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cais regional

O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da passagem pelo Funchal da princesa D. Leopoldina de Áustria, em setembro de 1817, quando se fez uma ponte para o seu desembarque junto ao palácio de S. Lourenço, tendo o espaço envolvente sido arranjado nos anos seguintes. A construção de um cais de pedra ensaiou-se em 1843, mas a breve trecho estava arruinado, e somente em 1879 se voltou a estudar o assunto, sendo as obras do cais iniciadas em 1889 e terminadas em 1892. O cais ainda foi ampliado entre 1932 e 1933, e a sua importância é patente na imensa documentação fotográfica existente. O seu interesse como cais perdeu-se com o aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e o advento dos transportes aéreos, no entanto, mantém-se como importante zona de lazer da cidade, tanto para visitantes como para residentes. Palavras-chave: Entrada da cidade; Molhe de acostagem; Porto; Transportes marítimos; Turismo. O cais regional, também designado por cais da entrada da cidade, nasceu da determinação feita, quando da passagem pelo Funchal da princesa D. Maria Leopoldina de Áustria (1797-1826), em setembro de 1817, de que deveria ser feita “uma ponte para o cómodo e decente desembarque da mesma Augusta Senhora”, assim como preparar-se com o devido “asseio e arranjo na Casa do Governo” instalações para a princesa (ARM, Governo Civil, liv. 198, fls. 33-34v.; AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 3965). Configurou-se, assim, o arranjo do espaço frente ao palácio e fortaleza de S. Lourenço para a entrada solene da arquiduquesa de Áustria no Funchal, então perene, mas a partir de 1839, demolidas as portas e casa da Saúde, onde até então a Câmara procedia ao controlo sanitário, foi a área transformada em entrada de honra da cidade (Entrada da Cidade). O cais de desembarque do porto do Funchal fora feito na base do ilhéu do forte de S. José, em 1756, pelo Eng. Francisco Tosi Colombina (1701-c. 1770), mas não só era então muito distante do centro da cidade, como muito acanhado. Em 1824, ensaiou-se um novo cais de desembarque, então nas baixas frente à fortaleza de S. Tiago, projeto da autoria do Brig. Francisco António Raposo e execução do Ten.-Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em cujos trabalhos se gastaram então 37 contos de réis, tendo tudo sido levado pelo mar. A 17 de fevereiro de 1829, inclusivamente, mandava-se retirar de S. Tiago os degraus de cantaria “que se destinavam ao cais que se projetara construir” para se utilizarem no molhe de cais da Pontinha (ARM, Governo Civil, liv. 798, fl. 51v.). A oportunidade da construção de um cais frente à entrada da cidade veio a surgir após a aluvião de 24 de outubro de 1842. Um mês depois, a 26 de novembro, foi despachado para o Funchal o então Maj. Manuel José Júlio Guerra (1801-1869), experiente militar liberal com larga folha de serviço nos Açores, Porto, Algarve e Setúbal, mas, em princípio, sem as capacidades científicas dos outros dois engenheiros na altura também presentes na ilha: António Pedro de Azevedo (1812-1889)  e Tibério Augusto Blanc (c. 1810-1875), mas um somente capitão e o outro tenente. O mais importante e inglório trabalho de obras públicas desenvolvido nestes anos pelo novo diretor das obras públicas, Maj. Manuel José Júlio Guerra, foi o cais em frente à entrada da cidade, mas a breve trecho viria a perder-se, como o ensaiado nos baixios de S. Tiago. A Câmara Municipal do Funchal, por resolução de 23 de abril de 1843, por certo após acordo com o Maj. Guerra, propunha a construção de um cais de pedra em frente à entrada da cidade, votando, para isso, a verba de 1200$000 réis. O assunto foi presente ao conselho do distrito em 6 de maio seguinte, ficando encarregado de dirigir a obra o Maj. de engenharia Manuel José Júlio Guerra, que a 24 do mesmo mês solicitava um reforço de mais um conto de réis para colocar depois as obras a coberto do inverno. O custo da obra não parava de aumentar, tendo-se já gasto em fevereiro de 1844 mais de quatro contos de réis, pedindo ainda o Maj. Guerra mais um reforço de 18 contos de réis, quantia que a Câmara não via maneira de poder satisfazer. Em sessão camarária de 6 de março de 1844, foi colocado o assunto, surgindo uma proposta de criação de uma comissão para dirigir as obras do cais, entregando-se a presidência ao Maj. Guerra, mas constituindo um corpo com um delegado camarário, o Dr. Manuel Joaquim Moniz, os engenheiros militares Cap. António Pedro de Azevedo e Ten. Tibério Augusto Blanc e o Eng. camarário Vicente de Paula Teixeira (1785-1855). A proposta acabou por não ser aprovada superiormente, continuando as obras sob a desastrosa direção do Maj. Guerra. Entretanto, assumindo a direção dos destinos da Ilha a Junta de Governo (Regeneração e Partido Regenerador), na sequência das revoltas da Maria da Fonte e da Patuleia, que afastou o Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891) e chegou a ter por presidente o já então Ten.-Cor. Eng. Manuel José Júlio Guerra, ainda viriam a ser desbloqueadas importantes verbas para as obras do cais da entrada da cidade. Com o regresso do governador ao palácio de S. Lourenço, as obras pararam e o Ten.-Cor. Guerra seria transferido para o continente, não voltando à Madeira. Mais tarde, em 1853, Isabella de França (1797-1880) descreveria que, “perto do sítio onde desembarcámos, notam-se vestígios de um cais, planeado há já alguns anos. Nele se gastaram quantias importantes e se desperdiçaram materiais e trabalho que bem poderiam ter sido úteis”. A autora cita ainda que as obras, não devidamente acauteladas, haviam sido praticamente desfeitas por um temporal. Acrescenta ainda que “em Portugal, como na maioria das nações, a utilidade pública é a razão que se alega para todas as obras; infelizmente trata-se só de um pretexto; o primeiro objetivo reside na glorificação pessoal, se não nos emolumentos que os funcionários auferem. Nestas condições iniciam-se obras de vulto; os que as projetaram deixam os seus cargos antes que elas terminem – e ei-las abandonadas, para darem lugar a outras, do mesmo modo superiores aos recursos do país”. As obras haviam sido planeadas pelo Maj. Guerra, acrescentando a autora que, “numa das efémeras revoluções que então desvairaram Portugal, colocou-se ele à frente de um movimento para destituir o governador e estabelecer uma junta, de que seria, é claro, presidente”. Reconduzido o governador, o Maj. Guerra fora “enviado para o continente e posto a meia-ração. Noutro país teria sido fuzilado!”. Com a sua saída, tinham paralisado “e ninguém se incomodou em garantir o que estava feito, pois as honras reverteriam para ele” (FRANÇA, 1970, 51-52). Desconhecia a atenta inglesa que o Maj. Guerra, colocado no polígono de Tancos, conseguiria ainda candidatar-se a deputado por Vila Nova da Barquinha e ser eleito, acabando os seus dias como general. O desenvolvimento do turismo, especialmente o terapêutico, começou a condicionar, a partir dos inícios e meados do séc. XIX, de uma forma cada vez mais determinante, a situação geral da ilha da Madeira, quer económica quer social. Esse caminho encontrava-se já perfeitamente definido na época da governação do Cons. José Silvestre Ribeiro, que a todo o momento evocava para as suas determinações “a presença de inúmeros estrangeiros que nos visitam” (Anais municipais), etc. Na época da sua governação, especialmente, encontram-se na Ilha três das mais altas figuras da aristocracia europeia: a rainha viúva Adelaide de Inglaterra (1792-1849), de origem alemã, nascida Saxe-Meiningen, o príncipe Maximiliano de Beauharnais, duque de Leuchtenberg (1817-1852), que seria pintado na Madeira por Karl Briullov (1799-1852) (Briullov, Karl), e a sua irmã, a imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Bragança (1812-1873), tendo todas essas visitas sido cuidadosamente preparadas e, também, aproveitadas para melhoramentos vários na Madeira. Quando da preparação da visita da imperatriz viúva D. Amélia e da sua filha, a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), em agosto de 1851, por exemplo, um ano antes da chegada dessas senhoras, determinou de imediato o governador ao Eng. Tibério Blanc “o maior desembaraço na construção do cais da Pontinha”, ou seja, na remodelação do mesmo, “para desembarque de Sua Majestade Imperial, a Senhora Duquesa de Bragança e filha”, recomendando que “a obra seja executada de forma a ficar para sempre”. Aproveitou ainda para determinar ao mesmo engenheiro que mandasse “os moradores da zona caiarem as casas e limparem os entulhos”, assim como determinou que fossem feitos alguns “trabalhos na estrada nova do Ribeiro Seco, de modo a ficar perfeita e que S. M. I., possa ir até à Praia Formosa”, determinações que de imediato foram publicadas nos jornais da época (A Época, 31 ago. 1851). Os portos e os cais de desembarque eram assim uma constante preocupação das autoridades locais. Na fase final da sua estadia na Madeira, ainda o encarregou José Silvestre Ribeiro, mais uma vez, da revisão de todos os cais da ilha da Madeira. O Eng. Tibério Blanc elaborou assim uma extensa lista dos cais que necessitavam de obras de melhoramento e reformulação, como eram os casos do cais do Pesqueiro, na Ponta do Pargo; Paul do Mar; Ponta da Galé; Ponta do Sol; Câmara de Lobos; Ponta da Cruz; Gorgulho; Ponta da Oliveira; Ponta do Guindaste e Ponta Delgada, assim como um novo ancoradouro na baía de Machico. As décs. de 80 e 90 do séc. XIX apresentaram o progressivo aumento do turismo, já não especificamente terapêutico, mas essencialmente de lazer, que já começava a representar algum peso na economia nacional, pelo que passou a despertar um certo interesse nas secretarias do Governo de Lisboa. A repartição das obras públicas distritais conheceu mesmo algum incremento, por ela passando os Caps. Júlio Augusto de Leiria (c. 1838-1878) e Henrique de Lima e Cunha (1843-1915), tendo cabido a este último os primeiros trabalhos conducentes à execução do novo cais da entrada da cidade. Com o aumento da circulação de passageiros no porto do Funchal, por portaria de 17 de setembro de 1879, voltava a estudar-se, finalmente, o que fazer do amontoado de ruínas em que se transformara o cais da entrada da cidade. Foi então encarregado do estudo o Cap. de artilharia Henrique de Lima e Cunha, voltando a propor-se a execução de um cais idêntico e no mesmo local, com toda uma outra solidez, claro, à frente da Entrada da Cidade, proposta aprovada em Lisboa, em 17 de julho de 1881, mas que só avançaria em 1886, quando já se encontrava aprovado a prolongamento do molhe da Pontinha através da união dos dois ilhéus. O projeto teve ainda alterações, pelo Eng. José Bernardo Lopes de Andrade, em 1887, e veio a ser adjudicado pelos Engs. franceses Fréderic Combemale, Jules Michelon e Arthur Mury, que já em 1885 haviam conseguido a execução das obras do molhe da Pontinha (Molhe da Pontinha). As obras do cais regional iniciaram-se a 18 de janeiro de 1889, envolvendo um montante de 87.000$000 réis e – vindo a ser depois reconhecido a estes empreiteiros, na ocasião do ajuste de contas, vários trabalhos executados fora do projeto inicial ajustado, ainda receberam mais 92.005$485 réis – demonstrando a complexidade do projeto. A obra ficou concluída a 27 de abril de 1892, sendo recebida provisoriamente nessa data, mas a receção definitiva só teve lugar a 27 de abril de 1895. Por parecer da Junta Consultiva das Obras Públicas, de 30 de maio do mesmo ano, foram os empreiteiros julgados quites para com o Estado de todas as obrigações que haviam contraído, o que consta da portaria de 10 de julho de 1895. Ao longo destes anos, decorreram assim igualmente as obras do molhe do porto do Funchal, cuja iniciativa se ficou a dever ao governador civil, António de Gouveia Osório (1825-c. 1905), visconde de Vila Mendo (Vila Mendo, Visconde de), que, no seu ofício de 15 de outubro de 1881, voltara a chamar a atenção para as vantagens que a baía do Funchal ganharia com a construção de um cais e porto de abrigo, ação saudada pelos comerciantes do Funchal. O molhe proposto, no entanto, era insatisfatório, sendo “apenas um ponto de partida para a futura construção de uma doca regular” e que devia completar-se pelo seu prolongamento em direção a leste, como refere a direção da Associação Comercial do Funchal (Ibid., 25 abr. 1884, 16 jun. e 19 out. 1885), chegando, inclusivamente, a colapsar com o grande temporal ocorrido no último dia de fevereiro e nos primeiros dias de março de 1892, que arruinou de forma drástica uma grande parte da obra já feita e a destrui quase por completo. As obras seriam recomeçadas em 1893, estando prontas em 1895, porém, as condições de acostagem dos grandes navios sempre foram deficientes nesta fase do molhe, acabando os paquetes por ficar ao largo e os passageiros a ser transferidos por lancha para o cais da entrada da cidade. Assim que, até à ampliação do molhe de acostagem, nos meados do séc. XX, para leste da fortaleza do Ilhéu, o movimento de passageiros do porto do Funchal foi feito pelo cais frente à entrada da cidade, ou cais regional. Com o aumento do movimento de passageiros, impôs-se o aumento deste cais, tendo a Junta Autónoma das Obras do Porto aberto concurso para essa realização, que terminou a 30 de outubro de 1930, sendo a construção adjudicada à casa Nederlandsche Maatschappij Voor Havenwerken pela importância de 4763.000$00 escudos. O acrescentamento do cais seria feito pela colocação de cinco grandes módulos de 3337 m3, tendo o primeiro sido colocado a 25 de junho de 1932 e o quinto e último em janeiro de 1933. A inauguração oficial ocorreu a 28 de maio desse ano, data especialmente comemorada pelo Governo da Ditadura. A importância deste cais é patente na imensa documentação fotográfica existente, que, graças aos novos meios de comunicação, não deixa de aumentar. O aumento da capacidade de acostagem do molhe do porto do Funchal e, muito especialmente, o advento e a democratização dos transportes aéreos roubaram protagonismo e interesse ao cais em frente à entrada da cidade, como aliás também à mesma. No entanto, todo este espaço se mantém como importante zona de lazer da cidade até aos dias de hoje, tanto para visitantes como residentes.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património História Económica e Social

brasões de armas

A descrição e o estudo dos brasões de armas ou escudos encontra-se a cargo da heráldica, ciência muito complexa e com uma linguagem que escapa à maioria das pessoas não iniciadas nesse tipo de estudos. As origens da heráldica remontam aos tempos da Idade Média, em que era imperativo distinguir os participantes nas batalhas e nos torneios, pelo que havia a necessidade de utilizar bandeiras ou estandartes (Bandeiras) reconhecíveis a uma certa distância e, depois, de recorrer a outros elementos facilmente reconhecíveis a menor distância. A diferenciação era definida pelo soberano através da atribuição de determinadas cores e de outros elementos identificativos a serem pintados nos escudos dos seus principais servidores. A complexidade progressiva da corte portuguesa, entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, levou à nomeação de um rei de armas, que tinha por função organizar o arquivo dos brasões atribuídos e equacionar os novos, a atribuir, propondo quem os deveria possuir, juntamente com as cores e as peças que deveriam figurar nos respetivos escudos. Os primeiros brasões consistiam essencialmente numa cor, depois definida como sendo um esmalte ou um metal, este último quando se tratava de ouro ou de prata. Quase ao mesmo tempo, foi colocado sobre esse fundo, que em heráldica se designa campo, um animal ou uma parte do mesmo ou até outra figuração, nomeada peça e identificativa da personalidade em questão ou da família. Este elemento, ou um outro, era ainda geralmente colocado sobre o elmo, constituindo o chamado timbre. Acresce que, para os torneios medievais e outros exercícios militares, as cores utilizadas nos esmaltes e nos metais eram ainda aplicadas nas vestes, definindo-se também assim, heraldicamente, o paquife, herdeiro dos antigos mantos vestidos pelos cavaleiros, e o virol, formado por um entrelaçado, em princípio, feito com os mesmos tecidos, com uma das cores do esmalte do escudo e com uma outra de um dos metais, e colocado sobre o elmo, lembrando o torçal que defendia o cavaleiro dos golpes de espada. Portanto, os elementos definidores dos brasões de armas iniciais foram: o escudo, o paquife e o virol, e o timbre. Progressivamente, anexaram-se inúmeros outros, como os tenentes ou suportes do escudo, os coronéis de nobreza, por vezes, impropriamente designados por coroas (só se devem assim nomear quando reais), os listéis com motes, divisas, lemas e gritos de guerra, terrados, etc. A passagem de toda esta linguagem e figuração para a Madeira não foi direta. Com efeito, o aparente isolamento da sociedade insular propiciou, senão algumas inovações, pelo menos alguns abusos. Num contexto geral, o primeiro degrau de nobreza era constituído pelos escudeiros, como o nome indica, aqueles que levavam os escudos dos cavaleiros, sendo recrutados entre os pajens e tendo, na Idade Média, entre 7 a 14 anos. Conforme o seu desempenho e, inclusivamente, a sua posterior prestação em combate, ao atingir a idade adulta, entre os 18 e os 20 anos, podiam ser armados cavaleiros, ascendendo assim ao degrau de nobilitação seguinte. Sendo alguns escudeiros de origem fidalga, porventura, teriam já direito a possuir um brasão de armas próprias. Aqueles que eram armados cavaleiros, em princípio e num futuro mais ou menos próximo, seriam dotados com brasão de armas. Caso o cavaleiro tivesse o pai ainda vivo, e porque o brasão de armas era pessoal, este seria acrescido de uma brica ou diferença, geralmente colocada no cantão direito do chefe, ou seja, no canto superior direito do portador, dado a leitura de um brasão ser feita na perspetiva do utilizar e não do observador. A organização do povoamento da Madeira, até aos meados do séc. XV, inviabilizou um pouco esta organização, que era a que vigorava no continente do reino. João Gonçalves Zarco (c. 1395-c. 1471), p. ex., embora tenha sido armado cavaleiro, em princípio em Ceuta, antes de ser enviado na missão de que resultou o descobrimento da Madeira, só veio a ser agraciado com brasão de armas a 4 de julho de 1460. Tanto quanto se sabe, nem ele nem o filho João Gonçalves da Câmara (1414-1501) parecem ter utilizado o respetivo brasão de armas, pois estes não constam nas lápides sepulcrais de ambos, na capela-mor da igreja de S.ta Clara do Funchal. Em 1452, o primeiro capitão do Funchal terá solicitado, a D. Afonso V, quatro