Mais Recentes

atlântico, revista

Revista Atlântico O primeiro número da Atlântico. Revista de Temas Culturais, publicação periódica de cariz cultural e científico, veio a lume na primavera de 1985. A revista, de assinatura anual, teve uma vigência temporal de cinco anos e uma periodicidade trimestral – deste modo, cada edição, com cerca de 80 páginas, correspondia a uma estação do ano. Saíram do prelo 20 números, à razão de quatro por ano, sendo o último o do inverno de 1989. As suas dimensões eram de 24 x 17 cm e a paginação iniciava-se a cada novo ano. A redação e administração da publicação estavam sediadas no Funchal e a fotocomposição, o fotolito, a montagem, a impressão e o acabamento processavam-se em Lisboa. O editor e diretor foi António E. F. Loja, que assinou os editoriais de todas as edições (e, inclusive, diversos artigos). As fichas técnicas apresentam um elenco de colaboradores cujos nomes e número (37 na 1.ª edição, 41 na 20.ª) não variaram substancialmente ao longo do tempo. Alguns destes colaboradores elaboraram artigos e providenciaram ilustrações. Na contracapa e no interior – mormente no início, no fim e na separação dos artigos – de todas as revistas podem ser encontradas páginas com anúncios publicitários a produtos e serviços do arquipélago da Madeira. O número inaugural, publicado em 1985, nascia, segundo o editorial do mesmo, “como tentativa sincera de criar na Madeira um local de encontro de ideias, um ponto de confluência de opiniões”. Através de uma análise breve, não exaustiva, dos editoriais, no sentido de apreender os propósitos e a filosofia da revista Atlântico, percebe-se que por meio dela se propunha instaurar um espaço de comunicação aberto e livre, informado pela relevância do conhecimento do passado e do presente, com vista a edificar o futuro. Era veiculada a esperança de que esta publicação fosse considerada útil e, assim, usada amiúde. Desde cedo, foram acolhidos colaboradores de outras geografias, de modo a estreitar as relações com o exterior. Usavam-se igualmente estas páginas para denunciar o clima de mediocridade e para defender maior fulgor e riqueza culturais, afirmando a ligação recíproca e necessária entre cultura e liberdade. A necessidade do conhecimento do passado passava por respeitar e preservar o património – cultural e natural; nesse sentido, foi denunciada e criticada a indiferença, a falta de proteção, o desaparecimento e a intervenção desadequada no mesmo por parte de entidades públicas. A este respeito, afirmava-se a premência da recuperação dos centros históricos e a relevância da inventariação do património natural e construído (criticou-se, e.g., a ação de instituições governamentais no que tocava ao lobo-marinho). A revista era composta de artigos – estudos e ensaios – sobre múltiplas temáticas atinentes, principalmente, ao arquipélago da Madeira; repertórios de literatura (poesia, crónicas, etc.) e de fotografia; e antologias de fontes históricas de diversa índole, reproduzidas no final de cada número (em certos casos, anotadas, traduzidas e com considerações introdutórias e críticas). Contribuíram para a revista os seguintes autores (com estudos e ensaios sobretudo relativos à Madeira): Manuel José Biscoito (mares); Maria dos Remédios Castelo Branco (viajantes estrangeiros – Jean Mocquet); Teresa Brazão Câmara (empedrados, bonecas de “maçapão”, mobiliário); Celso Caires (fotografia); Zita Cardoso (expostos); Rui Carita (litografia – Andrew Picken, defesas de Santa Cruz, embutidos, remates de teto, arquitetura religiosa); Fátima Maria Fernandes Machado de Castro (literatura – Raul Brandão); Jorge de Castro (natureza); Luísa Clode (pintura flamenga, bordado); Marcelo Costa (habitação, arquitetura ); João Couto (escultura – Francisco Franco); Sérgio António Correia (literatura – Bernardo Soares); Silvano Porto da Cruz (museologia e património); Fátima Pitta Dionísio (literatura – Camões e análise de soneto, Revolta da Madeira); João Ferreira Duarte (filosofia); Pedro M. P. Ferreira (eleições no século XIX); António Luís Alves Ferronha (Revolta da Madeira, republicanismo); Paulo Fragoso Freitas (cultura, fontes históricas, azulejos); Maurício Fernandes (escultura – Francisco Franco, fotografia, vídeo); José Luís de Brito Gomes (a Madeira e a Rússia); Fátima Freitas Gomes (comércio interno no Funchal, hotéis e hospedarias); Maria de Fátima Gomes (festas – romarias); José Laurindo de Góis (Ateneu Comercial do Funchal, indumentária e indústria, imprensa); David Ferreira de Gouveia (madeirenses no Brasil, história do açúcar); Emanuel Janes (implantação da Primeira República); Luís Sena Lino (função social do corpo); João Lizardo (arte do renascimento, arte mudéjar); António Loja (história social, económica e política, arquitetura); Castro Lourdes (pintura); Armando de Lucena (escultura – Francisco Franco); Irene Lucília (poesia, ruas); Diogo de Macedo (Francisco Franco); Maria Elisa Basto Machado (filatelia e maximafilia); João Medina (história cultural – Zé Povinho, arte – I República); Luís Francisco de Sousa Melo (teatro, o texto “Alcoforado”), com a colaboração de Maurício Fernandes num dos seus artigos; Anabela Mendes (cultura e museologia); Mary Noel Menezes (madeirenses na Guiana britânica); António Montês (escultura – Francisco Franco); Teresa Pais (Visconde da Ribeira Brava); Jaime Azevedo Pereira (vimes, o Jardim Botânico da Ajuda e a Madeira, Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, João Fernandes Vieira); António Jorge Pestana (história militar); Fernando Pessoa (serras); Gabriel de Jesus Pita (decadência e queda da I República); Raimundo Quintal (turismo, paisagem, ambiente, jardins, quintas, património natural, geografia); Adriano Ribeiro (tratado de Utrecht); Miguel Rodrigues (Madeira nos finais do século XV); José de Sainz-Trueva (heráldica, ex-librística, quintas, arte, arquitetura civil e religiosa); Joel Serrão (cultura e filosofia – Antero de Quental); António Ribeiro Marques da Silva (viajantes estrangeiros, imprensa, quotidiano das freiras de Santa Clara, arquitetura doméstica, ecologia, política e literatura – o Conde de Abranhos e o desembargador José Caetano); Jorge Marques da Silva (arqueologia industrial, computador e arte, arte naïve); Amândio de Sousa (museologia, ourivesaria); João José Abreu de Sousa (povoamento, emigração, história político-institucional, social e económica, rural e urbana, capitania de Machico, rua da Carreira, convento de Santa Clara, escravos, corsários, levadas); Maria José Soares (madeirenses no Curaçau); Francisco Clode de Sousa (Francisco Franco); Luís de Sousa (Quirino de Jesus); Manuel Rufino Teixeira (numismática); Ana Paula Marques Trindade e Teresa Maria Florença Martins (administração nos séculos XV e XVI); Nelson Veríssimo (história da autonomia, festa do Espírito Santo, o Funchal e a aluvião de 1803, presépios e Meninos Jesus, literatura – Bulhão Pato e a Madeira); Maria Francisca Favila Vieira (mito no discurso platónico sobre a alma, ética em Verney); Rui Vieira (Jardim Botânico da Madeira, Carlos Azevedo de Menezes); Eberhard Axel Wilhelm (alemães na Madeira, Max Römer); Manuel Zimbro (cultura). No que concerne a repertórios literários, encontram-se: crónicas (algumas de pendor evocativo e memorialístico) de Amaro Amarante, António Ribeiro Marques da Silva, Jorge Sumares e José Pereira da Costa; poemas de Edmundo Bettencourt, Manuel Vilhena de Carvalho, Fátima Pitta Dionísio, Carlos Alberto Fernandes, Carlos Fino, São Moniz Gouveia, Irene Lucília, João Cabral do Nascimento, António Manuel Neves, Gualdino Avelino Rodrigues e José de Sainz-Trueva; prosa poética de Ângela Varela. Vários artigos e repertórios beneficiaram de ilustrações (fotografias e desenhos) dos próprios autores. Outros foram acompanhados de fotografias de Rui Camacho, Mota Pimenta, Photographia – Museu Vicentes, Maurício Barros, Carmo Marques, Perestrellos, João Pestana, Sanches Almendra, Gilberta Caires, José Ivo Correia, João Vasconcelos, Teresa Brazão, Celso Caires, Manuel Valle e Vicentes e José de Sainz-Trueva. Outros, ainda, apresentaram desenhos de Maurício Fernandes, Sá Braz e Vieira da Silva. O início da publicação de Atlântico inaugurou, em meados da década de 80 do século XX, tempos de mudança e de renovação no panorama cultural, científico e historiográfico da Madeira. Esta transformação foi também corporizada pela criação, em 1985, do Centro de Estudos de História do Atlântico, pela realização, em 1986, do I Colóquio Internacional de História do Atlântico, e pelo aparecimento, em 1987, da revista Islenha.   Filipe dos Santos   artigos relacionados revistas sobre arte revistas de tradições populares periódicos literários poetas  

Cultura e Tradições Populares História Económica e Social

re-nhau-nhau - trimensário humorístico

O Re-nhau-nhau foi um trimensário humorístico madeirense, centrado na caracterização do Zé Povinho da Madeira, estereótipo que teve grande importância e um papel relevante no sucesso deste periódico. O jornal saiu pela primeira vez com um número especial no dia 16 de dezembro de 1929, sendo o primeiro número datado de 20 de dezembro desse mesmo ano. O último número, por sua vez, tem a data de 20 de dezembro de 1977. O Re-nhau-nhau surge numa época de “apagada e vil tristeza”. A imprensa existente nesta época estava na dependência dos poderes económico, político e religioso. Os jornais de maior projeção no arquipélago pertenciam aos grandes senhores da terra ou à instituição religiosa. O Re-nhau-nhau surge num contexto histórico difícil, devido à implantação no país de uma férrea ditadura que iria condicionar decisivamente a livre expressão e cercear a liberdade de imprensa, criando a censura prévia e uma polícia política que coartava a liberdade de pensamento, assim como todas as iniciativas jornalísticas que surgiriam. O Re-nhau-nhau surge com esta significativa e corajosa justificação: “Os nossos irrequietos e verdes anos, o nosso inconformismo, não se compadeciam com o estagnamento jornalistico da nossa terra com a brandura das suas críticas” (“Editorial”, Re-nhau-nhau, 29 dez. 1929, 1). Enquanto jornal satírico, iria colocar em evidência esta situação de dependência em que vivia a imprensa regional, sendo portador duma mensagem nova, imbuído de ideais e valores desconhecidos na sociedade madeirense. Era um jornal que pretendia viver exclusivamente das receitas provenientes da sua venda ao público e do recurso a alguma publicidade. A caricatura era então uma arte pouco conhecida na Madeira e o Re-nhau-nhau, revelando-a na Ilha, alforriou-a, emparelhando, assim, por mérito próprio, ao lado das Belas Artes. Das suas oficinas saíram as primeiras gravuras que ilustraram todos os jornais diários madeirenses. Foi aqui que se desenvolveu e aperfeiçoou o sistema da gravura em linolito, que mais tarde todos os jornais madeirenses utilizaram. A ideia surgiu numa noite, junto a uma esquina da R. da Ribeira de S. João, que dá para a Trav. das Violetas, quando Gonçalves Preto, João Miguel e Eduardo Nunes discutiram “a possibilidade de fazerem um semanário humurístico, mas feito com um humurismo (sic) tal que fosse capaz de fazer o indígena morrer de riso, desopilhando o figado e regiões adjacentes” (“Editorial”, Re-nhau-nhau, 21 dez. 1936, 1). Começaram logo a fazer contas, fantasiando os fabulosos lucros que lhes traria um jornal de quatro páginas, idealizando-o recheado de anúncios pagos a peso de ouro. Mas, infelizmente, apenas oito anos passados desde o dia que deu à luz este jornal, estes mesmos homens constatavam que “Proventos deixa-nos Re-nhau-nhau o suficiente para contrairmos as nossas dívidas...” (Ibid.), pois tudo o que recebiam se destinava à tipografia. Arrumadas as ideias e resolvidos os problemas que dificultavam a saída do jornal, o primeiro número surge a 16 de dezembro de 1929, um número especial, onde estes jovens apresentam as ideias mestras do seu projeto: publicar um trimensário humorístico, ilustrado com caricaturas, que sairia aos dias 10, 20 e 30 de cada mês. Este número especial caricatura alguns jovens da “Briosa” – os académicos do Liceu Nacional do Funchal – e também os colaboradores iniciais do Re-nhau-nhau. No desenho de capa do número assinalado como especial, e sob o título “Dedicado Aos Briosos da Briosa Academia”, são apresentados dois estudantes de capa e batina estudantil, naquele tempo um hábito muito em voga mesmo para estudantes liceais, que fora introduzido nos liceus nos finais do séc. XIX e vigoraria até 1939; são eles Teixeira Jardim, presidente da Academia, e Liberato Ribeiro, presidente da Executiva. A seguir surge o subtítulo: “Re-nhau-nhau ao dar os primeiros ares da sua graça, dedica este número especial de miaus a todos os futuros Pais da Pátria em geral, e às suas noivas em particular...” (Re-nhau-nhau, 16 dez. 1929, 1). Mas o seu programa só nos é apresentado no n.º 1, com a justificação de que: “Re-nhau-nhau, ao miar pela primeira vez, neste número dedicado à Briosa, deveria como é costume, fazer a sua apresentação oficial. Como agora porém, se não pode brincar com a tropa e muito menos com os oficiais, vai esta apresentação particular, ficando reservada a apresentação solene para o nosso segundo numero” (Re-nhau-nhau, 16 dez. 1929), que saíria dali a quatro dias, exactamente, no dia 20 de dezembro. Logo na segunda página, num artigo assinado por “Gonçalves de côr ausente”, com o título “In principio erat verbum”, Gonçalves Preto explica a configuração do jornal: “No principio era o verbo! E o verbo se fez carne, e a carne se fez homem, e o homem se fez jornalista. E no principio o jornalista contentava-se apenas com o verbo de encher... colunas. Mas hoje tudo mudou e só o verbo não basta; são precisas as gravuras. Daí a razão do nosso jornal aparecer ilustrado por ilustres ilustradores, que nos honram com as suas ilustrações” . Advertia, ainda, que não aceitariam a colaboração de jornalistas consagrados, “porque estamos na verdura da mocidade e não admitimos os maduros” (GONÇALVES DE CÔR AUSENTE, Re-nhau-nhau, 20 dez. 1929, 2). O cabeçalho do periódico é da autoria de Roberto Cunha, também conhecido pela alcunha de “Terrique”: compõe-se de um gato, de rabo hirto, acossado por uma mão coberta de luva, que o incita a rugir, significando, talvez, o ferir ou arranhar, mas com... luva. O rugido que sai da sua boca é o título do trimensário Re-nhau-nhau. O felino, apoiado nas duas patas traseiras e com as duas da frente levantadas, prepara-se para atacar a sua presa, assumindo a sua posição característica de ataque, encolhendo-se e preparando-se para saltar. Este cabeçalho que se mantém sem alteração até ao último dia da existência do jornal foi o seu ex-libris. De acordo com um dos colaboradores, Manuel Peres (Pinto da Silva), este cabeçalho foi gravado pela primeira vez no Porto, num famoso gravador dessa cidade. As dificuldades em colocar nos escaparates um jornal desta dimensão eram enormes. Estes jovens, entre os 17 e os 24 anos – Gonçalves Preto, João Miguel, Roberto Cunha, Manuel Peres, Gualberto Malho Rodrigues e José Cardoso –, meteram mãos à obra e levantaram um jornal que duraria 48 anos, tantos quantos o regime durante o qual nasceu e cresceu: “sem nunca se ter afastado da sua orientação inicial, tem vindo pela vida fora, com um sorriso ou com uma ironia, sacudir a monotonia sórdida do nosso burgo, como unica nota de vida numa cidade morta” (Re-nhau-nhau, 21 dez. 1935). O Re-nhau-nhau veio assim a constituir um ponto de encontro e de confluência de ideias, um espaço de diálogo e de debate onde outros jovens talentosos se juntaram àqueles, como os redatores Noé Pestana e João França, os caricaturistas Ivo Ferreira, Teixeira Cabral, Alírio Sequeira, Ramon Fernandes, João Rosa, Júlio e Paulo Sá Brás, os gravadores Mendonça, Agostinho, Semeão Gomes (Lico) e Bernardo, e ainda os ilustradores continentais Natalino, Quim e Abel Aragão Teixeira. Estes serão presenças assíduas até um determinado momento, mas a partir de certa altura cada um segue o rumo da sua vida e muitos abandonam o jornal. Esses são substituídos por outros jovens de grande talento e valor, que darão qualidade e vida ao jornal até 1977. A publicação deste jornal causou algum alvoroço na cidade, pois as pessoas não estavam habituadas às novas metodologias usadas por estes jovens irreverentes, que vinham revolucionar o jornalismo da praça, e teciam considerações pejorativas em torno do jornal e dos seus criadores, destinando-lhe um fim precoce. Enganaram-se estes profetas da desgraça, pois o jornal acabou sendo o mais popular entre o povo madeirense e continuou por muitos e bons anos. Abordando os assuntos de forma caricatural, com a sua pontinha de sátira, conseguiram, com o seu riso, fazer aquilo que competia aos jornais sérios: divulgar os problemas de maior interesse para a Madeira, comentar as coisas que não estavam feitas ou a decorrer como deveriam, sugerindo aquilo que, no seu entender, constituiria melhor solução para os problemas da terra. Em resumo: “Aplaudindo quando nos parece de justiça e ironizando sempre que é necessário, temos vivido durante estes […] anos”. Muitas das sugestões preconizadas por estes jovens foram aceites, o que prova as boas intenções de que estava imbuído o jornal: “Re-nhau-nhau tem sido, desde o seu principio, o único periódico que pugna, sinceramente, pelas causas de interesse retintamente madeirense” (Re-nhau-nhau, 21 dez. 1936). O tamanho do jornal era de 33,5 cm de comprimento por 25 cm de largura. Estas medidas permaneceram sem alteração até 1940, mas iriam alterar-se para outras um pouco maiores na déc. de 60. O preço, no início da sua publicação, era de 1$50, baixando para 1$00 (uma pataca, como apregoavam), a partir do n.º 73 de 4 de fevereiro de 1932, continuando assim durante bastante tempo. Seria um preço razoável para a época e para o tipo de jornal que era o Re-nhau-nhau, pois era o mesmo preço do café no Golden Gate. O periódico compunha-se de uma primeira página, ¾ da qual eram preenchidos com uma moldura ilustrada de algum acontecimento importante na Região, na fórmula já experimentada em outros jornais do género no continente, e uma contracapa caricaturada a toda a página. Como jornal humorístico, não tinha secções regulares, persistindo algumas mais tempo do que outras. Durante algum tempo, foram permanentes as seguintes secções: “Jazz Band”, onde se comentavam os faits divers madeirenses; “Zaz Paz Traz” e “Bchi-Bchi”, espaços de poesia; “Politiquices”, secção onde se analisavam, humoristicamente, os acontecimentos políticos da Região; “Fitas e Teatradas”, espaço dedicado à crítica cinematográfica, teatral e restante atividade artística madeirense. Outros espaços existiram no Re-nhau-nhau, que eram oferecidos a alguns jovens de valor, que aí publicavam os seus textos em prosa ou em verso. Este periódico sofreu ligeiras alterações de direção e administração a partir da morte de João Miguel e de Gonçalves Preto. Em 1959, com a morte de João Miguel, a administração passou para os seus herdeiros, e a partir de 1971, com o falecimento de Gonçalves Preto, a direção passou para Maria Mendonça, que por motivo de grave doença o abandonou, algum tempo depois, em favor de Gil Gomes. Um homem em particular foi responsável pelo êxito do Re-nhau-nhau. Referimo-nos a Pedro Alberto Gonçalves Preto, que nasceu no dia 7 de setembro de 1907, na freguesia da Sé, no Funchal, filho de Francisco M. de Freitas Gonçalves Preto, advogado, homem ligado à República na Madeira, e de Sofia Amélia Figueira Gonçalves Preto. Desempenhou o cargo de diretor até à sua morte, dedicando grande parte da sua vida ao jornal, por vezes mesmo em precárias condições de saúde; ao seu cuidado tinha a grande maioria das secções do trimensário: “Jazz Band”, “Fitas e Teatradas”, “Zaz Paz Traz”, “Politiquices”, etc. Segundo alguns colaboradores do Re-nhau-nhau, houve vezes em que Gonçalves Preto o escreveu sozinho, do princípio ao fim. Usava, nas suas brincadeiras jornalísticas, os pseudónimos Gonçalves de Côr Ausente, Preto e Branco (quando escrevia a meias com João Miguel) ou simplesmente Preto. Faleceu no Hospital dos Marmeleiros, no Funchal, no dia 15 de maio de 1971.   Emanuel Janes (atualizado a 17.12.2017) artigos relacionados: pedro, alberto gonçalves periódicos literários (sécs. XIX e XX) nau sem rumo atlântico, revista

