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associação teatro experimental do funchal

O Teatro Experimental do Funchal (TEF), associação desde 2015, nasceu em 1975 pela comissão dos serviços culturais da Câmara Municipal do Funchal (CMF) com a denominação de Grupo Experimental de Teatro do Funchal (GETF), após a realização, no teatro municipal Baltazar Dias (TMBD), do Festival de Teatro do Operário promovido pelo Inatel. A 9 de janeiro de 1976, o GETF estreou o Auto do Curandeiro, do poeta popular António Aleixo, numa encenação coletiva sob a orientação de Carlos Abreu. Estreou em 1977 o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, com encenação de Orlando Barros, tendo como primeira parte o exercício teatral “Como se Prepara Um Ator”, da autoria do encenador. O trabalho foi integrado no que foi definido como 1.º Curso de Formação de Atores (CFA). O grupo continuou o trabalho de ator, sob a responsabilidade de Carlos Franquinho. Os serviços culturais da edilidade reabriram o TMBD após a sua recuperação, convidando para esse fim o professor e encenador Leopold Kielanowsky, que fez a adaptação da peça A Noite de Reis ou o que Quiserdes, de William Shakespeare, com cenografia de Gino Romoli. O trabalho de preparação do espetáculo começou em novembro de 1977 e a peça estreou em janeiro de 1978, tendo reunido não só os atores que já faziam parte do grupo – Carlos Franquinho, Juvenal Garcês, Paula Camacho e Bento Abreu – como também outros elementos que faziam teatro na Região – Bernadette Andrade, Isaura Melim, Raúl Silva, Ambrosina Barbeito, Eduardo Luiz, António Plácido, Paulo César, Rui Honorato, Énio Gomes, Porfírio Fernandes e Ana Gouveia, entre outros. Desde 1978, o grupo manteve o firme propósito de não se deixar extinguir. Nesse mesmo ano, a Fundação Calouste Gulbenkian apoiou a contratação do encenador Roberto Merino que, durante quatro anos, além de montar espetáculos, preparou e formou intérpretes de teatro, potenciando no grupo uma consciência do estar e do ser ator, como amador ou profissional. Este percurso tornou o ator mais coeso e consciente do seu trabalho, concorrendo beneficamente para o seu desenvolvimento, e o do teatro em geral, na Região. Ainda nesse ano, a CMF, através dos serviços culturais, atribuiu um valor monetário simbólico aos atores, contribuindo para a responsabilização e a dignificação do seu trabalho. Roberto Merino e Júlio Couto dirigiram o 2.º CFA e o grupo participou no 1.º Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), com a peça Woyzeck, de Jorg Büchner, com encenação de Roberto Merino. Durante os quatro anos seguintes, Roberto Merino formou atores, e dirigiu e encenou várias peças: Histórias de Hakim, de Norberto D’Ávila, em estreia mundial, com a presença do autor (peça reposta em 1981); Tartufo, de Molière (reposta em 1980); Da Arte de Bem Governar, de John Arden; O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry; Vinicius de Moraes – Homenagem, a partir de Vinicius de Moraes (1980); Farsas Populares, de Lope de Rueda, Cervantes e um anónimo francês do séc. XV (com que participou no 4.º FITEI e no Encontro Regional do Funchal, em Lisboa); Enquanto o Mundo For Mundo, de Francisco Ventura e Carlos Lélis (1981); Uma Terra de Paz e O Círculo de Giz de Augsburgo, a partir do Almanaque de Bertolt Brecht, e Liberdade, Liberdade, Liberdade, de vários autores (1982), que fez apenas uma representação para uma plateia convidada. A saída de Roberto Merino obrigou o grupo a procurar novo diretor artístico e encenador. A 27 de setembro, após uma reunião de atores, o grupo passou a denominar-se TEF. Agora constituído por Carlos Franquinho, Bernardette Andrade, Eduardo Luiz, António Plácido, Fátima Rocha, Paulo Brazão, Nuno Gonçalves, António Ascensão e Henrique Vieira, iniciou um novo percurso. De 1983 a 1985, Fernando Heitor foi o encenador do TEF, realizando também o 4.º e o 5.º CFA. Os serviços culturais da CMF propuseram ao encenador a montagem de um espetáculo diferente, com um cunho regional, o que veio a acontecer no princípio de 1983 com Noites da Madeira, escrito por vários autores de revista a partir do romance O Bairro, de Vasco Pratolini, com dramaturgia de Fernando Heitor. Foi o segundo espetáculo que contou com música ao vivo (o primeiro fora Uma Terra de Paz), numa antestreia apresentada com o grupo Algozes, mais tarde denominado Xarabanda. Em 1983 – ano que marcou a saída do TEF dos serviços culturais da CMF, devido a prioridades de ordem política –, Fernando Heitor encenou Doce Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams. Na impossibilidade de manter o grupo durante a presidência do edil João Fernandes, foi sugerida a formação em cooperativa, para o TEF poder concorrer aos diversos apoios existentes. Formaram a cooperativa Eduardo Luiz, António Plácido, Bernardette Andrade, Anita Abreu (que entrara em Doce Pássaro da Juventude), António Ascensão, Elmano Vieira, Henrique Vieira, Fernando Matta, Paulo Brazão, Fernando Heitor e Mavélia da Guia. Com a produção de Doce Pássaro da Juventude, ainda foi esboçado um plano para novas apresentações fora do TMBD. Porém, a logística inviabilizou a concretização da ideia. A 12 de abril de 1984, o TEF constituiu-se como cooperativa de responsabilidade limitada. Nesta condição, o grupo foi apoiado financeiramente pela Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC) e pela CMF. Nesse mesmo ano, o Ateneu Comercial do Funchal (AtCF) recebeu o grupo, cedendo espaço para ensaios e espetáculos. O TEF apresentou-se como uma entidade cultural e artística de teatro, obtendo um apoio da Secretaria Regional de Turismo e Cultura (SRTC), através da DRAC. O guarda-roupa do grupo acabou por ser todo o espólio do grupo de teatro Os Cómicos, do qual Fernando Heitor fazia parte e que acabara de fechar as portas; foi o início dum extenso património que durante anos o grupo foi construindo. Nesse ano, estreou Nostalgia, a partir de vários autores, com dramaturgia e encenação de Fernando Heitor, um espetáculo de café-concerto que aconteceu na sala de bailes do AtCF. Abrilhantaram o espetáculo, em algumas apresentações, o bailarino Michel e a atriz Maria Emília Correia. Ainda em 1984, Fernando Heitor fez a dramaturgia e encenou A Andorinha e as Árvores Falantes, um projeto da autora Bernardette Falcão, com apoio da DRAC e com apresentações no TMBD. No ano de 1985, o TEF apresentou A Mosqueta, de Ângelo Beolco, com dramaturgia e encenação de Fernando Heitor, no palco do salão nobre do AtCF. Este trabalho foi o percursor dos espetáculos de itinerância por todo o arquipélago, concluindo mais tarde com uma apresentação no TMBD. Fernando Heitor regressou a Lisboa, mas não sem deixar a encenação de um espetáculo preparada (trabalho de cooperação entre o TEF e os grupos de teatro Colagem e 2+1), possibilitando a Eduardo Luiz a direção dos ensaios de As Criadas, de Jean Genet, com a assistência de Lília Bernardes e Ester Vieira (duas das intérpretes da peça). Neste mesmo ano, Eduardo Luiz iniciou o seu percurso como encenador residente no TEF. O grupo subiu ao palco do Casino da Madeira com um espetáculo para crianças: O Bosque Encantado, com textos, encenação e direção artística de Eduardo Luiz, integrado no Clube da Malta do Manel, uma rubrica da responsabilidade do Diário de Notícias (DN) da Madeira. Com encenação de Miguel Martins, Fantastomático, a partir da peça Kikerikist, de Paul Maar, espetáculo para crianças, estreou no AtCF, partindo depois em itinerância. Em 1986, estreou As Criadas, de Jean Genet, com encenação de Fernando Heitor e direção de ensaios de Eduardo Luiz. O Natal em Casa de Castafiore estreou também neste ano, com texto e direção artística de Eduardo Luiz e integrado no Clube da Malta do Manel. O Emigrante, de João França, pelo grupo de teatro Colagem, tornado sócio da cooperativa, e ainda As Maçãs de D. Abúndio, da autoria de Roberto Merino, foram trabalhos encenados por Eduardo Luiz para o público infanto-juvenil e que seguiram a linha da itinerância. Ainda em 1986 decorreu o 6.º CFA, dirigido por Eduardo Luiz, no Inatel. O 7.º CFA realizou-se em 1987 e foi dirigido por Raija Kaeste, no TMBD. Por sugestão do edil do município, João Dantas, o TEF voltou às instalações do TMBD e a CMF, através da Junta de Freguesia de S. Pedro, disponibilizou uma sala da escola primária da Carreira para sede do grupo. Estreou O Amoroso, a partir de O Morgado de Fafe Amoroso, de Camilo Castelo Branco, encenado por Eduardo Luiz, que assumira as funções de diretor artístico da cooperativa. O público infanto-juvenil contou também com o espetáculo O Grilo Perlimplim, com texto e encenação do grupo de teatro 2+1, que se apresentou no TMBD, e com O Avarento Maruf, de Norberto D’Ávila, com encenação de Eduardo Luiz, ambos em itinerância. Eduardo Luiz encenou um texto com adaptação e dramaturgia do próprio e de Ester Vieira: Teatroscópio, a partir de Paulo César. Este espetáculo foi a primeira tentativa de elaborar um projeto de teatro para a infância e a juventude. Ainda subiram ao palco Lembrar Pessoa… Conhecer os Nossos Músicos – um espetáculo poético com declamação e momentos musicais com direção de António Plácido – e Teatro Diaporama, com textos de vários autores, dirigido por Ester Vieira. Todos os espetáculos desse ano se realizaram no TMBD, com grande envolvência do grupo. Durante o ano de 1988, Eduardo Luiz encenou A Estalajadeira, de Carlo Goldoni, além de diversos projetos de bar: Café-Concerto I, II e III, bem como Theatron e Saltimbancos, ambos com textos de Karl Wallentin, Raymond Devos, Vasco Santana, entre outros. Encenou ainda um espetáculo de poesia: Noite de Poesia Madeirense, com textos de vários poetas selecionados por José António Gonçalves. O ano de 1989 é o ano em que A Farsa do Advogado Pedro Pantaleão – de um anónimo francês do século XV, com adaptação e encenação de Eduardo Luiz, a partir de Léon Chancerel – serviu como base para um trabalho de itinerância por todo o arquipélago. Seguiu-se a gravação de um teledramático – Um Dia Em Cada Ano – para a RTP Madeira, com texto de Lília Bernardes e realização de Paulo Valente. Ainda no mesmo ano, uma versão continuada do texto escrito para a RTP Madeira estreou no Festival de Teatro Madeirense promovido pelo Inatel, na Camacha, com o título de Gente e com encenação de Eduardo Luiz. Iniciou-se também o 8.º CFA, orientado por Eduardo Luiz e realizado nas instalações do TMBD. A companhia fez a reabertura do teatro municipal em 1990, após nova recuperação do edifício, levando à cena Os Fantasmas, de Eduardo de Filippo, com encenação de Eduardo Luiz, e Há Festa no Céu, a partir de um conto do Nordeste brasileiro e com encenação de Ester Vieira, para o público infantil. Gravou também, para a RTP Madeira, em vários episódios, o espetáculo Teatroscópio, num conjunto de programas para o público infanto-juvenil, com realização de Paulo Valente. Realizou ainda o 9.º CFA, orientado por Eduardo Luiz. No ano de 1991, o TEF montou dois espetáculos com textos de Raul Brandão: O Gebo e a Sombra e O Nojo da Vida. Este último integrou textos como “Eu Sou um Homem de Bem”, “O Rei Imaginário”, “O Avejão” e “O Doido e a Morte”. O TEF preparou ainda um espetáculo de itinerância –A Comélia de Espavento –, a partir de Ângelo Beolco, e o espetáculo A Bruxa Carpidim, de Fernando Passos, todos com encenação de Eduardo Luiz. O TEF retomou com A Bruxa Carpidim – projeto idealizado para estruturar um elenco fixo de atores para espetáculos regulares infanto-juvenis – organizando uma agenda de contactos com as escolas, de forma didática e com programas devidamente preparados para sensibilizar para a ida ao teatro. Promoveu em 1992 o 1.º [Diogo: esta alteração de romano para árabe foi confirmada? Idem abaixo] Encontro Regional de Teatro (ERG Teatro). O projeto Teatro para a Infância e Juventude começou a ganhar forma, com dois espetáculos encenados por Eduardo Luiz: Ana e o Pássaro Azul, de Roberto Merino, e As Aventuras do Príncipe de Zaratustra, de Carlos Manuel Rodrigues, onde se tornou visível a presença das escolas nos espetáculos que a companhia programava anualmente. As Preciosas Ridículas, de Molière, com encenação de Eduardo Luiz, completou a produção definida para aquele ano artístico. Em 1993, o 2.º ERG Teatro realizou-se no TMBD. Deu-se a estreia de: Pluft o Fantasminha, de Maria Clara Machado; O Diabrete Encantado, de Manuel Couto Viana e Oscar Von Pfuhl; e A Maluquinha de Arroios, de André Brun – todos encenados por Eduardo Luiz. Com encenação e interpretação dos formandos do 8.º CFA, Élvio Camacho, Duarte Rodrigues e Miguel Vieira fizeram a montagem de Frémitos, Virgindade e Sucedâneos, com textos de August Strindberg e Virgílio Martinho, utilizando diversos espaços do edifício do TMBD. Neste mesmo ano, em cerimónia realizada no teatro da Trindade, em Lisboa, o ator, diretor artístico e encenador Eduardo Luiz foi galardoado com o prémio Miguel Torga, com o título de Mérito ao Teatro Amador, juntamente com Joaquim Benite e Carlos Oliveira. No ano de 1994, numa encenação de Eduardo Luiz, o TEF apresentou, no palco do TMBD, O Dragão Atchim, de José Jorge Letria, e História para Um Tesouro de Natal, de Roberto Merino e José Vaz, para as crianças. Esta última obra foi gravada posteriormente para a RTP Madeira, com realização de António Plácido. Uma nova versão, em oito sketches, do original Teatroscópio foi estruturada para os programas ao vivo no palco do TMBD, integrados no programa infantil O Comboio Corre. O espetáculo para itinerância Quase por Acaso Um Emigrante – a partir de João França, que se manteve em reportório até 1997 – e um outro integrado nas comemorações do aniversário do teatro municipal – O Homem no Seu Berço Natal, sobre Baltazar Dias, também de João França –, ambos com encenações de Eduardo Luiz, definiram um ano artístico que incluiu As Vedetas, de Lucien Lambert, em mais uma encenação experimental de dois formandos do 8.º CFA: Miguel Vieira e Duarte Rodrigues. Concluiu-se o ano artístico com a realização do 3.º ERG Teatro e – integrado no projeto de itinerância – a peça Quase por Acaso um Emigrante, de João França e encenação de Eduardo Luiz, apresentou-se no teatro Circo, em Braga. Os ensaios passaram a decorrer no auditório do jardim municipal. Foi no ano de 1995 que, no palco do TMBD, o TEF apresentou O Chapeuzinho Vermelho, de Maria Clara Machado. A Floresta dos Sonhos, a partir de Mendes de Carvalho e Orlando Neves, marcou a estreia da companhia no cineteatro municipal de S.to António (daqui por diante, Cineteatro), cedido pela edilidade para residência artística do grupo. Ainda para o público adulto, seguiu-se a estreia de A Excomungada, de Bernardo Santareno, e de A Boda, de Bertolt Brecht. As quatro encenações do ano artístico ficaram à responsabilidade de Eduardo Luiz. No ano de 1996, teve lugar o 10.º CFA, por Eduardo Luiz. Estrearam: O Natal do Gato Amarelo, de Marcela Costa; Antes… Que a Noite Venha, de vários autores; O Papão e o Sonho, de José Jorge Letria (gravada posteriormente para a RTP Madeira, com realização de António Plácido); e Soprou Vento Leste, de Lília Bernardes, que se manteve em itinerância até 2006 – todas encenações de Eduardo Luiz. O TEF, em 1997, celebrou um contrato-programa com a RAM, através da Secretaria Regional do Plano e da Coordenação e da SRTC, passando a receber um subsídio anual e a contar com uma nova sede para o funcionamento integral das suas atividades. Estreou as peças Big Bang – Missão (Im)Possível, de Kiko Palmeira, e Hakim – O Contador De Histórias, de Norberto D’Ávila, ambas com encenação de Eduardo Luiz. Subiram à cena no TMBD A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana (mais tarde gravada para a RTP Madeira, com realização de António Plácido) e o recital Fugas – Sons, Palavras e Movimentos, com seleção de textos de Fátima Marques, ambas com encenação de Eduardo Luiz. Em dezembro de 1998, a sede passou da rua nova de S. Pedro para o centro cívico Edmundo Bettencourt. Com o apoio do Inatel e do departamento cultural da CMF, realizou-se o 4.º ERG Teatro. Ocorreu também o 11.º CFA, dirigido por Eduardo Luiz. Estrearam: A Viagem De Um Barquinho, de Sílvia Ortoff, com encenação e adaptação de Cíntia (Kiko) Palmeira, no Cineteatro; No Limiar da Loucura, de Michel de Ghelderode, com encenação de António Plácido, e A Ilha Dos Escravos, de Marivaux, com encenação de Élvio Camacho, ambas apresentadas no TMBD. Estrearam ainda A Outra História da Carochinha, de Natália Teles, com encenação de Ester Vieira; e O Enterro, de Fernando Augusto e encenação de Carlos Cabral, no Cineteatro. Em 1999, o Estabelecimento Prisional do Funchal e o TEF celebraram um protocolo de serviços. Estreou Era uma Vez... Duas Histórias Duma Vez, de António Manuel Couto Viana, com encenação de Miguel Vieira. Foi um espetáculo infanto-juvenil representado durante três semanas no TMBD, alcançando 9000 espetadores. Estreou também o espetáculo de café-concerto Strip – Apêndice de Humores, de vários autores, e Iria E. Biritá, de Magda Paixão, ambos com encenação de Eduardo Luiz e representadas no Cineteatro. No ano de 2000, realizou-se o 5.º ERG Teatro. O grupo, ao fim de 25 anos, registou uma série de espetáculos e de outras atividades que lhe permitiram estruturar de maneira diferente os seus serviços. A designação de “Companhia Teatro Experimental do Funchal” surgiu como forma de definir o grupo, constituindo para isso um elenco artístico para os espetáculos infanto-juvenis. Estrearam novas produções: O Noivado, de Almeida Garrett, com encenação de Márcia das Dores, no palco da Juventude Antoniana; e Ema, a partir do romance de Maria Teresa Horta, com dramaturgia e encenação de Duarte Rodrigues, no teatro municipal. No Cineteatro ocorreram os seguintes espetáculos: O Feiticeiro De Oz, de Lyman Franck Baum e encenação de Kot-Kotecki, para o público infanto-juvenil; As Rosas Suicidam-se, de Ramon Gómez de la Sierra (baseado na tradução de Jorge Silva Melo), com encenação de Bruno Bravo e Élvio Camacho, em itinerância até 2001; e A Tia Proezas, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz. Os seguintes espetáculos definiram o ano artístico de 2001: O Planeta De Cristal, com autoria e encenação de Fátima Rocha, e Pastéis de Nata Para a Avó, de Fernando Augusto, com encenação de Eduardo Luiz, ambos no TMBD; A Menina do Sorriso Branquinho, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz, no jardim municipal; À Porta Fechada, de Jean Paul Sartre, com encenação de Kot-Kotecki, também no TMBD; e A Canção Do Realejo, com autoria e encenação de Ester Vieira. No ano de 2002, fizeram parte da programação: Um Gil, Agora o Direi, com textos de Gil Vicente, compilação e encenação de Carlos Cabral, integrado nas comemorações vicentinas no TMBD; A Máquina Do Tempo, de Natália Teles, com encenação de Fernando Augusto; Max, espetáculo de improvisação dirigido por Fabrizio Pellagatti; As Aventuras Do Pinóquio, a partir de Carlo Collodi, com encenação de Kot-Kotecki; Mééé, Tudo É Como É, com textos de Fernando Pessoa e do seu heterónimo Alberto Caeiro, com encenação de Élvio Camacho e Paula Erra. Estes espetáculos mantiveram-se em itinerância até 2009. No ano artístico de 2003, quatro espetáculos se destacaram: Caminhos em Lama, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz para palco (mais tarde gravado para a RTP Madeira, com realização de António Plácido); Quem Tem Medo de Anton Tchékhov, de Anton Tchékhov, com encenação de Bruno Bravo; Atirem-Se ao Ar, de António Torrado e com encenação de Rui Sérgio; e O Circo dos Bonecos, de Oscar Von Pfuhl e com encenação de Eduardo Luiz. Subiram à cena em 2004: A Menina Do Sorriso Branquinho, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz (reposto no jardim municipal); Audição com Daisy ao Vivo no Odre Marítimo, de Armando Nascimento Nóbrega, com encenação de Eduardo Luiz, no TMBD; Maria Minhoca, de Maria Clara Machado, com encenação de Kot-Kotecki; e Rometa e Juliú, com versão cénica de Eduardo Luiz e Magda Paixão, a partir do texto de Yara Silva, com encenação de Eduardo Luiz. No ano de 2005, o TEF acolheu a teatroteca Fernando Augusto, um espólio de livros e revistas de teatro do ator Élvio Camacho. Subiram à cena no TMBD: O Tartufo, de Molière, com encenação de Bruno Bravo; e Matemáticas Assassinas, de Magda Paixão, a partir de Kjartan Poskitt, com encenação de Eduardo Luiz, Os espetáculos definidos no plano artístico foram: Atores de Boa-Fé, de Marivaux, com encenação de Kot-Kotecki; e Lianor no País Sem Pilhas, de Armando Nascimento Rosa, com encenação de Élvio Camacho. O TEF foi nomeado para a 1.ª Gala da RTP-DN, onde foi galardoado com o troféu vencedor, na categoria Teatro. Foi em 2006 que a natureza jurídica do TEF passou para “associação cultural sem fins lucrativos”. Estrearam nesse ano: Zaragata no Calhau, de Carlo Goldoni, com encenação de Élvio Camacho, no TMBD; A Princesa Dos Pés Grandes, de Natália Teles, com encenação de Élvio Camacho; e O Patinho Feio, a partir de Maria Clara Machado e Hans Christian Andersen, com encenação de Eduardo Luiz, no Cineteatro. A 19 de dezembro, o Governo Regional da Madeira homenageou o TEF “pelos relevantes serviços prestados na área da cultura”. Em 2007, foi atribuído à associação o estatuto de “utilidade pública de pessoa coletiva”. Produziram-se diversos espetáculos, como: Verdes Aventuras de D. Quixote, de Fernando Augusto e com encenação de Élvio Camacho; Credo, de Craig Lucas, com encenação de Élvio Camacho; e, com encenação de Eduardo Luiz, Branca Como A Neve, mais uma produção para o público infanto-juvenil, com texto e dramaturgia de Magda Paixão, a partir do original do encenador. Zaragata no Calhau foi reposta no Cineteatro. No ano de 2008, estreou-se Strip, Bang-Bang – Mixórdia do Gargalho, de vários autores, com encenação de Eduardo Luiz. Para as comemorações dos 500 anos da cidade do Funchal, montou-se no TMBD um espetáculo a partir de Thornton Wilder: A Nossa Cidade, com encenação de Élvio Camacho. O ano artístico completou-se no Cineteatro com Histórias da Deserta Grande, de José Viale Moutinho, e Aventura no Funchal, de Avelina Macedo, também com encenações de Élvio Camacho. Apresentou-se em 2009: Greve de Sexo, de Aristófanes, com encenação de Élvio Camacho, no TMBD e no Cineteatro; O Pomar de D. Abundância, a partir de Roberto Merino; e Amigos e Diabretes, com versão de Eduardo Luiz e Magda Paixão, a partir de Kikerikiste, de Paul Maar, com encenações de Eduardo Luiz. No ano de 2010, durante as comemorações do centenário da República, o TEF estreou: O Conde Barão, de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, com encenação de Eduardo Luiz, no Cineteatro (reposto ainda nesse ano, no TMBD); Zé Pateta, Zé Poeta, de Natália Teles, com encenação de Élvio Camacho; e O Príncipe que Queria um Castelo no Ar, de Avelina Macedo, com encenação de Eduardo Luiz. Em 2011, foram apresentados os seguintes espetáculos: A Mandrágora, de Maquiavel, e A Estrela Perdida, de Magda Paixão, a partir do conto de Francisco Fernandes, com encenações de Eduardo Luiz; Madeira My Dear, a partir de Ernesto Leal, que se manteve em itinerância até 2013; e Vampirilda, de Paulo Sacaldassy, com encenações de Élvio Camacho. Os espetáculos da temporada artística de 2012 foram: Schweik na Segunda Guerra Mundial, de Bertolt Brecht, com encenação de Élvio Camacho; O Príncipe com Orelhas de Burro, a partir de Fernando Passos, com encenação de Eduardo Luiz; O Amansar da Fera, de William Shakespeare, com encenação de Diogo Correia Pinto; Os Prisioneiros, a partir de Mário Golen, com encenação de António Plácido; e Um Bolo de Mel para o Cusca, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz. A teatroteca Fernando Augusto deixou a associação devido à dificuldade de gestão desse fundo. No ano de 2013, com dramaturgia e encenação de Diogo Correia Pinto, estrearam: Dramas e Papaias, em parceria com o grupo QuandoéqueteCalasTeatro, e, com produção do TEF, O Avarento, de Molière. Estrearam ainda: Hakim e a Arca de Sândalo, a partir de Norberto D’Ávila; e Big-Bang, Missão (Im)Possível, de Cíntia Palmeira (versão diferente da apresentada em 1997), com dramaturgia e encenação de Eduardo Luiz. Durante o ano artístico de 2014 o TEF apresentou: A Vizinha do Lado, de André Brun, com encenação de Eduardo Luiz; As Três Cidras do Amor, de Yvette K. Centeno, com encenação de Duarte Rodrigues; e A Gata Borralheira, a partir de Maria Clara Machado, com encenação de Eduardo Luiz. Até julho de 2015, subiu à cena Uma Freira dos Diabos, a partir de Miguel Mihura, e Tio Elvão e a Boneca Abandonada, de Eduardo Luiz, a partir de Alphonse Sastre, ambos com dramaturgia e encenação de Eduardo Luiz. Em 2015, faziam parte da associação Eduardo Luiz, António Plácido, Pedro Cabrita, Emanuel Abreu, Paulo Renato, Duarte Rodrigues, Norberto Ferreira, Mário Bettencourt, Eugénio Cabral, Sílvia Marta, Ester Vieira, Magda Paixão, Márcia das Dores, Margarida Gonçalves, Ana Graça, Ana de França, Henrique Vieira, Maria dos Anjos, Cristina Loja e Carlos Pereira. Pela direção artística passaram: entre 1975 e 1978, Orlando Costa e Leopold Kielanowsky; entre 1978 e 1983, Roberto Merino; entre 1983 e 1985, Fernando Heitor; entre 1985 e 2015, Eduardo Luiz (em parceria com Élvio Camacho entre 2005 e 2012). Dentro da área de interpretação, o TEF contou com os seus sócios e com outros intérpretes, quer independentes, quer de outros grupos de teatro. Desde os anos 1990 até julho de 2015, conforme os arquivos existentes na associação, assistiram aos espetáculos do TEF mais de 428.000 espetadores, perfazendo uma média, nos últimos 25 anos, de 17.000 espetadores por ano. Dos 134 espetáculos produzidos desde a sua formação, 62 foram especificamente para o público infanto-juvenil. O grupo apresentou um variado género de espetáculos: performances e instalações teatrais, bem como animação, teatro e poesia de rua. Na sede do grupo, situada no centro cívico Edmundo Bettencourt, além dos serviços administrativos, encontrava-se também, em 2015, o espólio de guarda-roupa e adereços do grupo, assim como um pequeno salão para ensaios, formações e trabalhos. No Cineteatro, local para ensaios e espetáculos, mantinha-se armazenada parte do material cenográfico, assim como toda a sua aparelhagem de luz e som. Desde 1984 até 2015, o grupo obteve diversos apoios sendo o Governo Regional através da DRAC, o seu principal patrocinador. Entre 2012 e 2014, o TEF usufruiu de um apoio subsidiário de 20.000 € por ano e da cedência do espaço onde funciona a sede da associação. A CMF, por seu lado, tem apoiado com a cedência do Cineteatro. O TEF tem contado também com apoios de várias empresas em géneros, que faz diminuir em muito os custos de produção. A existência de um património que foi sendo acumulado ao longo dos 40 anos de atividade teatral permitiu-lhe continuar a montar peças de teatro a baixo custo, contando também com a colaboração gratuita de artistas e técnicos de todas as áreas. O TEF promoveu várias oficinas de formação para artistas e para a comunidade (crianças, jovens e adultos) em diversas áreas de teatro, contando com professores e artistas da associação, do país e do estrangeiro. Apoiou animações culturais, diversos grupos de teatro na RAM e instituições de solidariedade social. Contou, no seu percurso, com a colaboração do AtCF, do Inatel, da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, do teatro nacional D. Maria II, da Secretaria Regional da Educação e da Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espetáculo Chapitô. Desde 1999, apoiou o Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira Eng.º Luiz Peter Clode no empréstimo e cedência de adereços, de guarda-roupa e de espaços para as apresentações dos exercícios práticos do Curso Profissional de Artes do Espetáculo – Interpretação. Sob parceria protocolar, os formandos do 3.º ano realizaram a sua formação em contexto de trabalho, através de um estágio, integrando um dos espetáculos do TEF. Apoiou também diversas entidades (escolas, juntas de freguesia, grupos de teatro e privados), emprestando adereços e guarda-roupa, e cedendo espaços para ensaios e apresentações. Em 1997, iniciou o programa de rádio A Voz do Teatro (mais tarde Bastidor), emitido durante 17 anos (inicialmente no posto emissor do Funchal e, mais tarde, na RDP Antena 2). Os principais objetivos e a missão da associação – além dos mencionados estatutariamente, através do seu grupo TEF e do seu núcleo de formação para crianças, jovens e adultos (Núcleo de teatro infantil Tefos [ex-Tefinhos], grupo de teatro juvenil e 12.º CFA) – foram sempre sensibilizar e promover o teatro no arquipélago da Madeira, centrando-se no teatro para a infância e a juventude e num trabalho de itinerância, de forma a abranger os diversos níveis etários, sociais e intelectuais. A companhia estabeleceu o seu trabalho artístico de forma eclética, estruturando-o pontualmente, tendo sempre em atenção a atualidade, o tipo de público e o seu conhecimento de teatro e das suas obras. Eduardo Luiz (atualizado a 04.10.2016)

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andrade júnior, francisco de

Francisco de Andrade Júnior nasceu em 1806, no dia 6 de junho, no Funchal, cidade onde recebeu a sua instrução inicial, cursando os estudos que então aí existiam, e onde morreria a 23 de fevereiro de 1881. Após a criação, em 1836, do ensino liceal, por decreto de 17 de novembro desse ano, que determinava a existência de um liceu na capital de cada distrito do continente e das ilhas, terminando assim a dispersão da lecionação das aulas pelo país, Francisco de Andrade Júnior foi nomeado, por decreto de 4 de setembro de 1838, professor de Gramática Portuguesa e Latina e de Clássicos Portugueses e Latinos no Liceu Nacional do Funchal (fundado em setembro de 1837 no edifício das antigas Aulas do Pátio), cargo que exercia já interinamente, por carta do Conselho Provincial de Instrução Pública de 23 de março do mesmo ano. Professor respeitado, considerado um dos mais distintos do Liceu do Funchal (posteriormente, a Escola Secundária Jaime Moniz), aí desempenhou também a função de reitor, de 1866 – sucedendo a Marceliano Ribeiro de Mendonça, autor da obra Principios da Grammatica Applicada á Lingua Latina (1835) – até ao ano da sua morte, sendo também, e por inerência do cargo de reitor que exercia, comissário dos estudos do distrito do Funchal, com responsabilidades de vigilância e direção das escolas do ensino primário e secundário com subordinação ao Conselho Superior de Instrução Pública. Neste âmbito, é da sua autoria o Relatorio sôbre as Escholas Municipaes de Instrucção Primaria do Concelho do Funchal, Seguido de um Projecto de Lei ácerca da Creação e Frequência das Escholas (1849). Além de desempenhar estes cargos, Francisco de Andrade Júnior, que foi também vereador na Câmara Municipal do Funchal, dedicou-se ao estudo da gramática da língua portuguesa, sendo autor das obras Principios de Grammatica Portuguesa, editada em 1844, Grammatica Portuguesa das Escholas Primarias, cuja primeira edição data de 1849, sendo reeditada cinco vezes até 1879, e Grammatica das Grammaticas da Lingua Portuguesa…, publicada em 1850.   Aida Sampaio Lemos (atualizado a 22.09.2016)