pequenos fidalgos para casarem com as suas filhas, uma vez que a Madeira era “terra nova”, não havendo “com quem pudessem casar, segundo o merecimento de suas pessoas”; segundo escreveu Gaspar Frutuoso, repetindo quase literalmente o que o cónego Jerónimo Dias Leite lhe mandara da Madeira, resultou destes casamentos “a mais ilustre e nobre geração da Ilha” (FRUTUOSO, 1968, 217). Túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos. 1493. Ao que sabemos, nenhum dos genros de Zarco possuía brasão de armas e, embora fossem fidalgos, não eram primogénitos. Mas, num curto espaço de tempo, os mesmos ou os seus descendentes assumiram escudos com as armas plenas dos seus antepassados. Assim aconteceu com Martim Mendes de Vasconcelos (c. 1432-c. 1493), que casou com Helena Gonçalves da Câmara, “matrona de tanta virtude que se justifica falar-lhe muitas vezes o crucifixo milagroso de S. Francisco do Funchal”, como escreveu Henriques de Noronha (NORONHA, 1948, 518), numa alusão ao milagre ocorrido a 26 de dezembro de 1482, que depois foi mandado certificar e publicar pelo bispo D. frei Lourenço de Távora (1566-1618), por alvará episcopal de 24 de outubro de 1615 (Convento de São Francisco e Sé do Funchal). Com efeito, Martim Mendes de Vasconcelos era um terceiro filho e o seu pai e homónimo não era, quase certamente, o representante dos “Vasconcelos de Portugal”, como veio a referir depois, de modo abusivo, o mesmo Henriques de Noronha (Id., Ibid.). Porém, as armas que mandou lavrar no seu túmulo, ainda hoje existente na igreja de S.ta Clara do Funchal (Convento de Santa Clara), são as da principal linha dessa família. O mesmo terá acontecido com os restantes genros de Zarco, embora não tenha chegado até nós nenhum exemplar dos seus brasões de armas iniciais: Diogo Afonso de Aguiar, que casou com Isabel Gonçalves da Câmara e que se terá fixado em São Martinho do Funchal, sendo sepultado no convento de S. Francisco; Diogo Cabral (c. 1432-1496), que desposou Beatriz Gonçalves da Câmara e era o irmão mais novo do senhor de Belmonte e, em princípio, tio do futuro almirante Pedro Álvares Cabral, fixando-se o casal em Vale de Amores, na Calheta, e sendo aí sepultado; Garcia Homem de Sousa, que seria filho de João Homem de Sousa e que “se entendia ser” neto de Pedro Homem, um dos “doze de Inglaterra” (Id., Ibid., 329), que contraiu matrimónio com Catarina Gonçalves da Câmara e veio a levantar a chamada torre do capitão, a Santo Amaro do Funchal (Arquitetura senhorial). Não consta qualquer carta de brasão de armas destes parentes de Zarco. Também não possuímos informações concretas sobre as armas dos capitães de Machico, sendo o primeiro capitão, inicialmente, quase apenas designado por Tristão ou Tristão da Ilha e tendo o seu filho e segundo capitão usado o apelido da mãe, sendo assim Tristão Vaz Teixeira. O capitão do Porto Santo, Bartolomeu Perestrelo, possuiria já brasão, pois existiam armas de família, mas não temos muitas referências da sua utilização nessa época, muito menos naquela ilha, onde só se deslocava pontualmente. Bartolomeu Perestrelo foi o primeiro a ter carta de doação da sua capitania, passada a 1 de novembro de 1446, o que parece indiciar uma condição social mais elevada, tal como indicam os dois casamentos que contraiu no continente, sempre com famílias de elevada qualidade social. A sua descendência veio a entroncar-se na dos capitães de Machico e, depois, também na dos capitães do Funchal. Dentro dos arranjos matrimoniais da emergente nobreza madeirense, o segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara, começou por casar com uma cunhada, Isabel Homem, filha de João Homem de Sousa e irmã de Garcia Homem de Sousa. Não houve geração desta união e, falecida D. Isabel, o segundo capitão voltou a casar, então em Ceuta, com D. Maria de Noronha, filha de D. João Henriques e D. Beatriz de Mirabel; D. Beatriz foi depois dada como fidalga aragonesa e o seu marido como filho segundo de D. Diogo Henriques, bastardo do infante D. Afonso de Noronha, conde de Gijón e filho de D. Henrique II de Castela. Os descendentes daquele casamento vieram a optar quase todos pelo apelido Noronha, salvo o primogénito, que, por determinação real e para poder aceder à capitania do Funchal, teve de voltar a usar o apelido anterior, Câmara de Lobos, ficando assim Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). A partir dos meados do séc. XV, os principais filhos-família da Madeira passaram a combater no Norte de África, no quadro do serviço régio, recompondo-se assim, de certa forma, o quadro medieval de nobilitação. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se uma rede de casamentos de primos cruzados entre as principais famílias terratenentes da Ilha, até para a manutenção do património fundiário. E muitas dessas famílias passaram a enviar os seus filhos para serem educados na corte de Lisboa, primeiro como pajens, em seguida como escudeiros; estes indivíduos, geralmente, viriam a ser referidos como tendo sido educados no paço. Nos finais de Quatrocentos, no entanto, emergiu também na Madeira uma nova sociedade de escudeiros, mas agora nobilitados pelo serviço régio da Fazenda e da Justiça, e que, logicamente, não tinham acesso a brasão de armas. As dificuldades iniciais do registo dos brasões de armas ficaram logo patentes nas insígnias dos Câmara de Lobos atribuídas a João Gonçalves Zarco e seus descendentes. Nelas deveriam figurar dois lobos-marinhos afrontando uma torre, porém, ao serem executadas, na corte de Lisboa, por alguém que nunca terá visto tal animal, no lugar dele foram representados dois lobos continentais, espécie que nunca existiu na Madeira, mas que passou a ser a utilizada por todos os descendentes de Zarco, nomeadamente o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569) e depois, e de forma plena, os vários ramos da família, especialmente o açoriano, dos condes da Ribeira Grande (embora, neste caso, com o campo do escudo de negro). As armas que parecem ter sido seguidamente atribuídas a um residente da Madeira foram as de António Leme; desta feita, por D. Afonso V, a 2 de novembro de 1475 e por intercedência do príncipe D. João, devido à sua participação na tomada de Arzila e de Tânger, para onde foi enviado pelo pai, Martim Leme de Bruges, da Flandres. A carta de armas refere, inclusivamente, que, embora “da parte de seu pai pudesse trazer armas com diferença”, D. Afonso V lhe atribuía armas “sem diferença alguma” e como “chefe delas” (ANTT, Leitura Nova, Místicos, liv. 3, fl. 15). Trata-se de uma distinção excecional, somente compreensível à luz de um conjunto de serviços muito importantes prestados à coroa pelo seu destinatário, incluindo, certamente, os das navegações executadas a cargo do futuro D. João II. António Leme, nos finais da déc. de 70, encontrava-se radicado na vila do Funchal, fornecendo informações a Cristóvão Colombo sobre a existência de terras para ocidente. Em março de 1485, apareceu na Câmara como um dos homens-bons do concelho e, em agosto, foi citado como cavaleiro e morador na mesma vila, passando a assumir os negócios da família, dado o falecimento do irmão, Martim Leme, que tinha negócios na Madeira, pelo menos, desde agosto de 1481 e usava também armas plenas em Portugal. A partir de outubro, passou a surgir como vereador ao lado do também navegador Álvaro de Ornelas, sendo de abril de 1489 a última referência que temos da sua atividade nesse cargo e da sua presença no Funchal. De 20 de fevereiro de 1485 são as armas de João Fernandes do Arco, filho do segundo casamento de Fernão Dias de Andrada e que adquirira as propriedades de seu irmão, Diogo Fernandes de Andrada, que regressara a Castela, no Arco da Calheta. As armas em questão, com um sagitário em campo de ouro, encontram-se registadas tanto no Livro do Armeiro-Mor de João de Cró, de 1509, como no Livro da Nobreza e da Perfeição das Armas de António Godinho, elaborado depois, entre 1521 e 1541, com o pormenor de estar o sagitário virado para a direita neste e para a esquerda no outro. Parece que nenhum ramo dos seus descendentes voltou a utilizar estas armas, não as reivindicando, até porque passaram a usar o apelido Abreu. Com efeito, João Fernandes do Arco (c. 1450-1527) casou com Beatriz de Abreu e deste matrimónio houve 13 descendentes, todos conhecidos pelo apelido Abreu. Os filhos distinguiram-se no Norte de África, inclusivamente acompanhando o pai, passando depois à Índia, onde António de Abreu ganhou uma notável reputação. A maioria da descendência masculina passou assim à Índia e, depois, ao Brasil, tendo poucos fixado residência na Madeira. As filhas entraram para as principais famílias madeirenses, mas não só, pois Beatriz de Abreu, homónima de sua mãe, casou com Bartolomeu de Paiva, vindo a ser ama-de-leite do futuro D. João III e uma das principais figuras da corte de D. Manuel I, pelo que o marido passou a ser conhecido como o Amo. Uma outra filha de João Fernandes do Arco, D. Joana de Abreu, p. ex., veio a casar, por volta de 1510, com D. João Henriques, segundo filho de D. Fernando Henriques, senhor das Alcáçovas, e de D. Filipa de Noronha, filha do terceiro capitão do Funchal, tomando assento na Ponta do Sol. Desta família notabilizou-se o padre jesuíta D. Leão Henriques (c. 1515-1589), que fora criado em Lisboa, em casa de seu tio D. Fernando Henriques, e veio a ser o primeiro reitor do colégio do Espírito Santo, universidade de Évora, confessor do cardeal D. Henrique, ao longo de 24 anos e, depois, seu testamenteiro (Henriques, Leão). Uma pedra de armas desta família, dos meados do séc. XVII, encontra-se hoje na casa do Pé do Pico, em Câmara de Lobos, propriedade da família Henriques de Gouveia. Entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, devem ter sido atribuídas, ou pelo menos confirmadas, várias cartas de armas, mas cuja documentação não perdurou. Tiveram carta de brasão, muito provavelmente, Álvaro de Ornelas, o Velho, pois o filho, Álvaro de Ornelas Saavedra, requereu e recebeu nova carta de armas, como as que usavam seu pai e avô, em 1513; ainda consultámos o documento original na Quinta das Almas, encontrando-se atualmente com os descentes, em Paris. O referido Livro do Armeiro-Mor de João de Cró já regista este brasão; e a magnífica laje sepulcral de Álvaro de Ornelas Saavedra, em calcário-brecha da serra da Arrábida, com as suas armas esculpidas em baixo-relevo, já existiria na sé do Funchal, onde ainda hoje se encontra, por volta de 1515 e 1526, como se infere dos codicilos do seu testamento, de mão comum com a sua segunda mulher, D. Branca Fernandes de Abreu (Lápides sepulcrais e Sé do Funchal). Mais tarde, também recebeu carta de armas o flamengo João Esmeraldo, com data de 1520 e depois registada no Livro da Perfeiçam das Armas de António Godinho, elaborado entre 1521 e 1541. Este códice regista uma série de brasões de armas que não vêm no livro de João de Cró, que aliás simplifica a emblemática, não registando os timbres, e apresenta também o dos Câmara de Lobos, na mesma página do de João Esmeraldo, o dos Perestrelo e o de João Fernandes do Arco, entre outros. João Esmeraldo tinha casado com Joana Gonçalves da Câmara, filha de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves da Câmara e, enviuvando, casou com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes do Arco, vindo a falecer em 1536. No entanto, a sua laje tumular não tem brasão de armas, mas sim o seu retrato e da sua segunda mulher, que terá mandado fazer a peça na Flandres. Entre as cartas de brasão mais antigas que não chegaram até nós estará a de Gonçalo de Freitas, filho do tesoureiro do infante D. João, mestre da Ordem de Santiago, que se mudou para a Madeira com o filho, João de Freitas, na sequência do assassinato do duque de Viseu, em Setúbal, por D. João II, a 28 de agosto de 1484 e a cuja casa então pertenciam. Fixaram-se na área de Santa Cruz, na capitania de Machico e, muito provavelmente, a eles se deve a determinação da instalação da alfândega ducal naquele local, decidida anteriormente, em 1477, pela infanta D. Beatriz, filha do falecido infante D. João. Em julho de 1486, João de Freitas representou, com mestre Batista, os proprietários de Santa Cruz numa reunião ocorrida no Funchal; a partir de março de 1496, surge na documentação como homem-bom de Machico, em abril, como vereador e, em maio, como juiz. Desconhecemos a sua carta de armas, como afirmámos, mas conhecemos o pedido que fez para ser enterrado com a sua mulher, Guiomar de Lordelo, na capela da matriz do Salvador de Santa Cruz, de cuja construção fora encarregado, em 1500. Esse pedido foi deferido a 19 de setembro de 1533, atendendo ao dinheiro que gastara na igreja “e à qualidade da sua pessoa” (NORONHA, Ibid., 283-284). A laje tumular veio da Flandres e o brasão de armas que exibe deve ser o mais interessante que hoje existe dessa época, caracterizando-o uma grande qualidade formal, com cinco estrelas de seis pontas e utilizando como timbre uma estrela idêntica entre duas asas, marcando a diferença para os Freitas do continente, que utilizavam como timbre duas garras de leão segurando uma flecha. Com a importância económica da cultura açucareira, inúmeros comerciantes italianos, flamengos e de outras origens tiveram igualmente carta de brasão, nos inícios do séc. XVI, embora a maioria das armas atribuídas não figurem nos livros de João de Cró e de António Godinho, dado serem, em princípio, versões de armas que apresentaram como pertencentes às suas famílias de origem. Provavelmente, esse será o caso dos Bettencourt, Berenguer, Catanho, Drumond ou Escórcio, Florença, Lomelino, Salvago, Spínola, Teive, Valdavesso e outros. Existem algumas arcas tumulares destas famílias de origem estrangeira, p. ex., na matriz de Santa Cruz, igreja de S. Salvador, mas, infelizmente, os brasões iniciais foram apagados. O principal panteão insular destas famílias terá sido o convento de S. Francisco do Funchal, mas as constantes obras a que foi sendo sujeito e a sua própria demolição, nos finais do séc. XIX, levaram a que se tivesse perdido quase todo esse património. Ao longo do séc. XVII, as principais famílias madeirenses ganharam um novo ascendente social, principalmente advindo da sua participação na expansão ultramarina ibérica e do seu desempenho na América Latina. Neste quadro, construindo algumas das famílias em causa as suas capelas, assumiram, pura e simplesmente, as armas que entenderam. O exemplo mais evidente será o dos túmulos parietais da igreja do Carmo do Funchal, onde António de Carvalhal Esmeraldo, casado com Maria Brandoa, usou as armas plenas dos Câmara, e os seus cunhados, no túmulo em frente, as dos Brandões do continente, embora a família fosse proveniente de lavradores da Ribeira Brava (Igreja e recolhimento do Carmo). Existe um certo vazio de documentação sobre a atribuição de cartas de armas ao longo desse século e mesmo do XVIII. Mas a atividade conheceu novo incentivo nos finais da última centúria e propagou-se exponencialmente ao longo de Oitocentos, justificando-se, sobretudo, enquanto retribuição de serviços políticos, com a correspondente componente económica, deixando de ser apenas um retrato da antiga fidalguia. Divulgaram-se então armas de costados com as representações das armas dos avós, quando não dos bisavós, trisavós, ou outros, inclusivamente, pelo nome e nem sempre pertencendo a essas linhagens (Genealogias). Em pouco tempo, o cartório de nobreza da corte de Lisboa abandonaria a relação com os anteriores elementos heráldicos de identificação, passando a emitir as chamadas armas novas, quase nada relacionadas com o pensamento subjacente às do passado. De facto, esta nova cultura desenvolveu-se um pouco por toda a Europa, em especial, na Alemanha. A questão das mercês novas foi objeto de vários trabalhos, mostrando, inclusivamente, a incongruência de algumas das soluções apontadas. Se algumas armas novas dificilmente encontrariam enquadramento na heráldica tradicional, outras há em relação às quais não se compreende a opção tomada. Na primeira situação, encontra-se, e.g., o caso de João Rodrigues Leitão (1843-1925) que, tendo tido larga atividade comercial em Cabinda e conseguindo estabelecer muito boas relações na área, foi um dos responsáveis pelo reconhecimento da presença portuguesa naquele território pelos membros da Conferência de Berlim, em 1883. Sendo agraciado com o título de visconde de Cacongo, em 1900 (Visconde de Cacongo), houve que encontrar elementos algo abstratos para as armas que lhe eram atribuídas: campo de prata com três faixas vermelhas carregadas com flores-de-lis, tendo como tenentes ou suportes um leão e um grifo. Por sua vez, uma das soluções pouco felizes, e logo no título escolhido, foi a encontrada para o visconde e depois conde do Canavial (Visconde e conde do Canavial), João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), a quem se atribuiu um escudo partido, tendo, num lado, uma figura de mulher vestida de azul, sentada num rochedo sobre o mar, com um ramo de videira e um pão-de-açúcar em cada mão, em alusão à ilha da Madeira, e no outro, uma mão de prata com uma pena de oiro, numa alegoria às suas imensas publicações, não se tendo optado pelos elementos das inúmeras famílias de que descendia, o que é um paradoxo. A partir dos meados do séc. XVIII e depois no XIX, foram ainda utilizados inúmeros brasões de armas pelos elementos da feitoria britânica radicada no Funchal, especialmente em ex-líbris e em sepulturas do cemitério britânico, mostrando todas uma certa economia de meios e contenção, e que não eram comuns na Europa coeva. O brasão mais antigo será o de James Murdoch (1744-1806), seguindo-se o de Thomas Holloway (1751-1816), o de William Mills (1994-1834) e outros tantos. Entre os abundantes ex-líbris podemos citar os do Robert Page (1775-1829), com as armas circundadas pelas insígnias da Ordem Militar da Torre e Espada, de que era somente titular honorário, por despacho do Rio de Janeiro, de 15 de novembro de 1817, ou referir os de James Charles Duff, de cerca de 1860, cuja família chegou a deter o palacete da R. do Esmeraldo, através da firma Gordon and Duff e em cujo logradouro chegou a funcionar o primeiro cemitério britânico. Relativamente à heráldica eclesiástica, o seu uso não se deve ter estendido de imediato à Madeira. Os Franciscanos, que forneceram os primeiros quadros eclesiásticos durante as décadas iniciais do povoamento, não eram propensos a esse tipo de ostentação e os primeiros vigários paroquiais, nomeados pela Ordem de Cristo e que não provinham especialmente da nobreza senhorial portuguesa, também não. Os primeiros bispos da diocese do Funchal não se deslocaram pessoalmente ao território, pelo que, até aos meados do séc. XVI, não terá havido heráldica eclesiástica na Madeira. O primeiro prelado a viajar até à Ilha, D. João Lobo (?