Literatura Sociedade e Comunicação Social

companhia portuguesa rádio marconi

A Companhia Portuguesa Rádio Marconi (CPRM), popularmente conhecida como Marconi, assumiu um papel importante na sociedade madeirense a partir dos finais do primeiro quartel do séc. XX, com realce para o seu protagonismo no campo das telecomunicações. De facto, a intervenção da Marconi veio transformar os hábitos quotidianos dos madeirenses. Além disso, os meios que a empresa colocou ao dispor vieram banir as barreiras que definiam o casulo do isolamento do arquipélago. Os anos 20 foram de autêntica euforia em relação às ondas elétricas. O período de 1920 a 1926 foi de perfeita loucura nos Estados Unidos, o que levou o Governo a estabelecer, em 1926, uma legislação especial para disciplinar o espetro radioelétrico. Esta vaga chegou à Madeira no verão de 1927, altura em que surgiram os primeiros anúncios para a venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. As primeiras receções de rádio tiveram lugar no ano seguinte e, em 1929, davam-se os primeiros passos de uma emissão, com a onda de 47 m. Para isso, deverá ter contribuído a presença de Alberto Carlos de Oliveira, funcionário da empresa do cabo submarino. Ele havia iniciado, em 1914, em Cabo Verde, as primeiras comunicações com os navios do alto mar. Em 1920, foi transferido para a delegação da empresa no Funchal e aqui manteve as experiências, tendo ensaiado, em 1925, a transmissão com um emissor de lâmpadas em ondas curtas. Foi assim que se gerou na Madeira uma verdadeira e duradoura afición pelo “senfilismo”. Uma das fases mais decisivas da história da Marconi na Madeira aconteceu em 1986, com a elevação da delegação local ao estatuto de direção regional. Até 1982, a empresa era representada por um gerente de estação, passando, desde então, a existir o cargo de delegado regional, para o qual foi empossado Graciano Góis, a 15 de maio. A partir de 15 de março de 1991, a Marconi passou a dispor de novas instalações para a sede da sua delegação regional na Madeira. Um espaço amplo, até então abandonado, foi transformado e adaptado para a prestação de um novo serviço, que a imortalizará nos anais da história da Ilha. No ano de 1995, a Portugal Telecom adquiriu o capital da CPRM na íntegra, concluindo, em 2002, o processo de fusão. A Companhia Rádio Marconi foi constituída em 20 de junho de 1897, mas só em 1922 a empresa chegou a Portugal, onde se tornou pioneira na prestação do serviço de telecomunicações: pela lei n.º 1353, de 22 de agosto de 1922, o Governo foi autorizado a contratar com a Marconi Wireless Telegraph Company Ltd. o estabelecimento de uma rede radiotelegráfica. Todavia, nesta lei estabelecia-se como cláusula contratual a obrigatoriedade de a empresa constituir uma congénere nacional até ao fim do ano. A constituição teve lugar a 14 de setembro e, a 8 de novembro, foi assinado o acordo de concessão do serviço público de radiocomunicações da CPRM, ficando ela com o direito de exploração dos serviços entre o continente, a Madeira, os Açores, as províncias ultramarinas e o estrangeiro, por um período de 40 anos. Novos contratos foram assinados a 23 de abril de 1930, 20 de novembro de 1956 e 23 de abril de 1966. No último, foi ampliada a concessão ao serviço de cabo submarino e o prazo foi prorrogado por mais 25 anos. Durante o período da primeira concessão, a CPRM empenhou-se no estabelecimento de um serviço nacional e ultramarino: a 15 de dezembro de 1926, a inauguração das instalações em Lisboa coincidiu com a abertura dos circuitos radiotelegráficos entre o continente e as novas estações telegráficas do Funchal e de Ponta Delgada. Nos anos imediatos, para além da prestação de novo serviço (o radiotelefone), abriram-se novos circuitos nas possessões ultramarinas: em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique (1927), e, depois, em Macau (1939), em Goa (1938), em São Tomé (1949), em Timor (1950) e na Guiné-Bissau (1959). Com estas iniciativas, a Marconi dava corpo à unidade do espaço metropolitano e colonial. A concretização, em 1926, de uma estação de telefonia sem fios (TSF) no Caniçal, trouxe a este rincão o nome de Marconi, através dos inventos e de uma delegação da empresa, criada em setembro de 1922 para prover o território nacional de uma rede de TSF. Esta presença foi evidente a partir de 15 de dezembro de 1926, data memorável para os anais da firma, e que marca o início de atividade em Portugal e também a afirmação da TSF em detrimento do cabo submarino, que entra na curva descendente. Desde então, a concorrência entre os dois meios de comunicação dominará o panorama regional, até que a companhia do cabo submarino encerre, em 1970, os seus serviços na Ilha, ficando a CPRM com o exclusivo das comunicações por TSF e por cabo submarino. A viragem não foi pacífica, manifestando-se através de uma concorrência entre os meios de transmissão de telegramas por TSF e por cabo submarino. Uma das primeiras consequências foi a redução das taxas cobradas por palavra na emissão de telegramas. Em 1942, a Via Portucale confirma a supremacia da TSF. A derrota do cabo submarino na guerra de comunicação era evidente: o cabo estava velho e sujeito a constantes e custosas reparações e as despesas de manutenção eram elevadas, não podendo o cabo, deste modo, competir com o seu concorrente, a TSF. Os reflexos das descobertas de Marconi chegaram a Portugal por intermédio da companhia Marconi Wireless Telegraph Co. Ldt., a quem o Governo português concedeu, a 22 de agosto de 1922, a exploração, por um período de 40 anos, da rede de radiotelegrafia nacional. A 14 de setembro do mesmo ano, foi constituída a empresa em Portugal e, a 15 de dezembro de 1926, data já mencionada, eram inaugurados os primeiros serviços de TSF de ligação do continente com a Madeira, os Açores e a Inglaterra. Entretanto, em 1966, foi feita nova concessão por 25 anos, sendo a prestação de serviços alargada ao cabo submarino, de que resultou o aparecimento de novo cabo, no Funchal, em 1970. No entanto, as transmissões da telegrafia sem fios na Madeira não se iniciaram só em 1926 com a estação da Marconi do Caniçal, pois no período da Primeira Guerra Mundial os Ingleses haviam já criado um serviço na Quinta Santana (espaço do Hospital Dr. João Almada), que encerrou as suas atividades a 2 de abril de 1919. O material ficou na Ilha, sendo usado na montagem de uma nova estação no 1.º andar de um edifício da R. de João Gago, onde estava instalada a Estação Telegráfico-Postal do Funchal. As obras da primeira estação ficaram concluídas a 31 de maio de 1922, iniciando-se as emissões no dia seguinte. As primeiras comunicações foram com Las Palmas e, depois, com o vapor inglês Kenil Worth Castle. Esta estação fora criada por despacho publicado no Diário do Governo, a 26 de julho. Todavia, a pretensão dos madeirenses era a de uma estação telegráfica mais adequada, integrada na rede estabelecida para todo o país, aprovada na Câmara dos Deputados a 21 de agosto de 1922. A 20 de agosto, o Diário de Notícias reclamava a montagem de uma estação telegráfica no Funchal, para o necessário apoio à navegação, uma vez que a existente cobria um raio de ação de apenas 400 milhas. Em 1926, a estação do Funchal estava situada no Pico Rádio, mas, com a entrada em funcionamento, a 4 de novembro, da estação do Caniçal, o serviço marítimo passou a ser assegurado por esta. O desenvolvimento dos meios de comunicação por meio de ondas eletromagnéticas iniciara-se em 1924, tendo-se alcançado alguns progressos nos anos de 1935-1938, que levaram ao início das emissões regulares de televisão em Londres, a partir de 25 de agosto de 1938. Note-se que algumas das experiências que conduziram à afirmação da televisão tiveram lugar na Madeira em 1936, por iniciativa de W. L. Wrigth. Todavia, a televisão só chegou aos lares madeirenses bastante mais tarde, se excetuarmos a receção da das Canárias. O historial da CPRM em Portugal estende-se por mais de meio século, sendo rico em realizações que fizeram deste rincão ocidental um espaço aberto e em contacto permanente com o mundo. A posição charneira de Portugal continental e das ilhas do arquipélago da Madeira e dos Açores fez com que este eixo se afirmasse como importante no domínio das telecomunicações. A segunda fase de concessão, que se iniciou em 1956, distingue-se pelo recurso a novos e mais adequados meios de comunicação. Na déc. de 60, deu-se a reafirmação do cabo submarino, com a inauguração da estação de Sesimbra, a 11 de agosto de 1969. Este serviço (Sat-1) divergia para uma ligação de Londres a Portugal e à África do Sul, num comprimento total de 10.787 km, com capacidade para 360 circuitos. Estabeleceram-se três amarrações ao longo do percurso (Tenerife, Sal e Ascensão). Seguiram-se outros, que estabeleceram a ligação com a Madeira (1971), a França (1979), Portugal/Senegal/Brasil (1982), Marro­cos (1982) e a África do Sul (1992). Em 1964, foi criada, nos Estados Unidos, a Intelsat (Organização Internacional para a Exploração de Telecomunicações por Satélite), mas Portugal só aderiu à organização em 1971, de modo que o primeiro serviço só foi instalado em 1974. Na estação terrena instalada em Sintra, estabeleceram-se os primeiros contactos, com Angola e Moçambique, e só depois com os Açores (1917) e a Madeira (1982). Em Sintra, foram instaladas estações para o serviço de satélites disponíveis: Intelsat, Eutelsat, Inmarsat. Na Madeira, até à inauguração do serviço radiotelegráfico da Marconi, a 15 de dezembro de 1926, como anteriormente referido, o serviço de comunicação entre a Ilha e o exterior fazia-se por cabo submarino ou por uma incipiente estação de TSF, montada em junho de 1922 na Estação Rádio Telegráfica do Funchal, situada na R. de João Gago. Todavia, um mês depois, chegava ao Funchal o equipamento necessário para a montagem da nova estação radiotelegráfica da Madeira, que ficou instalada no Caniçal. Os trabalhos continuaram em ritmo acelerado e, a 10 de julho de 1926, o superintendente da estação de Lisboa, João Maria Carneiro, fez a primeira inspeção ao posto do Caniçal, onde se davam os últimos retoques na instalação das antenas e dos equipamentos. Finalmente, a 4 de novembro, os trabalhos estavam concluídos, podendo a estação receber as primeiras mensagens e estabelecer contactos com o exterior. Durante o dia, 10 telegrafistas mantiveram contactos com os inúmeros vapores que circulavam nas águas do oceano, próximas da Madeira. A abertura do serviço da Marconi na Madeira surgiu num momento de grandes dificuldades económicas, agravadas com a crise do comércio do bordado e do encerramento de algumas casas bancárias. Os prenúncios da crise que assolou o Estado americano em 1929 eram já evidentes neste ano, e conduziram ao processo conhecido como Revolta da Madeira. O serviço da estação de TSF da Marconi era feito com extrema dificuldade, devido às difíceis condições de acesso ao local onde estavam instaladas as antenas e à inexistência de pessoal habilitado. O acesso às referidas instalações era muito mais fácil por via marítima do que pelos caminhos íngremes que circundavam as serras entre Machico e o Caniçal. Deste modo, a empresa tinha ao seu dispor, na vila de Machico, uma embarcação a remos que transportava os técnicos e os operadores. Eles, de um modo geral, viviam no Funchal e deslocavam-se para aí, no início, de barco e, depois, nos transportes públicos disponíveis. A estação encontrava-se isolada e, por isso mesmo, haviam-se instalado aí os meios para que os funcionários da empresa se pudessem manter entre uma semana a 15 dias. Para além das instalações de radiotelegrafia, existiam quartos de dormir, cozinha e refeitório. A alimentação dos funcionários baseava-se em peixe seco e carne salgada, que adquiriam na vila vizinha do Caniçal, e em produtos de produção própria no local: aí plantavam leguminosas e tratavam de coelhos e de galináceos. O testemunho de alguns funcionários traça de forma emotiva os primeiros anos de vida da Marconi na Madeira. Numa prolongada conversa que tivemos oportunidade de presenciar em Lisboa, ficamos a saber das dificuldades e da monotonia do dia a dia na estação do Caniçal, das dificuldades para aí chegar e da vida boémia dos saraus musicais dos casinos e dos salões madeirenses da época, no período de descanso. Foi com esta verdadeira aventura, que exigiu um redobrado esforço, que a Madeira perdeu o isolamento, através dos serviços de TSF da Marconi. As antenas e a estação estavam colocadas num extremo da Ilha, num local com as melhores condições de receção e emissão para os meios técnicos da época, mas o principal destinatário estava no Funchal. Deste modo, entre as duas localidades, existiam fios telegráficos de comunicação que percorriam mais de 50 km. O centro estava instalado na estação telegráfica postal da Trav. do Cabido. Todavia, a partir de 1927, foi negociado com os CTT a instalação de um posto da Marconi nesta estação. Aí foi instalado, em setembro de 1927, um aparelho de comunicação permanente com o Caniçal. Em face disto, melhoraram os serviços de atendimento ao público, que passaram a ser feitos ininterruptamente, só fechando aos sábados, domingos e feriados, mas, em 4 de fevereiro de 1931, passarão a ficar abertos todos os dias. Durante os 42 anos de existência, este serviço de radiotelegrafia fixa da Marconi foi alvo de múltiplas transformações, sendo as mais significativas operadas em 1947, com a oferta do serviço radiotelefónico, a partir da estação do Garajau. As telecomunicações implantam-se para serviço da sociedade, em que elas são o cordão umbilical que mantém a ancestral ligação ao velho continente e ao espaço envolvente. A TSF, ativa durante as 24 h do dia, é a voz permanente do madeirense anónimo, das autoridades locais, dos veraneantes e dos estrangeiros de passagem, e a única boia de salvação para as embarcações em dificuldades. Pelos transmissores de faísca e depois pelos eletromagnéticos perpassam variados problemas. O operador e o boletineiro são correias de transmissão do circuito e nada mais. Apenas quando a situação atinge os limites e acontece alguma anormalidade, os operadores, até então meros agentes passivos, passam a ser ativos protagonistas. Assim sucedeu em abril de 1931, durante a célebre Revolta da Madeira, em que, pela primeira vez, foi posta à prova a funcionalidade e a importância da Marconi nas transmissões a longa distância, através da estação de TSF do Caniçal. Quando, a 4 de abril, rebentou a Revolta, o cabo que ligava o Funchal a Lisboa emudeceu e, por isso, a única via de contacto com o exterior eram as ondas eletromagnéticas emitidas pela estação de TSF da Marconi, no Caniçal. As comunicações preferenciais da estação eram com Lisboa, que depois fazia a conexão com o mundo. Todavia, a Madeira poderia estabelecer contactos com as estações de Ponta Delgada, de Las Palmas e de Madrid. Quando, em Lisboa, o recetor emudeceu para os sinais da Ilha, o emissor madeirense não deixou de emitir, orientando-se para os Açores, Las Palmas ou Madrid. Todavia, até ao dia 26 de abril, a troca de telegramas com Lisboa foi apenas entre o Governo da Junta Revolucionária e o da ditadura. A 26 de abril, os emissores e recetores da estação de TSF da Marconi foram silenciados. As tropas destacadas para a Ilha, com o objetivo de pôr cobro à rebelião, desembarcaram primeiro no Caniçal, com o intuito de desmantelar a estação telegráfica. A força tomou, sem oposição da guarnição revolucionária, as instalações da estação e desmantelou o emissor e o recetor. Por algum tempo, a Madeira perdeu a ligação com o mundo. Os técnicos telegrafistas da Marconi das estações do Caniçal e do Funchal tiveram alguns dias de férias. Este foi o único período, em 65 anos da empresa na Madeira, em que as instalações foram silenciadas, após terem sido protagonistas ativas de uma conjuntura política peculiar, e um importante instrumento de agitação política por parte dos revolucionários. O desenvolvimento das novas tecnologias conduziu ao paulatino apagamento desta estação, que terminou em 1982, com o aparecimento de uma via alternativa para o cabo submarino, com a inauguração da Estação de Satélites. Desde esta data, com as remodelações posteriormente realizadas, aí passou a funcionar apenas uma estação do serviço móvel marítimo e uma casa de repouso para os funcionários da empresa. O Porto Santo, porém, já então uma importante estância de veraneio, continuava isolado e carente destes meios. Foram incessantes os esforços do Ateneu Comercial do Funchal e de um grupo de madeirenses ilustres para que o Porto Santo ficasse servido de TSF. Em fevereiro de 1927, conjugaram-se os esforços da Marconi com os das autoridades do arquipélago e deu-se início às obras de construção do edifício para instalar a estação de TSF. As habituais dificuldades burocráticas impediram que o material para a montagem da estação chegasse prontamente. Por outro lado, o equipamento era obsoleto e provinha da estação de Sintra. Mesmo assim, conseguiu-se mantê-lo e, em outubro de 1928, faziam-se os primeiros ensaios, estabelecendo-se contactos com a estação do Caniçal e o Funchal. Entretanto, a imprensa anunciava que estava prevista a sua inauguração para 25 de novembro de 1928. Mas só a 16 de março do ano seguinte saiu do Funchal o Gavião, levando a bordo as autoridades que, no dia seguinte, iriam inaugurar a nova estação. O equipamento aí instalado, sendo de segunda mão, não durou muito tempo, e cedo sugiram as dificuldades: a 15 de dezembro de 1932, o transmissor estava mudo, e permaneceu nestas circunstâncias até à chegada de novo aparelho, a 10 de novembro de 1935. Este era um novo equipamento de radiotelegrafia, mas não se adaptou às condições da Ilha, uma vez que, a 15 de janeiro de 1939, perdeu de novo a “voz”, e só em novembro chegou à Ilha novo equipamento. A Marconi, entretanto, mantinha-se atenta aos novos inventos ao nível das telecomunicações, procurando adequar as instalações e os serviços na Madeira a esta realidade. Foi neste sentido que, em janeiro de 1938, iniciou as obras para a construção de um novo posto no Garajau (Caniço), capaz de prestar o serviço de radiotelefonia. A 10 de dezembro, todos os serviços foram transferidos para a nova estação, que começou os contactos com o continente e os Açores. As instalações do Caniçal (1 de janeiro de 1939) foram desmanteladas e postas à venda a 9 de julho de 1939, sem haver comprador. No decurso da Segunda Guerra Mundial, esta estação exerceu uma função primordial nas ligações da Madeira com exterior, mercê do bloqueio marítimo a que a Ilha esteve sujeita. Entretanto, as instalações da empresa no Funchal ganharam uma nova dinâmica com a abertura ao público de um serviço de aceitação e distribuição de telegramas. A nova realidade surge a partir de 31 de dezembro de 1943, com a inauguração em novo edifício, na Av. Arriaga. O serviço funcionou até 1942 na Trav. do Cabido, sendo transferido a 29 de março de 1942 para o 1.º andar da Rosa d’Ouro, à Av. Dr. António José de Almeida, de onde depois foi deslocado, a 29 de março do ano seguinte, para a sede definitiva da Av. Arriaga, inaugurada a 28 de outubro. Aqui passou a funcionar um serviço permanente de atendimento e de distribuição de telegramas. O último era realizado, de início, pelos boletineiros-peões, e, depois, a partir de 1970, por motociclistas. Na déc. de 50, redobraram as responsabilidades da Companhia, ao ser-lhe atribuída a exploração do rádio móvel marítimo: os serviços aumentaram em área, volume e qualidade. Imperativos técnicos conduziram a que se fizesse uma subdivisão entre os serviços de emissão e receção: o Garajau permaneceu como central, dispondo apenas das antenas de receção, enquanto o Caniçal foi reativado como posto de emissão, e, no Funchal, ficaram centralizados, desde 4 de julho de 1951, os serviços de rádioescuta naval. A mudança técnica das instalações do Caniço só ficou concluída a 25 de março de 1968, com a inauguração da nova estação do Caniçal. No ato, estiveram presentes o governador civil do distrito e o diretor técnico da Marconi, Fernando Feijó. Aí ficaram instalados os serviços de receção das comunicações telegráficas e telefónicas e da estação costeira para a navegação. As obras iniciaram-se em setembro de 1966, nas instalações abandonadas em 1942, tendo sido visitadas a 17 de agosto de 1967 pelo então ministro das Comunicações. Nos primeiros anos das comunicações por radiotelefone para o exterior, o ambiente das operações era algo surrealista, comparado com a situação que muito depois se viveria: a ligação era feita via rádio através do operador da Marconi com a estação de Lisboa. Quando sucedia qualquer interferência, interrompia-se a ligação e os operadores procediam à mudança de canal para uma melhor receção. A sintonia era feita por meio de uma gravação do bailinho da Madeira, que era passada pela estação do Caniçal. Concluída esta operação, os utentes continuavam a sua receção. As ligações com o Porto Santo continuavam a ser um problema, pois, em junho de 1945, em plena época de veraneio, houve mais de uma interrupção. A solução viria a estar na nova estação de radiotelefonia inaugurada a 30 de agosto de 1959. Na época, era grande o incremento do serviço telefónico no arquipélago e a Marconi preparava-se para adequar a disponibilidade dos serviços aos madeirenses. No Natal de 1958, prometeu presentear os madeirenses com novos serviços (o telex e a radiofotografia), mas tal só veio a suceder muito mais tarde. O telefone chegou à Madeira em 1911, mas só na déc. de 50 teve um maior incremento, tendo-se iniciado, em 1958, o processo de automatização da rede telefónica do Funchal, através das novas instalações no edifício dos Correios, na Av. de Zarco. O aumento desmesurado da procura dos serviços de radiotelefonia e o carácter obsoleto dos meios disponíveis para a ligação com o exterior levaram a Marconi a apostar noutro serviço capaz de satisfazer as necessidades da Ilha. Sob o lema “servir mais e melhor”, a Marconi avançou, a partir de 1969, com um novo meio de comunicação: o cabo submarino. A partir do verão de 1971, a Madeira foi servida por novo cabo submarino, com capacidade para corresponder às necessidades dos locais, em substituição do cabo dos Ingleses. As obras começaram em dezembro de 1971, e em maio do 1972 foi lançado o cabo submarino, que viria a ser inaugurado a 2 de setembro. Para a inauguração, deslocou-se propositadamente à Ilha o secretário de Estado das Comunicações, Oliveira Martins. No ato, estiveram presentes o presidente e o vice-presidente do Conselho de Administração da Marconi, respetivamente Manuel de Athayde Pinto de Mascarenhas e José Maria Camolino Ferraz de Matos e Silva. As referidas instalações foram, depois, visitadas pelo Chefe de Estado, Américo de Deus Rodrigues Thomaz, aquando da sua visita à Madeira, em 1962. O cabo submarino alargou as possibilidades às ligações com o exterior e à disponibilização de novos serviços, como o telex. As telecomunicações, que haviam avançado de forma lenta no meio aquático, ganharam um novo vigor com a conquista do espaço celeste. Desde as primeiras tentativas de afirmação, na déc. de 50, sucederam-se inúmeros progressos que chegaram também às telecomunicações madeirenses. Todavia, a Madeira, que havia sido dos primeiros locais a usufruir das ligações por cabo submarino e depois por TSF, foi a última a usufruir desse novo serviço de telecomunicações – o satélite. As ligações por essa via entre as ilhas, o continente português e o mundo só tiveram lugar em 1982, i.e., passados mais de oito anos sobre a entrada em funcionamento deste serviço em Portugal. Esta nova via foi possível graças à abertura de uma nova estação terrena em Sintra. A montagem da estação do Funchal, situada em São Martinho, iniciou-se em fevereiro de 1980, num investimento global de mais de meio milhão de contos. Os trabalhos para este empreendimento tiveram lugar em outubro de 1977, com a criação de um grupo de trabalho que tinha o objetivo de estudar as possibilidades de alargamento à Madeira deste meio de comunicação. Em fevereiro de 1980, iniciaram-se as obras e foi aberto um concurso internacional para o fornecimento do material necessário às estações terrenas da Madeira e de Sintra: o contrato de fornecimento foi assinado a 18 de fevereiro de 1981 com o consórcio italiano Satelit Telecomunications Systems. A antena instalada foi do tipo Cassegram, com refletor parabólico de 25 m de diâmetro, pesando 240 t. No ato de inauguração, que teve lugar no dia 16 de novembro, estiveram presentes o secretário de Estado dos Transportes Exteriores e Comunicações, José da Silva Domingos, e os presidentes dos conselhos de administração da CPRM e dos CTT (Correios e Telecomunicações de Portugal)/TLP (Telefones de Lisboa e Porto), Miguel Horta e Costa e Oliveira Martins, respetivamente, bem como as autoridades regionais. A abertura do referido serviço na Ilha veio propiciar aos madeirenses o acesso direto às emissões televisivas. Por outro lado, este meio veio proporcionar aos 20.000 assinantes da rede telefónica da Madeira o acesso telefónico direto à Europa e a alguns países da África e da América, favorecendo uma maior aproximação entre os madeirenses residentes na Ilha e aqueles que se encontravam emigrados nos mais diversos destinos. Neste contexto, merece referência a inauguração, a 20 de fevereiro de 1984, das ligações telefónicas diretas com a Venezuela e a África do Sul; seguiram-se o Panamá e as Antilhas Holandesas (20 de setembro de 1984), o Havai (19 de janeiro de 1985) e a Europa Oriental (28 de agosto de 1986). Esta ligação direta chegou a mais de 70 países. Em 15 e 16 de dezembro de 1986, a Marconi propiciou aos madeirenses o visionamento de alguns canais televisivos que, recebidos em Sintra através do Eutelsat I-F1, eram retransmitidos para o Funchal pelo Intelsat V-F11. Esta situação transitória foi uma demonstração daquilo que foi possível com o lançamento da série de satélites Eutelsat II, que permitiram à Madeira a receção de TV e outros sinais de telecomunicações, com uma antena parabólica de dimensões reduzidas. Perante esta situação, a Marconi passou a oferecer aos madeirenses 288 circuitos, sendo 144 de cabo submarino e 144 via satélite. Todavia, os serviços da Companhia não se ficaram por aqui, pois, para além do cabo submarino de fibra ótica, para substituir o de 1972, digitalizou-se as comunicações por satélite. Este esforço de modernização dos serviços da empresa, a partir de 1982, está avaliado em 1.700.000 contos. Refira-se ainda o Serviço Móvel Marítimo (SMM). Esta via baseava-se num serviço telefónico e telegráfico permanente em VHF (frequência muito alta), onda média e curta. A sua modernização teve lugar a partir de 1979, assistindo-se, desde 1984, a uma melhoria e a uma variedade na oferta de serviços: em 1984, entrou em funcionamento a estação de VHF do Porto Santo; em maio de 1986, foi a vez da estação da Ponta do Pargo; a 1 de agosto de 1988, inaugurou-se o centro de operações do Funchal, a partir do qual são telecomandadas as estações espalhadas pelo litoral da Ilha; em 1989, foi o estabelecimento da cobertura em onda média, com a entrada ao serviço das estações da Ponta do Pargo (em abril), de Pico da Cruz (em maio) e do Porto Santo (em julho). Com este investimento, no valor de cerca de 350.000 contos, a Marconi conseguiu a cobertura total da zona económica exclusiva madeirense, sendo a primeira no país a merecer tal oferta de serviços. A maior oferta de serviços pela Marconi e a reafirmação da Madeira como eixo importante das telecomunicações com o Atlântico Sul levaram a Companhia a apostar num novo Centro de Telecomunicações, capaz de corresponder a esta realidade. Assim, desde 25 de setembro de 1992, a Madeira dispõe deste Centro, que coordena a atividade da empresa, em termos do tráfego dos cabos submarinos de fibra ótica e transmissão digital (Eurafrica, Sat-2, Columbus-2, Inland), da rede móvel e dos satélites. Esta infraestrutura concentra os serviços que estavam dispersos pelo Porto Novo, Garajau e Funchal. Aí está instalada a nova estação de cabos submarinos dos sistemas Euráfrica e Sat-2, os serviços de exploração, englobando o Centro de Operação e Controlo do SMM e a Central Telegráfica, bem como os serviços técnicos e administrativos. A inauguração do Centro foi simultânea à do cabo submarino internacional Euráfrica. A esta seguiu-se, a 28 de abril de 1993, a do cabo Sat-2, que liga a República da África do Sul às Canárias e à Madeira. Este é o maior cabo submarino do Atlântico e o terceiro a nível mundial. O Sat-2 permite a ligação de 15.000 circuitos telefónicos e a transmissão de 32 canais de televisão. Esta aposta da Marconi levou a que a Madeira retomasse a histórica vocação de plataforma do Atlântico. De novo, a Madeira assume um papel destacado como entroncamento de infraestruturas submarinas de telecomunicações, e Portugal passa a dispor de uma posição de relevo na rede atlântica de cabos submarinos. Alberto Vieira (atualizado  01.02.2018)   artigos relacionados: ateneu comercial do funchal radiodifusão portuguesa / rdp - madeira correios telegrafia sem fios (tsf)

