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O mais importante da ligação da Madeira com as Antilhas, a partir do séc. XVII, prende-se com as ilhas subordinadas ao império britânico. A partir de meados do séc. XIX, acontece uma importante vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas inglesas para substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo. Esta rota emigratória manteve-se entre a Madeira e Antigua, Demerara, Guiana, Grenada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, Saint Vincents e Trinidad. Para o vinho, teremos as ilhas de Antigua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curazau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Christopher, Anguilla, Saint Vincent e Trinidad. Palavras-chave: comércio; emigração; vinho; Caribe; Antilhas. Por esta designação se entende todas as ilhas da América Central que, a partir do séc. XVII, entram na esfera de domínio e controlo do império britânico, com quem a Madeira teve fortes laços comerciais, baseados, de forma especial, no vinho e na emigração de populações para suprir a falta de mão-de-obra ou por força da perseguição aos seguidores do Rev. Robert Kalley. Esta mobilidade humana e comercial concretiza-se pelo facto de a Madeira manter uma relação direta com todo o mundo atlântico, desde o séc. XV, por ter sido o primeiro espaço de ocupação europeia, o ponto de partida em termos da ocupação de novos espaços e ilhas, e, por fim, pela sua situação geográfica como base de apoio e de afirmação do império colonial britânico. Aliás, a Ilha serviu de modelo para Portugueses e Castelhanos neste afã povoador dos espaços insulares atlânticos e das Antilhas. Assim, os Castelhanos viram na Ilha a resposta para as dificuldades da sua ação institucional nas pequenas ilhas do Atlântico, como se depreende do desejo manifestado, em 1518, pelas autoridades das Antilhas em resolver a difícil situação das ilhas de Curaçao, Aruba e Isla Margarita, com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Há uma ligação direta da Ilha às Antilhas, que se perpetua no tempo, por diversas razões. A primeira situação de proximidade é provocada pela expansão da cultura da cana-de-açúcar. Os madeirenses intervêm na sua expansão em Santo Domingo, Cuba e Jamaica. Em 1647, encontramos referência a um capitão francês que pretendia contratar um mestre de açúcar madeirense para a ilha de Saint Kitts. Esta desusada intervenção da Madeira, a partir do séc. XVII, resulta ainda do facto de a sua posição geográfica o permitir, sendo considerada a última etapa antes da chegada às Antilhas. A Madeira estava às portas deste novo mundo e abria-as aos europeus desta rota, o que implicava e facilitava também uma intervenção ativa neste processo, estabelecendo-se pontos entre a Ilha e as Antilhas, em termos comerciais e de movimentos emigratórios. As Antilhas serão, a partir de meados do séc. XIX, a solução fácil para os excedentes populacionais da Ilha que, a partir de então, atuam como emigrantes, muitas vezes com a função de substituir a mão de obra negra, quando, no passado, haviam assumido a posição de negreiros, de lavradores e de técnicos experimentados nas indústrias ligadas à atividade agrícola. Estes madeirenses que partem na última vaga do séc. XIX são obreiros da situação das Antilhas nos sécs. XX e XXI, tornando-se a sua presença notória em muitas ilhas, expressa através de múltiplas manifestações culturais, donde se destaca a terminologia e a culinária. Por outro lado, parece existir, na maioria destes madeirenses que partem neste século, uma forte consciência da identidade ilhoa, que os mesmos pretendem seja diferenciadora dos demais Portugueses, afirmando-se como madeirenses e não gostando de ser considerados Portugueses. As Antilhas: séculos XVII-XIX São diversas as designações deste grupo de ilhas da América Central. Primeiro, por equívoco de Colombo, ficaram conhecidas por Índias Ocidentais (West Indies); depois, atribuiu-se-lhes a designação indígena, daí Antilhas. Este grupo insular é composto por várias ilhas. O processo europeu de reconhecimento e ocupação destas ilhas começou em 1492, com as três viagens organizadas por Cristóvão Colombo, entre 1492-1493, 1493-1496 e 1496-1500, com o reconhecimento das Baaamas, Cuba e Haiti, Jamaica, Trindade e Porto Rico. Todas estas ilhas começaram por ser, em 1492, de domínio espanhol, daí a designação de Antilhas Espanholas, permanecendo algumas nesta situação até à sua independência, a partir de 1865: República Dominicana (1865), Cuba (1898) e Porto Rico (1898). A partir dos princípios do séc. XVII, começou a disputa pela sua posse, sendo partilhadas com os Franceses, Holandeses e Ingleses. As Antilhas Francesas compreendem Martinica, Guadalupe (arquipélago composto por Grande-Terre e Bassse-Terre, La Désirade, Marie-Galante e as Îles Les Saintes), Saint-Barthélemy e São Martinho (lado francês). As Antilhas Neerlandesas, ou Holandesas, que surgem a partir de 1634, são formadas por dois grupos de ilhas, ficando um a norte das Pequenas Antilhas (Saba, Santo Eustáquio e São Martinho) e o outro ao largo da costa da Venezuela (Aruba, Bonaire e Curaçau). A presença britânica regista-se aqui a partir de 1612 e afirma-se na segunda metade da centúria. A ocupação das ilhas obedece a interesses estratégicos, comerciais e agrícolas, pois são estes que dão um novo impulso à produção açucareira. Quanto às Antilhas Britânicas, estas incluem: Bermudas, Saint Kitts, Barbados, Jamaica, Baamas, British Virgin Islands, Montserrat, Nevis, Angula, Tortola, Saint Croix, São Vicente, Saint Thomas, Dominica, Cartagena, Honduras, Trindade. Neste conjunto de Antilhas pequenas e grandes, regista-se, desde o séc. XVI, o estabelecimento de relações comerciais, relacionadas com o vinho e a emigração, que se processam em duas etapas: no decurso dos sécs.XVI e XVII, onde se destacam técnicos açucareiros para Cuba e Santo Domingo, bem como judeus, vindos da Ilha ou a partir de Pernambuco, e a partir de meados do séc. XIX, período em que se regista outra vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas Inglesas, com o intuito de substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo, numa forma especial conhecida como indentured labour. Esta rota migratória manteve-se entre a Madeira e Antígua, Demerara, Guiana, Granada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Para o vinho, as ilhas de Antígua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curaçau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Na costa atlântica da América do Sul, temos ainda a considerar a Guiana, partilhada por Ingleses, Franceses e Holandeses, que se enquadra neste grupo das Antilhas. Originalmente, a Guiana Holandesa consistia em três colónias: Essequibo, Demerara e Berbice. Em 1814, os Holandeses entregaram esta região aos Ingleses, que, a partir de 1831, lhe atribuíram a designação de Guiana Inglesa. Entretanto, os Holandeses mantiveram o Curaçau e Suriname. Esta última área, também conhecida como Guiana Holandesa, ficou subordinada aos Neerlandeses desde 1667, com o chamado Tratado de Breda, realizado entre a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos e o Reino da Grã-Bretanha, a 31 de julho de 1667, o qual pôs fim à Segunda Guerra Anglo-Holandesa através do controlo de rotas marítimas e do comércio, que decorreu entre março de 1665 e julho de 1667. Relativamente à Guiana Francesa, esta começou por ser um centro de negócios de comerciantes franceses, criado em Sinnamary (1624) e Caiena (1637). Esta última cidade foi ocupada por duas vezes pelos Holandeses (1664 e 1676), sendo legitimada a posse francesa pelo já referido Tratado de Breda. O comércio do vinho com as Antilhas deve-se a vários fatores. Primeiro, pelo facto de, a partir de meados do séc. XVII, os Ingleses terem escolhido a Madeira como base avançada para os seus interesses expansionistas no Atlântico, funcionando a Ilha como base de apoio e de reorganização das frotas militares e comerciais. Depois, pelo facto de ser um dos poucos vinhos europeus a suportar muito bem as mudanças de temperatura, atuando o efeito do calor como meio de envelhecimento do mesmo. Não deverá ser esquecido que um dos principais problemas da dieta de bordo das tripulações era a falta de vitamina C, que provocava o escorbuto, sendo o vinho um dos antídotos utilizados. Em relação às Antilhas, diz-se que o nome de Curaçau está relacionado com este facto, pois foi aqui que os Portugueses encontraram a cura do escorbuto, dando o nome à ilha. Comércio Uma das primeiras intervenções comerciais dos madeirenses nas Antilhas está relacionada com o comércio de escravos. Alguns ilhéus usufruíram de uma posição destacada nos entrepostos do tráfico negreiro em Santiago, São Tomé ou Angola, gozando mesmo, desde 1562, de privilégios especiais na captura de escravos para as suas fazendas ou para venda aos compatrícios que as possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso contrabando, alargando os seus negócios até ao Brasil ou às Antilhas. Fascinados pela aventura destas paragens, muitos decidiram-se por uma intervenção direta, fixando-se em Santiago ou na costa da Guiné, pois que a situação de vizinho era condição obrigatória para participar neste tráfico negreiro. A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa, a avaliar pelos testamentos que chegaram às nossas mãos. Destes, merece especial referência o de Francisco Dias, morador na Ribeira Grande, que, pelo testamento de 1599, é apresentando como sendo um dos mais importantes mercadores de escravos empenhados no tráfico com a Madeira e as Antilhas. A permuta baseava-se, pelo lado africano, em escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o algodão, milho, cuscuz, chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos. Francisco Dias foi um, de entre muitos, dos que se lançaram na aventura, fixando morada na Ribeira Grande. Aí, foi escrivão do almoxarifado e memposteiro-mor da rendição dos cativos, atuando como um ativo agente do tráfico negreiro da costa africana próxima. Todo o empenho de Francisco Dias estava no tráfico com a vizinha costa da Guiné, sendo os cargos de memposteiro-mor dos cativos e de escrivão do almoxarife mais um meio para reforçar a sua posição. Era mercador e armador com uma rede de negócios, tendo como principais eixos as ilhas (Açores, Cabo Verde e Madeira), a costa da Guiné e as Antilhas Espanholas. Aqui, estávamos perante uma empresa de tipo familiar, onde atuavam, por exemplo, Álvaro, Diogo, João, Jorge e Lopo Fernandes. Este João Fernandes, filho de Álvaro Fernandes, morreu, ainda jovem, quando se encontrava em missão comercial na costa da Guiné, deixando os seus negócios entregues ao tio. Do outro lado do Atlântico, nos contactos com os mercados negreiros das Antilhas, representavam-no Manuel Diogo Cavalheiro, Álvaro Dias, Mariscal e Diogo Cavalheiro das Honduras. A partir da Madeira, o estreitamento das relações comerciais com as Antilhas inicia-se na segunda metade do séc. XVII, mas com a intervenção dos Ingleses. A política mercantilista inglesa definiu a hegemonia da burguesia comercial britânica, consolidada, na Madeira, com frequentes tratados luso-britânicos. A par disso, a afirmação do império colonial britânico nas Antilhas, com a ocupação da Jamaica (1654) e das demais ilhas, veio a valorizar a posição da Madeira como porto de escala e fornecedor de vinho e, mais tarde, de emigrantes. Com Oliver Cromwell, definiu-se um mercado de monopólio para a burguesia comercial inglesa, no qual a Madeira será um das pedras-base do processo. As leis inglesas de navegação de 1651, 1660, 1663 e 1665 definiram os contornos desta política mercantilista ao estabelecerem que todos os produtos entrados nos portos das colónias britânicas deveriam ser feitos sob pavilhão inglês. Assim, de acordo com a ordenança de 1663, as ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores detinham o exclusivo do fornecimento de vinho às colónias inglesas na América, África e Ásia. Foi assim que Barbados suplantou os portos brasileiros e angolanos no consumo do vinho Madeira, ainda no séc. XVII. Os dados da exportação para o ano de 1699 são esclarecedores desta mudança. Num total de 4987 pipas, temos as Antilhas em primeiro lugar, com 1303. Aqui, o protagonista deste tráfico é o comerciante inglês, sendo William Bolton o primeiro a definir os contornos desta realidade. Note-se que, de acordo com os registos de saída da Alfândega do Funchal entre 1650 e 1699, as embarcações inglesas dominam, de uma forma esmagadora, o comércio. A correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 171 é o testemunho do porto do Funchal como entreposto nas ligações e atividade com as Antilhas Inglesas. Ao vinho que seguia para Lisboa, junta-se outro, de embarque direto no Funchal pelos navios ou armadas. Em 1664, uma armada francesa com destino às Antilhas foi provida de 40 pipas. O vinho era conhecido como de beberagem, pelo que, segundo a tradição, estava isento de direitos. Ao longo do séc. XVIII, vários comboios que se dirigiam às Antilhas passavam pela Madeira, onde tomavam grandes quantidades de vinho, destacando-se o de dezembro de 1744, com 33 navios, e o de 1788, com 70 navios, que carregou 2000 pipas de vinho, a que se juntou outro, em outubro de 1799, com 60 navios, que carregou 3041 pipas. Em 1788, um comboio de 70 navios carregou 2000 pipas e outro, no ano seguinte, saído de Portsmouth com destino às Índias Ocidentais, comandado por Roger Curtis, com 96 navios, carregou 3041 pipas e meia pipa. Entre 16 e 21 de setembro de 1805, a frota das Antilhas, composta por 52 navios, lançou âncora. Depois, de 29 de setembro a 3 de outubro, atracaram no porto do Funchal as 60 embarcações da frota das Índias (17 navios mercantes e numerosos transportes). Os registos de saída da Alfândega do Funchal no séc. XIX assinalam a saída de vinho para gasto de embarcações estrangeiras. As colónias inglesas das Antilhas e da América do Norte foram o objetivo e o vinho o principal negócio. O vinho, que até então tinha como destino exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os novos mercados, que assumiram um lugar dominante a partir de finais da centúria. Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro e Baía vieram juntar-se os de Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvânia, Virgínia, Maryland, Bermudas, Barbados, Jamaica, Antígua e Curaçau. No período de 1686 a 1688, das 688 pipas entradas em Boston, registam-se 266 da Madeira e 421 do Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do Norte, levados pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os seus contactos nas Antilhas Inglesas e Francesas. Para a Madeira, a já referida correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no séc. XVIII. Aqui, é evidente a definição de um circuito comercial hegemónico, delimitado pelos portos ingleses e das colónias da América Central e do Norte. As Antilhas (Curaçau, Barbados, Antígua, Nevis, Jamaica e Bermudas) surgem com uma posição destacada na importação de vinho, com 5005 pipas. William Bolton é o primeiro mercador inglês a enquadrar-se neste espírito, podendo a sua atividade comercial ser acompanhada através das cartas que nos deixou. Para as colónias inglesas das Antilhas, o vinho era o seu objetivo e principal negócio. O inglês John Ovington, que visitou a Madeira em 1689, afirma que “num cálculo modesto, a produção anual de vinho pode ser calculada em vinte mil pipas, sendo este número totalmente gasto. Pensa-se que oito mil serão bebidas na ilha, três ou quatro despendidas no tratamento ou melhoramento (através de aguardente destilada) e o restante exportado, principalmente para as Índias Ocidentais, especialmente Barbados, onde tem mais aceitação que os outros vinhos europeus” (ARAGÃO, 1981, 198). Um dos primeiros intervenientes neste negócio foi precisamente William Bolton. Sabemos da sua ação comercial com estas Índias através das já referidas cartas comerciais disponíveis, para o período de 1696 a 1714. Os navios saíam de Bristol, Dublin e Londres e, após escala no Funchal, seguiam para Antígua e Barbados. [table id=68 /] Para o período de 1780 a 1801, destaca-se a Jamaica como centro de redistribuição nas Antilhas: [table id=69 /] O momento de apogeu da exportação do vinho da Madeira para estes mercados situa-se entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, altura em que a saída atingiu a média de 20.000 pipas. Mais de dois terços do vinho exportado destinavam-se ao mercado colonial americano, de que se destacam as Antilhas. Para o período de 1780-1799, a Ilha exportou 210.057 pipas, sendo 103.703 para as Antilhas. Duarte Sodré Pereira, governador e capitão da Madeira, comprometido com o comércio atlântico, dá-nos conta da situação do mercado no séc. XVIII. De acordo com o copista da sua correspondência, aquele esteve envolvido no comércio com Inglaterra, Lisboa, Estados Unidos da América, América Central (Barbados, Jamaica e Curaçau) e Brasil. As várias casas de vinhos inglesas mantinham laços estreitos com estas ilhas. Assim, por exemplo, a casa Phelps Page & Co. tinha uma rede de agentes, com especial incidência na Jamaica. Do mesmo modo, D. Guiomar de Sá de Vilhena troca vinho por cereais na Jamaica, Suriname e Santo Eustáquio. A firma Cossart Gordon & Co. manteve igualmente um comércio ativo com estas ilhas, de forma que, entre 1823 e 1834, regista-se: [table id=70 /] Muitas vezes, o retorno destas ilhas resumia-se a pipas vazias da Jamaica ou a carne de vaca, manteiga e farinha de Barbados. Entre 1831 e 1850, estas ilhas continuaram a receber importantes quantidades de vinho Madeira, o que significa igualmente que funcionariam como centros de redistribuição no Caribe. Só assim se justificam as 3464 pipas da Jamaica e as 2179 de Trindade. [table id=71 /] Para o séc. XIX, continuam a afirmar-se esta posição e interesse pelo vinho Madeira, no vasto universo insular das Antilhas. Assim, para o ano de 1843, temos: [table id=72 /] É evidente a afirmação do mercado das Caraíbas, dominado pelas colónias inglesas, com especial destaque para a Jamaica e Barbados. O centro de consumo estava nas Antilhas: o vinho Madeira era a bebida alcoolizada mais difundida. Bebia-se geralmente no sangaree, mistura de vinho, água e sumo de limão. Para os Ingleses, se o Porto é o vinho da metrópole, o Madeira é o vinho das Antilhas, mas também o das Índias. Este vinho corria nos serões de quase todas as ilhas, mas, em especial, na Jamaica, Barbados, Martinica, Santa Cruz, Santo Eustáquio e São Vicente. Emigração Desde o séc. XVI que notamos a presença de madeirenses nestas ilhas, seja como técnicos açucareiros, seja como agentes do tráfico negreiro. Contudo, a sua presença torna-se mais evidente numa segunda fase, quando a emigração madeirense atingiu o seu auge, na déc. de 40 do séc. XIX, tendo, para isso, em muito contribuído a perseguição aos protestantes (1844-1846), a crise do comércio do vinho Madeira, principal sustento das populações, a partir de 1830, e a fome que alastrou a toda a Ilha, em 1847. Entre 1834 e 1872, saíram da Ilha mais de 30.000 madeirenses, com destino ao Brasil e às Antilhas. Só a ilha de Demerara recebeu, entre 1841 e 1889, cerca de 40.000, enquanto o Havai, entre 1878 e 1913, atraiu mais de 20.000, na primeira grande leva da emigração madeirense para este destino, sendo, na centúria oitocentista, o principal motivo a questão religiosa em torno do Rev. Robert Kalley, pastor protestante e distinto médico que se fixara na Madeira em 1838, com o intuito de encontrar cura para a tuberculose da sua mulher, e que se tornou no principal chefe do movimento anglicano, arrastando consigo as gentes de Santa Cruz e Machico. As hostilidades, originadas pelo clero tradicional do Funchal, levaram à sua saída forçada em 1846, acompanhado de perto de 3000 madeirenses: 945 em navios portugueses e 2054 em ingleses. A 23 de agosto, 200 