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estufas

De entre todos os vinhos, o Madeira é o único que dispõe de um sistema de vinificação singular em que o calor exerce o papel principal no processo de envelhecimento. A tradição diz-nos que o processo começou com o vinho da roda, considerado um feliz acaso das viagens transoceânicas. De acordo com esta versão, os marinheiros começaram a notar que o vinho embarcado para o serviço de bordo, que fazia o percurso entre a Madeira e a Índia e retornava a Inglaterra, com duas passagens pelos trópicos, melhorava. O calor dos porões obstruía-lhe um rápido envelhecimento, que cedo se tornou notado pelos Ingleses. A este propósito, referia John Barrow, em 1792: “Este vinho tem a fama de possuir muitas qualidades extraordinárias. Tenho ouvido dizer que se Madeira genuíno for exposto a temperaturas muito baixas até ficar congelado numa massa sólida de gelo e outra vez descongelado pelo fogo, se for aquecido até ao ponto de fervura e depois deixado arrefecer ou se ficar exposto ao sol durante semanas seguidas em barris abertos ou colocado em caves húmidas não sofrerá o mínimo dano apesar de sujeito a tão violentas alterações” (VIEIRA, 2003, 234). No mercado britânico, desde finais do séc. XVIII, o Common Madeira, o London Market e o London Particular (vinhos de exportação direta que seguiam o sistema tradicional de vinificação imposto pelos Ingleses) foram preteridos em favor do novo East India Madeira. As pipas embarcadas no Funchal com este destino e processo eram marcadas com as seguintes iniciais: V. O. W. I. (Very Old West Indies Madeira). O vinho de torna-viagem – o East India Madeira – apresentava o dobro do preço do outro, algo resultante dos custos do transporte, da elevada procura e da reputação que o mesmo adquirira no Reino Unido, onde teve um estatuto especial. A primeira referência ao comércio do vinho retornado das Índias surge em 1722. Nos meses de setembro e novembro de 1790, A Christie’s – que se tornaria uma famosa casa de leilões em Londres – colocou à venda no mercado britânico 3 pipas de vinho Madeira provenientes da Índia e 39 do Brasil. Daqui, terá sido um passo rápido para o estabelecimento e a afirmação do processo de estufagem do vinho Madeira. O sistema de estufa foi considerado oficialmente como um método de tratamento do vinho, mas apenas foi usado para o vinho das castas autorizadas, nomeadamente as de tinta negra mole. De acordo com a tradição, a estufa é entendida como o resultado de um feliz acaso que terá surgido numa conjuntura favorável ao escoamento rápido do vinho, que adveio com as guerras napoleónicas, com o consequente esgotamento dos stocks, criando a necessidade de um trato rápido dos vinhos novos para satisfazer as encomendas do mercado, apenas possível com as estufas. Em todo o caso, é certo que os madeirenses não desconheciam o sistema de tratamento pelo calor já usado pelos antigos; os Gregos e os Romanos tinham conhecimento da ação do calor dos porões dos barcos e dele se serviram para o trato dos vinhos, tal como refere Plínio, entre outros. Na Madeira, a prática parece ser tardia. A primeira informação de que dispomos data de 1550 e refere a despesa de dois vinténs feita pela Misericórdia de Machico relativamente à lenha para cozer o vinho. Não se sabe, na verdade, a que se reporta esta situação específica: poderá ser referente ao fabrico de aguardente. A tradição alega que a primeira estufa terá sido construída por Pantaleão Fernandes em 1794, mas a primeira referência documental a tais estruturas é de 1730. Foi a partir da década final do séc. XVIII que as estufas e o processo de vinificação com o seu uso se generalizaram. Mas, antes do aparecimento das estufas, existiu o chamado vinho de sol. A referência mais antiga ao processo de tratamento do vinho mediante a exposição solar surge em 1687. De acordo com H. Sloane, o vinho beneficiava com a exposição ao sol: “[…]tem a propriedade curiosa, muito especial de se tornar melhor quanto mais exposto estiver ao sol e ao calor. Assim, em vez de o levarem para uma adega fresca expõem-no ao sol e ao calor” (Id., Ibid., 236). A mesma constatação foi assumida por John Ovington que, em 1689, referia: “O vinho Madeira tem a qualidade muito peculiar de, quando está a fermentar, ser melhorado pelo calor do sol se o batoque for desviado da abertura da pipa e, desta madeira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 237).  