Física, Química e Engenharia Sociedade e Comunicação Social

nau sem rumo

A História diz-nos que a Nau Sem Rumo é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestres que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do século seguinte. Esta condição de única e mais antiga associação de boémia gastronómica apresenta-se como o antecedente da atual moda das confrarias gastronómicas, sendo o prato do repasto habitual das quartas-feiras o bacalhau. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a associação existia já há muito tempo. A leitura dos livros de honra da associação revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas da Nau Sem Rumo. A ligação da associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto. Palavras-chave: Nau Sem Rumo; Esquadras de navegação terrestre; Diversão; Boémia; Gastronomia.   A História diz-nos que a Nau Sem Rumo (NSR) é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestre que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do seguinte. Esta condição de única e antiga associação boémia e gastronómica, que antecedeu a atual moda das confrarias gastronómicas, deve servir de alento para que não se perca este raro testemunho do quotidiano madeirense. A NSR assume um papel importante na história da Ilha e da cidade do Funchal, pois está sempre presente no quotidiano funchalense, foi o exemplo da hospitalidade madeirense. As inúmeras presenças de diversas individualidades nacionais e estrangeiras na sua sede são exemplo disso. A leitura dos livros de honra da NSR revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas desta Associação. Os comandantes das embarcações, que assiduamente aportavam ao Funchal, eram sempre convidados da NSR, pois através deles fazia-se avivar o espírito marítimo. A Associação acolheu, em receção ou nos seus almoços, eminentes personalidades de visita ou de passagem pela Ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, nos pratos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa, nem ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros reunidos para o repasto. O prestígio da NSR na sociedade madeirense era e é inegável, afirmando o visconde do Porto da Cruz, em 1952, que “Ao contrário do que o seu nome indica tem o seu rumo perfeitamente orientado, sendo um centro de recreio de ‘bons-vivants’ onde há a melhor e mais especializada cozinha que satisfaz os mais requintados epicuristas e além disso trás o propósito de desenvolver uma interessante obra social de assistência e de expansionismo regionalista” (VIEIRA, 2001, 10). A NSR foi, durante muito tempo, um dos principais cartões-de-visita para as personalidades que passavam pelo Funchal para uma curta escala ou estadia. A ligação da Associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto, sendo, em muitos momentos, como a principal expressão da hospitalidade dos madeirenses, que a todos brindava. Esta arte de bem receber foi testemunhada por muitos e atuou certamente como uma bandeira favorável à presença frequente de personalidades de diversa índole e de gente anónima. A todos o madeirense acolhia da melhor forma, portas adentro, nas casas ou quintas, e reservava-lhe a melhor cama e mesa. A origem desta Associação parte do ambiente cultural e boémio do séc. XIX funchalense. Assim, na segunda metade do século, generalizou-se a criação de clubes destinados ao recreio e distração dos sócios. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées, que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber nas suas instalações as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Clube Washington (1882), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Clube Internacional do Funchal (1896), Clube dos Estrangeiros (1897), Turf Club (1900), The Sports Club (1901), Stranger’s Club-Casino Pavão (1906), Novo Clube Restauração (1908), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). Não faltava ao madeirense imaginação para encontrar formas de diversão e de passar o tempo. Deste modo, na déc. de 80 do séc. XIX, afirmaram-se as chamadas esquadras de navegação terrestre. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois desde a déc. de 40 da centúria sucedeu este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base o confronto entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, ergueram-se os mastros engalanados com bandeirinhas e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados em atos públicos fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé ou ao longo da costa e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos em 1901, com a visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra refrearam a iniciativa das esquadras, provocando o apagamento das esquadras submarinas de navegação terrestre. Acabou o aparato de rua, e o movimento em torno dos mastros e miradouros transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este carácter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e jogos da fortuna e azar, que ajudavam a passar os fins de tarde e as noites. A NSR, cuja data de aparição não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo como palco a mesa e o bacalhau, seu inseparável amigo. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da NSR. Apesar de a Associação existir há já muito tempo, os seus primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, por força de uma nova exigência do regime político. Note-se que era costume a data dos estatutos oficiais não coincidir com o início de funcionamento. Tomemos como exemplo alguns clubes: o Clube União foi fundado a 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral a 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil a 7 de fevereiro de 1879; o Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876, tendo sido aprovados pelo governador civil apenas em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a NSR. As entrevistas feitas aos mais antigos associados dão a entender esta realidade. De acordo com o testemunho do Sr. José Egídio Barros, veterano da NSR, a Associação terá surgido por volta de 1917, quando o Com. José Gomes reunia regularmente um grupo de amigos num banco de jardim em frente do café A Brasileira, hoje edifício da Secretaria Regional do Turismo, na Av. Arriaga. Contudo, segundo informa Amadeu Ribeiro Saraiva, comandante do Funchalense, na visita que fez à NSR a 3 de janeiro de 1962, esta teria surgido em 1926: “Nas visitas à ‘Nau Sem Rumo’, de que fui um dos primitivos fundadores em 1926, verifiquei com muito agrado que do pouco mais de nada se levantou uma grande organização que me apraz registar como modelar e simpática, nela encontrando ainda alguns dos primeiros fundadores. Decorridos que são trinta e seis anos, esta ‘Nau’ não sossobra, – antes pelo contrário navega a todo o pano [...]” (Id., Ibid., 18). Oficialmente, a data de fundação da NSR foi atribuída à do primeiro registo da Associação, a 27 de maio de 1935, tal como se poderá constatar pelo regulamento de 1950. Assim, o dia 27 de maio ficou registado como o dia do aniversário da NSR. A NSR tardou em encontrar o porto seguro. A sua primeira sede foi no edifício do atual Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com outras associações, passando depois, em 1928, com o Alm. Dr. Agostinho de Freitas, para a R. da Carreira. A partir daqui, vagueou por algumas ruas da cidade: R. dos Murças, Trav. do Nascimento e, finalmente, a R. 31 de Janeiro, onde varou em definitivo, a partir de 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede, à R. 31 de Janeiro, onde permanece ainda hoje em prédio construído em 1940, por Raul Câmara. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão Ornelas, presidente da Câmara Municipal do Funchal; Dr. Félix Barreira, secretário-geral do Governo Civil; Com. João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do porto do Funchal; Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, vice-presidente da Junta Geral; Dr. Humberto Pereira da Costa, diretor da Alfândega; e Fernando Rebelo Andrade, diretor da PIDE. As declarações do Dr. Fernão Ornelas, no livro de honra, dão o testemunho claro da solenidade: “As instalações da ‘Nau Sem Rumo’ revelam um espírito de iniciativa que não é vulgar no nosso meio. É grato, para quem tem posto o melhor carinho no progresso da cidade, verificar que no Funchal existe um club que seria uma grande realização em qualquer meio. Sinceros parabéns em nome da câmara” (Id., Ibid., 20). Igual ideia tinha o então inspetor da PIDE, Fernando Rebelo Andrade: “A Nau Sem Rumo deixa maravilhado pelo rumo que agora tomou não só pelas suas belas instalações, como pelo fim que proporciona a cada convidado que assiste aos seus esmerados jantares” (Id., Ibid., 20). Os livros de honra da NSR revelam-nos que a agremiação era entendida, como já referido, como a sala de visitas da Ilha: visitantes ilustres, comandantes das embarcações, eram sempre convidados da Associação, fazendo-se o espírito marinheiro da NSR. Um dos habituais convivas era o Alm. Sarmento Rodrigues, que muito se destacou na política e administração colonial. No período da Segunda Guerra Mundial, amainou o movimento de embarcações, mas não faltaram marinheiros na NSR. A este propósito, referia-se, em 1939, os comandantes de diversos navios comerciais gregos que permaneceram algum tempo atracados na Pontinha. Pelos salões da Associação passaram eminentes personalidades, de visita ou de passagem pela ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, dos repastos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa e ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros. A NSR era uma associação masculina, não tendo nunca, entre os seus sócios, surgido alguém do sexo feminino, mesmo como sócio honorário. Todavia, a presença feminina é uma constante na lista de convidados. De entre as ilustres convidadas, destacam-se as inúmeras artistas que participavam nas quermesses dos clubes desportivos, como a Dr.ª Beatriz Franco de Almeida, que, em 1945, considerou a NSR como “uma coletividade com pontos de vista magníficos e de utilidade altamente comprovada” (Id., Ibid., 25). Porém, de todas estas visitas femininas, a mais notada foi a de Amália Rodrigues. A 23 de maio de 1948, a NSR engalanou-se para receber a ilustre fadista, que cantou e encantou da varanda o inúmero público que a seguia e lavrou no livro de honra a sua gratidão: “Agradeço a todos do meu coração este simpático almoço e Deus queira que não seja o último” (Id., Ibid., 25). O cantor Francisco José foi outro dos convidados da NSR, que deixou registado, em 1952: “Nau sem rumo, não concordo, tem o grande sentido da amizade e da boa camaradagem” (Id., Ibid., 24-25). Max, o célebre artista madeirense, tinha as portas franqueadas, mas só em 1955 e 1960 frequentou a Associação. Nesta última visita, deixou o seguinte pensamento: “A nau da minha terra é a nau do meu pensamento” (Id., Ibid., 26). Era frequente a presença de convidados do sexo masculino: artistas, jornalistas e políticos não escapavam à simpatia e arte de bem receber da guarnição. Em 1945, o Com. M. Sarmento Rodrigues, governador-geral de Angola, ficou de tal modo cativado que não hesitou em afirmar: “vejo nesta grande barca uma das mais nobres e simples manifestações de simpatia humana que tenho conhecido” (Id., Ibid., 26). E repetiu a experiência, passados 10 anos, já como ministro do Ultramar. Quatro anos mais tarde, a Ilha deu guarida, por algum tempo, ao deposto Presidente da República de Cuba, o Gen. Fulgencio Batista. A sua presença na Ilha não passou despercebida ao almirante que o homenageou na NSR, a 18 de dezembro de 1959. O general, sensibilizado, decidiu oferecer dois contos de reis para a quermesse de Natal e lavrou aquele que será o melhor testemunho sobre a NSR: “Nau sem rumo es para los que se orientan en la tierra la mejor nave para encontrar el rumbo, con la mágica brújula de su cordial Fraternidad, de lo que podría ser el hombre, en sus fundamentales actividades, por el progresso de la humanidad. Aqui deja el navigante eventual, que es el hosped bien recebido en Madeira, este recuerdo agradecido. Salud!” [Nau sem Rumo é, para os que se orientam em terra, a melhor nave para encontrar o rumo, com a bússola mágica da sua cordial Fraternidade, do que poderia ser o homem nas suas atividades fundamentais, com vista ao progresso da humanidade. Aqui deixa o navegador eventual, hóspede bem recebido na Madeira, esta memória agradecida. Saúde!] (Id., Ibid., 26). Havia entre os membros da NSR um particular reconhecimento pelos marinheiros de profissão, de modo que, de todos os militares da marinha ou tripulações das diversas embarcações que aportavam no Funchal, vinham também os maiores elogios. Em 1945, Fernando Moreira, comandante do Maria Cristina, não hesita em afirmar que esta foi “a maior organização que até hoje conheci, não tendo medo de afirmar (como marinheiro que conhece quase todo o mundo) única no seu género no globo” (Id., Ibid., 26). Muitos madeirenses, residentes ou de visita à Ilha, tinham as portas da Associação abertas e foram alvo de homenagem. Em 1946, o deputado Juvenal de Araújo disse que saía “encantado e penhoradíssimo. Mais vou com desejo de voltar” (Id., Ibid., 26). Contudo, não temos notícia de que tivesse regressado. Já o célebre psiquiatra Dr. Aníbal Faria, em 1947, sentia-se maravilhado com a viagem pelo facto de não ter enjoado nesta: “Estou como sempre enjoado a bordo... Necessito muitas e muitas viagens… como esta para me tornar valente marinheiro e... talvez um brioso rival do simpático almirante da Nau sem Rumo” (Id., Ibid., 26-27). A ligação e vocação marítima lusíada estava sempre presente no ambiente que envolvia os visitantes, nomeadamente no dos escritores. Foi o caso de Assis Esperança, que, em 1946, exclamava: “Foi numa nau que os portugueses cá vieram – e é numa nau ainda melhor que estes bons portugueses sabem ser amigos e sabem ser portugueses” (Id., Ibid., 27). E parece que estava no rumo certo, a fazer fé nas palavras de Hermínio Simões, em 1950: “‘Sem Rumo’!!! Não. [...] O rumo é certo porque com esta tripulação os ventos são sempre de... Feição” (Id., Ibid., 27). E, no ano imediato, Arthur Vieira Ávila explicava que “A Nau Sem Rumo foi para mim uma revelação de bom rumo que os seus dirigentes sabem dar à missão de amizade e fraternidade para com os seus conterrâneos. As amabilidades recebidas jamais serão esquecidas” (Id., Ibid., 27). Para a maioria dos convidados, era uma grande honra e um ato de reconhecimento social o almoço na NSR. Esta é a expressão que fica de muitas das opiniões, como se atesta nas palavras de um forasteiro do Brasil: “Sinto-me envaidecido e grato por ter participado de uma das suas viagens” (Id., Ibid., 27). Já para outros, é o sabor dos pratos degustados, desde o bacalhau aos mariscos, como era obrigatório na NSR, que fica na memória. Em 1959, Ana Maria de Amorim Ferreira de Sousa Moniz regista: “Desejo que esta nau continue a navegar com rumo para continuar a pescar mais lagostas tão boas como aquelas que comi esta noite” (Id., Ibid., 27). Carlos Areias, em 1961, não teme dar conta dos seus excessos: “Comi bem, bebi melhor. Já não estou com muito aprumo. Nunca mais posso esquecer o almoço na ‘Nau Sem Rumo’” (Id., Ibid., 27). Ou então um remate original, como o de Mário Nobre, em 1960: “Cantar em verso ou prosa a generosidade tradicional do almirante e tripulação da ‘Nau Sem Rumo’, quando recebem amigos e convidados, é lugar comum. Por isso limito-me a transmitir as seguintes palavras que constituem o meu melhor elogio: ‘Nesta nau embarco sempre [...]’” (Id., Ibid., 27). A NSR foi ainda um privilegiado interlocutor do intercâmbio de excursionistas com as Canárias. Note-se que, a 1 de novembro de 1959, os excursionistas do Real Club Nautico de Gran Canaria foram ali recebidos de forma festiva. Isto foi o início de um profícuo intercâmbio que levou alguns madeirenses a estas ilhas em 1962 e 1963. Por outro lado, entre as personalidades recebidas na Associação, destacam-se algumas do arquipélago vizinho, desde políticos e militares a jornalistas. A 7 de abril de 1947, a NSR homenageou o Gen. Garcia Escaner, capitão-general do arquipélago canário, a que se seguiu, a 9 de junho de 1955, uma homenagem a D. Joaquim Vileles Burgos, presidente da Sala de lo civil de la Audiencia Territorial de las Palmas. Em 1959, foi a vez do presidente do Real Club Nautico de Gran Canaria e, em 1960, o grupo folclórico de Tenerife, que esteve presente nas festas das bodas de ouro do Club Nacional. Também os cidadãos espanhóis da Península, de passagem pelo Funchal, foram alvo da hospitalidade da NSR, sendo de destacar o caso de Cristóbal Colon de Carvajal y Maroto, duque de Veragua, que, a 24 de abril de 1956, veio em busca do rastro do seu ancestral Cristóvão Colombo, que algumas centenas de anos antes havia também testemunhado e fruído da hospitalidade madeirense. A partir de finais da déc. de 60, parece ter esmorecido a tradição de bem receber os forasteiros e comandantes das embarcações que aportavam ao Funchal. Aliás nota-se, entre 1970 e 1991, um hiato em que ninguém se dignou registar, no livro de impressões dos visitantes, o testemunho da sua adesão ao convívio da tertúlia gastronómica. Desde então e até 2016, a lista de convidados incidia preferencialmente nos homens ligados ao mar, nalguns políticos ligados à autonomia e em poucos artistas. A NSR não encalhou com o 25 de Abril de 1974, e o interregno nas visitas evidencia apenas que se manteve virada para os associados. Esta capacidade de resistir ao ambiente politizado deve-se, segundo alguns dos seus associados, ao facto de a política não ter franqueado as portas da Associação e de todos os associados se absterem religiosamente dela ao entrarem no seu recinto. Aliás, esta era uma das recomendações fundamentais dos estatutos dos anos 50. O alheamento dos tripulantes relativamente à violência e inimizades do discurso partidário é considerado o principal fator de coesão e continuidade no último quartel do séc. XX, como a partir da déc. de 30, com o apertado sistema de controlo das associações existentes. A NSR terá nascido com o Estado Novo e conseguiu suplantá-lo em longevidade, sabendo sempre vencer a agitação da segunda República, sem se deixar contagiar. As palavras de agradecimento e enaltecimento do espírito da NSR e os opíparos almoços ou jantares, sempre de produtos do mar, encantam todos os gastrónomos. Aqui, nada falta, excepto, segundo o registo de Polybio Serra e Silva, de 3 de março de 1995, as mulheres: “Boa gastronomia, óptimo companheirismo [...] só faltam as mulheres […]” (Id., Ibid., 31). A NSR continua a ser ainda hoje a principal sala de visitas da Ilha, sendo para os forasteiros a melhor imagem da mesma. Deste modo, a 28 de dezembro de 1995, o Eng.º Rui Vieira não hesitava em afirmar que a “nau vale a ilha inteira […]” (Id., Ibid., 31). O então presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, na visita que fez à Associação a 4 de março de 1994, registou: “Sinto-me honrado e feliz, por hoje estar numa confraternização da ‘Nau Sem Rumo’. Instituição que tanto simboliza e interpreta a cultura e o sentir do Povo Madeirense, no ambiente e trato que aqui se viveu. Durante decénios, e hoje também, verdadeira e representativa sala do bem receber e convívio madeirense. Sucesso de gerações ilustres que construíram esta terra. Vida e força para continuar o que somos” (Id., Ibid., 31). Para muitos dos associados, a presença e o carinho dos convidados de honra foram um fator de coesão e afirmação da NSR. Deste rol, constavam alguns dos comandantes do porto do Funchal, como Moura da Fonseca, Celestino Ramos Monteiro. Com estes, ombreavam outros verdadeiros homens do mar, como o Com. Cristiano de Sousa. O modo de funcionamento da NSR estava estabelecido num regulamento interno. O primeiro que se conhece é de 30 de abril de 1950, mas a sua versão definitiva só foi aprovada e publicada a 31 de janeiro de 1953, da qual se fez uma edição que passou a ser distribuída por todos os sócios. Em data posterior, ocorreram ainda outras reformas, que não alteraram substancialmente o espírito do regulamento inicial. Por imperativos de legislação, foi necessário assegurar a sua manutenção, dando-lhe personalidade jurídica, através da formalização da escritura dos novos estatutos, a 13 de maio de 1999. As atas das reuniões do Conselho de Estado Maior são a imagem do dia-a-dia da NSR. Aqui, discutia-se tanto a admissão de novos sócios, como os demais problemas quotidianos da Associação. A vida da NSR parece decorrer de forma normal nas décs. de 50 e 60, havendo apenas a notar um interregno em 1960. Assim, a última reunião deste ano decorreu a 23 de maio, só voltando a haver novo registo de reunião a 15 de junho de 1961. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Estes últimos eram individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à NSR, adquiriam esta possibilidade mediante proposta do almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa. Ouvido o Conselho de Estado Maior, o almirante podia ainda nomear os oficiais correspondentes, em qualquer país, estado ou cidade, aquelas pessoas de reconhecida categoria e idoneidade comprovada. Em assembleia geral de 11 de abril de 1959, foi criada a figura do sócio benemérito, para contemplar os que contribuíam para aumentar o património da NSR ou pelos seus relevantes serviços. Tal como refere o art.º 7.° dos estatutos, os sócios eram obrigatoriamente do sexo masculino: “Só poderão ser admitidas para sócios efectivos pessoas do sexo masculino, de comprovada idoneidade moral e civil, maiores, de qualquer profissão, independentes ou subordinadas [...]” (Id., Ibid., 73). Tirando isto, não havia qualquer exclusão na admissão de sócios por outros quaisquer motivos, estando mesmo permitido o acesso a estrangeiros, não obstante esta ser uma associação regionalista que tem como lema “da Madeira, pela Madeira”. Neste grupo, destacam-se alguns Ingleses residentes na Ilha. Todavia, o regulamento estabelece algumas limitações à presença de estrangeiros, uma vez que não podem ser almirantes, apenas vice-almirante, e ter assento no Conselho de Estado de apenas dois sócios. A tripulação da NSR, tal como se revela na lista de sócios, foi maioritariamente constituída por comerciantes da cidade, havendo entre ela advogados, jornalistas, empregados do comércio, guarda-livros, engenheiros, médicos, oficiais do exército e gerentes bancários. A Associação continua a manter esta tradição, sendo o ponto de encontro de gentes de diversas origens e profissões, juntando algumas das personalidades que mais se têm destacado no campo da política, comércio, medicina e construção civil. Estes dados revelam que a NSR não estabelecia qualquer impedimento relacionado com as convicções religiosas ou políticas dos candidatos. Todavia, uma regra fundamental do são convívio foi deixar à porta estas opções, fazendo com que o convívio fosse o mais correto, pois, tal como preceituavam os estatutos, “O respeito mútuo é obrigatório, sendo absolutamente proibidas quaisquer discussões de carácter político ou religioso [...]” (Id., Ibid., 73). Os candidatos eram apresentados por um sócio e, antes da decisão final pelo Conselho, os seus nomes publicitados no quadro durante 15 dias. Findo este prazo, se não houvesse oposição, eram discutidos e votados em reunião de Conselho do Estado Maior pelo sistema de bola branca e preta. O candidato só teria as portas franqueadas caso colhesse a totalidade de bolas brancas. Ao final da terceira tentativa, acabava a possibilidade de ser admitido, ficando na lista negra. O novo sócio, com o posto de grumete, estava obrigado ao pagamento de uma joia a estabelecer pelo Conselho. Para além disso, o candidato deveria submeter-se a uma prova de fogo, ficando em observação por algum tempo para ver se se adaptava à nova realidade e ao espírito da NSR. A primeira prova era o batismo na Associação, através de uma viagem gastronómica por sua conta. Este era um momento de grande importância, contando sempre com a presença de entidades públicas ligadas ao mar, como foi o caso do comandante do porto, convidado, em fevereiro de 1962, para a cerimónia de batismo dos novos grumetes. A partir daqui, era-lhe atribuído um número de sócio e procedia-se ao seu lançamento no livro de bordo. A entrada de novos sócios fazia-se por contágio dos amigos. É o testemunho dos sócios amigos e os eventuais convites para visitar a Associação que aliciam os novos associados. A amizade e a boémia eram contagiantes. Fala-se que, durante muito tempo, a NSR foi um importante ponto de encontro de empregados e patrões de empresas ligados às ferragens. Esta representação empresarial fazia com que a Associação fosse um lugar para se concretizar alguns negócios. A primeira lista dos sócios só foi organizada a partir de 1942. O primeiro livro de bordo, isto é, o livro de registo dos sócios, apresenta 58, sem data de entrada, sendo anteriores a 1 de outubro de 1942, data em que se registou a entrada do novo sócio, João M. F. Ribeiro, bibliotecário da Alfândega do Funchal. Apenas o sócio 178, Vergílio Pedro Rodrigues Pimenta, tem a indicação da data de admissão, 26 de abril de 1930. De acordo com o testemunho de alguns associados, a primeira lista teria sido elaborada em 1940. Os livros de registo dos sócios, disponíveis na sede da NSR, apresentam 479 associados, mas o grupo de efetivos foi sempre menor, uma vez que muitos foram forçados a desistir, por saírem da Região ou por outros motivos. Facto significativo é o número de desistências, que chega aos 50% do grupo, o que quererá dizer que muitos dos sócios não demonstraram destreza na viagem. A NSR era um espaço de amizade e camaradagem, dizem-nos os estatutos e as declarações de muitos convidados, pelo que todos aqueles que atentavam contra este espírito eram expulsos. No total, foram assinaladas 12 ordens de exclusão da Associação. Também os associados com dívidas, caso não as saldassem, se sujeitavam a serem suspensos e impedidos de entrar na sede. A 12 de abril de 1972, o Conselho deliberou suspender a admissão de novos sócios, situação que se manteve até 1974. Quanto a admissões, 1944 é o ano que regista o maior número de novos sócios. As dificuldades da Segunda Guerra Mundial não afastaram os madeirenses da NSR, que continuou a ser um dos raros espaços de encontro e diversão da cidade. Aqui, também transitaram informações, a soldo da espionagem dos beligerantes. Se excluirmos o período de 1974 a 1977, podemos afirmar que, nas últimas décadas, a NSR terá perdido o interesse e a adesão que outrora provocara na maioria dos funchalenses. Os motivos de diversão são hoje diversificados e as tertúlias gastronómicas têm proliferado. A guarnição da NSR era constituída pelos grumetes e pelo Conselho de Estado Maior. O comando era da responsabilidade deste último, sendo representado pelo almirante e vice-almirante. Sob a dependência do almirante, estavam os oficiais da guarnição, a quem competiam os serviços de bordo. Na primeira listagem dos associados anteriores a 1942, os cargos de serviço estavam assim distribuídos: capitão, imediato e capelão. Todavia, informações dos associados indicam que o primeiro almirante foi Agostinho de Freitas. Já em 1959, a estrutura é distinta: tesoureiro, secretário, restaurante e bar. A estes, juntou-se, em 1961, o responsável pelas contas correntes. Em 1963, os serviçais tinham já categorias distintas: tesoureiro, secretário, comissário e vogal. O número um da lista de sócios é o jornalista Elmano Vieira, que surge na condição de almirante. Aliás, foi ele quem teve a iniciativa de, em 1935, solicitar ao Governo Civil a aprovação dos estatutos. Note-se que o primeiro almirante terá sido, como referido, Agostinho de Freitas, a que sucedeu Elmano Vieira, que, segundo testemunhos, esteve à frente da NSR entre 1934 a 1943, sendo substituído por António Maria Fernandes Nunes. Diz a tradição que os almirantes só são depostos por morte, o que indicia uma prática de atribuir ao cargo um carácter vitalício. A eleição do almirante ocorria sempre no momento em que se procedia à do Conselho de Estado Maior, cujo mandato era anual. Este era composto por cinco sócios, eleitos a partir de uma lista proposta pelo almirante cessante. Era de entre estes que o almirante escolhia o seu braço direito, o vice-almirante. O ato eleitoral fazia-se escolhendo o Conselho uma lista de 15 associados, que era exposta no quadro. No dia assinalado, de entre estes escolhia-se os cinco mais votados para exercer as funções. Apenas uma vez, em 1995, por iniciativa de um sócio, foi decidido em assembleia geral reconduzir todo o Conselho de Estado. Concluída a eleição, o almirante procedia à escolha do vice-almirante de entre os eleitos. As eleições eram sempre um momento grande na vida da NSR. A 3 de fevereiro de 1962, o redator da ata foi profícuo na descrição da ambiência festiva que rodeou mais um ato eleitoral. Após a viagem, isto é o jantar, procedeu-se à votação e contagem dos votos, tendo sido eleito como almirante, para o triénio de 1962-1964, António F. Nunes. E remata-se: “[…] e no meio de grande euforia, foi esta viagem dada por finda, [...] fazendo todos votos, para que os destinos desta Nau Sem Rumo sejam sempre bem governados e dirigidos [...]” (Id., Ibid., 44). De acordo com o testemunho de alguns associados, o ato de posse acontecia sempre com todo o rigor, posando os membros da direção fardados com boné, jaqueta e divisas. Tudo isto à boa maneira das esquadras de navegação terrestre. Hoje, é uma tradição que se perdeu. O Conselho de Estado Maior tinha um papel fundamental no funcionamento da NSR, pois a ele competia o bom funcionamento da Associação, tomando conta do bar e restaurante, e também a iniciativa de organizar reuniões e encontros de carácter cultural e científico. O Conselho podia nomear mensalmente dois sócios, conhecidos como oficiais da guarnição, a quem competia preparar os dois repastos semanais e zelar pelo bom funcionamento do bar e pela escrituração da receita e despesa. Com a aprovação dos estatutos e respetivo registo notarial, em 1999, a NSR passava a ser regida da mesma forma que as demais associações. A obrigação legal de adequar a NSR ao regime legal das associações não quebrou a forma de funcionamento e estrutura peculiar que sempre regeu os seus destinos e que a aproxima da vivência marítima. Deste modo, a estrutura hierárquica de mando continua a manter a terminologia antiga e a tradição, fazendo da Associação uma esquadra de navegação terrestre que teima em sentar-se à mesa todas as quintas-feiras. Os encontros da guarnição na NSR eram conhecidos como viagens. Em ata de 9 de fevereiro de 1963, regista-se o seguinte: “[…] fez-se uma viagem na Nau Sem Rumo [...] fazendo parte da viagem [...] dezanove tripulantes” (Id., Ibid., 53). Era uma viagem em terra, ou melhor, utilizando os termos atuais, uma viagem virtual. Estes foram e continuam a ser os momentos cruciais da vida da Associação. Aconteciam no salão próprio do segundo andar e tinham por palco a mesa e o fiel amigo por companhia. A ementa estava a cargo dos oficiais de serviço que a preparavam, de acordo com a lista de inscritos e de convidados. As reuniões aconteciam sempre duas vezes por semana, ao almoço de quinta-feira e jantar de sábado. Esta última era conhecida como viagem e, segundo os estatutos, “destinava-se a estabelecer o convívio da Guarnição e a estreitar a amizade entre os sócios, formando um ambiente de melhor confraternização” (Id., Ibid., 54). As viagens contavam, para além da guarnição com convidados, de alguns dos associados ou convidados de honra do Conselho de Estado Maior. Os primeiros deveriam ter anuência do órgão máximo. O sócio que formulava o convite era “responsável por todos os actos do seu convidado ocorridos dentro da sede e pelo pagamento de todas as despesas que o mesmo faça” (Id., Ibid., 54). Já os convidados de honra eram da exclusiva competência do almirante e do Conselho de Estado Maior, com prévio conhecimento dos sócios. Este deveria ser “pessoa de reconhecida categoria social, ou entidade oficial, portuguesa ou estrangeira” (Id., Ibid., 54). A estes acresce a deliberação do Conselho, em 1963, em associar-se à iniciativa do dia do turista, convidando quatro estrangeiros ligados a assuntos do mar para o jantar das quartas-feiras no mês de abril. As viagens da NSR não se resumiam ao repasto, pois, por diversas vezes, aconteciam outras atividades, como conferências. O regulamento assim o estabelecia: “Organizar conferências, palestras culturais, reuniões de carácter económico, literário ou científico, trazendo à sede, sob convite e para tal fim, pessoa ou pessoas de qualquer sexo, nativa ou estranha à terra, mas, previamente, deverá comunicar ao Almirante o carácter do assunto ou assuntos a apresentar” (Id., Ibid., 55). Todavia, estas não eram usuais, pois apenas temos notícia de uma, no jantar de 7 de maio de 1960, em que o Dr. Manuel Romão Boavida foi convidado a proferir uma conferência, que depois foi editada com o apoio da Delegação de Turismo. Note-se ainda o empenho da NSR nas festas que anualmente animavam a passagem de ano. Muitos dos associados participaram ativamente na comissão, angariando as magras verbas para custear o fogo-de-artifício e as iluminações. Muita da animação e brilhantismo que deu corpo ao principal cartaz turístico teve nos obreiros da NSR a sua origem. O visconde do Porto da Cruz é testemunho disso: “As festas do Fim-do-Ano devem à ‘tripulação’ da Nau-Sem-Rumo, e muito especialmente a seu ‘Almirante’ Nunes, o empenhado esforço de lhes imprimir o máximo brilhantismo, que satisfaça os madeirenses e os visitantes que de todo o mundo fazem por ir assistir à feérica noite de São Silvestre ao Funchal” (Id., Ibid., 55). A partir de 1986, temos referência ao passeio anual de convívio dos sócios, no mês de outubro. Os testemunhos de alguns sócios evidenciam que a tradição era antiga, sendo mantida pela Associação, que organizou sempre as suas excursões a locais de interesse, como o Caniçal e as Desertas. Nos últimos anos, as escolhas recaíram na Feira do Gado, no Porto Moniz, Achada do Teixeira, Bica da Cana. O encontro da tripulação e familiares em lugares aprazíveis da Ilha tem sempre como principal motivo uma farta mesa, preparada com esmero por um dos associados. Sendo a mesa o centro de toda a atividade da NSR, é natural que a Associação apostasse, desde o início, no esmero do cardápio, através da contratação de verdadeiros mestres da culinária – a este propósito, ficou para a história da NSR o cozinheiro João Valério Gomes. A abnegada dedicação à causa da NSR, saciando o voraz apetite dos associados, persiste ainda hoje na memória de todos. E, para a história, ficam também os seus pratos especiais, como a sopa de peixe e o bacalhau empacotado. Para muitos, a continuidade da NSR, em alguns dos momentos periclitantes, deve-se à sua douta capacidade de cativar os associados com ementas especiais. O menu das quintas-feiras sempre manteve a tradição do bacalhau, enquanto ao sábado a guarnição delega nas mãos do chefe de cozinha a escolha de entre os variados produtos do mar para encontrar o repasto adequado. Sem ser uma academia do bacalhau, a NSR fez com que o fiel amigo ficasse como o inseparável companheiro dos almoços de quinta-feira. Na voz dos associados, novos e velhos, houve, repetidamente, “sempre e sempre sopa de peixe e bacalhau” (Id., Ibid., 56). As cavalas de molho de vilão e outras variedades de peixe faziam a diferença. Ao longo da história da Associação, só temos documentada uma refeição feita por cozinheiros exteriores, o que sucedeu a 27 de maio de 1974, com o jantar do 39.º aniversário, um buffet servido pelo Hotel do Carmo. A sede da Associação era também o local predileto para os associados receberem os amigos e convidados, em ameno jantar ou almoço, pois era a casa de todos e estava sempre aberta para estas ocasiões. As obras realizadas na sede, entre 1979 e 1981, quebraram o ritmo das viagens na NSR, contudo, a 15 de maio desse ano, a Associação retomou a tradição, com uma baixa de vulto, o cozinheiro Valério. A partir de então, a mesa tornou-se animada aos almoços de terça-feira, quinta-feira e sábado e aos jantares de sábado. O convívio dos sócios não se resumia aos repastos e às ocasionais receções aos convidados, sendo a sede um permanente espaço de encontro da guarnição. A NSR oferecia, desde fevereiro de 1960, a assinatura de algumas revistas e jornais. Também estavam disponíveis vários jogos, com que se entretinham os sócios ao final da tarde. Sabe-se que, em 1966, havia um diretor de jogos responsável por estas atividades lúdicas da guarnição. De entre os jogos, refere-se, em 1961, o jogo de cartas “o barato”, a canasta e a bisca de nove. No caso de “o barato”, cada jogador pagava 10$00 e, caso a sessão se prolongasse para além da 1 h, estava sujeito a uma taxa de 10$00 por cada duas horas. Quanto aos demais jogos, o pagamento era de apenas de 2$00. O jogo e o convívio eram companheiros de uma bebida e dos famosos “dentinhos”, petiscos e coisas para picar, estes estipulados pelo Conselho de 1961. De acordo com a então nova tabela de preços, aprovada em sessão de 13 de maio de 1965, sabemos que o bar era seleto, sendo preenchido com bebidas espirituosas estrangeiras. Na memória de muitos, estão ainda presentes os almoços de quinta-feira, onde a diversão se poderia prolongar até à manhã do dia seguinte. Também o jogo da bisca, as histórias e anedotas do João Teixeira, conhecido como o “malcriado”, regados com álcool, tornavam as noites curtas. A NSR não pode, de modo algum, ser considerada apenas um clube onde se bebe e come, pois as suas atividades alargavam-se à formação dos próprios associados ao propiciar momentos de lazer, como passeios na Iha e fora dela. De entre as iniciativas mais relevantes, releva-se as excursões a Tenerife, entre 28 de abril e 5 de maio de 1962 e em março de 1963. Para a primeira, foi nomeada uma comissão e solicitado ao gerente da Empresa Insular de Navegação as possíveis facilidades a bordo do Funchal, para tornar mais agradável a viagem, de facto, à tripulação da NSR. A Associação demonstrava também o espírito filantrópico através do apoio às crianças oriundas das famílias mais desfavorecidas. Uma das iniciativas de grande relevo que ainda persiste é o mercado de Natal da NSR, que tem lugar num dos sábados do mês de dezembro de cada ano, numa organização das esposas dos associados. Este mercado era e é constituído com as dádivas dos associados, amigos e comerciantes, revertendo o dinheiro do leilão em benefício das crianças do Auxílio Maternal, assim o determinava o Conselho a 30 de novembro de 1961: “o produto reverte a favor das crianças nossas protegidas, que são as do Auxílio Maternal” (Id., Ibid., 59). Outra iniciativa irregular era a colónia balnear infantil da NSR, também dedicada às crianças pobres. O regulamento refere ainda a existência de um fundo para apoio “aos pobres envergonhados, principalmente às crianças sem amparo” (Id., Ibid., 7). Este fundo era recolhido numa caixa que circulava em todos os jantares da Associação. Os estatutos posteriores a 1953 referem outro fundo destinado à concessão de uma bolsa de estudo. Em 1972, temos uma ideia da aplicação destes fundos. Assim, o mercado de Natal rendeu 72.875$10, tendo-se aplicado 63.000$00 no Auxílio Maternal, 6000$00 para donativos particulares e 8075$10 para o fundo de Assistência da NSR. De acordo com os estatutos de 1950, as insígnias da Associação consistiam num emblema de lapela e um estandarte de mastro ou vara metálica. “O emblema é representado por uma roda de leme com uma caravela amarela ao centro e entre aquela e esta uma auréola de cor azul-marinho. O estandarte é de forma triangular e nele predominam as cores da cidade – fundo amarelo, uma linha horizontal e outra vertical de cor roxa cruzadas ao centro do emblema, que é colocado no lado esquerdo do corpo do estandarte” (Id., Ibid., 60). Este último foi inaugurado, de forma festiva, no dia 1 de novembro de 1959. Alberto Vieira (atualizado a 03.03.2018)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

