 kg. Houve anos em que a situação se agravou, e.g. em março e abril de 1945, quando a ração semanal por cabeça foi de apenas 550 g de milho. A partir de 1941, o racionamento foi determinado por concelho, de acordo com o número de cabeças de casal, variando o quantitativo conforme os stocks disponíveis. Recorde-se que, não obstante a insistência das autoridades no sentido da cultura do milho e de outros cereais, e o facto de, em muitos visitantes, vermos referências aos milheirais, a produção local era ainda muito reduzida para o elevado e generalizado consumo. Atente-se às medidas do governador José António Sá Pereira, logo em 1768, que iam no sentido do aproveitamento dos quase 3/4 da superfície da Ilha inculta, com a produção de cereais, que conduziria ao aproveitamento do espaço do Paúl da Serra e do Santo da Serra. Nesta data, a Ilha produzia apenas 5098 moios de cereal, estando excluído o milho desta contabilização, porque ainda não se produzia em quantidades suficientes, dando para abastecer a população por apenas quatro meses. Depois, só a partir da déc. de 40 do séc. XIX voltamos a ter dados da produção que elucidam sobre uma evolução positiva no crescimento da produção do milho. Assim, para os anos de 1847 a 1850 referem-se apenas 750 hl de milho, que em 1851 são já de 3073, em 1855 de 6810 e em 1859 de 6902 hl. O trigo e a cevada continuam a ter uma posição superior na produção local, pelo menos até 1891 quanto à cevada, e 1908 quanto ao trigo. Contudo, a produção continuará a ser escassa e sem condições de satisfazer as necessidades de ambas as ilhas do arquipélago. Desta forma, a solução para o seu abastecimento estava no mercado externo e, para isso, havia necessidade de facilitar a sua importação, através da redução ou isenção dos direitos de importação. Perante isso, temos então a importação de grão estrangeiro (trigo, milho e cevada, para além das farinhas). Assim, para o período de 1783 a 1786, temos 9386 moios de grão e 13.670 barris de farinha; do grão, temos 3224 moios de milho, que assume já uma posição cimeira nestas importações. No período compreendido entre 1834 e 1843, voltamos a ter dados sobre a importação de cereais (trigo, milho, cevada centeio, feijão, ervilhas, aveia), em que o milho se apresenta, de novo, em posição destacada, seguido do trigo. Assim, para este período, tivemos 206.902 moios de milho e 184.814 de trigo. A partir do séc. XIX, portanto, a aposta preferencial é no milho. A capacidade de autoabastecimento de cereais na Ilha era limitada, de forma que a produção de trigo local dava para 2 meses, enquanto a de milho para apenas 10 dias. Os dados da importação das décs. de 60 e 70 apontam para a importação de 20.000 t de milho. O abastecimento mensal rondava as 4000 t, sendo 1500 para o consumo humano e o restante para os animais de criação, sendo as 1500 t de milho branco e o demais de amarelo. A falta de um sistema de armazenamento obrigava, no entanto, a que o abastecimento fosse feito quinzenalmente e que se gerassem, por vezes, situações de ruptura. De facto, um dos problemas mais evidentes do abastecimento da Madeira de milho e dos demais cereais relacionava-se com as dificuldades na estiva e no armazenamento, com implicações na disponibilidade do cereal, por falta de meios de assegurar uma reserva adequada, evitando situações de ruptura. A par disso, o trabalho de estiva no porto era demorado e caro, por falta de silos terminais para o desembarque. Assim, o milho desembarcado, pelos custos da estiva, sacos e armazenamento, era onerado em mais 65 %. Daí o incessante apelo à construção de silos no porto, coisa que só veio a acontecer em 1987, mantendo-se até lá a situação onerosa dos armazéns. Um dos locais que mantém uma ligação muito forte a esta cultura, havendo disso testemunho em diversos textos de literatura de viagem, é Santana. Talvez para relevar esta relação do concelho com o milho, em 28 de fevereiro de 1957 decidiu-se que as armas da Câmara seriam dois ramos de milho verde, espigados de ouro. Recorde-se que, aqui, a Junta Geral fez, em 1971, ensaios para a cultura de milhos híbridos e dos chamados milhos de Santana. Nesta época, refere-se que o melhor milho da Ilha era o de Santana. Para além disso, deveremos ter em conta a utilização do milho na produção de aguardente, que aconteceu em 1873, mas que, em 24 de dezembro desse ano, o regulamento do regime sacarino proibiu. Entretanto, em 1920-1921, João Higino Ferraz (1884-1946) fez experiências na sua casa, ao Socorro (no Funchal), no sentido da sacarificação do milho através do ácido sulfúrico.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

História Económica e Social

mosteiro novo

O conjunto edificado denominado “Mosteiro Novo”, que foi depois seminário, embora tendo essa designação, nunca chegou a ser mosteiro, nem sequer recolhimento. Enquadra-se, assim, na vasta série de instituições pias criadas em momentos difíceis relativamente às quais, por morte dos instituidores, desaparece a vontade e os fundos para as instituir verdadeira e concretamente. A doação destes edifícios para um futuro mosteiro ou recolhimento foi feita pelo Cón. Manuel Afonso Rocha, a 17 de dezembro de 1638, perante um tabelião e o bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650). Declarou então que tinha dado início a um mosteiro composto de casas, oficinas, igreja e coro, sob a invocação de S. José, destinado a religiosas ou religiosos, sob a cláusula de lhe celebrarem algumas missas e ofícios pela sua alma. Como o conjunto não estava concluído, entregava o governo e a sua administração à proteção do prelado e seus sucessores, dentro da intenção de o mesmo vir a servir de “recolhimento para damas ou mulheres de qualidade”. Caso tal não fosse possível, gostaria que o mosteiro fosse entregue “a religiosos virtuosos mendicantes ou outros que ali fizessem mais serviço a Deus” (SILVA e MENESES, 1998, II, 398-399). As informações do cónego, em princípio afastavam-se algo da realidade, não existindo qualquer “igreja com coro” e somente, na melhor hipótese, uma capela ou um oratório privado, pois que não se conhece para ali qualquer autorização de culto passado pela autoridade eclesiástica. Cerca de 10 anos depois, em 1647, o prelado dava autorização para ali residirem os sobrinhos do fundador, o Cón. António Spranger Rocha, seu irmão, o P.e Inácio Spranger e suas irmãs. Tudo indica ser então e ainda somente um espaço residencial e, muito provavelmente, a autorização do prelado era a oficialização da situação que se mantinha do anterior. Esta família viveu aí ao longo de todo o século, pois em 1691 faleceu nestas casas o também Cón. António Spranger, sobrinho dos anteriores. As casas devem ter ficado então devolutas, pois em finais de 1698, o bispo D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1722), pouco depois de tomar posse da Diocese, o que ocorreu a 28 de agosto de 1698, transferiu para ali o seminário diocesano, até então alojado no chamado colégio de S. Luís anexo à capela daquela evocação e ao paço episcopal. A 3 de janeiro de 1702 emitia um decreto com os novos estatutos do seminário, os quais foram confirmados, depois de ouvidos os elementos do mesmo, passando a ter um reitor, 10 colegiais e um número de pensionistas a livre arbítrio do bispo. Por 1720, Henrique Henriques de Noronha descrevia o conjunto edificado, então sob a evocação de S. Gonçalo e com uma “nobre igreja” dedicada a Jesus, Maria e José, onde existiam dois altares laterais, um de S. Gonçalo de Amarante e outro, de N.ª S.ra do Bom Despacho (NORONHA, 1996, p. 304). O terramoto de 1 de novembro de 1748 afetou bastante o edifício, tendo sido retirado dali o seminário, mas, por volta 1760, este regressou às mesmas instalações. O conjunto edificado que chegou até nós deve ser produto das obras dos finais do séc. XVII e inícios do XVIII, embora com obras de reabilitação dos anos seguintes, mas que não alteraram substancialmente a organização geral da estrutura. O conjunto do antigo Mosteiro Novo e do seminário apresenta um amplo pátio interior, sobre o qual corre o corpo que dá para a rua, que ainda no séc. XXI era chamada R. do Seminário, com uma pequena capela a nascente, profanada e sem qualquer recheio. A entrada para o pátio fica a poente desse corpo, parecendo manter preexistências dos finais do séc. XVII ou inícios do XVIII, com dois interessantes lanços de escadas e entrada para o piso nobre com alpendre refeito no séc. XIX. Ao longo da rua apresenta três portais ao gosto das primeiras décadas do séc. XVIII, mas a organização da fenestração parece anterior, salvo a janela com balcão, que deve corresponder à campanha de obras do séc. XIX. O edifício poente do pátio parece ter sido montado para os seminaristas internos, tal como o que corre sobre a rua parece ter sido ocupado pelos quadros superiores do seminário. O seminário foi transferido, em 1788, para o antigo colégio dos Jesuítas, mas logo em 1801 voltava ao edifício original, dada a instalação no colégio das forças inglesas de ocupação. Em 1909, o seminário era transferido para o novo edifício levantado na cerca do extinto convento da Encarnação, construído então pela Junta Geral do Distrito, mas a 20 de abril de 1911, com a extinção dos seminários pela República, voltava a funcionar, sem carácter oficial, nas antigas instalações do Mosteiro Novo. Em breve também o edifício era confiscado pelo Estado, tendo passado, em 1971, por uma remodelação total para a instalação do Laboratório Distrital de Análises Dr. Celestino da Costa Maia, até então a funcionar num edifício da R. das Pretas. Em 1976, e com a transferência do laboratório, o edifício ficava devoluto, tendo tido nova remodelação em 1988, e nova designação, então de Laboratório de Saúde Pública Dr. Câmara Pestana. Em 2000 voltava a estar parcialmente devoluto, aguardando definição de reutilização.     Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Arquitetura Património Religiões

herédia, família