A solução para acelerar o processo de vinificação e de envelhecimento representava uma maior economia de tempo e de custos, permitindo colocar, em cerca de três meses, à disposição do cliente, um vinho prematuramente envelhecido com propriedades semelhantes ao que tinha estagiado cinco anos no casco. O uso das estufas generalizou-se. Era vulgar ver-se as pipas jacentes nos fornos de pão da cidade, ou simplesmente ao sol. Mas o vinho estufado, para além de ter gerado uma acesa polémica em princípios do séc. XIX, não mereceu a mesma referência por parte dos consumidores. O vinho da roda, aquele que seguia nas pipas, ao sol, a bordo dos navios que faziam o percurso de ida e volta ao Pacífico, com duas passagens pelo calor tórrido dos trópicos, era considerado diferente; para muitos, este tratamento tinha o condão de melhorar as qualidades organoléticas sem o degradar, o que não sucedia, com o vinho estufado. Em 1818, a própria Junta deu o exemplo desta prática do vinho da roda, ao carregar 50 pipas no brigue-escuna Mariado do Cap. José A. Martim de Sá, tendo-se dado ordem de embarque a 21 de abril. Em aviso ao deputado-escrivão da Junta de Cabo Verde, informou-se sobre a remessa de vinho que deveria “envelhecer e depois ser dado o destino que S. M. desejar, recomendando o cuidado e vigilância de sua existência, de maneira que receba o muito calor possível de Verão futuro e não haja extravio”. Noutro aviso a J. de Araújo Barros, em Cabo Verde, dá-se conta de outra remessa com o fim de se colocarem os vinhos nessa ilha e de eventualmente regressarem à Madeira, depois de passado o verão: “[...] lhe rogo o maior desvelo e cuidado na boa guarda e vigilância do dito vinho a fim de que não haja extravio casual nem voluntário e obtenha aquele grau de melhora que se espera” (Id., Ibid., 231). Nos registos de embarque de vinho de entre 1823 e 1830, assinala-se a presença do vinho da roda que, durante a fase a fase em que esta prática foi permitida, atingiu grandes proporções. Em 1823, saíram 1650 pipas e, em 1824, 366. Aqui, destacaram-se os comerciantes ingleses John Howard March & Ca. e Philip Noailles Searle, e também alguns portugueses das casas madeirenses mais importantes, como Monteiros & Ca., Luís de Ornelas Vasconcelos, e João Oliveira & Ca. Em 1826, a prática de embarque de vinhos para envelhecer havia-se generalizado e todo o vinho de roda era reembolsado dos direitos pagos à saída ou levantava fiança até ao retorno. Em 21 de fevereiro, Philip Noailles Searle solicitou o desconto dos direitos de 3 quartos e 10 meias quartolas de vinho de roda, autorizado em 8 de junho de 1825. Um ano depois, a generalização e a prática causou graves incómodos à administração da Alfândega, pelo que se determinou o seu embargo. A Junta da Real Fazenda, reconhecendo os percalços que a situação causava à arrecadação dos direitos, decidiu colocar um fim em tal prática. Daqui resultou a perda de importância do vinho da roda na Ilha e a sua consequente valorização no mercado britânico, onde as pipas da roda passaram a afluir com uma maior assiduidade. Ficou célebre, entre os apreciadores, o vinho que o cônsul inglês H. Veitch ofereceu, em 1815, a Napoleão Bonaparte, aquando da sua passagem pelo Funchal com destino ao exílio de Santa Helena. O antigo Imperador não bebeu o vinho e este regressou à Ilha, onde foi engarrafado a partir de 1840, com o título de Battle of Waterloo. Winston Churchill, de