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autonomia e finanças

A autonomia é um conceito muito amplo em termos políticos e jurisdicionais. Para entender a sua ligação às finanças, deve-se acompanhar a sua evolução, tendo em consideração as implicações que apresenta em termos da estrutura e da gestão dos recursos financeiros. Neste quadro, torna-se necessário diferenciar alguns momentos: o período inicial de ocupação do território da Ilha, de 1433 a 1497, com a definição do sistema de senhorio, e o período de autonomia limitada das juntas gerais, a partir de 1901, que deu lugar ao Governo regional da Madeira e a um novo sistema político administrativo em 1976. Palavras-chave: autonomia; conflitos; contas; finanças; orçamento. A autonomia é um conceito amplo em termos políticos e jurisdicionais. Para se entender a sua ligação às finanças, deve-se acompanhar a sua evolução, tendo em conta as implicações que apresenta em termos da estrutura e gestão dos recursos financeiros. Neste quadro, torna-se necessário diferenciar dois momentos. O período inicial de ocupação do território da Ilha, que ocorreu entre 1433 e 1497, tendo-se definido o sistema de senhorio que sucedeu à plena afirmação das instituições régias, e, depois, o período a partir de 1901, com a autonomia limitada das juntas gerais, que deu lugar, em 1976, ao Governo regional da Madeira e a um novo sistema político e administrativo.  Por lei de 20 de março de 1907, existiam dois tipos de contas do Estado para a receita e a despesa: a conta do ano económico, que ficava aberta por cinco anos, e a conta de gerência, encerrada anualmente, que seria o registo das operações contabilísticas e financeiras do ano económico. Pelo dec. n.º 3519, de 8 de maio de 1919, estes prazos foram alterados, tendo a conta da receita e da despesa do ano de 1918 ficado aberta apenas durante dois anos. Posteriormente, o dec. n.º 18.381, de 24 de maio de 1930, determinou com força de lei que estas deveriam ser encerradas 45 dias após o fim do ano económico. Esta situação conduziu a que os valores apresentados em distintos documentos fossem diferenciados, estando a informação organizada com base em diferentes critérios, impedindo uma adequada valorização a partir das regras contabilísticas posteriores. Mesmo assim, não é justificável a existência de algumas disparidades (aliás muito frequentes) que podem ser encontradas na apresentação dos dados contabilísticos. O facto foi devidamente referenciado, nomeadamente na imprensa, sem se compreender a razão de tão evidentes diferenças numéricas. Uma deficiente informação contabilística deu origem a incorreções na apresentação de certos dados da receita e da despesa da Madeira, divulgados na imprensa e em algumas publicações, durante os sécs. XIX e XX. De acordo com a receita e a despesa do Tesouro na Madeira, entre os anos económicos de 1874-1875 e 1913-1914, a Ilha apresentaria um saldo negativo nos anos económicos de 1888-1889 a 1891-1892. Esta situação, porém, não corresponde à realidade dos dados apurados em informação paralela. Na verdade, a Madeira nunca apresentou qualquer saldo negativo. A riqueza gerada pelas pesadas e inúmeras tributações sempre suplantou a magra despesa ou o investimento do senhorio, da Coroa ou do Estado. Em muitas situações, aparecem dados de acordo com o ano civil, impedindo a sua contabilização por ano económico. A isto, junta-se a dificuldade, comum na documentação oficial do continente, em diferenciar os dois arquipélagos na escrituração contabilística de receitas e de despesas, o que impede, em muitas situações, de saber qual a importância atribuída à Madeira. É típica a ideia de que a informação contabilística disponível é muito dispersa, impossibilitando, muitas vezes, o estabelecimento de séries e uma avaliação real das contas. Por conseguinte, a tarefa de reconstituir e de conhecer o movimento das finanças da Região não é fácil. As informações estatísticas oficiais e a organização contabilística do orçamento e das contas surgem apenas a partir da década de 30 do séc. XIX, mas, mesmo nesta centúria, os dados são, muitas vezes, escassos. Relativamente aos séculos anteriores, os dados são avulsos e não permitem, em algumas situações, as necessárias seriações. Faltam os livros dos contadores da Provedoria da Fazenda, os registos completos da Alfândega, assim como os dos diversos tributos e impostos. Mesmo assim, foi possível recolher, em diversas publicação, dados que apontam para uma realidade diferente da que é geralmente aceite. Nem sempre os números apresentados revelam devidamente o retrato da realidade, nomeadamente da despesa. Há várias situações que determinam o recurso a variáveis e a realidade, que permitem descobrir que a despesa foi superior ao normal e que o arquipélago teve de assumir encargos que não lhe pertenciam. Assim, e.g., instabilidade política do séc. XIX transformou a Madeira num espaço de desterro para os militares opositores, servindo como uma forma de desafogar os quartéis do continente. Entre 1823 e 1919, estiveram estacionados na Ilha diversos batalhões de Caçadores e de Infantaria, alguns deles com mais de 400 praças, cuja manutenção seria assegurada e paga pelos cofres do Tesouro da Ilha; e.g., o Batalhão de Infantaria n.º 12 esteve no Funchal entre os anos de 1837 e 1847, período durante o qual a despesa efetiva da Madeira foi superior, pois necessitava de assegurar a manutenção deste gasto. A despesa do Ministério da Guerra na Madeira, a partir do orçamento de 1833, foi a mais elevada de todas as rubricas ministeriais na Ilha, chegando a representar mais de metade do dispêndio total da Ilha. Em março de 1824, e apenas neste mês, existe uma referência ao desembolso de 10.183$381, que representou, então, 55 % da despesa da Madeira. A isto, deve-se juntar a consideração referente a outra realidade muito comum nos espaços insulares, que se prende com o contrabando de mercadorias proibidas e o descaminho dos direitos. A informação sobre estas atividades ilícitas é proveniente do séc. XV e é contínua. Tais atividades seriam os meios habituais dos insulares para se furtarem aos direitos, em sua opinião excessivos, que penalizavam alguns produtos de importação e de exportação; eram também modos de combate ao regime de monopólio de produção e de venda de alguns produtos, como o sal, o tabaco, a urzela e o sabão. Para alguns produtos com peso especial nas exportações, é possível estabelecer uma estimativa das situações de descaminho aos direitos, através de análises comparadas dos valores da produção e de consumo com os da exportação. Assim, para as ilhas, algumas mercadorias, como o sal, o sabão e a urzela, que estavam sujeitas ao regime de monopólio de produção e de comércio, foram alvo de múltiplas situações de contrabando, que em muitas situações é considerado como superior a um quarto do total das transações. A autonomia, concedida, em 1895, a alguns dos distritos dos Açores e, em 1901, à Madeira, poderá muitas vezes ser entendida como uma possibilidade de avanço e de afirmação dos espaços insulares, dando-lhe os meios para o seu autodesenvolvimento. No entanto, tudo isso teve parca expressão nos diplomas oficiais. Recorde-se o debate e a intervenção de diversos políticos insulares, entre os finais do séc. XIX e o findar do primeiro quartel da centúria seguinte, em que se reivindicaram e apresentaram propostas de autonomia política e financeira que tardaram a concretizar-se. Insulares e continentais enfrentaram-se, frequentemente, sobre estas questões, tendo, talvez, existido medo dos primeiros em cortar este laço umbilical e, dos outros, em perder o domínio e o controlo político e financeiro. Estas condições nunca satisfizeram os madeirenses e os açorianos e, ao longo do tempo, foram surgindo sugestões de alargamento da autonomia financeira. Com efeito, desde o séc. XIX que a principal questão no debate e na reivindicação da autonomia se prende com as finanças. A cobrança dos impostos e a aplicação do produto líquido não revertia em benefício da Região. Esta ideia persistia e dominava o debate. Em 1882, lia-se no Distrito do Funchal que o governo “só se lembra desta terra para levantar do seu cofre central o produto de tanto sacrifício” (VIEIRA, 2014g, 51). Esta reclamação chegou à Assembleia pela voz de Manuel José Vieira, numa intervenção de 7 de maio de 1883: “sabemos que fazemos parte do reino de Portugal única e exclusivamente para quinhoarmos nos encargos que se renovam ou batizam com nomes diferentes mas que sempre se acrescentam” (Id., Ibid., 45). Em 1887, no Diário de Notícias, surge o apelo à união e à luta “por todos os meios e incessantemente a fim de se conseguir dos poderes públicos a reparação que nos é devida por meio de obras e providências legislativas que nos assegurem um futuro, não diremos brilhante, mas de modesta prosperidade” (VIEIRA, 2014, 37). No mesmo jornal, surge em 1924, uma acusação semelhante, de forma clara: “é preciso que os madeirenses unidos pelo mesmo pensamento façam ver de um modo irrecusável aos governos de Lisboa, que são mais alguma coisa do que matéria coletável [...] o povo da Madeira é um povo livre [...] não é escravo nem burro de carga” (Id., Ibid.). Em 1931, em plena euforia da revolta da Madeira, o discurso dos cabecilhas ia ao encontro desta aspiração dos madeirenses de administrarem as suas receitas para benefício próprio. Num manifesto aos madeirenses, datado de 21 de abril, apelava-se à sua adesão à revolta, pois o seu triunfo “permitirá falar com liberdade e firmeza, para pedir, para exigir do governo que as suas receitas próprias cá fiquem durante largos anos, a fim de com elas serem executadas obras importantes e de grande necessidade, há largos anos, reclamadas, mas sempre postas de parte, para satisfação de caprichos pessoais e de ódios políticos” (VIEIRA, 2014g, 69).   No diferendo entre a metrópole e as ilhas sobre as questões financeiras e tributárias, há dois momentos de grande debate: com o Estado Novo e, a partir de 1974, com o Estado democrático. A intervenção de Oliveira Salazar, no sentido do saneamento das finanças públicas, aconteceu num momento de grande efervescência nos espaços insulares, onde surgiram, em 1931 e 1936, duas convulsões populares que geraram neste governante alguma antipatia em relação à Madeira e aos madeirenses. A Revolução de 25 de abril de 1974 abriu o caminho para uma nova realidade nas relações entre a Ilha e o continente, que culminaria, em 1976, com a criação da região autónoma, com Parlamento e Governo regionais. Surgiu uma realidade política diferente, mas nem por isso as questões financeiras deixariam de revelar o desacordo entre a Região e a metrópole. Por parte desta, estava sempre latente a pretensa ingratidão das ilhas e a ideia de que as mesmas não se mostravam disponíveis para o esforço nacional de recuperação financeira, estando, permanentemente, a reivindicar apoios financeiros.  Expressões da autonomia financeira  O infante D. Henrique, por carta da doação de D. Duarte, de 26 de setembro de 1433, tornou-se o senhorio das ilhas, tendo recebido, por isso, o pleno direito à sua posse, usufruto e administração, que passava pela distribuição das terras, pelo estabelecimento de regimentos para o governo das capitanias, em termos de administração económica, fiscal e judicial, e pela definição das culturas mais adequadas aos seus objetivos e com maior rentabilidade, tais como os cereais, a vinha, o pastel e os canaviais. Desde muito cedo, estabeleceram-se mecanismos de controlo e de arrecadação dos chamados direitos senhoriais, com a criação de estruturas adequadas. Surgiu assim a figura do almoxarife, que já está testemunhada em 1452, e em 1477 foi criada a Alfândega. A quantificação deste contributo financeiro da Madeira e do Porto Santo é impossível, por falta de registos documentais, mas a informação avulsa permite afirmar que estas ilhas foram, desde o início, contribuintes ativos. Nas finanças da Ordem de Cristo e da Casa do Infante, o tributo madeirense era de 1.500.000 reais, correspondendo a 40,54 % do total dos rendimentos da sua casa senhorial. João de Barros refere ainda que o mestrado da Ordem de Cristo auferia anualmente mais de 60.000 arrobas de açúcar da Ilha, confirmando-se que esta tinha um peso significativo nas finanças das referidas instituições. Uma das primeiras medidas alcançadas pelo senhorio foi a isenção, por parte da Coroa, da dízima das exportações que se fizessem para o reino. Era um incentivo à fixação de colonos na Ilha, que se manteve durante muito tempo e de que os madeirenses nunca abdicaram, considerando-a, certamente, como um privilégio perpétuo para a sociedade. Tenha-se em conta que esta política de isenção da dízima, no movimento de exportações e de importações entre o arquipélago e o continente português, para além de favorecer as ligações aos portos do reino e o consumo dos produtos nacionais, contribuiu para estabelecer vínculos de dependência com a metrópole em termos do comércio externo da Ilha, situação que se tornaria desfavorável em muitos casos. Por outro lado, levaria a que uma importante e significativa receita local, nomeadamente a da exportação do açúcar, ficasse nas Alfândegas de Lisboa, do Porto e de Viana do Castelo, a partir de onde se exportava uma grande quantidade daquele produto para os principais mercados europeus.  Não temos conhecimento de que o Senhorio tenha feito qualquer investimento produtivo, por exemplo, em infraestruturas, à exceção das muito rudimentares alçapremas do infante, nos primórdios da exploração açucareira. Pelo contrário, temos de referir as insistentes queixas relativas à falta de investimento para a modernização e a adequação das infraestruturas aos serviços que prestavam. Aos moradores, ficou reservada a tarefa de preparar os terrenos para o arroteamento imediato, com a construção de muros de sustentação das terras e da abertura de levadas para o regadio, pelo que, inicialmente, a concessão de terras só seria possível àqueles que tivessem posses para tamanho investimento.   A Madeira encontrava-se ocupada desde há pouco mais de 50 anos e a cultura dos canaviais entrava no seu momento de apogeu. Daqui resulta a importância e a valorização em que era tida no património financeiro do reino. A construção dos paços do concelho foi feita com o financiamento próprio do concelho através dos rendimentos da imposição do vinho. O projeto de construção de cerca e de muros, concretizado mais tarde, partiu, também, de fontes de financiamento próprias que oneravam, de novo, as populações. Os apoios substanciais que se esperariam por parte do senhorio não existiram. Depois desta fase, surgiu a plena afirmação das estruturas de poder régio, com particular incidência nas que se encontravam ligadas às finanças. A Coroa apostou ainda na regulamentação rigorosa das estruturas fiscais, através dos forais do almoxarifado das Alfândegas (1499) do Funchal, de Machico e de Santa Cruz (1515). Esta medida foi antecedida, em 1497, da abolição do senhorio, fazendo reverter para a Coroa todo o património madeirense de forma durável e reservando-se esta o direito de reforma dos arcaicos forais que regulamentavam a fiscalidade, pela necessidade de adequar os regimentos à nova realidade socioeconómica. A presença da Coroa e das instituições que a representam ao nível da justiça e da fiscalidade consolidaram-se nos anos seguintes, pois esta Ilha era uma das suas primeiras e principais fontes de riqueza.  A partir de então, a Fazenda Real nunca prescindiu do contributo madeirense e continuou a usar todos os meios para usufruir da riqueza gerada no arquipélago através dos tributos existentes, sendo alguns deles específicos da Ilha, assim como por meio do apelo a permanentes empréstimos e fintas. Esta política de constante solicitação do esforço tributário dos madeirenses foi prejudicial à Madeira, gerando laços de cada vez maior dependência e um atraso secular, manifesto aos mais diversos níveis, mas acima de tudo no estado de degradação dos edifícios das instituições da Coroa, das igrejas e das capelas. O direito de padroado era um compromisso e um encargo assumidos pelo Rei, que raras vezes o honrou. A Coroa atuou de todas as formas, no sentido de evitar o chamado açúcar cativo, i.e., o açúcar subtraído ao pagamento dos tributos régios, nomeadamente aos quintos e às dízimas de saída. Para isso, foi estabelecido um apertado sistema de controlo que começava nos canaviais, continuava no engenho e terminava à saída do porto. Assim, como forma de controlar e de prever a receita, determinou-se a regra do estimo da produção de açúcar dos diversos proprietários de canaviais.   A pressão fiscal sobre os produtos de alta rentabilidade poderá ter muitas vezes efeitos negativos, em situação de livre concorrência com outros mercados e com outros produtos. Em princípios do séc. XVI, a concorrência dos açúcares dos mercados da Madeira e das Canárias esteve sujeita a esta situação, criando circunstâncias desfavoráveis para a Ilha. Na época senhorial, o donatário considerava-se o proprietário do espaço da Ilha e, portanto, tudo o que recebia dos povoadores que haviam aceitado dádivas de terras era um tributo, fruto do direito de posse. Nestas circunstâncias, estabelece-se a ideia dos direitos senhoriais, que está longe da ideia do imposto ou tributo que se impõe com uma determinada função social, económica e cultural, ou em troca de serviços. Mas esta ideia medieval dos direitos senhoriais continuará presente até à época liberal. Esta forma de encarar a situação tributária não implicava uma atitude retributiva que, quando acontecia, era apenas a título de dádiva ou de esmola. Existem inúmeros testemunhos destas situações no reinado de D. Manuel, que foi certamente, de entre todos os monarcas, o que mais lucro obteve com a economia madeirense, mas também aquele que se mostrou mais magnânimo para com os habitantes da Ilha. A contrapartida a este contributo dos madeirenses estará quase só na política de ofertas estabelecida pelo mesmo Rei, que aumentou, em muito, o património artístico da Madeira. Em diversas circunstâncias, é manifesta uma tradição não retributiva por parte da Coroa, mesmo nas suas obrigações. As grandes obras de construção da praça, dos paços do concelho, da cadeia e da igreja fazem-se, em princípio, à custa dos moradores, através de taxas, do seu trabalho braçal e de algumas das chamadas esmolas da Coroa. Assim sucedeu com as obras do Hospital da Misericórdia do Funchal, com as da Sé do Funchal e com as das cadeias. O mesmo aconteceu com as obras de fortificação, tão importantes para segurança dos moradores e para a salvaguarda da soberania e dos interesses financeiros da Coroa. Até, na verdade, a imposição do vinho, criada em 1485 para acudir às principais despesas do município, acabou por ser usada pela Coroa com outras finalidades. Portanto, como já se disse, a Madeira foi um contribuinte ativo para os cofres da Coroa, mas poucas vezes sentiu o retorno útil da sua riqueza. As ocasiões em que o saldo das contas foi negativo foram raras: quando foi necessário um apoio da Coroa, este foi feito através de um empréstimo com retorno. Os encargos definidos pela despesa fixa da Coroa na Ilha eram, por norma, muito reduzidos. Considere-se, e.g., os dados disponíveis para o período de 1501 a 1537, durante o qual a despesa de funcionamento com o almoxarifado começou por ser apenas de 20$000, para subir, na década de 30, para cerca de 90$000 réis. Depois, para os anos de 1581 e entre 1602 e 1618, existiu, de novo, uma situação semelhante; pois, de uma despesa global com os ordenados do clero e dos funcionários, superior a 7 contos, apenas 2 contos se referem aos funcionários da justiça e da Fazenda Real, sendo o demais para o clero e o funcionamento das igrejas. O projeto de expansão e de afirmação colonial portuguesa teve custos elevados, que foram sendo suportados com financiamentos estrangeiros e com a riqueza gerada nos novos espaços de ocupação, como foi o caso da Madeira. Assim, na primeira metade do séc. XVI, as despesas relacionadas com o socorro e a manutenção das praças africanas são mais um encargo que os madeirenses assumem em razão da proximidade. Algumas destas praças, como Mogador e Safim, estavam na dependência quase direta da Madeira, de forma que, em 1506, o Monarca ordena aos almoxarifes e aos recebedores na Ilha que satisfaçam todos os pedidos de Diogo de Azambuja para as obras da fortaleza de Mogador. E a participação e o investimento dos madeirenses nas campanhas africanas não se ficaram apenas pelo séc. XV; nos séculos seguintes, a Ilha participou de forma assídua, com mantimentos e com homens, na defesa das praças, face às investidas muçulmanas. Mais tarde, haverá uma intervenção de vulto dos madeirenses no Brasil, tendo vários homens e meios financeiros acudido ao resgate dessa colónia e ajudado à luta contra a ocupação holandesa. A Coroa, a exemplo do que havia sucedido com o senhorio, tinha o direito ao usufruto da riqueza gerada pelos madeirenses. Desde os primórdios, estabeleceu-se uma espécie de contrato de colónia entre o senhor (mais tarde, a Coroa) e os madeirenses, obrigando-os a realizar todo o tipo de benfeitorias e ao pagamento ao dito proprietário da Madeira de muito mais que a demidia (metade) das suas produções e da sua riqueza. Os primeiros colonos fizeram um esforço enorme para adaptar a orografia da Ilha às condições das distintas práticas agrícolas, um trabalho raras vezes devidamente compensado com a parte que sobrava das suas colheitas. Os madeirenses, ao longo desta época, sentiam que estavam a ser saqueados pela Coroa, um sentimento manifestado em distintas situações e momentos, a exemplo do que sucedera, em 1566, com o assalto dos corsários franceses – em que a Fazenda Real foi a menos prejudicada, pois os cofres foram postos a salvo no Caniço a tempo. As rendas da Madeira não atuavam apenas como fator de relevo nas finanças dos cofres nacionais: foram também usadas como moeda de troca no quadro das relações diplomáticas internacionais, durante as primeiras décadas do séc. XIX. A Madeira foi entregue a forças ocupantes, serviu de garantia a empréstimos, e foi apontada como solução para a dívida nacional através da sua venda. Isto prova e reforça o papel da Madeira, no quadro das finanças nacionais. E.g., em 1801, foi realizado um empréstimo de 9.000.000 de cruzados, feito com a garantia dos dízimos e demais rendas reais da Madeira. Depois, em 1809, relativamente a um empréstimo de 600.000 libras, os Ingleses receberam como garantia os rendimentos das Alfândegas da Madeira e dos Açores, e, em 1832, a concretização de um empréstimo de 300.000 libras esterlinas designou, de novo, os rendimentos da Madeira como uma forma de hipoteca. É problemático o estabelecimento de impostos e de adicionais com finalidades específicas que, por serem gerais do país, nunca chegam à Madeira. Nesta época, houve momentos de esplendor, mas também de grandes dificuldades, como as aluviões de 1803 e de 1842, em que o Estado não se mostrou tão magnânimo quanto deveria ser na sua intervenção e no seu apoio, como provam os orçamentos e as contas do Estado a partir de 1833. Os 30 contos enviados em 1842, para acudir as despesas associadas à aluvião, de pouco serviram. Por lei de 1761, a Madeira uniformizou o seu sistema tributário com o do continente, deixando de existir situações específicas relativamente a este aspeto. Isto gerou dificuldades de administração financeira devido às diferentes realidades do continente e das ilhas que, no caso das Pautas Aduaneiras, tornaram mais real a expressão dos problemas de uma lei definida com o desconhecimento da realidade das distintas e diferenciadas regiões. A ideia de associar as ilhas e os arquipélagos à metrópole através da designação de adjacentes foi uma medida fatal, com consequências inevitáveis na economia e no sistema tributário. A possibilidade de intervenção dos insulares na Câmara dos Deputados, através de deputados eleitos, foi uma oportunidade de afirmação desta diferença e da identidade, mas não um reconhecimento, de facto, das divergências que a lei procurava a todo o custo combater. Em 1895, surgiu a autonomia, primeiro para alguns distritos dos Açores, sob a forma de restauração das antigas juntas gerais, com intervenção específica em termos administrativos e financeiros. Depois, em 1901, a Madeira acompanhou o processo. Mas tudo ainda estava em aberto em termos de uma plena valorização dos espaços insulares, tendo em vista a capacidade de autogoverno. Após a reforma tributária da década de 40 do séc. XIX, surgiram outras em 1911 e em 1922, porém, as alterações mais significativas no sistema só aconteceriam a partir de 1928, com a intervenção de Oliveira Salazar. Mais uma vez, o compasso do tempo político não se coaduna com o do sistema tributário. A República, em 1910, não representou uma rutura com as finanças e a contabilidade vigentes, a exemplo do que havia sucedido com a Revolução Liberal de 1820. A viragem no sistema acontece, a partir da década de 30, com as reformas de Mouzinho da Silveira, que tiveram apenas uma expressão prática e constitucional, com a reforma da Fazenda de 1843. Entretanto, na década de 30, na sequência das reformas realizadas pelo Governo provisório da ilha Terceira, houve, em 1832, a substituição do Tribunal do Erário Régio pelo Tribunal do Tesouro, e, em 1833, algumas reformas da Fazenda Pública e das Alfândegas (em todo o caso, foi a partir de 1843 que aconteceu a viragem do sistema, que teve continuidade nas reformas da contabilidade e da Fazenda Pública de 1854, 1869, 1870, 1881, 1891 e 1907). A partir de 1901, a Madeira passou a gozar, a exemplo dos Açores, de autonomia administrativa com o restabelecimento da Junta Geral. Todavia, as condições de instabilidade política do primeiro quartel do séc. XX, associadas às limitadas competências e capacidades financeiras da Junta, não permitiram que surgissem intervenções deste novo regime administrativo tão favoráveis quanto eram as esperanças dos autonomistas madeirenses. Tanto mais que a década de 30, aproveitando a evocação do quinto centenário do descobrimento da Madeira, foi um momento de debate por mais e melhor autonomia, revelando a insatisfação da elite política da Ilha. Com a República, não se estabeleceram alterações significativas ao sistema vigente. A lei n.º 88, de 7 de agosto de 1913, quanto aos distritos da Madeira e dos Açores, confirma o que está estabelecido no decreto de 2 de março de 1895, nomeadamente nos artigos n.os 28, 29, 30, 31 e 32. Apenas se acrescenta, no parágrafo n.º 6, que: “As juntas pagarão ao Estado, como compensação pela cobrança das contribuições, 5 por cento das quantias arrecadas, cuja dedução será feita em cada ordem de entrega de receitas, assinada pelo inspetor de finanças” (Id., Ibid,, 485). Em 1922, a situação da Ilha não era distinta dos anos anteriores; no entanto, foi o ano escolhido para a comemoração do quinto centenário do descobrimento da Madeira. Este foi o argumento para fazer despertar o espírito autonomista e regional dos madeirenses. Em outubro e novembro de 1920, Eduardo Antonino Pestana, entusiasmado com os resultados positivos da realização de congressos regionais em várias localidades do continente (uma iniciativa que partira de Augusto de Castro, então diretor do Diário de Notícias de Lisboa), reclamava insistentemente, no Diário de Notícias do Funchal, a necessidade de uma iniciativa idêntica na Madeira. O objetivo do congresso a realizar na Ilha era produzir um levantamento dos principais problemas com que esta se debatia e criar uma comissão para reclamar as soluções necessárias junto dos parlamentares madeirenses e dos ministérios do Terreiro do Paço, em Lisboa. Isto é, criar um grupo de pressão madeirense na capital. Entre os finais de 1922 e os princípios de 1923, gerou-se no Funchal um clima eufórico de debate em torno do alargamento da autonomia. Porém, realizado o debate, algumas ideias haviam demonstrado que, sem a colaboração da classe política da Madeira e do continente, não era possível fazer avançar o parco regime autonómico de 1901. A classe política da Madeira, dependente das estruturas e dos favores da continental, estava dividida. Por outro lado, as forças vivas madeirenses não só não sabiam bem o que queriam como estavam também acomodadas. A ideia de autonomia era agora distinta daquela que tinha existido em finais do séc. XIX. A influência inglesa conduziu à reivindicação de uma ampla autonomia que, segundo se dizia em 9 de novembro de 1921, deveria ter na bandeira “a única ligação com a Mãe Pátria” (Id., Ibid., 71). Para o movimento autonomista madeirense dos anos 20, muito contribuiu a atitude do então presidente da Comissão Executiva da Junta Geral, Fernando Tolentino Costa, que, aproveitando a passagem pela Ilha do Presidente da República, António José de Almeida, a 9 de outubro de 1922, quando regressava do Brasil, lançou o desafio no sentido do alargamento da autonomia. O facto teve eco na imprensa local e fez com que o movimento autonomista ganhasse novo alento. A Junta Geral, tomando a liderança do processo, enviou um ofício para as juntas gerais dos Açores (Ponta Delgada e Angra do Heroísmo), propondo uma congregação de esforços e uma concertação de ações com este objetivo, convocando uma assembleia de madeirenses, donde saiu uma comissão autonomista, que se reuniu pela primeira vez a 21 de dezembro de 1922, na sede da Associação Comercial do Funchal. Foi aqui que Manuel Pestana Reis apresentou o texto das bases da autonomia, que foi depois publicado na brochura das comemorações do quinto centenário da descoberta da Madeira. Com a proposta de estatuto em debate, pretendia-se estabelecer, pela primeira vez, a coexistência dos poderes legislativos e executivos. Surgia, assim, um conselho legislativo eleito entre as câmaras e as associações de classe, que poderia legislar no domínio regional. Apenas lhe estariam vedadas as questões referentes ao exército, às relações com o estrangeiro, à formação do Governo, à justiça e ao ensino. O quadro institucional completava-se com o conselho executivo, eleito pelo legislativo, com a função de superintender as finanças, de fiscalizar o orçamento e de superintender os serviços e as obras públicas. A representação do governo no distrito continuaria a ser feita pelo governador civil, nomeado mediante consulta ao conselho executivo. Ao mesmo, seriam acometidas funções de fiscalização e de assistência aos diversos órgãos da administração. Uma das reivindicações mais destacadas foi o direito à fruição em benefício próprio das receitas arrecadadas. A Madeira deveria deter a sua total administração, ficando ao Estado apenas o direito a uma quantia fixa para cobrir os custos da cobrança. Esta autonomia era entendida pelo próprio Manuel Pestana Reis como uma forma de “desconcentração política e administrativa” (Id., Ibid., 76) e ia ao encontro de anteriores propostas surgidas nos Açores, da autoria de Aristides da Mota (1892) e de Francisco de Ataíde Manuel de Faria e Maia (1921). Durante este momento, o intercâmbio dos projetos autonomistas de ambos os arquipélagos foi um facto, tendo sido, de novo, promovido pelo presidente da Junta. Em dezembro de 1922, uma representação de Ponta Delgada, chefiada por Luís de Bettencourt e Câmara e por José Bruno Carreiro, chegou à Madeira, seguindo-se, em janeiro do ano seguinte, a presença de Frederico Augusto Lopes da Silva, de Angra. No ano imediato, na Madeira, também foi discutida a temática da autonomia. Evocou-se o quinto centenário da descoberta da Madeira e todos, ou quase todos, clamaram por uma nova descoberta, materializada em mais e melhor autonomia. Um dos pontos assentes do projeto autonomista apresentado por Manuel Pestana Reis (1894-1966) era a questão financeira. A Revolução de 28 de maio de 1926 foi saudada por muitos sectores da sociedade madeirense que depositaram nela as suas esperanças de mudança. A primeira alteração ocorreu com o dec. n.