-1542), bispo titular de Tânger e com armas atribuídas por D. Manuel I, não parece ter tido especiais cuidados nesse campo, não tendo ficado qualquer referência sobre o tema na sua passagem pela Madeira, em meados de 1508. A base da heráldica eclesiástica comunga das normas que regem o desenho geral dos brasões, embora nela se use, prioritariamente, a forma oval para o escudo; assim, diferencia-se, em especial, nos ornamentos exteriores, seguindo os cânones e disposições da Igreja. Com efeito, não utiliza o conjunto elmo, paquife e virol, identificativo do exercício da função militar, mas sim o galero, chapéu eclesiástico por excelência, descendente dos chapéus de abas largas dos peregrinos, sendo a hierarquia definida pela ordem de borlas do mesmo. Pontualmente, podem usar coronéis de nobreza, como aconteceu com o 11.º bispo do Funchal, D. frei António Teles da Silva (c. 1610-1682), que se fez sepultar com coronel de conde, título que nunca teve. Mais tarde, sob o galero, apareceu uma cruz episcopal e, por vezes, um báculo; depois, ao longo do séc. XX, surgiu uma mitra a substituir o galero, podendo figurar sob ela uma cruz episcopal e um báculo cruzados. Os elementos do alto clero sempre assumiram armas próprias, em especial, após a divulgação das normas do Concílio de Trento, ganhando elas um sentido quase pessoal e afastando-se das regras específicas da heráldica familiar, nomeadamente, com o uso de brica e de diferenças. Se tal aspecto ainda aparece em 1509, quando João de Cró representa as armas do bispo D. João Lobo, marcando as armas dos Lobo com um castelo de ouro como diferença, por certo em alusão à praça-forte de Tânger, o mesmo não sucede depois na maioria das armas eclesiásticas, que assumem a diferença somente nos ornatos. Assim fez o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569), empregando as armas plenas dos Câmara, usadas pelo pai, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) e pelo irmão mais velho, João Gonçalves da Câmara (III) (1489-1536). O seu isolamento em Lamego e o facto de ter estado em Roma levaram a que se intitulasse camareiro secreto do Papa Leão X (1475-1521), fazendo-se enterrar sob laje sepulcral com quatro ordens de borlas, insígnias de arcebispo que nunca foi. Determinadas liberdades ocorreram, depois, com outros prelados do Funchal. P. ex., D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) assumiu as armas dos apelidos dos quatro avós, da ilha de Santa Maria, Açores: Velho, Figueiredo, Cabral e Lemos. Como pormenor, nas várias representações das suas armas, mandou carregar as dos Figueiredo com uma merleta, que na Madeira era usada pelos Leme, de origem flamenga. Esta diferença, em princípio, identificativa do prelado Leme, manteve-se, no entanto, no quartel dos Figueiredo, quando mandou, num outro quartel, lavrar as armas dos Lemos, como aparecem na sua lápide tumular. Não se encontram levantados os brasões de armas dos bispos do Funchal, salvo a partir dos meados do séc. XIX; os iniciais terão que ser apurados a partir dos selos de armas dos primeiros prelados. Não constam, inclusivamente, da maior parte dos retratos mandados pintar para a sala do cabido da sé do Funchal, a partir de 1790, em princípio. Assim acontece com o de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), que utilizou as armas dos Barreto na impressão das Constituições Synodaes de 1579, mas que não figura com elas no retrato que lhe mandaram pintar, muito depois. No entanto, tal não se verifica no retrato do seu sucessor, D. Luís Figueiredo de Lemos, que, tendo também mandado imprimir as suas insígnias nas Extravagantes, m 1601, surge com elas representado. Os retratos dos bispos do Funchal parecem ter tido inicio com o de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que o terá mandado pintar em Lisboa, por volta de 1757; na sequência deste, e usando-o vagamente como modelo, depois, foram sendo pintados os dos prelados anteriores. Parece que o cabido não era muito sensível aos aspectos heráldicos, embora ele próprio utilizasse selo com armas, pois só um número muito reduzido de retratos apresenta brasão de armas. Nos retratos dos bispos mais antigos, tal só acontece no de D. Luís Figueiredo de Lemos, talvez porque as respetivas armas se encontram na fachada da sua capela de S. Luís, no paço episcopal e na sua lápide sepulcral. No entanto, não figuram armas no retrato de D. frei António Teles da Silva (c. 1620-1682), que as havia mandado gravar na sua lápide tumular, na capela-mor da sé do Funchal, inclusivamente, encimadas por coronel de 11 pérolas, atributo dos condes. Esse espírito algo laico da sociedade madeirense parece ter sido corrente em muita da sociedade madeirense nos finais do séc. XVIII, pois, tendo sido pintados também os retratos de alguns antigos governadores e capitães-generais para o palácio de S. Lourenço, também ali existem poucos brasões de armas, o que é algo surpreendente, quando verificamos que todos os governadores, até ao liberalismo, eram obrigatoriamente oriundos da nobreza de corte, pelo que eram todos portadores de armas pessoais. Com efeito, recorreram a elas para autenticar a correspondência oficial, tendo passado a fazê-lo, depois, para a correspondência governamental da Madeira, com o selo das armas reais. A heráldica estendeu-se também às ordens religiosas, embora os exemplares existentes na Madeira sejam, em princípio, bastantes tardios. Quase todos os edifícios foram da responsabilidade da Fazenda Régia, pelo que, tanto o paço episcopal, datável de 1610 (Paço episcopal), como o colégio dos Jesuítas do Funchal, cujo elemento heráldico mais antigo, a antiga porta da cerca da R. dos Ferreiros, está datado de 1619, ostentam as armas reais. Chegaram até nós algumas armas de fé dos Franciscanos, entre elas, a pedra de armas do antigo convento do Funchal, datável de cerca de 1750 e hoje no jardim municipal, associada às armas reais, indicativo de que a campanha de obras em causa fora paga pela Fazenda Régia; ou, p. ex., as armas existentes no convento de S. Bernardino de Câmara de Lobos, provavelmente da campanha de 1763 (Convento de São Bernardino). A pedra de armas similar que está no portal da entrada do convento de S.ta Clara, datável, talvez, de data próxima a 1770, poder ter vindo do demolido convento masculino do Funchal, pois dali também vieram outros elementos, designadamente, painéis de azulejos. É ainda possível que tenha existido, como é vulgar no continente, loiça conventual decorada com armas religiosas, em S. Francisco do Funchal e em S.ta Clara, mas, até ao momento e nas escavações arqueológicas realizadas nessas áreas, embora haja milhares de fragmentos de faiança exumada, nada parece ter sido detetado. Nas coleções do paço episcopal, no entanto, existe uma bilha ou pote de faiança com as armas de fé dos Franciscanos que a tradição aponta como sendo proveniente do convento do Funchal. Das restantes ordens religiosas somente conhecemos as armas de fé dos Carmelitas, na fachada da igreja do recolhimento do Carmo, que devem ser dos finais do séc. XVIII, período em que toda a fachada da igreja foi remodelada. Os Jesuítas nunca usaram armas de fé, propriamente ditas, somente uma espécie de emblemática, que, aliás, copiaram do franciscano S. Bernardino de Siena: o trigrama cristológico IHS, que significa Jesum Habemus Socium (“temos Jesus como companheiro”), colocado sobre um sol, como aparece na fachada da igreja de S. João Evangelista do Funchal, logo abaixo das armas reais. Este símbolo ou monograma aparece, por vezes, acompanhado da legenda Ad Maiorem Dei Gloriam (“para a maior glória de Deus”), surgindo invertida, no teto da mesma igreja, em princípio, para ser lida do alto pelo Pai e não pelos filhos que demandam o interior do templo. Existem mais duas pedras com este símbolo ou emblema, uma delas encontra-se numa situação muito interessante: na porta do paço episcopal do Funchal, no acesso à antiga cerca, depois Lg. do Município. O facto de este bloco do paço ter sido mandado edificar pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), que professara no convento franciscano de Varatojo e dirigira pessoalmente parte das obras do novo corpo edificado, levanta a hipótese de ter sido o próprio prelado a mandar colocar ali aquele emblema, precisamente quase perante a fachada da igreja dos Jesuítas, recuperando assim, para os Franciscanos, a sua antiga simbologia. A outra pedra hoje existente está no pequeno jardim do pátio da Assembleia Legislativa e foi encontrada na intervenção de reabilitação ali efetuada, em 1990, podendo ter vindo de obras realizadas no edifício do colégio dos Jesuítas pela antiga Fazenda Régia. As ilhas da Madeira e do Porto Santo possuem uma quantidade apreciável de brasões de armas reais portuguesas, uma vez que a grande maioria do património edificado, militar, civil e religioso foi construído sob a responsabilidade da Fazenda Régia. Tal é o caso da sé do Funchal e, depois, do baluarte de S. Lourenço e demais fortificações militares (Arquitetura militar e República). Mas, também, da maior parte das igrejas matrizes, cujos edifícios eram incumbência régia (Arquitetura religiosa), acontecendo o mesmo com o respetivo recheio, encontrando-se brasões de armas reais em grande parte dos retábulos das suas capelas-mores. O mesmo se verifica em outros edifícios: referimos antes o do paço episcopal, mas poderíamos apontar ainda os das misericórdias insulares. Este aspecto transitou, igualmente, para os edifícios das câmaras municipais, parte dos quais levantados também com verbas da Fazenda Régia, levando a que as armas reais rematassem grande número deles, inclusivamente, o da Câmara do Funchal, onde figurariam, juntamente com as armas da cidade, na fachada ou no interior. Do antigo edifício do Lg. da Sé que pertencera à casa comercial de D. Guiomar, onde a Câmara do Funchal se instalou, nos últimos anos do séc. XVIII, subsiste um importante brasão de armas nacional, assente em esfera armilar, datável, assim, de data próxima a 1819 ou 1820, quando se criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O imóvel foi demolido em 1916, dentro da reforma programada pelo arquiteto Ventura Terra (Urbanismo) e o brasão recolheu, então, ao palácio de S. Pedro (Palácios), onde se previa organizar um museu regional. O Funchal deve ter tido armas próprias ainda no séc. XV, mas só conhecemos exemplares da centúria seguinte. O mais antigo, em princípio, é o que está gravado na campainha de prata da Câmara, que serviria para chamar um empregado, p. ex., ou para mandar entrar os peticionários, e que se encontra datado de 1584. Apresenta cinco pães de açúcar dispostos em cruz e ladeados por duas canas-de-açúcar. Mais tarde, o poeta e intérprete dos navios estrangeiros Manuel Tomás (1585-1665), na sua Insulana, de 1635, refere cinco formas de açúcar, “cor de fogo”, colocadas num campo de prata e rodeadas por duas canas-de-açúcar (TOMÁS, 1635, 128), o que repete Henrique Henriques de Noronha, em 1722 (NORONHA, 1996, 43). As armas do Funchal voltam a surgir numa salva de prata dos inícios do séc. XVII, neste caso, encimadas por uma cruz de Cristo, e num areeiro de tinteiro do mesmo período. No séc. XVIII, começam a aparecer informações de se usar também um ramo de videira nas armas da cidade do Funchal, existindo uma pedra de armas, hoje no núcleo museológico da Prç. Colombo, com a data de 1758, onde já não figuram as formas de açúcar, mas pães, estando o escudo ladeado por uma cana e um ramo de videira e as armas encimadas por coronel de nobreza. Sendo os pães-de-açúcar representados em prata, não poderiam, heraldicamente, assentar igualmente em prata, devendo datar dessa época a definição do campo do escudo em verde, pelo que, tanto a cana-de-açúcar como o ramo de videira passaram para o enquadramento do escudo. A partir de então, começou a vigorar, assim, campo verde, com cinco pães de açúcar de prata ladeados por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira, embora com pequenas variantes, pois podem aparecer duas canas-de-açúcar e as armas podem apresentar-se com coronel de nobreza e com coroa real. Na segunda metade do séc. XIX, entre 1860 e 1862, foi editada, por Inácio de Vilhena Barbosa, a vasta obra As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d’Armas, onde as armas do Funchal aparecem ladeadas por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira. Nesta publicação, figuram, igualmente, as armas da vila do Porto Santo, ostentando um dragoeiro, mas não as das restantes vilas madeirenses. Este conjunto de brasões teve reedição, em 1881, com um outro emolduramento, mas só conhecemos os dos referidos locais do arquipélago. A configuração das armas do Funchal manteve-se até à proposta do heraldista Afonso de Ornelas Cisneiros (1880-1944), que assinava por vezes “Affonso Dornellas”. Nos inícios da déc. de 30 do séc. XX, ele bateu-se pela reforma da heráldica municipal, conseguindo fazer aprovar, em 1935, armas novas para a Câmara Municipal do Funchal, bem ao gosto dito tradicionalista do Estado Novo. As armas mantiveram o campo verde, mas os pães de açúcar passaram a ouro e foram avivados com um espiralado a púrpura, cor do domínio eclesiástico, em memória do protagonismo da Diocese do Funchal nos Descobrimentos; foram ainda acrescentados quatro cachos de uvas de sua cor, carregados com as quinas de Portugal, tornando o conjunto, à primeira vista, perfeitamente irreconhecível. Não possuímos qualquer referência sobre as primeiras armas municipais de Machico, Santa Cruz, Calheta, Ponta do Sol e Porto Santo, sendo certo que todas as tiveram, pelo menos, na época manuelina. Tem havido alguma confusão com as armas de Machico, que são dadas, nos meados do séc. XX, como tendo tido a esfera armilar manuelina, o que seria inviável, na medida em que um brasão de armas é uma forma de identificar uma entidade pessoal ou coletiva e um rei não poderia ter os elementos das suas armas individuais a identificar uma câmara municipal. O mesmo se passa com a Câmara de Santa Cruz, que, por vezes, alega serem suas as armas reais que encimam a porta do edifício municipal, o que também não é possível. Os paços do concelho do Porto Santo são igualmente encimados pelas armas reais, mas elas indicam apenas que o edifício foi feito pelo mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), em 1774, e que as obras correram pela Fazenda Régia, um aspecto que referenciámos antes. A grande reforma da heráldica municipal iniciou-se com a circular de 14 abril de 1930 da Direção-geral da Administração Pública, que, tentando regularizar a situação, obrigava as comissões administrativas das câmaras municipais a legalizar os brasões segundo o parecer compulsório da secção de heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses. A situação do estabelecimento de selo, armas e bandeira de cada localidade veio a integrar, inclusivamente, através do dec. 31.095, de 31 de dezembro de 1940, o Código Administrativo, através dos artigos 14 e 48. Data desses anos a instituição do coroamento dos escudos municipais com coronéis de torres aparentes, hierarquizadas entre as cidades e as vilas com cinco e quatro torres, o que foi alargado às juntas de freguesia, em 1991, com três. Entretanto, também na RAM se procedeu a reforma idêntica, parte da qual assumida pelas autarquias, como aconteceu na vila de São Vicente, onde se aprovou uma raridade iconográfica, com o orago a empunhar uma grelha em vez de uma embarcação. Outras entidades terão tido instrumentos bélicos, como é o caso da Alfândega do Funchal e, provavelmente, de Santa Cruz, conhecendo-se dois selos de chumbo daquela, datáveis de 1520 a 1550, exumados nas escavações arqueológicas na Prç. Colombo, em 1989, com a esfera armilar envolta pela legenda “Alfândega do Funchal”, com o pormenor de estar rematada por um pequeno escudete com as quinas de Portugal e, do outro lado, ter as armas reais com coroa aberta. Pontualmente, os elementos heráldicos foram utilizados por instituições de ensino, como a Escola Afonso Domingues, em 1889, que veio a dar origem à Escola Industrial e Comercial do Funchal, e, em 1989, a UMa. Data dos meados e dos finais do séc. XIX o aparecimento, na Madeira, de um esboço de heráldica corporativa, assumida, entre outras, pelas sociedades agrícolas e, depois, pelos grémios, sindicatos e diversas associações. Com o advento do Estado Novo, o assunto veio a ser encarado noutros moldes, solicitando-se propostas a essas instituições, mas, na maior parte das vezes, impondo-se as soluções finais. Tal ocorreu nas associações mais caras ao governo, designadamente, nas casas do povo e dos pescadores, conhecendo-se o brasão da Casa do Povo de Santo António, no Funchal e o brasão da Camacha, em Santa Cruz, ambos apresentados em Lisboa na Exposição de Heráldica do Trabalho, por altura dos festejos do XX aniversário da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). No ano seguinte, Franz Paul de Almeida Langhans editou o Manual de Heráldica Corporativa, onde figura ainda o da Casa dos Pescadores do Funchal. No catálogo da exposição dos 20 anos da FNAT, o organizador da mesma, Mário de Albuquerque, ao apresentar o brasão da casa do Povo da Camacha, comenta ter sido deixado em branco o brasão da Câmara Municipal de Santa Cruz por o concelho “não as ter ordenadas e aprovadas” (ALBUQUERQUE, 1955, 114). As unidades militares não terão usado brasões de armas próprios até ao séc. XX, devendo ter-se limitado a utilizar bandeiras com as armas reais e com uma legenda da unidade em questão. O mesmo não se terá passado com as unidades de ocupação britânicas, nos inícios do século anterior, de que se exumaram, nas escavações de emergência de 1992, efetuadas no pátio dos estudantes do antigo quartel do colégio dos Jesuítas, alguns botões de farda, indicativos de terem distintivos próprios, pelo menos, os correspondentes aos uniformes de artilharia. Ao longo desse século, as unidades portuguesas destacadas para a Madeira parecem ter utilizado somente uma emblemática com o número da força em causa, algarismos que foram ficando registados na calçada da antiga parada do mesmo quartel do colégio, hoje integrada na reitoria da UMa. Data das décs. de 80 e 90 a reforma geral heráldica do Exército, passando as unidades militares da Madeira a possuir brasão de armas próprio. Estas armas foram sendo adaptadas ao longo das várias reformas das forças em causa (Guarnição militar). A reforma estendeu-se, entretanto, às restantes forças militares da Marinha e da Força Aérea, depois, ao Comando-Chefe das Forças Armadas da RAM, tal como à Companhia Independente da Guarda Fiscal (Guarda Fiscal) e ao Comando da Polícia de Segurança Pública (Polícia de Segurança Pública). O assumir de armas próprias pela RAM foi feito de forma consistente, em 1991, quando a Região completou as armas do seu brasão. O arquipélago tinha constituído os seus símbolos próprios numa relação direta com as suas origens, assentando a bandeira e o escudo com campo de azul, uma pala de ouro e a mesma carregada com a cruz Ordem de Cristo. As insígnias foram discutidas, na generalidade, a 26 de julho, sendo aprovadas dois dias depois; a respetiva regulamentação foi publicada a 12 de setembro. Estas armas foram completadas, depois, por proposta de dois historiadores locais, decidindo-se a utilização do elmo de “boca-de-sapo”, geralmente atribuído a D. João I e existente no Museu Militar de Lisboa, dado ter sido este Rei quem determinou o povoamento do arquipélago; no entanto, em rigor, esse elmo será, muito mais provavelmente, aquele que veio do mosteiro da Batalha, em 1901, e que se encontrava no túmulo de D. João II. Assim, o elmo de ouro apresenta-se de frente e forrado a vermelho. Como timbre, optou-se por uma esfera armilar, pela sua ligação aos Descobrimentos e a D. Manuel I, existindo este elemento em inúmeros edifícios públicos do Funchal. Como suportes, dois lobos-marinhos, vivos e de sua cor, simbolizando a homenagem da Região aos únicos grandes mamíferos encontrados quando da chegada dos primeiros povoadores. Como divisa, inicialmente, foi proposto o seguinte fragmento de Os Lusíadas alusivo à Madeira: “Das que nós povoámos a primeira” (CARITA e SAINZ-TRUEVA, 1990, 103-107). Porém, nos inícios do ano seguinte, em reunião de Governo, veio a decidir-se pelo verso “Das ilhas as mais belas e livres” (Decreto Legislativo Regional n.º 11/91/M, de 24 de abril).   Rui Carita (atualizado a 12.10.2016)