visita à Ilha em 1950, foi um dos poucos contemplados com uma garrafa. Em 1992, recriou-se a referida rota e a técnica de envelhecimento com o embarque de 600 l de Boal a bordo do veleiro Kaisei, que participou na regata Colombo 1992. Nem todos reconheceram o vinho da roda e as estufas como meios adequados ao processo de vinificação e de envelhecimento do vinho. Instalou-se o debate e, por vezes, a confusão. O Gov. José Manuel da Câmara, por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu o funcionamento das estufas por serem prejudiciais à boa reputação dos vinhos. Mas, em face da reação da maioria dos comerciantes nacionais e estrangeiros da Região e do Senado da Câmara, foi obrigado, em 14 de fevereiro de 1804, a oficiar ao conde de Anadia, referindo o sucedido e a pretensão dos locais para que fosse levantada a suspensão de modo a poderem aviar as encomendas. Em representação dos comerciantes locais, pedindo a revogação, dizia-se que: “São três, os pontos principais, que servem de matéria para se atacar a existência, continuação e conservação das estufas. Eles abrangem diversos argumentos, que serão todos destruídos. O primeiro é o descrédito dos vinhos resultantes do benefício artificial, que se lhes quer fazer por meio das estufas. O segundo, o perigo iminente e continuado dos incêndios, em consequência dos fogos mais violentos e aturados, com que se trabalhavam as estufas. O terceiro, o prejuízo grave dos fumos, que originam de arder carvão de pedra, que dizem, atacam, alteram, e incomodam a saúde dos povos” (Id., Ibid., 250). Por ordem régia de 7 de maio do mesmo ano, foi expedido um aviso para ser levantada a proibição. Na verdade, o perigo de incêndios era uma constante, sendo de assinalar os incêndios de 1846 e de 1898. A polémica estava definitivamente instalada. O próprio Senado da Câmara, cuja composição, aliás heterogénea, mudava com assiduidade, assumiu posições contraditórias. Os que comungavam da opinião desfavorável sobre o novo processo de estufagem destacavam que as estufas estavam na origem da decadência da fama e do comércio do vinho, sendo, igualmente, prejudiciais à preservação das suas propriedades, retirando-lhe as qualidades balsâmicas ou alterando-lhe o sabor, e atribuindo-lhe um gosto torrado, queimado e muito desagradável. Em oposição, tivemos a opinião dos que pugnavam pela qualidade do vinho estufado, destacando que a medida era útil e barata para o trato e a rapidez de escoamento do vinho para os centros consumidores. Assim o referem os comerciantes locais, em 1804: “Granjeou o comerciante o fruto preciso dos seus cuidados, dos seus cálculos, e da sua bem atendida vigilância, pois que com o novo método de melhorar, e adiantar os seus vinhos de 5 a 6 meses apronta toda a quantidade de vinho, que é preciso para os seus embarques, não sendo obrigados a esperar o espaço seguro de 4 a 5 anos”. Ainda em 1834, a Câmara do Funchal desfez as acusações que apontavam as estufas como a causa primeira da ruína do comércio local, apresentando o efeito benéfico e incentivador que representavam para o comércio: “Ora devendo-se considerar a invenção das estufas como admirável processo por meio do qual se melhora rapidamente a qualidade dos vinhos, apressando sua maturação, ao mesmo passo que se evitam grandes embates de capital; e sendo este aliás o único método que nos pode habilitar a competir com os vinhos de outras nações nos quais a cultura dos vinhos é mui pouco dispendiosa [...]”