embarcaram no navio William. Primeiro, dirigiram-se às Antilhas menores (Trindade, Antígua e Saint Kitts) e daqui alguns passaram a Illinois, na América do Norte. Esta situação ia ao encontro dos interesses britânicos, uma vez que a abolição da escravatura tornava imprescindível o recrutamento de mão-de-obra livre. A segunda fase desta diáspora, mais importante do que a primeira, surge a partir de 1847, como resultado da grave crise vitivinícola. Perdidas as esperanças de uma imediata recuperação do mercado do vinho, o colono ou lavrador deixou-se aliciar pelas propostas enganosas de trabalho e bem-estar nas colónias britânicas. Um facto interessante, nesta conjuntura de fuga à fome, é que o movimento se retrai na época das vindimas, entre agosto e outubro, isto é, no momento em que era maior a procura de mão-de-obra na Ilha. Na déc. de 50, irremediavelmente perdida esta única fonte geradora de trabalho, o madeirense só tinha uma saída: a emigração. As gentes do norte abandonaram as terras e os seus miseráveis casebres, dirigindo-se à cidade, onde esperavam uma oportunidade para o salto até às promissoras Antilhas. Em 1854, dá-se uma paragem no movimento, nomeadamente de clandestinos, mercê de uma melhoria das condições da Ilha, propiciada pela iniciativa dos governadores civis. O fim do tráfico negreiro obrigava à procura de novas soluções e esta era uma delas, certamente a mais eficaz. Na déc. de 70, o fenómeno emigratório ganha novo vigor. Para isso, contribuíram o acelerar da crise económica e o reforço das promessas aliciadoras. Também as doenças que atacaram a cultura da vinha (o oídio, em 1852, e a filoxera, em 1872) deitaram por terra a única esperança económica dos madeirenses. Desta vez, o rumo é diferente: as Kanaka Islands (Sandwich ou Havai). Entre 1841 e 1889, Demerara manteve uma posição dominante enquanto destino da emigração madeirense, tendo recebido 36.724 emigrantes. Tais números dão conta de dois momentos da emigração para Demerara, a déc. de 40 e as de 70 e 80, coincidindo o último com o aparecimento de um novo destino, o Havai. Uma relação dos navios saídos com os emigrantes, no período de 11 de maio de 1854 a 11 de janeiro de 1855, reforça, mais uma vez, a posição dominante de Demerara, registando-se 88 navios para Antígua e 376 para Demerara. Devemos aqui realçar a iniciativa de alguns proprietários e consignatários de navios, como Diogo Taylor e João de Freitas Martins, este último proprietário de três embarcações: Christina, Divina Providência e Funchal. Demerara é, com efeito, nas décs. de 40 e 50, o “Eldorado do madeirense”, disputando esta posição nas décs. de 70 e 80 com o então recém-descoberto paraíso havaiano. Assim, só em 1841 terão partido mais de 4000 madeirenses para Demerara, chegando a comunidade portuguesa a representar mais de 30.000 residentes, maioritariamente da Madeira. A emigração clandestina é um fator determinante neste movimento para as Américas, dominadas pelas Antilhas e pelo Brasil, que assumem uma posição ímpar. Deste modo, torna-se difícil abalizar o valor numérico desta sangria na população da Ilha. Os números apontados pela imprensa madeirense da época são assaz elucidativos. Assim, de setembro de 1834 a junho de 1852, apontava-se que as saídas clandestinas correspondiam ao dobro das legais, que representavam 18.346 emigrantes. Depois, em 1845-1846, são referenciados 6000 clandestinos. Ainda na Ponta do Sol, no período compreendido entre abril de 1841 e outubro de 1852, outros 500. Note-se que, entre 1851 e 1853, regista-se apenas a saída de 1593 madeirenses com passaporte, quando os dados apontam a chegada de 2299 a Demerara, 281 a Antígua e 16 com a designação Índias Ocidentais, o que prova a importância da emigração clandestina. Para o período de 1843 a 1866, é possível acompanhar os destinos destes migrantes. Temos, portanto: [table id=73 /] Noutro registo de informação de 1846 a 1847, época de forte emigração madeirense, os destinos são parecidos. [table id=74 /] Mais uma vez, Demerara mantém-se como o principal destino desta emigração legal e clandestina. Em outubro de 1846, dos 16.297 emigrados, 5548 (54%) viajaram sem passaporte. No mesmo ano, aportaram em Demerara três embarcações com 547 passageiros clandestinos: a embarcação inglesa Palmira conduziu 160, enquanto o brigue português Visconde de Bruges, que saíra do Funchal com 25 passageiros, desembarcou 410 e outro bergantim português, Duas Anas, 171, quando, no Funchal, nele haviam embarcado apenas 71 com passaporte. Esta última embarcação, sete anos mais tarde, rumou ao mesmo destino, levando a bordo 173 passageiros clandestinos. Tais números são suficientemente elucidativos para demarcar a importância que assumiu na Madeira a emigração clandestina, ao mesmo tempo que demonstram a ineficácia da intervenção das autoridades locais no seu controlo. A disponibilidade de passaportes entre 1872 e 1915 permite acompanhar o movimento para estas ilhas, de forma legal, e, ao mesmo tempo, documentar a sua incidência geográfica. Apenas encontramos dados para as ilhas de Demerara, Antígua, Barbados, Trindade, Granada e São Vicente, sendo a maior incidência em Demerara, com 3732 pedidos de emigração. Pelo contrário, a ilha de Trindade regista apenas 539. A maior incidência registou-se no último quartel do séc. XIX, com 3312 pedidos. Por alvará de 4 de julho de 1758, fica estabelecida a obrigatoriedade do uso do passaporte, como forma de coibir a saída anómala de gentes da Ilha. Todavia, estavam longe os tempos da grande emigração e de afirmação desta forma de êxodo. Com o alvorecer da emigração para as colónias britânicas, o Governo Civil reclama esta medida moderadora do movimento emigratório. Em 1841, o governador civil chama a atenção ao oficial de visitas do porto para que não permitisse a saída de qualquer embarcação para Demerara, sem antes verificar se os seus passageiros eram portadores do passaporte e da licença respetiva da freguesia que os isentava de qualquer serviço ou encargo. Contudo, só em outubro de 1845 surge o primeiro caso, com o aprisionamento de 31 indivíduos no Porto Moniz, quando estes se preparavam para embarcar no iate Glória de Portugal, com destino a Demerara. Perante esta situação, o governador civil mandou publicar um edital sobre a emigração clandestina, alertando os intervenientes e cúmplices para as penas em que incorriam, de acordo com a portaria de 19 de agosto de 1842. Pela lei de 25 de maio de 1825, o capitão do navio incorria na pena de 400.000 réis, enquanto os passageiros, de acordo com a lei de 9 de janeiro de 1792, sujeitavam-se a 100.000 réis de multa. Estas medidas não alteraram em nada os planos da emigração clandestina, apenas aumentaram o risco dos seus intervenientes. Um exemplo disso é testemunhado em janeiro de 1846, quando o oficial do registo da Alfândega encontrou, a bordo do bergantim Claudine, com destino a Demerara, cinco passageiros sem passaporte. Passados dois meses, também o administrador do concelho do Funchal surpreendeu, nos Piornais, 88 pessoas que pretendiam embarcar clandestinamente para a barca inglesa Newilla. Até 1866, são frequentes as referências à intervenção de embarcações de cabotagem no apoio a este tráfico clandestino. A costa do Caniço, à Ponta do Pargo, oferecia enseadas adequadas a tal tipo de abordagem. O contacto com as embarcações de saída fazia-se, habitualmente, a partir do Caniço, Praia Formosa, Paul do Mar e Ponta do Pargo. Na última localidade, foram apresadas, por diversas vezes, embarcações saídas do Funchal com destino a Demerara. Destas, destaca-se, em 1847, o bergantim português Mariana, que, após 15 dias de saída do Funchal, ainda se encontrava na Ponta do Pargo, com o pretexto de fazer aguada. Numa inspeção a bordo, foram encontrados 187 passageiros, dos quais apenas 34 apresentavam passaporte. As Desertas surgem também como local de apoio a este tráfico clandestino. Aí foram encontrados, por diversas vezes, barcos costeiros a aguardar a passagem dos navios para Demerara. Entre fevereiro de 1845 e abril de 1847, foram aí apresadas duas embarcações que conduziam clandestinos do Caniço para a escuna portuguesa Eugénia. O recurso às Desertas e à Ponta do Pargo como locais de receção de clandestinos foi resultado da acentuada vigilância estabelecida para o porto do Funchal e para as áreas circunvizinhas. No início, este serviço de recrutamento de clandestinos para embarque era realizado no Funchal, sendo os emigrantes reunidos num armazém, à R. do Sabão, e, depois, embarcados, pela noite, para bordo das embarcações, porém, a apertada vigilância da Alfândega e a administração do concelho condicionaram a sua dispersão pela costa sul da Ilha. A intervenção das autoridades desdobrava-se entre um apertado controlo às embarcações que saíam do porto do Funchal e o estabelecimento de um sistema de vigilância de toda a costa e ilhas Desertas. Primeiro, usou-se o barco do contrato do tabaco, depois, estabeleceu-se um serviço de barcos para rondar a costa nas datas próximas da saída de qualquer embarcação. Por outro lado, o administrador do concelho tinha ao seu dispor 12 baionetas para a ronda noturna do litoral da cidade e, em toda a costa da Ilha, contava com o apoio dos cabos da polícia e artilheiros. Em julho de 1846, a saída dum bergantim elucida-nos sobre a forma como era ativado este plano de vigilância. O administrador do concelho montava, por seis dias, um serviço de vigilância em toda a costa, contando com o apoio dos regedores, cabos da polícia e de duas embarcações de ronda. A cabal intervenção das autoridades dependia do apoio de uma embarcação de guerra, daí a solicitação, em 1847, de uma escuna de guerra, o que veio a suceder com o envio do brigue de guerra Douro. Porém, a falta de dinheiro levou à sua substituição por uma escuna, retomando, em 1853, o anterior tipo de embarcações. A permanência e a insistência da prática clandestina da emigração atestam a pouca eficácia das medidas proibitivas ou de vigilância e a grande determinação do madeirense, bem como o empenho dos engajadores e seus acólitos. Deste modo, a quebra acentuada do movimento, a partir de 1863, deverá ser apontada não como uma consequência da intervenção repressiva, mas sim como resultado da diminuição da procura de mão-de-obra nos tradicionais destinos. Daí que, em 1885, estas medidas se tornem necessárias, uma vez que a emigração clandestina começa a fazer-se notar. Fator determinante no surto da emigração clandestina foi a ação destes engajadores, os principais sustentáculos do movimento. Desde o séc. XVIII que estes atuam na Ilha, pelo que, em 1779, o governador intervém junto do corregedor do Funchal, no sentido de se estabelecer medidas punitivas, sendo preso Álvaro de Ornelas Sisneiro, um desses engajadores. Todavia, só a partir da déc. de 30 do século seguinte, a ação destes agentes se torna preocupante, uma vez que atacam em todas as frentes, com particular incidência na vertente norte. Para dissimular a sua real intervenção, surgem como adelos ou compradores de vinho. Por meio de cartazes afixados na porta das igrejas, e com a conivência de algumas figuras importantes dos sítios, conseguem aliciar muitos lavradores com a promessa de enriquecimento no Brasil, Antilhas ou Havai. O transporte era, muitas vezes, gratuito e o ilhéu deveria desembolsar apenas 5000 réis para os custos do passaporte, quando, na realidade, a lei previa 4000 réis. Nas décs. de 40 e 50, surgem documentados 15 aliciadores no Funchal, Caniço, São Vicente, Ribeira da Janela, Arco de São Jorge e Ribeira Brava. Para coibir a sua ação, o Governo Civil adotara medidas repressivas, como a prisão e o julgamento, podendo a pena ir até quatro meses de cadeia. Em 1846, por exemplo, foi preso em São Vicente Manuel José Moniz, que aliciava emigrantes para Demerara. Nesta freguesia, sabemos que atuavam outros, como João Teixeira, Jorge Oliveira e Perpétua de Jesus. A ação dos aliciadores assumia, por vezes, situações rocambolescas: em julho de 1851, João Pestana, sapateiro, movera um auto contra Francisco, o poeta, por induzir e aliciar a mulher e o filho a emigrarem para Demerara; em agosto do mesmo ano, João Vieira ignora a mulher e filhos e entrega-se às promessas aliciadoras de Demerara; em 1853, uma mãe abandona duas crianças em São Jorge, enquanto uma rapariga de Boaventura foge para o Funchal, aliciada por Joaquim A. dos Reis. A política de emigração das autoridades locais define-se por duas formas de intervenção: o combate à emigração clandestina e a ação perniciosa dos engajadores, com medidas severas aplicadas a todos os infratores. Neste caso, incluía-se, ainda, o reforço de vigilância da costa madeirense. Depois, foi a procura de soluções conjunturais, capazes de travar o movimento de fuga, com a fixação das gentes à terra ou com a tentativa de desvio para regiões do Reino e colónias em vias de colonização. Estas medidas não foram suficientes para frenar o movimento emigratório, tanto legal como clandestino. A situação da Ilha continuava a ser difícil, pelo que ninguém estava capacitado para resistir às propostas risonhas dos aliciadores. Deste modo, houve necessidade de declarar guerra a este movimento, procurando atacá-lo em todas as frentes. Desde 1758, ficara estabelecido que nenhum madeirense poderia sair da Ilha sem o respetivo passaporte. Havia uma tradição de medidas limitativas, raramente recordadas e postas em prática. A elas recorria a Câmara do Funchal, em 1847, respondendo a uma circular de José Silvestre Ribeiro. Aí se recorda que a melhor providência estava na vinculação do povo à terra que o viu nascer. Na verdade, foi com este governador que se estabeleceu uma política pragmática de combate à emigração. O seu aspeto mais interessante não é o apelo a medidas punitivas à saída dos emigrantes, como reclamava o município funchalense, mas sim a definição de medidas capazes de inibir as gentes a esta fuga desesperada. Era preciso encontrar soluções para debelar a fome e empregar o máximo de força de trabalho inativa. Neste último caso, tivemos o plano de obras de construção civil, de acordo com o novo plano viário. A ação psicológica foi outra das armas utilizadas pelo governador para convencer os madeirenses a permanecerem na Ilha. Através de manifestos, divulgados pelos administradores do concelho e afixados nas portas das igrejas ou impressos em folhas volantes nos jornais, o governador fazia uso dos seus dotes literários para apelar ao sentimento dos seus súbditos. Num manifesto distribuído em agosto de 1852 pelo Clamor Público, é bastante evidente este apelo heroico: “Moradores das freguesias rurais! Não abandonais a vossa terra! Não fujais desses campos que vossos pais regaram com o seu suor! Não deixeis o teto das vossas moradas, onde nasceram vossos filhos! Não volteis as costas à vossa risonha ilha! Lembrai-vos que perdeis Pátria! Trazei à lembrança que muitas vezes tendes recolhido abundantes frutos, em recompensa às Vossas fadigas! E que não convém ceder aos primeiros golpes de adversidade” (VIEIRA, 1993, 122). Foram poucos os que entenderam a oratória do governador, secundados pelos incessantes apelos dos administradores do concelho ou pelos vigários das freguesias no sermão dominical. Aliás, é o mesmo governador o primeiro a reconhecer a necessidade de medidas práticas e eficazes: “A fatal tendência dos madeirenses para a emigração deve ser atalhada, principalmente por meios indiretos. Se os proprietários se lembrarem um dia de ir residir entre os seus caseiros, para os guiarem com ilustrados conselhos [...] a infeliz sorte dos habitantes dos campos melhorará consideravelmente, e eles ganharão afeição à terra do seu país, repetindo indignados as pérfidas sugestões de impios e desalmados embusteiros que os arrasta hoje para países longínquos” (Ibid.). Uma das suas grandes preocupações era o combate à política de engajamento feito por estranhos. O combate aos engajadores é antigo, sendo documentado desde 1780, altura em que foi processado o comandante de um navio inglês que havia levado clandestinamente a bordo 12 portugueses. Esta política implacável contra os engajadores continuou na centúria seguinte. Assim, em 1842, face à saída massiva de madeirenses, ficou estabelecido, por portarias de 19 de agosto e de dezembro de 1842, avançar com medidas de vigilância e de penalização dos mestres de navios. Ainda de acordo com a lei de 20 de julho de 1855 e a portaria de 27 de julho de 1857, o comandante do navio era obrigado a prestar uma fiança de 400 réis e a apresentar, no prazo de seis meses, um documento das autoridades ou do cônsul do porto de destino, tendo igualmente de indicar o número de passageiros desembarcados. O passaporte era uma das exigências obrigatórias para todos os que desejassem sair, contudo, nem todos tinham direito a ele, sendo negado a menores e mancebos. Desde 25 de setembro de 1841, deveria juntar-se a este um documento de freguesia referindo que o possuidor estava livre de encargos e serviços. É dentro desta opção que deverá ser entendida a guerra, sem tréguas, das autoridades aos agentes da emigração e aos seus colaboradores, como sejam os mestres de navio e barqueiros. A saída de qualquer emigrante só podia ser feita com passaporte, concedido a todos de maior idade, ficando excluídos os de 13 a 25 anos, abrangidos pela lei do recrutamento militar, e os mancebos. Todavia, era grande a apetência para o recurso à emigração clandestina, sujeitando-se os interessados a inúmeras privações para alcançarem o barco que os levaria a promissoras terras do outro lado do Atlântico. A grande preocupação das autoridades centrava-se no combate à emigração clandestina, que se desenvolvia em duas frentes: por um lado, a condenação dos engajadores e seus colaboradores e, por outro, a definição de um plano de vigilância em toda a costa da Ilha, procurando evitar-se a fuga dos clandestinos. O grande movimento de combate ficou reservado para as décs. de 40 e 50 do séc. XIX. Os casos sucedem-se com frequência e a atenção das autoridades foi reforçada, no sentido de evitar a fuga generalizada das gentes. Durante estas duas décadas, sucederam-se medidas repressivas, bem como o aprisionamento dos intervenientes, fossem engajadores ou mestres de navios. O cerco aos navios que entravam e saíam no porto do Funchal era permanente. Assim, para além do constante patrulhamento do mar madeirense e do alerta passado a todas as freguesias costeiras, as embarcações sujeitavam-se a um controlo apertado. Deste modo, estava proibido o contacto com qualquer navio mercante ou de guerra fora do porto. Além disso, em 1879, recomendava-se às embarcações com emigrantes que saíssem do porto durante o dia. As embarcações inglesas, que tocavam, com assiduidade, o porto do Funchal com destino aos locais de emigração, eram os alvos preferenciais para a saída dos clandestinos. Por essa razão, em 1845, o governador civil deu conhecimento ao cônsul inglês de tais medidas proibitivas. Todavia, em 1848, foi apresado na Ponta do Pargo o bergantim inglês Rowlay, com 16 clandestinos a bordo, correndo, por isso, um litígio entre o Governo Civil e o Consulado. O primeiro, através da administração do concelho e com o apoio dos cabos de polícia, regedores e forças militares, estabelecera um plano de vigilância da costa e do mar circunvizinho, até às Desertas, a ser ativado no momento de embarque no Funchal, através de uma visita a bordo, sendo depois reforçado a partir do momento da saída da embarcação do porto. Entre março e julho de 1846, foram gastos 86$695 réis com os barcos de ronda da costa. Por todo o ano de 1847, os barcos mantiveram-se em ação, tendo-se afirmado como um freio à emigração clandestina, o que levou a solicitar-se a presença de nova embarcação, não se sabendo, porém, ao certo se veio a concretizar-se. Não obstante estas medidas, a emigração clandestina continuava a ser uma realidade, não se esgotando aqui as oportunidades para controlar