António de Herédia (c.1560-1624), o primeiro deste apelido que chegou à Madeira em 1602, natural de Ávila, Castela, entrou em Portugal com o exército do duque de Alba em 1580. “Os deste apelido procedem de D. António de Herédia, o primeiro que passou a esta ilha da Madeira em 1602” (CLODE, 1952, 167). Foi capitão, depois comandante da companhia do presídio castelhano e, mais tarde, governador substituto. Morreu em 12 de março de 1624. “Casou com D. Ana de Cuebas, natural das Ilhas Canárias e filha de D. José de Estupinga e Cuebas, espanhol nobilíssimo” (Id., Ibid.). A guarnição espanhola foi muito contestada na Madeira, mas “os seus descendentes acabaram por se ligar às mais importantes famílias nobres locais, originando uma linhagem muito poderosa e contestatária dos poderes administrativos” (VERÍSSIMO, 2000, 157). Francisco Corrêa Herédia (1793-1880), avô paterno do visconde da Ribeira Brava, pertenceu ao Conselho de Sua Majestade, foi deputado pela Madeira nas sessões legislativas de 1842 e 1845 e presidente da Junta Governativa que se organizou na ilha da Madeira aquando do movimento da Maria da Fonte; foi também presidente da Câmara do Funchal e governador civil interino. Casou-se com sua prima coirmã, Ana Margarida de Bettencourt Acciaiuoli e Sá Escórcio Drumond, e tiveram, entre outros filhos, António Corrêa de Herédia (1822-1899), “notável jornalista e polemista, assim como uma das importantes figuras depois da Regeneração. Exerceu inúmeros cargos públicos como presidente da câmara do Funchal, procurador à Junta Geral, secretário-geral e governador interino do Funchal, diretor das alfândegas do Funchal, do Porto e de Lisboa, assim como diretor-geral das alfândegas. Representou a Madeira nas sessões legislativas de 1857 a 1858, 1858 a 1859 e 1865 a 1868” (CARITA, 2008, 123). Casou-se com Ana de Bettencourt e tiveram Ana Amélia de Herédia e Francisco Correia de Herédia, agraciado com o título de visconde da Ribeira Brava (em decreto de 4 de maio de 1871), o qual, depois da abolição dos títulos nobiliárquicos, passou a chamar-se Francisco Correia de Herédia Ribeira Brava. Francisco Correia de Herédia nasceu na Ribeira Brava (Madeira) a 2 de abril de 1852 e faleceu em Lisboa, a 16 de outubro de 1918, assassinado durante a “leva da morte” no consulado de Sidónio Pais. Casou-se em Lisboa, em 1867, com Joana Gil de Borja de Macedo e Menezes, natural de Beja, nascida em 8 de abril de 1851 e falecida na Madeira em 4 de setembro de 1925. Notável sportsman, em particular na esgrima e no tiro, foi extraordinário promotor da prática desportiva na Madeira, transmitindo essa apetência aos seus descendentes. Foram seus filhos António Gil de Borja de Macedo e Menezes Correia de Herédia (1872-1966), natural de Miragaia, Porto, casado em Lisboa a 19 de maio de 1899 com Alice de Oliveira Guedes (1876-1943), com quem teve Josefina Guedes de Herédia (1900-1987) e António Guedes de Herédia (1901-1997), atleta olímpico em Amesterdão (1928), Berlim (1936) e Londres (1948); Francisco Gil de Borja de Macedo e Menezes Correia de Herédia (1873-?), s.g.; e Sebastião Sancho Gil de Borja de Macedo e Menezes Correia Herédia (1876-1958), que nasceu em Lisboa, tendo vivido largos anos na Madeira, onde foi governador civil. Exímio atleta em ciclismo e em esgrima, este último é considerado a primeira figura do olimpismo madeirense; atleta olímpico em Amesterdão (1928), nasceu no Porto, casou-se com Maria d’Assumpção Garcia de Freitas Branco (1875-1953), de quem teve Sebastião de Freitas Branco Herédia (1903-1983), atleta olímpico em Amesterdão (1928), onde, curiosamente, também se encontrava o pai, e em Los Angeles (1932), em pentatlo moderno; Maria Luísa de Freitas Branco de Herédia (1905-1961), s.g., uma das primeiras mulheres portuguesas a integrar uma comissão técnica do COP e defensora da participação desportiva das mulheres; Joana de Freitas Branco de Herédia (1907-2003), s.g., Ana de Freitas Branco de Herédia (1910-?), s.g., e José de Freitas Branco de Herédia (1916-1993). Descende desta família D. Isabel de Castro Curvello Herédia (casada com D. Duarte Pio de Bragança), filha de Jorge de Herédia e neta de Sebastião de Freitas Branco Herédia.   Francisco J. Fernandes (atualizado a 01.02.2018)    

História Económica e Social Personalidades

pesos e medidas

Compete à metrologia a definição dos padrões de medida e da tecnologia de medição. Esta surge como uma imprescindibilidade do sistema comercial e a sua uniformização sobrevém da necessidade de facilitar tal sistema. Apresenta-se uma análise e uma comparação das diversas medidas e pesos usados na Ilha e considera-se a intervenção das autoridades no sentido de evitar a fraude. Palavras-chave: Medidas; Pesos; Metrologia.   Compete à metrologia a definição dos padrões de medida e da tecnologia de medição. Esta é uma imprescindibilidade do sistema comercial e a sua uniformização sobrevém da necessidade de facilitar tal sistema. O primeiro passo foi dado pela França, em 1771, ao aprovar o sistema métrico que, depois, foi aprovado pelos demais países. Em 1867, foi criado em Paris o Comité de pesos, medidas e moeda, com o intuito de aperfeiçoar a uniformização da metrologia mundial, de que se destaca, do ano de 1875, a Convenção do Metro, assinada por 17 países, e que seria atualizada em 1960. Em Portugal, a primeira tentativa de unificação da metrologia aconteceu no reinado de D. Pedro I. Então, as Cortes de Elvas de 1361 estabeleceram a alna, em lugar do côvado, como medida para os panos; o côvado para as distâncias em geral; e o almude para o vinho. A reforma manuelina permitiu que, em 1499, todos os concelhos fossem fornecidos de novos padrões e de cópias dos padrões reais. Diz-se que D. Manuel ofereceu, em 1499, ao senado de Machico, um jogo de pesos-padrão; na verdade, o rei terá mandado distribuir os padrões dos pesos por todos os municípios, incluindo, os municípios madeirenses. Os pesos-padrão ficavam guardados na Câmara, numa arca com duas chaves, sendo uma para o afilador e outra para o procurador do concelho ou vereador. Ficou por fazer a reforma das unidades dos volumes para os secos (cereais), o azeite e o vinho. Em 1575, no reinado de D. Sebastião, deu-se a reforma das unidades de volume, ficando proibido o coágulo e sendo executadas todas as medidas de volume por rasura. Coube a D. João VI adaptar os sistemas de unidade ao princípio decimal. Em 1814, foram estabelecidas equivalências para as unidades de volume, de comprimento e de peso, e designados novos padrões, de acordo com protótipos franceses que foram depois distribuídos aos concelhos. Em 1828, fizeram-se estudos comparativos sobre os pesos e as medidas, a cargo dos oficiais do corpo de engenharia, constituído, no Funchal, por a Manuel Gregório Moniz, Luís da Costa Pereira e João Peres Telo de Vasconcelos. Todavia, o sistema métrico decimal só viria a ser adotado em 13 de dezembro de 1852. Pela reforma de 1865, estabeleceu-se um peso e uma medida comum em território nacional. Até então existiam diversas formas para estabelecer as medidas de volume e capacidade, que obedeciam a regras locais, e essas eram diferenciadas, ainda, entre os populares e a atividade comercial. Ora, esta variedade na forma de entender a capacidade e o volume de pesos e medidas, embora quase sempre conhecidas de todos, passando de geração em geração, acabava por gerar, por vezes, situações de dolo entre os intervenientes nas operações de troca que implicavam o seu uso, ou na fiscalização das autoridades para o pagamento de direitos e impostos. Em 1868, nos tumultos que aconteceram em S. Vicente, a população atirou ao mar os pesos-padrão e outros usados nas vendas. A generalização das medidas uniformizadoras dos pesos e das medidas tardou muito em merecer a aceitação popular. Desta forma, foram sendo estabelecidas medidas punitivas para os refratários: por lei de 17 de maio de 1877 e pela portaria do Ministério das Obras Públicas de 13 de dezembro de 1867. A regulamentação em vigor em 2015 resultava das alterações acontecidas em 1990, com a publicação do dec.-lei 291/90, que adaptou o controlo metrológico ao direito comunitário. Na regulamentação das medidas, as autoridades intervêm apenas em seu favor. Competia ao município, através dos almotacés e afiladores, proceder ao afilamento das usadas para todos os atos de venda ao público, como de transporte e exportação de produtos. Alguns espaços, como o açougue, as vendas e os moinhos, eram alvo de fiscalização, por parte dos almotacés, quanto ao uso correto de pesos e medidas. Uma atenção particular era dada aos oficiais dos ofícios de carpinteiro, de tanoeiro, de chapeleiro e de barrista, os quais tinham a missão de construir recipientes para o uso de medida ou para o transporte dos líquidos e sólidos. As posturas determinavam medidas até mesmo para as panelas, as tigelas e as frigideiras, bem como a forma de medida para a venda de diversos produtos. Assim, o toucinho só poderia ser vendido ao público por arráteis e quartas; quanto aos porcos e cabras, os criadores poderiam apenas vendê-los aos quartos. As mesmas posturas insistiam na fiscalização dos pesos e das medidas para os ofícios dedicados à venda a retalho: Veja-se e.g.: “E serão obrigadas todas as pessoas que comprarem e venderem a ter os ditos pesos e medidas pela maneira declarada nos capítulos atrás, afinados, convém a saber: os pesos miúdos pelo afinador da cidade, e arroba e meia arroba afinarão e cotejarão na Câmara com o Padrão, e isto se entenderá em toda a pessoa de qualquer qualidade que seja, assim lavradores de açúcar como mercadores, sob pena de 2000 réis, e poderão ser demandados pelo engano, e os pesos grandes bastarão pelo mês de janeiro de cada ano” (SOUSA, 1 maio 1949, 199). O município atribuía-lhes especial atenção, através das regras inscritas nos códigos de posturas, e na fiscalização assídua feita por funcionários habilitados aos espaços de venda ao público onde estes eram usados. Desta forma, eram aferidos em janeiro de cada ano e