Património História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

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bilhardice

O estudo do regionalismo madeirense “bilhardice” tem como escopo a sua individualização em relação a outros termos que a língua portuguesa oferece e que poderiam aparecer como sinónimos deste regionalismo sem qualquer diferenciação semântica. A riqueza semântica do termo “bilhardice” (Regionalismos) obrigará a testes vários no eixo paradigmático e no eixo sintagmático, consoante a nomenclatura de Ferdinand Saussure. A semântica deste termo é mais sustentada em conhecimentos pragmáticos resultantes da sua realização em concreto, da experiência própria de sujeito falante do português madeirense e da sustentação ideológica em diferentes campos científicos, mais ou menos implícitos, nomeadamente da linguística, da semântica, da psicologia, da sociologia e de outros ramos gnosiológicos, incluindo o da filosofia. Com efeito, a consulta de dicionários e enciclopédicas da língua portuguesa revela que este vocábulo não regista nenhuma entrada nessas obras. Exceção a esta situação é o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPLP), online, que o regista como tendo o mesmo significado de “bisbilhotice”. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, autoridade científica de reconhecido prestígio, na sua edição de 1936, registava uma entrada de um termo cognato de “bilhardice”, e definia assim “bilhardeira”: “o mesmo que mexeriqueira, intrigante, na ilha da Madeira; ordinária ou de fraco valor moral em Évora. Em Beja, mulher de mau génio”. Já nas últimas edições, entre 1998 e 1999, o termo deixa de aparecer. A sua formação morfológica fez uso das potencialidades do sistema aplicadas à forma, tendo-se o sujeito falante, por intuição linguística, limitado a acrescentar ao radical adjetival “bilhard-” o sufixo “-ice”, que se junta a adjetivos para formar nomes, como em: sovin- + ice > sovinice; tol- + ice > tolice. Assim, sem grandes meios de consulta do ponto de vista de dicionários ou enciclopédias que registassem o verbete do regionalismo “bilhardice”, i.e., aquilo a que a lexicografia designa o conjunto de aceções, exemplos e informações acerca de um termo, o recurso a exemplos construídos em situações possíveis de comunicação de fala foi a base essencial do estudo deste regionalismo. Em tal situação, este trabalho não pôde contar com o registo sistemático do termo “billhardice” em dicionários ou enciclopédias, que costumam reivindicar para si a objetividade, como se se situassem acima das determinações sócio-históricas em que um vocábulo surge e é usado, quando é certo que as definições de um verbete, em dicionários e enciclopédias, podem trazer implícitas perspetivas ideológicas e culturais, mesmo que possam não ter sido objeto de um ato reflexivo. Contudo, esse obstáculo tornou-se um desafio e determinou o método da pesquisa e da elaboração do mesmo, partindo da consulta de trabalhos já efetuados sobre o mesmo assunto, os quais tiveram e anotaram as mesmas dificuldades, mas cujos autores têm o conhecimento da realidade da língua em contexto, o contexto sociocultural madeirense, a língua portuguesa tal como é falada na Madeira e o uso muito peculiar do termo “bilhardice” pela população da região. Com efeito, as diferentes aceções de um termo resultam também daquilo a que Saussure chama “realidade da língua”, ou seja, da relação do sujeito com os signos que usa, porque a compreensão do signo linguístico e a sua realização se dão num determinado contexto sociocultural e, nesse contexto, adquire uma significação que vai para além da mera equivalência de significantes inscritos na paradigmática da sinonímia, o que implica a variação de valores de acordo com a realidade sociocultural em que se movimenta o sujeito falante, pois cada palavra de uma linha sintagmática se relaciona com as entidades no sintagma, mas igualmente com outras que são suscetíveis de o substituir na coluna paradigmática. Para além disso, os dicionários e enciclopédias são produto de autores que são fruto de contextos socioculturais que os condicionam e lhes proporcionam o material necessário para o seu trabalho, em que um exemplo ilustrativo pode ser, exatamente, este excurso sobre o termo “bilhardice”. Já o uso do verbo “bilhardar” e de “bilhardeiro” pode anotar-se no DPLP (“Bilhardar: Picar duas vezes a bola com o taco. Picar duas bolas ao mesmo tempo quando estão juntas. Jogar a bilharda. Regionalismo, o mesmo que bisbilhotar”; “Bilhardeiro: Jogador de bilharda. Mandrião, calaceiro.  O mesmo que bisbilhoteiro”) e na versão online da edição de 1913 do Novo Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, encontram-se duas entradas para o verbo “bilhardar” e uma para “bilhardeiro”: “bilhardar, 1 v. I. Dar duas vezes na bola com o taco ou tocar duas bolas ao mesmo tempo, no jogo do bilhar. (Fr. billarder); bilhardar, 2 v. i. Jogar a bilharda. Pop. Vadiar”. “Bilhardeiro m. Jogador de bilharda. Vadio, garoto”. O termo “bilhardice” também não se encontra neste dicionário, facto já observado por outros autores, que, por sua vez, citam outros: “A palavra bilhardice é um termo regional para as palavras bisbilhotice, mexerico, coscuvilhice. O que a torna interessante, de facto, é tratar-se de um regionalismo, e ser usada, frequentemente, em detrimento das anteriores. Curiosamente, não constitui entrada de dicionários e é apenas referida como ‘falso testemunho, alveiosia. Aquelas raparigas não fazem senão bilhardar’” (BARBEITO, “Para a Compreensão…”). Note-se que o trecho da citação colocado em itálico tem por autor Jaime Vieira dos Santos, em “Vocabulário do Dialecto Madeirense”, artigo publicado na Revista de Portugal. Em Ana Cristina de Figueiredo, o termo aparece registado com várias aceções: “Ato de conversar animadamente (Cavaqueira). ‘Aquelas parecem duas comadres: sempre na bilhardice!’” Ou como “ação de comentar a vida alheia e de arranjar intrigas ou mexerico sobre a vida de outrem (alcovitice, bisbilhotice, coscuvilhice, mexerico)” (FIGUEIREDO, 2011, 104-105). Interessante será referir o que diz sobre “bilhardice” David Pinto-Correia: “Quanto à ‘bilhardice’, termo felicíssimo exclusivamente madeirense, que sintetiza, com os seus próximos ‘bilhardeiro’ e ‘bilhardeira’ e ‘bilhardar’ (interessante será verificar que este verbo quase só se conjuga no infinitivo ou em formas perifrásticas), e com uma sonoridade bem expressiva, muito do que outras palavras de sentido próximo (como, por exemplo, ‘intriga’, ‘bisbilhotice’, ‘mexeriquice’) não conseguem exprimir: a sua complexidade semântica integra a principal significação de ‘difundir uma situação’, mormente ‘reservada’, ‘que não era necessariamente divulgável’, ou mesmo ‘que devia ser mantida em segredo’, mas também a de uma crítica velada ou de reprovação ao ato em si, ao mesmo tempo que contém muito de ironia, e de caracterização de tal prática como lúdica (como se se quisesse indicar que ‘é um dizer por dizer’, ‘divulgar por divulgar’, sem procurar consequências graves para o que é divulgado ou sobretudo para quem é posto em causa pela divulgação, o que está longe de ser verdade), uma espécie de hábito atavicamente gratuito, inofensivo” (PINTO CORREIA, 2000, 25). Esta longa citação justifica-se não só pela autoridade científica do autor, mas, sobretudo, por colmatar a ausência já anotada do termo em dicionários académicos, na medida em que a sua riqueza semântica serve de fonte autorizada para este verbete. Na mesma linha do carácter lúdico-narrativo para aqueles que praticam a “bilhardice” envereda Teresa Brazão ao dizer “A bilhardice é o curioso e permanente hábito que têm as pessoas, de saber pormenores acerca daquilo que não lhes diz respeito, especialmente quando se trata da vida alheia. De cultivar e fazer crescer desmesuradamente esses pormenores, que acabam tão maiores quão enorme o desejo dos seus insaciáveis criadores […] A Madeira, meio pequeno, que, apesar de tudo, já não é assim tão pequeno, foi, desde tempos imemoriais, solo fértil para o cultivo de tal hábito social” (BRAZÃO, 2005, 68). A autora não deixa, contudo, de notar não só o jogo social que estava por detrás da sua prática em favor de elementos mais bem situados na esfera social, mas igualmente os efeitos que tal poderia provocar nos alvos da “bilhardice”, que, nesse caso, seriam mais frágeis na hierarquia social ou a desigualdade entre o homem e a mulher: “Era mesmo assim. Na mesma medida em que se exageravam e chafurdavam os defeitos de alguns, exaltava-se e engrandecia-se a virtude de outros. Esses outros alimentavam a bilhardice, porque ela lhes era favorável. Quanto mais mal se dissesse dos outros, mais bem se diria deles próprios, numa espécie de equação matemática ou regra dos termos da lógica aristotélica. Assim, as suas poses, estudadíssimas e refinadíssimas, refletiam a sua enorme embora só aparente virtude. […] As principais vítimas eram os mais fracos, ou senão mais fracos, os menos compensados socialmente” (BRAZÃO, 2005, 68). Neste jogo social, a autora observa a mudança que a liberdade política e cultural veio a ter na mudança das mentalidades: “A liberdade tendeu a desmontar esta coisa toda, graças a Deus. Foram inúmeras as personagens desmascaradas, e hoje fala-se das pessoas doutra maneira. Parecia que a mentalidade dos madeirenses estava a crescer. O número de pessoas aumentou, e deixou de ter o mesmo impacto saber que a dona Sílvia do monte andava a encontrar-se com o senhor Silva da zona velha. Porque ninguém os conhece. E também hoje as pessoas assumem muito mais o que fazem, e não tem graça nenhuma falar de coisas que as próprias pessoas assumem”. E recomenda, nessa sua abordagem sociocultural da liberdade, “A iliteracia do estado novo alimentava a bilhardice. Por isso, agora, temos de investir mais em cultura. Só assim a sociedade ficará melhor, para todos vivermos confortavelmente nela, com a tão propagada qualidade de vida” (Id., Ibid.). Este excurso de Teresa Brazão revela-se bastante pertinente neste verbete porque a autora, ao situar socioculturalmente a “bilhardice” num meio pequeno e ao perspetivá-la em outras vertentes, nomeadamente a político-cultural, confere a esta característica um cunho marcadamente regional, pela importância que ela assume na sociedade madeirense em todos os extratos socioculturais; ou seja, fica aqui claro não se tratar de uma característica exclusivamente popular, como, por vezes, se possa pensar ou dizer. O conhecimento desta realidade contribui para o enriquecimento da semântica do vocábulo “bilhardice” e, de certo modo, ajuda a preencher a lacuna que deriva da sua ausência sistemática em dicionários e enciclopédias. No estudo de um determinado regionalismo, a primeira questão que se coloca é a de saber se existem palavras no idioma que possam substituir, com propriedade ou total equivalência, esse regionalismo. E logo aqui deparamos com a questão da sinonímia. Outra é a de saber se a palavra em questão cumpre uma função que nenhuma outra cumpre para os sujeitos falantes dessa região. Posta assim a questão, o madeirensismo “bilhardice” pode ser comparado com outros termos que lhe são correlatos na língua portuguesa, como “coscuvilhice”, “mexerico”, “bisbilhotice”, “intriga”, “alcovitice”, ou até mesmo “fofoca”, que, note-se, nos remete mais para o português brasileiro pois não provém do português lusitano e tem etimologia africana, mais propriamente da língua banta. Apesar os dicionários darem de “fofoca” o sinónimo “mexerico”, esse termo não deixa de ter um contexto de significação que, não obstante a etimologia africana, tem ressonância nitidamente brasileira. Assim, ao ouvir o termo “fofoca”, um europeu tende a evocar de forma espontânea contextos exóticos, aquilo a que Sartre chama o “estado de consciência”, que implica uma espécie de inércia, de passividade reflexiva ao ouvir um determinado signo face à realidade que ele designa. Assim, se é certo que pode haver múltiplos sinónimos para o termo “fofoca”, tantos quantos aqueles que nos devolve um bom dicionário, a verdade é que nenhum deles ecoará melhor no nosso imaginário como significativo de um ambiente brasileiro. O que fica dito acerca do brasileirismo “fofoca” aplica-se, com a mesma propriedade, ao madeirensismo “bilhardice”. O uso de um signo provoca uma atitude de consciência que integra esse signo numa estrutura mental que não depende de um objeto particular (o signo “árvore” é o universal de todas as árvores, mas não se esgota em nenhuma delas em particular). O signo “bilhardice”, que não designa um objeto, uma realidade física, tangível, mas uma realidade fisicamente intangível, só pode ser entendido ligando-o à realidade exterior que lhe deu origem, em correlação com uma linguagem interior traduzida em imagens mentais que não se ativam de forma reflexiva, mas de forma inconsciente e automática, o que remete não só para o campo da psicologia, da sociologia, da cultura, do folclore, dos hábitos, da geografia e do meio, mas para uma fronteira que define o que é ser madeirense. Nessa perspetiva, o madeirensismo “bilhardice” não é suscetível de ser substituído por outros termos que se reivindiquem como seus sinónimos sem que isso tenha um custo de esvaziamento mental, do ponto de vista cultural, em quem ouve e em quem fala, no caso de falantes madeirenses, perdendo-se o contexto sociocultural de uma mundividência que só pode ser traduzida por este termo enquanto regionalismo compósito de uma realidade cultural. Esteja o sujeito falante na Madeira ou em qualquer parte do mundo, a “bilhardice” evoca a ida à igreja, os arraiais em seu redor, a conversa entre vizinhas, ou vizinhos, a aldeia, a rua, o bairro, a cidade e o campo, enfim, a Madeira e as suas duas ilhas. Ou seja, a relação necessária do uso de um signo com determinado contexto habita no sujeito falante em função de uma opção que lhe é imposta por um contexto sociocultural. A opção do sujeito falante pelo termo “bilhardice”, nesse caso, deriva de ele julgar que é o que melhor traduz a realidade que quer transmitir. Pode haver a tentação de o argumento do nível sociocultural do falante explicar o uso deste termo em detrimento de outros que poderiam ser tomados como sinónimos e com a mesma eficácia; contudo, tal não se verifica, pois observa-se o seu uso por indivíduos de diferentes extratos sociais. Também quando à questão diafásica, a opção ou não por este termo não difere da que é feita por qualquer outro que se apresente como sinónimo, e.g., em situação solene, onde não se fala de coscuvilhice e termos equivalentes; e se, após o ato solene, houver cavaqueira, o termo “bilhardice”, mesmo nos salões dos diferentes fora regionais – políticos, culturais, sociais – antepor-se-á a outros tomados como equivalentes. Resta a variação diatópica, e é nela que devemos prosseguir, visto tratar-se de um regionalismo. Sobre a questão da relação intrínseca entre o significante e o significado no interior do signo, ressalvando a voluntária construção pleonástica da frase, e se o significado de um signo é assumido como representação mental coletiva de um ente, ser concreto ou abstrato, aduz-se que um signo não pode subsistir, ontologicamente, numa espécie de mundo platónico das ideias, sem uma necessária ligação a um referente exterior a si, que é a razão da sua existência. As situações em concreto do uso da palavra remetem para a sua riqueza semântica e negam qualquer sinonímia simplificada. Tal implica considerar, para além do nome abstrato “bilhardice”, o verbo “bilhardar” e o adjetivo “bilhardeiro” (incluindo a sua forma correspondente ao grau aumentativo, “bilhardão”), classes morfológicas importantes para um quadro semântico variado destes termos. Vejamos casos concretos de aplicação: “Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice”. Nesta enunciação, está pressuposta a cumplicidade entre os dois sujeitos falantes, a confiança e a proximidade, quer humanas, quer geográficas, tipo porta com porta, no aspeto espacial. Que significará, então, aqui “bilhardice”? Confidência, segredo, maledicência ou não, dependendo do conteúdo. Imaginemos vários exemplos: “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabe que Maria tem um amante?! – Não me diga! E ela que se tinha por melhor que as outras!”: aqui, o caso é nitidamente de conversa de maldizer. “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabia que Maria tem um tumor? – Ah, coitada da rapariga, tão nova, com filhos pra criar!”: aqui, o caso é de solidariedade, uma confidência, em que a “bilhardice” implica uma obrigação solidária, em que todos sabem de uma triste realidade que merece discrição, pelo menos perante a Maria, e todos têm o dever de passar a ser compassivos com ela. Como se vê, a imagem mental do signo “bilhardice” varia de acordo com as circunstâncias e a sua prática só pode ser entendida em meios geográficos pequenos, em que todos se conhecem. O mais importante, contudo, é