º 15.035, de 16 de fevereiro de 1928, que ia ao encontro de algumas das reivindicações no campo financeiro. A receita da cobrança da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial, do imposto de aplicação de capitais e do imposto de transações era da Junta seria usada em benefício da Região, ficando o Estado com apenas 1 % desta para despesas de cobrança. A 31 de julho, com o dec. n.º 35.805, a situação alterou-se novamente. Este decreto, assinado pelo então ministro das Finanças, Oliveira Salazar, marcou o princípio do fim do combate autonomista das ilhas. Antes, aumentara-se a receita dos distritos, agora, impunham-se novos encargos, com o alargamento da descentralização a serviços dependentes dos ministérios do Comércio, Agricultura e Instrução, do Governo Civil, da polícia cívica, da saúde, da assistência, e da previdência. Sem capacidade para acabar com a autonomia, Salazar acedeu às aspirações autonomistas transferindo alguns serviços, que conduziram à asfixia financeira das Juntas. As reformas do Governo do Estado Novo não satisfizeram a ambição dos regionalistas. O madeirense Quirino de Jesus, ainda que muito próximo de Salazar na definição da política económica e financeira, não conseguiu demovê-lo quanto à sua visão da autonomia. Ele defendera que a autonomia insular era definida pelo carácter financeiro e económico, só se podendo afirmar com reformas financeiras. De acordo com a sua ideia de divisão administrativa, o distrito cederia lugar à província, que passaria a ter ao comando um governador-geral residente, de nomeação governamental. A ele juntava-se a Junta Geral de Província e o Conselho de Governo. A primeira era composta por procuradores eleitos pelas Câmaras Municipais, pelas associações, pelos professores e pelos chefes de serviço das repartições públicas, enquanto o segundo seria presidido pelo governador, integrando vogais eleitos de entre os procuradores e os chefes dos serviços. A Constituição, aprovada em 11 de abril de 1933, estabelecia para as ilhas uma administração especial (artº. 124 § 2.º), que só foi regulamentada pela lei n.º 1967, de 30 de abril de 1938, que estava muito distante destes propósitos. No preâmbulo da lei, refere-se que a geografia obrigou a esta descentralização e desconcentração “em benefício dos povos e com vantagem para a boa administração”. As reclamações dos insulares levaram a que o Governo as atendesse, em 1928, com alterações significativas, através da descentralização de muitos serviços; mas surgiram novamente imensas reclamações, porque as receitas eram insuficientes, continuando o legislador a negar a possibilidade do usufruto total das receitas fiscais: “Formam as ilhas adjacentes um todo com o continente, é o mesmo o seu sistema de administração e governo, como o mesmo é o grau de civilização dos habitantes e de progresso social: seria, pois, contrário ao bem comum consagrar uma forma egoísta de plena autonomia financeira que parecesse realizar a desintegração do Estado de uma parte do seu território metropolitano”. Sobre as anteriores medidas dizia-se “que foi excessiva a liberdade conferida às juntas em 1928” (Id., Ibid., 78), pois a descentralização sem a tutela governamental podia ser um princípio para uma má gestão. Deste modo, manteve-se a descentralização existente, passando, todavia, a ser fiscalizada pelo governo civil e tutelada pelo Governo central. Nesta reforma do estatuto, surge, como uma novidade, a função de coordenação económica da Junta, que tinha uma expressão ao nível do planeamento apenas nos planos trienais. Esta problemática motivou um debate público no Funchal, em janeiro de 1968, sob a epígrafe I Semana de Estudos sobre problemas sociais económicos do desenvolvimento. Como corolário desta reivindicação, foi publicado, em 11 de março de 1969, o dec.-lei n.º 48.905 que estabeleceu e regulamentou o planeamento regional, função que ficou a cargo da Junta Geral, merecendo a contestação de todos os sectores. Quando Marcelo Caetano substituiu Salazar, a 27 de outubro de 1968, era evidente a expectativa dos insulares quanto às reivindicadas alterações do estatuto. Esta possibilidade havia sido admitida pelo próprio presidente do Conselho de Ministros quando, em dezembro de 1969, visitara a Madeira. Na verdade, a década de 60 foi, de novo, uma altura de debate da autonomia, sendo o Comércio do Funchal o porta-voz destes anseios. Então, para além da visível asfixia financeira das juntas, insistia-se na necessidade de um plano de desenvolvimento regional, que chegou à Assembleia Nacional a 5 de abril de 1963, pela voz do deputado madeirense Agostinho Cardoso. As eleições para a Assembleia Nacional de 26 de outubro de 1969 acontecem no decurso do debate do processo autonómico, sendo este ideário assumido pelos candidatos da oposição democrática. Durante muito tempo, as reivindicações dos madeirenses assentaram no retorno do dinheiro dos seus impostos para a realização de obras necessárias ao desenvolvimento da Ilha, que, em muitas situações, acabariam por trazer retorno ao Estado. Com um programa de regadio, ampliar-se-ia a área agrícola e também os tributos; com a construção de portos, de cais e de embarcadouros, seriam garantidas as condições de circulação de pessoas e de produtos, animando eficazmente a agricultura e o mercado; por fim, o porto principal no Funchal, com condições de apoio à navegação livre de taxas tributárias, era uma esperança para os madeirenses, que viram nele a possibilidade de uma grande escala oceânica e de desembarque de turistas. Tudo isto era conhecido e sabido, mas continuavam a tardar as soluções. As populações continuavam isoladas nos seus locais de nascimento, frequentemente alheias a tudo. A ida ao Funchal era um acontecimento ocasional e de grande comemoração. Desde o primeiro quartel do séc. XIX, as reclamações dos madeirenses manifestaram-se no sentido de o Estado intervir na Madeira através de obras públicas para a abertura de caminhos, de levadas e de canalização das ribeiras. A crise agrícola e comercial fez despertar o olhar crítico de muitos madeirenses e ampliou a imagem de uma terra abandonada à sua sorte, sem ninguém que lhe acuda. A partir de maio de 1974, alterou-se o espectro político da Região, tendo-se manifestado à luz do dia vários grupos políticos de cariz regional e promotores da autonomia, que deram vigor ao movimento autonomista, que ganhou forma com o Estatuto Provisório da Madeira, de 29 de abril de 1976. Depois, o ato eleitoral para a Assembleia Regional, a 27 de junho, abriu o caminho para a afirmação do processo constitucional, com a atribuição da autonomia político-administrativa consagrada na Constituição que foi aprovada a 2 de abril de 1976. Tenha-se em consideração que, a partir de 1986, a realização dos empreendimentos que permitiram a total mudança do arquipélago só foi possível com o apoio financeiro da então Comunidade Económica Europeia, a que Portugal entretanto aderira. O estatuto provisório, aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, estabeleceu a possibilidade de a Região legislar e regulamentar sobre os impostos regionais (art.º 136), assim como de criar adicionais aos impostos (art.º 137) e de adaptar o sistema fiscal nacional vigente às características da RAM (art.º 138). O alargamento desta faculdade irá permitir que a Região use esta capacidade legislativa para criar condições de competitividade fiscal que permitam captar novos investimentos, nomeadamente para o Centro de Negócios da Madeira. Ao nível das autarquias, a Constituição de 1976 determinou, de forma clara, a independência orçamental e patrimonial. Pela lei n.º 1/79, de 2 de janeiro, lei das finanças locais, foram aumentados os recursos e os poderes financeiros dos municípios e das freguesias. Nela se estabeleceu um regime distinto para as finanças locais. Seguiram-se alterações, pelo dec.-lei n.º 98/84, de 29 de março, mas que vigoraram durante pouco tempo, uma vez que, pelo dec.-lei n.º 1/87, se procedeu a uma nova regulamentação das finanças locais que lhes atribuiu uma participação nas receitas do IVA e do imposto de sisa. As receitas fiscais dos municípios são resultantes de impostos autónomos (contribuição autárquica, sisa, imposto sobre veículos e imposto de mais-valia), de algumas participações (definidas pelo Orçamento do Estado, pelas taxas e pelos impostos), de taxas e de derramas. A contribuição autárquica surgiu por lei n.º 106/88, de 17 de setembro. Quanto às transferências das verbas para a Região, refere-se que o Estado estabelecer, no Orçamento (na rubrica “Encargos Gerais da Nação”), os valores a transferir para a Região de acordo “com o princípio da solidariedade nacional” (art.º 56). A partir de 1981 (resolução n.º 310/80, DR 200/80 série I de 1980/08/30), ficou estabelecida uma fórmula de financiamento do orçamento regional, assente na capitação da despesa pública. A partir da revisão constitucional de 1982, foram reforçados os poderes tributários das regiões, permitindo-lhes dispor das receitas cobradas. Pelo dec.-lei n.º 500/80, a RAM encontra-se numa situação especial em termos fiscais, devido à criação da Zona Franca da Madeira que, a partir de 1987, se encontrou na dependência da Sociedade de Desenvolvimento da Madeira S.A., que contava com os seguintes serviços: zona franca industrial, serviços internacionais, registo internacional de navios e serviços financeiros/centro offshore. A entrada de Portugal na CEE, em 1986, tinha imposto limitações ao funcionamento das zonas francas comerciais dentro do espaço comunitário. Em 1990, o governo aprovou o projeto do terminal marítimo da zona franca do Caniçal. A zona franca foi um fator significativo do desenvolvimento da Região, capaz de captar receitas que permitiram o seu financiamento. Todavia, as limitações impostas fizeram com que a mesma perdesse a sua importância, fazendo dela, nos começos do séc. XXI, um dos principais pontos do diferendo entre a RAM e o Governo central. A partir da revisão constitucional de 1982, foram reforçados os poderes tributários das regiões, permitindo dispor das receitas cobradas. A lei n.º 9/87 de 26 de março institucionalizou o poder tributário próprio das duas regiões autónomas. Os anos de 1985 e 1986 foram de um significado particular para esta conjuntura de difícil execução orçamental, levando à negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República. Pela resolução n.º 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve um novo programa de recuperação financeira até 31 de dezembro de 1997, que se repercutiu no orçamento regional do ano de 1990. O impacto mais significativo do período democrático decorreu de uma intervenção resultante da integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia e não da obrigação, que ao Estado era devida pela lei e pela Constituição, de colmatar as assimetrias de desenvolvimento económico da Região. A 5 de junho de 1985, a Assembleia regional da Madeira aprovou a integração da RAM no processo de adesão de Portugal à CEE, o que veio a acontecer, em pleno, a partir de 1 de janeiro de 1986. A resolução do Parlamento regional reconheceu as vantagens da adesão para o progresso económico, para o reforço do contributo insular e para a formação da Comunidade. Em 1988, na sequência de um memorando apresentado pelas regiões autónomas da Madeira e dos Açores, a Comunidade aprovou um programa de medidas específicas, no sentido da sua plena integração no Mercado Único. Foi o princípio do reconhecimento do Estatuto Especial das Regiões Ultraperiféricas, consagrado no tratado de Maastricht, com a declaração comum sobre as regiões ultraperiféricas. A aposta comunitária na política regional favoreceu o aparecimento de programas financeiros, dos quais a Madeira, a partir de 1986, passou a poder usufruir. Neste sentido, surgiu em 1985, o Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (FEDER). Entretanto, em 1991, o Tratado da União Europeia estabeleceu a política regional e de coesão, criando o Comité das Regiões e o Fundo de Coesão. A Madeira recebeu, no primeiro e no segundo Quadro Comunitário de Apoio (QCA) (entre 1986 e 1999) 176,7 milhões de contos e, no terceiro (2000-2006), 140 milhões de contos. As medidas de correção dos desequilíbrios internos de desenvolvimento e a política de coesão comunitária, asseguradas pelos diversos QCA (I QCA 1989-1993; II QCA 1994-1999) e pelo fundo de coesão, para além de outros apoios no âmbito dos diversos programas comunitários, asseguraram à Madeira os meios financeiros necessários para vencer as dificuldades ancestrais de desenvolvimento económico. Um dos principais problemas da política governativa estava relacionado com a disponibilidade de verbas, por parte do Orçamento do Estado, para cobrir as carências resultantes da transferência dos serviços e das políticas de investimento que se estabeleciam necessariamente para acatar o atraso secular a que a Ilha tinha ficado votada. A conta de 1978 apontava um crescimento da despesa em 124,75 %, enquanto o da receita se limitava a apenas 57,4 %. Esta situação de rutura financeira situava-se, muitas vezes, fora do alcance da Região, ou porque o Estado não procedia à definição do valor das transferências, ou porque a Madeira não dispunha de quaisquer mecanismos fiscais que permitissem resolver os seus problemas. No decurso das décadas de 70 e 80, os orçamentos da Região foram apresentados de forma tardia, porque se aguardava pela aprovação do Orçamento Geral do Estado, em que ficaria estabelecido o valor das transferências, uma vez que a receita dos impostos e das taxas – proveniente dos tempos da Junta Geral, reforçada com o estatuto provisório de 1976 – era claramente insuficiente para cobrir os encargos associados à transferência dos serviços, nomeadamente nos âmbitos do ensino e da saúde. É certo que o estatuto (art.º 56) definiu o princípio da solidariedade nacional quanto ao apoio financeiro do Estado para cobrir as despesas, mas as contingências da conjuntura de crise política implicavam que esta garantia tardasse ou não surgisse. Neste quadro, restava à Região o recurso ao endividamento interno para cobrir os investimentos necessários à execução do plano regional que, de acordo com o mesmo estatuto (art.º 58), deveriam ser definidos por diploma do Governo da República. Em 1980, o orçamento apresentava um défice de 2.017.730 contos, porque ainda não era conhecida a verba a estabelecer no Orçamento do Estado, mas a Região decidiu manter uma verba de transferências, por considerar imperioso o cumprimento do plano de investimentos, deixando em aberto a possibilidade do seu financiamento através de um empréstimo. Em 1981, agravou-se ainda mais a situação financeira e orçamental, devido ao volume de serviços que tinham sido regionalizados no decurso do ano anterior sem a devida contrapartida financeira, e à aprovação tardia, em abril, do Orçamento de Estado. Desta forma, a Madeira não teve alternativa, e o seu orçamento foi apenas aprovado em maio. A mesma situação de precariedade dos meios orçamentais justifica o défice de 7.274.081 contos, explicado pela “evolução crescente da própria autonomia regional” (VIEIRA, 2014h, 707). Em 1983, o orçamento só foi aprovado em junho do ano de execução, pelas mesmas razões, ocorrendo uma nova situação, com o decréscimo das transferências do Orçamento do Estado, que veio a agravar o défice em 14.976.482 contos. A despesa foi justificada pela transferência de serviços sem a necessária contrapartida financeira, bem como pela necessidade de vencer o atraso da Região através de grandes obras estruturantes. Em 1983, no sentido de vencer estas dificuldades orçamentais e financeiras, o Governo regional expressou a sua intenção de lutar para que fosse encontrado “um critério mais justo, que permita à regiões autónomas recuperar o atraso económico e social em que se encontram relativamente ao continente, o mais breve quanto possível, mas sem que isso constitua uma penalização para as disponibilidades financeiras” (VIEIRA, 2014h, 707) com uma proposta de alteração dos critério de cobertura do défice da Madeira. A par disso, aponta-se a necessidade de reformas da política monetária e financeira, para que as regiões possam adotar a assunção plena dos direitos e das responsabilidades que a Constituição consagra neste domínio (alínea n) do art.º 229). Era o único meio de a Região sustentar uma estrutura financeira que lhe permitisse consolidar a sua autonomia política e económica. A lei do orçamento do Estado n.º 42/83, de 31 de dezembro, consagra a possibilidade de a Região se endividar em 5 milhões de contos, para poder colmatar os constantes défices orçamentais. Mas, em sede do orçamento regional de 1984, voltou-se a insistir na ausência de contrapartidas financeiras por parte do Estado em face da transferência dos serviços, pelo que o investimento dos últimos sete anos só havia sido possível mediante o recurso ao crédito interno. Insiste-se na ideia de que “uma política orçamental verdadeiramente autónoma só será concretizada quando todas as componentes do orçamento regional estiverem sob o domínio dos órgãos de governo próprio da Região.” Por outro lado, “sobre o Estado recaem determinadas obrigações, aliás, constitucionais, no que respeita à recuperação do atraso económico estrutural em que a Região se encontra devido à ausência ancestral de qualquer política séria de desenvolvimento regional da iniciativa do poder central” (VIEIRA, 20145g, 84). O desacordo financeiro continua em 1985, acusando-se, em finais do ano anterior, o Governo regional de ter aumentado as dificuldades financeiras que obrigaram ao aumento do défice e do endividamento da Região. Deste modo, insiste-se na necessidade de alteração dos “critérios de transferências do Orçamento do Estado para a Região Autónoma da Madeira” (VIEIRA, 20145h, 708). A principal receita da Região incidia nos impostos, sendo os diretos de maior peso. Para o período compreendido entre 1976 e 1988, os impostos principais foram a contribuição industrial, o imposto profissional, o imposto de capitais, o imposto complementar, o imposto sobre sucessões e doações, e a sisa. A partir de 1989, passaram a ter destaque o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), como reflexo das mudanças ocorridas com o sistema tributário português. No grupo dos impostos indiretos, existiam: o IVA, o ISP, o selo, as transações internacionais, as estampilhas fiscais, o imposto sobre transações, o imposto de consumo de tabaco, o imposto sobre venda automóvel, e o imposto sobre bebidas alcoólicas e cerveja. Com a lei n.º 13/98 de 24 de fevereiro, a lei de finanças das regiões autónomas, fica consagrada a salvaguarda das receitas geradas na RAM, definida e regulamentada a possibilidade de estabelecer adicionais até 10 % aos impostos (art.º 36), e estabelecida a adaptação do sistema tributário às especificidades da RAM (art.º 33, 37), assim como da fórmula e das regras que passariam a definir as transferências do Estado (art.º 33). Como resultado desta situação, o Orçamento de 2001 estabeleceu alterações às taxas de IRS e IRC cobradas na RAM. A lei orgânica 1/2007, de 19 de fevereiro, aprovou a nova lei de finanças das regiões autónomas e estabeleceu algumas alterações, consideradas penalizadoras para a RAM. Assim, o valor das transferências começou a estar baseado na população (art.º 37). Também o IVA deixou de ser transferido de acordo com uma capitação estabelecida, para ser o valor de facto cobrado. As regras das transferências financeiras foram estabelecidas nos art.os 19 e 51 e foram regulamentadas pela portaria n.º 1418/2008, de 9 de dezembro. Com a revisão constitucional de 1982, foram reforçados os poderes tributários das regiões, permitindo-lhe dispor das receitas cobradas. A lei n.º 9/87, de 26 de março, institucionalizou o poder tributário próprio das duas regiões autónomas. Com o Orçamento de Estado de 2005, foi adotado o mecanismo da capitação subjacente à afetação da receita de IVA pelas regiões autónomas, o que se repercutiu num aumento destas receitas em 6,9 %. A partir de 2007, em conformidade com as alterações vigentes, a receita do IVA deixou de ser feita por capitação. Esta alteração terá conduzido a uma quebra da receita da Madeira em 22,5 milhões de euros. Com a lei orgânica n.º 1/2010, de 29 de março, são considerados, na definição do valor das transferências, a população, o número de ilhas, e a distância entre a capital do país e o local mais distante, com claro favorecimento dos Açores. Considere-se que o n.º 3 do art. 21.º da lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro, refere que “em caso algum poderá ser adotado um modo de cálculo que origine um menor montante de receitas do que o auferido pelo regime vigente [capitação]”, compromisso corroborado pela redação da alínea a) do n.º 1 do art. 59.º da lei orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro. Daqui resultou, e.g., que a receita de IVA da RAM, em 2007, não poderia ser inferior aos 315,579 milhões de euros. Recorde-se que o compromisso do Orçamento do Estado de 2005, de definição do mecanismo de capitação subjacente à afetação da receita do IVA na RAM, se traduziu num aumento da receita para os cofres da Região em 6,9 %. Com o orçamento de 2007, a cobrança do IVA deixou de depender da capitação para ser o valor de facto cobrado. Há indicações no sentido de um sistema tributário diferenciado para atenuar os custos da insularidade. O art. 5.º do dec. leg. regional n.º 2/2001/M, de 20 de fevereiro, na redação e sistematização dada pelo dec. leg. regional n.º 30-A/2003/M, de 31 de dezembro, estabeleceu a possibilidade de a RAM alterar a respetiva taxa. Em 2004, a taxa de IRC passou de 27 % para 22,5 %. Então, anualmente, o dec. leg. regional que aprovava o orçamento estabelecia a taxa de imposto prevista no n.º 1 do art.º 80 do código do IRC a vigorar na Região. O art.º 2 do dec. leg. regional n.º 3/2001/M, de 22 de fevereiro, na redação dada pelo dec. leg. regional n.º 30-A/2003/M, de 31 de dezembro, consagra a redução das taxas do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares. Anualmente, o decreto legislativo regional que aprova o orçamento estabelece a taxa de imposto prevista no art.º 68 do Código do IRS a vigorar na Região. A crise iniciada em 2011 com a intervenção das autoridades financeiras internacionais e as regras estabelecidas pelo consequente Memorando assinado com a Troika de credores internacionais obrigaram o Governo regional a rever esta situação diferenciada da cobrança do IRC e do IRS, através do dec. leg. regional n.º 20/2011/M. DR 246 série i de 2011/12/26. A plena autonomia tributária e financeira só foi alcançada em 2005. A partir de 2 de fevereiro de 2005, de acordo com o dec.-lei n.º 18/2005, de 18 de janeiro, o Governo regional passou a exercer a plenitude das competências no que concerne às suas receitas fiscais próprias, e a poder controlar todos os atos necessários à sua administração e gestão. Estas mudanças traduziram-se num aumento da receita fiscal. Esta política de maior justiça nas transferências na RAM levou a Assembleia Legislativa regional a estabelecer um grupo de trabalho para apurar as receitas em falta, de forma a ser estabelecido um método de arrecadação, de controlo e de transferência das verbas a que a RAM tem direito. Também foi constituída uma comissão de inquérito para averiguar se os bancos, que têm a sua sede no continente e exercem a sua atividade na Madeira, reportam, de forma devida, as receitas geradas na Região para efeitos de imposto. Os resultados apontaram para uma incorreta afetação da receita fiscal à RAM. Daí a necessidade de sensibilização das entidades que, apesar de terem a sua sede fora da Região, exercem atividade na Ilha a atividade para a necessidade do preenchimento correto dos modelos de entrega dos impostos, nomeadamente IRC, IRS e imposto de selo. No ano seguinte, também por resolução desta Assembleia, foi sugerida a revisão da lei das finanças regionais, prevista para 2001, que, na verdade, só veio a acontecer em 2006, traduzindo-se em perdas para a Madeira. A aluvião de 20 de fevereiro de 2010 levou a que vários artigos desta lei fossem suspensos e que fosse publicada a lei de meios (lei orgânica n.º 2/2010, de 16 de junho), que estabeleceu o financiamento para o apoio e a reconstrução dos danos causados pelo temporal na RAM. Os Fundos Estruturais e o Fundo de Coesão são os instrumentos financeiros da política regional da União Europeia, cujo objetivo é reduzir as diferenças de desenvolvimento entre as regiões e os Estados-Membros, participando, assim, plenamente no objetivo de coesão económica, social e territorial. Existem dois Fundos Estruturais: o FEDER, que apoia, desde 1975, a realização de infraestruturas e investimentos produtivos e geradores de emprego, nomeadamente os destinados às empresas; e o Fundo Social Europeu (FSE), instituído em 1957, que apoia a inserção profissional dos desempregados e das categorias desfavorecidas da população, financiando, nomeadamente, as ações de formação. Para acelerar a convergência económica, social e territorial, a União Europeia instituiu, em 1994, um Fundo de Coesão, destinado aos países cujo PIB médio por habitante é inferior a 90 % da média comunitária. O Fundo de Coesão tem por finalidade conceder financiamentos para projetos de infraestruturas nos domínios do ambiente e dos transportes. Contudo, o apoio do Fundo de Coesão está sujeito a determinadas condições. Se o défice público de um Estado membro beneficiário exceder 3 % do PIB nacional (de acordo com as regras de convergência da União Económica e Monetária), não serão aprovados novos projetos enquanto esse saldo negativo não estiver, novamente, sob controlo. O Fundo Europeu de Desenvolvimento, que é, desde 1959, um instrumento da ajuda comunitária de cooperação no desenvolvimento dos Estados ACP e dos Países e Territórios Ultramarinos (PTU), é estabelecido por cinco anos. Destina-se a promover o investimento e a contribuir para reduzir os desequilíbrios entre as regiões da União. Os financiamentos prioritários visam a investigação, a inovação, as questões ambientais e a prevenção de riscos, enquanto os investimentos em infraestruturas continuam a ter um papel importante, nomeadamente nas regiões menos desenvolvidas. Para o sector primário, existe, desde 1 de janeiro de 2007, o Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), criado para aumentar a competitividade dos sectores agrícola e florestal, para melhorar o ambiente e a gestão do espaço rural, apoiando o ordenamento do território, e para promover a qualidade de vida e a diversificação das atividades económicas nas zonas rurais. A reforma da Política Agrícola Comum (PAC), de junho de 2003 e de abril de 2004, definiu o FEADER, instituído pelo Regulamento (CE) 1290/2005, para reforçar a política de desenvolvimento rural da União Europeia. O FEADER é, juntamente com o Fundo Europeu Agrícola de Garantia (FEAGA), um dos dois instrumentos de financiamento da PAC que substituem, desde 1 de janeiro de 2007, o FEOGA – secção Orientação, e o FEOGA – secção Garantia, respetivamente. O Fundo Europeu das Pescas (FEP) foi um fundo criado para o período 2007-2013 com o fim de facilitar a aplicação da Política Comum da Pesca e apoiar as reestruturações necessárias ao sector. Em termos de apoios europeus, e no que diz respeito à Região Autónoma da Madeira, é de destacar o INTERVIR+, o Programa Operacional de Valorização do Potencial Económico e Coesão Territorial da RAM, aprovado pela Comissão Europeia, através da decisão C, n.º 4622, de 5 de outubro de 2007, que tem por objetivo assegurar o crescimento da economia regional, o emprego, as políticas de proteção do ambiente, a coesão social e o desenvolvimento territorial. Este programa é cofinanciado pelo FEDER e por RUMOS – Programa Operacional de Valorização do Potencial Humano e Coesão Social da RAM, cuja versão final foi aprovada pela Comissão Europeia em 26/10/2007. Ao nível da RAM, são de considerar o Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central (PIDDAC), que corresponde, no orçamento, à parte referente aos investimentos, e o Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Região Autónoma da Madeira (PIDDAR), a designação formal para a concretização anual da estratégia delineada no Plano de Desenvolvimento Económico e Social (PDES), para o período de 2007 a 2013. No debate político, as questões financeiras continuam a ser o calcanhar de Aquiles da autonomia legislada nos finais do séc. XX. Todavia, deram-se passos significativos no sentido de a Região passar a ter o controlo do sistema financeiro, o que permitiria uma gestão certamente mais racional. A lei n.