revistos semestralmente pelos afiladores. As medidas usadas poderiam ser de barro, folha e, em alguns casos, de madeira. Entre o almude de barro e o de folha havia uma diferença de duas canadas. A afilação obrigatória das medidas passou a fazer-se, desde 1484, de acordo com a forma que se fazia em Lisboa. No princípio do séc. XXI, continuava a ser da competência dos municípios a aferição dos pesos e medidas e a fiscalização dos sistemas de contagem do tempo, em que se incluem os parquímetros e os taxímetros. As demais medidas, como as bombas auto, as balanças, os manómetros e os contadores, tornaram-se uma competência da Junta Geral e, com a introdução do regime de autonomia, transitaram para os serviços de comércio e indústria. Líquidos De entre os líquidos mais importantes do quotidiano madeirense com valor económico local e de exportação, o vinho adquiria uma posição fundamental. Desta forma, a maioria dos problemas em torno das medidas de capacidade para os líquidos prende-se com este produto. A primeira medida, tomada em 1485, foi no sentido de que o mesmo só podia ser medido ou vendido ao público por almude de 13 canadas, equivalente a cerca de 20 litros, estando assim proibida outra medida, como jarras e botijas. Mesmo assim, as botijas continuaram a ser usadas na venda de outros líquidos, definindo a vereação, em 1547, que a sua capacidade deveria ser, para a de uma arroba, de 7,5 canadas, ficando a de meia arroba por 3 canadas e 3 quartilhos. O barril usado para carregar o mosto do lagar à loja no Funchal ou ao porto mais próximo era de 27 almudes, enquanto a pipa carreteira era de 12 barris de 3 almudes e 1 de 2 almudes. Pela postura de 1842, o barril do carreteiro ou de mosto, usado no transporte do vinho desde o lagar, era de 19,5 canadas. Em 1847, passou para 2,5 almudes, sendo diferente do das tabernas que tinha a medida de 2 almudes e 1 almude. Note-se ainda que a canada se diferenciava na capacidade quanto ao líquido medido. Assim, a de aguardente era de 7 canadas, enquanto a de vinho, de 14 canadas. A venda do vinho ao público só acontecia em locais autorizados, nomeadamente nas tabernas, onde estava sujeito a um controlo rigoroso, no sentido de evitar o dolo e permitir o correto valor da imposição. Assim, cada espaço deveria dispor de duas pipas, sendo uma para o branco e a outra para o tinto. A fim de evitar o engano, estava ainda condicionado o tipo de recipiente usado. Desde 1522, ficou estabelecido que a sua venda só poderia ser feita pela medida de almude, que correspondia em média a 20 litros. As posturas assinalam que a medida oficial deveria ser o galão, mas o alvará de 23 de dezembro de 1715, que estabelece o imposto sobre a aguardente, refere o almude. Por postura de 7 de dezembro de 1854, voltou-se ao galão, uma medida de líquidos equivalente a 3,5 ou 3,6 l. Outra das questões prende-se com a taxação da medida do vinho a partir de 1485, com a imposição. Em 1485, o almude passou de 12 para 13 canadas, sendo a referida canada para a imposição. Já em 1637, o almude, que era de 14 canadas, passou para 15. A imposição do vinho de 1568 foi lançada em 2 canadas por almude de 14 canadas, ou seja, a sétima parte, idêntica à do regimento de 1628, passando a pena aos infratores para 2000 reais. O vereador mais velho da Câmara era o juiz da imposição, tendo alçada sobre o feitor e o escrivão da Câmara. Os vereadores tinham ainda o encargo de fazer o assento dos preços, do dinheiro que recebiam, das pipas vazias e dos almudes restantes nas pipas já abertas que encerravam. A partir daqui, estabeleciam-se os direitos, que eram pagos aos quartéis: “Estes vinhateiros vêm pagar cada três meses o seu quartel e cada pipa que tem vinte e seis almudes se lhe dá de quebra dois almudes, e dos vinte e quatro almudes se lhes faz conta a duas canadas que pagam de cada almude à razão do preço como se vende, e assim pagam as outras pessoas que têm uma pipa, e duas são obrigadas em acabando de vender seus vinhos de vir logo pagar as imposições [...]” (VIEIRA, 2003, 206). Para a venda maior no mercado local ou para exportação, usava-se o vasilhame de madeira. O principal problema deste vasilhame prendia-se com a dificuldade em estabelecer, de forma segura, a sua capacidade. Uma das funções do tanoeiro era estabelecer a medida exacta por barril ou pipa que construísse, sendo depois o trabalho fiscalizado por um afilador, a quem competia fiscalizar. Qualquer reparo neste vasilhame obrigava a nova aferição e ao estabelecimento de uma contramarca. Mesmo assim, não era uniforme a regulação destas medidas. A medida do barril de mosto era igual na vertente sul e norte da ilha, sendo de dois almudes e meio. A mudança acontecia com o vinho depois de fermentado e limpo das borras, que tinha, no Sul, a quebra de meio almude. Ainda de acordo com o material de construção das medidas se assinalam diferenças. O barril, tanto em S. Vicente e Porto Moniz correspondia a 35 canadas; mas verificava-se que, nas primeiras localidades, o vinho era medido em canadas de folha e, no Funchal, em canadas de barro, implicando uma diferença de 2 canadas a mais no segundo caso, correspondendo as 12 canadas de folha a 14 de barro. Também existiam diferenças assinaláveis, consoante a pipa de 30 almudes fosse usada para mosto ou vinho limpo: era de 4 almudes a quebra que sucedia ao processo de trasfega e limpeza das borras e também de 4 almudes relativamente ao vinho limpo. Mas estas medidas não eram uniformes. Em Machico, a pipa era, para ambas as situações, de 10 barris de 2 almudes, não se contando a quebra do vinho limpo. Depois, diferenciava-se a chamada pipa carreteira, que permitia a circulação interna, nomeadamente entre os portos locais e o Funchal, e a de exportação, conhecida como de embarque. Em 500 litros estabelecidos para a medida de pipa, havia uma quebra de 2 litros na primeira. A partir de 1755, o Conselho da Fazenda estabelece para esta pipa de embarque a medida de 23 almudes. Anotam-se, ainda, outras medidas para a pipa, que tanto poderia ser de 389,95 litros como de 429 litros. A não uniformização do vasilhame de embarque do vinho causava graves inconvenientes na Alfândega, aquando da estimação do vinho para serem lançados os direitos. Daqui resultou a necessidade de estabelecer medidas, no sentido de pôr cobro aos inconvenientes. A Junta, por edital de 1687, ordenou o dever de marcar e assinalar todos os barris e caixões que fossem para bordo dos navios. Em 1762, o holandês Miguel Noulan carregou 10 pipas de vinho de 30 almudes, sendo considerado pela Junta com a medida corrente de 23 almudes. O cônsul inglês e os homens de negócios apresentaram um protesto, “notando o engano que experimentavam nos vinhos que compravam por pipa pela incerteza da medida delas” (VIEIRA, 2003, 372). É neste quadro que, em 1789, aparece o ofício de marcador das pipas, cuja função era controlar a medida no ato de construção das mesas pelo tanoeiro; António José Drumond Novais e Henriques foi provido neste ofício. Por provisão régia, ordenou-se ao juiz da Alfândega que levantasse o embargo e mantivesse a medida de 23 almudes, de modo a não afugentar os comerciantes e embaraçar a saída dos vinhos, de que resultaria grave prejuízo à Fazenda Real. Em 1818, retomou-se a ordem de 1687, ordenando-se que todas as pipas que se embarcassem, desde 1 de Janeiro de 1819, levassem a marca “dos galões inteiros, ficando os mesmos despachantes sujeitos a todas as penas de extravio dos reais direitos, além de se lançarem os créditos àqueles que o tiverem, no caso que por algum modo se verifique algum dolo ou malícia” (Id., Ibid.). Em abono da medida e da questão surgida em 1761, temos uma ordem de 1819 da Junta à Alfândega, autorizando os comerciantes a embarcarem vinho em diferentes vasilhas contanto que declarassem a totalidade dos almudes. Os guardas da casa do embarque deveriam seguir as recomendações, pois, caso contrário, seriam punidos com a suspensão do ofício. A medida foi um incentivo ao dolo da classe mercantil, que procurava todos os meios para escapar aos direitos. Assim o entendeu, em 1824, o juiz da Alfândega, ao notar uma diferença de 2 almudes de vinho em 18 vasilhas de embarque. Mas a Junta viu nisso um abatimento ocasional provocado pela viagem para o embarque, ordenando o despacho imediato. Paulo Dias de Almeida apresenta, na descrição da Ilha, de 1817-27, as medidas em uso para os líquidos. [table id=103 /] José Silvestre Ribeiro refere, em 1850, a pipa de mosto de 26 e 30 almudes e o barril de 2 almudes. Mas existiu ainda a pipa de 25 almudes, no Porto Santo, e a de 20 almudes, em Machico. Perante esta situação, não se tornava fácil garantir, a partir do vasilhame, uma medida correta para o vinho. A uniformização das medidas, desde 1865, conduziu ao estabelecimento de uma tabela de equivalências, onde as diferenças mais significativas aconteciam com a medida de almude em S. Vicente e Porto do Moniz (Id., Ibid., 209). [table id=104 /] A uniformização das medidas, nomeadamente as do vinho, nunca foi alcançada em pleno, persistindo até ao séc. XX diferenças na medida do barril em toda a Ilha, como se pode verificar numa relação de Eduardo Pereira de 1967: [table id=105 /] A necessidade de definir uma medida padrão, de forma a evitar o dolo, levou a que ficasse assim estabelecido o seguinte: [table id=106 /] Relativamente à agricultura, foram definidas outras medidas para a água. Enquanto a água das levadas era regulada, na sua utilização, através da contagem do tempo em horas, já para a de nascentes se estabelecem medidas populares, como telha, meia telha, um quarto de telha, ou pena, manilha, anéis, meia pena e um quarto de pena. Uma manilha correspondia a 16 anéis e cada anel a 8 penas. Em 1849, refere-se a manilha com um orifício de um palmo de circunferência. No começo do séc. XXI, estas medidas continuavam a ser usadas em locais onde não existia a distribuição de água pelos municípios, estando a cargo de particulares a sua assistência e manutenção. Esta