a saída dos madeirenses. Assim, a uma propaganda aliciadora por parte dos agentes, nomeadamente os cônsules brasileiro e inglês, contrapunha-se outra de alguns jornais e das autoridades que desmitificavam as esperanças do Eldorado. O debate teve início em 1841, resultado de uma proclamação do administrador geral, Domingos Olavo Correia de Azevedo, que, a determinado passo, referia que “Demerara [...] é uma possessão inglesa, cujo clima por extremo ardente e doentio, terminara em pouco tempo, com a existência da maior parte dos emigrantes que para ali vão, e onde estes infelizes, reduzidos, durante sua vida, a uma situação desesperada, vendo-se em total desamparo, e privados de meios de regressarem, se sujeitam a uma sorte tão cruel como a que em outro tempo ali experimentavam escravos negros” (Ibid., 126). A isto juntaram-se cartas de alguns emigrantes nas quais estes testemunham a ilusão das promessas feitas, apontando as condições difíceis em que viviam os madeirenses em Demerara. A todos responde Diogo Taylor, cônsul inglês e agente da emigração para estes destinos. À campanha, associaram-se outros jornais, sendo de realçar o Echo da Revolução, o Correio da Madeira e o Progressista, onde este movimento emigratório surge sob o epíteto de “escravatura branca”. De acordo com o cônsul português em Demerara, os emigrantes “são tratados como verdadeiros escravos, e mesmo pior do que são os negros da costa d’África” (Ibid.). A resposta a esta carta não se fez esperar pela voz do cônsul inglês Diogo Taylor, que realça os mútuos benefícios da emigração. A isso adicionava-se o testemunho abonatório de um grupo de portugueses residentes na Guiana Inglesa. Em oposição a este último testemunho, há registos de cartas de Demerara a dar conta da dura realidade da vida dos emigrantes. No primeiro destino, muitos madeirenses sucumbiram com febre-amarela. Para combater esta campanha contra a emigração, os agentes do Brasil e as colónias inglesas travaram uma luta sem tréguas. Para além dos desmentidos constantes, não se cansavam de anunciar os seus projetos aliciantes, devendo-se incluir, neste caso, a propaganda feita n’O Imparcial e na Revista Semanal. A esta situação, acresciam ainda os folhetos de promoção da emigração. Na segunda metade do séc. XIX, a imprensa insular deu desmesurado realce às consequências do surto emigratório. Sob a forma de notícia ou de trabalho de opinião, esta é uma preocupação central nas suas colunas, que se situa a dois níveis distintos: de um lado, os anúncios e descrições ou testemunhos laudatórios dos principais destinos de emigração; do outro, a opinião e os testemunhos reprovativos, apelando a uma intervenção das autoridades. Adensa-se o número de colunas dos periódicos O Progressista (1852-1854) e A Ordem (1852-1856). Neste contexto, a problemática da emigração para as terras ocidentais, no período de 1833 a 1873, marcou acesa discussão pública nos jornais que então se publicavam, ou nas Cortes, pela voz dos madeirenses aí representados. O Progressista, porta-voz do Partido Regenerador, é o periódico que dedica maior atenção à problemática da emigração, considerando Demerara e o Brasil como matadouros. Para os seus editores, o importante era travar o movimento emigratório, pelo que são frequentes os trabalhos de opinião, sob pseudónimo, a apelar a uma intervenção eficaz das autoridades locais, usando como ponto de referência a intervenção de 1847. Na déc. de 50, testemunhos de vária índole atestam a ineficácia das autoridades locais em coibir essa prática de emigração clandestina, acusando quer o administrador do concelho, quer o juiz eleito da Ribeira Brava, por não corresponderem ao estipulado nas leis de 1839, 1842, 1843 e 1849. O julgamento de 29 de fevereiro de 1852 de alguns aliciadores e barqueiros, comprometidos com a emigração clandestina, é motivo de regozijo no jornal. O ano de 1854 terá sido terrível para os madeirenses, permanentemente ameaçados pelo espectro da fome, pelo que a emigração, de acordo com o mesmo periódico, não resulta de ambição, mas da miséria dos colonos e da ineficácia do Governo. Em 1855, por iniciativa de três madeirenses, a embarcação Charles Keen conduziu 300 colonos a Demerara. Entre 1841 e 1846, O Defensor faz eco da intervenção do administrador geral do Funchal, Domingos Olavo Correia Azevedo. A reação dos principais interessados neste movimento promotor da emigração não se faz esperar. Assim, intervém Diogo Taylor, agente de emigração para a Guiana Inglesa. O primeiro refere, a propósito, que “Parece que a cidade do Funchal se converteu de repente numa grande feira de escravos brancos, destinados a irem perecer no clima mais infecto dos domínios britânicos – Demerara” (Ibid., 129), alertando mais adiante que “A emigração para Demerara é uma infame lotaria cujos bilhetes contendo raríssimas sortes em preto são comprados com as vidas dos nossos concidadãos” (Ibid.). Um dos aspetos que podemos assinalar com a emigração para Demerara, certamente o principal destino nesta época, é a questão do retorno, com forte impacto na sociedade local. O madeirense retornado deste destino passava a ficar conhecido como “o demerarista”, porque emigrante em visita ou regressado de Demerara. Assim, em 1853-1854, Isabella de França registava alguns casos de sucesso nessa vaga migratória. Numa das suas visitas à freguesia do Monte, descreve, a certa altura, ter visto “uma bela casa construída por um vilão que havia emigrado para Demerara e voltou rico, como tantos: deixam a terra natal sem outra coisa mais que uma camisa e calças, e carapuça na cabeça, e descalços, e regressam com seu colete de cetim e corrente de ouro, chapéu alto e botas de verniz” (FRANÇA, 1970, 9). Também o médico inglês Dr. Dennis Embleton, que visitou e testemunhou a Madeira entre 1880 e 1881, afirma que “Many country people have been abroad, made money, and returning, have bought land and settled” (EMBLETON, 1882, 31). Por fim, registe-se que os madeirenses levaram para estas ilhas muitas das suas tradições e hábitos alimentares. O facto de a Madeira exportar cebolas, por exemplo, deve-se ao facto de estas serem solicitadas pelos madeirenses para a sua dieta alimentar, que, segundo os registos de alguns observadores ingleses, se baseava em semilhas e cebola. Em 1843 e 1845, sabemos da chegada a Demerara de 162 caixas de batata comum e de 1000 arrobas de cebola, contando-se já 100 milheiros em 1851. Esta situação persiste em 1904 e 1910, com novo envio de cebola para Barbados. Não podemos igualmente esquecer as relações que se estabeleceram em torno da cana-de-açúcar. Em 1855, a Madeira recebeu, de Antígua, 294 barris de açúcar. Demerara, em finais do séc. XIX, e Barbados, de 1902 a 1905, abastecem com melaço o engenho do Hinton, no Funchal, acompanhando as diversas variedades de cana, quando se pretende restabelecer a cultura na Ilha. Em 1847, temos a variedade Bourbon de Caiena e, em 1903, outras variedades de cana (B208 e B147) de Barbados e a cristalina do Haiti.   Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

História Económica e Social Madeira Global

alfenim

Tradicional em alguns países, a confeção de alfenim está documentada em Portugal desde os sécs. XV e XVI e sabe-se da sua presença em festas e romarias populares. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira. Palavras-chave: açúcar; Brasil; doçaria; festas do Divino Espírito Santo; tradições populares.   “Alfenim” é um nome que provém do termo árabe “fanid”, com origem no persa “panid”, com o significado de branco. No latim, aparece como “alphanicum”, “alfenid”, “alpenid” ou “alfanix”; no italiano, como “penito”; no espanhol, como “alfeñique” (sendo, no México, “alfenique”); em francês, como “penides”, “épénide”, “penidon”, “penoin”; popularmente, é conhecido como “peningue”. O primeiro registo do termo na Madeira é de 1469, com a grafia “alfinij”. No séc. XVI, aparece referido em Gil Vicente e em Jorge Ferreira de Vasconcelos. Naidea Nunes refere que, na Madeira, “alfenim” aparece na documentação com as designações: “alfinij” (1469), “alffiny” (1488), “alfenjm” (1490, 1517), “alfenj” (1498), “alfeny” (1517), “alfynjm” (1523), “alfenij” (1579), e conclui que é “um termo muito antigo, do árabe fânid, que em catalão teria a forma affenic, adquirindo, em castelhano, a forma alfenique, que surge nas Canárias com a grafia alfinique (1540)” (NUNES, 2003, 159). O Nordeste do Brasil, uma das mais importantes regiões açucareiras do país, foi durante muito tempo terra de alfenim, tendo depois perdido a importância nesse domínio. Segundo Naidea Nunes, “no Brasil, o termo alfenim apenas existe no Nordeste, onde foi conservado, provavelmente por se tratar da primeira região açucareira brasileira. Nos restantes estados do Brasil, como podemos ver, apenas encontrámos as denominações rapadura mole, puxa e puxa-puxa ou rapadura puxa-puxa, para denominar o mesmo conceito” (NUNES, 2010, 56). Todavia, a arte do alfenim espalhou-se por todo o Brasil e, nos começos do séc. XXI, persiste nos estados da Paraíba, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de Minas Gerais, do Ceará, de Pernambuco, de Goiás e do Rio Grande do Norte. Esta tradição encontra-se em Pirenópolis, associada às festas do Divino, e na cidade de Montanhas, no estado do Rio Grande do Norte, ligada às festas do dia de Reis, bem como noutras localidades, como a cidade de Goiás, onde as doceiras realizam pequenas esculturas em forma de flores, pássaros, peixes e chapéus. Gilberto Freyre, em Açúcar. Uma Sociologia do Doce…, documenta a presença do alfenim no Nordeste do Brasil como um vestígio da doçaria portuguesa de influência árabe. À data da primeira publicação do livro, em 1932, a tradição do fabrico de grande parte desta doçaria estava em vias de desaparecer. No entanto, nos começos do séc. XXI, por força das tradições em torno das festas do Divino, o costume de fabrico do alfenim persiste em muitas localidades brasileiras. Na Sicília, conserva-se a tradição dos doces de alfenim e de maçapão, principalmente no dia de Todos os Santos, em que as crianças recebem, como alegado presente dos antepassados, várias figuras de açúcar. A tradição do alfenim encontra-se também no México, com a elaboração de caveiras para o Dia dos Mortos, a 1 de novembro, em que se combinam elementos indígenas com costumes europeus. Os nauatles faziam figuras, normalmente caveiras, como oferenda aos seus mortos. Com a chegada dos Espanhóis, surgiram as figuras de caveiras em alfenim. A esta figuração, as freiras juntaram as cenas relacionadas com a época natalícia. Assim, o alfenim assume várias formas: caveiras, ataúdes, anjos, cruzes, miniaturas de animais ou de fruta, pratos com comida, canastras com flores, etc. Esta tradição persiste no México, tanto na Cidade do México como nos estados de Puebla e Oaxaca. Além disso, na cidade de Toluca, v.g., celebra-se, a 2 de novembro, a festa do alfenim. A produção de alfenim está também documentada na Argentina, na Bolívia, na Colômbia, no Peru e no Equador. Em Portugal, a confeção de alfenim está documentada desde os sécs. XV e XVI e sabemos da sua presença em festas e romarias populares. Ganhou importância no quotidiano da sociedade portuguesa a partir da divulgação do açúcar, desde meados do séc. XV. A Madeira, como espaço de produção de açúcar, especializou-se na arte da doçaria, domínio em que transpôs o seu perímetro, chegando aos Açores, às Canárias e ao Brasil. A partir do séc. XV, tanto em Portugal como em importantes cidades europeias, o consumo e a divulgação do açúcar passarão pela confeção de manjares nobres, sob a forma de doces – como o alfenim, a alféola (um doce semelhante ao caramelo), conservas e cascas de fruta cristalizada. Na Madeira, ficou célebre a doçaria conventual que fez as delícias de Ingleses, de Franceses e de flamengos. A par disso, o fabrico das figuras de alfenim fez de muitas mulheres madeirenses autênticas escultoras da doçaria. O alfenim fazia parte da mesa da Coroa e das casas nobres, e era, no séc. XVI, servido à nobreza em salvas de prata por ocasião das festas do Divino em todo o espaço português, tradição que teve continuidade na Madeira, nos Açores, e que chegou ao Brasil. Das mesas do reino, o alfenim passou às das ilhas e delas ao Brasil, acompanhando o processo de expansão da cultura da cana sacarina e do fabrico do açúcar. No Atlântico, o alfenim foi primeiramente produzido na Madeira, afirmando-se como o doce mais nobre, servido na casa das famílias importantes, e usado como dádiva nas festas do Divino. A oferta de doces está relacionada com uma atitude de gratidão ou mesmo de empatia. É uma tradição muçulmana que os Portugueses assimilaram. Vasco da Gama ofereceu alfenim madeirense ao samorim de Calecute. As freiras do Convento de S.ta Clara presenteavam os visitantes com alfenim e com outros doces. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido, como já ficou dito, um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes doces. Já em 1455 Cadamosto menciona a feitura de “muitos doces brancos perfeitíssimos”, aludindo certamente ao alfenim (ARAGÃO, 1981, 37). A primeira referência documental a esta arte da doçaria data de 1469, quando se diz que esta atividade era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava “molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam”. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou efetivamente muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Esta era fundamentalmente uma indústria feminina e de fabrico caseiro, mas sabe-se que havia homens que exerciam o ofício de doceiro ou confeiteiro, pois a sua atividade estava regulamentada nos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa. A atividade estava vedada a estrangeiros e mestres de açúcar – apenas os “vizinhos e naturaes da ilha” podiam fazer conservas, alfenim e confeitos. De acordo com um documento de 9 de março de 1490, “em toda essa ylha nom posa fazer nemguem conservas, alfenim, comfeytos nem outra nenhüa fruyta daçucaar soomente os vizinhos e naturais da dyta ylha” (MELO, 1973, 198-199, 241). Em 1494-1495, a Casa Real portuguesa recebeu 71 arrobas de confeitos; entre estes, havia 29 arráteis de alfenim. A crónica de Damião de Góis apresenta D. Manuel como um grande apreciador da doçaria madeirense: “Nas vesporas do Natal consoava publicamente em sala, com todo o Estado de porteiros de maçareis darmas trombetas, atabales, charamellas, e em quanto consoava davam de consoar a todolos senhores, fidalgos e cavalleiros, e escudeiros que estavam na salla, na qual se ajuntavam naquelle dia todos os que andavam na Corte por saberem o gosto que el-Rei levava em fazer este banquete, que todo era de frutas verdes e dasucar, e de conservas, que lhe traziam da ilha da madeira, depois desta consoada” (GÓIS, 1911, 92). Desde o séc. XVI, no Japão, aparecem referências ao fabrico de alfenim (aruheitou) e outras doçarias, como confeitos (komfeiton). A primeira referência ao alfenim é de 1569; no decurso das centúrias seguintes, há notícias do seu consumo, tendo sido sempre, ao longo dos séculos, um dos doces nanbam, de oferta em momentos especiais. Tenha-se em conta que ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama levou para oferecer ao samorim de Calecute. Pela rota da Índia deverá ter chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, onde persiste nos começos do séc. XXI. Os estudos de Miyo Arao reforçam a ideia da influência portuguesa na confeitaria de Tóquio e estabelecem uma ponte com a Madeira, tendo em conta que muitos dos doces produzidos na Madeira aparecem na culinária do Japão. Além disso, não se pode esquecer que, nos sécs. XVI e XVII, a Madeira era um dos principais centros produtores de alfenim e daí deverá ter partido a técnica de fabrico que, depois, se vulgarizaria noutros espaços, como o Japão. A fama alcançada pela arte da doçaria madeirense está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. O facto mais memorável é referido pelos cronistas. Jerónimo Dias Leite diz que “leuou muitos mimos e brincos da ilha, de conseruas, e ho sacro palacio todo feito de asucar e hos Cardeaes hião todos feitos de alfenij […] ho que foi tudo metido em caixas embrulhadas com algodão, que forão mui seguros e sem quebrar” (LEITE, 1947, 37). Escreve Gaspar Frutuoso: “E tão generoso foi, que, tendo seu filho Manuel de Noronha, Bispo que foi de Lamego, em Roma, que servia de secretário do Papa Leão, despachou da ilha um criado seu, por nome João de Leiria, homem muito honrado, prudente, e gentil-homem, o qual mandou a Roma visitar o Papa com um grande serviço, que, além de um cavalo pérsio, que lhe mandou de muito preço, que levava de cabresto um mourisco muito gentil, homem e alto de corpo, vestido em uma marlota de girões de seda; levou mais muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio, todo feito de açúcar, e os cardeais iam todos feitos de alfenim, dourados a partes, que lhe davam muita graça, e feitos de estatura de um homem, o que foi tudo metido  em caixas emborulhados [sic] com algodão, com que foram mui seguros e sem quebrar até, dentro, a Roma, coisa que, por ser a primeira desta sorte que se viu em Roma, estimou-a muito o Papa, e cada uma peça por si foi vista pelos cardeais e senhores de Roma, sendo presente o Papa, que louvava muito o artifício, por ser feito de açúcar, e muito mais louvava o Capitão que lhe tal mandava, largando muitas palavras perante todos em louvor deste ilustre Capitão” (FRUTUOSO, 1979, 248-250). Mas sobre esta embaixada, segundo Luciana Stegagno Picchio, não consta qualquer documento na Cúria Romana, ao contrário do que aconteceu com outras. Terá sido mera invenção dos cronistas, para exaltar a figura do capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara? Atente-se na situação, a ter acontecido. Seriam 72 os cardeais feitos em alfenim e em tamanho natural, o que poderia significar mais de 5000 kg de açúcar. Por outro lado, deve ter-se em conta o próprio processo de fabrico das figuras e a dificuldade em transportá-las intactas até Roma. Será que podemos afirmar que a dita embaixada madeirense nunca existiu e que os testemunhos de Jerónimo Dias Leite e de Gaspar Frutuoso são pura invenção? Em 1550, D. Isabel Mendonça, mulher do referido capitão-donatário, tinha a seu cargo o abastecimento da Casa Real, tendo enviado para Lisboa, em 1551, 105 arrobas de conserva, 24 arrobas de fruta seca e 8 arrobas de alfenim. Em 1567, Pompeo Arditi dá conta da “conserva de açúcar” que se fazia no Funchal, “de ótima qualidade e muita abundância” (ARAGÃO, 1981, 130). Em finais do séc. XVI, Gaspar Frutuoso dava conta de “ricos e esquisitos manjares de toda sorte, como os sabem muito bem fazer as delicadas mulheres da ilha da Madeira, que (além de serem comumente bem assombradas, muito formosas, discretas e virtuosas) são estremadas na perfeição deles e em todolas invenções de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores, mas também em açúcar com delicadas frutas” (FRUTUOSO, 1979, 264). Esta tradição perpetuou-se na Ilha para além dos tempos áureos da produção açucareira local (segundo Hans Sloane, em 1687, o madeirense produzia o “açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil” (ARAGÃO, 1981, 158)). Outro testemunho a atestar a abundância deste doce na Madeira é o facto de, a 29 de julho de 1593, o chamado fogo do céu, que queimou parte da cidade do Funchal, dando origem às ruas da Queimada de Cima e Queimada de Baixo, ter queimado alfenim, que havia sido feito com 5000 pães de açúcar. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira (embora ainda haja quem se lembre das pombas do Divino, por ocasião das festas do Espírito Santo). No entanto, em algumas ilhas dos Açores e em alguns estados do Brasil a tradição do alfenim continua viva, alimentada pela persistência das festas em honra do Divino Espírito Santo.    Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