clube desportivo nacional

O Nacional Sport Grupo, um grupo de rapazes liderado por Antonino Figueira, nasce a 8 de dezembro de 1910, com a intenção de fomentar a atividade desportiva, de promover a educação intelectual dos seus associados, de conservar e desenvolver a sua biblioteca e o seu gabinete de leitura, e de realizar reuniões familiares, palestras, conferências científicas e desportivas. O clube surgiu da vontade coletiva e da intenção de independência em relação ao Ateneu Comercial, local onde habitualmente reunia. A primeira referência que encontrámos nos periódicos da época sobre o Nacional Sport Grupo surge a 15 de setembro de 1911, no Heraldo da Madeira. A 14 de novembro de 1916, O Povo revelava que seriam aprovados, por unanimidade, os estatutos do clube, bem como a nova bandeira, proposta por Carlos Figueira. Em 1917, anunciava-se o 7.º aniversário do clube, já sob a designação de Grupo Desportivo Nacional. O Clube Desportivo Nacional viu o seu primeiro emblema ser desenhado por Carlos Figueira, irmão do sócio fundador, Antonino Figueira. Apesar de não termos encontrado qualquer imagem desse emblema, no boletim especial comemorativo dos 50 anos do clube, O Nacional, referia-se que “o emblema ou as insígnias eram uma folha de trevo com as iniciais N.S.G. sobre uma bola, chuteiras, caneleira de cricket e raquete” (O Nacional, 1960). O logótipo que se conhece é em forma de escudo, tal como o do União da Madeira, com fundo branco e listas pretas e brancas, encimado pelas iniciais do clube. Fugindo às cores da república (que eram as Clube Sport Marítimo) e às da monarquia (as do Sports Clube da Madeira), o clube adopta o branco e o preto, mantendo este logótipo até à déc. de 90, época em que uma circunferência com as cores da cidade do Funchal (o roxo e o amarelo), as inscrições “C. D. Nacional”, “Madeira” e duas bolas de futebol se juntam ao anterior. Ao contrário do Club Sport Marítimo, cuja ligação ao futebol é assumida desde o primeiro logótipo, no Clube Desportivo Nacional essa intenção só se concretiza após 80 anos de existência. Foi Carlos Figueira o responsável pelo primeiro estandarte do Clube. Simbolizando invulgaridade, sobranceria e fortaleza, utilizou o condor, uma ave com plumagem preta e de asas esbranquiçadas, símbolo depois utilizado nas distinções honoríficas a atribuir a sócios cujo mérito tenha, de alguma forma, engrandecido o Clube. O seu hino é da autoria dos irmãos Freitas. O primeiro campeonato organizado pela Associação de Futebol do Funchal, em 1916, conta já com a participação do Clube Desportivo Nacional, bem como do Clube Sport Marítimo, do União Football Club, do Club Sports da Madeira e do Sporting da Madeira. Em 1921, o Nacional é campeão em table tennis com o atleta madeirense João Crisóstomo Luís. Dois anos mais tarde o Clube constitui uma equipa de infantis, a primeira a ser criada na Madeira. Nesse mesmo ano surge, a 14 de dezembro, o semanário desportivo da propriedade do Nacional, o Sport do Funchal. O Clube Desportivo Nacional, nos seus primeiros anos de vida, vai dedicar-se ao futebol, à natação, ao ténis e ao polo aquático. Entre 1922 e 1926 é, repetidamente, campeão no polo aquático. É da responsabilidade do Clube Desportivo Nacional a construção do primeiro estádio na Madeira. A notícia de que o Clube adquirira um terreno para a construção de um estádio é-nos dada pel’O Desporto, a 15 de julho de 1923. Surge, em São Martinho, uma zona com a qual o Nacional tem uma ligação umbilical por ser a freguesia onde se situavam os entretanto extintos Campo do Brás – um terreno coberto de relva e cercado de plantação de cana-de-açúcar junto ao sopé do Pico da Cruz, assim conhecido por ser o apelido da família do proprietário do terreno – e Campo dos Pinheiros do clube – um terreno situado próximo da zona do Avista Navios, propriedade do médico António Alfredo da Silva Barreto (1845-1918) –, locais onde os primeiros jogadores terão dado os primeiros pontapés na bola. A 8 de dezembro de 1923, no Golden Gate, António Nunes, o presidente da direção do Clube, que à data contava com cerca de 1000 sócios, afirmava que iriam construir a maior obra desportiva na Madeira, um bom campo de jogos, que substituiria o velho campo Almirante Reis. Em dezembro desse mesmo ano, seria adjudicada, pela Junta Geral do Distrito, a empreitada do troço da rua que ligaria o caminho de São Martinho à estrada Monumental, o primeiro passo para a construção do estádio dos Barreiros. As obras começaram em 1925 e prolongar-se-iam até 1930, gastando-se cerca de 848 contos. O estádio foi inaugurado em 1927, com a visita do Vitória de Setúbal. Em 1926, e para ajudar o trabalho de uma comissão encarregada de construir um sanatório para a tuberculose, o Clube Desportivo Nacional organizou uma festa náutica denominada o Dia do Nacional. Um ano mais tarde, por despacho conjunto dos ministros das Finanças e da Instrução Pública, publicado no Diário do Governo, n.º 90, II série, de 27 de abril de 1927, o Clube Desportivo Nacional era considerado instituição de utilidade pública. Embora tenha usufruído da ajuda dos sócios, o Clube Desportivo Nacional teve ainda de recorrer a empréstimos bancários. Mas, numa época de instabilidade, agravada por uma grande derrocada económica – a falência do banco Henrique Figueira da Silva –, tornou-se tarefa árdua cumprir as suas obrigações financeiras. Várias ações foram colocadas em prática, mas o campo acabou por ser entregue à Junta Geral e ao desporto regional, a troco de 280 contos. Esta situação foi criticada nos periódicos da época, que, satiricamente, ficcionam um cortejo de carnaval onde a instituição alvi-negra é representada por uma visão do futuro em que o estádio se encontra terminado, com 35 bilheteiras e 1 porteiro, e cuja inauguração é feita com uma excelente equipa que o rei D. Sebastião traz de Alcácer-Quibir. Em 1927, o Nacional vence o primeiro jogo do campeonato da Madeira, por cinco a dois, frente ao então campeão de Portugal, no mesmo ano em que inaugura, na cidade, a Escola de Aprendizagem de Futebol de Raul de Freitas, pioneira na Madeira, e a primeira equipa de basquetebol. É na época de 1934/1935 que o Nacional alcança os primeiros grandes resultados futebolísticos, ao sagrar-se campeão da Madeira, situação que se repetiu por três anos consecutivos. Na época de 1941/1942, o Nacional vence o campeonato da Madeira, já com representação insular no campeonato de Portugal, mas com a conflagração mundial e o clima de insegurança que se vivia, nomeadamente no que dizia respeito ao tráfego marítimo, a Madeira deixa de fazer parte da prova. Em termos nacionais, em 1946/1947 verifica-se uma reforma profunda na competição, que começa a funcionar por pontos, em forma de liga e de modo hierarquizado. A Taça de Portugal sofre um interregno nas épocas de 1946/1947 e 1949/1950, por falta de transporte e de segurança, em consequência da guerra. Em 1947, Vasco de Abreu e José da Silva, o “Saca”, conquistam os títulos de campeão nacional e de recordista absoluto de Portugal em natação. “Saca” ficaria para sempre na história da natação do país, por ter sido campeão nacional dos 1000 m e dos 1500 m e o detentor do recorde ibérico dos 1000 m, por ter batido o recorde da travessia Berlengas-Peniche (1956) e por ter atravessado, a nado, o Canal da Mancha (em 1957 e em 1958) sendo, no regresso, recebido na Madeira de forma apoteótica. O Nacional participa no campeonato nacional de voleibol, sagrando-se campeão de Portugal em 1949. Poucos meses depois, vai aos Açores e participa, por diversas vezes, nos jogos intercidades que decorreram entre o Funchal e Ponta Delgada (futebol), entre o Funchal e as Caldas da Rainha (ténis de mesa) e entre o Funchal e Lisboa (voleibol). Em 1956, entra em campo a primeira equipa de hóquei em patins do Clube e, em 1959, dá-se a estreia da equipa de andebol de sete. O ano de 1959 fica marcado pela I Volta à Ilha em Automóvel, prova em que o nacionalista Juvenal Gualberto de Freitas obtém a melhor classificação madeirense. No ano seguinte, o atleta nacionalista João Nóbrega de Freitas vence a V Légua Nacional, em Coimbra, e, nas comemorações dos 50 anos de vida do Clube Desportivo Nacional, têm início as quermesses, o maior evento cultural dos anos 60 na Madeira, através das quais se cimentava o associativismo em torno do clube e se angariavam verbas interessantes e necessárias, muitas vezes para fins caritativos. Por aqui passaram, até 1964, os mais famosos artistas nacionais e estrangeiros, v.g. Max, o Conjunto Académico João Paulo, Xiomara Alfaro, o Duo Ouro Negro, Simone de Oliveira, Alberto Cortez, António Prieto, Raul Solnado e Madalena Iglésias. O mesmo espaço onde decorriam as quermesses, a Qt. Vigia, foi utilizado para apresentar à sociedade civil e desportiva, a 8 de dezembro de 1956, a equipa de infantis, reservas e de honra de hóquei em patins e uma patinadora artística – Maria Boulander – de apenas 15 anos. Em 1964, o Papa Paulo VI recebe, no Vaticano, peregrinos filiados no Nacional, através de quem o Sumo Pontífice envia uma bênção apostólica a todos os adeptos da instituição. No ano seguinte, o clube organiza, no Complexo Balnear do Lido, o grande festival luso-espanhol de natação. A exemplo do que acontecera com as quermesses, o Nacional aposta em boletins e diverso material escrito, bem como na difusão de programas radiofónicos (o “Tempo Desportivo”), que haveriam de despertar curiosidade e adesão nos anos em que a rádio fazia espoletar revoluções. Em 1975, após a conquista do campeonato da Madeira, o Nacional passa a integrar o campeonato nacional de futebol da terceira divisão. Na época de 1977/1978 ascende à segunda divisão e em 1987/1988 ao escalão máximo do futebol, do voleibol e da natação masculina, regressando, em 1991/1992, à segunda divisão de honra na modalidade de futebol. No ano de 1993, o nacionalista Ricardo Fernandes é selecionado para participar nos Jogos Olímpicos de Barcelona, em badmínton. Um ano mais tarde, o Nacional sagra-se campeão nacional de basquetebol de masculinos e cadetes, o jovem atleta Cristiano Ronaldo ingressa no Nacional, e a equipa sénior de futebol mantém-se na segunda divisão de honra, descendo para a segunda divisão B em 1995/1996. Em 1999/2000, o Nacional regressa à segunda liga (a anterior divisão de honra) e, em 2001/2002, à primeira liga. Em 2003/2004, conquista a melhor classificação de sempre de uma equipa madeirense – o 4.º lugar, com 56 pontos –, garantindo a presença na primeira competição europeia do clube (taça UEFA), onde defrontou o Sevilha FC. Esta qualificação repete-se em 2006, ao classificar-se em 5.º lugar no campeonato nacional de futebol, defrontando e perdendo com o Rapid de Bucareste. Nesse mesmo ano, o atleta Filipe Besugo consegue a melhor participação portuguesa até então em ginástica artística masculina, nos Jogos Olímpicos de Atenas. Inaugura-se a Cidade Desportiva do Clube Desportivo Nacional no ano de 2007. Um ano depois, é a vez de a natação brilhar no panorama europeu, com o atleta Emanuel Gonçalves, que se destacou no Meeting de Berlim, ao estabelecer um novo recorde europeu nos 200 m mariposa (natação adaptada). Em 2009, em São Petersburgo, o Clube Desportivo Nacional ganha ao Zenit FC, um dos gigantes do futebol europeu, vencedor em título da taça UEFA e da Supertaça europeia. Ao vencer o clube russo, o Nacional qualifica-se para a fase de grupos da liga Europa defrontando o Werder Breman, o Atlético de Bilbao e o Áustria de Viena. O futsal dá os primeiros passos no Clube no início do séc. XXI, com presença, durante uma época, na terceira divisão nacional. Após regressar aos regionais, o Nacional ascende uma vez mais ao escalão máximo da competição na época de 2010/2011. Em 2010, o Nacional comemora um século de existência. O programa oficial para celebrar esta efeméride era composto por um jantar de gala; pelo espetáculo Lago dos Cisnes, da responsabilidade da Moscow Tchaikovsky Ballet  e da Orquestra Clássica da Madeira; pelo colóquio Desporto e Globalização, tendo como preletores José Manuel Paquete de Oliveira, Fernando Gomes, José Manuel Castanheira da Costa, Emanuel Medeiros, Rui Alves e Fernando Paula; e pelo lançamento do livro Nac100nal 1910-2010: Álbum do Centenário. Ao longo do seu primeiro século de vida, e passando pela direção de catorze presidentes, o Nacional viu surgir diferentes grupos de apoio: os Alvi-negros (1980), os Pretos-brancos (1980), a Força Alvi-negra (1983) e a Claque Feminina. Merecem ainda destaque muitos atletas internacionais que, durante os primeiros cem anos de vida do Clube, se salientaram nas mais variadas modalidades, como sejam José da Silva, Filipe Besugo, Fátima Freitas, Nuno Pereira, Ricardo Neves, Tiago Camacho, Rubina Andrade, Luís Pinto, Tomás Freitas, Mónica Freitas, Ricardo Fernandes, Paulo Franco, Emanuel Gonçalves e Fabiana Quintal.   Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 03.03.2018)