distribuição de água mereceu muitas vezes o nome do seu proprietário, como “água do Blandy” ou “água do Spínola”. A localidade de Água de Pena veio buscar aqui a sua origem. Na documentação da Junta Geral, persistem até à década de 60 do séc. XX indicações sobre água de pena (a água distribuída de acordo com uma determinada bitola do cano) no sítio da Torre, Camacha, Caniço, Gaula, Arco da Calheta, Estreito de Câmara de Lobos, Porto Moniz, Santo da Serra, Santa Cruz, Santa Maria Maior, S. Roque, Monte, e Campanário. Sólidos As medidas de capacidade para os sólidos são usadas para medir o açúcar no engenho, bem como os cereais na eira e no moinho. Em qualquer das situações, a medida era usada e fiscalizada por forma a retirar-se o imposto. No caso do açúcar, retirava-se um quarto ou um quinto da produção em arrobas e, no dos cereais, a décima parte; o valor correspondente aos encargos com os direitos dos capitães era medido em maquias e estava a cargo do rendeiro ou maquieiro. As diferenças no alqueire andavam por vezes em 42 %. As posturas davam toda a atenção aos moinhos, determinando que o moleiro deveria ter “alqueire e meio alqueire e de dois e três e do mais que nelas couber, afiladas pelo afilador da cidade, e assim maquia e meia maquia” (SOUSA, 3 abr. 1949, 167). Aqui, o peso era feito no momento da entrega do cereal e conferido, depois, com o retorno da farinha. No caso de falta verificada pelo pesador, o moleiro deveria prover a diferença, tendo para o efeito uma caixa ou alcofa com farinha disponível. As carreteiras que levavam a farinha a seus donos faziam-no a peso. O pão era, depois, feito nos fornos para venda ao público, tendo uma medida estipulada: “Quem amassar para a praça fará pão de real e de dois réis [...] e isto de trigo de 100 réis para baixo, e sendo o trigo de 100 réis para cima farão pão de 2 réis e de 4 réis [....]” (Id., 20 fev. 1949, 127). Em 1738, as posturas definem outra medida para o pão: assim, o pão alvo deveria pesar 32 onças e 1 oitava; 24 onças e meia, 12 onças e 2 oitavas e 16 onças e meia oitava. A partir de 1852, passou a usar-se o sistema métrico decimal. Deste modo, em 22 de junho de 1855, a Junta Geral define os pesos de venda do pão ao público em 1000 g, 800 g, 500 g, 400 g, 325 g, 250 g e 65 g. Desta forma, vemos, nas posturas de Câmara de Lobos para 1839, que as casas de amassar pão deveriam ter medidas, pesos e balanças. A medida para o açúcar era a arroba, que se dividia depois em arráteis, quartas, quintais, libras e onças. Já para o mel, o remel, as escumas e as rescumas, que se apresentavam sob a forma líquida, as medidas eram o almude, o barril e a pipa. Para a marmelada e as conservas, utilizavam-se as bucetas. O açúcar era muitas vezes contabilizado em pães, cujo fabrico se fazia em formas, de acordo com uma bitola estabelecida. Para o transporte da cana, usava-se como medida o feixe, e o valor estimado da moenda de um engenho, no séc. XVI, era de uma tarefa, isto é, 480 arrobas de cana. No Brasil, o pão tinha de peso entre meia arroba e uma arroba, enquanto na Madeira, em 1501, o Rei determinou que as formas realizadas em Portugal (e portanto na Madeira) se fizessem por uma bitola, de forma a evitar danos no seu peso. Recorde-se que D. Afonso V estabeleceu um padrão, segundo o qual uma arroba correspondia a sete a oito formas. Depois, no Regimento do Rei D. Manuel I, de 27 de Março de 1501, o padrão da forma deveria ser de modo a que seis pães de açúcar correspondessem a uma arroba. O transporte dos pães de açúcar, devidamente embalados, fazia-se em caixas de madeira que podiam ter uma capacidade de 35 arrobas. Na Madeira, em 1523 e 1524, temos referência a caixas de rapadura com o valor de 7 e 10 arrobas. Esta situação perdurou até ao séc. XIX, altura em que as caixas deram lugar aos sacos de estopa. No Brasil, as caixas eram de 70 arrobas, passando, por carta régia de 24 de novembro de 1858, para o peso bruto de 40 arrobas. André João Antonil apresenta as caixas com 35 arrobas, descrevendo, também, o processo de embalagem. A caixa custava cerca de 1200 reais. e era identificada por três marcas, a ferro ardente ou a tinta, onde se informava o número de arrobas e o nome do engenho e do proprietário ou mercador. São conhecidos diversos tipos de embalagens: a caixa de encomenda usada para o transporte do açúcar mais fino, que era embalado em fechos de até 12 arrobas; o fecho, que era uma caixa média, entre o cunhete e a caixa propriamente dita, com capacidade para 12 arrobas; e o cunhete, que era uma caixa de madeira leve de menor tamanho. F. Mauro refere que, na Holanda, as caixas de açúcar vindas do Brasil e de S. Tomé tinham medidas distintas. As primeiras, que até 1609 correspondiam a 350 libras de Amsterdão (=0,49409 kg), passam nessa data para 450 libras. Já as segundas, que eram de 150 libras, passam para 50 libras. Nas Canárias, a caixa não tinha uma medida padronizada. Enquanto em Tenerife era de 16 arrobas, em Gran Canaria, a bitola era de 15 a 18 arrobas. Para além desta, assinalam-se outras medidas para embalar o açúcar: cajón = 6 arrobas, sendo de 1 a 3 arrobas quando usada na conserva; tercio de caja = 5,3 arrobas; cuarto = 4 arrobas; cajeta = 1,23 arrobas; libra = 460 gs.; pão = 5 kgs; tonelada: 4 caixas ou 2 pipas. O remel era exportado em pipas, barris, cuartos e tercios: barril: 53 l = 3,53 arrobas; pipa: 12 barris = 636 kg = 42,4 arrobas; cuarto: 23 arrobas; tercio: 30,6 arrobas; barrilete: 0,5 arrobas. Os pesos Os pesos estavam também sujeitos a fiscalização municipal, sendo estabelecidos a partir de um padrão existente nos paços do concelho, que seguia a medida dos existentes em Lisboa, trazidos com o regimento por Garcia d’Avilla. A vereação nomeava um aferidor que, juntamente com o almotacé, conferia semestralmente a fidelidade dos pesos usados no mercado público e nas lojas. Em 1505, refere-se os danos causados pelo uso dos chamados pesos novos, recomendando-se os antigos para a carne, o queijo, o toucinho e o açúcar. Recorde-se que as posturas estabeleciam ainda a proibição de fazer pesos. Também se diferenciava o tipo de pesos usados para pesar o açúcar, que eram pequenos, de arroba e arroba e meia, e tinham uma contramarca própria. Popularmente, usaram-se diversas formas de peso para os diversos produtos transacionados. Assim, para a lenha, as posturas de Câmara de Lobos referem a indicação do molho de lenha, que deveria ter 15 paus com o comprimento de 10 palmos e a grossura de 2 palmos e meio. Para os vimes, usava-se os feixes com 6 a 9 palmos de perímetro. No acervo do Museu da Cidade do Funchal, existem três conjuntos de medidas-padrão da época de D. Manuel, certamente os que o monarca terá enviado à Ilha aquando da sua revisão. Apresentam a inscrição “O muito alto e excelentíssimo rei dom Manuel o primeiro de Portugal me mandou fazer ano do nascimento de noso snor ihv xpo [Nosso Senhor Jesus Cristo] de 1499”. De acordo com a informação incluída por Rui Carita no catálogo do referido museu, os mesmos seriam oriundos dos municípios de Santa Cruz, Machico e Ponta de Sol. O acervo do museu A cidade do Açúcar, da Câmara Municipal do Funchal, dispõe de outros pesos de bronze com a marca 1732 (coroa real), 1743 (castelo), 1768 (castelo), e 1775 (coroa real). O sistema métrico O homem socorreu-se vários meios para medir a distância e o tamanho dos objetos. Assim, a medida da calçada, para pagamento de trabalhos de calcetamento, fazia-se em braças; a distância entre os locais era medida em léguas, passos e varas. O sítio da Meia-Légua, na Serra de Água, é um bom exemplo desta forma de medida popular para as distâncias, pois corresponde ao caminho entre a Ribeira Brava e a freguesia de S. Vicente. Temos ainda, para a medida de objetos e peças pequenas, a braça, a palma da mão, o palmo ou quarto, o dedo e a polegada. Já os terrenos eram medidos em alqueires e canas.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

História Económica e Social

pescas

O mar é uma constante no imaginário lusíada. Foi com o mar que se cumpriu Portugal e, durante muito tempo, no dizer do poeta, o mar foi português. Isto foi dito porque os portugueses se lançaram, no séc. XV, à sua conquista, batendo as barreiras do medo que atormentavam desde a antiguidade os potenciais navegantes do Atlântico. A economia das ilhas não se resumiu aos produtos trazidos pelos colonos europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao primeiro aspeto, é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de assentamento ribeirinha, se assumiram como exímios marinheiros e pescadores, tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor alimentar. A atividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a sua atenção pela abundância de peixe e mariscos, mas raras vezes satisfez as necessidades das populações. O Atlântico, próximo das ilhas e da costa africana, era considerado, desde a antiguidade, como um espaço privilegiado de pesca, descoberto pelos cartagineses, no séc. VI a. c.. Desta forma, aquilo que os portugueses buscavam não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra. Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana estão no mar – o óleo e a pele de lobo-marinho provenientes das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira, como prova a expedição que João Gonçalves Zarco fez para o reconhecimento da costa sul da ilha. Depois disso, múltiplos visitantes testemunharam essa riqueza. Cadamosto, em meados do séc. XV, refere que a ilha é rica “em garoupas, dourados e outros bons peixes” (ARAGÃO, 1981, 36). Em 1698, o governador D. António Jorge de Melo refere que “o peixe é muito bom e não caro, que remedeia muito a terra” (NASCIMENTO, 1930, 15). Em 1853, Isabella de França acrescenta a esta ideia de riqueza piscícola a descrição de alguns peixes, como a abrótea, o atum, o chicharro, o congro, o cherne, a garoupa, o pargo, a raia, o salmonete e a tainha. Diversos autores referem a abundância de peixe nas costas das ilhas. Deste modo é cada vez maior o conhecimento do peixe disponível à volta da Ilha, muito evidente na lista de A. Biddle, de 1910, e nos diversos estudos científicos que entretanto se fizeram. A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e andaluzes. Todavia, o balanço das capturas dos madeirenses e dos açorianos não foi suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. A descoberta do Atlântico é um ato simultâneo com a da Ilha. Os portugueses demandam a sul, à procura das terras, míticas e verdadeiras, já debuxadas nos mapas. João Gonçalves Zarco decide fazer o reconhecimento da costa madeirense: este momento merece ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa, mas também pelas revelações que lhe permitem o batismo dos diversos acidentes da costa. Na primeira busca, conseguiu boas oportunidades de abordagem e de fixação, enquanto, na segunda, a fauna marinha move a sua atenção. Um bando de garajaus deu nome a uma ponta: a Ponta do Garajau. Os lobos-marinhos que, no dizer do cronista, “era enquanto, e não foi pequeno refresco para a gente, porque mataram muitos deles, e tiveram na matança muito prazer e festa” (FRUTUOSO, 1873, 40), deram nome à Câmara de Lobos. No ano imediato, tratou-se do assentamento e reconheceu-se a terra que ficara no desconhecimento: a Ponta do Pargo, assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: “e o maior que até aquele tempo tinham visto, pela razão do qual peixe ficou nome aquela Ponta a do Pargo” (Id., Ibid., 69). O facto de a toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os navegadores depositavam nesta riqueza e do empenho com que a observavam: Porto das Salemas (Porto Santo), Baixa da Badajeira (Madeira), Porto do Pesqueiro (Madeira). Os mares da Madeira eram ricos em variedades e quantidades de peixe, como confirmam inúmeros visitantes estrangeiros. Em 1853, Isabella de França refere o chicharro, o peixe-espada, o gaiado, o atum, a abrótea, o pargo, o cherne, a garoupa, a tainha, o salmonete, a pescada, e o congro. A sua apreciação destes peixes faz-se pela sua aparência, e não pela degustação, pois deverá tê-los visto na praça ou nos portos das localidades por onde embarcou. A respeito do atum, tece o seguinte testemunho: “O atum é feio e escuro, de cerca de seis pés de comprido, carne avermelhada e grossa. É um espectáculo dos mais ridículos ver o campónio regressar a casa com a cabeça do atum na extremidade do bordão. A pesca do atum não corre sem perigo, pois já se tem visto puxar um homem pela borda fora” (FRANÇA, 1970, 117). Já em 1817, o governador Lúcio Travassos Valdez informa do envio, pelo mercador João Baptista Gambaro, estabelecido em Câmara de Lobos, de dois barris de atum, conservado de diversas formas (cozido, salgado e seco), que poderia ser uma alternativa ao bacalhau estrangeiro no abastecimento às embarcações. Desta forma, durante muito tempo, a disponibilidade do peixe estava limitada aos sistemas de conservação disponíveis. O peixe fresco era um privilégio quase só das zonas ribeirinhas e com portos de pesca. Aos demais, ficava o peixe salgado ou seco. Foi assim até que se começou a desenvolver a indústria de conservas, fundamentalmente de atum, em princípios do séc. XX, no Porto da Cruz (1909), no Paul do Mar (1912), em Pedra Sina (1939), no Penedo do Sono, em Porto Santo (1944), no Machico (1949). Atente-se que, na Madeira, o incremento da congelação só aconteceu a partir de 1972, sendo a primeira unidade criada em 1966, pela empresa Somagel. Por outro lado, a revelação e a descoberta do mar ganharam interesse devido à possibilidade de fruição das riquezas piscícolas. Mas a atenção do europeu ao mar não se orienta apenas neste sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, perceber os sistemas de correntes e ventos, compreender os acidentes da costa, os baixios, etc. É neste contexto que os portugueses iniciam uma ação pioneira que irá permitir o melhor conhecimento do mar e das suas possibilidades e recursos. As pescarias e as viagens de navegação e de descoberta ao longo da costa africana confundem-se. Os madeirenses pescavam nas costas da Berberia, um dos melhores bancos de peixe do Atlântico, como se conclui duma reclamação dos pescadores, em 1596, sobre o tributo que pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que de lá traziam. A pesca foi, a par da atividade agrícola, uma ocupação das gentes insulares ribeirinhas. Aliás, num espaço como a Madeira, onde a orografia condicionou a circulação terrestre, o mar é a via fundamental que liga os vários núcleos de povoamento que, por esse motivo, no início, se anicham no litoral. O mar foi o meio de comunicação mais usual e importante da comunidade insular, verificando-se a valorização da construção naval; ela surge, não apenas com a finalidade de assegurar o fornecimento de embarcações de cabotagem, mas também para dar apoio à navegação atlântica, no reparo das embarcações fustigadas pelos acidentes ou pelas tempestades oceânicas. Os estaleiros de construção e reparação naval proliferavam nas principais ilhas do meio insular, sendo esta atividade transformadora regulamentada e apoiada pelas autoridades locais e centrais, que, por exemplo, asseguravam as licenças necessárias para o corte das madeiras e definiam as dimensões e a capacidade das embarcações a construir. Os estaleiros de reparação e construção naval da Madeira situar-se-iam no Funchal, principal porto da Ilha, e em Machico, sede da capitania do norte, onde as madeiras eram abundantes. A construção de embarcações para a pesca está testemunhada desde o início da ocupação da Ilha. João de Barros refere mesmo que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz fizeram duas embarcações no Porto Santo, certamente com troncos de dragoeiro, tal como refere Frutuoso. Ao contrário do que acontece no início do séc. XXI, a pesca não era uma atividade exclusiva de alguns núcleos do sul; na verdade, alargava-se a toda a Ilha, apesar de se ter evidenciado mais na vertente sul. Para o ano de 1889, existe referência a 2158 pessoas ocupadas na atividade da pesca, para um total de 493 embarcações, 338 das quais estavam empenhadas na faina do atum e 121 na do gaiado. A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. Em 1595, foi capturada a primeira baleia na zona; sabe-se que outra rendeu 64.000 réis em 1692, enquanto uma terceira, já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis. Em 1741, Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a resistência das indústrias da Baía, temerosas da concorrência, impediu-o de levar por diante tal objetivo. A indústria em questão só terá lugar após a Primeira Grande Guerra, conhecendo-se três fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade, nos primeiros anos do séc. XX, altura em que surgem a fábrica da Ponta da Cruz, de João A. Júdice Fialho (1909), a fábrica do Paul do Mar, de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia Formosa, a fábrica de Pedra Sina, em S. Gonçalo, de Maximiano Antunes (1939), a fábrica de Machico (1949), de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís Nunes Vieira, e a fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui, o pescado da Ilha passará a ter dois destinos – o consumo público e a indústria de conservas –, o que veio permitir um aumento das capturas. Até então, o único destino era o consumo público, sob a forma de fresco ou salgado. Tenha-se em conta o interesse nas salinas em Câmara de Lobos e na Praia Formosa, de que existem testemunhos desde o séc. XVIII, mas que nunca adquiriram grande dimensão e interesse. É evidente a preocupação das autoridades no sentido da preservação deste recurso marinho. Assim, em 1547, a vereação acusa alguns pescadores de cana de usarem foles e redes, mantado a “criação de peixe” e o “peixe miúdo”, proibindo tal ação com a pena de 500 reais. Esta determinação passou a postura, sendo a pena de 1000 reis, que subia para 2000 réis, no caso de o visado ser pescador. A medida voltou a ser recordada em 1623. Ao longo dos tempos, continuamos a assistir a esta manifestação de interesse pela preservação deste recurso, que se alarga, em épocas posteriores, ao combate ao sistema de pesca através de bomba. Os aparelhos usados na armação da pesca na primeira década do séc. XX são referidos por A. Loureiro. Também se defendeu a indústria por meio de regulamentos que delimitavam a forma da pescada quanto às redes a usar e que, no séc. XIX, restringiam o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da Ilha e na Ponta de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877, recomendando ao governador medidas contra essa prática. O pescado chegava mais ao Funchal, onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo, sucedia que as diversas localidades da vertente sul, embora dispondo de núcleos piscatórios, se debatiam quase sempre com a sua falta, pelo facto de os pescadores preferirem a sua venda na cidade. As autoridades municipais foram portanto forçadas a tomar medidas. Em Machico, os pescadores da vila estavam obrigados a venderem aí 1/4 do pescado, passando, em 1640, para 1/3; no ano de 1638, esta limitação de saída era total, sobretudo na época da Quaresma, em que o consumo de pescado aumentava. Por outro lado, em 1751, não obstante recomendar-se que a venda do pescado fosse feita primeiro à população local, podendo as sobras ser depois levadas ao Funchal, refere-se o privilégio dado a algumas embarcações para o fornecimento, fora desta regra, ao convento de S. Francisco, ao juiz dos Resíduos e às capelas do Funchal. Já na Ponta do Sol, a Câmara proibiu, em 1704, a sua venda para fora do concelho e, em 1727, obrigava os pescadores a irem todos os dias ao mar, sob pena de 2000 réis. Idêntica obrigação existia em Machico para o ano de 1679, onde os pescadores preferiam o serviço de barqueiros ao da pesca. Atente-se que, em 1674, na Ponta de Sol, o arrais de um barco foi preso por não trazer peixe do mar. Mesmo assim, o Funchal não estava devidamente abastecido de pescado, necessitando de importar arenque salgado de Inglaterra. A prova disso está no facto de o foral de 1516 isentar os ingleses do pagamento do dízimo. Em 1768, o governador e Cap.