Biologia Terrestre História Económica e Social

culto mariano

A Virgem Maria, a mãe de Jesus, é venerada desde os tempos da descoberta e povoamento da Madeira sob os mais variados títulos, a maioria dos quais constituíam devoções enraizadas nas terras de origem dos primeiros que cá chegaram. Dessa devoção ancestral falam as respetivas capelas, ermidas, e depois as igrejas, que se vão erguendo ao longo de quase seis séculos. Umas convertem-se em sedes paroquiais, ao serviço das respetivas comunidades, na medida em que se vão criando para responder às necessidades sempre crescentes da população, que, por sua vez, também se vai multiplicando; outras perdem-se no tempo, entrando em ruína, e ainda outras são destruídas propositadamente para dar lugar a templos com maior capacidade de acolhimento. Os titulares das ermidas também dão nome aos padroeiros locais e, em muitas circunstâncias, ao sítio e à freguesia e paróquia. No caso particular da Virgem Maria, ela é invocada em todo o território madeirense, recebendo as honras de padroeira em muitas comunidades; e onde ainda permanece a ermida de determinada invocação, embora não seja a padroeira da comunidade paroquial, também ali é festejada. Onde a capela caiu em ruínas, as celebrações passaram a ser realizadas nas sedes paroquiais ou passaram ao esquecimento. Títulos da Virgem Maria celebrados na Madeira Estes são os títulos com que os madeirenses têm vindo a prestar culto à mãe de Jesus: N. S.ª Auxiliadora, da Ajuda, da Alegria, da Apresentação, da Assunção, da Boa Esperança, da Boa Hora, da Boa Morte, da Boa Nova, da Boa Viagem, da Cadeira, da Conceição, da Consolação, da Encarnação, da Estrela, da Fé, da Glória, da Graça, da Luz, da Natividade, da Nazaré, da Paz, da Pena, da Penha, da Piedade, da Quietação, da Serra, da Saúde, da Vida, da Visitação, da Vitória, das Angústias, das Brotas, das Dores, das Maravilhas, das Mercês, da Salvação, das Neves, das Preces, das Virtudes, das Vitórias, de Belém, de Jesus, de Jesus Cristo, de Fátima, do Amparo, do Bom Caminho, do Bom Despacho, do Bom Sucesso, do Calhau, do Carmo, do Descanso, do Desterro, do Guadalupe, do Monserrate, do Livramento, do Loreto, do Monte, do Monte e Santana, do Parto, do Pilar, do Pópulo, do Rosário, do Socorro, do Sorriso, do Terço, do Vale, dos Anjos, dos Milagres, dos Prazeres, dos Remédios, dos Varadouros, Imaculado Coração de Maria, Mãe de Deus, Mãe dos Homens, Medianeira de Todas as Graças e Rainha do Mundo. Registamos 77 títulos. Uns relacionam-se diretamente com a pessoa da Virgem Maria, com factos reais da sua vida terrena ou do seu mistério como Mãe de Jesus, como são a Senhora da Natividade, da Graça, da Apresentação, da Encarnação, da Conceição, Mãe de Deus, Mãe dos Homens, da Assunção, Medianeira de Todas as Graças, Rainha do Mundo; outros dizem respeito a situações concretas das necessidades sentidas pela pessoa humana, tais como Senhora dos Remédios, da Boa Hora, da Boa Morte, da Boa Nova, da Boa Viagem, do Bom Despacho, do Descanso, do Desterro, do Bom Caminho, do Parto, da Luz, da Saúde, do Livramento, do Bom Sucesso, da Vitória, das Vitórias; e ainda há os que relembram o lugar onde a mãe de Jesus se tenha manifestado, como a Senhora do Monte, do Guadalupe, de Fátima, etc. De todos os títulos com que os madeirenses têm vindo a prestar culto à Virgem Maria, estes são declarados padroeiros das seguintes comunidades paroquiais: Imaculado Coração de Maria: paróquias do Imaculado Coração de Maria no Funchal e Fajã do Penedo na Boaventura; N. S.ª da Ajuda: paróquia da Serra de Água; N. S.ª da Assunção: Sé Catedral do Funchal; N. S.ª da Conceição: paróquias de Machico, Porto Moniz e Conceição na Ponta do Sol; N. S.ª da Encarnação: paróquias da Ribeira da Janela e da Encarnação no Estreito de Câmara de Lobos; também é padroeira do Seminário da Encarnação e do extinto Convento da Encarnação; N. S.ª da Graça: paróquias do Estreito da Calheta, do Estreito de Câmara de Lobos e da Achada em Gaula; N. S.ª da Luz: paróquias da Ponta do Sol e de Gaula; N. S.ª da Natividade: paróquia do Faial; N. S.ª da Nazaré: paróquia da Nazaré; N. S.ª da Paz: paróquias das Eiras no Caniço e das Feiteiras em São Vicente; N. S.ª da Piedade: paróquias dos Canhas e de N. S.ª da Piedade no Porto Santo; N. S.ª das Dores: paróquia da Assomada no Caniço; N. S.ª da Saúde: paróquia dos Lameiros em São Vicente e João Ferino no Santo da Serra; N. S.ª da Visitação: paróquia da Visitação em Santo António; N. S.ª da Vitória: paróquia da Vitória-Santa Rita em São Martinho; N. S.ª Medianeira de todas as graças: paróquia da Graça em Santo António; N. S.ª das Neves: paróquia dos Prazeres; N. S.ª das Preces: paróquia das Preces na Ribeira de Machico; N. S.ª de Fátima: paróquias de N. S.ª de Fátima no Funchal, do Carvalhal nos Canhas e da Lombada em Santa Cruz; também é padroeira do Seminário Maior do Funchal; N. S.ª do Amparo: paróquias do Amparo na Ponta do Pargo e da Ribeira Seca em Machico; N. S.ª do Bom Caminho: paróquia do Bom Caminho no Santo da Serra; N. S.ª do Bom Sucesso: paróquias do Bom Sucesso, altos de Santa Maria Maior e Garachico no Estreito de Câmara de Lobos; N. S.ª do Carmo: paróquias do Carmo em Câmara de Lobos e do Rochão na Camacha; também é padroeira da Ordem Carmelita, Igreja do Carmo, Funchal; N. S.ª de Guadalupe: paróquia do Porto da Cruz; N. S.ª do Livramento: paróquias do Curral das Freiras e do Livramento no Funchal e Achadas da Cruz; N. S.ª do Loreto: paróquia do Loreto no Arco da Calheta; N. S.ª do Monte: padroeira principal da diocese e da paróquia de N. S.ª do Monte no Funchal; N. S.ª do Rosário: paróquias do Rosário em São Vicente, da Ilha em São Jorge e do Jardim do Mar; N. S.ª do Socorro: paróquia de S.ta Maria Maior, ou do Socorro; N. S.ª dos Remédios: paróquia da Quinta Grande; N. S.ª Rainha do Mundo: paróquia dos Romeiros no Monte. O culto mariano na Madeira engloba 31 títulos da Virgem Maria como padroeira de 50 paróquias, celebrados com toda a solenidade, alguns no mesmo dia litúrgico e a maioria no transcurso do verão. Além disso, ainda há outras celebrações marianas em que a Virgem Maria não tem a função de padroeira, mas cuja devoção lhe é tributada como se o fosse de facto, recebendo a visita de muitos devotos, tal como nas festas da Piedade no Caniçal, do Livramento no Caniço, Ponta do Sol e Estreito da Calheta, da Ajuda em São Martinho, da Apresentação na Ribeira Brava, da Boa Esperança e das Neves em São Gonçalo, da Boa Hora em Santa Cecília, do Bom Despacho no Campanário, da Boa Viagem no Amparo, da Graça no Porto Santo, da Mãe de Deus na Assomada, da Boa Morte em São João e na Ponta do Pargo, do Bom Despacho no Campanário, da Graça no Porto Santo e Machico, da Senhora do Monte em Cristo-Rei, dos Remédios em Santa Cruz, da Assunção no Coração de Jesus, dos Bons Caminhos na Calheta, da Piedade no Convento da Caldeira, paróquia do Carmo, das Preces no Piquinho, de N. S.ª dos Anjos nos Canhas, etc. Registamos cerca de 195 padrões do culto mariano, entre as igrejas, capelas e ermidas erguidas ao longo de quase seis séculos em honra da Virgem Maria, seja padroeira ou simples titular, disseminadas pelo território da Madeira e Porto Santo. O mais expressivo é o título da Imaculada Conceição com 24, seguindo-se a Senhora da Piedade com 15, a Senhora das Dores e a Senhora do Rosário com 7 cada uma, a Senhora do Socorro com 6, a Senhora da Boa Marte, da Penha de França e de Fátima com 5 cada uma, a Senhora da Graça, das Preces, da Consolação, do Livramento com 4 cada uma, registando os restantes títulos, 3, 2 e 1, respetivamente, repartidos por 64 títulos atribuídos à Virgem Maria. Nesta contagem não esquecemos os títulos de N. S.ª da Apresentação como padroeira das Irmãs da Apresentação de Maria; de N. S.ª Auxiliadora como padroeira dos Salesianos; de N. S.ª das Vitórias como padroeira da Congregação das Irmãs Franciscanas de N. S.ª das Vitórias. Desenvolvemos o culto à Mãe de Jesus através dos títulos mais significativos e representativos, como a Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, o culto com maior número de capelas e igrejas, a Senhora do Monte, padroeira exclusiva da diocese, a Senhora do Parto, devoção única na Madeira, N. S.ª da Piedade e das Dores, herança do franciscanismo, como a da Conceição, a Senhora do Livramento, que responde ao sentimento de fraqueza e impotência ante as intempéries, o Imaculado Coração de Maria, que desponta e cresce singularmente na Madeira e N. S.ª de Fátima, como fenómeno religioso mais recente, mas não menos enraizado. Imaculada Conceição O culto a N. S.ª da Conceição na Madeira remonta às origens. É sabido como os reis portugueses sempre defenderam o dogma da Imaculada Conceição e a consideraram sua protetora, desde o nascimento da monarquia. Fé e devoção entranhada na vida dos portugueses, que foram por todo o mundo dilatando a fé e o império. Igreja Matriz de Machico. BF. A devoção e o culto à Imaculada Conceição são trazidos para a Madeira pelo mesmo descobridor e colonizador João Gonçalves Zarco, que manda construir a Igreja de N. S.ª da Conceição de Baixo, junto ao mar, para servir de fundamento à vila do Funchal e, posteriormente, a de Conceição de Cima, junto à sua residência, integrada no Convento de S.ta Clara. É ele também que manda apartar o lugar para a construção da ermida dedicada a N. S.ª da Conceição, também conhecida por “do Espirito Santo”, em Câmara de Lobos. Por sua parte, Tristão Vaz, o donatário da capitania de Machico, edifica a Capela de N. S.ª da Conceição em Machico e Francisco Moniz na terra a que legou o seu nome, Porto Moniz. Terão sido construídas 24 capelas em toda a diocese do Funchal desde a chegada de Zarco até aos nossos dias, três das quais são sedes paroquiais e dão origem ao respetivo padroado: a de Machico, a do Porto do Moniz e a da Conceição, na Ponta do Sol. Por conseguinte, a devoção à Imaculada Conceição é a mais universal das devoções das comunidades madeirenses; o dia litúrgico da sua festa é 8 de Dezembro. A igreja de N. S.ª da Conceição de Baixo é a primeira igreja mandada construir por Zarco, para ser princípio e fundamento da vila do Funchal, “à beira do mar, no cabo do vale do Funchal, ao longo da primeira ribeira deste prado, onde fazia o mar contínuo à corrente da ribeira uma abra de muitos calhaus e seixos miúdos, lavados da continuação das ondas dele que nela batiam” (SILVA e MENESES, 1965, II, 431). Embora vulgarmente conhecida por N. S.ª do Calhau, é dedicada a N. S.ª da Conceição, como indica o seu primeiro nome por que é conhecida: Conceição de Baixo em oposição à Conceição de Cima. O mesmo Zarco funda uma igreja de N. S.ª da Conceição, a que vulgarmente chamam N. S.ª de Cima, para a distinguir da Conceição de Baixo, e destina-a para sua sepultura e de seus descendentes. Com a fundação do Convento de S.ta Clara adjunto à capela da Conceição, vai caindo em desuso o primeiro nome da igreja e perdura o do convento que, passados anos, se estende às duas construções, ficando ambas com uma só denominação: Convento e Igreja de S.ta Clara. Da construção de Zarco nada resta; a capela sofreu várias modificações e na segunda metade do séc. XVII foi demolida. É em Machico que aportam os descobridores João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira no dia 1 de julho de 1419. Desembarcam no dia seguinte, improvisam um altar, e o sacerdote franciscano celebra uma eucaristia de ação de graças. Para efeitos de povoação e exploração agrícola, a Madeira é dividida em duas capitanias: a do Funchal e a de Machico. Aquela pertence a Zarco e esta a Tristão. Machico torna-se um dos primeiros lugares povoados, formando-se aí um núcleo de população que rapidamente se desenvolve. Tristão estabelece-se em Machico, com sua mulher e filhos, no mês de maio de 1425. São dados muitos terrenos de sesmaria a fidalgos e colonos vindos do continente, tornando-se numa povoação importante que chega a ombrear com o Funchal. Tristão Vaz e sua esposa Branca Teixeira erigem uma capela em honra da Imaculada Conceição logo no começo do povoamento e arroteamento de terras, onde, depois de melhorada e acrescentada, funciona a sede da paróquia, que é criada por meados do séc. XV, tendo D. Pedro Vaz, prior da Ordem de Cristo, enviado à Madeira Fr. João Garcia como vigário da paróquia de Machico, em 1450. A fundação da paróquia de Machico é coeva da primeira paróquia criada no Funchal. A sua jurisdição paroquial estende-se a toda a área da capitania, estabelecendo-se depois capelanias curadas, dependentes da igreja matriz, que, pouco a pouco, se vão libertando e tornando paróquias autónomas. A igreja de N. S.ª da Conceição de Machico não é certamente o primitivo templo em que se estabelece o centro da nova paróquia. De acordo com um manuscrito antigo, foi construída em 1499 e terá sofrido melhoramentos e restauros através dos tempos. O rei D. Manuel I ofereceu a imagem de N. S.ª da Conceição, o órgão de tubos, peças de ourivesaria e algumas pinturas. Uma certeza nos transmite a história: a devoção a N. S.ª da Conceição vem nas caravelas dos descobridores e enraíza no povo que se vai renovando através dos séculos. A paróquia do Porto Moniz nasce sob a proteção de N. S.ª da Conceição. É criada nos princípios do terceiro quartel do séc. XV e tem como sede a capela desta invocação mandada construir por Francisco Moniz, o Velho, um dos primeiros povoadores que possui terras de sesmaria e constitui um núcleo importante de moradores com a fazenda povoada que estabelece. Em volta da capela e da fazenda, a população vai-se adensando e forma-se em breve a nova paróquia, como aliás acontece geralmente por toda a ilha. Após ter sido fundada a Capela de N. S.ª da Conceição, esta localidade passa a ter o nome de N. S.ª da Conceição da Ponta do Tristão, pois assim é designada na carta régia de 12 de março de 1574. Mas na carta de 1 de março de 1577 já lhe é dado o nome de Porto do Moniz, que prevalece até aos nossos dias. Francisco Moniz ergue esta capela não longe do mar e dá o seu apelido ao porto, que fica próximo, o qual se estende às imediações e, mais tarde, aos terrenos circunvizinhos. Tendo ele falecido em 1533 ou 1535, segundo os historiadores, a capela é certamente fundada em ano anterior, embora se ignore a data exata. Ao longo do tempo, passa por algumas modificações e é demolida após a construção da nova igreja em sítio diferente. Aliás, esta mudança de local deve-se à necessidade de abrigar o templo dos corsários que por vezes infestavam estas paragens. A nova construção começa em 1660, mas só é terminada em 1688. É também dedicada a N. S.ª da Conceição, que continua assim a ser a padroeira do Porto Moniz até aos nossos dias. Posteriormente, em 1960, aquando da criação das 52 novas paróquias, é criada a paróquia da Conceição na Lombada da Ponta do Sol, tendo como padroeira a Imaculada Conceição e como sede provisória a capela da Lombada. Esta capela, construída por João Esmeraldo, é sagrada pelo bispo D. João Lobo no ano de 1508. É chamada Capela do Espírito Santo, mas também é conhecida por Capela da Conceição, donde se depreende a secular devoção dos habitantes a estas duas invocações. O templo que aqui existe em começos do séc. XXI é uma reedificação da primeira metade do séc. XVIII sendo, no dizer do historiador Pe. Fernando Augusto da Silva, “a capela mais vasta, mais elegante e mais rica de toda a diocese” (SILVA e MENESES, 1965, II, 267). A Imaculada Conceição e o Espírito Santo constituem, portanto, as duas grandes devoções da piedade popular das gentes da Lombada da Ponta do Sol. A festa da Imaculada Conceição é solenemente celebrada também no dia 8 de Dezembro. No Estreito da Calheta, é construída uma capela dedicada a N. S. da Conceição por André de França e Andrade, pelos anos de 1672. Na freguesia da Ribeira Brava, é construída uma ermida em honra da padroeira de Portugal, cujo fundador e ano de construção são desconhecidos. Em de São Roque do Funchal, um sítio ao tempo considerado já de densidade populacional assinalável, o cónego António Lopes de Andrade constrói uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição, no ano de 1700, na propriedade que possui em S. Roque, tendo a escritura de dotação a data de 8 de julho do mesmo ano. Aqui se celebra a Festa da Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro, com missa e procissão, precedida de novenário adequado. Próximo do ilhéu da Lapa, na costa marítima da freguesia do Campanário, fica um baixio conhecido por Baixa da Conceição, que deverá guardar relação com alguma ermida aí construída em tempos remotos. Imagem de Nossa Senhora da Conceição, Capela das Babosas. Arqui. Rui Carita. O comendador Luiz Bettencourt Miranda manda construir no largo das Babosas, no Monte, uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição, que também dá o nome ao lugar: largo da Conceição. É erigida no ano de 1906, especialmente destinada a comemorar o semicentenário da definição do dogma da Imaculada Conceição. Por isso fica sendo conhecida pelo nome de capela-monumento. A catástrofe que desaba sobre a Madeira no dia 20 de fevereiro de 2010 destrói por completo a capela, encontrando-se nos seus escombros a imagem da Imaculada Conceição totalmente intacta, facto que vem aprofundar a fé nos seus devotos. Estão em curso as necessárias diligências, sobretudo a adquisição dos meios financeiros necessários à reedificação da capela, segundo projeto já aprovado pelas autoridades competentes. Existe ainda no Monte uma capela em honra de N. S.ª da Conceição, fundada por Tristão da Cunha em ano que se ignora. O capitão José Sotero e Silva também manda edificar uma capela em honra de N. S.ª da Conceição no sítio da Igreja, na freguesia do Monte. Mesmo à beira-mar, na entrada para o cais de Câmara de Lobos, existe uma capela dedicada à Imaculada Conceição, também chamado do Espírito Santo. Presume-se ter sido levantada pelo povo, mas também se diz que foi o próprio Gonçalves Zarco a delimitar os terrenos. No decorrer dos tempos sofre várias reparações, sendo o culto entregue à classe piscatória. Na rua da Carreira, entre as ruas do Conde de Canavial e da Alegria, o capitão Luís Bettencourt de Albuquerque e Freitas funda uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição em 1770, junto da sua casa de moradia, tendo sido benzida a 7 de dezembro do mesmo ano. Rui Dias de Aguiar e sua mulher, Leonor de Ornelas de Andrade, fundam no ano 1662, em lugar que se ignora, uma capela da mesma invocação, que tem a escritura de dotação de 11 de dezembro do mesmo ano. Diogo Afonso de Aguiar funda uma capela na Tabua, em 1688, dedicada à Senhora da Conceição, construída muito próximo do litoral. É reconstruída em 1910 por José da Silva Novita, tendo sido benzida por D. Manuel Agostinho Barreto a 31 de julho do mesmo ano. Foi fundada pelo pároco José Marcelino de Freitas uma capela da mesma invocação no Arco da Calheta, construída com dinheiro dos fiéis no sítio das Amoreiras, sendo benzida a 27 de dezembro de 1911. Ainda na freguesia do Arco da Calheta, na margem e próximo da foz da ribeira da Serra de Água, Gonçalo Fernandes levantou uma capela consagrada à mesma Senhora da Conceição. Tendo Gonçalo Fernandes falecido a 15 de junho de 1539, e tendo sido nela sepultado, supõe-se que a capela deverá ter sido erguida na década de 30. Bartolomeu Telo Moniz de Meneses, em 1600, terá construído uma capela dedicada à mesma Senhora na freguesia de Santa Cruz. Nuno de Freitas da Silva reconstrói em 1754, em Ponta Delgada, uma capela dedicada à Senhora da Conceição, cujo ano de construção primitiva se ignora. No sítio da Fajã dos Padres, no Campanário, é construída uma pequena capela dedicada a N. S.ª da Conceição que pertence aos jesuítas e que os corsários argelinos destroem no ano de 1626. O visconde Cacongo faz edificar na sua quinta da Choupana, na freguesia de Santa Maria Maior, no ano de 1930, uma capela da mesma invocação, que é benzida a 12 de outubro desse ano. A fortaleza de N. S.