Sociedade e Comunicação Social

música

Os estudos sobre a música na Madeira parecem manifestar a forte ligação da Ilha à cultura europeia, com especial ênfase numa identidade marcadamente portuguesa, com traços de outras culturas, tais como a holandesa, a italiana, a espanhola, a inglesa, a alemã, a francesa, a brasileira e de outras nações que tiveram fortes relacionamentos económicos e culturais com Portugal e com a Madeira. Na verdade, a procura de uma identidade própria não se tem mostrado profícua, sendo consensual que muitos dos seus elementos considerados diferenciadores estão igualmente presentes noutros espaços portugueses ou europeus. É possível encontrar exemplos de elementos considerados até há pouco tempo como característicos de uma cultura própria da Madeira – instrumentos tradicionais, trajes, géneros musicais, entre outros –, que, de acordo com os conhecimentos posteriores, se conclui terem ido de outras regiões para a Madeira (ou terem sido inventados há menos de 100 anos, com o propósito de criar uma identidade regional). Entre o início do povoamento, no séc. XV, e o séc. XVIII, é pouco conhecida a história da música na Madeira, embora os escassos dados existentes pareçam indiciar que, tal como em Lisboa, a música foi principalmente relevante em atividades religiosas e palacianas. Foi o período do cantochão do Rito de Salisbury (e, posteriormente, do Rito Romano), da polifonia vocal renascentista e da música barroca de influência italiana. A criação de um teatro público terá acontecido no final do séc. XVIII e a sua atividade foi aparentemente muito intermitente. O início do séc. XIX foi marcado pela revolução liberal e pelo consequente declínio da música sacra. O ideário liberal incentivou o espírito associativista, consubstanciado na fundação de dezenas de clubes e de sociedades que organizavam concertos, executados por virtuosos, e bailes com as novas danças de salão influenciadas pelas modas dos salões dos centros europeus (valsas, quadrilhas, cotilhões, polcas e mazurcas, entre outras). Na transição do séc. XIX para o séc. XX, dá-se um novo movimento de difusão musical, tendo surgido um significativo número de grupos musicais amadores, tais como bandas filarmónicas, tunas e orfeões, que tornaram a prática musical uma atividade comum, inclusivamente nas classes sociais mais desfavorecidas. Esta fase de popularização da prática musical começou a decair na déc. de 1930, embora muitos dos grupos fundados neste período ainda existissem no séc. XXI. Nesta época, também se assistiu a uma importante reforma na música sacra, com o Motu Proprio de Pio X (1903), o qual deixou vestígios durante mais de 60 anos. O período do Estado Novo foi marcado pelas consequências da introdução dos fonogramas, da telefonia e do cinema, que vieram difundir a cultura americana. Foi a era das jazz bands e dos conjuntos, que passaram a constituir as novas formas de modernidade musical. Uma reação a este fenómeno foi a fundação de várias instituições que procuraram promover música “de qualidade”, tais como a Sociedade de Concertos da Madeira, a Academia de Música da Madeira, o Posto Emissor do Funchal e a Orquestra de Câmara da Madeira – antecessora da Orquestra Clássica da Madeira. Foi igualmente o tempo da fundação dos grupos de folclore e da promoção da cultura popular com propósitos turísticos e identitários. No período pós-revolução de abril de 1974, assistiu-se à reforma de várias estruturas culturais e educativas ligadas à música, sendo de destacar a adoção de importantes medidas que vieram facilitar a fundação de associações culturais de índole musical, bem como o rejuvenescimento de antigas coletividades, tais como bandas filarmónicas, coros, grupos de folclore e grupos de bandolins. Instituições como o Conservatório–Escola Profissional das Artes da Madeira e o então Gabinete Coordenador de Educação Artística funcionaram como os dois pilares educativos que permitiram o aumento do número de praticantes, bem como o desenvolvimento das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Do início do povoamento ao fim do Antigo Regime A música fez parte de várias atividades religiosas e palacianas desde o início do povoamento da Madeira. No domínio religioso, é plausível que, no seio de algumas festas litúrgicas – como as festividades respeitantes aos ciclos do nascimento e da morte de Cristo ou dedicadas à Virgem Maria –, se realizassem manifestações musicais ligadas a representações teatrais. Como refere o historiador Rui Carita, permaneceram reminiscências desses antigos autos, nomeadamente das “representações de Natal, com as recitações do Pensar o Menino e as entradas e cantares dos pastores com as ofertas” (CARITA, 2008, 13). Além de menções de atuações teatrais com música, existem igualmente referências documentais a missas cantadas na Madeira. Nos testamentos de Gil Eanes (1479) e de Rodrigo Anes (1486), e.g., alude-se à obrigação de celebração de missas cantadas. No testamento de Gil Eanes fala-se de uma missa cantada na igreja de Machico e no de Rodrigo Anes diz-se que no “dia do enterro lhe dirão oito missas, uma cantada com todo o ofício de ladainhas” (NASCIMENTO, 1933, III, 154-155). Embora não tenha sobrevivido repertório religioso desta época, o aristocrata russo Platon de Waxel, a primeira personalidade a escrever um esboço de uma história da música na Madeira, salienta que o rito seguido nas primeiras igrejas e conventos da Madeira deveria ser o mesmo que em Lisboa: o Rito de Salisbury. Este rito ter-se-á mantido na Madeira até ao início do séc. XVII, não tendo a Madeira acompanhado o sucedido em Lisboa, onde o rito havia sido abandonado em 1536 (WAXEL, 1948, 33). A música religiosa era também executada fora das igrejas, durante procissões religiosas, as quais foram regulamentadas por D. João II em 1483. Nas festas do Corpus Christi, nomeadamente, as confrarias de ofícios desfilavam em carros alegóricos onde se bailavam danças como a “mourisca”, levando o historiador Rui Carita a concluir que estes eventos deviam assemelhar-se mais a cortejos carnavalescos do que a procissões religiosas; entre os exemplos que sobreviveram ao tempo, encontra-se a “dança das espadas” da confraria dos ferreiros (CARITA, 2008, 13). No domínio da música palaciana, apesar da inexistência de partituras e de provas documentais com referência à prática musical, há indícios de que existiria no Funchal uma atividade musical deste género desde os primeiros povoadores. De facto, conhece-se poesia trovadoresca de personalidades madeirenses do séc. XV. Além disso, no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende (1516), é possível encontrar poemas de personalidades como João Gomes (?-1495), pajem e escudeiro do infante D. Henrique, que se fixou no Funchal e que viria a dar nome a uma das ribeiras da cidade; a sua produção poética foi de tal modo apreciada que lhe valeu a inclusão de poemas no cancioneiro de Resende e o cognome de “O Trovador”. Outros poetas madeirenses que constam do cancioneiro são Tristão Vaz Teixeira, identificado como filho do 1.º capitão de Machico, e João Gonçalves da Câmara, que terá sido o 2.º capitão donatário do Funchal. Segundo Rui Carita, o trovador mais importante da época viria a ser, no entanto, Duarte Pestana de Brito, quer pela quantidade, quer pela qualidade da sua produção poética. No início do séc. XVI, a música palaciana continuou a ter um papel preponderante no Funchal, principalmente pela ação de Simão Gonçalves de Câmara (?-1530), 3.º capitão donatário do Funchal, que governou a partir de 1508. Sendo músico e detentor de uma fortuna considerável à época, promoveu uma capela com cantores e tangedores, da qual Gaspar Frutuoso diz fazer “grandes partidos” (FRUTUOSO, 2008, II, 106). A qualidade da capela deveria ser de tal ordem que “competia com a de el-rei”, tendo como “mestre da capela Diogo de Cabreira, castelhano, mui destro na arte de canto de órgão e tal, que o próprio rei lho pediu para cantor para sua capela” (Id., Ibid., 103). Acompanhando o crescimento económico da Ilha, a situação musical religiosa melhorou no início do séc. XVI. O facto de o Funchal ter sido elevado à qualidade de diocese, em 1514, levou a que a atividade musical tivesse acompanhado esse novo estatuto. Assim, em 1518, os cantores da capela da Sé do Funchal, que seriam, até então, apenas quatro, passaram a oito por ordem do rei D. Manuel I, que mandou “criar mais quatro moços do coro”. Dois anos depois, D. Manuel I escreve uma carta, ordenando agora ao deão da Sé do Funchal, o mestre Nuno Cão, “que os cónegos e moços do coro saibam canto do organo [canto do órgão] para os domingos e festas se oficiar as missas com canto de organo [canto de órgão]” (WAXEL, Ibid.). Tendo em consideração esta fonte, é plausível concluir, tal como fez Platon de Waxel, que, no Funchal, a música religiosa era até então composta do mais simples cantochão, passando a partir dessa data a ser, numa base regular, de cariz polifónico. Em data incerta, talvez ainda durante a déc. de 1520, foi criado o cargo de organista na Ilha. A substituição do Cón. Gaspar Coelho (possivelmente o primeiro a ocupar esta função na Madeira) por Luís Mendes (?-1598), em 1554, é prova da existência desse cargo. O ordenado seria de 10.000 réis anuais, tendo o organista sido aumentado posteriormente com mais “dois mil réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho” (Id., Ibid.). Entretanto, as normas, mais rígidas, advindas do Concílio de Trento (1543-1554) não foram totalmente aplicadas: de facto, as interpretações teatrais dentro e junto das igrejas madeirenses não foram erradicadas. Em 1565, a chancelaria régia difundiu um alvará para todo o país, onde se proibia a utilização de máscaras na procissão do Corpus Christi e nas igrejas, parecendo corroborar as determinações do Concílio. Apesar disso, sabe-se que no último quartel do séc. XVI ainda se realizavam, “de dia e de noite”, atuações nas igrejas e ermidas, as quais causavam “muitos inconvenientes e escândalos”, segundo a opinião expressa nas Constituições do bispado do Funchal, aprovadas em 1578 pelo Bispo D. Jerónimo Barreto. No mesmo documento, exigia-se que as representações só fossem organizadas com “especial licença do prelado” (CARITA, 2008, 14). Este tipo de atuações seria frequente e estaria relacionado com atividades religiosas de cariz popular, tais como romarias. Gaspar Frutuoso descreve, por exemplo, a romaria de Nossa Senhora do Faial, na qual participavam cerca de “oito mil almas” e onde os peregrinos, vindos de outras zonas da Ilha, descansavam durante dois ou três dias. Neste período, os romeiros faziam “muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 2008, II, 52). Sendo estas manifestações religiosas de cariz mais popular, é plausível deduzir que se terá gerado algum conflito entre o bispado, que procurava seguir as orientações do Concílio de Trento, e as tradições religiosas já enraizadas na vida do povo. Em meados do séc. XVI, a fixação do bispo Jorge de Lemos, 4.º bispo do Funchal, na Madeira, onde foi o primeiro bispo a residir, coincidiu com um dos momentos mais marcantes da vida musical do séc. XVI. D. Jorge de Lemos era músico e, por isso, terá favorecido a prática musical, tendo inclusivamente levado para o Funchal um mestre de capela; este cargo foi oficialmente criado a 20 de setembro de 1556 por carta régia, tendo o mestre de capela a “obrigação de ensinar canto aos 12 colegiais do seminário, com o ordenado de 25 mil rs”. Na mesma data, também por carta régia, foi criado o seminário do Funchal, estando previsto o pagamento anual de 345 mil réis, sendo “45 mil réis para os mestres de gramática e do canto da cidade do Funchal” (WAXEL, Ibid., 34). Foi durante este período que se criou a primeira instituição dedicada ao ensino de música sacra na Madeira. No séc. XVII, houve alterações importantes no domínio religioso. A principal delas foi a introdução do Rito Romano na Madeira, por alvará datado de 1 de junho de 1629, substituindo-se, assim, o Rito de Salisbury. D. Filipe III de Portugal ordenou que se praticasse “o Ritual Romano no que toca no governo do coro, dignidades, cónegos e capitulares, e nos particulares que não for possível se deve conformar com o que se pratica na Sé de Lisboa” (WAXEL, Ibid., 33). Nesta altura, a Sé do Funchal recebeu dois órgãos: em 1613, Filipe II ofereceu um órgão à Sé do Funchal e, poucos anos depois, um “grande órgão”, que terá sido construído em Córdova, foi dado à mesma Sé (WAXEL, Ibid., 34; SILVA E MENESES, 1978, II, 416). Entre os organistas que sucederam, no séc. XVII, aos músicos Gaspar Coelho e Luís Mendes, conhecem-se o P.e Francisco da Cruz – que em 1664 tinha um ordenado de valor igual ao de Mendes (2000 réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho) – e o P.e Pascoal Ferreira que, em 1681, recebia 7000 réis em dinheiro, um moio e 20 alqueires de trigo e duas pipas de vinho. O repertório executado na Sé do Funchal incluía música polifónica de qualidade, referindo Platon de Waxel que “devia ser a melhor que então havia no reino”. Como prova da sua afirmação, o aristocrata russo argumenta que na Sé existia um livro de missas de um dos mais relevantes compositores portugueses da primeira metade do séc. XVII, Duarte Lobo, impresso em Antuérpia em 1639 (WAXEL, Ibid., 36) – trata-se, provavelmente, do Liber Missarum II. São também do séc. XVII as duas primeiras fontes musicais de obras polifónicas da Madeira de que se tem conhecimento. A primeira é pertença do Convento de S.ta Clara: trata-se de uma peça polifónica a quatro vozes (tiple, alta, tenor e baxa) que se encontra transcrita na frente de uma folha em branco de um livro de cantochão, provavelmente escrito na primeira metade do séc. XVII; a composição é anónima e tem como título Jesu Redemtor, sendo a obra polifónica mais antiga de que há registo na ilha da Madeira. A segunda fonte é propriedade da Sé do Funchal e contém partes de missas, salmos e hinos; é um fragmento de um livro de coro (ofícios e missas) copiado no séc. XVIII, cujo repertório é constituído, sobretudo, por polifonia seiscentista, ainda que algumas obras possam ser do final do séc. XVI. Os autores também não estão identificados; Manuel Morais comparou as composições da coleção com obras congéneres de autores portugueses não madeirenses, ativos entre a segunda metade do séc. XVI e finais do XVII, e não encontrou qualquer correspondência (MORAIS, 1998, 50-51). Pouco se sabe sobre os músicos ativos no Funchal neste período, para além do seu nome e cargo. Entre os mestres de capela da Sé do Funchal, conhecem-se os nomes do P.e Manuel de Almeida (em funções a partir de 1618) e do P.e Miguel Pereira (falecido em 1682); sabe-se, ainda, do Cón. Manuel Fernandes, professor de música no Funchal, e de Francisco de Valhadolid, músico madeirense que chegou a ser mestre no seminário arquiepiscopal em Lisboa, citado na Bibliotheca Lusitana e em Os Musicos Portuguezes de Joaquim de Vasconcelos. Francisco de Valhadolid foi o primeiro músico natural da Madeira que se sabe ter ocupado um lugar de destaque a nível nacional. Natural do Funchal, onde nasceu em 1640, foi discípulo do Cón. Manuel Fernandes em composição e, posteriormente, de João Alvares Frovo, em contraponto, em Lisboa. Aquando da sua morte, a 16 de julho de 1700, estaria a trabalhar na publicação de um livro sobre os Mysterios da Musica, assim Pratica como Especulativa, o qual ficou incompleto. Valhadolid deixou uma vasta obra, principalmente composta de missas polifónicas (a 6, 8, 14 e 16 vozes), salmos, responsórios, lamentações, um Miserere, uma ladainha e vários motetes a 3, 4, 7 e 8 vozes. No séc. XVII, as festividades religiosas madeirenses assumiram grande relevância artística. Em 1622, nomeadamente, realizaram-se importantes festas em honra de S.to Inácio de Loiola, de S. Francisco Xavier e do B.º Luís Gonzaga, as quais envolveram as principais formas de arte na Madeira à época: poesia, teatro, dança, música e artes figurativas. No documento, de autor anónimo, denominado Relaçam Geral da Festas que fez a Companhia de Jesús na Provincia de Portugal, na Canonização dos Gloriosos Sancto Ignacio, & S. Francisco Xavier Apostolo da India Oriental no Anno de 1622, existe um capítulo dedicado às cerimónias da Madeira, onde são narrados os acontecimentos festivos ocorridos entre 20 de junho e 31 de julho de 1622. Estes eventos, segundo Manuel Morais, não eram indignos, em fausto e diversidade, das “cerimónias que se representaram na capital do nosso largo Império seiscentista” (MORAIS, 2008, 29). Pela descrição das festas, é possível ter noção da grande diversidade de instrumentos e de danças que então existia – no que concerne a estas, o cronista refere danças com “oito salvagens, vestidos à inteiriça, todos cobertos de musgo”, “danças de marinheiros de barretes, e coletes vermelhos, e ceroulas até baixo”, uma “grave, e aparatosa dança, que em parte alguma do reino pudera sair melhor”, dança da mourisca, “dança de segadores”, “dança de moços pequenos feitos soldados”, danças de “ciganas”, de romeiros e de “meninos à mourisca” e “dança dos rios ou ribeiras de mais nome nesta ilha”. No que diz respeito aos instrumentos musicais, é de ressaltar a sua variedade, salientando o autor a realização de eventos musicais ao som de “frauta, e tamboril”, “trombeta bastarda”, “violas e rabequinha ao som dos quais cantavam algumas letras com muita melodia”, “pandeiro” e “alaúdes”, “castanholas” e “charamelas de cana”, “concertada música”, em que “13 moços […] tangiam todos instrumentos, violas, rabequinhas, pandeiros, cestos, e ginebra, e em quanto se ocupavam os de uma parte em cantar, dançavam os da outra ao redor do tambor, que no meio fazia com ele mil voltas”. Nestas festas participaram os melhores músicos sacros da altura, mencionando o cronista que se organizaram “solenes vésperas com o melhor da capela, e música da Sé, que também ao domingo cantaram a missa” (Id., Ibid., 25-29). O compositor António Pereira da Costa (1697?-1770), cónego e mestre de capela da Sé do Funchal, é o primeiro residente na Madeira a publicar peças musicais; fê-lo em Londres, em 1741, publicando Concertos Grossos, cujo título imita o da coleção de Arcangelo Corelli (1653-1713), 12 Concerti Grossi. O nome completo da obra do compositor português é Concertos Grossos com Doys Violins, e Violão de Concertinho Obrigados, e Outros Doys Violins, Viola e Orgão, e constitui um conjunto análogo ao de Corelli. Por volta de 1755, é impressa em Londres uma nova coletânea de composições de Pereira da Costa para guitarra, desta vez com o título em inglês: XII Serenatas for the Guitar. Estas serenatas parecem trair também a influência de Corelli, que agrupou as suas composições em conjuntos de 12 obras: 12 Sonatas a Tre, 12 Sonatas da Camera a Tre, 12 Concerti Grossi, etc. Segundo Rui Carita, ambas as composições são dedicadas ao morgado João José de Vasconcelos Bettencourt (1703-1766), irmão mais velho da mercadora D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789). As composições de António Pereira da Costa são, na Madeira, os primeiros exemplos conhecidos de um novo período marcado por modelos musicais italianos, à semelhança do que aconteceu em Lisboa na primeira metade do séc. XVIII, por intervenção de D. João V. Neste reinado, por volta de 1720, contratou-se o mestre da Cappella Giulia do Vaticano, Domenico Scarlatti, para mestre da Capela Real, bem como um conjunto de outros músicos italianos, que contribuíram para uma progressiva italianização da música portuguesa. De facto, em 1728, a orquestra da Capela Real era constituída principalmente por estrangeiros, sendo quase metade deles italianos: entre os 13 músicos que constituíam a orquestra – sete violinistas, dois violetistas de arco, dois violoncelistas e um contrabaixista – havia seis italianos (um genovês, dois florentinos e três romanos), um francês, dois boémios, três catalães e um português. Para garantir o ensino adequado dos jovens músicos portugueses, D. João V criou, em 1713, um seminário especificamente destinado a esse efeito, o qual viria a ser o seminário patriarcal, instituição que formaria a maior parte dos músicos de Setecentos e que seria decisiva para a replicação dos modelos italianos em Portugal. Além das serenatas e dos Concertos Grossos, Pereira da Costa dedicou-se a cantatas e sonatas, sendo esse facto indício da existência de um repertório marcadamente barroco, de carácter instrumental, em contraste com a polifonia vocal renascentista, de cariz contrapontístico. A Gazeta de Lisboa de 2 de junho de 1750 faz menção do cultivo de cantatas e de sonatas, referindo a participação do compositor nas festividades de N.a S.ra do Monte no Funchal. Existem registos dos vencimentos dos músicos participantes nas festividades de N.a S.ra do Monte. Num livro de receitas e despesas do Convento da Encarnação dos anos de 1767 e 1768 faz-se referência ao salário dos “pretos das xaramelas” por tocarem nas festas de domingo do Senhor, de N.a S.ra do Monte e de S.ta Clara (PEREIRA, 1989, II, 590). No Convento de S.ta Clara, existem também assentamentos de pagamentos, respeitantes ao mesmo período, “aos moleques que tocaram caixa e charamela”, ou simplesmente a “moleques da charamela” (CARITA, 2008, 16). Os gastos com os músicos de capela da Sé do Funchal encontram-se assinalados em documentos de despesa da Provedoria e da Junta da Real Fazenda do Funchal. Tal como acontecia noutras catedrais católicas, a Sé do Funchal tinha uma capela em que os cargos eram os de subchantre, de capelão cantor ou de moço do coro, de mestre de capela e de organista, e os pagamentos realizavam-se em função dos cargos musicais ocupados, como o comprova a folha de pagamentos referente à despesa de 1775 (ver Quadro 1). [table id=107 /] O subchantre dirigiria, provavelmente, o coro de cantochão dos moços de coro, sendo acompanhado pelo organista. O mestre de capela deveria ser responsável pela música polifónica, com vozes e instrumentos. Com base nas despesas registadas no Livro de Assentamento da Capitania, supõe-se que o número de moços de coro, em 1775, seria menor do que em 1518, quando D. Manuel aumentou o número de moços de coro de quatro para oito; de qualquer modo, este número chegaria para cumprir com as funções musicais. Segundo o musicólogo Manuel Morais, na Sé do Funchal encontravam-se 11 livros de cantochão do séc. XVIII e de inícios do séc. XIX, manuscritos e impressos. No âmbito das festividades religiosas, é de mencionar que no séc. XVIII se mantiveram as representações teatrais junto das igrejas. Segundo Rui Carita, existem referências a que estas atuações terão continuado a decorrer até meados do séc. XVIII, inclusivamente dentro de igrejas e de conventos. Em 1751, uma edição no campo dos estudos sobre a tísica viria a influenciar os tempos posteriores na Madeira, tendo consequências também no domínio da música. Neste ano, é publicado um artigo de Thomas Heberden (1703-1769), em Philosophical Transactions, que descreve o clima da Madeira como propício à cura de doenças infectorrespiratórias (a saber, a tuberculose). Influenciados por esta “descoberta” da medicina, centenas de indivíduos da aristocracia europeia começam a passar longas temporadas na Madeira, de modo a procurarem uma cura para si ou para algum familiar próximo. Surge, assim, o turismo terapêutico e são construídas unidades hospitalares e estabelecimentos hoteleiros. Por conseguinte, a influência da alta aristocracia europeia começará a sentir-se na Madeira de forma mais intensa ao longo de mais de um século, estendendo-se ao plano musical, o que virá a contribuir para o estabelecimento de um Funchal de cariz mais cosmopolita do ponto de vista cultural. A literatura estrangeira, principalmente os relatos de viagens, fica muito em voga a partir de meados do séc. XVIII. Grande parte do conhecimento que existe sobre a atividade musical madeirense, tanto erudita como popular, advém das descrições de estrangeiros, sobretudo inglesas. A título de exemplo, em 1777 é publicado em Londres um livro de George Foster – um alemão educado em Inglaterra que acompanhou o capitão James Cook na sua segunda viagem aos “mares do sul”, tendo passado no Funchal em 1772 –, onde se refere que, na Madeira, “o camponês […] é geralmente aliviado com canções, e ao serão reúnem-se vindos de várias cabanas para dançarem ao som da música sonolenta de uma viola”. Em 1792, a visitante Maria Riddel publica, em Edimburgo, um texto referente ao ano de 1788, no qual menciona que os madeirenses “são muito musicais e extremamente galantes. Raramente se passa uma noite na Madeira sem se ouvir serenatas de violas e bandolins em qualquer parte da rua” (MORAIS, 2008, 32). Ainda assim, as narrações de estrangeiros sobre a Madeira são raras no séc. XVIII, começando a ser mais frequentes no séc. XIX. O maior acontecimento musical da segunda metade do séc. XVIII foi a fundação do Teatro Grande ou Casa da Ópera. Como refere o historiador Valdemar Guerra, “Casa da Ópera”, “Casa da Comédia”, “Teatro Grande” ou “Teatro Funchalense” são diferentes designações para o mesmo edifício. Este foi o primeiro espaço de atuações públicas de relevo do Funchal; construído em 1777, foi considerado alguns anos mais tarde como a maior casa de espetáculos de Portugal depois do teatro nacional de São Carlos, tendo sido demolido em 1833 por razões militares, sob as ordens do governador Álvaro de Sousa Macedo. As atividades deste teatro contam principalmente óperas, representações cómicas, danças e entremezes. (salas de teatro) A Casa da Ópera surgiu por iniciativa de dois negociantes, José Rodrigues Pereira e Miguel dos Santos Coimbra. Ambos haviam tido uma pequena “Casa da Ópera”, a qual sofreu um violento incêndio. Devido à necessidade de divertimento da população funchalense e à falta de tradição teatral “digna de relevo”, os empresários iniciaram este novo projeto na expectativa de lucros imediatos. Apesar de a sua construção ter sido concluída no início de 1777, a Casa da Ópera só esteve em atividade até maio, altura em que foi noticiada a morte de D. José e se entrou num período de luto de um ano. Este espaço de tempo acabou por ter uma história conturbada, com vários problemas financeiros que afetaram o cumprimento de temporadas operáticas com uma periodicidade normal. Por ter sido o primeiro espaço cultural de grande dimensão da Madeira, o Teatro Grande dispôs-se a ser um local de fortes confrontos, nomeadamente no plano dos costumes. Por exemplo, encontram-se várias notícias do primeiro quartel do séc. XIX que discutem a moralidade das récitas ali realizadas, chegando a considerar que a Casa da Ópera era um espaço pouco próprio para levar senhoras; ao longo do séc. XIX, a situação repete-se em outros teatros, havendo designadamente notícias de que o Teatro Concordia era “foco da imoralidade e das ofensas vilãs” (CARITA e MELLO, 1988, 41). Supõe-se que, na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, as bandas militares terão começado a ganhar importância na Madeira, à semelhança do que aconteceu em Lisboa. No entanto, as primeiras referências a esse facto datam de 1807, desconhecendo-se qualquer alusão à presença das bandas na região no séc. XVIII. Entre os anos de 1807 e 1824, há menções de pagamentos de pão com o objetivo de municiar os “pífanos e tambores de milícias”, o que indicia existirem músicos nas tropas milicianas da Madeira, pelo menos desde esta época; a referência mais antiga que se conhece é de 6 de junho de 1807 e a despesa paga foi no valor de 430$320 réis. Os salários não eram anuais, podendo ser recebidos várias vezes ao ano, em alturas diversas: sabe-se de ordenados pagos em março, no “dia de Corpo de Deus”, “nos meses de julho e agosto”, não havendo, aparentemente, datas predefinidas e regulares. Entre 1815 e 1819, começa a especificar-se o pagamento dos regimentos de milícias da Calheta e do Funchal, e já não da “Ilha” apenas. A qualidade da banda regimental do Funchal de então não é fácil de aferir. O britânico Robert Steele, tenente da Marinha Real inglesa, resumia, no seu diário de viagem, redigido no verão de 1809, o que considerava ser a fraca qualidade daquele contingente musical: “A parada militar é geralmente frequentada pelos oficiais mais graduados, e a banda, tendo muitos encantos, envergonha as tropas portuguesas, que são más em todas as suas atividades” (MORAIS, 2008, 33). O declínio da música sacra e a era dos clubes, das sociedades e da música doméstica A prolongada série de revoluções e de contrarrevoluções ocorridas no período de 1820 a 1851, no contexto da implantação do regime liberal, teve graves efeitos no domínio musical de cariz religioso. A extinção das ordens religiosas, em 1834, e o confisco dos seus bens provocaram o declínio da estrutura religiosa madeirense, algo que se repercutiu na música sacra. Apesar da situação conturbada, houve neste período um conjunto de músicos sacros, muito influenciado por músicos formados na escola de música do seminário patriarcal de Lisboa (extinta em 1834), que deixou um legado musical relevante. Uma das personalidades influentes deste período foi D. Fr. José Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) que, ainda antes da instauração do regime liberal, por volta de 1812, foi para a Madeira acompanhado de alguns músicos, entre os quais se destacam José Joaquim de Oliveira Paixão (?-1833) e João Fradesso Belo (1791-1862), discípulo de Fr. José Marques e Silva no seminário patriarcal. Além de ser músico e de proteger a música sacra, José Ataíde compôs algumas obras que foram cantadas em igrejas madeirenses, tais como uma missa de Requiem e o motete Sub Tuum Praesidium, ambas a quatro vozes mistas. José Joaquim de Oliveira Paixão era compositor, organista e violinista. Fez parte da orquestra do Teatro Grande como violetista e foi professor de música no seminário. Segundo o investigador João Rufino da Silva, apesar de ter falecido em 1833, as obras musicais de José de Oliveira Paixão ainda eram cantadas nas igrejas madeirenses quase 150 anos depois da sua morte – ou, pelo menos, até aos anos 70 do séc. XX –, principalmente os responsórios de matinas na Semana Santa. Estas obras eram cantadas a duas e a três vozes masculinas e acompanhadas a órgão, orquestra de cordas – 1.º e 2.