-Gen. Sá Pereira, em carta ao conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, testemunha sobre uma representação dos moradores da Madeira, “sobre o promover-se a pescaria tão útil, e tão necessária aqui para que este povo possa livrar-se da miséria, a que está reduzido por falta de alimento, obrigado a sustentar-se de carnes, e peixes salgados, e corruptos, que aqui introduzem os Ingleses com grave prejuízo dos seus habitantes” (SANTOS, 2010, 368). Em 1771, o mesmo governador, no capítulo 26 do regimento dado ao Porto Santo, penaliza os moços indigentes, obrigando-os a dedicarem-se à agricultura ou às pescas. Já em 1783, o corregedor organiza um regulamento para as pescas nas ilhas da Madeira e Porto Santo – o Estabelecimento das Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo –, que não teve efeito. Finalmente, em 1792 foi autorizado o estabelecimento de uma Fabrica de Pescaria, e Salinas, a ser instalada na Praia Formosa. E em novembro de 1822 foi formada uma Sociedade Piscatória na Madeira, com intuito de promover as pescarias, vindo, para o efeito, pescadores de Sesimbra para ensinar aos madeirenses as artes da pesca. Tais carências levavam a Ilha a importar peixe seco e salgado de Lisboa, do Algarve, das Canárias, de Santa Cruz da Berberia, de Cabo Verde, da Irlanda, da Escócia, da Noruega, da Suécia, da Dinamarca, do norte de França, da América do Norte e da Terra Nova. Os ingleses eram quem mais abastecia a Ilha deste peixe importado, muitas vezes com qualidade duvidosa, pois foram insistentes as reclamações sobre a venda de peixe podre. De acordo com informações da imprensa do Funchal, a partir do último quartel do séc. XIX, são frequentes as referências ao abastecimento do Funchal com peixe, lapas, caramujos e carne das cagarras das ilhas Selvagens. Os proprietários das ilhas organizavam campanhas temporárias com trabalhadores para a caça e a pesca, retornando ao Funchal com elevadas quantidades de produto salgado ou seco para venda na cidade. A faina da caça às cagarras e aos coelhos e da pesca ocorria entre os meses de agosto e outubro. No retorno, os trabalhadores enchiam a embarcação que os trazia de volta com caixas de lapas, caramujos, engodos, barris de salga de coelhos, cagarras, e peixe, sacos de penas de cagarra e óleo de cagarra. O peixe era fundamentalmente o atum, a cavala e o gaiado, que descarregavam no Funchal ou em Câmara de Lobos. Em 1907, sabemos da safra de 13.000 gaiados que foram vendidos no Funchal a 240 réis ao kg. Já em 1912, a safra foi de 16.000 gaiados, havendo problemas entre os pescadores e a firma proprietária quanto à distribuição dos quinhões. Os mares das Selvagens eram, assim, ricos em pescado, alcançando o imposto do mesmo, no primeiro quartel do séc. XX, valores elevados, apenas suplantados pelo Funchal e pela Câmara de Lobos. A faina nestas paragens era sempre complicada, acontecendo, por diversas vezes, naufrágios e situações de falta de mantimentos, indo, muitas vezes, as embarcações arribar à ilha vizinha de Tenerife. Desta forma, em novembro de 1916, os pescadores regressados ao Funchal mandaram celebrar uma missa de ação de graças na igreja de S. Gonçalo, por não terem sido vítimas de qualquer desastre. A pesca e a venda do peixe fresco, resultante desta faina, ou seco e salgado, por importação do estrangeiro ou de produção própria na Ilha, estavam sujeitas a apertadas medidas de controlo que consideravam a salvaguarda da saúde e a sanidade públicas e também a especulação dos vendedores. Aqui é clara uma evidência: em terra banhada pelo mar, onde o peixe abunda, o peixe da safra local era limitado e parece que a faina era pouco atrativa para os homens do mar, que preferiam dedicar-se à função de barqueiros nas ligações costeiras. Desta forma, são insistentes as reclamações das vereações municipais, quanto à sua falta como à coação dos pescadores para irem ao mar. Em 1847, foram estabelecidas isenções de direitos à entrada de peixe salgado, para suprir problemas de fome. Sabemos que, no ano imediato, a sua importação foi de 6464 arrobas, na sua maioria da Terceira, de Portimão e de Lisboa. A venda do pescado era feita na praça, de acordo com condições estabelecidas pelas posturas. Estava proibida a revenda do peixe fresco ou salgado sem licença dos oficiais da câmara. O peixe que sobrava de um dia para outro era salpresado e, depois de mostrado aos almotaceis, poderia ser vendido. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tabelados e a todos os que o procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que, através dos seus escravos, procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras. A carência de peixe é uma constante na Ilha, acusando a vereação, em 1547, de os madeirenses não quererem ir pescar, pois “onde devem de ir pescar quatro vezes na semana muitas vezes não vão senão uma e isto porque a tal preço dão o peixe que assim se remedeiam com um dia de trabalho na semana como se todos os dias trabalhassem [...]” (COSTA, 1998, 404). Desta forma, os homens-bons da Ponta Sol, em 1782, assistiam, no Calhau, à distribuição do peixe. As praças para a venda do peixe existiram em todos os municípios, sendo uma forma de regular e fiscalizar a venda do pescado. Na sua falta, o peixe vendia-se em locais determinados pela câmara, como sucedia em 1856, na Madalena do Mar. Temos notícias das praças da Ponta de Sol, em 1840, a qual foi reformada em 1931, do Porto Moniz, em 1894, de S. Vicente, em 1896, e do Porto Santo, em 1889. A do Funchal existe desde o séc. XV, tendo sido ampliada em 1730. Sabemos ainda que, desde 1546, existia no Funchal uma rua do peixe, que pode estar associada a este espaço público de venda. A partir de 1840, temos o mercado do peixe de S. Pedro, reformado em 1880 e 1889, e em 1940 integrado no mercado dos lavradores. A lota aparece no arquipélago da Madeira em 1953, no Funchal, seguindo-se outras em Câmara de Lobos, Machico, Santa Cruz, Paul do Mar, Porto do Moniz, Porto Santo, Caniçal, Ribeira Brava e Calheta. A lota passa a substituir o calhau como espaço de primeira venda da safra, por leilão ou contrato. Os funcionários municipais, almotaceis e guardas-mores da saúde tinham especial cuidado na fiscalização do pescado fresco ou seco que se vendia na Ilha. O pescado salgado ou seco importado, nomeadamente pelos mercadores ingleses, não era apresentado para venda nas melhores condições, obrigando, inúmeras vezes, os funcionários da saúde a intervir, gerando alguns conflitos com esta comunidade. Em 1634, os comerciantes ingleses Roberto Veloni e Diogo Dom são acusados por colocarem à venda, em lojas suas onde empregavam vendedeiras, peixe (bacalhau e sardinha) em más condições. Em 1813, repete-se esta situação, com a casa inglesa Murdoch Yuille Wardop & Comp a reclamar uma indemnização pelo pescado lançado ao mar pelo guarda da saúde. Nesta mesma data, o bispo, em visita à Camacha, refere o uso na alimentação de arenques e cavalas salgados que, trazidos pelos ingleses, se apresentavam muitas vezes em má qualidade e deitavam um mau cheiro. A Madeira importava pescado seco e salgado de diversos portos nacionais e estrangeiros. Torna-se difícil entender a razão desta importação de peixe seco ou salgado, tanto mais que os mares da Ilha eram ricos em peixe. Para além de poder ser uma imposição desta comunidade inglesa, com domínio quase total do mercado da Ilha, poderão ser outras as razões para esta valorização do pescado importado, ainda que de má qualidade pelas condições de acondicionamento. Em 1827, Alfred Lyall afirmava que “há grande abundância de peixe, de grande variedade e de muitas espécies, normalmente muito bom, mas talvez inferior em sabor e firmeza na sua carne, quando comparado com o dos nossos mares” (SILVA, 2008. 111). A necessidade de assegurar a subsistência dos colonos obrigou ao aproveitamento dos recursos disponíveis no meio com valor alimentar, como foi o caso da pesca, uma atividade das populações ribeirinhas. O peixe foi também um dos recursos mais valorizados no início da ocupação da Ilha. A prova disso está no imposto lançado, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, este era cobrado pelos Jesuítas que, desde a segunda metade do séc. XVI, tiveram assento na Ilha. O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do calhau, depois Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores, cuja influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma comunidade de homens do mar com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. O grupo de madeirenses com ligação ao mar era elevado, mas parece existir uma predileção pela atividade ligada ao transporte costeiro, em detrimento da pesca. Os municípios instavam os homens do mar para irem à pesca, mas estes preferiam outros serviços mais remunerados. Em 1889, temos, em toda a Ilha, 2158 indivíduos associados a 493 barcos (127 de 4 remos, 200 de 2 remos e 121 canoas). Destes, como já referido em cima, 338 estavam dedicados à faina do atum e 121 ao gaiado, assumindo estas duas espécies uma importância dominante nas pescarias. A pesca ocupava, em 1914, mais de 1500 pescadores com 537 embarcações; já em 1931 existiam 1500 pescadores, que usavam 24 embarcações a motor e 508 à vela ou a remos. A partir de 1853, os governadores civis atuaram no sentido da valorização dos portos de pesca do arquipélago com diversos melhoramentos. O desenvolvimento de algumas indústrias no séc. XX levou à sua valorização. Em 1908, Vicente de Almeida D’Eça refere os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, São Jorge, Ponta Delgada, São Vicente, Seixal, Porto do Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara de Lobo e Porto Santo. Em 1909, Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e Porto Santo. Esta situação é também testemunhada por Orlando Ribeiro, em 1947, quando esteve na Ilha em estudos, afirmando em 1949 que “nas encostas da Madeira a cada abrigo correspondia um porto de pesca” (RIBEIRO, 1985, 104). Os mares da Madeira, embora não tão ricos como os do continente, apresentavam uma variedade significativa, pois podia-se pescar desde moluscos (lapas e caramujos), a crustáceos (caranguejo) e peixe (alfonsinho, bodião, boga, castanheta, chicharro, cavala, chicharro, mero, moreia, pargo, peixe espada preto, sardinha, salmonete, solha, tunídeos). São ainda assinalados diversos pesqueiros, isto é, espaços marinhos próximo à costa, onde este pescado aparece com abundância: Pedras, Cabeço Baixinho, Cabeço do Moinho, Largo do Mesinho, Pé da Poita, Pedra Lage, Pedra do Marracho, Pedra do capitão, e Canto do Porto.   