ª da Conceição do Ilhéu tem uma capela que é mandada construir por alvará régio de 9 de novembro de 1682. É seu primeiro capelão o P.e José de Andrade, nomeado por alvará de 31 de julho de 1692. Entre estas duas datas se deve contar a da edificação da capela. Estes padrões da fé e devoção dos madeirenses à Imaculada Conceição, a cheia de graça, estão plantados de Norte a Sul, de Oeste a Leste, possibilitando um culto celebrativo em todos os quadrantes da Madeira. São testemunhos eloquentes da fé e devoção de um povo legados à geração presente, que continua a celebrar, com convicções próprias, a Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro de cada ano. N. S.ª do Monte N. S.ª do Monte é padroeira principal da diocese e secundária da cidade do Funchal, da paróquia de N. S.ª do Monte e titular da capela do Monte, paróquia de Cristo-Rei, na Ponta do Sol. A romaria de N. S.ª do Monte, tanto na freguesia do Monte como na de Cristo-Rei, é celebrada a 15 de agosto, dia litúrgico da Assunção da Virgem Maria ao Céu. No entanto, a Festa em Honra do Patrocínio de N. S.ª do Monte, instituída após a aluvião de 8 de outubro de 1803, celebra-se a 9 de outubro. A devoção a N. S.ª do Monte é originariamente madeirense. Não é importada de qualquer rincão de Portugal nem de país algum estrangeiro que tenha exportado nobres ou plebeus para trabalhar as férteis terras da Madeira. Já existia então no Monte a ermida de N. S.ª da Incarnação, mandada construir por Adão Gonçalves Ferreira em 1470. Imagem de Nossa Senhora do Monte por Alfredo Rodrigues. Arqui. Rui Carita. A devoção a N. S.ª do Monte tem origem numa aparição a uma pastorinha, cerca do Terreiro da Luta, que para muitos tem foros de lenda. Diz-se que essa lendária aparição poderia ter sucedido no reinado de D. João II (1477-1495). O relato vem narrado no verso das gravuras que representam a pequenina e a veneranda imagem. Reza assim: “Há mais de 300 anos, no Terreiro da Luta, cerca de 1 quilómetro acima da igreja de Nossa Senhora do Monte, uma Menina, de tarde, brincou com certa pastorinha, e deu-lhe merenda. Esta, cheia de júbilo, refere o facto à sua família, que lhe não deu crédito, por lhe ser impossível que naquela mata erma e tão arredada da povoação aparecesse uma Menina. Na tarde seguinte reiterou-se o facto e a pastorinha o recontou. No dia imediato, à hora indicada pela pastorinha, o pai desta, ocultamente foi observar a cena, e viu sobre uma pedra uma pequena imagem de Maria Santíssima, e à frente desta ‘a inocente pastorinha que, a seu pai, inopinadamente aparecido, afirmava ser aquela imagem a Menina de quem lhe falava’. O pastor, admirado, não ousou tocar a Imagem e participou o facto à autoridade que mandou colocá-la na capela da Incarnação, próxima da atual igreja de N.ª S.ª do Monte” (Id. Ibid., 435). Monte é o verdadeiro nome porque se conhece a paróquia de N. S.ª do Monte, que desde então foi dado àquela pequenina e veneranda imagem que galvaniza o olhar e o coração dos madeirenses. Paróquia de N. S.ª do Monte é o seu verdadeiro nome, que o povo designa simplesmente por Monte. Não se trata verdadeiramente de um monte, mas de meia encosta das elevadas montanhas que circuitam os arredores da cidade do Funchal. O importante núcleo de população que, logo nos primeiros tempos, se constitui no Funchal, junto das margens do oceano, vai-se gradualmente estendendo e alargando pelas lombas e outeiros circunvizinhos, procurando por vezes lugares ínvios e quase inacessíveis. Não tarda que o desbravamento dos arvoredos e matagais, e o correlativo arroteamento das terras, alcance as alturas desta paróquia, ao menos nos limites que a confinam com o primitivo Funchal. Os casais vão lentamente avançando pela escalada da abrupta serrania, e lá mais no alto encontra-se já a pequena e devota ermida de N. S. do Monte, que dá o nome ao sítio e depois à paróquia. A origem desta paróquia e devoção à Senhora do Monte prende-se com a fazenda povoada que ali tem Adão Gonçalves Ferreira, o primeiro madeirense genuíno, porque nascido na ilha, filho de Gonçalo Aires Ferreira, o mais distinto companheiro de Zarco na descoberta do arquipélago, que vem depois a dar o seu nome à nova paróquia de S. Gonçalo. Como geralmente acontece, é uma pequena capela o centro em torno do qual se agrupam os primeiros povoadores. Também aqui, Adão Ferreira, pelos anos de 1470, constrói uma modesta ermida, que parece ter tido o nome de N. S.ª da Encarnação, passando depois a chamar-se de N. S.ª do Monte. Alguns historiadores opinam que a milagrosa aparição da imagem da Santíssima Virgem, que logo começam a chamar de N. S.ª do Monte, é que dá origem a que a capela tome este nome, que por sua vez se transmite ao sítio e mais tarde a toda a paróquia. A capela fundada por Adão Gonçalves Ferreira é a sede da paróquia, quando criada por alvará régio de 7 de março de 1565. Tem seu capelão privativo, e quando se estabelece aí a sede da paróquia, já ali se exercem desde há muito as funções cultuais. Para sede de paróquia, são diminutos os seus espaços. Por isso, logo a seguir fazem-se alguns acrescentamentos. Em 1688, o Conselho da Fazenda autoriza gastar 900$000 réis na construção de um novo templo, o que parece não se ter realizado, pois, em 1739, autoriza-se dar de arrematação a quantia de 6.742$000 réis para a construção de uma nova igreja (cf. Id. Ibid., 438). A capela primitiva é demolida em 1741, tendo sido lançada a primeira pedra do novo templo a 10 de junho desse ano. A veneranda imagem é levada em procissão para a Sé do Funchal, tendo regressado após a conclusão das obras em 1747. A nova igreja dá-se por concluída em 1747, com um custo de 3454$292 réis provenientes de diversos donativos dos fiéis, além da mencionada cifra de 6742$000 réis, concedida pelo erário público.   ] Igreja do Monte. BF. Um ano depois, o terramoto de 1 de abril de 1748 deixa bastante danificada esta igreja, que exige reparações imediatas, as quais acusam alguma lentidão, tendo o dispêndio total das obras, incluindo o templo com o adro e escadarias, muralhas, as casas anexas e diversos ornamentos e alfaias, sido de 200.445$500 réis, segundo os arquivos paroquiais, o que é considerado bastante elevado para a época. Entretanto, a imagem espera de novo na Sé Catedral o fim das obras, tendo regressado para a dedicação do templo. Para o efeito, também muito contribui a Confraria dos Escravos de Nossa Senhora, criada pelo bispo D. Fr. João do Nascimento em 1750, cujas quotas e donativos são quase exclusivamente ali aplicados. A igreja de N. S.ª do Monte é então sagrada pelo bispo Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde a 20 de dezembro de 1818. É, portanto, muito antiga a devoção a N. S.ª do Monte, em toda a diocese. Desde o segundo quartel do séc. XVII começam a aparecer nos registos paroquiais referências a este culto, narrando-se sucessos extraordinários atribuídos à intercessão de Nossa Senhora, por intermédio da piedosa imagem que ali se venera. Ao que parece, o culto divulga-se sobremaneira a partir da fundação da Confraria dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, por meados do séc. XVIII. O culto torna-se mais intenso e generalizado em todas as paróquias da Madeira, começando então as peregrinações e romarias ao respetivo templo a ser de maior afluência de fiéis, que ao longo dos anos vão sempre crescendo e aumentando consideravelmente, até constituir nos nossos dias a mais concorrida romaria de toda a ilha, nos dias 14 e 15 de agosto. Certamente também terá contribuído para esta expansão a Festa do Patrocínio de N. S.ª do Monte que começa a celebrar-se a 9 de outubro de 1804, segundo o rescrito do papa Pio VII, de 21 de julho desse ano, e que se celebrará no mesmo dia e mês de cada ano. Aquela devoção, que já constituía tradição secular entre a população madeirense, é corroborada, oficializada e intensificada a partir da aluvião de 9 de outubro de 1803. Trata-se da maior aluvião que assola a Madeira, e sobretudo o Funchal, nos cinco séculos da sua história. Chuvas intermitentes caem nos 10 ou 12 dias anteriores. No dia 9, porém, chove copiosa e intermitentemente desde as 8 da manhã até às 20 horas da noite. As águas galgam as margens, inundam a cidade e provocam destruição e morte, em autêntico dilúvio. O bairro de Santa Maria Maior é o mais afetado, pois a aluvião leva para o mar muitos prédios, entre os quais grande parte da Igreja de N. S.ª do Calhau, destruindo algumas ruas e ceifando vidas humanas, (cerca de 200 pessoas). No total estima-se que cerca de 600 pessoas tenham falecido devido à tormenta desse dia. Prédios marginais das ruas de Santa Luzia, na Ponte do Bom Jesus, na rua dos Ferreiros, dos Tanoeiros, na rua Direita e no Lago do Pelourinho, são desfeitos e arrastados para o mar. Ante tamanha desolação, sofrimento e morte, o bispo diocesano, o cabido, o clero e os fiéis, reunidos no coro da catedral no dia 13 do mês de novembro, colocam a ilha sob a proteção de N. S.ª do Monte, o que é corroborado e confirmado pelo supracitado rescrito apostólico do papa Pio VII, sendo então instituída a Festa do Patrocínio de N. S.ª do Monte. Nos primeiros tempos fazia-se procissão da catedral para a igreja paroquial de Santa Maria Maior, e 9 de outubro era dia santo de guarda, precedido de vigília própria com jejum. Posteriormente, a celebração passou a fazer-se apenas com eucaristia solene presidida pelo bispo diocesano, com a participação do cabido, de alguns sacerdotes e de muitos fiéis que enchem a catedral. Também na igreja do Monte é celebrada a mesma festa, no domingo seguinte ao dia 9 de outubro. A devoção ao patrocínio de N. S.ª do Monte também é celebrada durante alguns anos na paróquia de S. Martinho, tradição que o pároco empossado em 2013 retomou, celebrando-a na vigília do padroeiro. A devoção e a romaria da Senhora do Monte remontam, portanto, aos primitivos tempos da exploração agrícola e do povoamento da Madeira. As festas populares são celebradas com foros de romaria, a que se associam as levas de emigrantes, que as celebram também em quase todos os países de acolhimento. De regresso à sua terra, de visita ou definitivamente, os madeirenses regressam também à igreja do Monte, a louvar e a agradecer os favores recebidos por essas terras dalém. De toda parte, o povo acorre em romaria a visitar a Senhora do Monte na tarde do dia 14 e no dia 15 de agosto. Aliás, as festividades começam nove dias antes com a celebração das Novenas, promovidas por devotos dos diversos sítios, cada uma com a sua designação própria. Feita uma visita à igreja, alguns romeiros passam a noite em passeios entre os jardins e o largo das Babosas, visitam as barraquinhas e deleitam-se com as iguarias e expressões musicais tradicionais. Os transportes públicos têm facilitado a deslocação. No dia 15, pela manhã, é a vez da celebração eucarística solene, com participação das autoridades regionais, locais e muito povo. Segue-se a procissão que desce da igreja, passa pelo largo da Fonte, percorre as ruas do jardim e sobe à igreja pela rua paralela ao templo. Nela se incorporam os que estiveram na eucaristia, somando-se-lhes uma longa fila de devotos no cumprimento das suas promessas portando velas acesas e os seus ex-votos demonstrativos das graças e favores alcançados por intercessão da padroeira e protetora, a Senhora do Monte. O povo, crente, fiel e grato, avança em silêncio atrás da pequenina imagem de N. S.ª do Monte e a filarmónica ajuda a elevar da Terra ao Céu.   “Os moradores dos sítios do Lombo das Adegas e Terças da Ponta do Sol, pediram licença no ano de 1750, para construir uma capela, alegando a distância a que moravam da igreja paroquial e o desejo que tinham de edificar um pequeno santuário destinado a guardar a veneranda imagem de Nossa Senhora do Monte, e prestar-lhe culto, que se achava num pequeno oratório coberto de colmo e sem a decência devida à mesma imagem. Teve escritura de dotação celebrada a 7 de julho de 1750, sendo concedida licença para a respetiva bênção, a 15 de setembro de 1751. Vinte e quatro anos depois foi acrescentada, procedendo-se à sua nova bênção a 10 de junho de 1775” (SILVA e MENESES, 1965, II, 437). Nesta capela de N. S.ª do Monte é instalada a sede da nova paróquia de Cristo-Rei, criada pelo decreto de D. David de Sousa, a 24 de novembro de 1960. A festa popular celebra-se também no dia 15 de agosto. Esta capela foi alvo de profanação: na noite de 1 de julho de 1810, forçaram as suas portas e dali retiraram a imagem de Nossa Senhora, que colocaram a certa distância, despojando-a de todas as joias que a ornavam, causando profundo sentimento de pesar na população. Levada para a igreja paroquial, e depois de diversos atos de desagravo, é reconduzida em procissão e com a maior solenidade para a mesma capela a 6 de agosto de 1810. N. S.ª do Monte também é venerada na paróquia da Santa, freguesia do Porto Moniz, onde também se celebra a festa popular no dia 15 de agosto, na Capela de S. Pedro, ao sítio dos Lamaceiros. Por alvará de 15 de setembro de 1733 do bispo do Funchal, D. Frei Manuel Coutinho, concedido a Manuel Rodrigues de Canha, morador no Funchal, mas com residência de verão no Lombo do Outeiro, Canhas, é construída uma capela dedicada a N. S.ª do Monte e Santana, que a edifica na sua propriedade. As razões invocadas são precisamente as de servir a população residente que fica distante da igreja paroquial e também a devoção pessoal aos protetores. N. S.ª do Parto N. S.ª do Parto é venerada e celebrada em todas as comunidades paroquiais, como preparação próxima à Festa do Natal, tendo como expressão máxima as denominadas “Missas do Parto”. Elas são exclusivas da tradição natalícia madeirense. Devem começar a ser celebradas a partir do dia 16 de dezembro e terminar no dia 24, como manda a liturgia cimentada na tradição. Nossa Senhora do Parto. Arqui. Rui Carita. Outra característica inerente às Missas do Parto é a hora da sua celebração: antes do nascer do Sol, para daí haurir toda a espiritualidade destas missas que honram a Virgem Maria, denominada a Aurora da Redenção, aquela que vai dar à luz o Sol Divino a toda a humanidade. Também aqui só por razões pastorais se justificam as Missas do Parto vespertinas ou noturnas. A igreja universal celebra a 17 de dezembro a festa litúrgica de N. S.ª do Ó, ou seja, a Festa da Expectação de Maria pelo nascimento do seu divino Filho. A mesma denominação de “Festa do Ó” tem origem nas antífonas de Vésperas do Ofício Divino, que, a partir do dia 17 e até ao 24, começam pelo vocativo “Ó”: “Ó Sabedoria do Altíssimo…, Ó Chefe da Casa de Israel…, Ó Rebento da raiz de Jessé…, Ó Chave da Casa de David…; Ó Emanuel…, Ó Rei das Nações…, Ó Sol nascente…”. Na sua sensibilidade, raciocínios e deduções, o povo madeirense associa o “Ó” destas antífonas ao estado de gravidez da Virgem Maria, que dará à luz o seu divino Filho ao findar dessa semana. Daí chamar-se a estas novenas do Menino Jesus as Missas do Parto. Desde o séc. XIX, temos registo de que a Senhora do Ó é conhecida na Madeira como a Virgem do Parto. Mas presume-se que a sua devoção venha de mais longe, muito provavelmente dos inícios do povoamento, até porque à Senhora do Ó ou Virgem do Parto os madeirenses associam também o culto à Senhora da Conceição, tema obrigatório nos cantos das Missas do Parto, assim como também a Senhora do Rosário. As Missas do Parto mantêm desde há muito um esquema tradicional; em O Natal na Madeira, o P.e Pita Ferreira assinala três tempos fortes na vivência das Missas do Parto: a véspera, a madrugada e a participação da missa propriamente dita. Localizada a véspera em Câmara de Lobos, o referido autor descreve-a como uma autêntica véspera de festa patronal, com a salva e a girândola de fogo ao meio-dia, a presença da filarmónica que toca os hinos aos festeiros e os visita ao domicílio, vivendo essa tarde como um dia de festa, mas dormindo cedo para poder levantar-se às duas da madrugada, com novos toques de filarmónica e estoirar de foguetório, acordando o povo que se deve dirigir, em autêntica romaria, para a igreja. O mesmo autor localiza na Ribeira Brava a sua brilhante descrição desta descida, desde os sítios mais distantes, a duas ou três horas de caminho. Por isso mesmo o búzio toca às duas da madrugada, fazendo juntar as pessoas das redondezas, que, tocando instrumentos regionais, como búzios, castanholas, machetes, rajões, violas e braguinhas, vão descendo ladeiras e veredas, avançando e engrossando a multidão, como um “bando de grilos”, até à vila, onde “os Senhores da Vila” também acabam por abrir os olhos. Todos, ricos e pobres, senhores e plebeus, estão na igreja às quatro e meia da manhã, para começarem, com todo o calor a cantar o invitatório: “Ao Menino nascer / que gosto teremos! Oh! quanto felizes / Todos nós seremos. / Anjos e pastores, Vinde em harmonia / Louvar o Parto / da Virgem Maria”. Quanto à celebração propriamente dita, o referido escritor evoca a tradição do Porto Moniz. Após a entrada solene na igreja, o padre, junto dos degraus do altar, entoa o “Deus in adjutorium meum intende”, que o povo continua: “Domine, ad adjuvandum me festina”, para logo começar o Invitatório em português, cantado por toda a gente: “Ó meu Menino, / ó meu Redentor, / Meu doce Jesus, / Salvai-nos, Senhor”, o qual consta de seis estrofes. Segue imediatamente a segunda parte da novena. Enquanto o sacerdote se senta e começa a rezar o breviário, o povo canta sozinho a invocação ao Espírito Santo: “Vinde Espírito Santo / Lá das celestes alturas, / E da vossa luz, um raio,/ Infundi nas criaturas”. Logo canta-se o Retrato de Nossa Senhora, obrigatório em todas as Missas do Parto, que consta de 20 estrofes. Segue-se a Ladainha, que termina com a Antífona: “Salve, ó mãe do Salvador, / Brilhante estrela do mar / Deste o Salvador ao Mundo / Fazei-nos no céu entrar”. Após a Ladainha, canta-se ainda seis jaculatórias à Virgem Maria, sendo a última a seguinte: “Virgem do Parto, / Ínclita Maria, / Atendei propícia / Os devotos deste dia”. Terminada a novena que todos cantam a bom cantar enquanto o padre reza o breviário, começa então a missa, onde o Pai-Nosso, a Ave-Maria, a Salve Rainha e o Bendito são cânticos obrigatórios. Por seu turno, Rufino Silva refere ainda que antes da reforma litúrgica conciliar do Vaticano II, o uso do latim obriga a uma liturgia paralela entre o altar e o povo. Este, que ao longo do ano se mostra geralmente passivo, gosta de participar ativamente e com grande e singular entusiasmo. Como são sabe latim, utiliza o português, rezando o terço, entoando entre cada mistério cânticos a N. S.