º violinos, violoncelo e contrabaixo –, flauta e clarinete em si bemol. João Fradesso Belo foi professor no seminário do Funchal e é apontado como tendo ocupado o cargo de mestre de capela da Sé, apesar de se ignorar os moldes em que esta dignidade era neste período exercida. Sabe-se igualmente pouco sobre a sua produção musical, embora se tenha conhecimento de que compôs uma Ave-Maria “muito cantada na Madeira” (SILVA, 2006, 191). Segundo Platon de Waxel, Fradesso Belo teve um papel importante no plano educativo, visto que deixou dois discípulos de grande valor: Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858) e António de Melo, este último considerado pelo aristocrata russo, em 1869, como “o único compositor de música sacra hoje existente do Funchal” (WAXEL, 1949, 205). Um músico sacro muito importante deste período foi António Maria Frutuoso da Silva, que terá chegado ao Funchal no início de 1837. Num anúncio no periódico A Flor do Oceano, de 8 de janeiro de 1837, Frutuoso da Silva apresenta-se como “professor de música, vindo recentemente da cidade e corte de Lisboa”, propondo-se ensinar “piano, rabeca, e cantoria”. Era antigo cantor na Sé patriarcal de Lisboa, tendo fundado e dirigido no Funchal, entre 1840 a 1848, uma sociedade de concertos (Id., 1948, 36). Entre as suas composições sacras estão uma Missa a Grande Instrumental, um Asperges Me (1848) e um Ò Salutaris (1848). Waxel menciona ainda a existência de outros músicos “que escreveram algumas pequenas composições sacras”: Fr. Manuel Gaspar, o Cón. Libório José Furtado, o P.e Barros, José Justiniano da Silveira (?-1864), o P.e António Francisco Drumond e Vasconcelos (?-1864), o P.e José Maria de Faria e Eduardo Maria Frutuoso da Silva (Id., 1948, 35). Se o ideário liberal oitocentista conduziu, por um lado, ao declínio da música sacra, incentivou, por outro, o espírito associativista, tendo sido criadas várias coletividades em Portugal neste período, entre as quais algumas sociedades de concertos de amadores. Em 1822, um dos músicos mais próximos dos ideais liberais, João Domingos Bomtempo (1775-1842), fundou em Lisboa a Sociedade Philarmonica, seguindo o modelo da sociedade congénere londrina fundada em 1813, tendo a instituição portuguesa sobrevivido até 1828. O novo modelo de sociedades de concertos começado em Inglaterra e copiado por Bomtempo em Lisboa foi igualmente seguido no Funchal: parte da elite madeirense foi influenciada pelo novo ideário, tendo surgido no séc. XIX um significativo conjunto de sociedades e instituições privadas com o propósito de promover a organização de concertos ou de entretenimentos com a participação de músicos (e.g., bailes). Desta forma, após um período de alguma instabilidade política, vivida na déc. de 1820, são constituídos, nos anos 30, pelo menos três clubes e uma sociedade. Tem-se conhecimento da fundação do Clube União – o qual terá tido curta duração, havendo poucos dados sobre a sua atividade –, em 1836, e do Clube Inglês, que existiu durante mais tempo, estando ainda em atividade e organizando bailes na déc. de 1850. Em 1838, surge a Sociedade Harmonia, destinada à prática e à fruição musicais (realiza, nesse ano, uma récita no Teatro do Bom Gosto). No ano seguinte, é fundado um dos clubes madeirenses mais importantes do séc. XIX e o de maior longevidade, o Club Funchalense; esta associação era financiada por algumas das principais famílias nacionais e estrangeiras a residir na Madeira e tinha como um dos seus propósitos principais a promoção de concertos de música vocal e instrumental, embora organizasse sobretudo bailes; de origem anglo-saxónica, o nome desta coletividade acusa a influência de estrangeiros residentes na Madeira, principalmente ingleses. O Club Funchalense e a Sociedade Philarmonica – cujo nome indicia a influência da sociedade homónima de Bomtempo – são as instituições que, durante a déc. de 1840, mais frequentemente publicitam concertos ou bailes nos periódicos madeirenses. Não se encontram referências à organização de concertos musicais por parte do Club Funchalense; de qualquer modo, é provável que neste clube houvesse momentos musicais informais, principalmente em redor do piano, visto que um dos seus primeiros presidentes, Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), era pianista (as suas composições para piano chegaram a ser editadas em Nova Iorque, em 1830). Por sua vez, a Sociedade Philarmonica era uma autêntica sociedade de concertos de amadores. Esta associação foi fundada por António Maria Frutuoso da Silva em 1840; a sua atividade ter-se-á prolongado até 1848. A criação da Sociedade Philarmonica tinha como objetivos formar novos músicos, por um lado, e promover espetáculos musicais em “serões benefecientes, festejos patrióticos e a acompanhar músicos distintos como o violinista Agostinho Robbio, o machetista Candido Drummond de Vasconcellos, o clarinetista Caetano Domingos Drolha e o pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca”, por outro (CARITA e MELLO, 1988, 39). Na segunda metade do séc. XIX, proliferam as sociedades de concertos e os clubes que incentivam a prática musical. Sabe-se da existência, em 1850, da Sociedade Aglaia, que fomentaria a realização de bailes, o que se depreende do facto de o pianista e compositor Duarte Joaquim dos Santos ter produzido uma polca para piano dedicada a esta sociedade, cujo título era o próprio nome da coletividade: Aglaia. Em 1855, há referências à fundação do Clube Recreativo, embora nada se saiba sobre o seu funcionamento. A 30 de março de 1871 é fundada a Sociedade Recreio Literário dos Artistas Funchalenses; esta associação dispunha de uma orquestra que começou a funcionar em finais de abril, princípios de maio, “com instrumentos de fôlego e cordas” (FREITAS, 2008, 413). Um dos músicos mais empreendedores na organização de coletividades deste período foi o violinista e maestro Agostinho Martins (1841-1909). Ao longo da sua carreira musical, este artista funchalense fundou várias instituições, entre as quais a Academia Marcos Portugal, a Sociedade de Concertos Funchalenses e a Filarmónica Restauração de Portugal. A par da criação de sociedades e clubes, desenvolve-se no Funchal um novo modo de sociabilidade: os convívios musicais em salões privados. Este tipo de prática musical doméstica, uma moda importada de França, começa a surgir em Portugal pelo menos na segunda metade do séc. XVIII. A emergência de um grande repertório de modinhas neste período é resultado desta nova forma de convivência urbana; neste âmbito, cabia principalmente à mulher a função de entretenimento doméstico através do canto, do piano e de instrumentos de corda dedilhada. Algumas famílias e personalidades madeirenses ficaram conhecidas pelos serões requintados que organizavam nos seus salões, onde entre “contradances, polcas e as valsas se chegava às tantas da manhã” – exemplo disso são a “ilustre família Gordon” e D. António da Câmara Leme, com um teatro no seu palácio (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Nos saraus, a música para canto e piano – principalmente árias de ópera – ocuparia um lugar especial, sendo uma das formas de entretenimento mais habitual. Apesar de a cidade do Funchal ter ficado, na déc. de 1830, sem um teatro lírico de grandes dimensões, a prática do repertório de influência operática ter-se-á mantido ao longo de todo o séc. XIX, sendo vários os testemunhos que comprovam esta afirmação – e.g., em 1835, numa receção ao futuro governador civil das “possessões inglesas na Índia”, faz-se referência à execução de “árias, duetos, e romances” acompanhados ao piano por Duarte dos Santos (A Flor do Oceano, Funchal, 18 out. 1835, 4). Juntamente com a prática da música vocal, verificou-se um aumento da importância do piano, da viola e do machete, existindo diversos documentos que confirmam a presença destes instrumentos no quotidiano doméstico e a sua boa execução por madeirenses. Um dos maiores músicos madeirenses deste período foi o compositor e intérprete de machete Cândido Drummond de Vasconcelos. São escassas as informações sobre este músico, pelo que se torna difícil traçar a sua biografia. Como instrumentista de machete, há notícias da sua atividade no Funchal a partir de 1841; foi autor de uma coleção de música manuscrita, de 1846, editada pelo musicólogo Manuel Morais, a qual é constituída por um repertório de elevada qualidade, composto principalmente por valsas, temas e variações, quadrilhas e polcas. Conhecem-se ainda outros intérpretes de machete e de viola, entre os quais se destacam António José Barbosa (1822-1899) e Manuel Joaquim Monteiro Cabral. Entre os pianistas mais relevantes deste período são de vincar os nomes de João Fradesso Belo (1792-1861), Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), Duarte Joaquim dos Santos (1801-1855) e António José Bernes (?-1880). João Fradesso Belo foi o primeiro compositor para piano na Madeira, tendo produzido música de salão, da qual se conhece uma valsa. Este músico terá ido para a Madeira em 1812, em conjunto com outros músicos, por intermédio do bispo José Joaquim de Meneses e Ataíde, tendo residido no Funchal até ao final da sua vida. Fradesso Belo foi discípulo de Frei José Marques, em Lisboa; Ernesto Vieira refere que o músico terá estudado no seminário patriarcal. Ao longo da sua vida na capital madeirense, João Fradesso Belo tornou-se um músico célebre, sendo mestre de capela da Sé e professor no seminário da cidade. Duarte Joaquim dos Santos foi, igualmente, um dos pianistas mais importantes do Funchal no segundo quartel do séc. XIX, tendo residido nesta cidade desde a déc. de 1840, provavelmente, até à data da sua morte a 24 de maio de 1855. Segundo Rui Magno Pinto, Santos afirmou-se em Londres como compositor prolífico, tendo publicado em editoras como a Payne & Hopkins, a R. Cocks & Co., a Jeffreys & Co.; nos catálogos, estão registadas cerca de 60 peças suas. Entre as suas obras publicadas encontram-se, na British Library, peças para piano a duas e a quatro mãos – quadrilhas, valsas, divertimentos –, transcrições de árias de ópera para piano e uma peça sacra – Alma [Redemptoris Mater] – para coro e órgão. A Biblioteca Nacional dispõe também de algumas quadrilhas da sua autoria, as quais foram publicadas em Portugal na Lithografia Armazem de Musica da Casa Real. O pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca é exemplo de um compositor pivô que acompanhou o crescimento da importância das danças de salão no quotidiano madeirense. Assim, se ainda cultivava, no início do séc. XIX, o género sonata, passa progressivamente a dedicar-se a danças de salão, tendo sido um músico pioneiro na composição de valsas e de cotilhões para piano. Finalmente, o pianista António José Bernes foi um conceituado compositor, professor de piano e maestro. Existem poucas referências à sua formação, mas é provável que tenha estudado primeiramente no Funchal, com Ricardo Porfírio d’Afonseca, e mais tarde em Viena e em Nápoles, como nota Platon de Waxel, que o considerava “o único compositor que merecia, até certo ponto, este nome na Madeira” à época (WAXEL, 1948, 35). No Funchal, Bernes foi influente como professor de piano: entre as suas alunas, realce-se Maria Paula K. Rego, uma das pianistas funchalenses mais ativas em saraus de beneficência na segunda metade do séc. XIX. Do seu repertório, chegaram aos nossos dias uma valsa incompleta (Le Diamond) e Il Sogno Amoroso a Nice, com um poema sobre os enganos do amor. Os três instrumentistas compuseram música de salão, seja para piano, seja para viola ou para machete; é possível identificar um repertório destes músicos destinado a saraus musicais privados e constituído tanto por valsas, quadrilhas e polcas, como por temas e variações. Nos saraus musicais no Funchal não atuavam apenas portugueses, mas também visitantes estrangeiros. Em 1853, e.g., a visitante Isabella de França descreve, no seu livro Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, um convívio organizado por uma família alemã, em que foi “um verdadeiro regalo ouvir” a anfitriã cantar uma ária “com o marido a acompanhá-la ao piano” (FRANÇA, 1970, 170-171). Nesse sarau participaram pessoas de várias nacionalidades, o que demonstra a importância destes encontros para os estrangeiros que ficavam longas temporadas na Madeira. Ao longo do séc. XIX, a disposição do interior das casas acompanhou a mudança de costumes causada por este novo tipo de sociabilidade urbana, e começaram a surgir novas divisões, como salões de música, as quais eram destinadas a festas e saraus dançantes; nestes compartimentos, os tetos em estuque eram decorados com motivos musicais. Alguns dos salões madeirenses tinham excelentes condições para convívios musicais domésticos, estando ao nível das melhores salas privadas europeias, como o testemunham os relatos de visitantes estrangeiros da época: nomeadamente, em meados do séc. XIX, uma das aristocratas que visitou a Madeira, ao descrever um salão de uma casa onde decorria um baile, referia que este “rivalizava com os de Paris e Londres, tendo mesmo uma galeria para a orquestra” (NASCIMENTO, 1933, III, 98). Na Madeira, assiste-se a um ganho de importância da mulher como dinamizadora de salões nobres, sendo costume as senhoras organizarem festas nos seus salões privados, em que, quer as anfitriãs, quer as convidadas demonstravam os seus dotes, cantando ou tocando piano. Apesar de não serem públicos, alguns desses eventos são divulgados na imprensa periódica do Funchal. Enquanto, no plano privado, os saraus domésticos constituíram o tipo de atividade mais comum, no plano público os eventos de cariz musical mais representativos foram, provavelmente, os bailes e saraus de beneficência, os quais eram frequentemente organizados por clubes ou sociedades. No caso dos bailes, é importante referir que se tratava de iniciativas de convívio social de requinte na sociedade funchalense, em que os participantes vestiam a rigor e em que os anfitriões preparavam luxuosamente as salas de dança. Assim, é natural que a música também acompanhasse o primor exigido pelo acontecimento, pelo que os bailes seriam as ocasiões da vida social em que se tocaria a música mais elegante da época, com o maior número e a maior variedade de instrumentos, seguindo a moda então em vigor nos principais centros europeus. Entre as orquestras que tocavam nos bailes no terceiro quartel do séc. XIX, conhecem-se a Orquestra de Augusto Miguéis, da qual existe repertório respeitante ao período compreendido entre 1865 e 1884, e a de Anselmo Serrão (1846-1922), que tocou na Orquestra do Teatro Esperança. As orquestras eram de pequena dimensão. Os arranjos do repertório documentado estavam destinados à seguinte disposição instrumental: cordas (violino 1, violino 2, baixo), sopros de madeira (flauta ou outavino e clarinete) e sopros de metal (cornetim, trompas e barítono). A iniciativa dos saraus de beneficência partia, muitas vezes, de comissões de senhoras que aproveitavam o tempo livre para se dedicarem à caridade. Numa época em que, na Madeira, entretenimentos como o teatro eram considerados moralmente impróprios para mulheres, os saraus de beneficência constituíam uma das poucas oportunidades para aquelas exibirem os seus talentos musicais em público. Encontram-se relatos de espetáculos de beneficência no primeiro periódico madeirense, O Patriota Funchalense. Os motivos de beneficência eram variados: enquanto os primeiros eventos deste tipo da déc. de 1820 são realizados em prol de artistas, a partir da déc. de 1830 há atuações cujas receitas são arrecadadas em proveito do hospital e dos enfermos. Além de exibições musicais para apoio de artistas e de doentes, encontram-se também concertos cujos lucros revertem em favor dos “atormentados pela fome” (CARITA e MELLO, 1988, 40). A importância destes eventos era tal que os estatutos da Sociedade Philarmonica referiam, aquando da sua criação, em 1840, que um dos principais objetivos era o de atuar em serões beneficentes. Deste modo, é normal que, na déc. de 1840, existam diversas notícias, em variados periódicos da época (), a concertos de beneficência no Funchal. Na déc. de 1850, há notícia de vários saraus de beneficência, cujas descrições pormenorizadas permitem saber como decorria um evento deste género. Os saraus organizados no Funchal pela ilustre cantora madeirense Júlia de Atouguia de França Neto, entre 1854 e 1861, foram postos em evidência pela imprensa. Neste período, Júlia de França Neto realizou 10 concertos de beneficência, os quais se destinavam a suprir as necessidades dos pobres e desfavorecidos. Estas iniciativas de maternidade social intensificam-se na déc. de 1860, altura em que uma das principais promotoras destes convívios musicais passa a ser Maria Paula Rego. A participação de estrangeiros nestes saraus deveria ser muito habitual, encontrando-se na imprensa periódica algumas notícias de saraus organizados conjuntamente por senhoras inglesas e portuguesas. Como impulsionadora destes saraus, merece ainda destaque Amélia Augusta de Azevedo. Nascida em 1840, foi uma das mulheres pioneiras no domínio da composição musical na Madeira. Estudou no Conservatório de Música de Lisboa e, segundo Rui Magno Pinto, “possivelmente no Conservatoire National de Musique et de Declamation [Conservatório Nacional de Música e de Declamação] em Paris (ou alguma das suas sucursais)”. Entre as suas composições, contam-se Alma Minha (sobre a poesia de Camões), Le Regret, Paris Russophile e a polca-mazurca Recordações de Cintra (PINTO, 2008, 9). As sociedades, os clubes e as comissões de senhoras tinham salões próprios para o desenvolvimento das suas atividades, os quais se adaptavam a espetáculos de pequenas dimensões e de cariz amador. No entanto, para eventos de maior projeção e com artistas profissionais, foram construídos vários teatros no período pós-revolução liberal, os quais foram os locais privilegiados dos concertos públicos. Entre os muitos espaços existentes no Funchal destacam-se – antes da construção do Teatro D. Maria Pia, que passou a ser a referência no final do séc. XIX – o Teatro do Bom Gosto, a sala da Escola Lancasteriana, o Teatro Prazer Regenerado, o Teatro da Concórdia, o Teatro Tália e Marte e o Teatro Esperança. Entre estas salas de concerto, a sala da Escola Lancasteriana ocupa um lugar de relevo, tendo sido um dos mais importantes pontos de atuação dos virtuosos que visitaram a Madeira. A título de exemplo, mencione-se que o violoncelista César Augusto Cazella, que se apresentava como “violoncelista particular do rei da Sardenha”, atuou na sala da Escola Lancasteriana entre dezembro de 1850 e janeiro de 1851, quase sempre acompanhado ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. O violinista Agostinho Robbio – que surgia como “discípulo distinto do imortal Paganini, por quem foi premiado com a sua própria rabeca e medalha de honra” – também atuou neste espaço entre fevereiro e maio de 1850 (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Foi igualmente na Escola Lancasteriana que a conceituada intérprete madeirense Júlia de Atouguia de França Neto realizou, a 28 de dezembro de 1854, um concerto em favor dos pobres, o primeiro de uma série de espetáculos de beneficência que decorreram ao longo desta década; a intérprete foi acompanhada ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. Até 1873, ano em que deixa de haver notícias sobre a atividade musical nesta sala, vai havendo sempre virtuosos a atuar neste espaço: o flautista Daniel Imbert, o violinista Charles Elliot, o contrabaixista Arthur F. Reimhardt, o pianista brasileiro Hermenegildo Liguori, que tocou como solista, a cantora Nelida Martinon, o violinista Ernesto Mascheck, os irmãos Croner. Todos estes músicos apresentaram repertórios virtuosísticos constituídos por fantasias sobre motivos de óperas, variações, árias com variações, temas e variações, concertos ou duetos brilhantes. Em 1859 é fundado o Teatro Esperança, que passou a ser o local de concertos mais importante do Funchal até ao aparecimento do Teatro D. Maria Pia, em 1888. Este espaço recebeu músicos virtuosos de projeção internacional como a cantora Anna Bishop, que ali realizou alguns concertos acompanhada pelo pianista e vocalista Charles Lescelles, e companhias operáticas como a Companhia Dramática Italiana, que trouxe à Madeira as cantoras Dejean e Sauzin e o tenor Verdini. O diretor de orquestra da Companhia Dramática Italiana era Francisco Vila y Dalmau, que viria mais tarde a instalar-se permanentemente na Madeira e a ser o maestro mais importante do Funchal no último quartel do séc. XIX; esta companhia de cantores terá produzido, na íntegra, várias óperas italianas famosas. Finalmente, é imprescindível salientar a enorme influência das bandas regimentares neste período. Como refere o musicólogo Rui Magno Pinto, a atividade das bandas regimentais incluía atuações em dias festivos régios e exibições em concertos públicos em praças e jardins funchalenses, em festividades e procissões religiosas, no teatro e em bailes. Contudo, o seu trabalho ia para além do exercício de funções próprio a uma banda – na realidade, os regentes e músicos ocuparam também lugares de relevo enquanto solistas, compositores, regentes de agrupamentos musicais diversos e professores. A qualidade das diversas bandas regimentares presentes no Funchal neste período (tais como o Regimento de Infantaria n.º 7, o Batalhão de Infantaria n.º 11 e a Banda de Caçadores n.º 12, a primeira a estar sediada na Madeira, a partir de 1862) levou certamente ao surgimento de filarmónicas civis. A constituição destes grupos musicais foi realizada à imagem das bandas regimentares, normalmente formadas por iniciativa popular, mediante o mecenato de um nobre ou burguês ou como resultado da associação de profissionais de uma mesma atividade. Segundo Rui Magno Pinto, a primeira coletividade deste tipo surgiu na Madeira em 1844, embora se desconheça o seu nome, sendo descrita como uma “banda de curiosos”. A 18 de fevereiro de 1850 foi fundada a Filarmónica Artístico Funchalense, conhecida como Banda Municipal do Funchal. Entre 1859 e 1860 surge a Filarmónica Recreio Artístico Funchalense, ativa até finais do primeiro quartel do séc. XX (PINTO, 2011, 134). A importância das filarmónicas civis crescerá nas décadas seguintes. Até ao primeiro quartel do séc. XX irá surgir um número elevado destes agrupamentos em quase todos os municípios da Madeira, num fenómeno de popularização da música que atingirá o seu cume na déc. de 1930. A popularização da prática musical na transição do século XIX para o século XX Entre 1870 e 1930 assiste-se à emergência de dezenas de grupos musicais amadores de grande dimensão um pouco por toda a Ilha. Este foi um fenómeno incomum, que revolucionou por completo a prática musical na Madeira. A partir da déc. de 1870, com especial impacto a partir de 1880, surgiram na Madeira muitas bandas filarmónicas, tunas de cordofones, grupos corais e orquestras sinfónicas, constituídos maioritariamente por músicos amadores. Alguns agrupamentos teriam perto de 100 elementos, segundo notícias da época. Em poucas décadas, desenvolveu-se na Madeira um extraordinário movimento de democratização musical, em que parte apreciável da população passou a integrar grupos musicais. As causas que estão na origem de uma mudança desta magnitude são várias. No caso das bandas filarmónicas, a sua proliferação deve ter ocorrido principalmente como “fruto do discurso que favorecia a capacidade educacional da música enquanto promotora de progresso e civilização e atribuía mérito e reconhecimento aos detentores de capacidade artística” (PINTO, Ibid., 133). O crescimento do número de bandas também deve ter sido facilitado pelo aumento da produção e a consequente redução dos preços dos instrumentos de sopro ocorridos ao longo do séc. XIX. No que diz respeito às tunas, a influência para a sua fundação terá vindo do meio académico, tendo surgido muitas tunas na Madeira sob inspiração da Tuna Compostellana em Portugal continental, no final do séc. XIX (principalmente a partir de 1888). O facto de haver na Madeira vários construtores de instrumentos de cordas habituais nas tunas – violinos, bandolins, violas, entre outros – facilitou a criação deste tipo de agrupamento musical do ponto de vista económico. Outra causa central para a replicação destes grupos está relacionada com a inexistência ou com a pouca difusão dos meios técnicos que viriam a revolucionar a música na Madeira, principalmente a partir da déc. de 1930: a telefonia, o gramofone e o cinema (a partir desta década, com a emigração e com a diminuição dos preços destes expedientes técnicos, a prática musical amadora reduz-se bastante na Madeira). Finalmente, a valorização do convívio masculino, juntamente com a facilidade de execução das partes instrumentais individuais em grupos grandes, terão contribuído de igual modo para a multiplicação deste tipo de agrupamentos amadores. A grande difusão das bandas filarmónicas na Madeira neste período pode ser atestada na seguinte lista, não exaustiva, na qual se enumera os agrupamentos surgidos na déc. de 1880: em 1881, estava a organizar-se, na vila da Ponta do Sol, uma filarmónica para a elite ponta-solense e uma banda para os operários; em 1883, é fundada a Banda União Fraternal de Santa Cruz; a 18 de fevereiro de 1884, a Filarmónica Recreio dos Lavradores atuou pela primeira vez; em 1886, é fundada a Orquestra Recreio e União; em 1887, é provavelmente criada a Sociedade União e Lealdade na freguesia de São Roque; em 1887, é instituída a Sociedade Recreio Musical, com sede na rua dos Ferreiros; em 1887, funda-se a Filarmónica União Santacruzense; em 1889, cria-se a Banda dos Bombeiros Voluntários Madeirenses; em 1889, estabelece-se a Filarmónica da Ribeira Brava. As tunas de cordofones são outro género de grupo muito na moda neste período. As tunas começam por ter como instrumento melódico principal o violino, mas, progressivamente, o bandolim vai ocupando o lugar de destaque nestes agrupamentos amadores, sendo comum na Madeira designar estes grupos como tunas de bandolins ou orquestras de palheta (esta última denominação é de clara influência italiana – “orquestra de plectro”). Entre 1889 e 1935, são fundadas várias tunas na Madeira, primeiramente com ligações ao meio académico e, posteriormente, de cariz mais popular. Segue-se uma lista, não completa, das tunas: 1889, Tuna Compostellana; 1905, Tuna Académica (Liceu do Funchal); 1906, Grupo de Amadores de Música Passos Freitas; 1913, Grupo Reunião Musical da Mocidade (a ulterior Orquestra de Bandolins da Madeira); 1913, Grupo 6 de Janeiro de 1915 (o posterior Círculo Bandolinístico da Madeira); 1920, Grémio Musical 10 de Junho; 1920, Septeto Dr. Passos Freitas (versão reduzida do grupo original); 1920, Quarteto do Sr. Arsénio (Santa Cruz); 1923, Grupo Musical Faialense; 1930, Núcleo Bandolinístico de Câmara de Lobos; 1934, Grupo Bandolinístico de Santo António; 1935, Grupo Bandolinístico União de Santo António (BUSA); 1935, Grupo Musical Colares Mendes. Apesar de a maioria dos grupos amadores madeirenses ser constituída por bandas e por tunas, são frequentes neste período outros tipos de agrupamento. Entre eles, são de salientar os grupos corais e as orquestras sinfónicas. No caso dos grupos corais, apesar de haver referência à criação de uma escola de canto coral no Funchal em 1885, é principalmente na déc. de 1920 que se encontram grupos corais de grande dimensão. Os três protagonistas deste movimento terão sido o cantor Júlio Câmara (1876-1950), o músico-advogado Manuel dos Passos Freitas (1872-1952) e o capitão Gustavo Coelho (1890-1965). Júlio Câmara dirigia, em 1920, o Orfeon Académico, o qual chegou a ser composto de 85 elementos; Manuel dos Passos Freitas fundou e dirigiu o Orfeão Madeirense, que se apresentou por diversas vezes no teatro e realizou digressões às Canárias; finalmente, o capitão Gustavo Coelho criou um Orfeão Académico, constituído por alunos do Liceu do Funchal e sobre o qual há notícias de estar em atividade em 1925. Gustavo Coelho merece ser posto em evidência, uma vez que foi um dos mais relevantes e conceituados regentes de bandas filarmónicas, orquestras e grupos corais, assim como um prolífico compositor e transcritor de música. Foi chefe da Banda de Música do Comando Militar da Madeira e integrou o corpo docente da Academia de Música, Belas-Artes e Línguas da Madeira. Entre os principais regentes de bandas e orquestras deste período salientam-se ainda os nomes de Nuno Graceliano Lino (1859-1929), “organizador de quase todas as orquestras que se faziam ouvir nos salões aristocráticos e nas grandes solenidades da Diocese” (DN, Funchal, 16 nov. 1929, 3), e de César Rodrigues de Nascimento (1879-1925), compositor, violinista e regente de duas das principais bandas madeirenses, Artistas Funchalenses e Artístico Madeirenses (Guerrilhas). No plano nacional, a transição do séc. XIX para o séc. XX é marcada pela tentativa de criação de uma identidade com a qual os portugueses se identificassem como com algo de próprio e de distinto das outras nações. No caso da Madeira, houve várias ações no âmbito das artes que tiveram nitidamente esse propósito, mas também se deram algumas iniciativas mais específicas, onde, mais do que uma identidade nacional, os autores procuraram criar uma identidade regional madeirense. Uma das primeiras medidas levadas a cabo com este intuito está relacionada com o estudo das tradições do povo rural; em 1880, designadamente, Álvaro Rodrigues de Azevedo faz as primeiras observações e recolhas sobre o folclore regional. Outra das providências estava relacionada com a utilização dos instrumentos considerados típicos da Madeira; nomeadamente, em 1890 há referências à atividade musical da Orquestra Característica Madeirense, dirigida por Agostinho Martins, a qual era constituída por vários tipos de instrumentos, entre os quais se destacam os típicos da Madeira, tais como o machete (vulgo braguinha) – a utilização, em orquestra, deste género de instrumentos parece não deixar dúvidas quanto ao objetivo de criar, ou de executar, música com traços marcadamente regionais. Para além disso, em 1905, o compositor madeirense Filipe Fernandes Madeira (1864-1912) cria uma obra musical intitulada Souvenir de Madere – Rapsodia de Canções Populaire, formada de canções consideradas pelo autor como tradicionais da Madeira, o que constitui outro exemplo da tentativa de reprodução de uma música marcadamente madeirense. À semelhança de Filipe Fernandes Madeira, também o compositor Manuel Ribeiro procura inspiração nas canções populares da Madeira. Provavelmente na déc. de 1910, o então regente da Banda Militar compõe uma rapsódia baseada em alguns cantos típicos madeirenses – charamba, bailinho do Porto Santo, mourisca, etc. –, a qual orquestra para um dispositivo sinfónico. A procura de regionalismos encontra-se também nas produções teatrais com música, nomeadamente na revista musical madeirense, então muito em uso. Neste sentido, Dário Florez (1879-1951), um músico espanhol radicado na Madeira, cria várias peças de teatro de revista com inspiração em elementos regionais, como o exemplifica o título de uma obra sua, Semilha e Alface, de 1917. Além da busca de inspiração na música regional, assistiu-se ao cultivo de géneros nacionalistas. Assim, no primeiro quartel do séc. XX multiplicam-se a composição e a interpretação de fados no Funchal. Uma das referências mais antigas à prática de fados concerne à banda regimental de infantaria n.