º 19/83, de 13 de dezembro concedeu uma autorização ao Governo para estabelecer o regime das finanças regionais; porém, a distância em relação à meta final era ainda grande, afirmando-se, no orçamento de 1990, que a Região não controlava as variáveis que afetavam a cobrança, quer dos impostos diretos quer dos impostos indiretos que determinavam a respetiva evolução. Essas variáveis foram fixadas pelas leis do OE, limitando-se a Madeira a receber os respetivos impostos cobrados pelo Estado na Região. A sua previsão, por isso, acabou por ser mais difícil do que seria se a Ilha procedesse à respetiva cobrança. Em vésperas da aprovação da lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro, a lei de finanças das regiões autónomas e o orçamento da Região de 1997 foram usados para argumentar em Lisboa o seguinte: a regionalização, melhorando a eficiência e a equidade das finanças públicas, teria de contribuir para uma melhor performance da economia da Madeira, pelo que o modelo de financiamento dos orçamentos regionais deveria permitir às regiões autónomas aproximarem-se do nível médio de rendimento do continente, da igualdade de oportunidades e da igual qualidade de aprovisionamento de serviços e de bens públicos. A definição das relações financeiras entre o Estado e as regiões autónomas teria assim de ser feita em respeito pela autonomia regional e num quadro do reforço da coesão económica e social nacional e da solidariedade do Estado. A nova centúria pareceu levar um novo alento aos discursos e às práticas financeiras. O orçamento de 2002 alimentou esta esperança, ao afirmar que “o início do processo de regionalização dos serviços de finanças permitirá importante evolução na gestão, controlo e apuramento da receita tributária, possibilitando uma maior arrecadação de verbas. [...] A Região não dispõe ainda de todos os instrumentos que lhe permitam exercer um controle efetivo” (VIEIRA, 20145g, 91). Em 2005, sabe-se da existência de um grupo de trabalho, “tendo em vista o apuramento das receitas fiscais em falta, circuitos de cobrança, controlo, gestão e afetação às regiões, com significativos resultados ao nível de apuramento de montantes por regularizar na correção dos métodos de arrecadação, controlo e transferência de verbas para os cofres regionais”. Foi, ainda, constituída uma comissão de inquérito, na Assembleia Legislativa Regional, “para averiguar se os bancos que têm sede no continente e exercem a sua atividade na Região Autónoma da Madeira entregam aos cofres da Região as receitas fiscais devidas. As conclusões do relatório demonstram, uma vez mais, a não correta afetação da receita fiscal à Região, onde é efetivamente gerada” (VIEIRA, 20145h, 753). Em 2006, de novo em vésperas de uma nova regulamentação das relações financeiras entre o Estado e a Região, denunciava-se o incumprimento do Estado que, no Orçamento de 2006, não assegurava as transferências dos custos da insularidade e desenvolvimento económico, apontando-se responsabilidades a assumir: “O aprofundamento da autonomia em matéria fiscal, revela-se um instrumento de política essencial para que o Governo regional possa prosseguir uma estratégia de desenvolvimento sustentada, promovendo a maximização da eficiência fiscal e adaptando o sistema fiscal a condições cada vez mais específicas da economia regional, num princípio de unidade diferenciada” (Id., Ibid.). O inevitável aconteceu. Em 19 de fevereiro de 2007, pela lei orgânica n.º 1/2007, o Parlamento aprovou a lei das finanças regionais, revogando a lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro. Aqui ficaram definidos os impostos, pertença da Região, e os mecanismos de avaliação do valor das transferências, de acordo com a população. Perante isto, o Governo regional apresentou a sua demissão a 21 de fevereiro, obrigando a novas eleições regionais onde conquistou uma folgada maioria absoluta. Tudo parecia, então, voltar ao princípio, no debate financeiro das autonomias. Ainda de acordo com a portaria n.º 1418/2008, estabeleceu-se a fórmula de apuramento do IVA e a sua transferência em duodécimos. Esta nova situação implicou uma perda de 22,5 milhões de euros em relação ao sistema de capitação de 1998. Ao Estado, coube o direito de 2 % das transferências do IVA, a título de compensação pela utilização dos seus serviços. No caso dos impostos alfandegários, a sua transferência foi mensal. Uma nova alteração desta lei aconteceu pela lei orgânica n.º 1/2010 de 29 de março. O legislador insistiu na ideia de que “a autonomia financeira regional desenvolve-se no quadro do princípio da estabilidade orçamental, que pressupõe, no médio prazo, uma situação próxima do equilíbrio orçamental” (n.º 1, do art.º 6). Isto abriu o assunto para o estabelecimento de regras apertadas relativamente ao endividamento, que passou a estar sujeito a um valor máximo, enquanto as violações passaram a estar sujeitas a penalizações. Para a Região, o enquadramento do Orçamento da Região Autónoma da Madeira foi estabelecido pela lei n.º 28/92, de 1 de setembro. Esta norma orçamental está dependente da que foi estabelecida para o continente no ano de 1991, em matéria orçamental e de execução, tendo-se aplicado supletiva e subsidiariamente as leis gerais da República e, designadamente, a lei do Orçamento de Estado para 1991, com as devidas adaptações.   Alberto Vieira (atualizado a 14.12.2016)

Direito e Política Economia e Finanças

acram - associação cultural e recreativa dos africanos na madeira

A Associação Cultural e Recreativa dos Africanos na Madeira (ACRAM), registada no ano 2001 com a designação oficial de ACRA por iniciativa de quatro imigrantes africanos residentes na Região Autónoma da Madeira (RAM), naturais da Guiné-Bissau e de Angola, é uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo: preservar e divulgar a cultura africana na RAM, e promover a integração dos imigrantes africanos na sociedade madeirense. Este objetivo encontra-se consagrado nos estatutos da Associação: “fomentar, defender a unidade e solidariedade entre membros da comunidade africana residentes na RAM. Promover os valores culturais africanos; contribuir para a integração dos membros da comunidade” (“Associação Cultural…”, JORAM, II, 32, 2005, 9). A ACRAM surgiu num período marcado por grandes obras públicas na Região e pelo desenvolvimento do sector da construção civil: finais do séc. XX e inícios do séc. XXI. Este fenómeno originou o aumento significativo da população imigrante, sobretudo indivíduos do Leste europeu, Brasil e continente africano. Os imigrantes africanos residentes na RAM são provenientes de diversos países, com destaque para o Senegal, a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri, Angola, Moçambique, Cabo-Verde, África do Sul, Egipto, Marrocos e a Tunísia. A organização é reconhecida pelo Governo Regional como sendo, segundo o secretário regional dos Recursos Humanos do Governo Regional da Madeira, Brazão de Castro, “um importante parceiro para a integração na Região dos cidadãos de África, particularmente dos países de língua e expressão portuguesa e tem fomentado de uma forma exemplar o diálogo intercultural” (“Associações Constituem…”, AIPA, 96). As relações institucionais da Associação com o Governo Regional remontam à data da sua criação. A ACRAM também tem estabelecido relações com outras instituições da Região, como sejam as escolas, as juntas de freguesia, os consulados, as câmaras municipais, focalizando sempre a consolidação de esforço dentro de uma perspetiva de proximidade, cidadania plena e responsabilidade social. O relacionamento com os governos dos países de origem é muito esporádico. Verifica-se através das embaixadas e dos consulados, ao nível da solicitação de apoios. A ACRAM privilegia a dimensão cultural nas suas relações com a comunidade e com as instituições, promovendo, em colaboração com o Governo Regional, encontros que incluem mostras gastronómicas, exposições de arte africana e espetáculos musicais, e que têm vindo a ganhar cada vez mais adesão dos madeirenses e de todas as comunidades residentes na Região. A Associação também tem participado na semana intercultural, promovida pelo Centro das Comunidades Madeirenses, na qual se celebram os dias dos povos africanos e das mulheres e crianças africanas, promovendo convívios e fortalecendo laços de solidariedade. Estas atividades visam sempre, por um lado, a promoção do diálogo intercultural e a sensibilização para a multiculturalidade, e, por outro lado, a divulgação da cultura africana, as suas musicalidades, os ritmos, a gastronomia, o artesanato, ou seja, “levar um pouco de África” (MANÉ, com. oral, 2015) à comunidade recetora, como afirmam os dirigentes da organização. Estes eventos também têm por objetivo promover o envolvimento de todos indivíduos da comunidade. A promoção dos direitos das minorias étnicas e das suas identidades culturais faz parte das prioridades de intervenção social da ACRAM. A Associação financia-se através de donativos, da angariação de fundos provenientes de convívios e de apoios financeiros específicos do Alto Comissariado para as Migrações, nomeadamente através do Programa de Apoio ao Associativismo Imigrante (PAAI), e ainda de projetos apoiados pelo Fundo Europeu para a Integração de Nacionais de Países Terceiros (FEINPT). A ACRAM conta ainda com a tradicional contribuição dos associados, que nos seus primeiros 15 anos de existência chegaram a cerca de 150, embora nem todos fossem residentes na Madeira. A ACRAM não teve, nesse período, nenhum tipo de apoio financeiro do Governo Regional da Madeira, exceto parcerias com o centro de emprego da Madeira, que disponibilizou técnicos do emprego através de programas de formação. Ao nível do apoio técnico, o Centro das Comunidades Madeirenses do Governo Regional fornece pareceres no que respeita à dinamização das atividades e aprovação dos projetos. Os associados da ACRAM caracterizam-se fundamentalmente por possuírem uma ligação ao continente africano, sejam descendentes de imigrantes, os próprios imigrantes, ou ainda portugueses que residiram provisoriamente em África por motivos familiares ou laborais. No início do séc. XXI, a ACRAM tem-se empenhado também no sentido de mitigar os efeitos perversos das situações de desemprego na comunidade que representa, pois está na sua génese, enquanto organização, a necessidade de fazer face aos problemas com que esta comunidade se defronta, nomeadamente a legalização destes imigrantes, o seu emprego e a sua habitação condigna. Este esforço insere-se no cumprimento do seu mandato estatutário, granjeando à Associação prestígio e reconhecimento por parte dos membros da comunidade africana, das autoridades madeirenses e, de uma forma geral, da comunidade da Ilha. Nos seus primeiros 15 anos de existência, a Associação desenvolveu ainda um leque variado de serviços de apoio a jovens e crianças com dificuldades cognitivas, atuando na prevenção, no serviço social, no desenvolvimento de atividades como a dança, o teatro, as oficinas de expressões, bem como na realização de torneios desportivos, na organização de eventos, na mediação de conflitos e no desenvolvimento de projetos inovadores na área da integração, como é o caso do espaço das hortas urbanas. A organização interveio também nas situações de doença e morte dos membros da comunidade, procurando acompanhar de perto estes momentos e dando apoio, sobretudo nos contactos com os familiares dos países de origem.   João Adriano Conduto Júnior (atualizado a 19.07.2016)

Madeira Global Sociedade e Comunicação Social

arquitetura popular

A designação “arquitetura popular”, reporta-se tradicionalmente às casas do povo. Contudo, esta não é uma designação consensual; no mundo anglo-saxónico, e.g., o termo correspondente utilizado é “vernacular”. Segundo Paul Oliver em Dwellings, o termo “vernacular” é relativo aos edifícios que são integrados numa comunidade e construídos pelo povo para seu próprio uso, pelo que, e tendo em conta o desdobramento da palavra “vernacular” (“vern” significa povo e “cular” significa linguagem), o mesmo autor considera que este termo pode traduzir-se por “linguagem do povo”. Em Shelter and Society, o mesmo autor destaca a posição que Bernard Rudofsky desenvolve na obra Architecture Without Architects: “Attempts to break down our narrow concepts of art of building by introducing the unfamiliar world of non-pedigreed architecture. It is so little known that we don't even have a name for it. For want of generic label we shall call it vernacular, anonymous, spontaneous, indigenous, rural, as the case may be [a tentativa de pôr em causa os nossos conceitos limitados a propósito da arte da construção introduzindo neles o estranho mundo da arquitetura sem pedigree. Trata-se de um estilo tão desconhecido, que nem sequer tem nome. À falta de uma designação genérica, chamar-lhe-emos vernacular, anónimo, espontâneo, indígena e rural, conforme os casos]” (RUDOFSKY, 1964, 1). Este autor teve dificuldade em aceitar uma única designação para as construções referidas, e, por isso, considerou a possibilidade de a ampla diversidade de designações revelar por si só que se está a tratar de uma matéria em permanente movimento.   Diário gráfico da investigação de campo, dia 1 Maio (revisão da 1ª campanha de 1984-1985) [1996]   Os arquitetos que realizaram os inquéritos sobre arquitetura no continente (1955-1961), nos Açores (1982-2000), e na Madeira (1983-2002) optaram pela designação “arquitetura popular portuguesa”, enquanto os antropólogos optaram pela designação “arquitetura tradicional portuguesa”, considerando que esta é “o produto de adaptação do homem ao meio, ele reflete não só o meio geográfico natural, mas também o meio humano, histórico e cultural” (OLIVEIRA e GALHANO, 1992, 361). Esta abrangência do conceito assenta na importância das atividades que são geradas no território em redor das construções e que formam com ele uma indissociável unidade sociocultural. A casa rural é “concebida não apenas como um abrigo, mas sobretudo como um verdadeiro instrumento agrícola, que é preciso adaptar às necessidades de exploração da terra, designadamente no que se refere ao seu dimensionamento e à importância e distribuição relativa dos alojamentos das pessoas, dos estábulos e das lojas de arrumação das alfaias e ferramentas da lavoura” (OLIVEIRA e GALHANO, 1969, 13).   Depreende-se desta abordagem que é das atividades geradas num contexto territorial específico e realizadas com o objetivo de assegurar a cadeia operativa inerente às produções agrícolas e ao artesanato que lhes está associado, que surgem necessidades de espaço e funcionais, também específicas. Pelo que, há uma forte correlação entre a organização da vida rural e a organização da casa, da qual se evidencia a antropologia da sociedade rural.   Pinha de maçarocas a secar. Espaço exterior fronteiro à casa. Referta, Porto da Cruz [1996]     Sob a latada, na vindima junto à casa. Ponta Delgada [1996]   A apropriação e transformação do território das ilhas da Madeira e do Porto Santo para produção agrícola, sem antecedentes históricos, e a produção artesanal de ferramentas e artefactos, incluindo engenhos, reflete-se nos edifícios e nos espaços gerados com o propósito de levar estas ações a cabo, e que são, por isso mesmo, o resultado de necessidades em permanente processo de apuramento. Neste contexto, desenvolveram-se diversos estudos sobre a materialidade associada às alfaias agrícolas e inerentes tecnologias em articulação com as construções, em particular com as construções da casa e dos espaços exteriores com ela conectados.   Casas elementares, espaço exterior de continuidade. Rochão, Camacha [1996]   As características geográficas e o perfil psicológico das populações sujeitas durante séculos ao regime de colonia trazem especificidade a este processo. Jorge Freitas Branco, no seu livro Camponeses da Madeira (1987), sem nunca aludir à arquitetura popular, e só raramente se referir à casa dos camponeses, deixa claro que esta é a base da pirâmide social, e que se encontra condicionada pelo contexto rural, que está amarrado a uma geografia agreste e, sobretudo, à condição de população que cultiva e vive numa terra que não é sua, tendo de pagar uma renda a um senhorio: “A ruralidade insular estava dividida em duas esferas sociais envolvendo toda a organização social. Uma delas integrava os grandes senhores, os quais os camponeses tratavam por senhorios; uma outra abarcava a maioria esmagadora da população, os colonos, que se iam sucedendo de geração em geração, pois o contrato era hereditário” (FREITAS BRANCO, 1987, 156). É neste contexto que terá surgido uma arquitetura elementar, que terá evoluído desde o primitivo abrigo, apropriado à própria geografia do lugar de instalação, até modelos que procuravam tornar a casa cada vez mais autónoma, embora esta continuasse igualmente precária quanto à materialidade e à escassez de espaço. O regime de colonia e as suas variantes ao longo dos séculos, relacionadas com os ciclos de novas culturas introduzidas pelos morgados, terão sido determinantes na cadeia e no processo evolutivo de alguns modelos de casas rurais madeirenses até ao séc. XX.   Povoamento disperso em lombos. Penha d’Águia, Porto da Cruz [1996]   Este regime de posse de terra era de tal modo restritivo em relação aos direitos dos colonos que o estabelecimento de pequenas hierarquias, dentro do próprio grupo, era regulado, com o objetivo de preservar os interesses dos senhorios, que, receando que as sucessivas benfeitorias feitas pelos colonos alcançassem valores de indemnização incomportáveis, condicionavam o seu poder discricionário para lhes retirar as terras, como refere o autor anteriormente referido: “Alguns deles que eram caseiros, porque, além das condições já conhecidas e inerentes ao contrato de colonia, desfrutavam de uma cláusula suplementar, segundo a qual o senhorio lhes concedia o direito de morar na terra tomada de arrendamento, ou ainda de nela construírem casa própria. Nestes casos, a situação torna-se crítica quando um dos filhos do caseiro queria também fazer a sua casa para contrair matrimónio” (FREITAS BRANCO, 1987, 158). O contexto societário rural madeirense revela-se paradigmático pela forma particular como surgiu, influenciando direta e indiretamente a identidade arquitetónica em alguns dos modelos deste território. Há suficientes razões para considerar que a arquitetura vernacular madeirense deve ser considerada numa perspetiva histórica, que avalie a data do início do povoamento e os ciclos socioeconómicos que se terão repercutido na casa rural e urbana, mediante o estudo do dimensionamento dos alojamentos para as pessoas, os animais e as alfaias, o estudo dos materiais e sistemas construtivos adotados, da volumétrica e dos aspetos artísticos.   Casa de morgado. São Vicente [1996]   Casa de morgado. Espaço de transição urbano-rural. Arco da Calheta [1996]   Os modelos das casas, principalmente rurais, terão viajado do continente, na memória dos primeiros povoadores, que se instalaram de forma dispersa à medida que se desbravava o território, formando os primeiros casais, pequenos aglomerados isolados, e os embriões de urbanidades, como as sedes de capitania. Outros grupos identitários, que teriam na sua moldura sociocultural estatuto intermédio em termos político-administrativos, ter-se-ão ajustado com distinção social, como é o caso dos terratenentes e dependentes da confiança do capitão donatário, que por sua vez também recrutavam colonos. Esta distinção constituiu a base em que assentou a exploração da terra e as assimetrias sociais. Terão sido estas as condições em que se fixaram os modelos mais primitivos, como as furnas, grutas, ou grotas (designação local para habitações em gruta natural ou resultantes da sua escavação), seguindo-se as casas elementares miniaturais.     Casa elementar (miniatural). Arco da Calheta [1996]   A par destas, embora já num outro patamar sociocultural, edificaram-se as casas que se designam de antigas, por corresponderem a modelos do princípio do povoamento que foram praticamente transpostos dos modelos continentais, de que destacamos as casas dos padres, construídas junto às respetivas igrejas e outras de famílias socialmente dominantes. Após a descoberta da Ilha, o tempo de reconhecimento, entre o mar e a terra, terá sido longo, considerando as dificuldades em presença: território densamente arborizado, orografia acentuada, ausência de plataformas agrícolas naturais, existência de vales aluvionares profundos e instáveis, águas de ribeiras abundantes e por vezes tempestuosas, principalmente na costa Norte, contrastando com a escassez de caudais regulares na costa Sul, ausência de rios e/ou ribeiras navegáveis, litoral rochoso e abrupto, sem desembarcadouros naturais, e apenas com algumas baías favoráveis e pequenas angras, nem sempre acessíveis. A configuração geográfica, associada a um clima subtropical, condicionado a uma orla abaixo dos 200 m de altitude, terá tido repercussões na escolha dos locais de instalação dos casais rurais. A ilha da Madeira contrasta com a ilha vizinha do Porto Santo, cujas características geológicas revelam uma formação distinta, apesar dos 50 km que as separam; a primeira ilha apresenta uma temperatura e humidade relativamente elevadas, associadas a uma maior pluviosidade. O desconhecimento dos territórios terá obrigado a um largo período de adaptação dos modelos a instalar, e, mesmo quando se instalava um dado modelo, ele mantinha um quotidiano moldado pela circulação, restrita ou alargada, de bens e de pessoas, em que a autossuficiência era mais imaginada que real. Em algumas regiões, inventaram-se modelos novos. No caso da ilha da Madeira, em virtude da inacessibilidade do terreno, alguns terão permanecido isolados durante séculos, enquanto outros, igualmente únicos na região, se foram difundindo, alguns com adaptações, outros adquirindo novas especificidades, tornando-se variantes dos originais, e outros como modelos de transição e/ou assimilação para/de novos modelos.   Povoamento em vale interior. São Vicente [1996]   As classificações elaboradas por investigadores como Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990), Benjamim Pereira (n. 1928), Fernando Galhano (1904-1995), A. Jorge Dias (1907-1973), Fernando Távora (1923-2005), Nuno Teotónio Pereira (1922-2016), entre outros, dão conta do tipo de alicerce que a fileira tipológica da casa madeirense segue. A arquitetura vernacular evoluiu a partir de modelos tipologicamente elementares, desde logo a casa-cozinha, ou seja, a casa com um único compartimento. A partir deste modelo, ter-se-á desenhado a base mínima do modelo padrão. A sua evolução resultou do somatório longitudinal de novos compartimentos comunicantes ou da criação de uma situação que corresponde a um primeiro nível de complexidade, a duplicação em paralelo do modelo, construindo apenas uma parede meã estrutural, embora duplicando a cobertura. Casa elementar com cozinha separada. Rochão de Cima, Camacha [1996]   A casa em esquadria, ou seja, a casa que forma um ângulo de 45 º num dos topos do volume elementar, poderá ser uma evolução ou inovação que resultou na construção da cozinha num lugar deslocado do centro da casa. As cozinhas integradas em casas com cobertura de palha causaram grandes danos, por propagarem fogo facilmente. Esta terá sido a razão do deslocamento da cozinha nas casas rurais: reduzir o risco de incêndio. Na cidade e nas vilas, as posturas municipais exigiram a substituição das coberturas de palha por outras de telha cerâmica – o que permite verificar que a classificação estabelecida e que aqui se segue, apesar de estar relacionada com processos construtivos, não está totalmente dependente deles. As casas com cozinha separada denotam a relevância que este compartimento tinha. A cozinha era o compartimento cerne da funcionalidade da habitação, e, por isso, caracteriza e define a estrutura matricial do modelo que a casa segue; logo, é a partir deste compartimento que se identifica a tipologia da casa.   Casas-cozinha Casa-cozinha com forno exterior. Carvalhal, Canhas, Ponta do Sol [1996] As casas-cozinha, elevadas em alvenaria de pedra aglomerada com barro, têm fachadas de pedra à vista (interior e exterior) ou fachadas rebocadas e caiadas. Interiormente têm um único compartimento, onde se destaca a boca do forno, complanar à face interna da parede. O desenvolvimento da casa ocorre no exterior, a partir da parede empena, onde se apoia o rincão da cobertura de palha de três águas. As únicas aberturas da casa são a porta, de altura reduzida, que está inserida na fachada longitudinal, e a janelinha mínima, que está inserida na parede oposta à do forno. Assinala-se um pormenor funcional relevante, a fresta triangular integrada sobre a boca do forno, que servia como fonte de luz e, principalmente, como respirador, através do qual o fumo saía quando era impulsionado pela corrente de ar que resultava da abertura da porta. Este respirador, tal como um toco de madeira carbonizado, revela através da cor preta adquirida, as sucessivas camadas de fumo aí depositado.   Casa de empena As casas de empena, circunscritas principalmente à zona dos Canhas, concelho da Ponta do Sol, têm uma área útil de aproximadamente 13,5 m² e integram o grupo das casas elementares. A sua elementaridade está associada à reduzida espacialidade e a um contexto construtivo e vivencial precário: pavimento de terra batida, lume de chão, uma quase ausência de mobiliário e de apetrechos, domésticos e de lavoura (os que haviam eram produzidos pelos próprios camponeses e arrumados sem diferenciação de uso dentro da própria casa), e espaço exterior envolvente exíguo, a ponto de a pequena horta se amanhar no patamar da própria casa, por não haver espaço de permeio, ou quaisquer construções de apoio envolvente. A fachada desta casa tem a configuração mais elementar conhecida. Por vezes a casa era aconchegada por uma árvore ou uma latada, que proporcionava um pouco de sombra e que formava um aparente lugar exterior que dava continuidade à casa. Este espaço exterior informal tinha como elementos de mobiliário um banco tripé de madeira e uma pedra baixa de basalto para apoio temporário dum moinho de mão. A empena, que integra o forno exterior, e que dará o nome a esta casa, terá resultado da necessidade de salvaguardar a cobertura de palha das fagulhas incandescentes que a queimavam. Estas casas evoluíram pouco e o seu modelo não se dispersou; regista-se apenas o surgimento de uma parede de tabique de pranchas de madeira ao alto, criando um minúsculo compartimento para dormir, e a presença ocasional de um sótão exíguo, que terá resultado do ligeiro aumento da largura, do comprimento e da altura, de forma a permitir que a cobertura acolhesse, através de um sobrado, o aproveitamento do sótão, cujo acesso se fazia por uma escada de encosto. Este modelo madeirense pode ser associado, devido à semelhança formal, a certos modelos do continente e dos Açores, provavelmente contemporâneos, razão pela qual, se estabelece um paralelismo entre estes modelos e o projeto de povoamento que se pretendeu para as ilhas. Apesar disso, verificam-se diferenças que distinguem os modelos de cada arquipélago; a existência de compartimentação e a exigência construtiva evidenciam caminhos de evolução distintos. Na ilha de São Miguel, as casas de empena com cobertura de palha, existentes nos Mosteiros e na Candelária, têm uma área útil de aproximadamente 15 m². A casa de empena açoriana integra inclusivamente, no modelo mais elementar, o conjunto lar, forno e chaminé na empena ou na parede tardoz, com a particularidade chaminé se afastar da parede, reduzindo a possibilidade de pegar fogo à cobertura. Também se observou, relativamente à casa açoriana, o modelo de três águas e empena com forno. O que distingue a casa madeirense de qualquer outro modelo, equivalente ou próximo, é a sua condição básica, relacionada com a escala e a proporção. A casa madeirense é elementar na espacialidade, mas também em toda a sua especificidade construtiva, destacando-se o aparelho de pedra e a respetiva aglomeração, que resulta numa volumetria baixa. A armação da cobertura era precária, feita de palha; desconhece-se se o remate da palha era feito através da cápea ou do lintel de sobreposição e/ou amarração. Tudo leva a concluir que este modelo terá sido criado integralmente de forma empírica na ilha da Madeira, em consequência da necessidade intransigente e imediata de se construir um abrigo básico. Casas de Santana Tal como este modelo, outros terão surgido neste contexto, de que se destacam, devido a um certo fascínio turístico pelo exotismo das formas, as casas de Santana, algumas construídas integralmente em madeira. Para se compreender este modelo tem de se seguir a evolução de modelos anteriores.   Casa elementar com forno interior. Rochão, Camacha [1996] As casas-cozinha, de cobertura de palha de quatro águas, com forno interior, localizadas com maior frequência na zona da Camacha, mantêm praticamente o mesmo dimensionamento das casas anteriormente descritas, embora se distingam delas pelo aprumo construtivo, do qual se destaca o processo construtivo da cobertura, ou seja, a armação, e a técnica de abafar a mesma. A cumeeira elevou-se como técnica de amarração devido à sua eficácia e à composição artística que permitia, conseguida por via da modelação de pequenos arranjos na palha, que em alguns exemplos se notam integrados com cuidada métrica e expressão, sendo denominados pelos mestres por bonecos de palha.   