ª do Parto, com referências à Imaculada Conceição e à Senhora do Rosário. Entretanto, no altar, o sacerdote reza a missa em latim. As Missas do Parto são momentos exclusivos para cantar versos populares em honra da Mãe do Menino Jesus, alguns deles remontando aos primeiros povoadores da ilha. As orações e o catecismo em verso estavam, nessa época, muito em voga, tendo o próprio Francisco Xavier usado este método na evangelização dos orientais. Eram obrigatórios os cânticos do Pai-Nosso, da Ave-Maria, da Salve Rainha, da Conceição Imaculada, da Maternidade e do Retrato de Nossa Senhora. Muitos desses cânticos foram transmitidos por tradição oral ou por recolhas organizadas e publicadas, como as do P.e Pita Ferreira e de Rufino da Silva, acompanhados da respetiva transcrição musical e de muitas das suas variantes. Uma análise, ainda que superficial, destes cânticos religiosos tradicionais fala-nos da sua imensa riqueza como expressões catequéticas, para além de constituírem profundas orações de louvor, de ação de graças e de súplica, transmissoras de uma verdadeira mensagem de alegria, enlevo, gozo, gratidão, anelos de paz, justiça, arrependimento e salvação. É, portanto, rica e profunda a mensagem haurida nos cânticos populares tradicionais madeirenses. São, ao mesmo tempo, oração e catequese, correspondendo, assim, a características da música sacra. Uma pequena leitura às três variantes do Retrato de Nossa Senhora, obrigatório em algumas comunidades paroquiais, mostra-nos um hino de louvor à pessoa da Virgem Maria, tanto às suas qualidades físicas como espirituais. Neles se fala da “cabeça modesta coroada de estrelas”, dos “finos cabelos” que são “madeixas de aurora”, da “testa brilhante” que “reflete sabedoria”, dos “olhos tão belos que centelham piedade”, das “faces angélicas” que “atraem os corações”, da “garganta” que é “harpa de harmonia”, do “braço esquerdo” convertido em “trono de misericórdia, onde está Jesus a sorrir”, do “braço direito” que “abençoa os pecadores”, da “cintura casta e delicada” que a torna “Virgem das Virgens, pura, imaculada”, dos “joelhos” que “ensinam a oração”, dos “passos” que conduzem à glória. A cada louvor segue uma petição. E a concluir, reza: “A beleza da vossa alma / Ao Senhor agradou tanto / Que vos escolheu para esposa / Do divino Espírito Santo”. Todos os outros cânticos seguem quase à risca o mesmo esquema: uma verdade teológica, cristocêntrica, um louvor à Virgem, a Cristo ou a Deus e uma respetiva petição e consequente aplicação prática à vida quotidiana. São assim os cânticos sobre a maternidade e a conceição o Exultai, a Salve Rainha, a Ave-Maria, e ainda o Pai-Nosso, o Nome de Maria, em todas as suas variantes. As igrejas da diocese do Funchal registam casa cheia durante nove dias, para cantar efusivamente: “Virgem do Parto, ó Maria / Senhora da Conceição. / Dai-nos as festas felizes, / A paz e a salvação”. // “Senhora Virgem do Parto, / Pela vossa Conceição, / Ouvi a quem Vos implora / Com vozes de coração”.   N. S.ª da Piedade N. S.ª da Piedade é o título mariano mais venerado na Madeira, depois da Imaculada Conceição. Com efeito, ao longo dos tempos, são 15 as capelas que lhe são dedicadas: paróquias dos Canhas (1581-1593) e de N. S.ª da Piedade no Porto Santo (anterior a 1529), onde é constituída padroeira; paróquia do Caniçal no Monte Gordo ou da Piedade (séc. XV), largo da Igrejinha no Funchal (1613), Estreito da Calheta (1641), Calheta (1657), São Jorge (1598/1638, posteriormente pertencente à paróquia do Arco de São Jorge), Quinta das Cruzes (1692), São Gonçalo (1722), Porto da Cruz (reconstruída e benzida em 1724), Monte (1728), Jardim do Mar (1736), São Vicente (1784), Mosteiro das Irmãs Clarissas da Caldeira, paróquia do Carmo em Câmara de Lobos, onde também é padroeira (1800) e, ainda, Ponta do Sol (data desconhecida, mas melhorada e benzida em 1879). Algumas destas capelas são posteriormente sedes provisórias das paróquias quando criadas, como acontece nos Canhas, no Porto Santo, no Arco de São Jorge, Jardim do Mar e Porto da Cruz. Algumas destas são ampliadas e melhoradas para responderem às necessidades dos tempos coetâneos, transformando-se nas igrejas paroquiais que perduram até aos nossos dias; outras simplesmente desaparecem na voragem da erosão dos tempos ou da incúria humana; finalmente outras, ainda, existem onde também se celebra a festa popular anual, como é o caso do Mosteiro das Irmãs Clarissas na Caldeira e da comunidade do Caniçal. As festas populares em honra de N. S.ª da Piedade são celebradas ao longo do verão, em dias diferentes: nos Canhas, no primeiro domingo de agosto; no Porto Santo, no último domingo de agosto; no Caniçal no terceiro domingo de setembro; no Mosteiro da Piedade na Caldeira, no 2.º domingo de julho. A festa litúrgica de N. S.ª da Piedade é criada por Bento XIII, calendarizada na sexta-feira da quinta semana da Quaresma, para honrar todos os sofrimentos de Maria que podem ser englobados nas chamadas sete dores: a profecia de Simeão, a fuga para o Egito, a perda de Jesus no Templo, o levantamento da Cruz, a crucifixão, a descida da Cruz e a sepultura. Esta celebração litúrgica, porém, já não consta do calendário litúrgico, após a reforma conciliar. Os sofrimentos da Virgem Maria passam a ser celebrados agora na Festa de N. S.ª das Dores, no dia 15 de setembro. A invocação de N. S.ª da Piedade enraíza na cena evangélica da descida da Cruz e na entrega do filho morto nos braços da mãe. O hino “Stabat mater dolorosa” recorda este momento crucial. Os cristãos sentem que essa piedade, essa compaixão da mãe junto à cruz é motivo suficiente para se compadecerem e darem valor infinito ao sofrimento e à dor humana, e por cuja intercessão podem obter graças e favores para abraçar também o seu sofrimento e angústia nas horas amargas da vida, especialmente perante a morte dos seus queridos. Imagem de Nossa Senhora da Piedade - Igreja Antiga Caniçal. Arqui. Rui Carita. Os portugueses que se radicam na Madeira trazem essa devoção na sua equipagem cultural e religiosa, pois o Portugal de Santa Maria também o é da Senhora da Piedade, desde o Minho ao Algarve, e desde os tempos mais remotos, com muitos padrões e testemunhos em igrejas, capelas e imagens. Devoção que é levada a bordo das caravelas para o mundo aonde chegam os marinheiros portugueses. Na Índia, por exemplo, erguem 48 templos à Senhora da Piedade. A Madeira, minúscula parcela em relação àquele país, não é exceção. Daí também os madeirenses, e sobretudo os homens do mar, homenagearem com tanto empenho N. S.ª da Piedade, como acontece por toda a diocese, pois organizam-se romarias a algumas festas da Senhora da Piedade, como nos Canhas, no Mosteiro da Caldeira e, de forma acentuada, no Caniçal.   Procissão Senhora da Piedade, Caniçal. Arqui. Rui Carita. A capela dedicada a N. S.ª da Piedade no Caniçal encontra-se no Monte Gordo, no alto de uma rocha escarpada sobranceira ao mar. Antigamente havia adjunta uma casa para romeiros, sinal da grande afluência de peregrinos ou devotos à Senhora da Piedade. Diz a tradição que esta capela é construída por um voto de um grupo de marinheiros que, vendo o seu navio prestes a despedaçar-se contra os fraguedos da costa, prometem erigir na cumeada do monte uma pequena ermida dedicada à Virgem Santíssima. Também atribui a sua construção a Garcia Moreno, primeiro administrador do morgadio do Caniçal, ou a algum dos seus sucessores. A imagem existente nesta capela é objeto de culto na festa anual de N. S.ª da Piedade no Caniçal. A imagem de N. S.ª da Piedade é trazida na véspera em procissão pelo mar, acompanhada de alguns barcos engalanados e pescadores agradecidos, para a igreja paroquial. Ao terminar a celebração eucarística, no domingo, a imagem regressa à sua capela, também por mar. Para além da novena, da eucaristia da vigília e da missa da festa no domingo, estas duas procissões constituem o ponto alto das celebrações. É no Caniçal que a devoção a N. S.ª da Piedade cobra maior expressão; trata-se de uma terra de pescadores e muitos vão para o alto mar, para a faina da pesca, com os olhos postos na capelinha do monte Gordo, a pedir proteção para os perigos, as vicissitudes e os imprevistos do mar. A sua devoção, porém, tem foros de globalidade diocesana, pois são muitos os peregrinos ou romeiros que se apresentam na festa a cumprir votos ou promessas e a agradecer favores.   N. S.ª das Dores O título de N. S.ª das Dores está intimamente ligado ao de N. S.ª da Piedade. Com efeito, tem o idêntico objetivo de celebrar as dores da Virgem Maria. A sua imagem apresenta a mãe de Jesus com uma seta a trespassar-lhe o coração. Evoca, portanto, a profecia de Simeão, aquando da circuncisão e apresentação do Menino Jesus no Templo: “Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma”, diz o “justo e piedoso” Simeão a Maria (Lc 2, 33-35). A festa litúrgica realiza-se no dia 15 de setembro, oito dias após a Natividade. Já os servitas de Nossa Senhora a celebram no séc. XVII e Pio VII estende a toda Igreja em 1817, com o fim de lembrar os sofrimentos que a atormentam na pessoa do seu chefe supremo, prisioneiro e exilado por Napoleão, mas restituído à liberdade por intercessão especial da Santíssima Virgem. Em Portugal há muitos padrões dessa devoção em todas as dioceses. É muito difícil encontrar uma igreja onde não haja uma imagem de N. S.ª das Dores. São muitas as romarias a esta Senhora, nomeadamente aos seus santuários no Paul da Covilhã, em Póvoa de Varzim e em Ponte de Lima. Não admira, portanto, que tenha também uma forte expressão na Madeira. Aliás, podemos considerá-la uma herança do franciscanismo, assim como das invocações de N. S.ª da Piedade e N. S.ª da Conceição. Esta celebra a alegria, o contentamento, a satisfação e o louvor, e a Senhora da Piedade e das Dores recordam e sacralizam os sentimentos opostos de dor, sofrimento, angústia e aflição, uns e outros tão queridos e vividos pela espiritualidade franciscana que marca os primeiros anos do povoamento e o consequente crescimento da população madeirense. A imagem de N. S.ª das Dores existe praticamente em todas as paróquias, faz parte do cortejo da procissão do Senhor dos Passos na Quaresma e também do Enterro do Senhor na Sexta-feira Santa, sendo portanto universal a sua devoção na Madeira. Além das procissões e atos litúrgicos da Semana Santa, a devoção a N. S.ª das Dores cristaliza-se também nas capelas dos cemitérios, nomeadamente em Santa Cruz, Câmara de Lobos, Angústias, São Martinho, São Gonçalo, e ainda na capela do Hospício da Princesa D. Amélia.   Imagem da Senhora das Dores - Igreja da Assomada. Arqui. Rui Carita. Apenas no séc. XX encontramos o registo de uma paróquia onde a Senhora das Dores é padroeira, a paróquia da Assomada. Aliás, a festa litúrgica de N. S.ª das Dores é posterior à de N. S.ª da Piedade. Vem do primeiro quartel do séc. XIX. Desmembrada da comunidade paroquial do Caniço, por decreto de D. David de Sousa, de 24 de novembro de 1960, a paróquia da Assomada entra em atividade no dia 1 de janeiro de 1961, com sede provisória na Capela da Mãe de Deus, sendo o P.e Florentino de Sá o seu primeiro pároco. N. S.ª das Dores é desde o princípio a sua padroeira. As razões deste padroado fundamentam-se em diversos fatores, onde predomina o histórico. É uma devoção muito antiga no sítio da Tendeira, de quando este sítio pertencia à paróquia mãe. As pessoas cotizam-se mensalmente para prestar homenagem a N. S.ª das Dores, com a celebração de uma eucaristia, na igreja paroquial do Caniço; acima da igreja da Assomada existe um lugar denominado Calvário, de referência obrigatória para os devotos da paixão de Cristo, onde terá falecido, por acidente, um pároco do Caniço, segundo uma tradição oral. Onde há Calvário, ai está, de pé, junto à cruz, a pessoa da Virgem Santa Maria, ou seja, neste caso, N. S.ª das Dores. Por razões de ordem pastoral, a Festa que guarda relação com o dia litúrgico de N. S.ª das Dores, celebrada pela Igreja universal a 15 de setembro, é trasladada para o último domingo desse mês. É custeada pela Confraria de N. S.ª das Dores, coadjuvada pela comunidade paroquial. A construção de uma nova igreja começa imediatamente, pois a bênção e lançamento da primeira pedra ocorrem a 24 de junho de 1961. Segundo alguns paroquianos, a construção terá demorado apenas dois anos, tal é o entusiasmo e empenho do pároco e dos paroquianos. A 24 de junho de 2011, aos 50 anos do lançamento da primeira pedra, é comemorado o 50.º aniversário da criação da paróquia, único padrão paroquial da devoção e do culto a N. S.ª das Dores.   N. S.ª do Livramento Quem vive numa ilha, cercada de mar por todos os lados, cheia de encostas e montanhas agrestes e majestosas, sujeita a catástrofes naturais frequentes e intensas, sente necessidade de um ente superior que o proteja. Ninguém controla as nuvens, os trovões, os relâmpagos, a chuva torrencial, as quebradas, os deslizamentos de terras e as enxurradas. O madeirense tem uma larga experiência em de repente se sentir fragilizado, diminuído, impotente, ou ver a própria vida ameaçada. Um dos recursos que tem vindo a utilizar nestas horas amargas da vida é a mãe de Deus, sob o título de Senhora do Livramento. Um título que considera a grandeza de Maria, mas que ao mesmo tempo nasce da fraqueza humana. Não é sem razão que o lugar mais expressivo desta devoção é precisamente o Curral das Freiras, uma cratera de vulcão plantada no fundo do vale, rodeada de altas, agrestes e imponentes montanhas que, vistas de longe, extasiam os turistas, mas, contempladas do vale, amedrontam os residentes.   Igreja do Curral das Freiras. Arqui. Rui Carita. N. S.ª do Livramento é padroeira das comunidades paroquiais do Curral das Freiras, Achadas da Cruz e Livramento, do Funchal. Também é devoção tradicional de suma importância celebrada de forma extraordinária nas paróquias do Caniço e Ponta do Sol. A Festa de N. S.ª do Livramento no Curral das Freiras é celebrada no último domingo de agosto; nas Achadas da Cruz e no Caniço, no 2.º domingo de setembro; na Ponta do Sol, no segundo domingo de outubro; na paróquia do Livramento, no 2.º sábado de setembro. Enquanto na Madeira a devoção à Senhora do Livramento aparece no séc. XVII, consolidando-se nos sécs. XVIII e XIX, aparece no continente só no séc. XVIII. Divulga-se por todo o Portugal, tornando-se a Senhora do Livramento também padroeira de algumas paróquias e titular de muitas capelas no restante país. A devoção à Senhora do Livramento na Madeira remonta aos primórdios do povoamento, muito embora não possamos precisar datas. Uma das orações mais antigas à Virgem Maria reza assim: “Livrai-nos da tristeza dos tempos presentes”, onde já transparece a ideia de Livramento. Esta devoção não é exclusiva do Curral das Freiras, mas foi levada a toda a Madeira, como provam as capelas construídas em sua honra aqui e além, dando origem aos respetivos topónimos. Assim acontece no Caniço (meados do séc. XVII), no Monte (1684), na Ponta do Sol (1656), em São Vicente (1683), no Estreito da Calheta (vistoriada em 1860) e Achadas da Cruz (1848), sendo, portanto, muito antiga a romaria à Senhora do Livramento nas respetivas paróquias, transladando-se a romaria das capelas para as igrejas paroquiais, entrando aquelas em ruína.   Imagem de N. Senhora do Livramento - Curral das Freiras. Arqui. Rui Carita. A Senhora do Livramento é padroeira da paróquia do Curral das Freiras desde a sua fundação. Por isso, é lógico pensar que é a maior devoção da comunidade ali residente, já nessa data. Não admira que assim seja, pois a Virgem teria livrado a população de muitos males físicos e morais, sobretudo quando as forças da natureza ali expressam a sua força dominante, e, por vezes, destruidora. A pequena Capela de S.to António, existente no Curral e pertencente ao Convento de S.ta Clara, serve para a instalação e sede da nova paróquia, quando é criada por alvará régio de 17 de março de 1790. Presume-se que a nova igreja tenha sido edificada nos primeiros anos do séc. XIX. A festa da padroeira é objeto de uma romaria realizada no último domingo de agosto. A romaria continua nos nossos dias com o mesmo entusiasmo e a mesma devoção, de tal forma que é conhecida em todos os quadrantes por “Festa do Curral”, sendo massiva a participação nas cerimónias, bem como a incorporação na procissão, onde vemos muitos devotos a caminhar descalços sobre o alcatrão ardente, portando ex-votos ou grandes velas acesas. Muitos devotos oferecem ouro, pois que cada grama simboliza, por um lado, a máxima expressão de gratidão e, por outro, o reconhecimento de que a Virgem Maria é a sua Rainha do Céu, a quem se deve oferecer do melhor que há e do que se tem. “Na história de cada partícula de ouro está a história, rica, maravilhosa, de contrastes, de alegria, de sofrimento, de cada pessoa, de cada um dos problemas que tiveram” (GAMA, 2014, 269). Singular é também, como aliás em outras comunidades madeirenses, mas aqui de forma mais expressiva, a presença de muitos emigrantes, filhos da paróquia, nas festas do Curral. É uma forma de marcarem a sua identidade, ausentes nos países de acolhimento durante o resto do ano. Para muitos, é comum marcarem as férias para esta data, pois fazem questão de participar ativamente na festa da padroeira da sua paróquia de origem. Igreja do Livramento, Funchal. BF.   Embora se desconheça a data, alguns historiadores colocam no séc. XVII a construção da Capela de N. S.ª do Livramento que Sebastião de Oliveira manda erigir no Caniço e que dá nome ao sítio e a uma romaria muito antiga, que é talvez a festa celebrada com maior pompa e solenidade, não só pelos residentes, mas também pelos emigrantes que a levam para as terras de acolhimento. A festa celebra-se no segundo domingo de setembro. Na prática, a Senhora do Livramento tem sido celebrada através dos séculos como se fosse realmente a padroeira do povo canicense, muito embora o sejam o Espírito Santo e Santo Antão. A mais antiga capela dedicada à Senhora do Livramento de que há memória é a que foi mandada construir por Diogo Pereira de Mesquita em 1656 na Ponta do Sol. Terá sido restaurada no séc. XIX. A festa popular é celebrada com pompa e solenidade habitualmente no segundo ou terceiro domingo de outubro, sob a responsabilidade de festeiros nomeados para o efeito no ano anterior e com a presença de numerosos devotos vindos das paróquias vizinhas. É hábito fazer-se um novenário de preparação espiritual intensa, onde participa também a juventude paroquial. Para os enfeites e decoração da capela e andor de Nossa Senhora, vai-se em romaria aos altos da serra colher as chamadas “Açucenas de Nossa Senhora” (beladonas) em ambiente de festa e de alegria. Muitos devotos marcam presença nos atos religiosos cumprindo promessas, agradecendo favores e louvando a Senhora do Livramento. O arraial típico madeirense também é realidade nestes dias com expressões cívico-culturais, onde não falta a filarmónica nem o conjunto musical, a par da gastronomia tradicional. A Capela de N. S.ª do Livramento, que também dá nome a um sítio da freguesia do Monte, é edificada em 1684 por Inácio Ferreira Pinto e reconstruída um século depois por João José Bettencourt de Freitas. Por decreto de D. David de Sousa de 14 de novembro de 1960, é criada a paróquia do Livramento, com sede provisória na referida capela, continuando desta forma o culto mariano ali enraizado desde o séc. XVII. Posteriormente, foi ali construída uma igreja majestosa, como testemunho da fé e devoção que as populações e seus pastores nutrem por essa devoção secular. A igreja do Livramento, obra do arquiteto Luís Jorge Santos, é dedicada por D. Teodoro de Faria, no dia 20 de junho de 2004, com grande solenidade. A nave tem a cobertura em forma de tenda. A igreja assenta sobre 12 pilares, que simbolizam os 12 apóstolos e as 12 tribos de Israel. Singular também é a posição do crucifixo, que “está numa posição central, não vertical, mas no sentido da gravidade, colocado de modo que a noção de entrega aos homens se faça virada para os homens e não numa posição totalmente vertical. O Cristo não está pregado na cruz, mas soltou-se da cruz e está naturalmente sob o efeito da força da gravidade e entregue exatamente nessa mesma posição” (GAMA, 2014, 274). “Outros pormenores também estão cheios de simbolismo, como os esticadores que partem da terra e sustentam simbolicamente a estrutura que eleva da terra ao céu. Na iluminação exterior os archotes representam a iluminação das tendas” (Id. Ibid.). Toda a assembleia fica numa penumbra de luz indireta, e só o altar recebe luz direta que vem do alto, constituindo um polo centralizador da atenção dos presentes. Os terrenos da paróquia das Achadas da Cruz constituem os limites da capitania do Funchal, que ficou sob a administração e exploração do descobridor João Gonçalves Zarco. Os seus habitantes primitivos terão pertencido à freguesia da Ponta do Pargo, pois, em 1592, o bispo diocesano ordena que passem a ser paroquianos do Porto Moniz e ali cumpram as obrigações religiosas. Ali foi edificada uma pequena capela sob a invocação da Vera Cruz, no terceiro ou último quartel do séc. XVI. É nesta capela da Vera Cruz que se estabelece um curato dependente da colegiada da Calheta, no terceiro quartel do séc. XVI, cuja duração é muito curta, sendo extinto em 1577 pelo bispo D. Jerónimo Barreto, argumentando o pequeno incremento da população. Em 1587, já o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos, em visita pastoral à igreja do Porto Moniz, constata que a capela se encontra em “lamentável estado de conservação e asseio, sendo a sua cobertura de palha e não tendo no altar o painel do orago” (Id. Ibid.), exortando os habitantes a devolver-lhe a dignidade adequada à celebração dos atos de culto. Em 1611, o bispo pede a restauração do antigo curato e, em 1638, é secundado pela comunidade local, pedidos que são satisfeitos 100 anos depois da extinção do primeiro. Com efeito, pelo decreto de 28 de dezembro de 1676, o bispo D. António Teles da Silva é autorizado a “criar o curato de Nossa Senhora da Conceição do Porto Moniz, com a obrigação de residência nas Achadas da Cruz” (Id. Ibid.). Desta forma, as Achadas da Cruz são sempre um curato filial do Porto Moniz, com variantes de menor ou maior dependência até ao ano de 1848, quando, por decreto de 24 de julho, é constituída como paróquia independente, ou um curato autónomo com vida civil e religiosa próprias. Contrariamente ao que seria de esperar, a antiga capela da Vera Cruz, localizada nas proximidades do sítio do Calvário, não deu o nome da sua invocação ao orago da paróquia. O orago ou padroeira da paróquia das Achadas da Cruz passa então a ser N. S.