que não é possível criar uma rede de sinónimos do mesmo campo semântico, visto que o vocábulo se estende em várias linhas significativas. Perguntar-se-á se nos casos exemplificados o termo “bilhardice” poderia ser substituído por outras palavras no campo da sinonímia. A resposta é que não, uma vez que, entre os sujeitos falantes, se dá ao termo “bilhardice” um significado de acordo com as circunstâncias, o que é relevante, porque os significados chegam a cair no campo da antonímia. Retenham-se, além dos exemplos já dados, mais dois: “Maria é uma pessoa a quem se pode fazer uma bilhardice!”: aqui, o sinónimo é confidência, claramente antónimo de coscuvilhice, a ideia de que Maria é discreta. “Helena andou a fazer bilhardices sobre Maria”: aqui, o termo “bilhardice” é sinónimo de coscuvilhice, veiculando a ideia de que Helena é indiscreta. Ou ainda outros casos, desta vez ilustrativos dos vários sentidos do nome “bilhardice”: “Não me venhas com bilhardices, que eu já te conheço, gostas é de espalhar confusão!”: aqui, significa intriga e origem de conflito. “Aquelas três estão há mais de duas horas numa bilhardice pegada!”: aqui, o termo adquire o sentido de cavaqueira, conversa, sem qualquer tipo de insinuação ou acusação. Para completar este excurso argumentativo e afastar de vez a hipótese de sinonímia absoluta de “bilhardice” com outros vocábulos da nossa língua, aduzo, em defesa da diferenciação deste vocábulo em relação a termos que se apresentam como sinónimos, outros exemplos: com um adjetivo da mesma família: “António é um bilhardeiro, contei-lhe um segredo e logo espalhou por todo o lado!”: António, aqui, é um indivíduo que não merece confiança. “Maria é um bilhardão! Ouve aqui e conta acolá e, ainda por cima, distorce tudo!”: Maria, além de coscuvilheira, é enredadeira e, subentende-se, mentirosa. Outro exemplo, em que o significado muda radicalmente, com recurso ao verbo “bilhardar”: “Estás a bilhardar, eu não disse nada disso!”: neste caso, a mentira é a base da significação. Como se pode inferir destes exemplos de vocábulos cognatos de “bilhardice”, cada palavra é o centro de uma gramática de interpretação da vivência humana em cada lugar e em cada circunstância, e há que concluir que os madeirenses procuraram novas palavras por necessidade de traduzir aquilo que mais nenhuma comunidade viveu. Por isso, a palavra “bilhardice” pode ser sinónimo de outras palavras, mas essoutras palavras não traduzem exatamente aquilo que os madeirenses viveram. Vejamos, a propósito deste assunto, a teoria de Gottlob Frege, esclarecendo, porém, a priori, a nomenclatura deste autor com a equivalente terminologia saussuriana: o sinal ou nome próprio é equivalente a signo; a referência ou realidade designada é o referente saussuriano; o significado é o mesmo que em Saussure (significado). Como é que a relação no interior do sinal ou nome próprio, em Frege, estabelece a ligação entre a referência (que é realidade designada) e o significado, ou seja, qual é a diferença entre o significado em Saussure e em Gottlob Frege, se ambos usam o mesmo termo? É que em Saussure tudo se passa no interior do signo, que é um universal abstrato, mas em Frege o significado é o modo como o referente, físico ou abstrato, se realiza na mente do sujeito falante: aquilo que cada um pensa ou sente ao ouvir um signo, seja ele qual for, é determinado pela sua experiência subjetiva, como adiante veremos. No caso em estudo, a mesma realidade pode ser designada por um sujeito falante não madeirense por outro termo que não “bilhardice”; já para um sujeito falante madeirense, a imagem da realidade contextual que ele pretende transmitir a outro sujeito madeirense só tem uma representação mental adequada se for designada pela palavra “bilhardice”. Para corroborar esta ideia, recorro-me do exemplo clássico de Frege, que vai mais longe, ao defender que a mesma referência pode, inclusive, ter significados diferentes em função do contexto em que é dita. O planeta Vénus não deixa de ser o mesmo em qualquer altura do dia, mas o ato elocutório ganha semânticas diferentes consoante a hora em que é designado, “estrela da manhã” ou “estrela da tarde”. Ou seja, a representação subjetiva do signo linguístico “estrela” muda de acordo com o contexto e a sua vivência. Por sua vez, enquanto o signo saussuriano é uma imagem universal e objetiva, apreendida coletivamente, ao sinal (o signo de Saussure, recorde-se) Frege associa outra componente: a representação que o sujeito falante associa a esse sinal, e que é inteiramente subjetiva. Entre o signo de Saussure e o sinal de Frege não há diferença quanto à universalidade e à representação de uma imagem apreendida coletivamente. A questão está em que, para Frege, a representação mental associada ao sinal é inteiramente subjetiva. Não é fácil encontrar na língua portuguesa um termo que traduza, com a mesma eficácia e fidelidade, a realidade sociológica madeirense veiculada pelo termo “bilhardice”, até porque ela mesma, como vimos nos exemplos expostos ao longo deste excurso, tem uma pluralidade semântica que difere de acordo com o sintagma em que se insere. Convém ler, para estabelecer um paralelo de situação, o seguinte texto sobre a palavra “saudade”: “Saudade é substantivo abstrato, tão abstrato que só existe na língua portuguesa. Os outros idiomas têm dificuldade em traduzi-la ou atribuir-lhe um significado preciso: ‘Te extraño’ (castelhano), ‘J’ai [du] regret [de] (francês) e ‘Ich vermisse dish’ (alemão). No inglês têm-se várias tentativas: ‘homesickness’ (equivalente a saudade de casa ou do país), ‘longing’ e ‘to miss’ (sentir falta de uma pessoa), e nostalgia (nostalgia do passado, da infância). Mas todas essas expressões estrangeiras não definem o sentimento luso-brasileiro de saudade. São apenas tentativas de determinar esse sentimento que sentem os povos de cultura portuguesa. Assim, essa palavra ‘saudade’ não é apenas um obstáculo ou uma incompatibilidade da linguagem, mas antes, e principalmente, uma característica cultural daqueles que falam a língua portuguesa” (LESSA, “O Mito da Palavra Saudade”). Donde se deduz que “bilhardice” está para o falar madeirense como “saudade” está para a língua portuguesa, no sentido em que nenhuma delas, no seu âmbito, encontra um sinónimo que a possa traduzir absolutamente. Explanada na sua polivalência semântica e, ao mesmo tempo, na sua singularidade, e mesmo reconhecendo que o termo “bilhardice” se integra na categoria de regionalismo, podia acontecer que adquirisse um estatuto idêntico ao de outros termos que também não são considerados como parte da norma padrão, nomeadamente os brasileirismos, como é o caso de “fofoca”, mas nem por isso deixam de ser usados correntemente como se o fossem. Para que a riqueza cultural, psicológica, linguística, sociológica e humana de “bilhardice” se tornasse comum ao mundo da lusofonia, como aconteceu, nos começos do séc. XXI, com alguns brasileirismos, veiculados, nomeadamente, pelas telenovelas produzidas no Brasil, seria necessário que houvesse a mesma intensidade de produção mediático-cultural do lado lusitano, sobretudo no rincão madeirense, que existe do lado brasileiro. Se uma mesma palavra tem um sentido geral e abstrato e, todavia, tem em cada sujeito falante uma representação mental que é subjetiva, o que acontece quando estamos perante um signo diferente, como “bilhardice”, oriundo de uma determinada região, no contexto mais geral da língua portuguesa? Já vimos isso com o signo “árvore” ou outro signo qualquer: o que pensa cada um quando o profere ou quando o ouve está dependente da experiência subjetiva. O signo “bilhardice” obteve, desde há muito, um significado que é geral e abstrato no contexto cultural madeirense, que deriva da vivência de uma comunidade e que se concretiza em cada ato de fala particular, como resultado da memória, da experiência e da vivência do falante, as quais conferem a essa palavra uma representação mental segundo a tese de Frege. É esta referência ao mundo real, à própria vida dos sujeitos falantes, que justifica a diferença que, de facto, existe, entre o termo “bilhardice” e os vocábulos que se apresentam como seus sinónimos na nossa língua. A bilhardice é, portanto, um conceito em cuja amplitude semântica não encontra paralelo em qualquer outro termo da língua portuguesa.   Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 12.10.2016)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social

associação académica da universidade da madeira

A Associação Académica da Universidade da Madeira (AAUMa) foi criada a 10 de dezembro de 1991 com o intuito de responder às necessidades dos estudantes, sendo a estrutura representativa e comunitária dos estudantes da Universidade da Madeira (UMa). É uma instituição privada, sem fins lucrativos, que foi reconhecida em 2006 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; está inscrita no Registo Nacional do Associativismo Jovem do Instituto Português do Desporto e Juventude e possui, desde 2010, o estatuto de instituição de utilidade pública. Os primeiros órgãos sociais – liderados por Jorge Carvalho como presidente da direção, por Deodato Rodrigues como presidente da mesa da assembleia geral e por António Cunha como presidente do conselho fiscal – foram eleitos por 416 estudantes, tomando posse a 9 de janeiro de 1992. Diversas atividades foram desenvolvidas no sentido de consolidar uma estrutura estudantil única na Madeira, que representasse os estudantes da UMa. O registo legal, a idealização do logotipo, a organização de festividades e de colóquios aquando do Dia Nacional do Estudante, a participação em provas desportivas regionais e nacionais são disso exemplo. Para fazer cumprir algumas das promessas eleitorais, foi necessário “adquirir uma máquina de encadernação, formar uma tuna, adquirir um computador, fomentar a participação dos estudantes no grupo de teatro, realizar um festival de tunas e participar nas competições desportivas interuniversitárias” (Livro de Actas da Direcção…, 16 jan. 1993, s.p.). A 14 de janeiro de 1994 foi eleita, para mais um mandato, a equipa liderada por Jorge Carvalho na direção, com Deodato Rodrigues na mesa da assembleia geral e Ricardo Félix no conselho fiscal, tomando posse a 2 de fevereiro do mesmo ano. O apoio ao estudante e a organização de colóquios, de conferências e de fóruns de discussão sobre assuntos relacionados com o ensino superior e com a UMa e a sua oferta formativa foram as principais preocupações da equipa. O segundo mandato da equipa liderada por Jorge Carvalho terminou com o I Encontro de Estudantes Madeirenses do Ensino Superior, no qual, durante dois dias, se discutiram questões sobre o ensino de qualidade e sobre a formação de profissionais de excelência em Portugal. A 19 de janeiro de 1996 tomavam posse os novos corpos sociais da AAUMa, liderados por Vítor Freitas como presidente da mesa da assembleia geral, por Orlando Oliveira como presidente do conselho fiscal e por Eduardo Marques como presidente da direção, cargo que manteve até 18 de dezembro do mesmo ano, data em que trocou de lugar com a vice-presidente, Natércia Silva. É com esta equipa que se institui, pela primeira vez, a Semana do Caruncho e o Corte das Fitas (até então, designados de Semana Académica e Queima das Fitas), o primeiro Código de Praxe e Comissão de Praxe, a primeira publicação do jornal (Parenthesis), a 14 de maio de 1996, e a aposta no desporto e na contratação de bandas nacionais e regionais para celebrar o adeus aos finalistas e a receção dos novos estudantes da UMa. A 6 de março de 1998 tomavam posse Sara André Serrado, como presidente da direção, Paulo Santos, como presidente da mesa da assembleia geral, e José Costa, como presidente do conselho fiscal. Uma das primeiras preocupações foi a alteração estatutária e a regulação da praxe na UMa, modificando para tal o Código de Praxe em vigor e criando a Comissão de Veteranos. Seria, contudo, na direção seguinte, liderada por Clara Freitas, que as questões da praxe ficariam desvinculadas da AAUMa, por deliberação da Reunião Geral de Alunos. Eleita por dois mandatos – a 19 de janeiro de 2001 e a 20 de fevereiro de 2003 –, Clara Freitas vê o último mandato terminar de forma abrupta. A direção acaba por ser exonerada, pois o pedido de demissão apresentado pela maioria dos membros dos órgãos sociais inviabiliza a continuidade da restante equipa na liderança da AAUMa. No entanto, e enquanto os corpos sociais desta direção estiveram ao serviço dos estudantes, as questões desportivas, as de ação social, as culturais e as recreativas foram as suas principais bandeiras. A 23 de abril de 2004 é eleita a equipa de Marcos Pestana, que encontra uma estrutura associativa com uma situação financeira instável, parca de recursos e com uma credibilidade reduzida, o que acabou por dificultar grande parte do trabalho a que se havia proposto. A aposta no desporto universitário e na tradição académica da UMa foi, contudo, concretizada. A 8 de março de 2006 aquela dá lugar à equipa de Luís Eduardo Nicolau, que viria a ser, pelo menos até 2016, o presidente com maior longevidade à frente dos destinos da AAUMa, com três mandatos (14 de março de 2006, 21 de abril de 2008 e 3 de novembro de 2010) e três equipas diferentes (lideradas por André Dória, Andreia Micaela Nascimento e Rúben Sousa como presidentes da mesa da Reunião Geral de Alunos e por Pedro Olim, Tiago Seixas e Gonçalo Camacho como presidentes do conselho fiscal). A implementação do processo de Bolonha e do regime de prescrições na UMa foi uma das primeiras preocupações desta equipa. Nestes anos são criados vários projetos, muitos dos quais se mantêm vários anos depois. Uma publicação mensal, a emissão de programas de rádio e de televisão, um projeto de solidariedade social, um grupo de fados de Coimbra, um centro de explicações para o ensino básico, secundário e superior, o acolhimento de estágios curriculares e pedagógicos diversos, as lojas Gaudeamus e os projetos de valorização e de preservação do património histórico regional são alguns exemplos. Deve ainda enfatizar-se a participação da AAUMa no primeiro conselho de leitores do Diário de Notícias da Madeira, no Conselho de Cultura da UMa e no Observatório do Emprego e Formação Profissional da UMa. É no último mandato de Luís Eduardo Nicolau que, por decisão dos estudantes presentes na assembleia geral de 4 de março de 2010, se decide laurear, com o título de associado honorário, D. António Carrilho, bispo da Diocese do Funchal, José Manuel Castanheira da Costa, então reitor, Jorge Carvalho, Marco Faria, Idalécio Antunes, Andreia Micaela Nascimento, Carlos Diogo Pereira e a Tuna Universitária da Madeira. Em outubro de 2012, João Francisco Baptista assume a presidência, formando equipa com Vitor Andrade, como presidente da mesa da Reunião Geral de Alunos, e com Nuno Rodrigues, como presidente do conselho fiscal; em outubro de 2014, é reeleito, tendo Ricardo Martins como presidente da mesa da Assembleia Geral de Alunos e Nuno Rodrigues como presidente do conselho fiscal. No decorrer dos seus mandatos, salientam-se a continuidade e o crescimento de alguns projetos já existentes, o início da Imprensa Académica, linha editorial da AAUMa, a criação de projetos de apoio social destinados aos estudantes da UMa (a bolsa de alimentação, a bolsa escolar e a bolsa LER), o apoio ao estudante, o ateliê de férias Doutorecos, a dinamização de projetos de interesse turístico e cultural e o reconhecimento, pela União Europeia, da AAUMa enquanto entidade de acolhimento e de envio de voluntários pelo Serviço Voluntário Europeu. A cultura, o desporto, o apoio ao estudante (presencial, telefónico e remoto), a tradição, a ciência, a investigação, a empregabilidade, a formação e a cidadania ativa e responsável voltam a ser as prioridades de uma estrutura que cresceu e que representa a UMa e todos os estudantes que nela são formados.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 14.12.2016)

Educação História da Educação Sociedade e Comunicação Social

arquitetura do turismo de lazer