Direitos e tributos O pescado estava sujeito a diversos tributos sendo, no início, considerado como uma renda dos capitães, que auferiam, pela sua exploração, o foro e o dízimo. A 26 de setembro de 1433, o infante D. Henrique recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas da Madeira, de Porto Santo e das Desertas. Ainda nesta data, a Coroa, a pedido do infante D. Henrique, concedeu todo o cuidado espiritual das ilhas à ordem de Cristo, reservando para si o foro e o dízimo do pescado. Este dízimo foi abolido a 5 de abril de 1808, por ordem de Beresford, aquando da ocupação inglesa da ilha da Madeira. No Porto Santo, a referida abolição ocorreu em 1832. O dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca, no Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, era cobrado pelos Jesuítas. Temos dados sobre a arrecadação deste rendimento para os anos de 1759 a 1761. Já da receita da diocese sabemos que, em 1517, era de 200$000 réis, subindo, em 1581, para 363$600 e, em 1583, para 454$500. Este tributo foi abolido, na Ilha, por alvará de 20 de outubro de 1803, situação que só teve efeito durante quatro meses. Entretanto, os pescadores estabeleciam, entre si, alguns compromissos com o valor da faina. Assim, no Caniçal, existiu o quartão, que era o mesmo que um quarto, a parte que cada pescador do Caniçal tirava do seu quinhão da pesca para o pároco da freguesia, como forma de custear as despesas de serviço religioso, em seu benefício, durante o ano. Eram reservados ainda outros quartos – para as festas da Senhora da Piedade, de S. Sebastião, do Espírito Santo e do Santíssimo Sacramento. A par destes, existiram outros tributos de cariz social, como o socorro que apoiava os companheiros doentes, e o quinhão morto para acudir a qualquer desastre, do qual, no fim do ano, entre 25 de dezembro e 1 de janeiro, era distribuído o sobrante entre todos, sendo conhecido como a ajuda do pão-da-festa ou passadia. Em 1937, surgiu a Associação de Socorros Mútuos dos Pescadores da Madeira, que em 1953 deu lugar à Casa dos Pescadores, com instalações em Machico e Câmara de Lobos (1939), no Paul do Mar (1944), no Funchal (1950) e no Caniçal (1954). Em 1817, na tabela dos direitos ad valorem cobrados no Funchal, temos a indicação da sua cobrança sobre o peixe fresco, com sal ou de conserva, relativamente às seguintes espécies: atum, chicharro, carapau, lampreia, salmão e sardinha. Em 1954, o imposto ad valorem, de 3 % sobre o pescado, rendia à câmara do Funchal 115.000$000 escudos. O imposto de pescado era uma receita do Estado e da Câmara Municipal. No reinado de D. Maria, foi determinado, por alvará com força de lei, de 20 de junho de 1787, que fossem levantados os impostos sobre o pescado, porque haviam contribuído para a situação de decadência a que tinham chegado as pescarias do Reino e das ilhas adjacentes. O imposto sobre os barcos de pesca e pescarias (1830/1843), foi criado por decreto de 9 de novembro de 1830, sendo substituído, em 10 de julho de 1843, por outro imposto, de 6 % sobre os lucro da venda do pescado fresco, nomeadamente sobre as partes ou quinhões, excetuando apenas as comedorias, as caldeiradas, as restomengas e as carnadas; a sua coleta foi atribuída à Junta do Crédito Público. Pela lei de 10 de julho de 1843, só eram obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercessem a sua indústria em água salgada e somente naquela parte dos rios até onde chegassem as marés vivas do ano. Pelo decreto de 3 de dezembro de 1891, foram criados, na dependência do Ministério dos Negócios da Fazenda, diversos postos fiscais, com a missão especial de cobrar o imposto de pescado. Este imposto, cobrado pela Guarda Fiscal, era também conhecido como dízimo, e só foi abolido por decreto-Lei n.º 237/70, de 25 de maio. Sobre a cobrança do imposto de pescado encontramos as seguintes informações: em 1921, era de 59.257$96 escudos, sofrendo uma quebra significativa, no ano imediato, para 4346$48; em 1933, era de apenas 1259$52.   Peixe à mesa Por fim, importa verificar qual a importância que os recursos marinhos assumem no quotidiano e na alimentação dos madeirenses. A dieta dos madeirenses baseava-se no aproveitamento dos recursos disponíveis com valor alimentar, isto é, a caça e pesca e os derivados da atividade pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido importante na atividade das populações ribeirinhas, que usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe. Através dos livros de receita e despesa, podemos acompanhar o dia a dia da mesa conventual, onde é regular a presença de carne e peixe, frescos ou salgados. No convento da Encarnação, a mesa dos sécs. XVII e XVIII era farta. O pão corria todos os dias à mesa, acompanhado de carne ou peixe. O peixe comia-se às quartas, sextas, sábados e dias prescritos pela Igreja. Poderia ser bacalhau, atum sardinha, arenques, pargos e chicharros. Mas nem sempre foi assim, uma vez que, por diversas vezes, foi manifestada a dificuldade no abastecimento de peixe aos conventos, o que fez com que estivessem isentos da obrigação da abstinência. A abstinência da carne era geral na altura da Quaresma, o que elevava o consumo de pescado. As pastorais determinavam regras sobre o consumo de carne e peixe pelos fiéis. Assim, a carne não podia ser misturada com o peixe e todos aqueles que estavam sujeitos ao jejum só podiam servir-se da carne ao jantar, sendo exceção os domingos, onde o consumo estava facultado. Daqui resulta a tradição popular do consumo da carne aos domingos. A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O pouco que se sabe resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Esta servia-se quase só do que a terra dava, isto é, frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Consumia-se algum peixe fresco ou seco, pescado na costa, mas a carne e o pão parecem ser uma raridade. Esta frugalidade está presente em todos os testemunhos de autores estrangeiros. Assim, na segunda metade do séc. XVIII, George Forster destaca que “os camponeses são excecionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne” (FORSTER, 1986, 72), mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, que era o principal ingrediente na alimentação do camponês. A isto juntava-se o consumo de peixe fumado ou em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto ao inhame, à batata e ao pão. O peixe consumido era o bacalhau dos Estados Unidos e o peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa, destacando-se o arenque de fumo ou de salmoura, muito apreciado pelo povo como conduto para o pão e as batatas. Esta situação ainda perdurava na década de 50 do séc. XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de duas toneladas eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e as indústrias de conservas. No Funchal, existia uma praça onde este era vendido aos interessados de acordo com uma lista de prioridades. Primeiro, deveriam servir o capitão, depois os conventos e os oficiais da governança e, finalmente, o povo. Em 1732, o bispo tinha um barco que provia às suas necessidades de pescado. Na Ponta de Sol, em 1782, um homem bom do concelho assistia a esta distribuição do pescado. A generalização das praças e dos mercados do peixe nos demais concelhos só aconteceu muito mais tarde: no Porto Santo, em 1889, no Porto Moniz, em 1894, e em S. Vicente, em 1896.   Ciências do mar O mar não foi valorizado apenas como recurso económico. Já a partir do séc. XVII se regista o seu valor científico com os diversos estudos realizados. A passagem pelo Funchal de alguns cientistas ingleses propiciou uma primeira descoberta de muitas das raridades da fauna marinha nos mares madeirenses. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane (1687) e James Cook (1768 e 1772). No decurso do séc. XIX, redobrou o interesse pela Ilha por parte de súbditos ingleses residentes ou de passagem pelo Funchal. Destes, podemos destacar os estudos de Richard Lowe (1833-1846), interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate Johnson seguiu-lhe o encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900. O empenho dos madeirenses no estudo da fauna marinha poderá ser assinalado com os estudos de João José Barbosa du Bocage. O primeiro apelo neste sentido foi feito por José Silvestre Ribeiro quando, em 1850, criou o Gabinete de História Natural, que desapareceu com a sua saída, em 1852. A aposta no estudo e na divulgação dos recursos marinhos só aconteceu mais tarde, com a criação do Aquário do Museu Municipal, que foi aberto ao público em 1951. A publicação do Boletim do Museu Municipal, desde 1945, e os estudos de Adão Nunes, de Adolfo César de Noronha e de Günther Maul vieram a revelar quão rico é o património marinho madeirense.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

Biologia Marinha História Económica e Social