Casa elementar com forno interior, em actividade. Rochão, Camacha [1996] Este trabalho consiste em apanhar pequenos molhos da última carreira, que ficam pendentes para a base e sobrepô-los a uma cana de amarramento que contorna toda a cobertura. O pial alto para o fogo, situado nestas casas ao lado do forno, surge como uma inovação do fogo de chão, tal como o empedrado do pavimento em calhau rolado ou basalto miúdo substitui a terra batida que por vezes se cobria com urze ou fetos. Mais tarde, a cozinha passa a surgir encostada ao volume da casa, sem comunicação interna, ou afastada, gerando e mediando uma relação espácio-funcional entre distintos volumes. Esta associação da cozinha a um compartimento autónomo constituiu uma evolução tipológica e uma síntese que melhor se adaptou às necessidades e possibilidades dos colonos, o que fez com que este modelo tivesse tido grande difusão, principalmente na costa Sul da Ilha. Tal ocorrência determinou a separação entre a zona de confeção, a zona de refeição e a zona de dormir, originando, dentro da elementaridade do modelo, uma diferenciação funcional mais complexa. Relativamente ao corpo dos quartos também se inovou, com a autonomização de uma espécie de sótão térreo, que surgiu quando se retomou uma parte do espírito da fachada empena, agora liberta do forno e transformada em fachada do piso superior, já que o terreno oculta neste ângulo um piso inferior com fachada lateral. A porta surge protegida por um aparente alpendre, resultado do prolongamento da cobertura de palha de uma casa de quatro águas, que depois é interrompida pela introdução da empena fachada. Este piso, que é meio sótão, divide-se em dois compartimentos lineares através de um tabique com porta central, construído em pranchas de madeira ao alto, pregadas numa estrutura de barrotes. O compartimento de dentro destinava-se ao quarto do casal e o de fora ao quarto das crianças. Uma pequena janela, quase rasa ao pavimento, protegida pelo prolongamento da cobertura de palha, ventilava e iluminava o quarto de dentro, enquanto um pequeno postigo, na porta do quarto de fora, cumpria a mesma função relativamente ao quarto das crianças. Sob este piso ficam as lojas, onde se guardavam as alfaias e os produtos provenientes da agricultura. O vale de Machico e a zona interior da Camacha, como o Rochão de Cima e, mais raramente, a zona da Ribeira Brava, foram áreas de difusão e locais onde estas casas persistiram até à sua extinção, nos finais do séc. XX. O modelo da casa elementar térrea, com cobertura de palha e cozinha encostada, terá sido o mais divulgado na costa Sul, ainda que com zonas de maior predominância, de que destacamos o Caniço e Santa Cruz. Esta casa, ligeiramente maior do que as antecessoras, tem a particularidade de integrar de forma regular, portanto intencional, um terraço-alpendre, delimitado por um muro, onde se apoiam os esteios de madeira da latada e alguns bancos. Este espaço fronteiro à casa, que se distingue do espaço informal em idêntico posicionamento nos modelos anteriores, corresponde a um prolongamento da casa para o exterior, pois aí se efetuam diversas atividades da lide doméstica e de apoio à lavoura e, em dias de festa, se põe a mesa e se confraterniza. Um elevado número das casas observadas que seguiam este modelo tinha cobertura de palha no corpo dos quartos e de telha no corpo da cozinha, com a particularidade de a cozinha voltar a ser o modelo físico, e, portanto, não funcional da casa-cozinha, ou seja, da casa-empena, com o forno exterior a integrar a inovação do conjunto de lar, forno, chaminé. Gradualmente, as coberturas de palha deram lugar a coberturas de telha cerâmica, primeiro de canudo, depois de cerâmica marselha e, finalmente, antes do seu declínio, de marselha de cimento. O modelo terá evoluído de dois compartimentos e cozinha, para três compartimentos comunicantes com duas ou três portas, janela e cozinha, não comunicante. Estas casas instalavam-se, de um modo geral, em plataformas com alguma extensão, voltadas para Sul. Em muitos casos, parecem estar submersas num denso manto verde, efeito proporcionado pela latada de vinha, ficando apenas visível a zona superior da cumeeira. Esta realidade permitia reduzir significativamente a temperatura do estio e, quando a latada não era demasiadamente baixa, controlar a elevada humidade, proporcionando um ambiente mais favorável à faina agrícola e à lide doméstica, que se desenvolvia do lado de fora da casa. António Ribeiro Marques da Silva, João Adriano Ribeiro, António Aragão, João Sousa e Rui Cardim, entre outros investigadores e historiadores da região autónoma da Madeira, consideram as casas elementares de Santana o paradigma da arquitetura vernacular. Se abstrairmos das leituras simplicistas a que estas casas estão sujeitas, é legítima a sua valorização, pela originalidade construtiva e espacial e pela expressividade artística. As casas de Santana, pela sua área exígua, permanecem classificadas como elementares, mas distinguem-se, pela sua aparência, das que foram descritas até aqui. São construídas parcial ou totalmente em madeira, tendo uma fachada triangular, em resultado de a cobertura, que assenta num espesso lintel de madeira elevado do chão através de apoios pontuais de pedra, descer praticamente até ao nível do pavimento. A tradição local denominou este modelo, que resulta de um sistema primitivo e elementar de construção em madeira, de casas de fio (que a seguir se distinguirão das casas de meio-fio) ou de empena, em virtude da técnica de assemblagem, levada a cabo a partir de lintéis inferiores, prumos verticais e réguas horizontais de travamento. A este sistema apõe-se o ripado da cobertura, o tabuado do pavimento e os painéis de pranchas verticais de madeira da fachada e do tabique, na divisória do interior. As janelas e a porta são colocadas nos espaços livres previstos no engradado da fachada. Por fim, abafa-se a casa, ou seja, cobre-se com palha a armação da cobertura, que é antecipadamente preparada através de procedimentos exigentes na preparação e no manuseamento do material vegetal, o que obriga a que sejam outros mestres a desempenhar-se desta tarefa. A técnica de restolhar ou abafar a casa inicia-se com a escolha da palha e a sua respetiva compra, o que é feito quando a palha ainda está no campo a amadurecer. Esta deverá ter uma altura similar para que a secção de cada planta se assemelhe. Uma casa leva entre “24 a 26 maranhos de palha de trigo e 8 dúzias de varas por casa. O vime, com que se cose a palha à armação de madeira, é seco à sombra e posto ao fumeiro, sendo depois mergulhado em água durante 21 dias, seguindo-se mais uma semana para o enxugar” (MESTRE, 2002, 111). A colocação dos maranhos com as raízes das plantas viradas para cima permite uma amarração duplamente eficaz, ou seja, a altura diferenciada das raízes em relação aos caules permite que o vime as envolva de modo a garantir que as plantas não deslizem e assegurem uma zona de apoio da fieira seguinte. O trabalho desenvolve-se com um homem no exterior e outro no interior que vão passando alternadamente a agulha, denominada abafadoura, com o vime; o homem de dentro ajusta o vime à vara, o do exterior envolve os maranhos e assegura a sua horizontalidade. O fim de cada fieira é cuidadosamente cozido à dobra da aba balançada correspondente e, no seu conjunto, estas emolduram e protegem a fachada de madeira.   Casa de fio, frontal de madeira. Santana [1996] Estas casas, de cerca de 15 m², incluindo o esconso raso ao pavimento, abrigam no máximo dois compartimentos de dormir, que se situam em linha. A cozinha integra-se em outro volume de idêntico desenho e não raras vezes é disposta em frente, ainda que a implantação lateral seja a mais comum. Esta pequena construção de cerca de 6 m² tem pavimento de terra batida ou um irregular pavimento de pedra de basalto. Algumas destas cozinhas procuram adaptar-se ao declive do terreno, beneficiando de uma escavação em três faces, de que resulta uma economia de recursos. A rocha escavada, pela sua estabilidade e qualidade, assegura três paredes acabadas, e estas, uma vez que não havia condições autoportantes, são revestidas a pedra. A fachada, construída entre estas paredes escavadas, tem, de um modo geral, apenas uma porta. A cozinha instala-se no piso térreo, onde o forno interior está por vezes associado a um pequeno lar, embora nas situações mais elementares exista apenas o lugar do fogo de chão. Sobre este piso implanta-se um outro, uma espécie de sobrado, construído um pouco à semelhança do volume de dormir. Este processo ocorre do mesmo modo que na elevação das casas de meio-fio (que a seguir serão caracterizadas), mas é simultâneo aos dois volumes (casa de dormir e cozinha), o que, como se verá, não ocorre nas casas de meio-fio. Casas de fio e de meio-fio O modelo das casas de fio diferencia-se do modelo das casas de meio-fio pelas diferentes dimensões que apresenta e por ter mobilidade. As casas de fio foram construídas como uma padiola, permitindo que sob o volume se corressem toros, para que um grupo de homens o elevasse e o pudesse (re)nivelar ou deslocar quando os seus proprietários mudassem de lugar.   O regime de colonia está diretamente relacionado com as dimensões e com a mobilidade das casas de fio. Jorge Freitas Branco refere a evolução “deste regime que foi adquirindo ao longo dos séculos, complexidade e tensões sociais entre senhorios, arrendatários e colonos”. Num tempo em que os terrenos agrícolas eram “cada vez mais divididos, fenómeno acentuado pela prática de partilhas das benfeitorias edificadas em propriedade de outrem” (FREITAS BRANCO, 1987, 171), em que muitos colonos, por terem as benfeitorias hipotecadas, desistem delas e abandonam as terra respetivas, para emigrar ou mudar de senhorio, levando consigo os seus haveres e, em alguns casos, deslocando as próprias casas, precárias mas eficazes, surge a tentativa de procurar uma equidade justa. Segundo o mesmo autor, “após a grande fome de 1847, o governador José Silvestre Ribeiro, tenta propor um compromisso para resolver a situação. De acordo com a sua proposta, o problema poderia ser sanado se todos os contratos do colono existentes fossem transformados em contratos de arrendamento na base do Código Civil, implicando o pagamento da renda, somente em dinheiro, e a supressão definitiva da apresentação de géneros”. Esta proposta advém de um contexto político e social comprometido com o advento do liberalismo, com a alteração do antigo regime e, por consequência, com a união das partes desavindas: “cada senhorio teria de chegar a acordo com cada colono, para que de futuro a propriedade da terra já não pudesse ser separada das benfeitorias nela edificadas” (FREITAS BRANCO, 1987, 168).   Casa de meio fio. Santana [1996] Deve considerar-se que até aos anos 50 e 60 do séc. XX, na plataforma de Santana, em redor do pequeno núcleo urbano, existiam dezenas de casas de fio e de meio-fio em pequenas parcelas, que apenas garantiam uma precária e insuficiente dieta alimentar. Estas construções refletiam a ausência de conforto do alojamento, conforme relatou o romancista madeirense Horácio Bento de Gouveia: “O casebre do Miséria, coberto de palha de trigo, negreja, como triste anacoreta, nas cercanias brenhosas da Serra. Um só piso, com o soalho feito de tábuas carunchosas de pinho, arrimadas umas às outras, e uma porta com postigo, voltada para nascente. À ilharga, separada daquele por um chiqueiro sem porco, está a cozinha, que é telheiro desabrigado que nunca teve porta. No interior a lareira limita-se a umas pedras que servem de suporte às panelas de ferro de três pés. O tugúrio onde reside o João Miséria compõe-se de um quarto indiviso. Ali dormem ele, a mulher e cinco filhos. A cama é um maranho de palha de milho espalhado no canto do quarto que tem por ventilação as frestas das pedras das paredes” (GOUVEIA, 1949, 99-100). Estas casas miniaturais serão em parte o reflexo da própria dimensão exígua das parcelas onde se implantavam. As produções eram facilmente controláveis pelos feitores, quer na leira de terra, quer na eira. O que sobrava era guardado no pequeno sótão, ou apenas no desvão, onde algumas varas faziam de estrado improvisado para apoio dos produtos. Em casos raros este espaço constituía uma divisão, cujo acesso era feito pelo exterior, através de uma escada de encosto, acedendo-se a uma portinhola ou a uma janela de joelhos. Nas casas de meio-fio de maior dimensão este desvão permitia guardar uma maior produção de trigo, milho ou de outros produtos, como abóboras e frutos. No caso de famílias numerosas, servia de quarto para os filhos mais velhos, adquirindo o nome de quarto de empeno. As casas de meio-fio correspondem a uma inovação que permitiu elevar as paredes periféricas até aproximadamente 0,90 m a 1,10 m de altura, para assentamento do lintel de apoio de toda a armação. Num período inicial desta inovação as paredes terão sido de madeira e de troços de alvenaria. O módulo autónomo da cozinha beneficiou com esta mudança, talvez em resultado da experiência das cozinhas das casas de fio. As lojas no piso inferior e a elevação das paredes periféricas, feita a partir do nível do sobrado, permitiram um maior aproveitamento do decaimento do telhado, o que resultou na ampliação do espaço periférico e na integração de um sobrado superior. Este modelo, que sofreu uma acentuada decadência até aos anos 70 do séc. XX, teve deste modo um novo fôlego. Regista-se ainda, apesar de ter pouca relevância, a casa de meio-fio de dois pisos, com varanda ou balcão e escada de madeira. O piso inferior (loja) desta casa era construído em madeira, sem aproveitamento do declive do terreno. Esta última inovação e/ou evolução não terá tido oportunidade de se consolidar, porquanto o seu desaparecimento estará associado ao êxodo rural das décs. de 1960 e de 1970, rumo à cidade e ao exterior (Europa). Surgiram outras pequenas inovações pontuais, que também não tiveram continuidade e que se tornaram apenas singularidades, como a passagem lateral da casa de dormir para a cozinha destacada.   Casa elementar com cobertura de palha, piso térreo escavado e cozinha separada. Serra d’Água, Machico [1996]   As casas de fio e as casas de meio-fio mantiveram a sua área de implantação restrita ao concelho de Santana, ainda que o modelo que proliferou no vale de Machico, com particularidades diferentes (sendo a mais relevante a elevação das paredes em alvenaria, o que libertava a casa da necessidade de uma armação de madeira), possa constituir um seu parente.     Casa redonda Casa redonda (antiga). Achada do Marques, Santana [1996]   A casa redonda representa outro modelo de casa em madeira, este circunscrito à zona de São Jorge, paredes meias com o concelho de Santana. Esta designação estará relacionada com o aspeto da cobertura de quatro águas, tendencialmente uniforme em virtude de a planta se aproximar do quadrado. A forma arredondada da mudança de água da cobertura destas casas e o seu prolongamento para além dos planos da fachada, como que adoça a geometria no seu conjunto, contudo, “uma das características fundamentais destas casas será a sua excecional carpintaria, expressa na elevação das paredes e respetivas assemblagens, e nas janelas de correr exteriores e nas portadas de correr” (MESTRE, 2002, 115). A sua classificação indica que está entre o grupo de casas elementares e o grupo de casas complexas, sendo o modelo mais evoluído do primeiro grupo e o modelo mais básico do segundo. Este modelo, tal como os outros com cobertura de palha, apresenta o corpo dos quartos separado da cozinha. Face à planta quadrangular, os compartimentos não são dispostos sucessivamente, mas subdividem-se internamente, através de uma cruzeta central. O compartimento que está mais próximo da porta principal faz de sala, e é a partir desta que se acede aos outros dois compartimentos, os quartos, e de cada um deles a um quarto espaço, igualmente utilizado como quarto. A cozinha é autónoma, ampla e tem um forno interior encostado a um canto e associado a um lar ou pial alto para atear o fogo, o que se fazia por vezes com uma pequena fornalha para cozinhar o bolo do caco. Tal como nas cozinhas das casas de Santana, não existe chaminé, o fumo concentrava-se no desvão da cobertura, enegrecendo a armação e a palha, embora por vezes encontrasse uma fuga, ocasional ou forçada temporariamente, escapando para o exterior em novelos densos, provocados pela abertura da porta da rua, o que daria a sensação de a casa estar a arder. Estas casas perduraram, integralmente em madeira, na Achada do Marques, que se situa numa espécie de fajã interior, até ao início dos anos 80 do séc. XX, altura em que se abriu um túnel para melhorar a acessibilidade desta localidade, até então, isolada. A introdução de paredes de alvenaria, ocorrida na Feiteira de Cima, concelho de Santana, resultou numa evolução do modelo, que deste modo permitia uma inusitada elevação das coberturas, que chegavam a albergar dois níveis de sobrado, quando a dimensão e altura eram maiores. O acesso a estes níveis realizava-se por escada interior, de pôr e tirar, a partir do piso térreo, e através de uma escada exterior idêntica, fixa ao nível superior. Neste modelo, a cozinha também era autónoma do corpo dos quartos. Ao ser construída em alvenaria, seguia o propósito de maior cubicagem, como o módulo dos quartos, permitindo elevar a cobertura. O forno integrado, o pial alto para o lume e o espaço resultante da altura da armação da cobertura, caracterizam esta unidade funcional, por vezes mista, como zona de preparação e confeção dos alimentos, também associada a atividades artesanais, como a fabricação e/ou reparação de alfaias agrícolas e outro equipamento. Casa redonda (moderna). São Jorge [1996] A casa redonda de médias e grandes dimensões, construída integralmente em madeira (estrutura, paredes exteriores e interiores e armação da cobertura), constitui o apuramento e/ou a evolução máxima deste modelo. Em termos tipológicos, esta casa evoluiu para um nível de complexidade que podemos classificar como de transição, ao introduzir a unidade do corredor, evitando-se a passagem pelos compartimentos a que a planta em cruzeta obrigava. Nesta solução, entra-se para uma sala e desta para um pequeno corredor com várias portas laterais, que dão para os quartos, e uma outra, no extremo final, que abre para a sala de jantar com porta no mesmo enfiamento. A cozinha é autónoma e fica a poucos metros deste volume. A qualidade de execução e de acabamento das carpintarias, nomeadamente das janelas e portas de correr, revela uma técnica e uma expressão artística apurada. A casa demonstra rigor pela distribuição das pranchas dispostas ao alto, articuladas com as réguas mata-juntas e as travessas horizontais, que percorrem todos os alçados da edificação e apoiam as calhas de correr das janelas e das portadas. Este modelo atingiu níveis de conforto significativo, se o compararmos, por exemplo, com o modelo das casas de fio.     Casa elementar e casa complexa Ainda no âmbito das casas elementares, registamos a casa elementar corrente de um piso, de alvenaria de pedra e cobertura de telha cerâmica, generalizada em toda a Ilha. Esta distingue-se pelo volume alongado e baixo, com telhado abatido de quatro águas. Na fachada, abrem-se duas ou três portas, ou uma porta e duas janelas, emolduradas por cantaria ou por caiação pigmentada, que as destaca da austeridade do conjunto. A chaminé é prismática, com grelha lacrimal e capelo pontiagudo, associada ao forno exterior. Nela revela-se a cozinha integrada no volume único da casa, com acesso autonomizado ou interior. As casas mais austeras têm uma bancada construída em pedra sobre a qual se integra o fogo entre pedras para pousar uma grelha. Esta casa tem apenas um pequeno sanitário, quando existe, que se localiza autonomizado no tardoz da casa. Trata-se de um pequeno volume onde se implanta uma retrete construída artesanalmente, com tampo quadrado e um círculo aberto a meio. Casa elementar de alvenaria. Sítio das casas, Rochão, Porto da Cruz [1996] Reconhecem-se como mais recentes as casas em que todos os compartimentos comunicam interiormente, através de um percurso alinhado junto aos vãos da fachada principal, ou através de uma zona central. Nesta última situação, observam-se exemplos em que o compartimento do meio se subdivide no sentido transversal, permitindo uma saleta de passagem entre a cozinha e o quarto autonomizado, ou seja, um quarto compartimento ainda dentro da linearidade do volume. A esta continuidade é comum chamar-se o meio da casa e o quarto de fora. Este modelo revela uma transição tipológica do modelo linear para um mais complexo, em que o espaço referido introduz sofisticação à casa, que se complementa com um pequeno terraço, coberto por uma latada de vinha e rodeado por um murete com bancos de alvenaria e alegretes, onde é possível realizar atividades do âmbito doméstico e de apoio aos trabalhos agrícolas.   Casa elementar de duas águas. Curral das Freiras [1996]   Ainda no âmbito das casas elementares de alvenaria de pedra, encontra-se um modelo exclusivo do Curral das Freiras, constituído por volumes autónomos (quartos e cozinha) com cobertura de duas águas. O volume dos quartos, com dois pisos, resulta do aproveitamento do encaixe no terreno, o que permite autonomizar as entradas (a inferior, no plano da fachada longitudinal, e a superior, que se integra na fachada empena, como nas casas de Santana). Estas casas raramente têm mais do que um compartimento por piso, sendo o primeiro a loja, que tem o mesmo volume que os quartos. Na cozinha, que se articula com a loja, onde se guardam diversos produtos de consumo, confecionavam-se e tomavam-se as refeições. A loja, além das alfaias, raramente servia para realizar as refeições, embora também se utilizasse com esse fim em ocasiões de festa, por ter maior dimensão. Além do Curral das Freiras, localizou-se entre a freguesia dos Prazeres e o sítio dos Lombos um modelo com semelhanças arquitetónicas. Este modelo apresenta compartimentação sequencial, no máximo com dois compartimentos sobre uma loja, comunicação entre pisos feita por uma escada interior em madeira, estreita e empinada, resguardada por um alçapão, cozinha sem forno, e uma implantação que resultou da escavação parcial de uma ladeira, o que também ajudaria a libertar um terraço fronteiro e quando possível lateral, que dava continuidade à casa. Casa elementar de dois pisos. Sítio da Ingriota, Lombo das Terças, Ponta do Sol [1996] A casa elementar de dois pisos, na sua identidade mais simples, resulta da sobreposição de um piso com a área de uma casa de piso térreo, que não tem comunicação interior, acedendo-se ao piso superior pelo conjunto escada e balcão, geralmente integrada num topo. Esta escada permitia entrar para uma sala e aceder aos restantes compartimentos através de um meio corredor que está junto à parede tardoz e integra a porta lateral, que dá para o compartimento central, e a porta fronteira, que dá para a cozinha que comunica com o terreno que está ao mesmo nível. O piso inferior destina-se mais uma vez a lojas. A casa linear de dois pisos que mais se terá generalizado aparenta um aspeto mais compacto, portanto, menos longitudinal, tendo-se desenvolvido uma compartimentação no piso superior em cruzeta, ou seja, com quatro divisões sem corredor. O acesso aos compartimentos interiores é feito a partir dos compartimentos da entrada e segue uma hierarquia que distingue as pessoas de fora, que permanecem no espaço da entrada, e os residentes, que avançam pelo compartimento da cozinha ou de transição até ao quarto do casal, isto quando a cozinha é autónoma ou implantada por encosto. Alguns destes exemplos transitam depois para uma casa em esquadria por via da posição da cozinha, formando um L. Curiosamente alguns deles integram um pequeno corredor que autonomiza os quartos, a sala e a cozinha, e introduz maior complexidade. O piso inferior destina-se a lojas ou a um lagar de pedra com o equipamento e o vasilhame. A casa elementar de dois pisos na sua dimensão reduzida e compacta transmite uma expressão da casa antiga. O telhado de quatro águas muito abatido, um contrafeito muito prolongado e a implantação a meia encosta, resultado da escavação para integrar o volume com duas cotas altimétricas acessíveis, sugere uma métrica e uma maneira de construir antiga, relacionada com um longo processo e uma tradição de fazer casas, que vem desde os modelos continentais. Algumas quase parecem pequenas casas torre, pela densidade, pela quase ausência de vãos no piso térreo e pela implantação vigilante na paisagem. O modelo da casa-torre é um dos modelos que diríamos decalcado do modelo da região de Lisboa e que foi registado com idêntica métrica, proporção e espacialidade nos Açores e nas Canárias. Casa torre. Sítio do Jogo da Bola, Lombo Canhas, Ponta do Sol [1996]   Contudo, o caso madeirense apresenta ainda uma variante rara: a cozinha é integrada no piso inferior do torreão e não no volume lateral encostado. Este nem sempre tem três águas como se vê nos modelos continentais, mas isso talvez de deva à adaptação a uma realidade física e sociocultural diferente.   Casa duplicada O modelo da casa duplicada, com dois pisos, está relacionado com o modelo da casa em esquadria, e resulta da associação em paralelo de duas unidades lineares com uma única parede estrutural por permeio, com a cozinha a integrar um dos compartimentos de topo ou a manter-se encostada fora desta associação, mas com ligação interior. Tanto no modelo da casa em esquadria como no modelo da casa duplicada, cada compartimento tem um teto tipo masseira, autonomizado relativamente à armação corrida de quatro águas em madeira. Nas casas de maior capacidade económica, a armação é coberta por um teto único de gesso que tem elementos decorativos, ou então é exibida uma armação e forro de tabuado, com junta de meia cana nas junções das tábuas e com um tapa-pó junto ao frechal, revelando o aprumo da carpintaria, como se fazia na casa em esquadria. A casa duplicada, pela dimensão e o número de compartimentos que apresenta, terá permitido experimentar novas soluções tipológicas, constituindo um modelo de transição para a casa complexa. Esta possibilidade ganha força se se atender ao facto de algumas casas duplicadas se aproximarem, nas dimensões e na volumetria, de outras, mais antigas, que foram designadas anteriormente por complexas, de cobertura de quatro águas, com corredor no primeiro piso e acesso por escada exterior. Contudo, o que distingue o modelo da casa duplicada não é apenas a existência de um corredor que gere as espacialidades, mas a escada interior de que está capacitada. As casas complexas mais antigas são mais compactas, têm uma forma quadrangular e mantêm as dimensões tradicionais do pé-direito. As mais recentes são alongadas, o seu desenvolvimento espácio-funcional é retangular, a altura exterior é maior e o pé-direito é mais amplo nos dois pisos, com especial incidência no superior, onde se destaca uma maior elevação do paramento a partir da linha de padieira da cantaria dos vãos. O conjunto denota outra escala e proporção, um processo construtivo dependente de alinhamentos estruturais, associados aos vãos ordenados a partir de um eixo de simetria. A todo este aprumo não será alheia a exigência estrutural das secções dos madeiramentos para vencerem maiores dimensões. Todos os alçados, mesmo aqueles em que os vãos não integram cantarias, denotam essa rigidez, essa métrica construtiva impositiva, onde está implícita a regularidade das secções e dos comprimentos dos estrados de piso e armação de cobertura, ambos em madeira. Este é um modelo que não foi pensado e construído para poder receber adições, “ou seja, trata-se de uma tipologia acabada, que foi pensada como um todo finito, individual e sem associações possíveis, uma tipologia que talvez nos revele o fim da arquitetura popular em termos de uma potencial cadeia tipológica evolutiva e construída em moldes construtivos artesanais” (MESTRE, 2002, 147).     Casa demerarista A casa demerarista, que resultou do retorno de emigrantes bem-sucedidos da Demerara (posterior Guiana britânica e depois República da Guiana), em finais do séc. XIX, é o corolário do processo de aperfeiçoamento do modelo da casa complexa. A tipologia e a técnica que desenvolve seguem os princípios descritos relativamente às casas complexas, mas com assimilações diversas que as aproximam, na identidade e expressão artística, das casas urbanas que têm múltiplas influências. São um misto de casa de morgado e de casa burguesa, onde sobressaem alguns estereótipos, como os alpendres, as grelhagens e os guardas de balcões de gosto neoclássico, bem como os desenhos de pavimento de seixo rolado abertos a branco em fundo preto. No interior, um amaneiramento e/ou aparato nas zonas de receber e/ou estar, como a saleta de entrada, que antecede o corredor e a sala de jantar; as madeiras de rodapés e lambrins dos compartimentos interiores, alisares, roda-tetos, e a dimensão das portas, que integram grandes bandeiras de vidro, bem como almofadas, expõem alguma exuberância decorativa ou exaltação de cor. As janelas de guilhotina atingem maior dimensão e a quadrícula composta por esbeltos membros é quase uma filigrana. Esta integra ainda um sistema de contrapesos que se oculta num elaborado conjunto, construído à medida da espessura da parede que absorve portadas desdobradas em duas folhas rebatíveis e ocultáveis atrás dos alisares. As almofadas destas portadas estão em continuidade com idêntico trabalho de carpintaria que cobre as paredes frontal e laterais e o fecho superior do interior de cada vão. Este modelo de casa é uma obra completa, previamente planeada; pode mesmo admitir-se que tenha partido de um desenho-projeto ou de esquemas simplificados. O detalhe da carpintaria revela por outro lado a importância das ferramentas utilizadas, não apenas pela tecnologia de que se compõem, mas por incorporarem o desenho da arquitetura nos pormenores construtivos. Na carpintaria, é notória a utilização de um conjunto de ferros instalados em plainas, garlopas, guilhermes e tacos que definem frisos salientes, com diversos geometrismos e incisões de linhas abertas propositadamente, de modo a evidenciar uma determinada expressão artística. Algumas destas obras terão beneficiado das primeiras carpintarias mecânicas com propulsão a vapor, transmitida por correias tensionadas em tambores dispostos num eixo em linha ou terão sido trabalhadas em pequenas carpintarias manuais, depois de receberem as pranchas e os prumos das serras de água ou dos serradores da serra. Trabalhar a madeira em carpintarias para a construção de casas e edifícios urbanos foi uma longa tradição nesta região, que perdurou até meados do séc. XX, primeiro em moldes tradicionais e mecânicos primitivos, depois com a primeira geração da carpintaria mecânica. Para além das casas de Santana e São Jorge, são observadas no centro histórico do Funchal e em alguns núcleos de vilas muitas ampliações de casas, especialmente torres avista-navios, ou o tardoz e as fachadas laterais das mesmas. Esta tradição está ainda presente em aspetos de otimização e composição arquitetónica de que destacamos os rendilhados e lambrequins, que ocultam os estores de lâminas horizontais de madeira, ou os tapa-sóis com a bilhardeira para espreitar o exterior sem ser visto. Mas a construção em madeira porventura mais representativa da região é a casa de fresco, localmente denominada casa de prazer, que se implanta num local fresco, com boas brisas e com boas vistas, sobre os muros dos jardins, em contexto urbano, ou em quintas madeirenses. Estes templetos de jardim, que por vezes revelam detalhes construtivos e uma composição artística de elevado rigor e requinte, são de certo modo o reflexo da identidade dos seus proprietários. O romantismo, com especial relevo para o de influência inglesa, e os estilos mais ou menos evidentemente ecléticos, rivalizam com a expressão da arquitetura tradicional da Região que, sem arrebiques estilísticos, reduz a forma e a composição a um caramanchão com cobertura de telha, onde plantas, flores de suaves odores e tapa-sóis disputam harmoniosamente o seu lugar.   