ª do Livramento, com sede na nova capela que mais tarde se levanta, em data que se ignora. Posteriormente sofre acrescentamentos e melhorias, constituindo, até aos nossos dias, a sede paroquial. N. S.ª do Livramento é celebrada nas Achadas da Cruz como sua eficaz padroeira, com grande solenidade e foros de romaria, no segundo domingo de setembro. Na freguesia de São Vicente, a capela dedicada à Senhora do Livramento, que foi mandada edificar pelo P.e Manuel Gomes Garcês, remonta ao ano de 1685. No Estreito da Calheta também houve uma capela do Livramento, mandada construir por D. Inácia Bettencourt Perestrelo no ano de 1858.   O Imaculado Coração da Virgem Santa Maria Os Padres da Igreja primitiva sempre destacam as virtudes do Imaculado Coração de Maria. Em plena Idade Média, entre os grandes místicos, santos, teólogos e ascetas, há imensos devotos do Coração de Maria. Igreja da Imaculada da Conceição de Maria, autoria de Raul Chorão Ramalho. Arqui. Rui Carita. O culto litúrgico, porém, começa com S. João Eudes (1601-1680), em França. Movido de grande amor para com os Corações de Jesus e Maria, é o primeiro que pensa em tributar-lhes culto público litúrgico, de cuja devoção deve ser considerado “autor, pai, doutor, apóstolo e promotor” (FONTOURA, 2002, 137). Em 1643, 20 anos antes de celebrar a festa do Coração de Jesus, já festeja, com os seus monges, a do Coração de Maria, que se torna pública em 1648, entrando na liturgia universal. A partir desta data, muitos bispos autorizam o culto do Coração de Maria nas suas dioceses e os papas concedem aprovação e favores a confrarias e a diversas práticas de piedade em sua honra. No séc. XVIII, Bento XIV erige a primeira confraria do Santíssimo Coração de Maria. Pio VII, no século seguinte, enriquece-a com privilégios e procura difundi-la. O grande impulso, porém, desta instituição parte de Paris. Em 1838, o papa Gregório XVI eleva a confraria à categoria de arquiconfraria, conferindo-lhe o direito de agregar outras confrarias do mesmo nome. No séc. XIX (1805), Pio VII enriquece-a com privilégios e maior difusão, concedendo a festa às dioceses e institutos religiosos que a pedissem. Em 1855, Pio XI aprova missa e ofício próprios, unicamente para algumas localidades. A comemoração litúrgica na Igreja universal celebra-se no sábado da Oitava do Corpo de Deus, ou seja, no dia seguinte à festa do Coração de Jesus. Em Portugal, a mais antiga confraria do Imaculado Coração de Maria é estabelecida no mosteiro da Encarnação dos Comendadores de Avis, em Lisboa, no tempo de Pio VII, no séc. XIX, ficando agregada à arquiconfraria de Paris. Mas é sobretudo a partir das aparições de Fátima que se divulga por todo o mundo católico a devoção ao Imaculado Coração de Maria. O culto ao Imaculado Coração de Maria na Madeira é anterior a Fátima. Já se o vive com bastante devoção no séc. XIX. E, na primeira metade do séc. XX, pratica-se mais do que nas restantes dioceses de Portugal, como resposta ao pedido que a Virgem terá feito à madre Virgínia Brites da Paixão. Com efeito, esta religiosa clarissa terá tido revelações especiais, quer do Coração de Jesus, quer do Coração de Maria; segundo os seus hagiógrafos, serão quatro as revelações mais importantes, duas do Coração de Jesus e as outras duas do Imaculado Coração de Maria, recebidas a 16 de abril de 1913, na festa do Corpo de Deus de 1913, em agosto de 1913 e a 3 de maio de 1914. A mensagem que a Virgem Maria terá transmitido à madre Virgínia pode resumir-se na devoção e culto público ao Imaculado Coração de Maria e nos meios a utilizar para atingir esse objetivo: constituição de confrarias do Imaculado Coração de Maria, uso do respetivo escapulário, prática da devoção dos primeiros sábados, construção de um templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria e definição da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu como dogma de fé. Embora nada respirasse publicamente acerca destas revelações, o P.e João Prudêncio, confessor da madre Virgínia, começou imediatamente a infundir na sua paróquia, de Santo António, a devoção ao Imaculado Coração de Maria: escolheu “doze discípulas do Coração Imaculado de Maria” (Id. Ibid., 132), a quem confiou esta missão; repartiu entre elas os 12 meses do ano, e em cada mês cada uma promovia a devoção. Também começou a celebrar-se a eucaristia no primeiro sábado de cada mês em desagravo e reparação do Imaculado Coração de Maria. “A Guarda de Honra é também um desejo da Virgem. Doze pessoas em cada freguesia estariam constantemente em desagravo e reparação” (Id. Ibid., 133), consagrando uma hora do dia ou da noite a esse desagravo. A prática dos primeiros sábados criou na paróquia um ambiente de piedade e de abertura ao culto do Imaculado Coração de Maria que desembocou, no último domingo de agosto de 1915, numa festa mariana em que participou toda a freguesia de Santo António, que encerrou com uma procissão com a imagem do Imaculado Coração de Maria percorrendo as principais ruas de Santo António. O P.e Prudêncio funda, em 1916, a confraria do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria, que fica agregada à arquiconfraria de Paris. D. António Manuel Pereira Ribeiro aprova a sua ereção canónica e aprova os estatutos, por decreto de 18 de janeiro. A 2 de fevereiro encontra-se ereta canonicamente em Santo António e no Hospício D. Maria Amélia. Nesse mesmo dia, celebra-se a festa da Apresentação do Senhor no Templo, são admitidas as primeiras associadas, cujas inscrições vão aumentando dia a dia. A 19 de novembro de 1921, é ereta na paróquia de São Pedro do Funchal, irradiando posteriormente para quase todas as paróquias da diocese. A 2 de julho de 1915, e “por ordem de Jesus” (Id. Ibid., 135), a madre Virgínia escreve ao papa Bento XV, transmitindo-lhe a mensagem recebida. Algum tempo depois, o P.e Prudêncio é enviado ao Vaticano a informar Bento XV. Logo escreve um texto, onde constam os pedidos que a Virgem terá feito por intermédio da madre Virgínia: culto público ao puríssimo e Imaculado Coração de Maria, uso do escapulário do Imaculado Coração de Maria, definição da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu em corpo e alma como dogma de fé católica. Mais tarde, a 24 de setembro de 1920, o P.e João Prudêncio, por ordem do bispo diocesano, envia uma longa carta ao papa Bento XV, dando a conhecer o que sentia sobre a madre Virgínia. O escapulário branco do Imaculado Coração de Maria desperta grande entusiasmo popular, e é recebido com devoção por muitas famílias, sendo levado por emigrantes para os Estados Unidos e outros países, nomeadamente Espanha, através da família de Carlos de Áustria, após a sua morte. Um dos desejos que a Virgem Maria terá expressado à madre Virgínia é o da construção de um templo dedicado ao Imaculado Coração no Funchal. Os primeiros esforços neste sentido acontecem em 1921, mas só mais tarde o desejo se torna realidade. Entretanto, surge em Roma o primeiro templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria. Bento XV, quem fora informado deste desejo da Virgem pelo P.e Prudêncio, adquire o terreno e, após a sua morte, Pio XI entrega-o aos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria, os claretianos, com a responsabilidade de ali construírem um templo votivo internacional. É construído só no pontificado de Pio XII, com apoio de todo o mundo cristão, e João XXIII confere-lhe a dignidade de basílica. Está situado na praça Euclides, no Parioli, em Roma. A 26 de agosto de 1926, é feita a consagração da diocese do Funchal ao Imaculado Coração de Maria, a qual é renovada a 28 de maio de 1933, no Terreiro da Luta. O Imaculado Coração de Maria é orago de duas paróquias na diocese do Funchal: a paróquia do Imaculado Coração de Maria, no arciprestado do Funchal, e a da Fajã do Penedo (Boaventura) no arciprestado de S. Vicente. Na rua da Levada de Santa Luzia, foi erguida uma igreja dedicada ao Imaculado Coração de Maria, fruto da devoção preconizada pela madre Virgínia, que dá a conhecer as visões que terá tido ao bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro; uma das decisões consequentes do bispo foi cristalizar essa devoção na criação de uma paróquia e igreja paroquial a que chama precisamente do Imaculado Coração de Maria – decisão aliás secundada pelas autoridades civis, que nesses terrenos constitui também uma freguesia com o mesmo nome. O decreto da ereção canónica tem a data de 26 de novembro de 1954, tendo a igreja sido construída paulatinamente, consoante as ofertas dos fiéis. D. António Manuel Pereira Ribeiro afirma nesse decreto que “de há muito alimentamos o desejo de fazer erguer, nesta cidade, um templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria”, acrescentando que “como preito de filial gratidão da Nossa querida Diocese para com a sua Celestial Padroeira, para maior glória de Deus e bem das Almas que nos estão confiadas […] havemos por bem criar a nova paróquia do Imaculado Coração de Maria” (GAMA, 2014, 158). Imagem da Imaculada Conceição de Maria, Igreja da Fajã do Penedo. Arqui. Rui Carita. A primeira pedra do templo fora já benzida e lançada no dia 21 de julho de 1948, com a presença da imagem peregrina de N. S.ª de Fátima que, a bordo do navio Império, na sua viagem inaugural, se dirigia para Luanda. Benze a primeira pedra o bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro, acolitado por vários cónegos, com a presença das autoridades civis e militares e milhares de devotos, vindos de todas as paróquias da diocese. A construção da igreja demora mais alguns anos; visto ser oneroso o projeto, opta-se por construir primeiro uma pequena capela, que é benzida a 4 de dezembro de 1954 pelo núncio apostólico, D. Fernando Cento, de visita à diocese. Feitas as obras principais, o templo é solenemente benzido pelo bispo D. João Saraiva a 13 de outubro de 1967; a igreja será a maior da Diocese, depois da catedral. A devoção ao Imaculado Coração de Maria, concretizada nas devoções dos primeiros sábados de cada mês, é celebrada com muito fervor pelas comunidades madeirenses durante quase todo o séc. XX, tendo esmorecido no último quartel. A festa popular, com características de arraial madeirense, acontece no último sábado de agosto. Também é celebrada em muitas outras paróquias, nomeadamente a Camacha e o Caniço. Outra paróquia dedicada ao Imaculado Coração de Maria é a da Fajã do Penedo, criada por decreto de D. David de Sousa de 24 de novembro de 1960, com sede na capela existente no local, dedicada ao Imaculado Coração de Maria e centro de uma devoção ancestral. Na origem da construção desta capela está Maria dos Anjos Ribeiro, nascida no sítio da Fajã do Penedo a 13 de abril de 1885, que conheceu a madre Virgínia da Paixão. Tendo herdado dos pais o Solar dos Regos e as propriedades circundantes, empenhou-se em erguer um pequenino templo ao Imaculado Coração de Maria, tendo doado o terreno em que é implantado junto à casa de sua residência. Angariou os fundos necessários a esse efeito e, no ano de 1918, lançou as fundações da capela, que foi benzida por D. António Manuel Pereira Ribeiro a 23 de agosto de 1919. Estes dois padrões, localizados em lugares quase opostos, perfazem um enlace afetivo e eficaz entre as comunidades paroquiais madeirenses disseminadas pela geografia insular.   N. S.ª de Fátima O título de N. S.ª de Fátima não pode constar do registo de títulos que desde o séc. XV integram o culto mariano dos madeirenses, porquanto tem origem no fenómeno das aparições da Mãe de Jesus na Cova da Iria, de 13 de maio a 13 de outubro de 1917. No entanto, há acontecimentos que interligam a Madeira a Fátima e contribuem para o nascimento e crescimento dessa devoção nas comunidades eclesiais da diocese funchalense, nomeadamente as revelações que terão sido feitas à madre Virgínia Brites da Paixão cerca de 4 anos antes de serem apresentadas aos pastorinhos em Fátima. De certa forma, a Madeira antecipa-se a Fátima no que concerne a esta devoção e a este culto. Em 1948, a Madeira volta a receber a visita da imagem peregrina, que é acolhida por algumas comunidades paroquiais com entusiasmo e espírito de fé. Arraiga-se tanto e vive-se tão intensamente o fenómeno de Fátima na Madeira, que em 1960, aquando da criação de várias novas paróquias, três delas a adotam como padroeira: a Paróquia de Fátima no Funchal, a do Carvalhal nos Canhas e a da Lombada em Santa Cruz. Como resultado deste processo, ainda é construído o Santuário de N. S.ª de Fátima no Cabo Girão, que funciona como centro de peregrinações. Antes fora uma capela dedicada a N. S.ª de Fátima, mandada erguer pelo P.e António de Abreu Vieira com donativos aportados pelos paroquianos, a qual foi benzida a 11 de outubro de 1931.   Imagem Peregrina, Lar da Bela Vista. Arqui. Rui Carita.   A imagem peregrina visita novamente a Madeira em 2010, circulando por várias comunidades e sendo objeto do culto dos fiéis. Como se referiu, N. S.ª de Fátima foi dada como orago à nova paróquia do Carvalhal, na freguesia dos Canhas, criada por decreto de D. David de Sousa, a 26 de novembro de 1960. A sede provisória é constituída na Capela de S.to André Avelino, para onde já fora levada a eucaristia em procissão solene, no dia 19 de março de 1960, celebrando-se aí o culto a partir dessa data. O acontecimento fica assinalado numa inscrição gravada no cálice então oferecido pelo povo para a celebração dessa primeira eucaristia: “lembrança dos futuros paroquianos, 19 de março de 1960”. A 6 de fevereiro de 1962, iniciam-se as obras de desaterro e construção dos alicerces da nova igreja no terreno que fora adquirido a expensas dos paroquianos, contiguo à Capela de S.to André Avelino. A igreja é implantada à direita da Capela, tendo esta sido destruída para dar lugar à sacristia, ao salão e à torre sineira. A nova igreja será, na prática, custeada pelos paroquianos dos Canhas e do Carvalhal, cujos donativos permitirão sufragar os gastos da construção da igreja e o respetivo recheio. O templo tem um só corpo, para a assembleia, encimado pelo presbitério. Aqui assinala-se a padroeira, N. S.ª de Fátima, com as habituais celebrações dos dias 12 e 13 de maio. Outro edifício confiado à proteção de N. S.ª de Fátima é o Seminário Maior do Funchal, instalado em 1958 no antigo Hotel Bela Vista, adquirido pela diocese para esse fim. Para comemorar o jubileu das suas bodas de ouro, o mesmo Seminário colocou nos seus jardins, em frente à porta da entrada do edifício, uma imagem de N. S.ª de Fátima, corroborando desta forma o seu padroado. Santuário de Nossa Senhora de Fátima, Cabo Girão, Câmara de Lobos. BF. A Capela de N. S.ª de Fátima situada nas imediações do Cabo Girão, no Pico do Galo, freguesia de Câmara de Lobos, tornou-se conhecida, em primeira mão, por Cruz de Fátima. A capela primitiva foi mandada construir em 1931 pelo P.e Agostinho Abreu Vieira, natural de Câmara de Lobos, que era na altura missionário em Cabo Verde. Em abril de 1931, este sacerdote visita a Cova da Iria e, perante a imagem da Virgem de Fátima, promete erigir uma ermida da sua invocação no Cabo Girão caso a revolta que então estala na Madeira termine sem grandes estragos materiais ou morticínios. Alcançada a graça, inicia a sua construção, sendo lançados os alicerces a 5 de agosto do mesmo ano e ficando a obra concluída a 5 de outubro. É benzida no dia 11 seguinte por D. António Manuel Pereira Ribeiro, com a presença de cerca de quatro mil pessoas, número que é superado nos dois dias seguintes, 12 e 13 de outubro. Santuário do Cabo Girão, Câmara de Lobos. BF. A capela passa a constituir um centro de importantes peregrinações não só por parte das populações limítrofes, mas também de outros pontos da ilha da Madeira. Nos dias 12 e 13 de cada mês, passam a realizar-se diversos atos de culto que mobilizam sempre milhares de peregrinos, chegando a ser publicado, em 1933, um folheto denominado Fátima Madeirense, que reflete o desejo do seu promotor de fazer daquele local um centro de culto similar ao da Cova da Iria. Infelizmente, em março de 1934 a ermida foi encerrada ao culto pela autoridade diocesana. Depois de cerca de 20 anos sem culto, em finais dos anos 50 do séc. XX, a Capela de N. S.ª de Fátima voltou a abrir as suas portas, desta vez sob a jurisdição da paróquia de S. Sebastião de Câmara de Lobos, situação que terá permanecido até 31 de dezembro de 1960. Depois desta data, devido à criação de novas paróquias em Câmara de Lobos, passa a ficar dependente da Quinta Grande. Todavia continua sem condições para albergar os inúmeros devotos e a necessidade de ampliação volta a impor-se. A 1 de agosto de 1964, o P.e Manuel de Nóbrega é nomeado pároco da Quinta Grande, múnus que exerce até 25 de setembro de 1992; a sua obra principal será a reconstrução da Capela ou Santuário de N. S.ª de Fátima, que voltou a receber devotos de todas as comunidades paroquiais no dia 13 de cada mês, sobretudo em maio e outubro, bem como peregrinações de caráter diocesano e promovidas por diversos agrupamentos.   Igreja da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, Funchal. Arqui. Rui Carita. A paróquia de N. S.ª de Fátima no Funchal foi criada por decreto de D. David de Sousa, de 24 de novembro de 1960, com entrada em vigor a 1 de janeiro de 1961, em terrenos pertencentes a Santa Maria Maior. A sua sede provisória seria na igreja paroquial da paróquia mãe e o seu primeiro pároco foi também o pároco daquela, o P.e Alfredo Ponte Lira. A 16 de julho de 1962, é nomeado pároco o P.e Manuel Marques Luís, que passou a usar como capela um edifício privado. Em 1975, a paróquia é entregue aos cuidados pastorais dos Salesianos, que adquirem um terreno para construção da igreja, que será edificada pelo Governo Regional. A cerimónia da bênção e inauguração realiza-se a 23 de dezembro de 1989; é presidida pelo bispo D. Teodoro de Faria e conta com a presença das entidades regionais e locais, muitos sacerdotes, seminaristas e paroquianos. Também no sítio da Maiata, no Porto da Cruz, existe um centro dedicado a N. S.ª de Fátima, destinado fundamentalmente à implementação da catequese, à recitação do terço nos meses de maio e outubro e à celebração periódica da eucaristia. Foi construído em 1993, pelos alunos do curso de alvenarias e concluído em 1994 a expensas da fábrica da igreja, a um custo de 1500 contos. A 12 de junho de 1994, por ocasião da visita pascal, o Centro é benzido e é celebrada pela primeira vez a eucaristia, com a presença de muitos habitantes da zona. A paróquia da Lombada, outra das 52 paróquias criadas pelo decreto de D. David de Sousa de 26 de novembro de 1960, também tem como padroeira N. S.ª de Fátima.    Manuel Gama (atualizado a  02.09.2016)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares Património Religiões Madeira Cultural