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Linguista, investigador e professor, Luís Filipe Lindley Cintra (n. 1925 - m. 1991) foi autor de trabalhos fundamentais de filologia e dialectologia, de entre os quais se salienta a Crónica Geral de Espanha de 1344, em quatro volumes (1951), sendo o 1º volume um Estudo Introdutório, e os outros a edição crítica integral do texto, acompanhada de notas, correspondente à sua tese de Doutoramento; e ainda A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, de 1959 (reprod. 1984), apresentado no Concurso para Professor Extraordinário da Faculdade de Letras de Lisboa, e ainda de outros, entre os quais se releva Estudos de Dialectologia Portuguesa, Lisboa, 1983, não esquecendo a Nova Gramática do Português, em parceria com Celso Cunha (1984). Contribuiu de modo profundo para uma maior e rigorosa determinação da variação dialectal do Português Madeirense: primeiro, acompanhando e orientando teses de licenciatura apresentadas na Faculdade de Letras (Universidade de Lisboa) por alunos oriundos da Madeira e do Continente; mais tarde, viria a revolucionar a caracterização dessa variação linguística, principalmente no domínio da fonética e da lexicologia, demonstrando que, mais do que falar-se de dialecto madeirense, como até essa data tinha sido proposto por eminentes estudiosos, se deviam reconhecer que essa variação linguística madeirense apresentava traços tão diferentes nas várias regiões que temos de considerar a existência de “dialectos madeirenses”, a par dos “dialectos açorianos”, que perfazem os “dialectos insulares”. No caso dos dialectos madeirenses, e ao contrário do que se considerava serem dialectos que apresentavam traços característicos do Sul, a realidade era / é outra: de facto, os “dialectos madeirenses” caracterizam-se por características não só meridionais, como também setentrionais. Palavras-chave: linguística; dialetos; sintaxe; regionalismos.   Lindley Cintra. Foto Instituto Camões Nascido em 1925 e falecido em 1991, foi professor catedrático da Faculdade de Letras (Univ. de Lisboa), onde investigou e lecionou várias disciplinas respeitantes à Filologia, Linguística e Literatura (assinalem-se Fonética Geral, Linguística Portuguesa, Linguística Românica a Literatura Portuguesa Medieval). Como docente e filólogo, marcou a investigação universitária no campo da Filologia e da Dialetologia, tendo sido responsável pela criação do Departamento de Linguística Geral e Românica (Faculdade de Letras, Univ. de Lisboa), após 1974, e pela reestruturação do Centro de Estudos Filológicos em Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Trabalhos fundamentais na Linguística Histórica, Historiografia e Crítica Textual foram Crónica Geral de Espanha de 1344 (1951), sua tese de doutoramento, e A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, estudo apresentado para as provas de professor extraordinário, em 1959, obras depois reimpressas ou reeditadas. Com a primeira, e contra o que se pensava até então, Lindley Cintra demonstrou que a Crónica Geral de 1344 tinha sido escrita originariamente em português e só depois traduzida para castelhano; além disso, demonstrou que a Crónica foi redigida pelo conde D. Pedro, filho de D. Dinis, neto de Afonso X de Leão e Castela. A edição crítica do texto em três volumes, acompanhada de um quarto (que ficou como 1.º volume na obra publicada) consagrado aos problemas historiográficos, filológicos e histórico-culturais, constituiu realização exemplar (os quatro volumes foram reimpressos e reeditados nas décs. de 80 e 90). O mesmo se pode afirmar do desenvolvido estudo sobre A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, de 1959, reproduzido em 1984. Embora a sua atividade de investigador e docente se centrasse nos textos medievais, também se ocupou de autores da literatura portuguesa de outras épocas (devem-se-lhe importantes estudos acerca de António Nobre e Almeida Garrett), e aprofundou questões relacionadas com a Sociolinguística e a Dialetologia. Também muito conhecida é a Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984), elaborada em parceria com Celso Ferreira da Cunha. Em geral, os alunos que seguiram as disciplinas lecionadas por Lindley Cintra lembram as suas aulas teóricas ou práticas, que podem ser qualificadas de excecionalmente informadas, sempre atualizadas pela sua pesquisa, bem estruturadas, e sobretudo pedagogicamente interessantes e entusiasmantes. Entre os seus interesses científicos – e isso justifica a sua presença neste conjunto de registos de grandes figuras que contribuíram para o estudo da cultura tradicional madeirense –, apontar-se-á principalmente o da investigação de natureza sociolinguística e dialetológica do português da Madeira. Na sua atividade respeitante à caracterização da variação linguística insular, que se integra no mais amplo estudo dos dialetos portugueses, orientou trabalhos de pesquisa e não só continuou como principalmente renovou e reperspetivou o que autores maiores, como Gonçalves Viana, José Leite da Vasconcelos, Käte Brüdt, Francis M. Rogers, Eduardo Antonino Pestana e outros linguistas, já tinham apontado como características pertinentes desta modalidade insular. Apontar-se-ão os principais contributos. Num primeiro conjunto, é de assinalar a atenção que lhe mereceram os trabalhos de pesquisa que aceitou orientar a pedido de alunos finalistas do curso de Românicas ou Filologia Românica, que, sendo naturais da Região, quiseram estudar as características da variação linguística da sua terra, com trabalho de campo, fazendo recolhas junto da população da Madeira e do Porto Santo. O primeiro ponto a assinalar como responsável por Cintra reconhecer a importância da matéria que o iria interessar foi a descoberta de problemas de que ia tomando conhecimento, não só pelas obras dos autores atrás referidos, como também pelos alunos que se deslocavam da Madeira para prosseguir os seus estudos em Letras, mormente em Filologia Românica, e lhe traziam projetos de estudo do “dialeto” da Ilha ou do “falar” da sua pequena comunidade para as suas teses de licenciatura. Foi esta a maneira de ele contactar com os resultados das recolhas, principalmente no que respeitava às características fonéticas e lexicais do português falado na Ilha. A primeira dessas teses é recordada por Cintra em 1990, na comunicação apresentada no Congresso Cultura Madeirense – Temas e Problemas, lida nessa ocasião pelo autor desta entrada: trata-se da tese de licenciatura de Maria do Carmo Noronha Pereira, que, em 1952, era “uma primeira tentativa de aplicação aos dialectos madeirenses dos métodos da geografia linguística” (CINTRA, 2008, 98). E Lindley Cintra confessa: “Não posso nem devo esconder a emoção com que, quase quarenta anos passados sobre a apresentação deste livro, voltei a lê-lo e a descobrir nele […] a reunião de toda uma série de informações seguras sobre as variedades regionais em que se subdivide ‘o madeirense e as suas localizações e limites aproximados” (Id., Ibid.). Seguiram-se duas teses elaboradas segundo os modelos da escola de Wörter und Sachen. Trata-se da tese de Maria Ângela Leote Rezende, de 1961, sobre duas zonas com características bem marcadas – Canhas e Câmara de Lobos: Estudo Etnográfico e Linguístico, e da tese de João da Cruz Nunes, de 1965 – Os Falares da Calheta, Arco da Calheta, Paul do Mar e Jardim do Mar. Lindley Cintra refere ainda o acompanhamento na elaboração de outra tese, que já não versa sobre um dialeto, antes sobre um socioleto, i.e., “a linguagem de um grupo social bem determinado” (Id., Ibid., 99), o trabalho de Elisabeth Gundersen Pestana, Subsídios para o Estudo da Linguagem dos Bambuteiros, datado de 1954. Outro contributo fundamental de Lindley Cintra diz respeito ao acompanhamento dos trabalhos/inquéritos preparatórios do Atlas Linguístico do Arquipélago da Madeira, na continuação do ALPI (Atlas Linguístico da Península Ibérica), com a colaboração dos investigadores do Centro de Linguística da Univ. de Lisboa. Ainda da referida comunicação no Congresso Cultura Madeirense – “Os dialectos da ilha da Madeira no quadro dos dialectos galego-portugueses” –, o que ficou como proposta para uma mais fundamentada e decisiva investigação sobre o português madeirense nesse seu contributo veio a mudar radicalmente o modo como os estudiosos consideravam a variação linguística da Madeira e do Porto Santo. Pelo estudo das variantes lexicais e, sobretudo, fonéticas, defendeu-se nesse histórico texto que o território madeirense era surpreendentemente rico do ponto de vista linguístico, a ponto de nele poderem reconhecer-se, não falares, mas dialetos bem caracterizados, que, com os dialetos açorianos, integram os “dialetos insulares” (Id., Ibid., 103). Lindley Cintra, evocando o estudo de Jorge Dias sobre “etnografia madeirense”, principalmente no que respeita ao “estudo das origens étnico-culturais das populações da ilha da Madeira”, salienta a pertinência de pequenos pormenores (aparentemente) da variação dialetal, como, e.g., a existência da queda do “g” intervocálico na região de Câmara de Lobos. Lembrando o contributo de Jorge Dias ao relacionar o povoamento da Madeira com, por um lado, o Norte de Portugal, e, por outro, o Sul, Lindley Cintra escreve: “Mal me atrevo também, no caso isolado da coincidência entre um lugar da Beira Baixa (aliás pertencente à zona repovoada pela ordem de que era Mestre o Infante Navegador) e uma região da Madeira, imaginar na queda do g intervocálico em ambos os dialectos, uma relíquia da presença de povoadores beirões na região de Câmara de Lobos” (Id., Ibid., 103). E a conclusão será: “Quer isto dizer, evidentemente, que não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertencem ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais”. E acrescenta: “Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos das outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (Id., Ibid., 104). Essa constatação é fundamental para o expressivo reconhecimento da rica variação do Português da Madeira, como demonstrou o estudo da equipa de linguistas responsável pela Gramática do Português editada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2013.   João David Pinto Correia (atualizado a 23.02.2018)

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