A arquitetura do turismo de lazer levou algum tempo a implantar-se na Madeira, tendo-se recorrido, ao longo do séc. XIX, a habitações senhoriais urbanas e periurbanas, as chamadas quintas de aluguer, sumariamente adaptadas às novas funções, como ocorrera anteriormente com o turismo terapêutico. O quase domínio absoluto do turismo de origem britânica e dos empresários dessa nacionalidade levou a que a arquitetura do turismo de lazer, na Madeira, não ganhasse características especificamente locais. Salvo na proliferação dos jardins envolventes e no aproveitamento dos declives para miradouros, embora utilizando mão-de-obra local e um saber artesanal ancestral, os modelos foram, essencialmente, importados dos mercados internacionais. Palavras-chave: arquitetura civil; arquitetura do turismo terapêutico; guias turísticos; miradouros; quintas românticas madeirenses; urbanismo. Até meados do séc. XIX, não é possível encontrar, na Madeira, o estabelecimento efetivo de serviços e de instalações de habitação temporária onde, para além da dormida, fosse prestada aos utentes toda uma série de serviços de certa sofisticação, como posteriormente veio a acontecer (Turismo). A apologia do ameno clima madeirense, especialmente vocacionado para o tratamento de doenças pulmonares, que corria pela Europa desde os finais do séc. XVIII, levou a que, especialmente no inverno, a Madeira fosse procurada pelas classes mais abastadas, na busca de um melhor clima e da almejada cura (Arquitetura do Turismo Terapêutico). Escritores e poetas, assim como publicistas em geral (Literatura de viagens), divulgaram nestes anos o nome da Madeira como sanatório natural, enaltecendo a temperatura e o espaço, propício ao lazer e à contemplação da natureza, convidando os doentes pulmonares dos rigorosos climas europeus a uma viagem reparadora à Ilha. As condições do coberto vegetal, a calma e a comodidade de que poderiam usufruir os doentes colocavam a Madeira muito à frente de outros destinos, como a maioria das cidades portuárias italianas, francesas e espanholas do Mediterrâneo, todas com uma vida muito agitada de negócios e de trânsito. Acrescia ainda a pureza e a suavidade do ar, assim como a quase constância da temperatura, quer de dia quer de noite. Estas temperaturas também existiam nas costas do Norte de África, e.g. no Cairo, mas a formação contínua de poeiras era uma desvantagem para os tuberculosos. Outra vantagem da Ilha era a quase inexistência de animais perigosos para os doentes, havendo uma muito baixa incidência, e.g., de mosquitos, pelo que os doentes nem necessitavam de cortinas nas camas. Havendo toda uma ampla encosta a proteger a cidade do Funchal, o doente poderia, inclusivamente, escolher a altitude ideal para se instalar, conforme necessitasse de ar mais quente ou mais fresco e conforme fosse inverno ou verão, embora a alteração da temperatura entre uma e outra estação fosse mínima. Em meados do séc. XIX, os hábitos europeus foram mudando progressivamente e, consequentemente, o tipo de viagens e de lazer das sociedades mais abastadas. Se na primeira metade do século, o turismo para a Madeira era essencialmente terapêutico, a presença de importantes figuras da mais alta aristocracia europeia foi aproveitada para a criação de uma nova imagem para a Ilha. Os mecanismos de divulgação da Madeira, essencialmente direcionados para os doentes, passam a salientar outros aspetos, como um certo exotismo da paisagem, um clima mediterrânico em pleno Atlântico, uma excelente temperatura da água do mar, e uma vida urbana cosmopolita. A mudança é patente, entre outros exemplos, no título da obra de Edward Vernon Harcourt (1825-1891), A Sketch of Madeira: Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor (1851), com litografias da autoria de sua mulher, lady Susan (1824-1894) (Harcourt, lady Susan Harriet Vernon), filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876), que, no ano anterior, já havia editado um álbum de litografias sobre a Madeira (Litografias e litógrafos). A primazia já é dada assim ao “traveller” [viajante] e, em segunda prioridade, ao “invalid visitor” [visitante inválido]. Os anos 80 marcam outra forma de visitar a Madeira, muito mais rápida, deixando assim de tratar-se de meses para se tratar de semanas e, posteriormente, somente de alguns dias, o que é compensado por um número muito maior de visitantes e faz crescer uma série de serviços de apoio a essas rápidas estadias. Na década seguinte começam a ser editados guias turísticos ilustrados por fotografias (Guias turísticos), progressivamente alargados a informações económicas, sociais, políticas e artísticas. O desenvolvimento turístico e portuário da baía do Funchal constituiu um instrumento de novas políticas sociais, envolvendo grandes investimentos públicos e privados na área dos transportes, do saneamento básico, das redes de distribuição de água ao domicílio, da iluminação pública e até no arranjo urbanístico da baixa da cidade, com a construção de jardins e de parques. Esta transformação teria o seu ponto alto já nos inícios do séc. XX, com a encomenda ao arquiteto Miguel Ventura Terra (1866-1919), em 1913, de um plano de urbanização para a cidade do Funchal (Urbanismo). Se, numa primeira fase, as obras tinham sido pensadas em função dos visitantes estrangeiros, a operação acabou por beneficiar toda a população residente, produzindo serviços, criando novas oportunidades de emprego, mudando mentalidades e reformulando radicalmente a estrutura urbana da cidade, virando-a, ainda mais, para o mar. Os primórdios da instalação turística Nas primeiras décadas do séc. XIX, os viajantes ainda se queixam da dificuldade dos alojamentos, como refere em 1826 Charles Heineken, que começara por visitar a Ilha como doente, acabando por se fixar. Conforme escreve por sua informação Alfred Lyall (1796-1865), por esses anos não existiriam mais que 4 boarding-houses, ou seja, edifícios urbanos para instalação temporária, onde os enfermos e as famílias se pudessem acomodar, embora tal fosse colmatado, pontualmente, pelo aluguer de outras casas na periferia, pertencentes a famílias inglesas residentes e a madeirenses (Quintas românticas madeirenses). Referem estes autores, no entanto, que não se poderia esperar encontrar na Madeira o amplo leque de escolha e de comodidades que já era possível encontrar no Sul de Inglaterra. Na década seguinte, o publicista John Driver ainda se queixa de que, embora a dimensão da cidade já fosse outra, não se encontravam hotéis nem cafés, o que já era comum nas congéneres cidades europeias da dimensão do Funchal. Este autor refere várias casas para aluguer, ou partes de casas, dizendo que pertenciam quase todas ao perímetro urbano, e que eram quase todas propriedade de residentes britânicos. Esta comunidade que se dedicava essencialmente ao comércio iniciava, então, um negócio sazonal paralelo que não pararia de crescer nos anos seguintes. O aluguer era geralmente feito à semana e incluía, para além do quarto, uma sala de estar, o mobiliário e o equipamento, onde se incluía, curiosamente, algumas vezes uma garrafeira com vinho da Madeira, embora a lavagem de roupas fosse paga como um extra. Em 1840, William White Cooper (1816-1886), no Invalid’s Guide to Madeira, refere já a existência de um pequeno hotel, relacionando os vários tipos de alojamento possíveis na área do Funchal: as casas de família, ou quintas de aluguer; as casas de aluguer; e os hotéis familiares. As primeiras eram quintas nos arredores da cidade e as restantes, residências urbanas adaptadas, diferenciando-se, essencialmente, pelo serviço de refeições: numas eram servidas aos hóspedes e à família, mas separadamente, noutras já havia uma sala de refeições comum onde todos os hóspedes almoçavam e jantavam. Ao longo da déc. de 40 começam a aparecer referências à existência mais efetiva destas instalações, mas longe de conseguirem responder à procura, como se queixa, em 1840, sir William Robert Wills Wilde (1815-1876), pai de Óscar Wilde (1854-1900). Na sua descrição da passagem pela Madeira, entre 1837 e 1839, considera, inclusivamente, ser muito desagradável que os comerciantes britânicos ali radicados não tivessem, até então, preenchido essa lacuna, construindo pequenas habitações minimamente confortáveis, até porque a procura já era exponencial. Somente por volta de 1852, lady Emmeline Stuart Wortley (1806-1855) refere ter-se instalado no Hotel Miles, na R. da Carreira, e que já possuía as características de um pequeno hotel, embora ainda não fosse uma construção de raiz, mas a adaptação de uma residência senhorial urbana a essa função, como aliás vai acontecer à grande maioria dos restantes hotéis. O encanto da experiente viajante inglesa, entretanto, foi para a magnífica vista da janela do seu quarto e do de sua filha, sobre a montanha por detrás da cidade, e para o pitoresco dos terraços, torres e balcões das casas vizinhas, com os seus pequenos jardins com bananeiras, laranjeiras e as mais variadas plantas e flores. A descrição do que eram estas antigas residências urbanas adaptadas para hotel pode ser conhecida através do Diário de 1853 de Isabella Hurst França (1795-1880), filha do arquiteto Aaron Hurst. A autora tinha-se casado tardiamente com o morgado madeirense José Henrique de França (1802-1886) e, perante a perspetiva de extinção dos morgadios na Madeira (Morgadios), o casal foi à Ilha vender essas propriedades. Instalaram-se numa hospedaria da Rua da Carreira, que pertencera à viúva do poeta e político Manuel Pimenta de Aguiar (1765-1832), Micaela Antónia de Sá Bettencourt, e que a alugara, em 1831, a uma inglesa, Isabel French, que passou a geri-la. Em 1839, o contrato de aluguer foi feito com o hoteleiro Jacinto Hannibal de Freitas, talvez um dos mais antigos hoteleiros da Madeira, que possuía outros estabelecimentos similares, como na R. das Hortas, e este manteve Isabel French à frente do estabelecimento até 1863. Isabella de França descreveria a sensação que havia tido ao passear pelas ruas mais altas e ao observar a vista das janelas da residência onde estava hospedada, no final da R. da Carreira, dizendo que “a cidade do Funchal é muito maior do que eu esperava: será a terceira das terras portuguesas, depois de Lisboa e Porto. Estende-se por mais de uma milha ao longo da costa e sobe a considerável distância até aos montes” (FRANÇA, 1970, 56). Isabella refere que chegaram de carro de bois a um pátio coberto interior, estruturante do edifício, do qual partia uma escada que, circundando o pátio, dava acesso aos quartos dos vários pisos. O pátio calcetado era coberto por claraboia, sendo os quartos nos andares superiores e na torre, onde o casal ficou, e sendo o piso térreo destinado a arrecadações e serviços. Se a residencial de início a encantou, encostada à antiga muralha da cidade e sob a fortaleza do Pico, quando chegou a informação do falecimento da Rainha D. Maria II (1819-1853) e se iniciaram os três dias de salvas de luto, em que os canhões do Pico e do ilhéu disparavam de 5 em 5 minutos, dia e noite, calculando a autora terem sido feitos 1440 disparos, a situação terá sido dramática. Data dos anos seguintes a passagem de hospedarias como esta à designação de hotel, registando-se em 1865, como mais os caros, o Hotel Jervis e o Hotel Luscomb. Em 1863, registam-se as hospedarias Reids, na R. do Mercado de S. João, depois denominado Royal Edimburgo Hotel; Neal, na R. do Pinheiro; Miles, na R. da Laranjeira (que havia de ser denominada R. do Carmo); e o Hotel Hollway, na entrada da cidade (Entrada da Cidade). Em 1864, registam-se como hotéis o Giuliet e o Freitas, sem indicação da rua, o Hotel Jervis, na R. da Carreira, e o Hotel Francês, na entrada da cidade. Em 1865, registam-se ainda o Hotel Luscomb, na R. da Carreira e os hotéis Pios, Dressen, J. Payne e Madeira, sem indicação da localização. Em 1866, registam-se os hotéis Duhset e Bella Vista, também sem mais indicação, embora o último ficasse a montante do Hospício, na margem da ribeira de S. João, com acesso pela R. do Jasmineiro, edifício depois ocupado pelo Seminário Diocesano que, graças ao parque envolvente e a outras caraterísticas, se veio a tornar bastante conhecido e dos mais fotografados. Nestes quase finais de século, no entanto, não estamos no domínio de uma arquitetura do turismo de lazer, mas da adaptação de edifícios a essas funções. César Augusto Mourão Pitta (1837-1907), então agente consular de França na Madeira, no seu Madère, Station Medicale Fixe (1889), regista a existência de sete hotéis ingleses de primeira ordem, quatro dos quais pertencentes aos irmãos Reid, três portugueses e duas pensões, uma inglesa e outra portuguesa. No entanto, só pouco depois dessa data, em 1891, para efeitos de cobrança de taxas, se diferenciariam os hotéis das hospedarias, sendo comum classificar os ingleses numa categoria superior à dos portugueses. Ellen Taylor, entretanto, em 1882, não recomendava aos seus leitores nenhum dos hotéis portugueses, embora os irmãos Adriano (1862-1906) e Aníbal Trigo (1865-1944), no seu Roteiro e Guia do Funchal, de 1910, mencionassem o Hotel Universal, situado na esquina do antigo passeio público para a Pç. da Sé, como sendo “um hotel de 2.ª ordem” recomendável “a todas as pessoas que desejem viver comodamente na cidade sem grande despesa” (MATOS, 2013, 173) Saliente-se, entretanto, a dificuldade de estabelecer as designações destas iniciais unidades hoteleiras, pois nem sempre os nomes de registo correspondiam aos nomes que se utilizavam correntemente, mudando de acordo com os proprietários e com as firmas e sociedades a que pertenciam, mas, por vezes, mantendo os antigos nomes, em oposição aos do registo, e utilizando os nomes da localização em relação às acessibilidades, etc. Entre muitos casos, e.g., numa das antigas fotografias do Jardim Municipal (Jardim Municipal), muito provavelmente ainda dos finais do séc. XIX, tirada por João Francisco Camacho (1833-1898) ou pelo irmão Augusto Maria Camacho (1838-1927) (Fotografia), aparece sobre o prédio onde depois se situou o restaurante Os Combatentes, na esquina das ruas de Roberto Ivens e S. Francisco, a indicação de Hotel Rosa, designação que não encontramos nos registos de licença, correspondendo à residencial que, em 1893 e em 1895, se encontrava em nome dos herdeiros de José Fernandes Rosa. A cadeia Reid A história da arquitetura hoteleira da Madeira e, inclusivamente do próprio turismo, são indissociáveis do nome Reid, ligado ao mais prestigiado hotel da Região e o primeiro construído efetivamente de raiz, nos finais do séc. XIX, dado que os anteriores utilizaram sempre construções preexistentes. O escocês William Reid (1822-1888) teria passado pela Madeira em 1836, então com 14 anos, mas parece só se ter fixado na Ilha por volta de 1844. Quarenta anos depois, com seus filhos William e Alfred Reid, teriam adquirido os mais importantes estabelecimentos hoteleiros do Funchal e preparava-se para construir de raiz o Reid’s New Hotel, depois Reid’s Palace Hotel (Reid’s Palace Hotel), eclipsando todas as restantes unidades, que passariam a hotéis de segunda categoria. O fluxo de visitantes e de passageiros em trânsito aumentava constantemente com os novos navios a vapor, que faziam a viagem para o Funchal, e.g., a partir de Liverpool ou de Southampton, em cinco dias, e de Lisboa em dois, havendo carreiras regulares desses três portos. Igualmente dos portos de Bordéus, Havre, Antuérpia ou Hamburgo era possível ter acesso à Madeira em carreiras mais ou menos regulares, com maior rapidez e por menor preço. Em 1874, ainda se montavam as comunicações telegráficas com o continente, através de cabo submarino, e tudo concorria para que a Ilha passasse a possuir capacidades para se equipar, dentro das suas dimensões, com um dos melhores parques hoteleiros europeus. Para a análise da arquitetura dos hotéis Royal Edinburgh e German Hotel, o antigo Schlaaff, que foram demolidos, teremos de recorrer ao amplo acervo cartográfico e fotográfico da Madeira, tal como às descrições de alguns dos seus hóspedes; no entanto, nem num caso nem no outro existem especiais novidades arquitetónicas, uma vez que se tratava de adaptações de construções já existentes. Deixando o antigo German Hotel para a secção seguinte, por se enquadrar no tema dos interesses alemães que a comunidade britânica soube, progressivamente, eliminar, importa referir que, tal como o Reid's Monte, noutro contexto, o interesse do Royal Edinburgh Hotel era muito reduzido. Instalado numa antiga residência senhorial no quarteirão a poente do Teatro Municipal (Teatro Municipal), sendo muito anterior a este, encontrava-se, na déc. de 80 do séc. XIX, ainda ligado ao então mercado de S. João (Mercados). Possuía um jardim a norte, que veio a desaparecer com a construção da Av. Arriaga, e, elevando-se sobre a R. das Fontes, uma muito boa relação com a baía do Funchal. O nome deste hotel adveio do patrocínio que lhe foi dado pelo duque de Edimburgo, título criado pela Rainha Vitória (1819-1901), em 1866, a favor do seu quarto filho, o príncipe Alfredo de Sax-Coburgo-Gota (1844-1900), que ao comando da fragata HMS Galatea, passara pelo Funchal em 1867. Se alguns utentes, como a jornalista norte-americana Charlotte Alice Baker (1833-1909), em 1882, embora reconhecendo que o pomposo nome estava longe de corresponder ao edifício, especialmente no seu aspeto exterior, consideravam que tal era compensado pelo agradável jardim murado por pedra de tufo de lava e se encantavam com a vista da sua varanda sobre o mar e com o silêncio noturno da cidade, outros utentes eram mais severos na sua apreciação. Um ano depois, e.g., o controverso sir Richard Francis Burton (1821-1890) queixava-se da informalidade do estabelecimento, que considerava ser mais próximo de uma taberna que de um hotel, com maus cheiros e pessoas que não seriam especialmente do seu agrado, o que também não deixa de ser interessante face à vida aventurosa e desbragada que este antigo militar e agente secreto havia tido. Em causa, por certo, estaria a qualidade do ar naquela área, como refere o médico Karl Mittermaier (1787-1867), que escreveu que os doentes não deveriam ali ficar, pois seriam obrigados a respirar “as poeiras de um armazém de carvão que lhe fica perto” (MATOS, 2015, 281-282). O Royal Edinburgh Hotel foi gerido pessoalmente pelo patriarca da família Reid, tendo sido um edifício de planta retangular com dois pisos, inserido num lote ajardinado virado para norte, como consta das várias plantas da cidade desses anos. O andar nobre tinha sete janelas de sacada de recorte clássico, dando sobre a R. das Fontes, então arborizada, como se parece verificar nas fotografias da época. Na propaganda que os Reid faziam da sua cadeia de hotéis, no entanto, este hotel quase nunca é apresentado em imagem, colocando-se sempre em destaque só as do Santa Clara e do Carmo. Em 1892, quando publicam o seu guia turístico da Madeira (1892), o seu nome já não consta, devendo assim ter encerrado antes dessa altura, conjetura que pode ser suportada pelo falecimento, em 1888, do patriarca da família, que o gerira pessoalmente. O Carmo Hotel, na rua do mesmo nome, cujo edifício subsistia nos começos do século XXI, embora profundamente alterado, era anteriormente propriedade da família Miles e foi adquirido nos finais da déc de 70 do séc. XIX pelos Reid. O portão lateral de acesso ao logradouro, em ferro forjado, ostenta a data de 1836, data provável de uma das suas últimas reconstruções. Apresenta à rua uma fachada clássica da arquitetura senhorial madeirense, com um piso térreo bastante alto e duas janelas laterais a enquadrar a porta principal encimada por lintel com balanço, um andar intermédio para serviços e, a servir de balanço às suas cinco janelas, a sacada da varanda do andar nobre, com o pormenor de ser corrida, apresentando as janelas remates por cornija relevada. O edifício, no entanto, era bastante profundo e complexo, devendo ter tido várias campanhas de obras, com uma larga e deselegante torre central de mais de dois pisos e as cozinhas no extremo noroeste do conjunto edificado. Numa das campanhas de obras o conjunto foi dotado de um corredor ao longo do piso superior, o que teria facilitado a sua adaptação a hotel, embora o tamanho das divisões fosse muito díspar. Os quartos, mesmo assim, tiveram fama de ser dos maiores e mais confortáveis da cidade. Este hotel teve um importante jardim – onde havia inclusivamente uma jaula com macacos – que contudo, nas fotos dos finais do séc. XIX ou inícios do XX, já não parece ter esse protagonismo, tal como teve um court de ténis, provavelmente o primeiro a ser instalado num hotel do Funchal e, no rés-do-chão, um restaurante aberto ao público. Ellen Taylor, em 1882, ainda o designando por Miles’s Hotel, regista-o como tendo sido durante muitos anos o melhor hotel do Funchal, não só pelo conforto, limpeza e atenção que dispensava aos hóspedes, como pela espaçosa varanda, torre-avista-navios, grande jardim, etc. Pelas palavras da norte-americana, no entanto, parece que nessa data já não era assim, tendo encerrando na segunda década do séc. XX e sido ocupado, pouco depois, pela sede do Grémio dos Industriais de Bordados da Madeira. O conjunto foi, em 2015, objeto de reabilitação para complexo habitacional, mas descaraterizado pelo aumento da área de construção envolvente. O maior hotel do Funchal, nas últimas décadas do séc. XIX, foi