Casas de salão A ilha do Porto Santo e a ilha da Madeira, apesar de terem a mesma origem vulcânica, distinguem-se, geológica e geomorfologicamente. O solo claro da ilha do Porto Santo deve-se ao calcário e respetiva desagregação em arenitos ou pedra de areia, como são conhecidos localmente. A zona central da ilha é tendencialmente plana, interrompida por alguns valados que, devido à fraca pluviosidade, apenas conduzem as águas das enxurradas sazonais, agravando a erosão dos solos. A permanente falta de chuvas, devido a um clima seco influenciado pelos ventos predominantes do Norte de África (de Nordeste e de Norte), e a falta de vegetação nas zonas altas, têm dado lugar a solos pobres em espessura e em matéria orgânica, dificultando a agricultura. Casa elementar de salão. Achada, Serra de Fora, Porto Santo [1996] A casa vernacular que representa o Porto Santo expressa e é consequência do contexto físico da ilha, ainda que outros fatores também influenciem o modelo. Seguindo o mesmo critério de classificação aplicado à ilha da Madeira, trata-se de uma casa elementar, da qual sobressai a cobertura de barro, localmente denominada salão. É uma casa térrea com dois ou, no máximo, três compartimentos. Por vezes, quando se trata de uma casa de lavoura de média dimensão, desenvolve-se linearmente, associando compartimentos com acesso interior ou exclusivamente exterior, como são os casos estudados na Serra de Dentro e no Farrobo de Cima. Um dado curioso, que poderá ter resultado de uma evolução planeada em virtude do número de exemplos conhecidos, é a incorporação de um volume perpendicular num dos topos, formando uma configuração espácio-funcional em esquadria, como os exemplos de Pedregal de Dentro e em Farrobo de Cima. Alguns destes compartimentos, resultantes de adições, destinavam-se a novos quartos e/ou salas, em virtude do aumento da família, em consequência de casamentos e da formação de novos agregados familiares. Contudo, algumas destas configurações arquitetónicas estavam estabelecidas desde a origem da casa e destinavam-se a apoiar a lavoura com estábulos e adegas. Nos casos referidos aproveitou-se um declive do terreno, construindo este volume em cota inferior de modo a prolongar a água da cobertura da casa. Esta solução favorecia a limpeza destes compartimentos: ao manterem uma suave inclinação do piso, os fluidos e os resíduos produzidos escoavam naturalmente para o exterior. A cobertura de salão é constituída por uma armação de toros ou barrotes de madeira formando pendentes de duas ou quatro águas. Sobre esta armação, nos casos mais básicos, dispõem-se feixes de arbustos locais muito bem cruzados e apertados, de modo a formarem uma densa teia, sobre a qual é espalhado o salão, com 7 a 10 cm de espessura. No caso de uma construção feita por alguém com mais capacidade económica, as fibras vegetais são substituídas por um tabuado. A técnica de salão requer cuidados especiais. Desde logo na extração e na limpeza, retirando impurezas e pedras, seguindo-se um período de descanso a céu aberto, antes de ser colocado. Uma vez distribuído uniformemente, é batido ou calcado com uma pá de madeira, sendo borrifado com água, de modo a reagregar uniformemente. As qualidades deste material que incorpora argila, que é o seu elemento agregante mais notável, a par da arte de o utilizar, devem-se a uma longa prática, posta à prova com as primeiras chuvas do ano. Estas, em contacto com a superfície gretada, repleta de linhas de micro e macro fendilhação, agregam os elementos, que rapidamente, e dada a plasticidade destes agregantes, tornam a cobertura impermeável. Ao invés, com o tempo seco, a cobertura retoma a fendilhação e permite a circulação de ar entre o interior e o exterior, favorecendo a ventilação. Estas coberturas proliferaram por todo o Mediterrâneo, desde as ilhas mediterrâneas a toda a costa africana e ilhas das Canárias. A casa complexa de dois pisos e telhados múltiplos é outro modelo singular da ilha do Porto Santo. Localiza-se no único núcleo urbano que lá existe, distinguindo-se pela dimensão e pelos dois telhados dispostos paralelamente. Casa complexa de telhados múltiplos. Vila Baleira, Porto Santo [1996]   O corredor central no piso superior individualiza todos os compartimentos e a escada é exterior. A cozinha é integrada e associa o lar à boca do forno, que se integra pelo exterior. O piso térreo destina-se a lojas e por vezes ao lagar, em alguns casos feito de um tronco de árvore escavado. Na ilha do Porto Santo, predominava uma agricultura de sequeiro, os moinhos de vento testemunham a cerealicultura prevalecente, assim como a técnica do seu armazenamento em silos subterrâneos, que consistiam em covas feitas junto às casas, conforme ocorria também no continente, no Mediterrâneo e nos Açores, silos que, no princípio do séc. XXI, ainda existiam na Serra de Dentro, na Serra de Fora e na Lapeira. Havia ainda um de grandes dimensões, para uso comum, no largo central, que se tornou posteriormente alvo de interesse museográfico.   Casas modernas, o popular e o regional Casa moderna. Sítio do Pico de António FernandesSantana [1996]   O período pós-Segunda Guerra Mundial terá dado início a novo ciclo da arquitetura vernacular madeirense através de uma revisitação organizada aos modelos mais comuns. O ou os protagonistas deste movimento estão por identificar, assim como qualquer documentação que lhe diga respeito. É possível que este esteja relacionado com duas levas de regresso de migrantes: uma que ocorreu entre as guerras, outra que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. A construção de uma rede viária para circulação automóvel, assim como a reorganização urbanística das sedes de concelho, terão propiciado novos bairros e a transformação de terreno agrícola em solo urbano, onde se ergueram novas casas. A investigação feita no terreno comprova a existência de um ciclo construtivo, cujos modelos, denominados casas modernas e datados pelos seus proprietários, mostram um processo repetitivo e organizado. Nos anos 30 do séc. XX, ocorreram significativas alterações no contexto urbanístico e arquitetónico em Portugal. A denominada casa portuguesa, muito propagada e defendida no meio cultural do regime político que se instalara, ressurge no final do séc. XIX, apesar de não ter sido uma ideia consensual. Alguns intelectuais apontaram erros de leitura e o efeito negativo da sua aplicação, por corresponder a um retrocesso e inviabilizar os princípios da arquitetura moderna. Contudo, os defensores da corrente conservadora terão tomado à letra escritos e projetos do arquiteto Raúl Lino (1879-1974) e procuraram nacionalizar a paisagem arquitetónica das cidades, vilas e aldeias de Portugal continental, das ilhas adjacentes e das colónias. A casa de quatro águas, beirais prolongados, alpendre, e aberturas contidas, com integração de arrebiques decorativos nas fachadas, rodeada por jardim, horta e árvores de fruto, de modo a expressar uma pseudorruralidade, ou uma urbanidade rural, adquire estatuto de casa portuguesa, ou de casa em sintonia com uma ideia de portugalidade; pretendia-se, por isso, que este modelo se instalasse desde o Minho a Timor. A ilha da Madeira acolheu este movimento e elegeu os seus protagonistas, que se limitaram a implementar no terreno as diretivas e/ou os projetos que lhes chegaram por via administrativa, embora uns estivessem mais envolvidos ideológica e culturalmente com a causa que outros, que seriam indiferentes à mesma. O arquiteto Edmundo Tavares (1892-1983), adepto das convicções de Raúl Lino, viveu no Funchal entre 1932 e 1939, período durante o qual concebeu projetos para edifícios públicos e para casas que procuravam expressar um enquadramento regional madeirense. Alguns destes exemplos foram publicados no livro Casas Madeirenses de J. Reis Gomes (1869-1950), um intelectual influente na região e partidário da corrente supra mencionada, cuja opinião influenciou diversos autores e vários projetos realizados no Funchal. Também não lhe terão ficado indiferentes as autoridades do setor da administração do território e das obras públicas, assim como os projetistas, de diversa formação; os seus projetos ter-se-ão vestido de novas roupagens arquitetónicas, algumas resultantes da consulta de jornais e revistas que circulavam em repartições públicas, em livrarias e em pequenos ateliês. As obras de Raúl Lino e de Fernando Perfeito de Magalhães (1880-1958), a par do livro de Edmundo Tavares, Vivendas Portuguesas: Projetos, Pormenores, e de ilustrações de sua autoria, escolhidas para a publicação de J. Reis Gomes, exerceram grande influência e terão tido um forte papel no surgimento de um pseudorregionalismo da casa madeirense. Edmundo Tavares, nas palavras prévias à obra Vivendas Portuguesas afirma: “Perversão do gosto das pessoas sem cultura estética, nem consciência nacional” (TAVARES, 1952, 11). O que faz acreditar que a intenção da sua ação seria a de nacionalizar a arquitetura que se deveria construir. Em Casas Madeirenses, publicado em 1937, Reis Gomes refere que num novo bairro do Funchal, levado a efeito pela Junta Geral “as casas seriam recolhidas, tendo um espaço sempre ajardinado à frente da via pública”. Sobre outros prédios previstos para a mesma zona, diz que seriam construídos “em obediência a condições de perspetiva e tipo regional que, tendo a casa portuguesa por base, conta com elementos construtivos e de decoração interna e externa, mais particularmente madeirenses” (GOMES, 1968, 89). No mesmo livro, deixa ainda bem claras as suas convicções sobre a casa madeirense e os seus objetivos: “A casa regional poderia ter nesse bairro, como nos arredores, condições de liberdade para pôr em evidência todo o seu grande pitoresco, superior, ainda ao da casa original, pelas ornamentações do frontispício, onde as notas de forma e cor, e as ligações das cantarias, bem como o emprego de azulejos policromados portugueses e moçárabes vieram juntar-se às características do estilo originário” (GOMES, 1968, 89). E, numa vertente mais específica, continua, para melhor vincar esse caráter distintivo: “E se a tudo isto acrescentarmos o efeito decorativo dos nossos mirantes, balcões e ‘casinhas de prazer’, cobertos de trepadeiras e ornatos de flores, [...] faria deste Funchal moderno um dos mais belos e pitorescos espécimes de bairros novos construídos em qualquer parte do mundo” (GOMES, 1968, 89).   Casa moderna: interior da venda. Santo António, Santana [1996]     Casa moderna e venda. Santo António, Santana [1996] As construções em espaço rural, que surgiram no período entre guerras e principalmente a seguir ao confronto mundial são surpreendentes. Trata-se de réplicas construídas com novos materiais, como o tijolo de cimento e a telha marselha ou em xadrez, igualmente de cimento. São muito discretas as inovações tipológicas registadas; destacam-se as escadas interiores com alçapão de pavimento para uso pontual e os sótãos com acesso intermitente ou com acesso exterior. As paredes construídas com uma fiada de tijolo tornaram-se mais esbeltas e libertaram alguma área. As paredes de alvenaria de pedra continuaram a ser utilizadas em virtude do elevado custo do bloco de cimento. Os pavimentos, os tetos e as armações da cobertura continuaram a ser em madeira, de um modo geral, em pinho da terra. Os sanitários continuaram a não existir ou a estar integrados no interior das casas e as cozinhas mantiveram as configurações anteriores, não dispondo de água, nem de saneamento. Algumas delas integravam chaminés pré-fabricadas com um novo desenho, mas a saia e o lar no seu interior permaneceram arcaicos relativamente ao local do fogo e aos revestimentos. Os desejos de Edmundo Tavares sobre as “exigências da vida atual no que respeita à habitação” (TAVARES, 1952, 12) não foram cumpridos nestas casas, que se ficaram pelas aparências. Casa moderna. Sítio do Jogo da Bola, Lombo - CanhasPonta do Sol [1996]   Estes modelos inscrevem-se no último ciclo da arquitetura madeirense, que culmina e/ou coincide com a atribuição do estatuto de região autónoma à ilha da Madeira (1976). Segue-se um período de transição, onde alguns modelos, instalados no terreno nos anos 1970 e 1980, associados mas não de forma exclusiva à imigração sul-africana e venezuelana, se impõem. Estes substituem centenas de casas rurais, elevando-se em muitos casos em múltiplos andares a partir da cota da estrada até às cotas inferiores das escarpas. Nos começos do séc. XXI, a arquitetura vernacular suscitou algum interesse por parte dos seus proprietários antigos ou de novos, que começaram a procurar o caminho da reabilitação, alguns investindo em arquitetos reconhecidos pela sua atividade na conservação e readaptação das casas de tradição, por manter o uso antigo ou por adaptar as casas a pequenas unidades hoteleiras, contribuindo, com a indicação de materialidades que ajudam a sustentar um discurso votado à identidade insular e ao património local, para o processo de reinvenção e reinterpretação de valores culturais que ocorreram nas ilhas da Madeira e do Porto Santo.   Victor Mestre fotos: Arquivo Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura

culto mariano

A Virgem Maria, a mãe de Jesus, é venerada desde os tempos da descoberta e povoamento da Madeira sob os mais variados títulos, a maioria dos quais constituíam devoções enraizadas nas terras de origem dos primeiros que cá chegaram. Dessa devoção ancestral falam as respetivas capelas, ermidas, e depois as igrejas, que se vão erguendo ao longo de quase seis séculos. Umas convertem-se em sedes paroquiais, ao serviço das respetivas comunidades, na medida em que se vão criando para responder às necessidades sempre crescentes da população, que, por sua vez, também se vai multiplicando; outras perdem-se no tempo, entrando em ruína, e ainda outras são destruídas propositadamente para dar lugar a templos com maior capacidade de acolhimento. Os titulares das ermidas também dão nome aos padroeiros locais e, em muitas circunstâncias, ao sítio e à freguesia e paróquia. No caso particular da Virgem Maria, ela é invocada em todo o território madeirense, recebendo as honras de padroeira em muitas comunidades; e onde ainda permanece a ermida de determinada invocação, embora não seja a padroeira da comunidade paroquial, também ali é festejada. Onde a capela caiu em ruínas, as celebrações passaram a ser realizadas nas sedes paroquiais ou passaram ao esquecimento. Títulos da Virgem Maria celebrados na Madeira Estes são os títulos com que os madeirenses têm vindo a prestar culto à mãe de Jesus: N. S.ª Auxiliadora, da Ajuda, da Alegria, da Apresentação, da Assunção, da Boa Esperança, da Boa Hora, da Boa Morte, da Boa Nova, da Boa Viagem, da Cadeira, da Conceição, da Consolação, da Encarnação, da Estrela, da Fé, da Glória, da Graça, da Luz, da Natividade, da Nazaré, da Paz, da Pena, da Penha, da Piedade, da Quietação, da Serra, da Saúde, da Vida, da Visitação, da Vitória, das Angústias, das Brotas, das Dores, das Maravilhas, das Mercês, da Salvação, das Neves, das Preces, das Virtudes, das Vitórias, de Belém, de Jesus, de Jesus Cristo, de Fátima, do Amparo, do Bom Caminho, do Bom Despacho, do Bom Sucesso, do Calhau, do Carmo, do Descanso, do Desterro, do Guadalupe, do Monserrate, do Livramento, do Loreto, do Monte, do Monte e Santana, do Parto, do Pilar, do Pópulo, do Rosário, do Socorro, do Sorriso, do Terço, do Vale, dos Anjos, dos Milagres, dos Prazeres, dos Remédios, dos Varadouros, Imaculado Coração de Maria, Mãe de Deus, Mãe dos Homens, Medianeira de Todas as Graças e Rainha do Mundo. Registamos 77 títulos. Uns relacionam-se diretamente com a pessoa da Virgem Maria, com factos reais da sua vida terrena ou do seu mistério como Mãe de Jesus, como são a Senhora da Natividade, da Graça, da Apresentação, da Encarnação, da Conceição, Mãe de Deus, Mãe dos Homens, da Assunção, Medianeira de Todas as Graças, Rainha do Mundo; outros dizem respeito a situações concretas das necessidades sentidas pela pessoa humana, tais como Senhora dos Remédios, da Boa Hora, da Boa Morte, da Boa Nova, da Boa Viagem, do Bom Despacho, do Descanso, do Desterro, do Bom Caminho, do Parto, da Luz, da Saúde, do Livramento, do Bom Sucesso, da Vitória, das Vitórias; e ainda há os que relembram o lugar onde a mãe de Jesus se tenha manifestado, como a Senhora do Monte, do Guadalupe, de Fátima, etc. De todos os títulos com que os madeirenses têm vindo a prestar culto à Virgem Maria, estes são declarados padroeiros das seguintes comunidades paroquiais: Imaculado Coração de Maria: paróquias do Imaculado Coração de Maria no Funchal e Fajã do Penedo na Boaventura; N. S.ª da Ajuda: paróquia da Serra de Água; N. S.ª da Assunção: Sé Catedral do Funchal; N. S.ª da Conceição: paróquias de Machico, Porto Moniz e Conceição na Ponta do Sol; N. S.ª da Encarnação: paróquias da Ribeira da Janela e da Encarnação no Estreito de Câmara de Lobos; também é padroeira do Seminário da Encarnação e do extinto Convento da Encarnação; N. S.ª da Graça: paróquias do Estreito da Calheta, do Estreito de Câmara de Lobos e da Achada em Gaula; N. S.ª da Luz: paróquias da Ponta do Sol e de Gaula; N. S.ª da Natividade: paróquia do Faial; N. S.ª da Nazaré: paróquia da Nazaré; N. S.ª da Paz: paróquias das Eiras no Caniço e das Feiteiras em São Vicente; N. S.ª da Piedade: paróquias dos Canhas e de N. S.ª da Piedade no Porto Santo; N. S.ª das Dores: paróquia da Assomada no Caniço; N. S.ª da Saúde: paróquia dos Lameiros em São Vicente e João Ferino no Santo da Serra; N. S.ª da Visitação: paróquia da Visitação em Santo António; N. S.ª da Vitória: paróquia da Vitória-Santa Rita em São Martinho; N. S.ª Medianeira de todas as graças: paróquia da Graça em Santo António; N. S.ª das Neves: paróquia dos Prazeres; N. S.ª das Preces: paróquia das Preces na Ribeira de Machico; N. S.ª de Fátima: paróquias de N. S.ª de Fátima no Funchal, do Carvalhal nos Canhas e da Lombada em Santa Cruz; também é padroeira do Seminário Maior do Funchal; N. S.ª do Amparo: paróquias do Amparo na Ponta do Pargo e da Ribeira Seca em Machico; N. S.ª do Bom Caminho: paróquia do Bom Caminho no Santo da Serra; N. S.ª do Bom Sucesso: paróquias do Bom Sucesso, altos de Santa Maria Maior e Garachico no Estreito de Câmara de Lobos; N. S.ª do Carmo: paróquias do Carmo em Câmara de Lobos e do Rochão na Camacha; também é padroeira da Ordem Carmelita, Igreja do Carmo, Funchal; N. S.ª de Guadalupe: paróquia do Porto da Cruz; N. S.ª do Livramento: paróquias do Curral das Freiras e do Livramento no Funchal e Achadas da Cruz; N. S.ª do Loreto: paróquia do Loreto no Arco da Calheta; N. S.ª do Monte: padroeira principal da diocese e da paróquia de N. S.ª do Monte no Funchal; N. S.ª do Rosário: paróquias do Rosário em São Vicente, da Ilha em São Jorge e do Jardim do Mar; N. S.ª do Socorro: paróquia de S.ta Maria Maior, ou do Socorro; N. S.ª dos Remédios: paróquia da Quinta Grande; N. S.ª Rainha do Mundo: paróquia dos Romeiros no Monte. O culto mariano na Madeira engloba 31 títulos da Virgem Maria como padroeira de 50 paróquias, celebrados com toda a solenidade, alguns no mesmo dia litúrgico e a maioria no transcurso do verão. Além disso, ainda há outras celebrações marianas em que a Virgem Maria não tem a função de padroeira, mas cuja devoção lhe é tributada como se o fosse de facto, recebendo a visita de muitos devotos, tal como nas festas da Piedade no Caniçal, do Livramento no Caniço, Ponta do Sol e Estreito da Calheta, da Ajuda em São Martinho, da Apresentação na Ribeira Brava, da Boa Esperança e das Neves em São Gonçalo, da Boa Hora em Santa Cecília, do Bom Despacho no Campanário, da Boa Viagem no Amparo, da Graça no Porto Santo, da Mãe de Deus na Assomada, da Boa Morte em São João e na Ponta do Pargo, do Bom Despacho no Campanário, da Graça no Porto Santo e Machico, da Senhora do Monte em Cristo-Rei, dos Remédios em Santa Cruz, da Assunção no Coração de Jesus, dos Bons Caminhos na Calheta, da Piedade no Convento da Caldeira, paróquia do Carmo, das Preces no Piquinho, de N. S.ª dos Anjos nos Canhas, etc. Registamos cerca de 195 padrões do culto mariano, entre as igrejas, capelas e ermidas erguidas ao longo de quase seis séculos em honra da Virgem Maria, seja padroeira ou simples titular, disseminadas pelo território da Madeira e Porto Santo. O mais expressivo é o título da Imaculada Conceição com 24, seguindo-se a Senhora da Piedade com 15, a Senhora das Dores e a Senhora do Rosário com 7 cada uma, a Senhora do Socorro com 6, a Senhora da Boa Marte, da Penha de França e de Fátima com 5 cada uma, a Senhora da Graça, das Preces, da Consolação, do Livramento com 4 cada uma, registando os restantes títulos, 3, 2 e 1, respetivamente, repartidos por 64 títulos atribuídos à Virgem Maria. Nesta contagem não esquecemos os títulos de N. S.ª da Apresentação como padroeira das Irmãs da Apresentação de Maria; de N. S.ª Auxiliadora como padroeira dos Salesianos; de N. S.ª das Vitórias como padroeira da Congregação das Irmãs Franciscanas de N. S.ª das Vitórias. Desenvolvemos o culto à Mãe de Jesus através dos títulos mais significativos e representativos, como a Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, o culto com maior número de capelas e igrejas, a Senhora do Monte, padroeira exclusiva da diocese, a Senhora do Parto, devoção única na Madeira, N. S.ª da Piedade e das Dores, herança do franciscanismo, como a da Conceição, a Senhora do Livramento, que responde ao sentimento de fraqueza e impotência ante as intempéries, o Imaculado Coração de Maria, que desponta e cresce singularmente na Madeira e N. S.ª de Fátima, como fenómeno religioso mais recente, mas não menos enraizado. Imaculada Conceição O culto a N. S.ª da Conceição na Madeira remonta às origens. É sabido como os reis portugueses sempre defenderam o dogma da Imaculada Conceição e a consideraram sua protetora, desde o nascimento da monarquia. Fé e devoção entranhada na vida dos portugueses, que foram por todo o mundo dilatando a fé e o império. Igreja Matriz de Machico. BF. A devoção e o culto à Imaculada Conceição são trazidos para a Madeira pelo mesmo descobridor e colonizador João Gonçalves Zarco, que manda construir a Igreja de N. S.ª da Conceição de Baixo, junto ao mar, para servir de fundamento à vila do Funchal e, posteriormente, a de Conceição de Cima, junto à sua residência, integrada no Convento de S.ta Clara. É ele também que manda apartar o lugar para a construção da ermida dedicada a N. S.ª da Conceição, também conhecida por “do Espirito Santo”, em Câmara de Lobos. Por sua parte, Tristão Vaz, o donatário da capitania de Machico, edifica a Capela de N. S.ª da Conceição em Machico e Francisco Moniz na terra a que legou o seu nome, Porto Moniz. Terão sido construídas 24 capelas em toda a diocese do Funchal desde a chegada de Zarco até aos nossos dias, três das quais são sedes paroquiais e dão origem ao respetivo padroado: a de Machico, a do Porto do Moniz e a da Conceição, na Ponta do Sol. Por conseguinte, a devoção à Imaculada Conceição é a mais universal das devoções das comunidades madeirenses; o dia litúrgico da sua festa é 8 de Dezembro. A igreja de N. S.ª da Conceição de Baixo é a primeira igreja mandada construir por Zarco, para ser princípio e fundamento da vila do Funchal, “à beira do mar, no cabo do vale do Funchal, ao longo da primeira ribeira deste prado, onde fazia o mar contínuo à corrente da ribeira uma abra de muitos calhaus e seixos miúdos, lavados da continuação das ondas dele que nela batiam” (SILVA e MENESES, 1965, II, 431). Embora vulgarmente conhecida por N. S.ª do Calhau, é dedicada a N. S.ª da Conceição, como indica o seu primeiro nome por que é conhecida: Conceição de Baixo em oposição à Conceição de Cima. O mesmo Zarco funda uma igreja de N. S.ª da Conceição, a que vulgarmente chamam N. S.ª de Cima, para a distinguir da Conceição de Baixo, e destina-a para sua sepultura e de seus descendentes. Com a fundação do Convento de S.ta Clara adjunto à capela da Conceição, vai caindo em desuso o primeiro nome da igreja e perdura o do convento que, passados anos, se estende às duas construções, ficando ambas com uma só denominação: Convento e Igreja de S.ta Clara. Da construção de Zarco nada resta; a capela sofreu várias modificações e na segunda metade do séc. XVII foi demolida. É em Machico que aportam os descobridores João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira no dia 1 de julho de 1419. Desembarcam no dia seguinte, improvisam um altar, e o sacerdote franciscano celebra uma eucaristia de ação de graças. Para efeitos de povoação e exploração agrícola, a Madeira é dividida em duas capitanias: a do Funchal e a de Machico. Aquela pertence a Zarco e esta a Tristão. Machico torna-se um dos primeiros lugares povoados, formando-se aí um núcleo de população que rapidamente se desenvolve. Tristão estabelece-se em Machico, com sua mulher e filhos, no mês de maio de 1425. São dados muitos terrenos de sesmaria a fidalgos e colonos vindos do continente, tornando-se numa povoação importante que chega a ombrear com o Funchal. Tristão Vaz e sua esposa Branca Teixeira erigem uma capela em honra da Imaculada Conceição logo no começo do povoamento e arroteamento de terras, onde, depois de melhorada e acrescentada, funciona a sede da paróquia, que é criada por meados do séc. XV, tendo D. Pedro Vaz, prior da Ordem de Cristo, enviado à Madeira Fr. João Garcia como vigário da paróquia de Machico, em 1450. A fundação da paróquia de Machico é coeva da primeira paróquia criada no Funchal. A sua jurisdição paroquial estende-se a toda a área da capitania, estabelecendo-se depois capelanias curadas, dependentes da igreja matriz, que, pouco a pouco, se vão libertando e tornando paróquias autónomas. A igreja de N. S.ª da Conceição de Machico não é certamente o primitivo templo em que se estabelece o centro da nova paróquia. De acordo com um manuscrito antigo, foi construída em 1499 e terá sofrido melhoramentos e restauros através dos tempos. O rei D. Manuel I ofereceu a imagem de N. S.ª da Conceição, o órgão de tubos, peças de ourivesaria e algumas pinturas. Uma certeza nos transmite a história: a devoção a N. S.ª da Conceição vem nas caravelas dos descobridores e enraíza no povo que se vai renovando através dos séculos. A paróquia do Porto Moniz nasce sob a proteção de N. S.ª da Conceição. É criada nos princípios do terceiro quartel do séc. XV e tem como sede a capela desta invocação mandada construir por Francisco Moniz, o Velho, um dos primeiros povoadores que possui terras de sesmaria e constitui um núcleo importante de moradores com a fazenda povoada que estabelece. Em volta da capela e da fazenda, a população vai-se adensando e forma-se em breve a nova paróquia, como aliás acontece geralmente por toda a ilha. Após ter sido fundada a Capela de N. S.ª da Conceição, esta localidade passa a ter o nome de N. S.ª da Conceição da Ponta do Tristão, pois assim é designada na carta régia de 12 de março de 1574. Mas na carta de 1 de março de 1577 já lhe é dado o nome de Porto do Moniz, que prevalece até aos nossos dias. Francisco Moniz ergue esta capela não longe do mar e dá o seu apelido ao porto, que fica próximo, o qual se estende às imediações e, mais tarde, aos terrenos circunvizinhos. Tendo ele falecido em 1533 ou 1535, segundo os historiadores, a capela é certamente fundada em ano anterior, embora se ignore a data exata. Ao longo do tempo, passa por algumas modificações e é demolida após a construção da nova igreja em sítio diferente. Aliás, esta mudança de local deve-se à necessidade de abrigar o templo dos corsários que por vezes infestavam estas paragens. A nova construção começa em 1660, mas só é terminada em 1688. É também dedicada a N. S.ª da Conceição, que continua assim a ser a padroeira do Porto Moniz até aos nossos dias. Posteriormente, em 1960, aquando da criação das 52 novas paróquias, é criada a paróquia da Conceição na Lombada da Ponta do Sol, tendo como padroeira a Imaculada Conceição e como sede provisória a capela da Lombada. Esta capela, construída por João Esmeraldo, é sagrada pelo bispo D. João Lobo no ano de 1508. É chamada Capela do Espírito Santo, mas também é conhecida por Capela da Conceição, donde se depreende a secular devoção dos habitantes a estas duas invocações. O templo que aqui existe em começos do séc. XXI é uma reedificação da primeira metade do séc. XVIII sendo, no dizer do historiador Pe. Fernando Augusto da Silva, “a capela mais vasta, mais elegante e mais rica de toda a diocese” (SILVA e MENESES, 1965, II, 267). A Imaculada Conceição e o Espírito Santo constituem, portanto, as duas grandes devoções da piedade popular das gentes da Lombada da Ponta do Sol. A festa da Imaculada Conceição é solenemente celebrada também no dia 8 de Dezembro. No Estreito da Calheta, é construída uma capela dedicada a N. S. da Conceição por André de França e Andrade, pelos anos de 1672. Na freguesia da Ribeira Brava, é construída uma ermida em honra da padroeira de Portugal, cujo fundador e ano de construção são desconhecidos. Em de São Roque do Funchal, um sítio ao tempo considerado já de densidade populacional assinalável, o cónego António Lopes de Andrade constrói uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição, no ano de 1700, na propriedade que possui em S. Roque, tendo a escritura de dotação a data de 8 de julho do mesmo ano. Aqui se celebra a Festa da Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro, com missa e procissão, precedida de novenário adequado. Próximo do ilhéu da Lapa, na costa marítima da freguesia do Campanário, fica um baixio conhecido por Baixa da Conceição, que deverá guardar relação com alguma ermida aí construída em tempos remotos. Imagem de Nossa Senhora da Conceição, Capela das Babosas. Arqui. Rui Carita. O comendador Luiz Bettencourt Miranda manda construir no largo das Babosas, no Monte, uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição, que também dá o nome ao lugar: largo da Conceição. É erigida no ano de 1906, especialmente destinada a comemorar o semicentenário da definição do dogma da Imaculada Conceição. Por isso fica sendo conhecida pelo nome de capela-monumento. A catástrofe que desaba sobre a Madeira no dia 20 de fevereiro de 2010 destrói por completo a capela, encontrando-se nos seus escombros a imagem da Imaculada Conceição totalmente intacta, facto que vem aprofundar a fé nos seus devotos. Estão em curso as necessárias diligências, sobretudo a adquisição dos meios financeiros necessários à reedificação da capela, segundo projeto já aprovado pelas autoridades competentes. Existe ainda no Monte uma capela em honra de N. S.ª da Conceição, fundada por Tristão da Cunha em ano que se ignora. O capitão José Sotero e Silva também manda edificar uma capela em honra de N. S.