º 27, que incluía no seu programa de concerto, em 1902, uma versão de um fado de Rey Colaço. Prova da grande difusão do fado, neste período, é o facto de todas as principais salas de espetáculos da Madeira terem artistas que tocam este género musical. No Pavilhão Paris, e.g., é possível ouvir o ator Horácio Campos cantar fados, antes de interpretar um dueto da Viúva Alegre, enquanto no Teatro-Circo Duarte Valério apresenta “canções e fados” (DN, Funchal, 9 fev. 1914, 3); por sua vez, um anúncio do Casino Vitória refere a estreia de Silva Sanches, um “artista distinto” português, que oferece um “repertório fino, de que fazem parte, além de vários números de operetas, lindos fados e canções internacionais” (DN, Funchal, 30 dez. 1919, 1); finalmente, no teatro municipal produz-se uma opereta, da qual se diz ter “imensa graça”, intitulada Tiro ao Alvo, “com as suas canções e fados”(JM, Funchal, 10 jan. 1929, 3). Existem indícios da inclusão do fado em contexto erudito, algo que se verifica no trabalho de vários cantores líricos, que passaram a incluir fados no seu repertório de concerto, juntamente com obras clássicas, de modo regular. Assim, o tenor lírico Ernesto Silva anunciava que iria cantar “novos fados”, a par de uma canção napolitana (Diário da Madeira, Funchal, 9 fev. 1916, 2); a cantora Helena Robini sabia “com mestria interpretar os melhores clássicos” e cantava também “grande número de fados e canções” (DN, Funchal, 27 abr. 1917, 2); Júlio Câmara, tenor lírico que esteve radicado na Madeira durante alguns anos, incluía no seu repertório um “lindo fado sentimental” (DN, Funchal, 5 fev. 1918, 2). No que diz respeito à faixa etária dos fadistas, há notícia de que as crianças eram protagonistas no canto do fado. Assim, no Salão Ideal anunciava-se que, para além da “habitual presença do Quartetto Nascimento, a atriz Luiza Durão de 11 anos, cantará um lindo fado […], com letra e música, original do Sr. Machado Bonança, distinto professor do liceu d’esta cidade” (DN, Funchal, 4 jun. 1911, 1). Esta pequena atriz não foi caso único, encontrando-se uma criança ainda mais jovem, “o menino Fernando Barreto, de 9 anos”, a atuar na Qt. das Cruzes, onde cantou fados e canções portuguesas e do qual se dizia “ser possuidor de uma grande voz” (DN, Funchal, 17 set. 1931, 1). Eng. Luiz Peter Clode.1940 Naturalmente, a intensa atividade relacionada com o fado nos principais locais de espetáculo funchalenses influenciou os músicos madeirenses. Assim, ao longo da primeira metade do séc. XX, sabe-se de vários fados para canto e piano de autores madeirenses ou a residir na Madeira. Entre os autores identificados, além de Dário Florez, com o fado Saudades de Coimbra, conhecem-se, em versões para piano: um fado de Gustavo Coelho (1890-1965), intitulado Oh! Quem Me Dera; o Fado do Desespero, do músico amador Fernando Clairouin (1897-1962); Fado da Feira, Fado “Maria das Dores”, Fado dos Olivais, Fado do Vale e Fado dos Laranjais, da autoria de Luiz Peter Clode (1904-1990); e o “fado slow” Adeus Funchal, do pianista Tony Amaral (1910-1975). Um músico e poeta madeirense que viria a evidenciar-se na história do fado português, mais especificamente do fado de Coimbra, foi Edmundo Bettencourt (1899-1973). Da sua obra ressaltam as gravações de discos pela Columbia, em 1928, com a participação do guitarrista Artur Paredes (pai de Carlos Paredes), que fariam dele um cantor de referência para muitas gerações de músicos do fado e da canção de Coimbra, entre os quais Zeca Afonso. A nível religioso, a execução de música sacra em contexto popular foi muito frequente nesta época. As celebrações religiosas solenizadas com música estavam normalmente associadas “ao calendário litúrgico, destacando-se a Semana Santa, o ‘Mês de Maria’ e o Natal, assim como as cerimónias dos santos populares e dos oragos das freguesias” (CAMACHO, 2010, 19). Um outro aspeto central da música religiosa deste período está relacionado com orientações vindas do papa Pio X. Em 1903, o Papa lança o Motu Proprio, que bane da Igreja a música teatral de estilo florido, “com recitativos, floreados no canto e no acompanhamento […], e melodia das óperas mais conhecidas” (SILVA, 2006, 11). Tendo em consideração que parte significativa da música tocada nas igrejas madeirenses era inspirada em modelos operáticos, esta orientação papal exigiu uma profunda mudança na música religiosa da época. Com certeza, a diretriz vinda de Roma não resultou numa reforma completa e imediata da música na Madeira. Prova disso é o facto de o bispo D. António Pereira Ribeiro ter necessidade de criar, por decreto, uma Comissão Diocesana de Música Sacra, em 1918, com o objetivo de promover “ ‘a escrupulosa observância em toda a Diocese das leis eclesiásticas acerca da música sacra’ ” (SILVA, 2006, 10-11). Considerando que, em 1908, foi publicada na Madeira uma segunda edição de uma coleção de melodias sacras, de acordo com as orientações do Motu Proprio, fica claro que terá havido alguma resistência a retirar, dos templos madeirenses, a música de influência teatral. Apesar disso, existem casos de compositores que criaram um elevado número de obras em consonância com as novas normas emanadas do papa. Um dos casos mais notórios é o do Cón. Fernando Vaz (1884-1954), de quem se conhecem 78 composições, sobretudo cânticos em honra de N.ª Sr.ª e do Sagrado Coração de Jesus. A aludida coleção de melodias sacras compostas para o culto religioso, como alternativa às músicas de inspiração operática, não foi a única solução encontrada para pôr em prática as diretrizes de Roma. De facto, tal como um pouco por todas as dioceses portuguesas, encontram-se nesta época várias referências à tentativa de instituir o canto gregoriano na Madeira. A 15 de outubro de 1909 é anunciado na Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira que “todos os alunos do seminário têm aula diária de cantochão ou de música” (SILVA, 2008, 217); entre 1912 e 1915, há notícia de um padre beneditino que realiza um curso de canto gregoriano no Funchal; finalmente, a 1 de março de 1915 são apresentados os princípios elementares do canto gregoriano e da música sacra no Boletim Eclesiástico da Madeira. Neste âmbito, é relevante nomear José Sarmento (1842-1905), que foi convidado pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto para organista da Sé, tendo sido depois mestre de capela e professor do seminário. Sarmento criou e imprimiu vários folhetos intitulados Rudimentos de Música, onde explicou os fundamentos teóricos da música tonal e gregoriana. Promoveu ainda vários concertos de beneficência e audições reservadas na sua Qt. de Santa Luzia, para os quais convidava os músicos que passavam pela Madeira, acompanhando-os ao piano ou ao harmónio. Outro músico que merece relevo na área da música sacra deste período é o compositor Luiz de Freitas Branco (1890-1955). Figura maior da cultura musical portuguesa da primeira metade do séc. XX e considerado o introdutor do modernismo musical em Portugal, foi para a Madeira com a família em 1912, tendo ficado até cerca de 1915. Apesar de ser bastante jovem, aquando da sua estadia na Madeira o compositor já tinha realizado estudos de composição em Berlim (1910) e tido contacto com a estética do Impressionismo em Paris (1911), onde havia conhecido Claude Debussy. No Funchal, compôs três obras de música sacra a pedido do bispo D. António Pereira Ribeiro, as quais se encontram no Arquivo do Seminário Maior: Responsórios de Matinas da Imaculada Conceição; Te Deum, a duas vozes masculinas; Te Deum, a três vozes masculinas. Outra importante mudança ocorrida na transição do séc. XIX para o séc. XX está relacionada com o desenvolvimento de um mercado para os músicos, derivado da criação de um conjunto de espaços de entretenimento que contratava os seus serviços. Enquanto no período de 1820-1880 não há dados sobre a contratação de músicos para atuações regulares em espaços públicos, a partir do final do séc. XIX começam a surgir cafés, teatros, cinemas, casinos, hotéis e outras entidades que necessitam de músicos para entretenimento habitual de madeirenses e de turistas. Passa-se de uma situação em que os músicos eram maioritariamente solicitados para dinamizar bailes esporádicos em clubes ou para atuações pontuais em teatros a uma situação em que existem vários espaços em simultâneo com necessidade, por vezes diária, de atividades musicais. A mudança em questão, aliada à necessidade de regentes para os grupos musicais de amadores então surgidos – bandas, tunas e orfeões –, bem como ao aumento de solicitações de professores de música, alterou profundamente o estatuto dos músicos, criando mais oportunidades de profissionalização para esta classe. Este novo contexto trouxe grandes alterações ao tipo de agrupamentos musicais existentes: enquanto os grupos musicais de amadores eram constituídos por dezenas de elementos, os grupos profissionais eram mais reduzidos. Em poucos anos, surgem vários grupos profissionais de pequena dimensão, normalmente sextetos, quintetos ou quartetos. Assim, principalmente a partir da déc. de 1890, são criados muitos grupos de músicos profissionais, acentuando-se o fenómeno a partir do início do séc. XX: 1895, Café “Águia D’Ouro”; 1905, Quinta Santana; 1906, Monte Stranger Club; 1907, Club dos Estrangeiros; 1909, Casino da Quinta Pavão e Hotel Belo-Monte; 1911, Salão Ideal, Salão Central Cinematographo Gaumont e Pavilhão Paris; 1916, Ateneu Comercial; 1919, Casino “Vitoria” e Teatro Circo; 1920, Novo Club Restauração; 1922, Hotel Savoy. A proliferação de grupos profissionais virá a acentuar-se a partir da déc. de 1940, devido sobretudo ao significativo aumento no número de hotéis e da oferta turística madeirenses. No período de 1890 a 1930 assiste-se a uma primeira fase de profissionalização da classe dos músicos, como está patente na seguinte lista (não exaustiva): 1897, Sexteto de Evaristo Guedes; 1900, Sexteto dos Srs. Nunos; 1905, Sexteto Espanhol da Quinta Santana; 1906, Sexteto Agostinho Martins; 1906, Sexteto António de Aguiar; 1909, Sexteto Espanhol da Quinta Pavão; 1909, Sexteto de Nuno Graciliano Lino (mais tarde, Quarteto); 1909, O Sexteto Nascimento (mais tarde, Quarteto e Quinteto); 1909, Orquestra Belo-Monte; 1911, Quarteto João de Deus; 1916, Sexteto Joaquim Casimiro; 1919, Sexteto Cesar Magliano; 1920, Sexteto Passos Freitas (mais tarde, Septeto, Octeto e Quinteto); 1920, Quarteto Accacio Santos; 1922, Quarteto do Hotel Savoy. O momento mais importante do final do séc. XIX, que influenciaria as artes performativas profissionais ao longo das primeiras três décadas do séc. XX, foi a fundação do Teatro D. Maria Pia, em 1888 (posteriormente Teatro Funchalense, Teatro Manuel Arriaga, teatro municipal Baltazar Dias). As obras de construção terão sido concluídas em 1887, altura em que a Orquestra da Associação Musical 25 de Janeiro deu um concerto para experimentar as condições acústicas da nova sala. A 11 de março de 1888, o teatro é inaugurado oficialmente por uma companhia espanhola contratada pelo negociante espanhol D. José Zamorano, estabelecido no Funchal; a primeira peça a ser representada foi a zarzuela Las dos Princesas. Na sequência da fundação do teatro, experimentou-se um incremento da produção teatral: ao longo de 1888 são apresentados 69 espetáculos (referentes a 34 zarzuelas). De facto, este foi o espaço privilegiado do Funchal para concertos públicos, tendo nele atuado várias companhias de ópera, de revista, de zarzuela e diversos músicos virtuosos. A partir da inauguração do Teatro D. Maria Pia, as representações de teatro lírico de influência italiana começaram a ser mais frequentes – com forte concorrência da zarzuela espanhola –, e o tipo de espetáculo mais comum terá sido o sarau ou a récita com uma mistura de árias das óperas mais famosas de então. Um exemplo deste género de exibição ocorre em 1904, ano em que um conjunto de cantores líricos com formação italiana atua no teatro municipal: o barítono Maurício Bensaúde (teatro alla Scala de Milão), a mezzo soprano Paola Moretti (La Fenice de Veneza) e o tenor Ivo Zaccari (teatro Carlo Felice de Génova), que apresentam um conjunto de êxitos das óperas mais populares. Contudo, no final do séc. XIX as cançonetas ligeiras começam a ganhar a preferência de alguma elite madeirense, ocupando o espaço deixado livre pelos romances (desaparecidos das notícias de imprensa desde a déc. de 1870) e fazendo concorrência às árias de ópera de influência italiana. O termo “cançoneta” começa a aparecer de forma frequente a partir de 1888, coincidindo com o ano de fundação do Teatro D. Maria Pia. As cançonetas eram cantadas maioritariamente por atores e não por cantores líricos; tinham, com frequência, objetivos cómicos: um articulista referia que a cançoneta “De Pernas Para o Ar”, quando interpretada pelo ator Santos, fazia “a gente morrer de riso” (DN, Funchal, 21 out. 1888, 1); outra cançoneta teria o mesmo efeito, sendo descrita como “a engraçadíssima cançoneta: Sol, Lá, Si, Dó que é d’uma pessoa morrer de riso” (DN, Funchal, 13 nov. 1888, 1). Entre as cantoras e compositoras madeirenses, saliente-se Matilde Sauvayre da Câmara (1871-1957), que teve grande influência na vida musical da Ilha na transição do séc. XIX para o séc. XX. Na visita que os reis D. Carlos e D. Amélia fizeram à Madeira em 1901, Matilde Sauvayre da Câmara foi responsável pela organização de uma récita de gala no teatro municipal do Funchal. Sauvayre da Câmara, enquanto artista que alcançou notoriedade a compor e a cantar cançonetas, exemplifica a mudança que se viria a sentir no início do séc. XX, onde a preferência por um estilo musical teatral mais ligeiro, em detrimento das árias de ópera, se veio a confirmar. A cantora madeirense tem sucesso, desde 1893, ao atuar em saraus domésticos realizados em salões nobres de casas de personalidades do Funchal, tais como as do médico Adriano Augusto Larica ou dos Viscondes de Monte Bello; em 1897, surge como protagonista de números dramáticos no Teatro D. Maria Pia, onde também interpreta algumas cançonetas integradas num espetáculo de beneficência. Na área da música para teatro, uma das novidades de maior relevo deste período é a emergência de um repertório original de criação regional de influência lisboeta e espanhola – a revista. A revista madeirense terá provavelmente sofrido o influxo da congénere de Lisboa, por meio dos militares músicos que chegaram à Madeira partidos do continente – como Manuel Ribeiro –, e da zarzuela espanhola, através da ação das várias companhias que estiveram no Funchal neste período. Parece plausível que entre 1909 e a déc. de 1950 tenham sido produzidas no Funchal dezenas de revistas originais, exibidas em espetáculos criativos que misturavam libretistas, compositores e coreógrafos regionais. Ao longo de cerca de 50 anos foi produzido um extenso repertório de revista, mediante o contributo de músicos como Augusto Graça, Manuel Ribeiro, Dário Florez e, no período do Estado Novo, do Cap. Edmundo Conceição Lomelino. No domínio dos libretos, a variedade de autores é maior, destacando-se, entre outros, os nomes de Alberto Artur Sarmento, de Adão Nunes e, na época do Estado Novo, de Teodoro Silva. Nos anos áureos da revista e da opereta regional madeirenses surgiu o tenor lírico Nuno Lomelino Silva (1893-1967), apelidado de “Caruso português”. Nascido no Funchal, no final do séc. XIX, começa a sua atividade de cantor como amador numa opereta na Madeira. Após realizar estudos em Itália, acaba por enveredar por uma carreira internacional, com digressões pela Europa, pela América do Norte, pelo Brasil, pela Ásia, etc. Atuou no Funchal por diversas vezes, acompanhado de excelentes pianistas; entre estes, conhecem-se os nomes de Jacinto C. Baptista Santos, do maestro Jacobs Pierre, de Pedro Guevara e de Regina Cascais. Na área da relação entre a música e o teatro, é ainda de referir João dos Reis Gomes (1869-1950) que, em 1919, publica um esboço filosófico intitulado A Música e o Teatro, o qual ocupa um importante lugar no panorama musicológico madeirense. As novas tecnologias e a emergência do Novo Mundo Os primeiros anos do regime do Estado Novo foram marcados por um conjunto de mudanças tecnológicas que teve um elevado impacto na cultura madeirense. Entre elas encontram-se a telefonia, o cinema e o gramofone, que vieram alterar o modo de recreação dos madeirenses, quer na vida privada, quer na vida social. A telefonia chega à Madeira no verão de 1927, altura em que surgem os primeiros anúncios para venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. No entanto, será principalmente a partir da déc. de 1930 que a telefonia se começa a generalizar entre a população madeirense. O cinema ganhou progressivamente a adesão do público, supondo-se que fosse, no segundo quartel do séc. XX, a principal forma de passatempo madeirense. A primeira apresentação do animatógrafo ocorreu no Funchal em 1897; em 1907, ocorreu o lançamento do cinema em termos comerciais. O sucesso obtido por esta arte no Funchal foi de tal ordem que, em 1932, o teatro municipal já funcionava quase exclusivamente como sala de cinema. O gramofone foi outra tecnologia que, na déc. de 1930, marcou de forma indelével o quotidiano e os entretenimentos madeirenses. Pelo menos desde o início da déc. de 1910 que se faz menção desta tecnologia nos periódicos, a qual coincide com o início da decadência da prática musical amadora. É nesta altura que começam a surgir os primeiros anúncios publicitários a vendas de fonógrafos, então designados de “Pathéphone – máquinas falantes” (DN, Funchal, 19 jul. 1910, 3). Estes reclames mantinham-se ao longo de várias semanas, o que indicia que o negócio devia ser rentável. A nova tecnologia era apresentada com grande euforia nos jornais: v.g., afirmava-se que “a descoberta das máquinas falantes para discos sem agulha produziu uma revolução no mundo artístico e musical” (DN, Funchal, 21 nov. 1910, 3) – o que, de facto, veio a confirmar-se nas décadas seguintes. Na déc. de 1930, aparece a denominação “gramofone” num anúncio que informa que “gramofones de origem alemã” podiam ser adquiridos na “rua do Comércio, 166 a 168” (DN, Funchal, 31 jan. 1932, 6). Em espaços comerciais destinados a estrangeiros havia casos de proprietários que preferiam colocar gramofones em vez de pôr música ao vivo: e.g., num anúncio em inglês, a Majestic House informava que todos os dias colocava discos a tocar no seu gramophone, dando especial destaque aos melhores “fados portugueses” (DN, Funchal, 26 jan. 1932, 6). A elevada importância destas tecnologias entre os jovens da déc. de 1930 está bem patente num texto de Luiz Peter Clode, escrito em 1949, onde o autor descreve as motivações para a fundação da Sociedade de Concertos da Madeira, em 1943: “de 1930 a 1943, […] aos rapazes e raparigas dos 15 aos 18 anos pouco interessava a política do espírito. A sua máxima preocupação era o aperfeiçoamento dos gramofones, as atrizes e os atores de cinema, radiotelefonia, o ‘jazz’ e o gosto exagerado pelo futebol” (CLODE, 1949, 1). A difusão destas novas tecnologias na déc. de 1930 contribuiu de forma decisiva para um aumento da influência da música americana na Madeira – tal como no resto da Europa –, em especial através do cinema e dos gramofones. Num anúncio do Jornal da Madeira de 10 de maio de 1924 indica-se existir à venda, na rua da Queimada de Cima, um “grande sortimento de DISCOS entre outros: Fox-trots, Shimmy’s, Boston, Jazz-Band”. Assim, é natural que a música americana começasse a disseminar-se nos entretenimentos madeirenses, principalmente nos diferentes tipos de danças. A influência, não só americana, mas também inglesa chegou à Madeira na déc. de 1920, altura em que se dançava o one step e o fox-trot no Funchal. Entre os compositores madeirenses, encontram-se músicos que criam repertório deste género. O pianista Raul de Abreu compõe, em 1936, uma peça intitulada Kit Cat, Fox-trot, na qual o estilo ragtime é bastante notório. Outro músico madeirense pioneiro nestas novas danças foi Edmundo da Conceição Lomelino, que editou um one-step para piano, intitulado A Little Kiss, Intermezzo Americano, em data incerta (entre 1920 e 1940). A americanização da música de dança e da música em geral continuou no Funchal ao longo da primeira metade do séc. XX, havendo vários indícios dessa aculturação, sobretudo ao longo da déc. de 30, com a difusão de jazz bands. A referência ao jazz é pertinente, principalmente porque é significativa de uma mudança cultural relevante. No Funchal, as notícias sobre jazz bands começaram a surgir sensivelmente a partir de 1927, com menção à prática de jazz habitualmente ligada ao cinema e à dança, confirmando-se assim o paralelismo com a situação em Lisboa. Designadamente, num anúncio a um espetáculo de cinema no Teatro-Circo avisava-se que se estreava “um jazz band, que doravante passa a tocar em todos os espetáculos deste cinema”, acrescentando-se que seria “mais um atrativo para o público” e que esta música estava “muito em uso em todas as partes da Europa” (DN, Funchal, 30 jul. 1927, 2). Poucos meses depois, no Strangers Clube do Casino Victor, anunciava-se que às seis horas haveria “dança com acompanhamento do Jazz-Band do Club” (DN, Funchal, 29 dez. 1927, 3). Durante a déc. de 30, estas referências multiplicam-se, surgindo várias orquestras de jazz que tocam em cafés, hotéis, clubes ou no Casino Vitória: Orquestra Jazz de Manuel Freitas (1932), Orquestra Jazz Café Ritz (1932), Orquestra Jazz Oceânia (1933), Orquestra Jazz Amaral (1933), Abreu’s Dancing Orchestra (1933); Jazz Band de Jacinto Baptista Santos (1935), Orquestra Jazz Senhor Silva (1935), Orquestra de Jazz da Academia Musical Instrução e Recreio (1936), Orquestra Jazz Vanize Meireles (1937), entre outras. Estes grupos incluíam instrumentos como a bateria de jazz, a viola (francesa), o piano, o bandoneon e o saxofone, que em alguns casos continuavam a coexistir com o violino, o clarinete e o trompete. Um dos primeiros músicos madeirenses a ser influenciado pela “nova música” americana e a obter enorme sucesso foi Tony Amaral (1910-1976). No início dos anos 40, o pianista e compositor madeirense criou o Conjunto Tony Amaral e a sua Orquestra, com o qual atuava no hotel Bellavista. Em 1946, muda-se para Lisboa, onde alcança um enorme êxito, inclusivamente junto da crítica. Na capital, sob a designação de Tony Amaral and His Boys, o conjunto atuou em nightclubs, restaurantes, teatros e no Casino Estoril. Em Lisboa, o conjunto era, numa primeira fase, constituído pelos músicos Carlos Menezes (guitarra elétrica), José de Freitas (contrabaixo), Barrinhos (bateria), Tony Amaral (piano) e Max (voz). Em 1949, o conjunto grava um disco com a Valentim de Carvalho, incluindo composições de Tony Amaral e de Max e recriações de canções tradicionais madeirenses, entre as quais o célebre Bailinho da Madeira e a música de influência africano-americana Noites da Madeira. O famoso cantor madeirense atuou no grupo até iniciar uma carreira a solo, na qual atingiria o estatuto de uma das mais populares vedetas da rádio, do teatro e da televisão portuguesa. O agrupamento de Tony Amaral é modelo de um novo tipo de grupo de músicos profissionais, normalmente denominado de “conjunto”, que começa a proliferar de forma mais acentuada na déc. de 1940, principalmente em conexão com o aumento dos hotéis e da oferta turística madeirenses. O termo “conjunto” aplicou-se a vários tipos de formações, mas na Madeira foi sobretudo utilizado, nas décs. de 1940 e de 1950, para designar novos agrupamentos de pequena dimensão e com configurações variadas, que se desenvolveram em torno da bateria de ritmo e com um repertório baseado nas danças em voga. Os conjuntos representam, deste modo, uma nova forma de agrupamento de músicos profissionais ligados ao turismo, a qual vem na sequência dos sextetos, dos quintetos ou dos quartetos que proliferaram no Funchal na transição do séc. XIX para o séc. XX. Os conjuntos distinguem-se dos grupos anteriormente referidos por apresentarem programas de influência anglo-americana e por disporem de um efetivo instrumental que inclui bateria, baixo ou contrabaixo, piano, viola amplificada, habitualmente, e, mais tarde, guitarra elétrica. Alguns conjuntos têm também instrumentos de sopro, como trompete, clarinete ou saxofone. Os conjuntos de Tony Amaral foram os primeiros do género em Portugal que alcançaram um elevado sucesso, tocando música swing, danças latino-americanas e composições de inspiração folclórica em instrumentos elétricos. Assim, é natural que um articulista se referisse ao “quinteto Tony Amaral” como tendo “feito a maior propaganda da Madeira no Continente sendo justamente considerado o primeiro conjunto musical português” (DN, Funchal, 1 jan. 1951, 6). O sucesso alcançado pelo conjunto de Tony Amaral, quer em Portugal continental, quer no estrangeiro, contribuiu certamente para o aparecimento de um grande número de grupos que seguiram o seu modelo, tanto a nível de efetivo instrumental, como de repertório. Assim, ao longo da déc. de 1950, surgem dezenas de grupos musicais que se apresentam sob a designação de “conjuntos” ou de “orquestras”, sem diferenciação substancial entre ambas as denominações, que seguem de perto o modelo do conjunto de Tony Amaral. Entre esses conjuntos, é possível destacar os seguintes, que, de acordo com os periódicos funchalenses, estão em atividade na déc. de 50: Conjunto Blue Moon (1951), Trio “Jess and His Boys” (1952), Conjunto Musical Privativo do Savoy (1954), Conjunto Musical “Tino Cubanos”, Conjunto Musical “Os Rapazes do Ritmo” (1954) – os quais atuam em Luanda em 1957 –, Orquestra “Os Reis do Ritmo” (1954), Orquestra privativa Conjunto “Jorge Brandão” (1954), Conjunto “Flamingo” (1954), Conjunto Irmãos Freitas (1955), Conjunto Académico (1955), Orquestra Zeca da Silva e o seu Conjunto (1955), Conjunto Privativo do Casino (1957), Conjunto Musical “Atlântico Jazz” (1957), Conjunto “Virgílio Cardoso”, (1957), Conjunto Alberto Amaral (1957), Conjunto “Os Amigos da Onça” (1958) – no mesmo ano aparece sob o nome de Orquestra privativa “Os Amigos da Onça” –, Conjunto “Novo Ritmo” (1958), Conjunto Tony Amaral Júnior (1958). Um grupo que merece um destaque especial neste período é o Conjunto de Helder Martins. Em meados dos anos 50, Helder Martins (1929-1978) foi o pianista do Quinteto do Hot e foi pioneiro do jazz em Lisboa, conjuntamente com outros dois madeirenses, o guitarrista Carlos Menezes e o vocalista Max. A partir da déc. de 60, surge uma segunda geração de conjuntos, como o Conjunto Académico João Paulo com Sérgio Borges, Dinâmicos, Demónios Negros, Incríveis, Dancers, entre outros projetos que alcançaram projeção nacional, os quais foram influenciados por grupos como os Shadows ou os Beatles. É também nesta altura que muitos conjuntos começam a acrescentar à sua designação a expressão “ritmos modernos”, a qual se torna comum: Conjunto de Ritmos Modernos “Os Dancer’s” (1965), Conjunto de Ritmos Modernos Tonar’s (1965), Conjunto de Ritmos Modernos “Os Baitas” (1969), grupos musicais de ritmos modernos ou de rock Os Rivais de Câmara de Lobos e os Hamong Band (1970). A título de exemplo, num espetáculo de homenagem à cançonetista Ana Maria, o articulista refere-se à “exibição dos conjuntos de ritmos modernos Vulcânicas e os Dinâmicos” (DN, Funchal, 19 mar. 1965, 7). Entre estes agrupamentos, o Conjunto Académico João Paulo viria a ser o de maior êxito, ocupando o lugar cimeiro da música ligeira regional e nacional, outrora pertencente ao Conjunto de Tony Amaral. A banda nasceu no Liceu Jaime Moniz, no início da déc. de 60, e foi influenciada pela nova vaga de grupos musicais e de cantores dos anos 60, cunhada no estilo dos Beatles. Em 1964, o grupo ganhou um dos concursos de música realizados na Madeira – uma promoção da Rivus, no antigo Cine-Parque – e foi premiado com atuações em Portugal continental, na rádio e na televisão. Na televisão, o grupo participou, com grande sucesso, no programa musical “T.V. Clube”, o que fez catapultar a sua música a nível nacional, de tal modo que os músicos madeirenses acabariam por decidir radicar-se em Lisboa, para dar continuidade ao seu trabalho. Os anos de 1965 e 1966 foram de grande sucesso. Em pouco tempo, o conjunto teve a oportunidade de gravar discos e começou a ser presença assídua em emissões de rádio e de televisão, bem como em espetáculos. Entre as exibições de maior sucesso de início de carreira, salientam-se as realizadas no Teatro Politeama e, depois, no Teatro Monumental. No Politeama, o conjunto tocou para casa cheia durante um mês e meio, num ambiente idêntico ao dos concertos dos Beatles, com uma reação do público inovadora em Portugal, a qual marcaria o início de uma nova era musical. O conjunto participou, por duas vezes, no Festival RTP da Canção, tendo alcançado o 2.º lugar em 1966 e o 1.