cereais

A cultura dos cereais nos espaços insulares está em relação direta com a importância que os mesmos assumem na dieta alimentar e com as condições oferecidas pelos espaços onde foram cultivados. Porque, na verdade, a definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas pelo meio onde se foram fixando os europeus. De acordo com as condições geoclimáticas de cada espaço, é possível definir a forma como evolui a mancha da ocupação humana e do aproveitamento agrícola das ilhas. Nos arquipélagos constituídos por maior número de ilhas, a articulação dos vetores da subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou grandes dificuldades, o que não acontecerá naqueles em que o número de ilhas é reduzido. Os Açores apresentam-se como a expressão mais perfeita da realidade, enquanto a Madeira se situa como o reverso da medalha. Mesmo assim, apresenta as ilhas do Porto Santo e Desertas com condições para culturas de sequeiro, como os cereais, mas sem nunca oferecer uma colheita capaz de suprir as carências do arquipélago. A ilha viverá nesta permanente dependência externa, a partir da década de setenta do século XV, o que provocará diversos problemas em termos de abastecimento, que serão uma permanente preocupação das autoridades municipais. A rotura nos abastecimentos e o espetro da fome são uma constante da História da ilha, que se agrava em momentos de conflitos mundiais. Os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo atlântico, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais dos mercados de origem. Por isso, na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou do transplante material e humano de que os peninsulares foram os principais obreiros. O processo foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às diretrizes da nova economia de mercado. A aposta preferencial foi para uma agricultura capaz de suprir as faltas do velho continente, quer os cereais, quer o pastel e açúcar, mais do que o usufruto das novidades propiciadas pelo meio. A presença, nas ilhas, de um grupo de colonos, oriundos de uma área em que as componentes fundamentais da alimentação se baseavam nos cereais, definiu para eles uma função primordial na abertura das frentes de arroteamento. O começo tudo foi moldado à imagem e semelhança do rincão de origem e, onde isso se tornava difícil, era quase impossível recrutar e fixar gentes. Assim surgiram as searas, os vinhedos, as hortas e as fruteiras dominadas pela casa de palha e, mais tarde, pelas luxuosas vivendas senhoriais. Da Europa, vieram as culturas comuns e fundamentais à dieta alimentar, baseadas fundamentalmente nos cereais, como o trigo, a cevada e o centeio. Mas, entretanto, a partir do século dezassete, o Atlântico foi devassado por novas culturas dos espaços recém-conhecidos, como raízes e outras sementes, que passaram a fazer parte da dieta alimentar das populações: primeiro, o milho, depois, o inhame e a batata. Na Madeira, até à década de setenta do século quinze, a paisagem agrícola foi dominada pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura cerealífera dominava a economia madeirense, gerando grandes excedentes com que se abasteciam os portos do reino, as praças africanas e a costa da Guiné. Tudo isso foi resultado da elevada fertilidade do solo provocada pelas queimadas para abrir caminho às primeiras arroteias. Em meados do século XV, Cadamosto referia a colheita de três mil moios de cereal, que excediam, em mais de 65%, as necessidades da população madeirense. Destes, mil moios estavam destinados a encher o "saco de Guiné ", isto é, a abastecer as feitorias da costa africana. Mas a partir da década de sessenta, a dominância da cultura dos canaviais conduziu a uma paulatina quebra das searas, de modo que, a partir de 1466, a produção cerealífera passou a ser deficitária, não podendo assim assegurar os compromissos de abastecimento das praças e feitorias africanas. Desde então, a ilha necessitava de importar parte significativa do cereal que consumia. Em 1479, a colheita dava apenas para quatro meses, dependendo o seu abastecimento do restante cereal importado dos Açores e das Canárias. A cultura tinha lugar nos municípios da Calheta e Ponta de Sol e na ilha do Porto Santo. A coroa havia estabelecido, em 1508, que os Açores eram o celeiro do mundo atlântico, suprindo as carências da Madeira e substituindo-a no fornecimento às praças africanas e cidade de Lisboa. Na verdade, a crise cerealífera madeirense coincidiu com o incremento da mesma cultura em solo açoriano, tendo-se determinado, nomeadamente em S. Miguel, um travão ao avanço da cultura do pastel. A partir de finais do século XVI, foi evidente a afirmação do arquipélago açoriano como principal produtor de trigo no Atlântico. A economia cerealífera açoriana estava organizada em torno de dois portos importantes (Angra e Ponta Delgada) que tinham à sua volta um vasto hinterland, abrangendo as áreas agrícolas da ilha e das vizinhas. Assim, a ilha de Santa Maria estava colocada sob a alçada de S. Miguel e as restantes adjacentes ou dominadas pelo porto de Angra. Note-se que até mesmo o comércio de cereal das Flores e Corvo se fazia a partir de Angra, como sucedeu em 1602. O Europeu encontrou nas ilhas, por explorar, o meio adequado e capaz de suprir as dificuldades geradas com a degradação, cada vez maior, da terra continental, esgotados os recursos à adubagem do solo, o variado sistema de afolhamento e rotação de culturas. O solo, agora cultivado, produzia quantidades elevadas de cereal, sem precisar do pousio, pelo que uma área reduzida era capaz de produzir soma igual a uma vasta área na Europa. A cultura do cereal, nestas paragens, fazia-se no solo apropriado e numa faixa reduzida de terreno, ficando as restantes cobertas de arvoredo a aguardar um melhor dimensionamento da política das arroteias. As condições em que se estabeleceram as primeiras arroteias fizeram com que as sementes de cereal, lançadas sobre as cinzas das queimadas, frutificassem em abundância. Diz Jerónimo Dias Leite que de um alqueire semeado se colhiam sessenta, enquanto Diogo Gomes refere "que uma medida dava cincoenta e mais". Cadamosto corrobora o primeiro mas anota que esta relação foi baixando devido à deterioração do solo. Ainda, segundo ele, a ilha produzia 3000 moios de trigo de que só tinha necessidade de um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o afirma Diogo Gomes: "E tinham ali tanto trigo que os navios de Portugal, que por todos os anos ali iam, quase por nada o compravam". Em data que desconhecemos, estabeleceu o infante D. Henrique - ou o rei - a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guiné, o que era considerado, na década de sessenta, um vexame para os funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo senhor da ilha, no que não tiveram grande acolhimento por ser "trato de el-Rei". A partir de finais do século XV, a Madeira passou da condição de celeiro abastecedor do reino a espaço dependente doutros celeiros, nos Açores e Canárias. A ilha nunca se livrou desta situação de dependência cerealífera, sendo uma constante que pesava nas políticas de abastecimento do arquipélago. A par disso, os cereais assumiram, desde cedo, um papel destacado na dieta alimentar dos madeirenses, mantendo-se até à atualidade. Em 1975, a Madeira consumia anualmente cerca de 5 mil toneladas de cereal e a produção regional chegava apenas para suprir a população por apenas 15 dias. Apenas a carência ou disponibilidade de um ou outro cereal motivou a sua maior valoração. Entretanto, a partir de finais do século XIX, a maior disponibilidade e o preço do milho fizeram com que este cereal assumisse uma posição dominante na dieta alimentar.  Mesmo assim, o trigo continuará a deter uma importância destacada na alimentação dos madeirenses. Assim, em meados do século XX, a capitação média do consumo de trigo era de 74 quilos, sendo o milho de 55 kgs. Desta forma, a Madeira consumia cerca de 40.000 toneladas de importação, quando um século antes era de 10.500t, o que significava que a ilha apenas dispunha na produção regional de 11% do trigo e 6,4% do milho. Não existem dados que permitam acompanhar o percurso da produção de cereais no arquipélago. Os dados disponíveis são avulsos e maioritariamente para os séculos XIX e XX. Para a segunda metade do século XIX, temos informação sobre a produção de cevada, centeio, milho e trigo. O trigo assume uma posição maioritária e destacada na produção, seguido da cevada, que perde essa posição para o milho, a partir de 1882. Atente-se a que o aumento da produção de milho é acompanhada pela quebra da cevada, situação que não se reflete na do trigo, o que poderá querer dizer que o incremento da cultura do milho se fez-se em detrimento da cevada. O processo produtivo dos cereais ocupava momentos significativos da faina agrícola do campo, com reflexos evidentes no quotidiano. O momento mais celebrado era o da ceifa, com a colheita do cereal. As eiras proliferavam em todo o espaço de cultivo e tornavam-se no centro da animação na altura da ceifa. A toponímia imortalizou a sua presença na paisagem madeirense. Temos assim, por exemplo, na Fajã da Ovelha: a Cova da Eirinha, Eira do Curral de Pedro Nunes, do Curral de Pedro Nunes, do Massapez, Erinha, Eirinhas, Granel, Joeiras, Lombo da Eira; na Camacha; Eira de Fora, Eira de dentro, Campanário: Eira das Moças, Eira do Mateus; Canhas: Eiras; Prazeres: Eiras, Chã das Eiras; Curral das Freiras: Eira do Serrado, Ribeira da Janela: Eira da Achada, Eira do Pico; Serra de Água: Eira da Moura, Ribeira Brava: Eira do Mourão,  Santa Cruz: Eira Nova; Porto do Moniz: Eira Velha; Caniço: Eiras; Estreito da Calheta: Eira Velha; Porto da Cruz: Eira do Touco; Deserta Grande: Eirinha; Quinta Grande: Eirinha; Monte: Eira do Lombo. Temos ainda na toponímia apenas a referência à cevada com a Cova da Cevada nos Prazeres e no Jardim da Serra. À saida da eira ou do porto, para o cereal importado, colocava-se o problema do armazenamento do produto. Os particulares serviam-se de vários meios para a reserva do cereal de semente e do que iriam necessitar para o seu consumo ao longo do ano. As caixas/arcas de castanho, ou tulhas, servindo muitas vezes de cama, atuam nesse sentido, mas a necessidade de buscar um melhor resguardo face ao olhar alheio, de piratas e corsários, levou-nos a fazer covas especiais para a sua guarda, no chão da casa ou noutros espaços. No Porto Santo, eram conhecidas como matamorras, sendo construídas com pedra e cobertas por uma lage de basalto, podendo guardar até 7 moios de cereal. Estas eram também conhecidas como granéis, sendo conhecidos, no Funchal, diversos gráneis onde se guardavam os cereais para venda. Na chamada casa de Colombo, no Funchal, foi encontrado um, conhecido como granel do poço. Atente-se a que a rua do Sabão sempre foi considerada a artéria do grande comércio do cereal no Funchal e que os mercadores tinham aí armazens para a sua guarda. Em 1930, sabemos que eram 16 os comerciantes dedicados ao comércio do cereal, destacando-se, pela sua importância, a Companhia Insular de Moinhos, Antonio Giorgi & Co, Figueira Irmãos & Co, Luís Gomes da Conceição, Pereira e Figueira &Co. Já em 1939, temos notícia de 18 negociantes de cereais na cidade do Funchal: António Augusto Coelho, Aires Gonçalves de Freitas, Francisco Gonçalves dos Reis, Francisco de Sousa, Jacinto Gonçalves de Freitas, João Gonçalves Câmara, João Rodrigues Deniz, João Soares Araújo de Sousa, João de Sousa Júnior, José de Sousa, Luiz Gonçalves de Freitas, Manuel António Nunes. Um problema cada vez mais premente, do qual dependiam as políticas de abastecimento de cereais ao arquipélago, era o seu armazenamento. A Madeira não dispunha de silos e, desde os anos sessenta, se insiste na necessidade da sua construção. As dificuldades de abastecimento do período da guerra levaram o Governo a estabelecer os chamados celeiros municipais, como forma de controlo e distribuição do cereal produzido. Em 1918, o Governo decidiu criá-los pela portaria 1345 de 20 de abril e regulamentado pelo decreto 4637 de 3 de julho. A intenção era reunir neste espaço, sob a administração do tesoureiro da Fazenda Pública,  todo o cereal produzido no concelho, estando assim todos os agricultores obrigados a declarar o cereal produzido, sob pena de multa e confisco. Por lei 891 de 22 de setembro de 1919, procedeu-se à sua liquidação, criando-se comissões para o efeito. Sabemos, entretanto que, em 1576, por iniciativa de D. Sebastião, foram criados os Celeiros Comuns, mas não temos qualquer informação que aponte no sentido do seu funcionamento na Madeira. Apenas temos notícia na imprensa da sua criação, em 1918. Neste quadro de preocupações, tivemos a criação da Junta de Exportação dos Cereais  pelo Decreto-Lei n.º 28899, de 5 de agosto de 1938, regulamentado pela Portaria n.º 9251, de 24 de junho de 1959. A partir de 1958, esta Junta surgiu com delegação no Funchal, passando a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços do grão e farinha. Foi responsável local, Ramon Honorato Rodrigues que, em 1962, no momento de extinção, publicou uma memória sobre os serviços prestados pela Junta que presidira pela qual ficamos a saber do seu papel no assegurar do abastecimento do cereal regular dos madeirenses. A sua ação começa com o chamado Grémio do Milho Colonial Português, em 1934, que teve como delegado, na ilha, a Octávio César Craveiro. Este organismo depois deu lugar, em 1938, a esta Junta. A ideia de criação de silos no Funchal aparece em 1959, no plano do porto. A estiva dos cereais no porto do Funchal era cara e demorada. Em 1960, a Junta Geral manifesta preocupação pelo abastecimento de  cereais e a necessidade da construção dos silos, numa época em que a Madeira importava 20.000 toneladas de trigo e 15.000 t. de milho. A par disso, no plano de Reorganização dos Serviços de Coordenação Económica do distrito do Funchal, surgiu a secção de “cereais, farinha e pão”. Em 1938, com a criação da Junta dos cereais esta continua a ser uma reivindicação, cuja necessidade mais se faz sentir nos anos da Guerra, sendo considerada a sua ausência um fator desfavorável ao normal abastecimento de cereal eao aumento dos custos da estiva no porto. Depois, em 1963, o deputado Agostinho Cardoso reclama desta ausência e dos problemas que colocava ao abastecimento da cidade. No período post 25 de Abril de 1974, esta necessidade torna-se cada vez mais evidente. Deste modo, em março de 1975, deslocou-se ao Funchal o Secretário de Estado dos Transportes e Comunicações e o Sub-Secretário de Estado do Ambiente Social, com técnicos das referidas secretarias e da Direcção Geral de Portos e Instituto Nacional dos Cereais, no sentido de avaliarem os principais problemas decorrentes da instalação dos silos de cereais no Porto do Funchal. Daqui resultou a decisão da sua instalação nos antigos depósitos e instalações da firma Blandy. A proposta de criação dos silos foi aprovada em 1977, sendo inaugurados em 26 de julho de 1987, mantendo-se em atividade até 2006, altura em que, com o plano de requalificação e transformação, foram demolidos e transferidos para o porto e zona franca do Caniçal, surgindo a Silomad - Silos da Madeira S.A. (Zona Franca da Madeira). Neste contexto, releva-se o papel da Companhia Insular de Moinhos, criada em 1929 e que, em 1991, entrou em processo de transformação, com a transferência das instalações para a Zona Franca do Caniçal.  Em 1996, tivemos a construção de um parque de silos portuários de cereais para armazenagem de cereais. Ao mesmo tempo, esta empresa deu início a um processo de instalação de silos nas padarias, permitindo o transporte de farinhas a granel. A importância dos cereais na dieta alimentar dos madeirenses desde a ocupação da ilha conduziu à valorização dos meios de transformação em farinha. No arquipélago, assinalam-se quatro processos distintos: os moinhos de mão, atafonas, azenhas e moinhos de vento. Até 1821, os moinhos continuaram a ser um privilégio exclusivo dos capitães do donatário. Resquício disso é o Largo dos Moinhos, no Funchal, onde o capitão detinha um conjunto de azenhas que se serviam da água da Ribeira de Santa Luzia. O último moinho foi destruído em 1910 e hoje só resta memória na toponímia do local. De acordo com as cartas de doação, os moinhos ficavam em poder dos capitães que cobravam a maquia, isto é um alqueire em doze, sobre todos os que aí moessem cereais. Recorde-se que, desde o início do povoamento, são insistentes as queixas dos moradores pelo mau funcionamento destas infra-estruturas. Em 1461, a falta e má qualidade do serviço levou o Infante D. Fernando a recomendar aos capitães maior cuidado neste serviço. A situação deverá ter perdurado até 1821, altura em que se abriu à iniciativa particular a construção de novos moinhos. Em 1863, temos, em toda a ilha, 369 moinhos, sendo 79 no Funchal, sendo 313, em 1912. As primeiras fábricas industriais para a moenda do cereal aparecem em 1890, sendo neste ano duas fábricas, a que se junta outra em 1900. A par das azenhas, é de notar a presença das atafonas e dos moinhos de vento, na ilha do Porto Santo por não dispor de cursos de água. As atafonas também existiram na Madeira, referindo Gaspar Frutuoso que o capitão tinha uma dentro da Fortaleza de S. Lourenço. Na primeira metade do século XVI, a coroa deu autorização a dois portosantenses para construírem atafonas no Porto Santo: João Henrique (1501) e Afonso Garro (1545). O segundo apresentava um projeto de um complexo de moagem servido de quatro moinhos que tanto podiam ser movidos por animais ou água. As atafonas perduraram até ao século XX, sendo ainda visíveis, nos anos cinquenta, duas, na Serra de Fora e no Campo de Cima. Mas foi dos moinhos de vento que ficou o registo até aos nossos dias. Em 1791, surgiu o projeto de uma unidade municipal que só foi concretizada seis anos depois e que teve dificuldades em ganhar a confiança dos habitantes da ilha. Em 1827, eram bem visíveis do mar os dois únicos moinhos de vento e, quase cem anos depois, em 1927, havia 29 moinhos ativos em toda a ilha, cifrando-se, na década de cinquenta, em 23, com as velas desfraldadas. Em 1955, Ramon Rodrigues refere a existência de 350 azenhas e as fábricas dos Lavradores, Pelourinho, Insular de Moinhos, a que se juntava outra em Ponta de Sol, a firma de Marques Teixeira & Cº lda, dedicada à moenda do milho. No conjunto, moiam 22.000 t. de trigo, cevada e centeio, e 14.500 t de milho, sendo destas 13.500t para a panificação e 4.200 para massas. Recorde-se que, neste momento, funcionavam 209 padarias e 20 fábricas de massa. A presença destas estruturas industriais, movidas pela força motriz da água, ficaram também registada na toponímia tradicional, através da designação de sitios e lugares como “azenha” ou “moinho”. Temos assim na Calheta: Azenha; Caniço: Azenha, Moinhos, Machico: Moinho da Serra. No século XIX, surgiram algumas unidades industriais motorizadas e depois, com o advento e a expansão da energia elétrica, a partir dos anos quarenta, surgiu a  eletrificação de muitas unidades. Em princípios do século XX, era  evidente uma tendência para a centralização da indústria de moagem nas unidades que souberam inovar. Foi o caso da Companhia Insular de Moinhos no Funchal, alvo da fúria dos populares, em 1931, contra o decreto que regulava o comércio e transformação dos cereais.  Assinale-se, ainda, a firma da viúva de Romano Gomes & Filhos Lda dedicada à moagem do milho conjuntamente com a de Marques Teixeira & Co Lda na Ponta de Sol.   Alberto Vieira (atualizado a 17.08.2016)

História Económica e Social