o Santa Clara Hotel, edifício adquirido pela família Reid em 1867 e objeto de inúmeras campanhas de obras. Ellen Taylor considera-o o “hotel par excellence” (TAYLOR, 1882, 15), o que não admira, uma vez que foi aí que se instalou, com o seu piano, na sua visita ao Funchal de 1882, tendo depois registado que o conjunto edificado seria muito complexo, com várias entradas independentes para os andares. O conjunto deve ter nascido de uma antiga residência senhorial dos finais do séc. XVIII, assente sobre uma forte sapata com jorramento, quase de feição militar, o que obrigou a construir um complexo piso de serviços nesse embasamento, inclusivamente rematado por cornija, e sobre o qual assentam os 2 pisos nobres, por sua vez igualmente rematados por forte cornija. No início do séc. XXI, esse conjunto ainda se articulava, mas mal, com outro corpo para nascente, sobre o qual existia uma torre trapezoidal, uma singularidade na arquitetura madeirense, e à frente do qual cresceu outro corpo. Ainda existia outro, quase perpendicular a estes dois, tudo indiciando diferentes etapas de construção. Ao nível da fachada principal do Santa Clara Hotel, com acesso pela Trav. das Capuchinhas e pela Calç. de Santa Clara – se é que o termo “fachada principal” se aplica ao conjunto –, para poente, ainda foi acrescentado outro corpo, sobre o qual assenta uma generosa varanda, com um alpendre sustentado por uma esbelta estrutura de ferro forjado. A vista da varanda, assim como dos quartos virados para sul, sobre a cidade e o mar, deslumbrou sempre os visitantes. Um deles, o pintor Edward John Poynter (1836-1919) (Poynter, Edward John), muito provavelmente de uma das janelas deste hotel, em 1877, executou uma excelente aguarela do Convento das Mercês (Convento das Mercês), que viria a ser demolido, sendo, por isso, o único elemento iconográfico que conhecemos desta construção religiosa. O edifício mantinha, no início do séc. XXI, toda a antiga volumetria, tendo deixado de funcionar como hotel na abertura da Primeira Guerra Mundial (I Grande Guerra) e vindo a ser adquirido pela Junta Geral (Junta Geral) para alojamento de serviços de assistência social, passando depois ao Governo regional com similares funções. O aumento exponencial do fluxo turístico no Funchal, na penúltima década do séc. XIX, levou a família Reid a equacionar a construção de raiz uma unidade de luxo, o Reid’s New Hotel, que seria, assim, o primeiro hotel madeirense a ter sido levantado mediante um projeto de arquitetura prévio. Até então, existia uma certa informalidade na organização deste tipo de espaços, criando complicadas disfunções nos circuitos de circulação dos hóspedes e dos funcionários, não havendo, e.g., serviços de receção, pois os hóspedes ou iam já por contactos anteriores, ou eram angariados na sua chegada ao porto, ainda no navio. Os funcionários do hotel encarregavam-se das diversas formalidades, inclusivamente, do despacho da bagagem, o que não seria fácil, pois muitos dos viajantes deslocavam-se com mobiliário e com pessoal. Outro aspeto, só então planeado, foi o das instalações sanitárias, quase sempre comuns até essa data. A família Reid contactou, para o projeto do novo hotel, o arquiteto Somers Clarke (1841-1926) (Clarke, Somers), sobrinho do também arquiteto George Somers Leigh Clarke (1822-1882), que trabalhara, em 1849, na reconstrução do palácio de Westminster. Somers Clarke encontrava-se associado, em Londres, a John Thomas Micklewaite (1843-1906), tendo ambos sido formados no ateliê de George Gilbert Scott (1811-1878), que já havia projetado unidades hoteleiras em Inglaterra. O ateliê de Somers Clarke e de J. T. Micklewaite tinha já ficado conhecido por vários projetos revivalistas góticos para igrejas e, tendo Clarke, por motivos de saúde, estado na Madeira, provavelmente num dos hotéis da cadeia Reid, acabou por ser escolhido para fazer o projeto do Funchal. Somers Clarke deslocou-se, inclusivamente, depois à Ilha para acompanhar a construção do hotel, pelo menos no inverno de 1889, e, no ano seguinte, forneceria à conceituada revista The Buiding News, em Londres, as principais características do seu edifício, com dois blocos delimitados por torres e articulados por um corpo de varandas. Todos os quartos eram iguais e servidos por corredores internos, todos com varandas, equipados com lareira e demais comodidades da época. O novo hotel mantinha uma muito especial relação com o mar, possibilitando um fácil acesso à zona de banhos, e era previsto que viesse a ser servido por um amplo jardim. Nas informações fornecidas por Somers Clarke, parece ter havido alguma dificuldade em caracterizar estilisticamente o edifício, assunto na ordem-do-dia em Inglaterra, parecendo terem sido considerados apenas os aspetos económicos da construção e a sua opção pelos métodos de construção locais e pelos materiais habituais nos edifícios da Ilha. O êxito do novo hotel foi imediato, eclipsando toda a restante rede e, num curto espaço de tempo, seria uma das construções emblemáticas da hotelaria internacional, sendo citado como obra de referência praticamente em todas as publicações da área desde então. Para este hotel trabalhou ainda o pintor Max Römer (1878-1960), com cartazes, menus e bilhetes-postais, colaborando para a criação de um verdadeiro mito. Pelo Reid’s Palace Hotel, como já era designado, passaram algumas das mais famosas figuras europeias, entre ex-Imperadores, ex-Imperatrizes, aristocratas, governantes e ex-governantes, antigos ditadores, escritores internacionais, fotógrafos, atores de cinema, artistas, entre outros, fazendo circular a imagem do hotel por todo o mundo. Sucessiva e cuidadosamente ampliado, integrando courts de ténis, rinques de patinagem, etc., passando por vários proprietários, houve sempre a preocupação de manter o seu legado histórico-cultural e, também um arquivo histórico, tendo o seu nome incorporado sempre a inicial designação “Reid’s”. Os hotéis alemães do Funchal A fama da Madeira, como estância de turismo terapêutico, fora também divulgada na Alemanha pelo Dr. Kämpfer, falecido pouco antes de 1856, que esteve na Ilha entre outubro de 1841 e abril de 1842, e por Karl Mittermaier, médico especialista de Heidelberga, que se deslocara à Madeira com seu irmão, tuberculoso, em finais do verão de 1851, regressando depois, pontualmente, para o acompanhar, até 1854. Deve-se ao Dr. Mittermaier o primeiro livro em língua alemã a defender a Madeira como estância ideal para as doenças pulmonares. Em meados de novembro de 1866, o médico e zoólogo alemão Richard Greeff (1829-1892), e.g., constatou em Lisboa que, no Hotel Central, hotel muito bem situado à beira do Tejo, não só os empregados de mesa, mas também a maior parte das pessoas presentes na sala de jantar, eram alemães. Não eram, no entanto, comerciantes nem cientistas, mas sim doentes, que com os seus companheiros, e como o próprio Greeff, aguardavam embarcação para passarem o inverno na Madeira. A Madeira encontrava-se ainda muito bem equipada para responder a este tipo de doenças. O Dr. Mittermaier mencionava a presença no Funchal de seis médicos portugueses formados em França ou em Inglaterra e de seis médicos ingleses, estando, geralmente no verão, mais alguns médicos alemães. Nessa época, estava na Madeira, e.g., o Dr. Bahr, de Rendsburgo que, após ter curado a sua tuberculose durante quatro invernos passados na Ilha, tencionava radicar-se nela, a exercer clínica. O Funchal encontrava-se também muito bem apetrechado de farmácias, assim como de hospitais, aptos a fazer face a qualquer eventualidade das doenças pulmonares. O Dr. Mittermaier, refere ainda que, por volta de 1840, raramente se encontrava um alemão, mas que, nos anos seguintes, se registara um aumento anual de quase 15 a 20 doentes, calculando que no inverno de 1853 para 1854 estivessem na Madeira mais de 40 doentes alemães. A hegemonia dos interesses britânicos ao longo dos sécs. XIX e XX dificulta a pesquisa dos primórdios da implantação dos Alemães na Madeira. A rede de casamentos das famílias reais europeias igualmente dificulta a construção dessa perceção; assim, e.g., quando, em 1861, chegou à Madeira a Imperatriz Sissi de Áustria (1837-1898) (Áustria, Sissi de) deslocou-se num iate disponibilizado pela Rainha Vitória (1819-1901), instalando-se na Qt. Vigia (Quinta Vigia), onde uns anos antes tinha estado a Rainha viúva Adelaide de Inglaterra (1742-1849), de origem alemã. O aumento dos viajantes alemães e oriundos do centro da Europa na Madeira regista-se após a visita da Imperatriz Sissi e do seu séquito, curiosamente deslocando-se para Santana, no Norte da Ilha, o que justifica também a edição de duas litografias do Funchal, do pintor e litógrafo Joseph Selleny (1824-1875), em Viena, em 1862, por Leopold Theodor Neumann (1832-1875), uma das quais com a Imperatriz frente à Sé do Funchal (Sé do Funchal) e outra, com o título Brück über den Ribeiro Seco, mas que representa a ponte junto ao fontanário do Torreão, logo a ponte do Torreão da Ribeira de Santa Luzia e não a do Ribeiro Seco (Litografias e litógrafos). O primeiro hotel alemão, em princípio, teria sido o de M. Schlaaff, referido, em 1880, pelo tisiólogo alemão Julius Goldschmidt (c. 1840-1924), que exercera clínica na Madeira, pelo menos de 1867 a 1884, como de “primeira ordem” (WILHELM, 1993, 119), mas que já então também tinha sido adquirido pelos irmãos Reid, embora os mesmos tenham mantido à sua frente o anterior encarregado, Francisco Nunes (1831-1907). Francisco Nunes, um homem muito viajado e conhecedor da cultura alemã, era igualmente fluente na língua e proprietário da Qt. Nunes, na Camacha. A importância da comunidade viajante alemã levou a que os irmãos escoceses Reid mudassem a designação para German Hotel, embora localmente também fosse designado por Hortas Hotel, dado ficar localizado na R. das Hortas. Mantiveram ainda, no seu interior, uma pequena biblioteca naquela língua, à qual se refere Paul Langerhans (1847-1888) (Langerhans, Paul) no seu Handbucch für Madeira, de 1885. O German Hotel era um imponente edifício dos finais do séc. XVIII a inícios do XIX, situado a norte da R. do Bom Jesus, entre a R. da Conceição e a das Hortas, de que se conhece fotografia, com uma frente de três pisos e de oito janelas cada, tendo o corpo sul sete janelas. A fachada apresentava ao seu nível uma forte torre-avista-navios com mais dois pisos, com duas janelas por piso, viradas para nascente, e três para sul. Tratava-se, por certo, de uma antiga residência urbana senhorial, sumariamente ampliada para hotel e sem especial qualidade arquitetónica. O German Hotel deixou de funcionar nos primeiros anos do séc. XX e, na sua área, veio a ser levantado um complexo de edifícios da Caixa de Previdência do Funchal, entre 1960 e 1970, projeto do arquiteto Raúl Chorão Ramalho (1914-2001). Os viajantes alemães, no entanto, também frequentaram os restantes hotéis, em princípio, como teria sido o caso do grupo em que se integrou o investigador médico Carl Passavant (1854-1887), o seu amigo Wilhelm Retzer (1856-1883), o seu tutor Traugott Paulit e a família Tropenhelm, que nos inícios de 1883, saindo do porto de Hamburgo, passaram pelo Funchal com destino às colónias alemãs de África, mas chegando, pelo menos o investigador e o seu tutor, a Angola. Fizeram-se então fotografar no Funchal, por certo com outros alemães, numa fotografia de grupo perfeitamente hierarquizada e onde parece reconhecer-se Francisco Nunes. O local, no entanto, não parece de forma alguma ser o German Hotel, mas os anexos do parque do Hotel da Bela Vista. Os Hotéis do Monte A freguesia do Monte era, desde os meados do séc. XVIII, local de veraneio das famílias abastadas do Funchal. A primeira construção de lazer foi a chamada Qt. do Prazer, levantada pelo cônsul inglês Charles Murray (c. 1730-1808) em terrenos que tinham pertencido à confraria de N.ª S.ra do Socorro da igreja do Colégio dos Jesuítas do Funchal (Igreja do Colégio) e que haviam sido doados pelos irmãos João e José Saldanha. Com a extinção da Companhia de Jesus e o confisco de todos os seus bens, essas propriedades foram compradas, em 1770, pelo comerciante Francisco Theodor e, em 1773, vendidas a Charles Murray. A Qt. do Prazer também passou a ser conhecida como Belo Monte e Belmonte, aí tendo sido recebida, e.g., a 13 de setembro de 1817, a futura Imperatriz do Brasil, a arquiduquesa Leopoldina de Áustria (1797-1826), pelo comerciante inglês Robert Page (1775-1829). Com a construção do caminho-de-ferro do Monte (Caminho-de-ferro do Monte), e especialmente com a inauguração do troço final de ligação do Funchal ao Monte, em 1894, vão proliferar os hotéis nesta freguesia. O primeiro teria sido o Hotel Bello Monte, reformulando muito pontualmente a antiga residência dos finais do séc. XVIII, de que se conhecem algumas fotografias dos últimos anos do séc. XIX ou dos primeiros anos do séc. XX. A fachada aparece com portal rematado por lintel e cornija, encimado pelo que parece poder ter sido o brasão de armas do 1.º e único visconde de Monte Belo, João de Freitas da Silva (1849-1922) (Monte Belo, visconde de). Em 1896, a quinta já funciona como hotel, registado por Hilário da Silva Nunes, registo esse que se mantém até 1898, mas que, em 1900, passa a ser de William Reid, e, em 1901, de John Payne, confirmado pelo Brown’s Guide desse ano, onde aparece como proprietária deste hotel a firma John Payne & Son. Alguma influência alemã nesta área ainda se mantinha nesses anos, sendo o Hotel Belmonte referido no guia dos irmãos Trigo, em 1910, como Deutsches Hotel Restaurant, que era “mais especialmente frequentado por alemães, sendo muito conhecido e apreciado pela sua magnífica cozinha” (TRIGO, 1910, 30). Na primeira década do séc. XX houve a tentativa alemã de entrar no mercado turístico madeirense, com investimento no caminho-de-ferro do Monte e constituição de um projeto de construção de sanatórios, hotéis e casinos, através da Sociedade dos Sanatórios (Sociedade dos Sanatórios e Arquitetura do turismo terapêutico), que a comunidade britânica conseguiu inviabilizar. A situação de conflitualidade europeia levou ao deflagrar da Primeira Guerra Mundial e, com a entrada de Portugal no conflito, ao lado de Inglaterra, a memória da presença alemã na Madeira foi quase totalmente apagada. Entre 1915 e 1916, José Sotero e Silva, casado com Maria Augusta de Ornelas Frazão, filha natural mas herdeira do 2.º conde da Calçada, entretanto proprietário do hotel, efetua a reconstrução do imóvel. A propriedade veio a ser adquirida por volta de 1920 pela Companhia de Caminhos de Ferro do Monte e com a reativação do caminho-de-ferro, a 1 de fevereiro desse ano, procedia-se a importantes obras, inauguradas em 1926, como Grande Hotel Bello Monte, com uma zona de serviços a montante, um grande bloco central edificado e ainda uma casinha de prazer para Sul, rematando o jardim. A Segunda Guerra Mundial (II Grande Guerra) levaria ao encerramento do Grande Hotel e à extinção da Companhia em 1943 e, em 1958, instalava-se aí o Colégio Infante D. Henrique dos sacerdotes italianos do Sagrado Coração de Jesus. O edifício reflete o gosto que nas primeiras décadas do séc. XX inspira a maioria das restantes construções da freguesia do Monte, com três pisos e um andar de águas furtadas, grandes varandas a percorrer as fachadas ao longo dos dois pisos inferiores e as coberturas por empenas agudas, ressalvadas por decorações ao gosto dos lambrequins, genericamente designadas por chalés alpinos, gosto que proliferou então por toda a Europa. Em 1901, também o Brown’s Guide anunciava o Reid’s Mount Park Hotel, que, pelas fotografias que dele conhecemos, não passava de uma simples residência tradicional madeirense sumariamente dotada de alpendre para um pequeno bar exterior. Pelo contrário, algumas residências levantadas de raiz nos últimos anos do séc. XIX, como a do comerciante Alfredo Guilherme Rodrigues (1862-1942), a partir de 1897, data em que adquiriu a parte sul da antiga Qt. do Prazer, ganharam um espírito totalmente diferente. Alfredo Guilherme Rodrigues ter-se-ia inspirado nos palacetes que observara nas margens do Reno, numa viagem à Alemanha que fizera poucos anos antes, construindo um dos mais emblemáticos edifícios da freguesia, com a cobertura muito inclinada e rematada por pináculos, que, aliada às altas chaminés, ainda aumentava mais a elegância e verticalidade da construção. O edifício assenta numa larga plataforma com uma fantástica vista sobre a cidade do Funchal, articulando-se ainda com outra varanda adossada ao corpo principal e assente em arcaria. Os jardins dispõem-se em socalcos e possuem uma das mais românticas lagoas da Madeira, inclusivamente dotada de um fontanário inspirado num baluarte redondo militar. Em 1904 já estava adaptado a hotel, o então Monte Palace Hotel, e nos anos seguintes seria uma das imagens mais divulgadas da Madeira. O Monte Palace Hotel era muito procurado por estrangeiros na déc. de 20, assim como o local ideal de casamentos e outras festas, tendo ali ficado instalado António de Oliveira Salazar (1889-1970) (Salazar, António de Oliveira) na sua visita à Madeira, em abril de 1925, quando, juntamente com Mário de Figueiredo (1890-1969), e a convite de elementos do Centro Católico, foi apresentar as suas ideias de Governo para Portugal. O local tinha-se tornado igualmente lendário com as festas da Escola Laical de O Vintém (Escola Laical), entrando em dificuldades no final da déc. de 40, face à Segunda Guerra Mundial e às partilhas entre os herdeiros. Ainda veio a ser adquirido pela Companhia de Caminhos de Ferro do Monte, em 1957, numa efémera tentativa de relançamento da Companhia. Somente nos finais da déc. de 80 é que o edifício viria a adquirir o seu anterior esplendor, com a aquisição por Joe Berardo (1944-), para doação à fundação que tem o seu nome, tendo-se os seus jardins tornado igualmente um dos cartazes turísticos mais importantes da freguesia. Com o prolongamento da linha do caminho de ferro, em 1910, até ao Terreiro da Luta, a Companhia ali levantou, também, um Restaurante Esplanada, num local que, pela sua situação, se tornou igualmente emblemático, sendo internacionalmente divulgado, em especial através das reproduções das aguarelas do pintor Max Römer. O edifício não se afasta dos padrões de gosto dos chalés europeus dos inícios do século, embora de um só piso aparente, sendo equipado para nascente com uma torre ao gosto dos castelos medievais, encimada por ameias e merlões, de profundo sentido romântico. Foi dos poucos edifícios que conseguiu resistir às alterações de gosto e de mercado, ainda funcionando como restaurante e esplanada nos começos do séc. XXI. O mesmo não aconteceu com o enorme chalé do banqueiro