º lugar em 1970. Da sua extensa discografia salientam-se as seguintes edições, entre 1964 e 1968, sob a designação Conjunto Académico João Paulo: Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1964), De Novo Com João Paulo e o Seu Conjunto Académico (EP, Columbia, 1965), + 1 Disco = 4 Sucessos (EP, Columbia, 1965), Diz-lhe (EP, Columbia, 1966), Eurovisão (EP, Columbia, 1966), Poema De Um Homem Só (EP, Columbia, 1967), L’Amour Est Bleu (EP, Columbia, 1967), Kilimandjaro (EP, Columbia, 1967), O Louco (EP, Columbia, 1967), A Shadow Rounds… (EP, Columbia, 1968). A partir de 1970, os discos são publicados sob a nova denominação de Sérgio Borges e o Conjunto João Paulo: Sérgio Borges com o Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1970), Lavrador (EP, Columbia, 1971), Meu Corpo E Minha Seiva (Single, Columbia, 1970), MAR (Single, Columbia, 1972). A expressão “ritmos modernos” teve tal aceitação na Madeira que, em 1970, é organizado um certame de conjuntos de ritmos modernos, organizado pela Comissão de Festas do Fim do Ano e integrado nas Festas da Cidade do Funchal. Segundo um articulista do Jornal da Madeira, não se podia “esquecer que no tempo eufórico dos conjuntos musicais do género alguns artistas madeirenses nasceram para o music-hall português e até para o internacional”, entre os quais Luís Jardim, que dos “Demónios Negros saltou para o conjunto inglês Bossa Cálida, João Paulo com Sérgio Borges, Valério Silva, o próprio Gabriel Cardoso […], Os Dinâmicos e outros conjuntos de agradável presença” (JM, Funchal, 14 out. 1970, 1 e 7). Depois do desfecho do concurso, a comunicação social noticia que “milhares de pessoas assistiram à final”. O laureado foi o grupo Mud Revolution, que “ultrapassou o Habitat de um ponto e o Comuna Singular de dois”, tendo o júri argumentado que os elementos do conjunto vencedor estavam “industriados naquilo que se denomina música de vanguarda” e que “se realizaram compondo aquilo que apresentaram” (JM, Funchal, 31 dez. 1970, 1 e 3). A introdução de novas tecnologias – fonograma, telefonia e cinema –, bem como a influência da cultura estrangeira (que, por meio daquelas, se tornava acessível), foram acompanhadas de uma reação de resistência cultural com contornos políticos, a qual consistiu na procura da definição da identidade da cultura musical regional. Se, na transição do séc. XIX para o séc. XX, já haviam sido levadas a cabo várias ações de valorização do património musical regional, foi a partir da déc. de 1930 que se realizaram estudos sistemáticos e rigorosos sobre a cultura tradicional madeirense, altura em que as entidades políticas passaram a exercer uma maior intervenção, mais organizada, no âmbito das tradições regionais. De facto, no Estado Novo procurou impulsionar-se as relações entre turismo e folclore, para o que foi criado, em 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (posteriormente Secretariado Nacional de Informação), instituição dirigida por António Ferro entre 1933 e 1950. Este organismo procurou incentivar a perpetuação das tradições folclóricas, em proveito da afirmação nacionalista do regime, através de uma atividade extensível a nível nacional, por meio das diversas repartições e casas do povo (PINTO, 2006, 13). No domínio do folclore e dos estudos sobre as tradições musicais madeirenses, são especialmente relevantes os trabalhos elaborados pelo Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) e pelo jornalista e folclorista Carlos Santos (1893-1955). A partir de 1933, aproximadamente, o Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) realizou vários trabalhos etnográficos e apresentou conferências sobre as tradições musicais madeirenses (sobre o traje, passando pelas danças, até às trovas e cantigas da Madeira). Salvo raras exceções, estes estudos, usualmente de pequena dimensão (20 a 30 páginas), foram publicados a expensas próprias, destacando-se, na área das tradições musicais, os seguintes: Trovas e Cantigas Madeirenses (1934), Danças Madeirenses (1946), Trovas e Cantigas do Arquipélago da Madeira (1954), Danças e Músicas do Arquipélago da Madeira (1954), O Folclore Madeirense (1955), O Trajo do Arquipélago da Madeira (1955) e As Danças e as Músicas Madeirenses (1959). Carlos Santos realizou igualmente estudos mais aprofundados, com uma argumentação mais sólida, tendo as suas obras alcançado alguma reputação, designadamente as seguintes: Tocares e Cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e Bailados da Ilha (1942) e O Traje Regional da Madeira (1952). Estas investigações etnográficas foram acompanhadas de uma componente de prática musical, tendo Carlos Santos dirigido diversos grupos musicais folclóricos, como o Grupo Folclórico dos Louros (1938), o Grupo Folclórico e Cultural Carlos Santos (1939), o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (1949), o Grupo Folclórico da Ponta do Pargo, o Grupo Folclórico da Boaventura, o Grupo Folclórico da Ponta do Sol e o Grupo Folclórico do Livramento-Monte. Segundo Rui Magno Pinto, a partir do final da déc. de 1950 assiste-se a um crescimento do turismo e a uma maior procura por espetáculos de folclore em hotéis e em restaurantes. Assim, em plena déc. de 1960, atuavam nos hotéis do Funchal os seguintes grupos: Grupo Folclórico da Camacha (hotel Savoy, Reid’s hotel), Grupo Folclórico do Livramento (hotel Sheraton), Ilhéus (hotel Monte Carlo, Vila Ramos, Casino Park hotel), Grupo Folclórico do Funchal (hotel Madeira Hilton) e Grupo Folclórico do Porto Santo (hotel do Porto Santo). Além disso, a influência do folclore chega ao teatro. Em 1940, um Grupo Folclórico fundado por Carlos Santos, sediado no Patronato de S. Pedro, apresenta Visão Lírica-Coreográfica da Ilha da Madeira, da autoria do próprio Carlos Santos, no teatro municipal. A peça integrava diversos números musicais de cariz tradicional, tais como canções da ceifa, baile corrido, canção da carga, canção dos borracheiros, canção do berço, canção da sementeira, charamba, mourisca, bailes – da Ponta do Sol, dos Canhas, das Camacheiras –, pesado e bailinho de oito. O hábito do teatro de revista mantém-se no período do Estado Novo, pelo menos até à déc. de 1950. Nesta época, um dos compositores de relevo foi Edmundo da Conceição Lomelino (1886-1962), que criou várias peças de teatro de revista inspiradas na realidade madeirense, as quais alcançaram sucesso entre o público do Funchal. Entre as composições teatrais mais importantes ressaltam Água Benta, A Primavera, A Madeira em Festa (1938) – também representada nos Açores –, Carnaval (1939), Bolas de Sabão (1944) e Flores da Madeira (1945). O enredo das peças de teatro estava maioritariamente ligado a acontecimentos sociais e políticos da altura. Exemplo disso é a peça de teatro de revista Carnaval, em que Teotónio da Silva fez uma paródia à conferência de Munique de 1938. O Capitão Lomelino foi autor da música desta peça, com base num texto de Teotónio da Silva (1900-1976), dramaturgo com quem o compositor colaborou mais frequentemente neste âmbito. A introdução das novas tecnologias contribuiu para o declínio da dedicação à música no espaço doméstico e, em menor escala, para a diminuição da prática instrumental e vocal nos grupos de músicos amadores. O piano, nomeadamente, perdeu o seu lugar central nos entretenimentos familiares, papel que passou a ser ocupado pelo gramofone e pela rádio. As lojas que anteriormente incentivavam a compra de pianos para animação defendiam agora ser mais moderna e mais simples a compra de um gramofone. Desta forma, ao longo da déc. de 1930, os jovens começaram a desinteressar-se da prática musical, como refere Luís Peter Clode. De modo a conservar o que tinham por “música de qualidade” e uma “política do espírito”, os irmãos Luiz Peter Clode (1904-1990) e William Clode (1900-1980) reúnem um conjunto de intelectuais e de artistas e formam, em 1943, a Sociedade de Concertos da Madeira (SCMa) e, três anos depois, a Academia de Música da Madeira (AMM). No seguimento destas instituições, os irmãos Clode fundam, conjuntamente com Herculano Ramos e Arlindo Ramos, a rádio Posto Emissor do Funchal, com o propósito de aumentar o nível cultural da população e de lhe incutir o gosto pela música que consideravam de valor. A SCMa tinha o propósito de fomentar a “arte musical” na Madeira, em proveito de “uma sociedade de elite”. Com esse objetivo, a SCMa deveria organizar concertos, conferências e festas de arte que integrassem artistas madeirenses e continentais de mérito reconhecido. Apesar de a SCMa ter uma índole assumidamente elitista, os seus estatutos referiam que poderiam ser promovidos concertos, com artistas contratados para o efeito, para o público em geral. Nomeadamente, o auditório do jardim municipal do Funchal foi inaugurado num espetáculo da Orquestra de Concertos da Emissora Nacional, organizado pela SCMa, o qual contou com a assistência de milhares de pessoas. Inclusivamente, foram realizados concertos populares ao ar livre em vários locais do Funchal; por norma integrados nos Festivais de Música da Madeira, da responsabilidade da SCMa, estes concertos foram realizados em espaços tais como a Qt. Magnólia e o Lg. do Município, tendo a sua difusão atingido o auge principalmente ao longo da déc. de 50. Luiz Peter Clode deixou um vasto legado de obras, na sua maior parte pequenas peças que imitam o estilo dos compositores do barroco, do classicismo e do romantismo. Obras suas foram tocadas por alguns dos eminentes músicos que atuaram no Funchal sob o patrocínio da SCMa. Entre as suas composições mais importantes, contam-se três peças para piano – Canção de Amor, op. 23, Fantasia N.º 1, op. 12 e Fantasia N.º 2, op. 31 – e uma obra sacra, um Tantum Ergo para duas vozes e órgão. A fundação da AMM teve como primeiro intuito o aproveitamento das vocações no domínio da música. No plano curricular, a AMM procurou seguir, desde a sua criação, o modelo educativo do Conservatório Nacional, o que veio a possibilitar aos alunos da AMM o reconhecimento legal, a nível nacional, das suas habilitações. A oferta da AMM permitiu que crianças, jovens e artistas da Madeira pudessem aceder a um ensino baseado no repertório da tradição erudita europeia, de acordo com padrões educativos de conservatórios e de escolas de música erudita então vigentes no mundo ocidental. Desde o pós-25 de Abril ao início do séc. XXI A revolução de 25 de abril de 1974 trouxe mudanças de fundo na cultura musical madeirense. Com a autonomia da Madeira, em 1976, foram regionalizados vários serviços da administração pública, nomeadamente nas áreas da educação e da cultura, em que foram criadas ou semiprofissionalizadas estruturas culturais e educativas ligadas à música. Os primeiros tempos pós-revolução foram conturbados na Madeira, algo que se refletiu no quotidiano de algumas instituições ligadas ao ensino da música: e.g., a 29 de julho de 1974, a Academia de Música e Belas Artes da Madeira foi ocupada por “um grupo representativo de professores, alunos e de mais pessoas interessadas no desenvolvimento do meio cultural madeirense” (DN, Funchal, 30 jul. 1974, 1). A Orquestra e o Coro de Câmara da Madeira tiveram de adequar o seu discurso e o público-alvo aos novos tempos. Assim, menos de um ano após a revolução, noticiava-se que a “Orquestra e Coro de Câmara da Academia, desde outubro, tem vindo a atuar em diversos pontos da Ilha, contribuindo para uma maior difusão da cultura musical” (DN, Funchal, 26 jan. 1975, 1). Poucos meses depois, num anúncio a um concerto no forte de São João Baptista, informava-se que este era destinado “sobretudo aos pescadores, operários e camponeses da freguesia de Machico” (DN, Funchal, 27 abr. 1975, 3). Finalmente, sobre outro concerto, dirigido a associados e familiares do Sindicato Livre dos Operários da Construção Civil e Ofícios Correlativos do Distrito do Funchal, dizia-se ter “como objetivo principal tornar acessível a boa música às camadas da população habitualmente alheia à realização de concertos” (DN, Funchal, 2 jul. 1975, 6). Durante esta época, realizaram-se, no Funchal, eventos musicais de intervenção política, como concertos de “canto livre”, onde se procurava “lançar para o público canções com uma temática de certo significado político-social”, nas palavras do cançonetista Rui Mingas (DN, Funchal, 12 jul. 1974, 4). Neste âmbito, realizou-se, no Funchal, um espetáculo com cançonetistas de intervenção política, em que participaram músicos como Adriano Correia de Oliveira, Rui Mingas, Jorge Letria, Manuel Freire e Carlos Paredes. Alguns destes concertos eram abertos a qualquer pessoa. A título de exemplo, sobre um evento organizado no então Liceu Nacional do Funchal, informava-se que poderiam inscrever-se nele e “participar como intérpretes todos os que se queiram manifestar adentro do contexto de tal género musical” (DN, Funchal, 2 jul. 1974, 8). No entanto, este tipo de exibições musicais foi desaparecendo com o estabelecimento do regime autonómico, mantendo-se apenas, durante algum tempo, em comícios de partidos de esquerda. A forte tradição musical continuou nos hotéis da Madeira no período pós-25 de abril, não tendo os conjuntos sido diretamente afetados pela revolução (no entanto, a partir da déc. de 1990, assistir-se-á a uma forte precarização dos vínculos laborais dos músicos, bem como a uma redução do valor das remunerações por serviço). Entre os músicos e os novos conjuntos que se destacaram nesta altura nos hotéis, mencionam-se, numa listagem não exaustiva, os seguintes: Celso e o seu conjunto (hotel Madeira Palácio); O Pentágono & Zeca da Silva (Sheraton hotel); Conjunto Habitat (Holiday Inn Madeira); Conjunto Musical “Tap Herperi” e Galáxia (hotel Savoy); Roger Sarbib e os conjuntos Octopus e Ària (Casino Park hotel); Conjunto Pégaso (hotel Atlantis); Conjunto Express Band (hotel Vila Ramos); Conjunto Privativo Fire Work (hotel Savoy); Conjunto The Images (Taste Sheraton hotel); Conjunto “Ritmo 5” (hotel Girassol); Conjunto Contacto (hotel São João); Conjunto Musical Zenith (Casino Park hotel); Tony Cruz (hotel Savoy); Conjunto de Tony Amaral Jr. (Casino Park hotel). Tony Amaral Júnior (1938) merece ser posto em evidência, na qualidade de improvisador e de promotor da música jazz (desde o pós-25 de Abril até à sua partida para Cardiff, em 1989). O pianista teve uma carreira semelhante à do seu pai, Tony Amaral, e notabilizou-se pela sua qualidade técnica como intérprete, bem como pelos conhecimentos musicais superiores de que dispunha, derivados de uma formação musical mais completa. Tocou no hotel Miramar (1958), no Casino da Madeira às datas de 1965 e de 1979 e no hotel Savoy (1973). Em 1986, fundou o Madeira Jazz Club, que durante alguns anos foi o ponto de referência do jazz no Funchal. Atuou em festivais de jazz em Portugal, no Reino Unido e na França, tendo atraído muitos alunos particulares em razão do seu prestígio e do seu talento (quer ao piano, quer na improvisação de jazz); alguns dos seus alunos tornaram-se músicos de relevo no panorama artístico funchalense, como Adler Pereira ou Humberto Fournier. A partir de 1976, o Governo da Região Autónoma da Madeira (RAM) implementou um conjunto de políticas na área da educação, o qual teve um impacto significativo na área da música, quer integrada na educação artística em geral, quer no ensino artístico especializado, bem como no regime de ocupação de tempos livres. Instituições como o Conservatório-Escola Profissional das Artes da Madeira (CEPAM) – instituição sucessora da AMM, que se converteu em Conservatório de Música em 1977 – e o Gabinete Coordenador de Educação Artística – depois Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (DSEAM), integrada na Direção Regional de Educação – funcionaram como dois pilares educativos que permitiram o incremento do número de praticantes, bem como das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Estas duas instituições foram responsáveis pela formação de um conjunto considerável de recursos humanos de elevada competência musical. O aumento de músicos qualificados, juntamente com a opção das entidades governamentais em apoiar projetos com identidade jurídica, incentivou a criação de novos empreendimentos e associações culturais específicas do domínio musical, bem como o rejuvenescimento de antigos agrupamentos – no que toca à idade dos executantes e ao tipo repertório –, tais como bandas filarmónicas e grupos de bandolins. Assumiram identidade jurídica e transformaram-se em associações culturais, entre outros, os seguintes agrupamentos, bandas, grupos musicais e coros: Banda Recreio Camponês-Associação Cultural e Recreativa do Concelho de Câmara de Lobos; Associação Cultural Coro de Câmara da Madeira; Associação Grupo Cultural Flores de Maio; Grupo Coral do Estreito; Banda Municipal Paulense; Associação Musical e Cultural Xarabanda; Associação Cultural Encontros da Eira; Associação de Amigos do Conservatório de Música da Madeira; Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística; Associação Tuna Universitária da Madeira. As diferentes coletividades associativas e agrupamentos de bandolins juntaram-se, tendo surgido a Associação de Bandolins da Madeira a 28 de março de 2000; o mesmo aconteceu no caso das bandas filarmónicas e dos grupos de folclore, tendo sido fundadas a Associação de Bandas Filarmónicas da Região Autónoma da Madeira (2000) e a Associação de Folclore e Etnografia da Região Autónoma da Madeira (2005). A AMM e, posteriormente, o CEPAM formaram centenas de profissionais. Muitas das personalidades que vieram a integrar e a liderar a vida musical no último quartel do séc. XX obtiveram formação na AMM e no CEPAM; nos planos musical e do ensino da música, destacam-se personalidades como o tenor e compositor João Victor Costa (autor do hino da RAM, fundador e maestro de vários coros), Tony Amaral Júnior, a violetista Zita Gomes, o violoncelista Agostinho Henriques, o maestro Fernando Eldoro, o pianista e professor João Atanásio, os flautistas Agostinho Bettencourt e Pedro Camacho, os guitarristas João Paulo Henriques e Pedro Abreu, o maestro João Basílio, o tenor Alberto Sousa, o violinista Norberto Gomes, o clarinetista Francisco Loreto, o bandolinista Norberto Cruz, os compositores Nuno Miguel Henriques, Nuno Jacinto e Pedro Camacho, os violoncelistas Luís Bruno Andrade e César Gonçalves, entre outras; no plano dos estudos de cariz musicológico, realcem-se João Rufino Silva – com um trabalho notável ao nível da recuperação das partituras dos cânticos religiosos do Natal madeirense, bem como de quase toda a música religiosa madeirense do séc. XX –, Vítor Sardinha – com estudos relevantes sobre a música nos hotéis e sobre a história mais recente das bandas filarmónicas – e Rui Magno Pinto – com formação académica especializada em musicologia, tendo realizado trabalhos importantes ao nível da história da música na Madeira; finalmente, no plano de altos quadros da administração pública, salientam-se os nomes de Carlos Gonçalves, José Pereira Júnior, Virgílio Caldeira e Natalina Santos. Por sua vez, a DSEAM complementou o trabalho desenvolvido pelo CEPAM no ensino artístico e vocacional, com um trabalho de base no ensino genérico e em atividades de ocupação de tempos livres. Esta ação dupla do CEPAM e da DSEAM permitiu um acesso facilitado e de qualidade à música por parte das crianças e jovens na RAM, nomeadamente devido à existência de extensões do conservatório em vários concelhos, permitindo a aprendizagem em regime supletivo ou a frequência de atividades artísticas extracurriculares a valores muito reduzidos. No início do séc. XXI, devido à intervenção da DSEAM no ensino genérico, os alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico têm aulas com professores especializados de música. Acresce ainda que os alunos estudam instrumentos Orff e flauta de bisel, e, de acordo com as competências dos professores, têm a possibilidade de aprender instrumentos de corda, sopro e teclado em contexto escolar, através do projeto Modalidades Artísticas; neste contexto, existem vários professores que ensinam guitarra clássica e elétrica, instrumentos tradicionais, teclados e instrumentos sopro. Através desta iniciativa foi possível inverter a situação de quase desaparecimento dos instrumentos tradicionais, existindo muitas crianças e jovens a tocar os cordofones madeirenses (braguinha, rajão e viola de arame). No domínio da ocupação de tempos livres, criaram-se dezenas de grupos artísticos, os quais realizaram uma temporada anual com cerca de 240 concertos, disseminados pelos concelhos da RAM. Na sequência da aprendizagem artística (também musical), surgiram projetos de grande impacto turístico, tais como a Semana Regional das Artes, que se associou ao Festival Atlântico. Ainda no âmbito da DSEAM, implementou-se, desde 2004, uma política de apoio à investigação no domínio da educação artística, que teve resultados relevantes ao nível da melhoria do ensino, bem como nos âmbitos da conservação do património musical e do estudo dos artistas madeirenses, os quais são inseridos no currículo escolar da RAM. O incentivo à pesquisa foi acompanhado de atividades de divulgação na comunicação social e na comunidade científica, tendo daí resultado vários programas televisivos, edições com conteúdos originais, comunicações em congressos e artigos em revistas científicas. No âmbito da preservação e da difusão dos instrumentos tradicionais madeirenses, é relevante frisar os seguintes nomes, que contribuíram para o reflorescimento na prática dos cordofones tradicionais (braguinha, rajão e viola de arame): Roberto Moritz e Roberto Moniz, pelo trabalho continuado de ensino dos cordofones tradicionais; Vítor Sardinha, pelo ensino e pela gravação de álbuns discográficos com viola de arame e rajão; Manuel Morais, pelos estudos e pelas edições de repertório do séc. XIX para braguinha; Carlos Gonçalves, por ter possibilitado a aprendizagem dos instrumentos tradicionais nas escolas da RAM; e Rui Camacho, pelas exposições e edições de cariz organológico, as quais visaram a divulgação e defesa daqueles instrumentos – esta proteção foi protagonizada pela Associação Musical e Cultural Xarabanda. O papel da Associação Musical e Cultural Xarabanda foi decisivo na renovação da música do legado madeirense, quer através de trabalhos de recolha, quer por meio dos arranjos musicais efetuados sobre canções tradicionais, os quais levaram novos instrumentos e sonoridades à música tradicional. Neste domínio, é ainda relevante mencionar os grupos de música tradicional Encontros da Eira e Banda D’Além que, a par do grupo Xarabanda, foram os principais dinamizadores da nova música tradicional madeirense. Com a entrada de Portugal na União Europeia, a RAM teve acesso a subsídios que contribuíram para o desenvolvimento regional em vários sectores, nomeadamente na área da cultura e da educação, em que foram construídas e recuperadas diversas infraestruturas um pouco por toda a Ilha (como sedes para coletividades e centros cívicos e culturais com pequenos auditórios), as quais melhoraram as condições do exercício da atividade musical. No que diz respeito às pequenas coletividades culturais, houve pouca capacidade dos agentes desta área em concorrer a fundos europeus, por falta de recursos financeiros próprios e, possivelmente, de apoio técnico dos serviços governamentais na área cultural. Assim, as receitas das associações culturais com maior impacto junto dos turistas, tais como a Associação Recreio Musical e União da Mocidade (Orquestra de Bandolins da Madeira) e o Grupo de Folclore e Etnográfico da Boa Nova, são quase exclusivamente provenientes dos concertos e das animações que realizam. Trata-se de exemplos de sucesso, em termos de sustentabilidade financeira, de agrupamentos que conseguiram aliar o trabalho artístico de qualidade à capacidade de comunicação e ao marketing cultural. Ambos os grupos têm trabalhos discográficos importantes e uma elevada preocupação em conservar o património musical regional. No caso de instituições com capacidade financeira, advinda principalmente de financiamento público regional, os fundos europeus recebidos foram aplicados maioritariamente em formação, através do programa Rumos – como aconteceu no CEPAM –, bem como na criação da marca Festivais Culturais da Madeira – com o programa Intervir+ –, mediante a qual se procurou reunir os quatro festivais organizados pelo Governo Regional da Madeira, através da Direção Regional dos Assuntos Culturais (Encontro Regional de Bandas Filarmónicas da RAM, Festival de Música da Madeira, Festival Raízes do Atlântico e Festival de Órgão da Madeira). Os festivais são o corolário de uma política de animação cultural que visou, desde o início da RAM, a organização de eventos que beneficiassem os madeirenses e os turistas, tendo em consideração a vocação turística da região. Nesse sentido, o Governo Regional teve a preocupação de: organizar concertos e sessões de folclore, concertos de música clássica e espetáculos de música tradicional; produzir concertos com artistas de fora da Ilha; e apoiar acontecimentos culturais com potencial turístico, tais como o Carnaval, a Festa da Flor ou a Festa do Vinho, onde a participação de músicos sempre foi uma constante. Outros festejos musicais de relevo neste período foram: o Festival da Canção do Faial; o Festival Internacional de Música Antiga, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Cine Fórum; o Madeira Bach Festival; o Festival Regional de Folclore (mais tarde Festival Regional de Folclore “24 horas” a Bailar); o Festival da Canção Infantil, (posteriormente Festival da Canção Infanto-Juvenil); o Festival de Coros da Madeira; e o Funchal Jazz Festival. Desde o final da déc. de 1990, havia-se assistido a uma semiprofissionalização da Orquestra Clássica da Madeira (OCM) – instituição que sucedeu à Orquestra de Câmara da Madeira –, mais direcionada para a música instrumental, não se aproveitando o seu potencial para áreas de cariz mais cosmopolita, como a ópera, os musicais ou o bailado. Houve, embora de forma intermitente, alguma articulação entre o ensino artístico especializado e a OCM, o que permitiu o aumento de músicos portugueses, após um período em que os lugares da orquestra eram principalmente preenchidos por músicos estrangeiros, na sua maioria oriundos do Leste Europeu, que tinham ido para a Madeira no período após a queda do muro de Berlim. Os músicos de Leste foram responsáveis pela elevação da qualidade da execução musical, maioritariamente na área das cordas, e contribuíram significativamente para a melhoria da OCM. Nos anos 90, no contexto do jazz, há que realçar o grupo Oficina, que procurou alargar o número de adeptos deste género musical. Uma das cantoras mais relevantes do início do séc. XXI foi Vânia Fernandes, que atuou nos hotéis da Madeira antes de se catapultar para o panorama nacional. A cantora madeirense ganhou renome em 2008, com a participação no programa musical “Operação Triunfo 3”, emitido pela RTP, no qual ficou classificada em 1.º lugar. Em março de 2008, no seguimento desta vitória, participou no Festival RTP da Canção, que venceu com o tema “Senhora do Mar”. Entre finais do séc. XX e inícios do séc. XXI, o turismo madeirense evoluiu significativamente, tendo-se caracterizado tanto pelo constante aumento do fluxo de turistas como pelo consequente aparecimento de novas unidades hoteleiras, as quais empregaram um número elevado de músicos, embora sem qualquer vínculo contratual. As causas desta precariedade laboral são complexas, mas deverão estar relacionadas com o aumento exponencial dos músicos de melhor formação no mercado de trabalho (entre os quais alguns músicos do Leste da Europa, habituados a remunerações mais baixas) e com a concorrência no domínio do entretenimento nos hotéis, designadamente dos disc-jockeys ou DJs (as áreas das danças e da animação eram anteriormente dominadas pelos conjuntos). De facto, encontram-se referências a disc-jockeys no Funchal a partir da déc. de 1990: e.g., no hotel do Mar, em 1992, atua o “popular disc-jockey Britânico Biko Bangs, excelente intérprete de temas anglo-saxónicos” (DN, Funchal, 21 fev. 1992, 13). Juntamente com os disc-jockeys começou a emergir, na déc. de 1990, uma geração de grupos de rock e de subgéneros do rock. Os conjuntos que precederam estes novos grupos tocavam habitualmente na hotelaria madeirense para um público maioritariamente estrangeiro, pertencente a uma faixa etária mais avançada em idade; diferentemente, os novos grupos rock pertencem ao fenómeno das “bandas de garagem” e são influenciados pela música grunge, hard rock, heavy metal, rock alternativo, gothic metal e por outros subgéneros do rock; tocam principalmente para públicos jovens, em bares, em discotecas ou em festivais específicos, como a Festa da Juventude, o Super Rock ou o Antena 3 Rock. Entre os grupos participantes em concursos de rock ou que foram noticiados na comunicação social estão os seguintes: Nostradamus, Requiem, Alma Gesto, Nude, Pilares de Bânger, Cães Abstractos, Quarto Quadrante, Sidewalk, Opium, Insania, Crumbs. Ao contrário do que aconteceu em Portugal continental, na Madeira eram poucas as possibilidades de atuação destes grupos, tal como os próprios agrupamentos por vezes reclamavam. Assim, os vários grupos que surgiram foram quase sempre de curta duração e tiveram pouca ou nenhuma projeção nacional (ao contrário do que havia acontecido na era dos conjuntos); a maioria destes grupos não chegou a gravar qualquer disco. Os empresários promotores do rock reconheciam o problema da falta de oportunidades dos grupos madeirenses, cujo panorama era bastante diferente do lisboeta, onde os orçamentos eram elevados e os promotores privados auferiam lucros. Além disso, a contratação de grupos de referência implicava custos difíceis de suportar, tais como os relacionados com “deslocação, alojamento, alimentação aluguer de sala e de tecnologia”, que, aliados aos cachets altos e fixos dos grupos, estorvaram a produção de concertos com grupos de rock do exterior da Madeira (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). A dificuldade em conseguir apoios de empresas regionais, à semelhança do que aconteceu a nível nacional, tornou complicada a organização de festivais e concertos; a principal causa de afastamento dos patrocinadores deveu-se à concorrência de outros eventos, como ralis e campeonatos de desportos, quer profissionais, quer de modalidades amadoras. Apesar de tudo, os principais e mais famosos grupos de rock portugueses à época atuaram na Madeira, o que foi viável em virtude de estes garantirem mais facilmente “maiores afluências de público” (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). Assim, nos anos 90 atuaram no Funchal grupos como os Peste & Sida, os Resistência, o grupo de música moderna Rádio Macau, os Madredeus, os GNR, acompanhados dos espanhóis La Frontera, e os Xutos e Pontapés. Nos primeiros 15 anos do séc. XXI, os problemas da Madeira no domínio musical estão relacionados com questões estruturais, não tanto com a qualidade dos intervenientes. Todavia, existem casos de boas práticas em várias áreas, desde o jazz, passando pela música clássica, até à música tradicional e ao rock. Além disso, vive-se nestes anos o resultado da aplicação de um tipo de ensino musical que formou milhares de jovens com razoáveis competências musicais.     Paulo Esteireiro (atualizado a 01.02.2018)

Artes e Design Sociedade e Comunicação Social