ª da Conceição no sítio da Igreja, na freguesia do Monte. Mesmo à beira-mar, na entrada para o cais de Câmara de Lobos, existe uma capela dedicada à Imaculada Conceição, também chamado do Espírito Santo. Presume-se ter sido levantada pelo povo, mas também se diz que foi o próprio Gonçalves Zarco a delimitar os terrenos. No decorrer dos tempos sofre várias reparações, sendo o culto entregue à classe piscatória. Na rua da Carreira, entre as ruas do Conde de Canavial e da Alegria, o capitão Luís Bettencourt de Albuquerque e Freitas funda uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição em 1770, junto da sua casa de moradia, tendo sido benzida a 7 de dezembro do mesmo ano. Rui Dias de Aguiar e sua mulher, Leonor de Ornelas de Andrade, fundam no ano 1662, em lugar que se ignora, uma capela da mesma invocação, que tem a escritura de dotação de 11 de dezembro do mesmo ano. Diogo Afonso de Aguiar funda uma capela na Tabua, em 1688, dedicada à Senhora da Conceição, construída muito próximo do litoral. É reconstruída em 1910 por José da Silva Novita, tendo sido benzida por D. Manuel Agostinho Barreto a 31 de julho do mesmo ano. Foi fundada pelo pároco José Marcelino de Freitas uma capela da mesma invocação no Arco da Calheta, construída com dinheiro dos fiéis no sítio das Amoreiras, sendo benzida a 27 de dezembro de 1911. Ainda na freguesia do Arco da Calheta, na margem e próximo da foz da ribeira da Serra de Água, Gonçalo Fernandes levantou uma capela consagrada à mesma Senhora da Conceição. Tendo Gonçalo Fernandes falecido a 15 de junho de 1539, e tendo sido nela sepultado, supõe-se que a capela deverá ter sido erguida na década de 30. Bartolomeu Telo Moniz de Meneses, em 1600, terá construído uma capela dedicada à mesma Senhora na freguesia de Santa Cruz. Nuno de Freitas da Silva reconstrói em 1754, em Ponta Delgada, uma capela dedicada à Senhora da Conceição, cujo ano de construção primitiva se ignora. No sítio da Fajã dos Padres, no Campanário, é construída uma pequena capela dedicada a N. S.ª da Conceição que pertence aos jesuítas e que os corsários argelinos destroem no ano de 1626. O visconde Cacongo faz edificar na sua quinta da Choupana, na freguesia de Santa Maria Maior, no ano de 1930, uma capela da mesma invocação, que é benzida a 12 de outubro desse ano. A fortaleza de N. S.ª da Conceição do Ilhéu tem uma capela que é mandada construir por alvará régio de 9 de novembro de 1682. É seu primeiro capelão o P.e José de Andrade, nomeado por alvará de 31 de julho de 1692. Entre estas duas datas se deve contar a da edificação da capela. Estes padrões da fé e devoção dos madeirenses à Imaculada Conceição, a cheia de graça, estão plantados de Norte a Sul, de Oeste a Leste, possibilitando um culto celebrativo em todos os quadrantes da Madeira. São testemunhos eloquentes da fé e devoção de um povo legados à geração presente, que continua a celebrar, com convicções próprias, a Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro de cada ano. N. S.ª do Monte N. S.ª do Monte é padroeira principal da diocese e secundária da cidade do Funchal, da paróquia de N. S.ª do Monte e titular da capela do Monte, paróquia de Cristo-Rei, na Ponta do Sol. A romaria de N. S.ª do Monte, tanto na freguesia do Monte como na de Cristo-Rei, é celebrada a 15 de agosto, dia litúrgico da Assunção da Virgem Maria ao Céu. No entanto, a Festa em Honra do Patrocínio de N. S.ª do Monte, instituída após a aluvião de 8 de outubro de 1803, celebra-se a 9 de outubro. A devoção a N. S.ª do Monte é originariamente madeirense. Não é importada de qualquer rincão de Portugal nem de país algum estrangeiro que tenha exportado nobres ou plebeus para trabalhar as férteis terras da Madeira. Já existia então no Monte a ermida de N. S.ª da Incarnação, mandada construir por Adão Gonçalves Ferreira em 1470. Imagem de Nossa Senhora do Monte por Alfredo Rodrigues. Arqui. Rui Carita. A devoção a N. S.ª do Monte tem origem numa aparição a uma pastorinha, cerca do Terreiro da Luta, que para muitos tem foros de lenda. Diz-se que essa lendária aparição poderia ter sucedido no reinado de D. João II (1477-1495). O relato vem narrado no verso das gravuras que representam a pequenina e a veneranda imagem. Reza assim: “Há mais de 300 anos, no Terreiro da Luta, cerca de 1 quilómetro acima da igreja de Nossa Senhora do Monte, uma Menina, de tarde, brincou com certa pastorinha, e deu-lhe merenda. Esta, cheia de júbilo, refere o facto à sua família, que lhe não deu crédito, por lhe ser impossível que naquela mata erma e tão arredada da povoação aparecesse uma Menina. Na tarde seguinte reiterou-se o facto e a pastorinha o recontou. No dia imediato, à hora indicada pela pastorinha, o pai desta, ocultamente foi observar a cena, e viu sobre uma pedra uma pequena imagem de Maria Santíssima, e à frente desta ‘a inocente pastorinha que, a seu pai, inopinadamente aparecido, afirmava ser aquela imagem a Menina de quem lhe falava’. O pastor, admirado, não ousou tocar a Imagem e participou o facto à autoridade que mandou colocá-la na capela da Incarnação, próxima da atual igreja de N.ª S.ª do Monte” (Id. Ibid., 435). Monte é o verdadeiro nome porque se conhece a paróquia de N. S.ª do Monte, que desde então foi dado àquela pequenina e veneranda imagem que galvaniza o olhar e o coração dos madeirenses. Paróquia de N. S.ª do Monte é o seu verdadeiro nome, que o povo designa simplesmente por Monte. Não se trata verdadeiramente de um monte, mas de meia encosta das elevadas montanhas que circuitam os arredores da cidade do Funchal. O importante núcleo de população que, logo nos primeiros tempos, se constitui no Funchal, junto das margens do oceano, vai-se gradualmente estendendo e alargando pelas lombas e outeiros circunvizinhos, procurando por vezes lugares ínvios e quase inacessíveis. Não tarda que o desbravamento dos arvoredos e matagais, e o correlativo arroteamento das terras, alcance as alturas desta paróquia, ao menos nos limites que a confinam com o primitivo Funchal. Os casais vão lentamente avançando pela escalada da abrupta serrania, e lá mais no alto encontra-se já a pequena e devota ermida de N. S. do Monte, que dá o nome ao sítio e depois à paróquia. A origem desta paróquia e devoção à Senhora do Monte prende-se com a fazenda povoada que ali tem Adão Gonçalves Ferreira, o primeiro madeirense genuíno, porque nascido na ilha, filho de Gonçalo Aires Ferreira, o mais distinto companheiro de Zarco na descoberta do arquipélago, que vem depois a dar o seu nome à nova paróquia de S. Gonçalo. Como geralmente acontece, é uma pequena capela o centro em torno do qual se agrupam os primeiros povoadores. Também aqui, Adão Ferreira, pelos anos de 1470, constrói uma modesta ermida, que parece ter tido o nome de N. S.ª da Encarnação, passando depois a chamar-se de N. S.ª do Monte. Alguns historiadores opinam que a milagrosa aparição da imagem da Santíssima Virgem, que logo começam a chamar de N. S.ª do Monte, é que dá origem a que a capela tome este nome, que por sua vez se transmite ao sítio e mais tarde a toda a paróquia. A capela fundada por Adão Gonçalves Ferreira é a sede da paróquia, quando criada por alvará régio de 7 de março de 1565. Tem seu capelão privativo, e quando se estabelece aí a sede da paróquia, já ali se exercem desde há muito as funções cultuais. Para sede de paróquia, são diminutos os seus espaços. Por isso, logo a seguir fazem-se alguns acrescentamentos. Em 1688, o Conselho da Fazenda autoriza gastar 900$000 réis na construção de um novo templo, o que parece não se ter realizado, pois, em 1739, autoriza-se dar de arrematação a quantia de 6.742$000 réis para a construção de uma nova igreja (cf. Id. Ibid., 438). A capela primitiva é demolida em 1741, tendo sido lançada a primeira pedra do novo templo a 10 de junho desse ano. A veneranda imagem é levada em procissão para a Sé do Funchal, tendo regressado após a conclusão das obras em 1747. A nova igreja dá-se por concluída em 1747, com um custo de 3454$292 réis provenientes de diversos donativos dos fiéis, além da mencionada cifra de 6742$000 réis, concedida pelo erário público.   ] Igreja do Monte. BF. Um ano depois, o terramoto de 1 de abril de 1748 deixa bastante danificada esta igreja, que exige reparações imediatas, as quais acusam alguma lentidão, tendo o dispêndio total das obras, incluindo o templo com o adro e escadarias, muralhas, as casas anexas e diversos ornamentos e alfaias, sido de 200.445$500 réis, segundo os arquivos paroquiais, o que é considerado bastante elevado para a época. Entretanto, a imagem espera de novo na Sé Catedral o fim das obras, tendo regressado para a dedicação do templo. Para o efeito, também muito contribui a Confraria dos Escravos de Nossa Senhora, criada pelo bispo D. Fr. João do Nascimento em 1750, cujas quotas e donativos são quase exclusivamente ali aplicados. A igreja de N. S.ª do Monte é então sagrada pelo bispo Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde a 20 de dezembro de 1818. É, portanto, muito antiga a devoção a N. S.ª do Monte, em toda a diocese. Desde o segundo quartel do séc. XVII começam a aparecer nos registos paroquiais referências a este culto, narrando-se sucessos extraordinários atribuídos à intercessão de Nossa Senhora, por intermédio da piedosa imagem que ali se venera. Ao que parece, o culto divulga-se sobremaneira a partir da fundação da Confraria dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, por meados do séc. XVIII. O culto torna-se mais intenso e generalizado em todas as paróquias da Madeira, começando então as peregrinações e romarias ao respetivo templo a ser de maior afluência de fiéis, que ao longo dos anos vão sempre crescendo e aumentando consideravelmente, até constituir nos nossos dias a mais concorrida romaria de toda a ilha, nos dias 14 e 15 de agosto. Certamente também terá contribuído para esta expansão a Festa do Patrocínio de N. S.ª do Monte que começa a celebrar-se a 9 de outubro de 1804, segundo o rescrito do papa Pio VII, de 21 de julho desse ano, e que se celebrará no mesmo dia e mês de cada ano. Aquela devoção, que já constituía tradição secular entre a população madeirense, é corroborada, oficializada e intensificada a partir da aluvião de 9 de outubro de 1803. Trata-se da maior aluvião que assola a Madeira, e sobretudo o Funchal, nos cinco séculos da sua história. Chuvas intermitentes caem nos 10 ou 12 dias anteriores. No dia 9, porém, chove copiosa e intermitentemente desde as 8 da manhã até às 20 horas da noite. As águas galgam as margens, inundam a cidade e provocam destruição e morte, em autêntico dilúvio. O bairro de Santa Maria Maior é o mais afetado, pois a aluvião leva para o mar muitos prédios, entre os quais grande parte da Igreja de N. S.ª do Calhau, destruindo algumas ruas e ceifando vidas humanas, (cerca de 200 pessoas). No total estima-se que cerca de 600 pessoas tenham falecido devido à tormenta desse dia. Prédios marginais das ruas de Santa Luzia, na Ponte do Bom Jesus, na rua dos Ferreiros, dos Tanoeiros, na rua Direita e no Lago do Pelourinho, são desfeitos e arrastados para o mar. Ante tamanha desolação, sofrimento e morte, o bispo diocesano, o cabido, o clero e os fiéis, reunidos no coro da catedral no dia 13 do mês de novembro, colocam a ilha sob a proteção de N. S.ª do Monte, o que é corroborado e confirmado pelo supracitado rescrito apostólico do papa Pio VII, sendo então instituída a Festa do Patrocínio de N. S.ª do Monte. Nos primeiros tempos fazia-se procissão da catedral para a igreja paroquial de Santa Maria Maior, e 9 de outubro era dia santo de guarda, precedido de vigília própria com jejum. Posteriormente, a celebração passou a fazer-se apenas com eucaristia solene presidida pelo bispo diocesano, com a participação do cabido, de alguns sacerdotes e de muitos fiéis que enchem a catedral. Também na igreja do Monte é celebrada a mesma festa, no domingo seguinte ao dia 9 de outubro. A devoção ao patrocínio de N. S.ª do Monte também é celebrada durante alguns anos na paróquia de S. Martinho, tradição que o pároco empossado em 2013 retomou, celebrando-a na vigília do padroeiro. A devoção e a romaria da Senhora do Monte remontam, portanto, aos primitivos tempos da exploração agrícola e do povoamento da Madeira. As festas populares são celebradas com foros de romaria, a que se associam as levas de emigrantes, que as celebram também em quase todos os países de acolhimento. De regresso à sua terra, de visita ou definitivamente, os madeirenses regressam também à igreja do Monte, a louvar e a agradecer os favores recebidos por essas terras dalém. De toda parte, o povo acorre em romaria a visitar a Senhora do Monte na tarde do dia 14 e no dia 15 de agosto. Aliás, as festividades começam nove dias antes com a celebração das Novenas, promovidas por devotos dos diversos sítios, cada uma com a sua designação própria. Feita uma visita à igreja, alguns romeiros passam a noite em passeios entre os jardins e o largo das Babosas, visitam as barraquinhas e deleitam-se com as iguarias e expressões musicais tradicionais. Os transportes públicos têm facilitado a deslocação. No dia 15, pela manhã, é a vez da celebração eucarística solene, com participação das autoridades regionais, locais e muito povo. Segue-se a procissão que desce da igreja, passa pelo largo da Fonte, percorre as ruas do jardim e sobe à igreja pela rua paralela ao templo. Nela se incorporam os que estiveram na eucaristia, somando-se-lhes uma longa fila de devotos no cumprimento das suas promessas portando velas acesas e os seus ex-votos demonstrativos das graças e favores alcançados por intercessão da padroeira e protetora, a Senhora do Monte. O povo, crente, fiel e grato, avança em silêncio atrás da pequenina imagem de N. S.ª do Monte e a filarmónica ajuda a elevar da Terra ao Céu.   “Os moradores dos sítios do Lombo das Adegas e Terças da Ponta do Sol, pediram licença no ano de 1750, para construir uma capela, alegando a distância a que moravam da igreja paroquial e o desejo que tinham de edificar um pequeno santuário destinado a guardar a veneranda imagem de Nossa Senhora do Monte, e prestar-lhe culto, que se achava num pequeno oratório coberto de colmo e sem a decência devida à mesma imagem. Teve escritura de dotação celebrada a 7 de julho de 1750, sendo concedida licença para a respetiva bênção, a 15 de setembro de 1751. Vinte e quatro anos depois foi acrescentada, procedendo-se à sua nova bênção a 10 de junho de 1775” (SILVA e MENESES, 1965, II, 437). Nesta capela de N. S.ª do Monte é instalada a sede da nova paróquia de Cristo-Rei, criada pelo decreto de D. David de Sousa, a 24 de novembro de 1960. A festa popular celebra-se também no dia 15 de agosto. Esta capela foi alvo de profanação: na noite de 1 de julho de 1810, forçaram as suas portas e dali retiraram a imagem de Nossa Senhora, que colocaram a certa distância, despojando-a de todas as joias que a ornavam, causando profundo sentimento de pesar na população. Levada para a igreja paroquial, e depois de diversos atos de desagravo, é reconduzida em procissão e com a maior solenidade para a mesma capela a 6 de agosto de 1810. N. S.ª do Monte também é venerada na paróquia da Santa, freguesia do Porto Moniz, onde também se celebra a festa popular no dia 15 de agosto, na Capela de S. Pedro, ao sítio dos Lamaceiros. Por alvará de 15 de setembro de 1733 do bispo do Funchal, D. Frei Manuel Coutinho, concedido a Manuel Rodrigues de Canha, morador no Funchal, mas com residência de verão no Lombo do Outeiro, Canhas, é construída uma capela dedicada a N. S.ª do Monte e Santana, que a edifica na sua propriedade. As razões invocadas são precisamente as de servir a população residente que fica distante da igreja paroquial e também a devoção pessoal aos protetores. N. S.ª do Parto N. S.ª do Parto é venerada e celebrada em todas as comunidades paroquiais, como preparação próxima à Festa do Natal, tendo como expressão máxima as denominadas “Missas do Parto”. Elas são exclusivas da tradição natalícia madeirense. Devem começar a ser celebradas a partir do dia 16 de dezembro e terminar no dia 24, como manda a liturgia cimentada na tradição. Nossa Senhora do Parto. Arqui. Rui Carita. Outra característica inerente às Missas do Parto é a hora da sua celebração: antes do nascer do Sol, para daí haurir toda a espiritualidade destas missas que honram a Virgem Maria, denominada a Aurora da Redenção, aquela que vai dar à luz o Sol Divino a toda a humanidade. Também aqui só por razões pastorais se justificam as Missas do Parto vespertinas ou noturnas. A igreja universal celebra a 17 de dezembro a festa litúrgica de N. S.ª do Ó, ou seja, a Festa da Expectação de Maria pelo nascimento do seu divino Filho. A mesma denominação de “Festa do Ó” tem origem nas antífonas de Vésperas do Ofício Divino, que, a partir do dia 17 e até ao 24, começam pelo vocativo “Ó”: “Ó Sabedoria do Altíssimo…, Ó Chefe da Casa de Israel…, Ó Rebento da raiz de Jessé…, Ó Chave da Casa de David…; Ó Emanuel…, Ó Rei das Nações…, Ó Sol nascente…”. Na sua sensibilidade, raciocínios e deduções, o povo madeirense associa o “Ó” destas antífonas ao estado de gravidez da Virgem Maria, que dará à luz o seu divino Filho ao findar dessa semana. Daí chamar-se a estas novenas do Menino Jesus as Missas do Parto. Desde o séc. XIX, temos registo de que a Senhora do Ó é conhecida na Madeira como a Virgem do Parto. Mas presume-se que a sua devoção venha de mais longe, muito provavelmente dos inícios do povoamento, até porque à Senhora do Ó ou Virgem do Parto os madeirenses associam também o culto à Senhora da Conceição, tema obrigatório nos cantos das Missas do Parto, assim como também a Senhora do Rosário. As Missas do Parto mantêm desde há muito um esquema tradicional; em O Natal na Madeira, o P.e Pita Ferreira assinala três tempos fortes na vivência das Missas do Parto: a véspera, a madrugada e a participação da missa propriamente dita. Localizada a véspera em Câmara de Lobos, o referido autor descreve-a como uma autêntica véspera de festa patronal, com a salva e a girândola de fogo ao meio-dia, a presença da filarmónica que toca os hinos aos festeiros e os visita ao domicílio, vivendo essa tarde como um dia de festa, mas dormindo cedo para poder levantar-se às duas da madrugada, com novos toques de filarmónica e estoirar de foguetório, acordando o povo que se deve dirigir, em autêntica romaria, para a igreja. O mesmo autor localiza na Ribeira Brava a sua brilhante descrição desta descida, desde os sítios mais distantes, a duas ou três horas de caminho. Por isso mesmo o búzio toca às duas da madrugada, fazendo juntar as pessoas das redondezas, que, tocando instrumentos regionais, como búzios, castanholas, machetes, rajões, violas e braguinhas, vão descendo ladeiras e veredas, avançando e engrossando a multidão, como um “bando de grilos”, até à vila, onde “os Senhores da Vila” também acabam por abrir os olhos. Todos, ricos e pobres, senhores e plebeus, estão na igreja às quatro e meia da manhã, para começarem, com todo o calor a cantar o invitatório: “Ao Menino nascer / que gosto teremos! Oh! quanto felizes / Todos nós seremos. / Anjos e pastores, Vinde em harmonia / Louvar o Parto / da Virgem Maria”. Quanto à celebração propriamente dita, o referido escritor evoca a tradição do Porto Moniz. Após a entrada solene na igreja, o padre, junto dos degraus do altar, entoa o “Deus in adjutorium meum intende”, que o povo continua: “Domine, ad adjuvandum me festina”, para logo começar o Invitatório em português, cantado por toda a gente: “Ó meu Menino, / ó meu Redentor, / Meu doce Jesus, / Salvai-nos, Senhor”, o qual consta de seis estrofes. Segue imediatamente a segunda parte da novena. Enquanto o sacerdote se senta e começa a rezar o breviário, o povo canta sozinho a invocação ao Espírito Santo: “Vinde Espírito Santo / Lá das celestes alturas, / E da vossa luz, um raio,/ Infundi nas criaturas”. Logo canta-se o Retrato de Nossa Senhora, obrigatório em todas as Missas do Parto, que consta de 20 estrofes. Segue-se a Ladainha, que termina com a Antífona: “Salve, ó mãe do Salvador, / Brilhante estrela do mar / Deste o Salvador ao Mundo / Fazei-nos no céu entrar”. Após a Ladainha, canta-se ainda seis jaculatórias à Virgem Maria, sendo a última a seguinte: “Virgem do Parto, / Ínclita Maria, / Atendei propícia / Os devotos deste dia”. Terminada a novena que todos cantam a bom cantar enquanto o padre reza o breviário, começa então a missa, onde o Pai-Nosso, a Ave-Maria, a Salve Rainha e o Bendito são cânticos obrigatórios. Por seu turno, Rufino Silva refere ainda que antes da reforma litúrgica conciliar do Vaticano II, o uso do latim obriga a uma liturgia paralela entre o altar e o povo. Este, que ao longo do ano se mostra geralmente passivo, gosta de participar ativamente e com grande e singular entusiasmo. Como são sabe latim, utiliza o português, rezando o terço, entoando entre cada mistério cânticos a N. S.ª do Parto, com referências à Imaculada Conceição e à Senhora do Rosário. Entretanto, no altar, o sacerdote reza a missa em latim. As Missas do Parto são momentos exclusivos para cantar versos populares em honra da Mãe do Menino Jesus, alguns deles remontando aos primeiros povoadores da ilha. As orações e o catecismo em verso estavam, nessa época, muito em voga, tendo o próprio Francisco Xavier usado este método na evangelização dos orientais. Eram obrigatórios os cânticos do Pai-Nosso, da Ave-Maria, da Salve Rainha, da Conceição Imaculada, da Maternidade e do Retrato de Nossa Senhora. Muitos desses cânticos foram transmitidos por tradição oral ou por recolhas organizadas e publicadas, como as do P.e Pita Ferreira e de Rufino da Silva, acompanhados da respetiva transcrição musical e de muitas das suas variantes. Uma análise, ainda que superficial, destes cânticos religiosos tradicionais fala-nos da sua imensa riqueza como expressões catequéticas, para além de constituírem profundas orações de louvor, de ação de graças e de súplica, transmissoras de uma verdadeira mensagem de alegria, enlevo, gozo, gratidão, anelos de paz, justiça, arrependimento e salvação. É, portanto, rica e profunda a mensagem haurida nos cânticos populares tradicionais madeirenses. São, ao mesmo tempo, oração e catequese, correspondendo, assim, a características da música sacra. Uma pequena leitura às três variantes do Retrato de Nossa Senhora, obrigatório em algumas comunidades paroquiais, mostra-nos um hino de louvor à pessoa da Virgem Maria, tanto às suas qualidades físicas como espirituais. Neles se fala da “cabeça modesta coroada de estrelas”, dos “finos cabelos” que são “madeixas de aurora”, da “testa brilhante” que “reflete sabedoria”, dos “olhos tão belos que centelham piedade”, das “faces angélicas” que “atraem os corações”, da “garganta” que é “harpa de harmonia”, do “braço esquerdo” convertido em “trono de misericórdia, onde está Jesus a sorrir”, do “braço direito” que “abençoa os pecadores”, da “cintura casta e delicada” que a torna “Virgem das Virgens, pura, imaculada”, dos “joelhos” que “ensinam a oração”, dos “passos” que conduzem à glória. A cada louvor segue uma petição. E a concluir, reza: “A beleza da vossa alma / Ao Senhor agradou tanto / Que vos escolheu para esposa / Do divino Espírito Santo”. Todos os outros cânticos seguem quase à risca o mesmo esquema: uma verdade teológica, cristocêntrica, um louvor à Virgem, a Cristo ou a Deus e uma respetiva petição e consequente aplicação prática à vida quotidiana. São assim os cânticos sobre a maternidade e a conceição o Exultai, a Salve Rainha, a Ave-Maria, e ainda o Pai-Nosso, o Nome de Maria, em todas as suas variantes. As igrejas da diocese do Funchal registam casa cheia durante nove dias, para cantar efusivamente: “Virgem do Parto, ó Maria / Senhora da Conceição. / Dai-nos as festas felizes, / A paz e a salvação”. // “Senhora Virgem do Parto, / Pela vossa Conceição, / Ouvi a quem Vos implora / Com vozes de coração”.   N. S.ª da Piedade N. S.ª da Piedade é o título mariano mais venerado na Madeira, depois da Imaculada Conceição. Com efeito, ao longo dos tempos, são 15 as capelas que lhe são dedicadas: paróquias dos Canhas (1581-1593) e de N. S.ª da Piedade no Porto Santo (anterior a 1529), onde é constituída padroeira; paróquia do Caniçal no Monte Gordo ou da Piedade (séc. XV), largo da Igrejinha no Funchal (1613), Estreito da Calheta (1641), Calheta (1657), São Jorge (1598/1638, posteriormente pertencente à paróquia do Arco de São Jorge), Quinta das Cruzes (1692), São Gonçalo (1722), Porto da Cruz (reconstruída e benzida em 1724), Monte (1728), Jardim do Mar (1736), São Vicente (1784), Mosteiro das Irmãs Clarissas da Caldeira, paróquia do Carmo em Câmara de Lobos, onde também é padroeira (1800) e, ainda, Ponta do Sol (data desconhecida, mas melhorada e benzida em 1879). Algumas destas capelas são posteriormente sedes provisórias das paróquias quando criadas, como acontece nos Canhas, no Porto Santo, no Arco de São Jorge, Jardim do Mar e Porto da Cruz. Algumas destas são ampliadas e melhoradas para responderem às necessidades dos tempos coetâneos, transformando-se nas igrejas paroquiais que perduram até aos nossos dias; outras simplesmente desaparecem na voragem da erosão dos tempos ou da incúria humana; finalmente outras, ainda, existem onde também se celebra a festa popular anual, como é o caso do Mosteiro das Irmãs Clarissas na Caldeira e da comunidade do Caniçal. As festas populares em honra de N. S.ª da Piedade são celebradas ao longo do verão, em dias diferentes: nos Canhas, no primeiro domingo de agosto; no Porto Santo, no último domingo de agosto; no Caniçal no terceiro domingo de setembro; no Mosteiro da Piedade na Caldeira, no 2.º domingo de julho. A festa litúrgica de N. S.ª da Piedade é criada por Bento XIII, calendarizada na sexta-feira da quinta semana da Quaresma, para honrar todos os sofrimentos de Maria que podem ser englobados nas chamadas sete dores: a profecia de Simeão, a fuga para o Egito, a perda de Jesus no Templo, o levantamento da Cruz, a crucifixão, a descida da Cruz e a sepultura. Esta celebração litúrgica, porém, já não consta do calendário litúrgico, após a reforma conciliar. Os sofrimentos da Virgem Maria passam a ser celebrados agora na Festa de N. S.ª das Dores, no dia 15 de setembro. A invocação de N. S.ª da Piedade enraíza na cena evangélica da descida da Cruz e na entrega do filho morto nos braços da mãe. O hino “Stabat mater dolorosa” recorda este momento crucial. Os cristãos sentem que essa piedade, essa compaixão da mãe junto à cruz é motivo suficiente para se compadecerem e darem valor infinito ao sofrimento e à dor humana, e por cuja intercessão podem obter graças e favores para abraçar também o seu sofrimento e angústia nas horas amargas da vida, especialmente perante a morte dos seus queridos. Imagem de Nossa Senhora da Piedade - Igreja Antiga Caniçal. Arqui. Rui Carita. Os portugueses que se radicam na Madeira trazem essa devoção na sua equipagem cultural e religiosa, pois o Portugal de Santa Maria também o é da Senhora da Piedade, desde o Minho ao Algarve, e desde os tempos mais remotos, com muitos padrões e testemunhos em igrejas, capelas e imagens. Devoção que é levada a bordo das caravelas para o mundo aonde chegam os marinheiros portugueses. Na Índia, por exemplo, erguem 48 templos à Senhora da Piedade. A Madeira, minúscula parcela em relação àquele país, não é exceção. Daí também os madeirenses, e sobretudo os homens do mar, homenagearem com tanto empenho N. S.ª da Piedade, como acontece por toda a diocese, pois organizam-se romarias a algumas festas da Senhora da Piedade, como nos Canhas, no Mosteiro da Caldeira e, de forma acentuada, no Caniçal.   Procissão Senhora da Piedade, Caniçal. Arqui. Rui Carita. A capela dedicada a N. S.ª da Piedade no Caniçal encontra-se no Monte Gordo, no alto de uma rocha escarpada sobranceira ao mar. Antigamente havia adjunta uma casa para romeiros, sinal da grande afluência de peregrinos ou devotos à Senhora da Piedade. Diz a tradição que esta capela é construída por um voto de um grupo de marinheiros que, vendo o seu navio prestes a despedaçar-se contra os fraguedos da costa, prometem erigir na cumeada do monte uma pequena ermida dedicada à Virgem Santíssima. Também atribui a sua construção a Garcia Moreno, primeiro administrador do morgadio do Caniçal, ou a algum dos seus sucessores. A imagem existente nesta capela é objeto de culto na festa anual de N. S.ª da Piedade no Caniçal. A imagem de N. S.ª da Piedade é trazida na véspera em procissão pelo mar, acompanhada de alguns barcos engalanados e pescadores agradecidos, para a igreja paroquial. Ao terminar a celebração eucarística, no domingo, a imagem regressa à sua capela, também por mar. Para além da novena, da eucaristia da vigília e da missa da festa no domingo, estas duas procissões constituem o ponto alto das celebrações. É no Caniçal que a devoção a N. S.ª da Piedade cobra maior expressão; trata-se de uma terra de pescadores e muitos vão para o alto mar, para a faina da pesca, com os olhos postos na capelinha do monte Gordo, a pedir proteção para os perigos, as vicissitudes e os imprevistos do mar. A sua devoção, porém, tem foros de globalidade diocesana, pois são muitos os peregrinos ou romeiros que se apresentam na festa a cumprir votos ou promessas e a agradecer favores.   N. S.ª das Dores O título de N. S.ª das Dores está intimamente ligado ao de N. S.ª da Piedade. Com efeito, tem o idêntico objetivo de celebrar as dores da Virgem Maria. A sua imagem apresenta a mãe de Jesus com uma seta a trespassar-lhe o coração. Evoca, portanto, a profecia de Simeão, aquando da circuncisão e apresentação do Menino Jesus no Templo: “Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma”, diz o “justo e piedoso” Simeão a Maria (Lc 2, 33-35). A festa litúrgica realiza-se no dia 15 de setembro, oito dias após a Natividade. Já os servitas de Nossa Senhora a celebram no séc. XVII e Pio VII estende a toda Igreja em 1817, com o fim de lembrar os sofrimentos que a atormentam na pessoa do seu chefe supremo, prisioneiro e exilado por Napoleão, mas restituído à liberdade por intercessão especial da Santíssima Virgem. Em Portugal há muitos padrões dessa devoção em todas as dioceses. É muito difícil encontrar uma igreja onde não haja uma imagem de N. S.ª das Dores. São muitas as romarias a esta Senhora, nomeadamente aos seus santuários no Paul da Covilhã, em Póvoa de Varzim e em Ponte de Lima. Não admira, portanto, que tenha também uma forte expressão na Madeira. Aliás, podemos considerá-la uma herança do franciscanismo, assim como das invocações de N. S.ª da Piedade e N. S.ª da Conceição. Esta celebra a alegria, o contentamento, a satisfação e o louvor, e a Senhora da Piedade e das Dores recordam e sacralizam os sentimentos opostos de dor, sofrimento, angústia e aflição, uns e outros tão queridos e vividos pela espiritualidade franciscana que marca os primeiros anos do povoamento e o consequente crescimento da população madeirense. A imagem de N. S.ª das Dores existe praticamente em todas as paróquias, faz parte do cortejo da procissão do Senhor dos Passos na Quaresma e também do Enterro do Senhor na Sexta-feira Santa, sendo portanto universal a sua devoção na Madeira. Além das procissões e atos litúrgicos da Semana Santa, a devoção a N. S.ª das Dores cristaliza-se também nas capelas dos cemitérios, nomeadamente em Santa Cruz, Câmara de Lobos, Angústias, São Martinho, São Gonçalo, e ainda na capela do Hospício da Princesa D. Amélia.   