Manuel Gonçalves (1867-1919) (Gonçalves, Manuel), o polémico homem forte dos interesses alemães na Madeira. O edifício inspira-se nos castelos medievais do Norte da Europa e é coroado por uma interessante torre com coruchéu sextavado de idêntica inspiração, sendo a fachada, virada para sul, totalmente percorrida por uma varanda corrida, tanto no piso térreo como no superior. O banqueiro faleceu neste chalé que, pouco tempo depois, foi adaptado a The Mount Royal Hotel, assim vindo publicitado no Power’s Guide de 1930. O início da época dos Grandes Hotéis O espaço entre as duas guerras mundiais marca já um volume exponencial do tráfego marítimo e a correspondente necessidade de aumento da capacidade hoteleira da área do Funchal. Assiste-se então a sucessivas ampliações dos anteriores edifícios e a uma progressiva apropriação da orla marítima pelas principais unidades hoteleiras, aspeto que, uns anos antes, já era patente na construção de raiz do New Reid’s Hotel, mesmo antes de passar a Reid’s Palace Hotel, o que também foi quase imediato. A cidade do Funchal vai expandir-se para poente, tendência geral das grandes cidades europeias, numa apropriação dos espaços de fim de tarde como horário privilegiado de lazer. As acessibilidades tinham começado com a construção da Est. Monumental, unindo a cidade do Funchal a Câmara de Lobos, o que obrigara à construção de uma série de pontes sobre as inúmeras ribeiras existentes e junto das quais iriam nascer as principais unidades hoteleiras. Em 1898, a fazer fé no Power’s Guide de 1914, foi estabelecido a Este da foz do Ribeiro Seco o Atlantic Hotel, ampliado em 1913. A edificação original não se afastava das anteriores quintas de aluguer, mas a reconstrução desse último ano já apresentava um andar nobre com varanda corrida para Sul e um andar superior em mansarda. Possuía ainda corpos adossados, sendo o corpo para poente dotado de terraço, e incorporava na área duas ou três residências preexistentes. Já possuía, assim, um importante jardim com terraço com vista sobre o porto e, em breve, apropriar-se-ia da praia, construindo aí instalações balneárias, divulgadas através das aguarelas promocionais de Max Römer, embora o edifício representado – dadas as fotografias que conhecemos – em princípio não fosse o do Atlantic Hotel. Em julho de 1936, entrava na Câmara Municipal do Funchal um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares (1892- 1983) (Tavares, Edmundo), que no ano anterior executara um projeto semelhante para o vizinho Savoy Hotel. O projeto não alterava a volumetria, limitando-se a reformular a entrada, dotando-a de um pórtico neoclássico exterior; no interior, criava um átrio de entrada com receção, que não existia. Por 1970, o conjunto seria totalmente demolido e, no seu local, levantado um importante edifício, então entregue à cadeia internacional Sheraton, inaugurado a 20 de novembro de 1972. O conjunto foi ainda prolongado pouco depois, descendo ao longo da falésia com novos apartamentos e piscinas e, alguns anos depois, foi adquirido pelo Grupo Pestana, que nele instalou o Pestana Carlton Hotel. Muito próximo e para nascente da margem do Ribeiro Seco, pelas últimas décadas do séc. XX, era construído o Royal Hotel, ainda dentro da tradição do turismo terapêutico, constituído por 2 corpos e uma torre central, sendo o 1.º andar totalmente preenchido por uma varanda de repouso, que recorria a uma armação estrutural de ferro fundido. O edifício parece ter recorrido a uma residência anterior, sendo a entrada no 1.º andar ladeada por dois óculos de cantaria aparente, dentro da tradição local. A entrada efetuava-se pela R. Imperatriz D. Amélia e, nos seus jardins, contava também com um court de ténis. No final da última década do séc. XIX foi adquirido por José Dias do Nascimento (1868-1934), passando a designar-se Savoy Hotel e, em 1912, já tinha 24 quartos. Nos meados da déc. de 20 do séc. XX , seria totalmente demolido, levantando-se no seu local uma enorme estrutura, para a época, com uma fachada voltada para sul de cinco pisos e integrando ainda duas torres de mais dois pisos. Em 1928, abria, assim, com 220 camas, tendo o espaço até à R. Imperatriz D. Amélia sido de novo ajardinado. Em abril de 1935, entrava na Câmara Municipal do Funchal um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares, mas que não alterava significativamente o que estava construído e que se limitava à construção de um anexo para salão de jantar. Cerca de 10 anos depois, à semelhança do Reid’s Palace Hotel e Atlantic Hotel, o Savoy Hotel conseguiria também acesso ao mar, construindo uma nova estrutura na falésia, então independente do edifício principal, que chegou a ter a designação de Savoy Hotel Lido. As instalações balneárias do Savoy Hotel não pararam de crescer e, na déc. de 60, o edifício principal seria parcialmente demolido, construindo-se, no mesmo local, um dos maiores hotéis da cidade, que, em 1970, abria com 750 camas. O edifício tinha já entrada pela nova Av. do Infante e apresentava oito pisos em dois blocos compactos, rematados no piso superior por um restaurante panorâmico e uma boîte. Em 2002, a área das piscinas reformulava-se como Royal Savoy, num mega projeto de luxo, e o edifício superior dos finais da déc. de 60 era objeto de idêntico mega projeto, sendo demolido em 2011, mas acabando o projeto por ficar pelas fundações. Em 2013, um dos herdeiros do fundador e dos últimos gestores desta unidade hoteleira, António Drumond Borges, editou uma coleção de memórias destes três emblemáticos hotéis madeirenses. Alguns pequenos hotéis foram resistindo à concentração nas grandes cadeias, mantendo-se quase privados, como ocorreu com o Hotel da Bela Vista, situado atrás do Hospício da Princesa D. Maria Amélia e com acesso pela R. do Jasmineiro, que foi crescendo nos últimos anos do séc. XIX. O hotel teve por base uma residência dos meados do séc. XIX, com um bom parque envolvente e uma situação invejável que lhe deu o nome de Bela Vista ou Bella Vista. Este hotel é mencionado no guia de Paul Langerhans, em 1885, como Falkner’s Private Hotel, embora, entre 1891 e 1901, esteja registado em nome de Eugénio Jones. A construção da aparatosa e enorme varanda de repouso deverá ter sido feita pouco depois, ocupando o espaço que foi depois a sala de jantar do Seminário Diocesano, entidade que viria a ocupar o imóvel. Este hotel deveria ter gozado de uma certa independência em relação às estruturas turísticas e deveria ter captado uma especial clientela, pois é, porventura, uma das unidades turísticas mais fotografadas nos finais do séc. XIX e nos inícios do séc. XX, especialmente a base das escadas de acesso ao jardim, onde os vários turistas aparecem fotografados em redes e em carro de bois. Com a expansão da cidade para poente, a construção do complexo desportivo do Lido (Complexo desportivo do Lido), do Clube Naval (Clube Naval) e do Clube de Turismo (Clube de Turismo), entre outros, ainda na déc. de 30 do séc. XX , surgia no caminho velho da Ajuda, mais um hotel, o New English Hotel, adaptando uma anterior residência ao modelo dos velhos hotéis do turismo terapêutico, com a justaposição à fachada de um corpo de varandas apoiado em colunas de ferro forjado, a que se acrescentou, para poente, idêntico corpo mais pequeno. O esquema repetia quase o do inicial Royal Hotel, que tinha dado origem ao Savoy Hotel, transformando somente em torre aparente a anterior janela de mansarda, num esquema tradicionalista e já perfeitamente retrógrado para a época. Nos finais do século, o edifício viria a ser adaptado para sede da Fundação Cecília Zino (Fundação Cecília Zino). A construção do aeroporto e o aumento do porto Os meados do séc. XX foram marcados, na Madeira, pela emergência do grande turismo internacional, com a montagem da primeira empresa privada britânica de transporte aéreo a operar um serviço internacional regular, em 1949, com os chamados “barcos voadores” da Aquila Airways (Aquila Airways), a que se seguiu a ampliação do porto do Funchal (Porto do Funchal), então capaz de receber, com cais de acostagem, os grandes paquetes internacionais e, na déc. de 60, a construção do aeroporto do Porto Santo e, mais tarde, do aeroporto de Santa Catarina, em Santa Cruz, na Madeira, sucessivamente Aeroporto da Madeira e Aeroporto Cristiano Ronaldo (Aeroportos). A adaptação, evidentemente, não foi imediata, voltando-se, para o efeito, a reformular anteriores residências, como foi o caso da inicial residência levantada por Salomão da Veiga França (1893-1961), na Est. Monumental, que já aparece no Power’s Guide de 1930 como Miramar Hotel. O Miramar Hotel foi objeto, em julho de 1938, de um projeto de ampliação, da autoria do arquiteto Edmundo Tavares, que alterou significativamente a volumetria, acrescentando um amplo corpo de dois pisos para poente, tendo sido utilizado para apoio às tripulações da Aquila Airways, tal como, na Segunda Guerra Mundial já tinha sido utilizado para a comunidade refugiada britânica de Gibraltar (Gibraltinas). Este antigo hotel, profundamente ampliado e reinterpretado, deu origem, em 1990, ao Pestana Miramar Hotel. Idêntico percurso teve a antiga residência de Francisco Conceição Rodrigues, que fora diretor do Diário de Notícias, junto da ponte do Ribeiro Seco, na R. do Favila, cuja construção foi interrompida em 1927 com a saída do proprietário do Funchal. O edifício de dois pisos, com uma ampla varanda corrida ao longo da fachada, viria a albergar o Casino Monumental, assim chamado dada a proximidade da Est. Monumental e, ainda na déc. de 30, seria ampliado para poente com mais dois pisos, dando origem, na déc. de 40, ao Hotel Nova Avenida, ou New Avenue Hotel, em homenagem à ampliação da Av. do Infante. Sem especiais alterações, nos finais do século, viria a albergar o Conservatório e Escola Profissional das Artes Engº Luiz Peter Clode. As décs. de 50 e 60 abriram perspetivas totalmente novas à Madeira, com as novas ligações aéreas da Aquila Airways, que a 1 de janeiro de 1950 trouxeram à Madeira o chefe do partido conservador inglês, sir Winston Leonard Spencer Churchill (1874-1965), que se instalou no Reid’s Palace Hotel, onde permaneceu 11 dias, embora regressando a Londres de navio; tal como, no final do ano seguinte, a jovem Margaret Thatcher (1925-2013) que, em lua de mel, se hospedou no Savoy Hotel. O novo ciclo económico, especialmente vocacionado para o turismo, é patente, e.g., na diversificação dos investimentos da Casa Hinton, essencialmente vocacionada para a moagem, que, ao longo desses anos, diminui a atividade, passando a Fábrica do Torreão a funcionar sazonalmente. O comendador Harry Hinton (1857-1948) (Hinton, Harry) falece a 16 de abril de 1948 e, num curto espaço de dois anos e pouco, o herdeiro, George Welsh (1895-1981), investe igualmente na indústria hoteleira, abrindo o Hotel Santa Isabel, junto ao Savoy, na Av. do Infante, em frente ao então recente Hotel Nova Avenida, pouco depois ampliado e pronto para a abertura no outono de 1960. Em termos de política económica nacional, a déc. de 50 iniciou-se com o I Plano de Fomento (1953-1958) que, entre vários objetivos, apontava para um plano de realizações no campo da agricultura, privilegiando a colonização interna e tentando assim fixar as populações no campo, de onde cada vez mais fugiam. Tal como no continente, o plano, na Madeira, era essencialmente direcionado para o aproveitamento hidroelétrico e para os aspetos gerais dos transportes, onde o país apresentava um franco atraso. O projeto vinha da Lei de Reconstituição Económica de 1935 e deu origem, na Madeira, à reformulação do sistema de levadas (Levadas) e ao seu aproveitamento para o fornecimento de energia elétrica à cidade do Funchal e ao respetivo parque hoteleiro. A cidade expandiu-se, então, decididamente para poente, sendo na área do Lido que vão surgir progressivamente novos hotéis, cuja construção, ao longo da déc. de 60, chega quase à praia Formosa, com o Hotel Madeira Palácio, em cujo capital chega a participar a TAP, transportadora aérea portuguesa. Com a abertura do aeroporto de Santa Catarina, inaugurado a 8 de julho de 1964, a empresária Fernanda Pires da Silva (n. 1926), presidente do Grupo Grão-Pará, iniciou os trabalhos para a montagem na área do complexo turístico da Matur, em Água de Pena (1972-1999). A 20 de novembro de 1972 eram assim inaugurados os grandes hotéis construídos de raiz na época, a saber, o Sheraton, no Funchal, onde se havia levantado o antigo Hotel Atlântico, e o Atlantis Holiday Inn, junto ao aeroporto, como os restantes hotéis dessa cadeia internacional. Para a inauguração, deslocou-se, mais uma vez, à Madeira, o chefe de Estado, Alm. Américo Thomaz (1894-1987), que ainda inauguraria o bairro social do Grémio dos Bordados (Grémio dos Bordados), acima da Qt. do Til, no Funchal. O complexo da Matur representava uma inovação no contexto da hotelaria insular, afastando-se do Funchal algumas dezenas de quilómetros. Era filosofia da cadeia hoteleira Holiday Inn, com a qual o Grupo Grão Pará trabalhava, procurar novos espaços e localizar-se nas imediações de aeroportos, permitindo uma rápida instalação dos utentes e, igualmente, uma rápida saída. O complexo possuía outro aspeto mais ou menos inovador à época, que era a articulação com pequenos apartamentos de férias, independentes da unidade hoteleira-mãe, o que, na área do Lido, no Funchal, igualmente se ensaiava com os apartotel. A Matur encontrava-se dotada também de um amplo parque ajardinado, com instalações para congressos, clube de bridge, restaurantes, piscina olímpica, etc. As alterações do mercado turístico, nos anos seguintes, colocaram em causa o projeto e a ampliação do aeroporto levou à necessidade de demolição do Atlantis, que, com os seus 17 pisos, levantava questões de segurança ao tráfico aéreo, o que veio a acontecer, por implosão, a 22 de março de 2000. A grande obra de arquitetura desta época foi o complexo do Casino Parque Hotel (Casino Parque Hotel), posteriormente Pestana Casino Park, projetado sumariamente pelo arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer (1907-2012), em 1966, e executado pelo arquiteto português Alfredo Viana de Lima (1913-1991) que, tal como Niemeyer, fora discípulo do arquiteto francês Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido como “Le Corbusier” (1887-1965). A atuação de Niemeyer foi muito limitada, não passando de esquiço e, depois, de um anteprojeto na escala de 1:500, tendo o desenho definitivo, de 1970, os detalhes e o acompanhamento sido feitos pelo arquiteto português. Teria havido, inclusivamente, divergências ao longo da execução do projeto, e.g. em relação a parte da estrutura ficar assente em pilares, uma vez que o Casino Parque Hotel era construído nos terrenos da antiga Qt. Vigia, que eram terrenos públicos, tendo Viana de Lima sido inflexível no respeito do anteprojeto, enquanto Niemeyer, então em Paris, chegara a condescender. O resultado é uma obra-prima de desenho e de arquitetura brutalista dessa época, acrescida ainda da participação, no desenho da arquitetura de interiores, do arquiteto Daciano Costa (1930-2005). Uma das poucas características da arquitetura do turismo de lazer na Madeira parece ser a sua muito especial relação com a paisagem envolvente, através da contínua criação de possibilidades múltiplas de observação e de usufruto da mesma, através de miradouros. Nos inícios do séc. XX, quando o arquiteto Ventura Terra elabora o seu plano de urbanismo para o Funchal, o acesso e a construção de miradouros foi uma das diretivas mais expressas. Nos anos seguintes, estas estruturas situadas nas encostas da cidade serão uma das prioridades camarárias, e, a partir da déc. de 40, uma das preocupações da Delegação de Turismo da Madeira (Delegação de Turismo da Madeira). O domínio quase absoluto do turismo de origem britânica e dos empresários dessa nacionalidade levou a que a arquitetura do turismo de lazer, na Madeira, não ganhasse características especialmente locais, embora utilizando mão de obra local e um saber artesanal ancestral, que informara de uma forma geral a arquitetura insular como uma arquitetura sem arquitetos. Os modelos vão ser, assim, importados, como os chalés do norte e centro da Europa e, depois, os modelos internacionais ensaiados nos grandes centros turísticos internacionais. Nem o recurso a arquitetos de gosto nacionalista, como o caso de Edmundo Tavares, que fez pelo menos três projetos de reforma em hotéis nos meados da déc. de 30 do séc. XX, permitiu criar alguma coisa que lembrasse muito especialmente esse tipo de gosto, até por estar a trabalhar para uma clientela internacional. Nas décadas seguintes, e dada a circulação exponencial dos modelos internacionais, também serão esses a ser levantados na Madeira, tendo sempre em vista que o turista só muito raramente poderia ser nacional. Acresce que, sendo o mercado turístico altamente competitivo e sujeito às constantes alterações do gosto internacional, a tendência para a constante reformulação dos edifícios e dos seus equipamentos leva à eliminação de quase todas as preexistências em nome da novidade e do moderno. Mesmo em casos de indiscutível e internacional qualidade, como o do Reid’s Palace Hotel e do Casino Park Hotel, a tendência e a necessidade de inovação representam sempre um alto risco para o património arquitetónico edificado e, mais ainda, para a arquitetura de interiores. O desenvolvimento da cidade para poente, como acontece nas principais congéneres portuárias do Sul da Europa, levou à criação de uma zona de lazer especialmente vocacionada para parque hoteleiro, a área do Lido, a par de uma zona de montanha, a freguesia do Monte. No entanto, se a zona do Lido preservaria essas características, embora mesclada de parque habitacional, tal parece, de certa forma, ter-se gorado no Monte. A construção de acessibilidades múltiplas e, especialmente, a construção do teleférico, associada a uma cada vez mais rápida passagem do turista, tem dificultado a manutenção, no Monte, de determinado tipo de serviços, tais como a restauração e o alojamento, face à sua pouca rentabilidade. A passagem do séc. XX para o séc. XXI apresentou alguns aspetos inovadores, com uma nova apetência de alguns segmentos do turismo nacional e internacional para outros tipos de lazer, fora das grandes cidades e com outro género de ocupação do tempo. Tal permitiu a execução de projetos arquitetónicos de raiz muito inovadores, tal como a reabilitação de antigas quintas e propriedades rurais, que se afastam profundamente dos pressupostos gerais que nortearam o turismo ao longo da segunda metade do séc. XX, especialmente o de massas.     Rui Carita (atualizado 14.12.2016)

Arquitetura Património História Económica e Social