Imagem da Senhora das Dores - Igreja da Assomada. Arqui. Rui Carita. Apenas no séc. XX encontramos o registo de uma paróquia onde a Senhora das Dores é padroeira, a paróquia da Assomada. Aliás, a festa litúrgica de N. S.ª das Dores é posterior à de N. S.ª da Piedade. Vem do primeiro quartel do séc. XIX. Desmembrada da comunidade paroquial do Caniço, por decreto de D. David de Sousa, de 24 de novembro de 1960, a paróquia da Assomada entra em atividade no dia 1 de janeiro de 1961, com sede provisória na Capela da Mãe de Deus, sendo o P.e Florentino de Sá o seu primeiro pároco. N. S.ª das Dores é desde o princípio a sua padroeira. As razões deste padroado fundamentam-se em diversos fatores, onde predomina o histórico. É uma devoção muito antiga no sítio da Tendeira, de quando este sítio pertencia à paróquia mãe. As pessoas cotizam-se mensalmente para prestar homenagem a N. S.ª das Dores, com a celebração de uma eucaristia, na igreja paroquial do Caniço; acima da igreja da Assomada existe um lugar denominado Calvário, de referência obrigatória para os devotos da paixão de Cristo, onde terá falecido, por acidente, um pároco do Caniço, segundo uma tradição oral. Onde há Calvário, ai está, de pé, junto à cruz, a pessoa da Virgem Santa Maria, ou seja, neste caso, N. S.ª das Dores. Por razões de ordem pastoral, a Festa que guarda relação com o dia litúrgico de N. S.ª das Dores, celebrada pela Igreja universal a 15 de setembro, é trasladada para o último domingo desse mês. É custeada pela Confraria de N. S.ª das Dores, coadjuvada pela comunidade paroquial. A construção de uma nova igreja começa imediatamente, pois a bênção e lançamento da primeira pedra ocorrem a 24 de junho de 1961. Segundo alguns paroquianos, a construção terá demorado apenas dois anos, tal é o entusiasmo e empenho do pároco e dos paroquianos. A 24 de junho de 2011, aos 50 anos do lançamento da primeira pedra, é comemorado o 50.º aniversário da criação da paróquia, único padrão paroquial da devoção e do culto a N. S.ª das Dores.   N. S.ª do Livramento Quem vive numa ilha, cercada de mar por todos os lados, cheia de encostas e montanhas agrestes e majestosas, sujeita a catástrofes naturais frequentes e intensas, sente necessidade de um ente superior que o proteja. Ninguém controla as nuvens, os trovões, os relâmpagos, a chuva torrencial, as quebradas, os deslizamentos de terras e as enxurradas. O madeirense tem uma larga experiência em de repente se sentir fragilizado, diminuído, impotente, ou ver a própria vida ameaçada. Um dos recursos que tem vindo a utilizar nestas horas amargas da vida é a mãe de Deus, sob o título de Senhora do Livramento. Um título que considera a grandeza de Maria, mas que ao mesmo tempo nasce da fraqueza humana. Não é sem razão que o lugar mais expressivo desta devoção é precisamente o Curral das Freiras, uma cratera de vulcão plantada no fundo do vale, rodeada de altas, agrestes e imponentes montanhas que, vistas de longe, extasiam os turistas, mas, contempladas do vale, amedrontam os residentes.   Igreja do Curral das Freiras. Arqui. Rui Carita. N. S.ª do Livramento é padroeira das comunidades paroquiais do Curral das Freiras, Achadas da Cruz e Livramento, do Funchal. Também é devoção tradicional de suma importância celebrada de forma extraordinária nas paróquias do Caniço e Ponta do Sol. A Festa de N. S.ª do Livramento no Curral das Freiras é celebrada no último domingo de agosto; nas Achadas da Cruz e no Caniço, no 2.º domingo de setembro; na Ponta do Sol, no segundo domingo de outubro; na paróquia do Livramento, no 2.º sábado de setembro. Enquanto na Madeira a devoção à Senhora do Livramento aparece no séc. XVII, consolidando-se nos sécs. XVIII e XIX, aparece no continente só no séc. XVIII. Divulga-se por todo o Portugal, tornando-se a Senhora do Livramento também padroeira de algumas paróquias e titular de muitas capelas no restante país. A devoção à Senhora do Livramento na Madeira remonta aos primórdios do povoamento, muito embora não possamos precisar datas. Uma das orações mais antigas à Virgem Maria reza assim: “Livrai-nos da tristeza dos tempos presentes”, onde já transparece a ideia de Livramento. Esta devoção não é exclusiva do Curral das Freiras, mas foi levada a toda a Madeira, como provam as capelas construídas em sua honra aqui e além, dando origem aos respetivos topónimos. Assim acontece no Caniço (meados do séc. XVII), no Monte (1684), na Ponta do Sol (1656), em São Vicente (1683), no Estreito da Calheta (vistoriada em 1860) e Achadas da Cruz (1848), sendo, portanto, muito antiga a romaria à Senhora do Livramento nas respetivas paróquias, transladando-se a romaria das capelas para as igrejas paroquiais, entrando aquelas em ruína.   Imagem de N. Senhora do Livramento - Curral das Freiras. Arqui. Rui Carita. A Senhora do Livramento é padroeira da paróquia do Curral das Freiras desde a sua fundação. Por isso, é lógico pensar que é a maior devoção da comunidade ali residente, já nessa data. Não admira que assim seja, pois a Virgem teria livrado a população de muitos males físicos e morais, sobretudo quando as forças da natureza ali expressam a sua força dominante, e, por vezes, destruidora. A pequena Capela de S.to António, existente no Curral e pertencente ao Convento de S.ta Clara, serve para a instalação e sede da nova paróquia, quando é criada por alvará régio de 17 de março de 1790. Presume-se que a nova igreja tenha sido edificada nos primeiros anos do séc. XIX. A festa da padroeira é objeto de uma romaria realizada no último domingo de agosto. A romaria continua nos nossos dias com o mesmo entusiasmo e a mesma devoção, de tal forma que é conhecida em todos os quadrantes por “Festa do Curral”, sendo massiva a participação nas cerimónias, bem como a incorporação na procissão, onde vemos muitos devotos a caminhar descalços sobre o alcatrão ardente, portando ex-votos ou grandes velas acesas. Muitos devotos oferecem ouro, pois que cada grama simboliza, por um lado, a máxima expressão de gratidão e, por outro, o reconhecimento de que a Virgem Maria é a sua Rainha do Céu, a quem se deve oferecer do melhor que há e do que se tem. “Na história de cada partícula de ouro está a história, rica, maravilhosa, de contrastes, de alegria, de sofrimento, de cada pessoa, de cada um dos problemas que tiveram” (GAMA, 2014, 269). Singular é também, como aliás em outras comunidades madeirenses, mas aqui de forma mais expressiva, a presença de muitos emigrantes, filhos da paróquia, nas festas do Curral. É uma forma de marcarem a sua identidade, ausentes nos países de acolhimento durante o resto do ano. Para muitos, é comum marcarem as férias para esta data, pois fazem questão de participar ativamente na festa da padroeira da sua paróquia de origem. Igreja do Livramento, Funchal. BF.   Embora se desconheça a data, alguns historiadores colocam no séc. XVII a construção da Capela de N. S.ª do Livramento que Sebastião de Oliveira manda erigir no Caniço e que dá nome ao sítio e a uma romaria muito antiga, que é talvez a festa celebrada com maior pompa e solenidade, não só pelos residentes, mas também pelos emigrantes que a levam para as terras de acolhimento. A festa celebra-se no segundo domingo de setembro. Na prática, a Senhora do Livramento tem sido celebrada através dos séculos como se fosse realmente a padroeira do povo canicense, muito embora o sejam o Espírito Santo e Santo Antão. A mais antiga capela dedicada à Senhora do Livramento de que há memória é a que foi mandada construir por Diogo Pereira de Mesquita em 1656 na Ponta do Sol. Terá sido restaurada no séc. XIX. A festa popular é celebrada com pompa e solenidade habitualmente no segundo ou terceiro domingo de outubro, sob a responsabilidade de festeiros nomeados para o efeito no ano anterior e com a presença de numerosos devotos vindos das paróquias vizinhas. É hábito fazer-se um novenário de preparação espiritual intensa, onde participa também a juventude paroquial. Para os enfeites e decoração da capela e andor de Nossa Senhora, vai-se em romaria aos altos da serra colher as chamadas “Açucenas de Nossa Senhora” (beladonas) em ambiente de festa e de alegria. Muitos devotos marcam presença nos atos religiosos cumprindo promessas, agradecendo favores e louvando a Senhora do Livramento. O arraial típico madeirense também é realidade nestes dias com expressões cívico-culturais, onde não falta a filarmónica nem o conjunto musical, a par da gastronomia tradicional. A Capela de N. S.ª do Livramento, que também dá nome a um sítio da freguesia do Monte, é edificada em 1684 por Inácio Ferreira Pinto e reconstruída um século depois por João José Bettencourt de Freitas. Por decreto de D. David de Sousa de 14 de novembro de 1960, é criada a paróquia do Livramento, com sede provisória na referida capela, continuando desta forma o culto mariano ali enraizado desde o séc. XVII. Posteriormente, foi ali construída uma igreja majestosa, como testemunho da fé e devoção que as populações e seus pastores nutrem por essa devoção secular. A igreja do Livramento, obra do arquiteto Luís Jorge Santos, é dedicada por D. Teodoro de Faria, no dia 20 de junho de 2004, com grande solenidade. A nave tem a cobertura em forma de tenda. A igreja assenta sobre 12 pilares, que simbolizam os 12 apóstolos e as 12 tribos de Israel. Singular também é a posição do crucifixo, que “está numa posição central, não vertical, mas no sentido da gravidade, colocado de modo que a noção de entrega aos homens se faça virada para os homens e não numa posição totalmente vertical. O Cristo não está pregado na cruz, mas soltou-se da cruz e está naturalmente sob o efeito da força da gravidade e entregue exatamente nessa mesma posição” (GAMA, 2014, 274). “Outros pormenores também estão cheios de simbolismo, como os esticadores que partem da terra e sustentam simbolicamente a estrutura que eleva da terra ao céu. Na iluminação exterior os archotes representam a iluminação das tendas” (Id. Ibid.). Toda a assembleia fica numa penumbra de luz indireta, e só o altar recebe luz direta que vem do alto, constituindo um polo centralizador da atenção dos presentes. Os terrenos da paróquia das Achadas da Cruz constituem os limites da capitania do Funchal, que ficou sob a administração e exploração do descobridor João Gonçalves Zarco. Os seus habitantes primitivos terão pertencido à freguesia da Ponta do Pargo, pois, em 1592, o bispo diocesano ordena que passem a ser paroquianos do Porto Moniz e ali cumpram as obrigações religiosas. Ali foi edificada uma pequena capela sob a invocação da Vera Cruz, no terceiro ou último quartel do séc. XVI. É nesta capela da Vera Cruz que se estabelece um curato dependente da colegiada da Calheta, no terceiro quartel do séc. XVI, cuja duração é muito curta, sendo extinto em 1577 pelo bispo D. Jerónimo Barreto, argumentando o pequeno incremento da população. Em 1587, já o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos, em visita pastoral à igreja do Porto Moniz, constata que a capela se encontra em “lamentável estado de conservação e asseio, sendo a sua cobertura de palha e não tendo no altar o painel do orago” (Id. Ibid.), exortando os habitantes a devolver-lhe a dignidade adequada à celebração dos atos de culto. Em 1611, o bispo pede a restauração do antigo curato e, em 1638, é secundado pela comunidade local, pedidos que são satisfeitos 100 anos depois da extinção do primeiro. Com efeito, pelo decreto de 28 de dezembro de 1676, o bispo D. António Teles da Silva é autorizado a “criar o curato de Nossa Senhora da Conceição do Porto Moniz, com a obrigação de residência nas Achadas da Cruz” (Id. Ibid.). Desta forma, as Achadas da Cruz são sempre um curato filial do Porto Moniz, com variantes de menor ou maior dependência até ao ano de 1848, quando, por decreto de 24 de julho, é constituída como paróquia independente, ou um curato autónomo com vida civil e religiosa próprias. Contrariamente ao que seria de esperar, a antiga capela da Vera Cruz, localizada nas proximidades do sítio do Calvário, não deu o nome da sua invocação ao orago da paróquia. O orago ou padroeira da paróquia das Achadas da Cruz passa então a ser N. S.ª do Livramento, com sede na nova capela que mais tarde se levanta, em data que se ignora. Posteriormente sofre acrescentamentos e melhorias, constituindo, até aos nossos dias, a sede paroquial. N. S.ª do Livramento é celebrada nas Achadas da Cruz como sua eficaz padroeira, com grande solenidade e foros de romaria, no segundo domingo de setembro. Na freguesia de São Vicente, a capela dedicada à Senhora do Livramento, que foi mandada edificar pelo P.e Manuel Gomes Garcês, remonta ao ano de 1685. No Estreito da Calheta também houve uma capela do Livramento, mandada construir por D. Inácia Bettencourt Perestrelo no ano de 1858.   O Imaculado Coração da Virgem Santa Maria Os Padres da Igreja primitiva sempre destacam as virtudes do Imaculado Coração de Maria. Em plena Idade Média, entre os grandes místicos, santos, teólogos e ascetas, há imensos devotos do Coração de Maria. Igreja da Imaculada da Conceição de Maria, autoria de Raul Chorão Ramalho. Arqui. Rui Carita. O culto litúrgico, porém, começa com S. João Eudes (1601-1680), em França. Movido de grande amor para com os Corações de Jesus e Maria, é o primeiro que pensa em tributar-lhes culto público litúrgico, de cuja devoção deve ser considerado “autor, pai, doutor, apóstolo e promotor” (FONTOURA, 2002, 137). Em 1643, 20 anos antes de celebrar a festa do Coração de Jesus, já festeja, com os seus monges, a do Coração de Maria, que se torna pública em 1648, entrando na liturgia universal. A partir desta data, muitos bispos autorizam o culto do Coração de Maria nas suas dioceses e os papas concedem aprovação e favores a confrarias e a diversas práticas de piedade em sua honra. No séc. XVIII, Bento XIV erige a primeira confraria do Santíssimo Coração de Maria. Pio VII, no século seguinte, enriquece-a com privilégios e procura difundi-la. O grande impulso, porém, desta instituição parte de Paris. Em 1838, o papa Gregório XVI eleva a confraria à categoria de arquiconfraria, conferindo-lhe o direito de agregar outras confrarias do mesmo nome. No séc. XIX (1805), Pio VII enriquece-a com privilégios e maior difusão, concedendo a festa às dioceses e institutos religiosos que a pedissem. Em 1855, Pio XI aprova missa e ofício próprios, unicamente para algumas localidades. A comemoração litúrgica na Igreja universal celebra-se no sábado da Oitava do Corpo de Deus, ou seja, no dia seguinte à festa do Coração de Jesus. Em Portugal, a mais antiga confraria do Imaculado Coração de Maria é estabelecida no mosteiro da Encarnação dos Comendadores de Avis, em Lisboa, no tempo de Pio VII, no séc. XIX, ficando agregada à arquiconfraria de Paris. Mas é sobretudo a partir das aparições de Fátima que se divulga por todo o mundo católico a devoção ao Imaculado Coração de Maria. O culto ao Imaculado Coração de Maria na Madeira é anterior a Fátima. Já se o vive com bastante devoção no séc. XIX. E, na primeira metade do séc. XX, pratica-se mais do que nas restantes dioceses de Portugal, como resposta ao pedido que a Virgem terá feito à madre Virgínia Brites da Paixão. Com efeito, esta religiosa clarissa terá tido revelações especiais, quer do Coração de Jesus, quer do Coração de Maria; segundo os seus hagiógrafos, serão quatro as revelações mais importantes, duas do Coração de Jesus e as outras duas do Imaculado Coração de Maria, recebidas a 16 de abril de 1913, na festa do Corpo de Deus de 1913, em agosto de 1913 e a 3 de maio de 1914. A mensagem que a Virgem Maria terá transmitido à madre Virgínia pode resumir-se na devoção e culto público ao Imaculado Coração de Maria e nos meios a utilizar para atingir esse objetivo: constituição de confrarias do Imaculado Coração de Maria, uso do respetivo escapulário, prática da devoção dos primeiros sábados, construção de um templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria e definição da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu como dogma de fé. Embora nada respirasse publicamente acerca destas revelações, o P.e João Prudêncio, confessor da madre Virgínia, começou imediatamente a infundir na sua paróquia, de Santo António, a devoção ao Imaculado Coração de Maria: escolheu “doze discípulas do Coração Imaculado de Maria” (Id. Ibid., 132), a quem confiou esta missão; repartiu entre elas os 12 meses do ano, e em cada mês cada uma promovia a devoção. Também começou a celebrar-se a eucaristia no primeiro sábado de cada mês em desagravo e reparação do Imaculado Coração de Maria. “A Guarda de Honra é também um desejo da Virgem. Doze pessoas em cada freguesia estariam constantemente em desagravo e reparação” (Id. Ibid., 133), consagrando uma hora do dia ou da noite a esse desagravo. A prática dos primeiros sábados criou na paróquia um ambiente de piedade e de abertura ao culto do Imaculado Coração de Maria que desembocou, no último domingo de agosto de 1915, numa festa mariana em que participou toda a freguesia de Santo António, que encerrou com uma procissão com a imagem do Imaculado Coração de Maria percorrendo as principais ruas de Santo António. O P.e Prudêncio funda, em 1916, a confraria do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria, que fica agregada à arquiconfraria de Paris. D. António Manuel Pereira Ribeiro aprova a sua ereção canónica e aprova os estatutos, por decreto de 18 de janeiro. A 2 de fevereiro encontra-se ereta canonicamente em Santo António e no Hospício D. Maria Amélia. Nesse mesmo dia, celebra-se a festa da Apresentação do Senhor no Templo, são admitidas as primeiras associadas, cujas inscrições vão aumentando dia a dia. A 19 de novembro de 1921, é ereta na paróquia de São Pedro do Funchal, irradiando posteriormente para quase todas as paróquias da diocese. A 2 de julho de 1915, e “por ordem de Jesus” (Id. Ibid., 135), a madre Virgínia escreve ao papa Bento XV, transmitindo-lhe a mensagem recebida. Algum tempo depois, o P.e Prudêncio é enviado ao Vaticano a informar Bento XV. Logo escreve um texto, onde constam os pedidos que a Virgem terá feito por intermédio da madre Virgínia: culto público ao puríssimo e Imaculado Coração de Maria, uso do escapulário do Imaculado Coração de Maria, definição da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu em corpo e alma como dogma de fé católica. Mais tarde, a 24 de setembro de 1920, o P.e João Prudêncio, por ordem do bispo diocesano, envia uma longa carta ao papa Bento XV, dando a conhecer o que sentia sobre a madre Virgínia. O escapulário branco do Imaculado Coração de Maria desperta grande entusiasmo popular, e é recebido com devoção por muitas famílias, sendo levado por emigrantes para os Estados Unidos e outros países, nomeadamente Espanha, através da família de Carlos de Áustria, após a sua morte. Um dos desejos que a Virgem Maria terá expressado à madre Virgínia é o da construção de um templo dedicado ao Imaculado Coração no Funchal. Os primeiros esforços neste sentido acontecem em 1921, mas só mais tarde o desejo se torna realidade. Entretanto, surge em Roma o primeiro templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria. Bento XV, quem fora informado deste desejo da Virgem pelo P.e Prudêncio, adquire o terreno e, após a sua morte, Pio XI entrega-o aos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria, os claretianos, com a responsabilidade de ali construírem um templo votivo internacional. É construído só no pontificado de Pio XII, com apoio de todo o mundo cristão, e João XXIII confere-lhe a dignidade de basílica. Está situado na praça Euclides, no Parioli, em Roma. A 26 de agosto de 1926, é feita a consagração da diocese do Funchal ao Imaculado Coração de Maria, a qual é renovada a 28 de maio de 1933, no Terreiro da Luta. O Imaculado Coração de Maria é orago de duas paróquias na diocese do Funchal: a paróquia do Imaculado Coração de Maria, no arciprestado do Funchal, e a da Fajã do Penedo (Boaventura) no arciprestado de S. Vicente. Na rua da Levada de Santa Luzia, foi erguida uma igreja dedicada ao Imaculado Coração de Maria, fruto da devoção preconizada pela madre Virgínia, que dá a conhecer as visões que terá tido ao bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro; uma das decisões consequentes do bispo foi cristalizar essa devoção na criação de uma paróquia e igreja paroquial a que chama precisamente do Imaculado Coração de Maria – decisão aliás secundada pelas autoridades civis, que nesses terrenos constitui também uma freguesia com o mesmo nome. O decreto da ereção canónica tem a data de 26 de novembro de 1954, tendo a igreja sido construída paulatinamente, consoante as ofertas dos fiéis. D. António Manuel Pereira Ribeiro afirma nesse decreto que “de há muito alimentamos o desejo de fazer erguer, nesta cidade, um templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria”, acrescentando que “como preito de filial gratidão da Nossa querida Diocese para com a sua Celestial Padroeira, para maior glória de Deus e bem das Almas que nos estão confiadas […] havemos por bem criar a nova paróquia do Imaculado Coração de Maria” (GAMA, 2014, 158). Imagem da Imaculada Conceição de Maria, Igreja da Fajã do Penedo. Arqui. Rui Carita. A primeira pedra do templo fora já benzida e lançada no dia 21 de julho de 1948, com a presença da imagem peregrina de N. S.ª de Fátima que, a bordo do navio Império, na sua viagem inaugural, se dirigia para Luanda. Benze a primeira pedra o bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro, acolitado por vários cónegos, com a presença das autoridades civis e militares e milhares de devotos, vindos de todas as paróquias da diocese. A construção da igreja demora mais alguns anos; visto ser oneroso o projeto, opta-se por construir primeiro uma pequena capela, que é benzida a 4 de dezembro de 1954 pelo núncio apostólico, D. Fernando Cento, de visita à diocese. Feitas as obras principais, o templo é solenemente benzido pelo bispo D. João Saraiva a 13 de outubro de 1967; a igreja será a maior da Diocese, depois da catedral. A devoção ao Imaculado Coração de Maria, concretizada nas devoções dos primeiros sábados de cada mês, é celebrada com muito fervor pelas comunidades madeirenses durante quase todo o séc. XX, tendo esmorecido no último quartel. A festa popular, com características de arraial madeirense, acontece no último sábado de agosto. Também é celebrada em muitas outras paróquias, nomeadamente a Camacha e o Caniço. Outra paróquia dedicada ao Imaculado Coração de Maria é a da Fajã do Penedo, criada por decreto de D. David de Sousa de 24 de novembro de 1960, com sede na capela existente no local, dedicada ao Imaculado Coração de Maria e centro de uma devoção ancestral. Na origem da construção desta capela está Maria dos Anjos Ribeiro, nascida no sítio da Fajã do Penedo a 13 de abril de 1885, que conheceu a madre Virgínia da Paixão. Tendo herdado dos pais o Solar dos Regos e as propriedades circundantes, empenhou-se em erguer um pequenino templo ao Imaculado Coração de Maria, tendo doado o terreno em que é implantado junto à casa de sua residência. Angariou os fundos necessários a esse efeito e, no ano de 1918, lançou as fundações da capela, que foi benzida por D. António Manuel Pereira Ribeiro a 23 de agosto de 1919. Estes dois padrões, localizados em lugares quase opostos, perfazem um enlace afetivo e eficaz entre as comunidades paroquiais madeirenses disseminadas pela geografia insular.   N. S.ª de Fátima O título de N. S.ª de Fátima não pode constar do registo de títulos que desde o séc. XV integram o culto mariano dos madeirenses, porquanto tem origem no fenómeno das aparições da Mãe de Jesus na Cova da Iria, de 13 de maio a 13 de outubro de 1917. No entanto, há acontecimentos que interligam a Madeira a Fátima e contribuem para o nascimento e crescimento dessa devoção nas comunidades eclesiais da diocese funchalense, nomeadamente as revelações que terão sido feitas à madre Virgínia Brites da Paixão cerca de 4 anos antes de serem apresentadas aos pastorinhos em Fátima. De certa forma, a Madeira antecipa-se a Fátima no que concerne a esta devoção e a este culto. Em 1948, a Madeira volta a receber a visita da imagem peregrina, que é acolhida por algumas comunidades paroquiais com entusiasmo e espírito de fé. Arraiga-se tanto e vive-se tão intensamente o fenómeno de Fátima na Madeira, que em 1960, aquando da criação de várias novas paróquias, três delas a adotam como padroeira: a Paróquia de Fátima no Funchal, a do Carvalhal nos Canhas e a da Lombada em Santa Cruz. Como resultado deste processo, ainda é construído o Santuário de N. S.ª de Fátima no Cabo Girão, que funciona como centro de peregrinações. Antes fora uma capela dedicada a N. S.ª de Fátima, mandada erguer pelo P.e António de Abreu Vieira com donativos aportados pelos paroquianos, a qual foi benzida a 11 de outubro de 1931.   Imagem Peregrina, Lar da Bela Vista. Arqui. Rui Carita.   A imagem peregrina visita novamente a Madeira em 2010, circulando por várias comunidades e sendo objeto do culto dos fiéis. Como se referiu, N. S.ª de Fátima foi dada como orago à nova paróquia do Carvalhal, na freguesia dos Canhas, criada por decreto de D. David de Sousa, a 26 de novembro de 1960. A sede provisória é constituída na Capela de S.to André Avelino, para onde já fora levada a eucaristia em procissão solene, no dia 19 de março de 1960, celebrando-se aí o culto a partir dessa data. O acontecimento fica assinalado numa inscrição gravada no cálice então oferecido pelo povo para a celebração dessa primeira eucaristia: “lembrança dos futuros paroquianos, 19 de março de 1960”. A 6 de fevereiro de 1962, iniciam-se as obras de desaterro e construção dos alicerces da nova igreja no terreno que fora adquirido a expensas dos paroquianos, contiguo à Capela de S.to André Avelino. A igreja é implantada à direita da Capela, tendo esta sido destruída para dar lugar à sacristia, ao salão e à torre sineira. A nova igreja será, na prática, custeada pelos paroquianos dos Canhas e do Carvalhal, cujos donativos permitirão sufragar os gastos da construção da igreja e o respetivo recheio. O templo tem um só corpo, para a assembleia, encimado pelo presbitério. Aqui assinala-se a padroeira, N. S.ª de Fátima, com as habituais celebrações dos dias 12 e 13 de maio. Outro edifício confiado à proteção de N. S.ª de Fátima é o Seminário Maior do Funchal, instalado em 1958 no antigo Hotel Bela Vista, adquirido pela diocese para esse fim. Para comemorar o jubileu das suas bodas de ouro, o mesmo Seminário colocou nos seus jardins, em frente à porta da entrada do edifício, uma imagem de N. S.ª de Fátima, corroborando desta forma o seu padroado. Santuário de Nossa Senhora de Fátima, Cabo Girão, Câmara de Lobos. BF. A Capela de N. S.ª de Fátima situada nas imediações do Cabo Girão, no Pico do Galo, freguesia de Câmara de Lobos, tornou-se conhecida, em primeira mão, por Cruz de Fátima. A capela primitiva foi mandada construir em 1931 pelo P.e Agostinho Abreu Vieira, natural de Câmara de Lobos, que era na altura missionário em Cabo Verde. Em abril de 1931, este sacerdote visita a Cova da Iria e, perante a imagem da Virgem de Fátima, promete erigir uma ermida da sua invocação no Cabo Girão caso a revolta que então estala na Madeira termine sem grandes estragos materiais ou morticínios. Alcançada a graça, inicia a sua construção, sendo lançados os alicerces a 5 de agosto do mesmo ano e ficando a obra concluída a 5 de outubro. É benzida no dia 11 seguinte por D. António Manuel Pereira Ribeiro, com a presença de cerca de quatro mil pessoas, número que é superado nos dois dias seguintes, 12 e 13 de outubro. Santuário do Cabo Girão, Câmara de Lobos. BF. A capela passa a constituir um centro de importantes peregrinações não só por parte das populações limítrofes, mas também de outros pontos da ilha da Madeira. Nos dias 12 e 13 de cada mês, passam a realizar-se diversos atos de culto que mobilizam sempre milhares de peregrinos, chegando a ser publicado, em 1933, um folheto denominado Fátima Madeirense, que reflete o desejo do seu promotor de fazer daquele local um centro de culto similar ao da Cova da Iria. Infelizmente, em março de 1934 a ermida foi encerrada ao culto pela autoridade diocesana. Depois de cerca de 20 anos sem culto, em finais dos anos 50 do séc. XX, a Capela de N. S.ª de Fátima voltou a abrir as suas portas, desta vez sob a jurisdição da paróquia de S. Sebastião de Câmara de Lobos, situação que terá permanecido até 31 de dezembro de 1960. Depois desta data, devido à criação de novas paróquias em Câmara de Lobos, passa a ficar dependente da Quinta Grande. Todavia continua sem condições para albergar os inúmeros devotos e a necessidade de ampliação volta a impor-se. A 1 de agosto de 1964, o P.e Manuel de Nóbrega é nomeado pároco da Quinta Grande, múnus que exerce até 25 de setembro de 1992; a sua obra principal será a reconstrução da Capela ou Santuário de N. S.ª de Fátima, que voltou a receber devotos de todas as comunidades paroquiais no dia 13 de cada mês, sobretudo em maio e outubro, bem como peregrinações de caráter diocesano e promovidas por diversos agrupamentos.   Igreja da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, Funchal. Arqui. Rui Carita. A paróquia de N. S.ª de Fátima no Funchal foi criada por decreto de D. David de Sousa, de 24 de novembro de 1960, com entrada em vigor a 1 de janeiro de 1961, em terrenos pertencentes a Santa Maria Maior. A sua sede provisória seria na igreja paroquial da paróquia mãe e o seu primeiro pároco foi também o pároco daquela, o P.e Alfredo Ponte Lira. A 16 de julho de 1962, é nomeado pároco o P.e Manuel Marques Luís, que passou a usar como capela um edifício privado. Em 1975, a paróquia é entregue aos cuidados pastorais dos Salesianos, que adquirem um terreno para construção da igreja, que será edificada pelo Governo Regional. A cerimónia da bênção e inauguração realiza-se a 23 de dezembro de 1989; é presidida pelo bispo D. Teodoro de Faria e conta com a presença das entidades regionais e locais, muitos sacerdotes, seminaristas e paroquianos. Também no sítio da Maiata, no Porto da Cruz, existe um centro dedicado a N. S.ª de Fátima, destinado fundamentalmente à implementação da catequese, à recitação do terço nos meses de maio e outubro e à celebração periódica da eucaristia. Foi construído em 1993, pelos alunos do curso de alvenarias e concluído em 1994 a expensas da fábrica da igreja, a um custo de 1500 contos. A 12 de junho de 1994, por ocasião da visita pascal, o Centro é benzido e é celebrada pela primeira vez a eucaristia, com a presença de muitos habitantes da zona. A paróquia da Lombada, outra das 52 paróquias criadas pelo decreto de D. David de Sousa de 26 de novembro de 1960, também tem como padroeira N. S.ª de Fátima.    Manuel Gama (atualizado a  02.09.2016)

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