(Id., Ibid., 238). Em 1819, a opinião da Câmara era diferente. Em representação à Junta de Melhoramento, deu a conhecer a quebra do vinho no mercado exportador, como consequência da perda de qualidade resultante do uso generalizado das estufas, “que degradando o vinho das suas virtudes essenciais, só lhe dão o cheiro postiço e uma aparência de bondade momentânea, tudo o que era sumo de parreira sem seleção alguma se preparava para o embarque. O que abertos, com a paz, os diques da guerra, os mercados se inundaram de vinhos; já o nosso deixou de servir a necessidade e parto ordinário, contrariando o seu consumo as mesas de luxo aonde o capricho e delicadeza faz aparecer algumas boteilhas de vinho Madeira”. O vinho estufado foi rejeitado pelo mercado e as estufas passaram a ser consideradas prejudiciais, estando na origem da decadência e do descrédito. “São as estufas, pois sabe-se pela experiência que tiram ao vinho as partes balcânicas, de sorte que em muitas praças já os médicos o não aplicam a certas moléstias em que tinham cura feliz e um desse conte desagradável, causa sede e dores de cabeça, sem beneficiar a digestão, de maneira que na terra se não faz uso desta bebida” (Id., Ibid., 250). Daqui resulta a necessidade de interdição ou de regulamentação do uso da estufagem no trato do vinho para que os donos fossem obrigados a manter o cozimento por 10 meses. Idêntica petição surgiu em 1821, clamando-se contra as “pérfidas estufas”. Os comerciantes, em 1834, reiteraram as afirmações de 1803 e, mais uma vez, manifestaram-se contra o decreto que introduziu o imposto sobre as estufas. Ao mesmo tempo, desfazia-se a argumentação que afirmava que as estufas seriam a causa da decadência do vinho, pois, fora da Ilha, também se estufava o vinho e tal não sucedia: “As ilhas dos Açores, Canárias e Cabo da Boa Esperança, têm estufas e estas livres de todo o tributo, ora se os vinhos estufados tivessem perdido o crédito decerto ali não haveria. Em todos países onde há vinhos está a exportação deles livre e livres de impostos todos aqueles que por meio da sua indústria promovem o consumo deles” (Id., Ibid., 250). Em meados do século, com o agudizar da crise, reacendeu-se a questão das estufas na imprensa local. Nas páginas do Correio da Madeira, afirmava-se, em 1851: “O vinho bom não carece de estufa, logo as estufas só servem para o ordinário, que se deve fazer para aguardente e consumir nas tabernas [...]. É uma calamidade pública esta funesta descoberta, que fazendo exportar o vinho mau, deixa o bom e óptimo estagnado, arruinando o nosso crédito”. Contra esta opinião manifestou-se um leitor, anotando que a origem da crise emanava da Pauta Aduaneira. Quanto às estufas, referia que era uma questão de prática, pois o que estava mal eram os abusos praticados, ou seja “o estufar o vinho ruim que deve ir para o alambique e só para o alambique, o envasilhar o vinho em pipas não avinhadas, o meter vinho em estufa forte de 3 meses, o embarcar o vinho antes de passar o tempo que é mister esta sobre o canteiro” (Id., Ibid., 251), uma vez que a uma estufagem bem feita deveriam seguir-se dois anos de descanso no canteiro para o vinho adquirir o aroma. João da Câmara Leme tinha uma opinião semelhante, acabando por estabelecer um novo processo de tratamento, conhecido como o método de canavial, um sistema eficaz e capaz de manter as qualidades do vinho. Eduardo Grande, em 1865, no relatório sobre a situação da Ilha após a crise de 1852, salientou que a crise não se deveu única e exclusivamente à moléstia da vinha, apresentando subjacentemente o dedo acusador às estufas. No Funchal, o principal centro vinícola da Ilha, procedia-se ao tratamento do vinho por meio das estufas. O sistema de tratamento pelas estufas generalizou-se a partir de finais do séc. XIX. As estufas distribuíam-se indiscriminadamente por toda a cidade, situando-se nos terrenos anexos às adegas, na área circunvizinha do cabrestante. O processo de estufagem tinha lugar em edifícios construídos para tal, ou em cima dos fornos de cal ou de cozer pão. Em 1861, a estufa existente na R. dos Moinhos foi demolida por não ter conseguido melhorar o vinho. Para o período entre 1739 e 1872, assinala-se o uso de um forno de cal à R. do Hospital Velho e de 12 fornos de cozer pão, com idênticas funções, nas ruas do Aljube, da Ponte Nova, da Sé, das Queimadas, dos Ingleses, do Capitão, da Bela Vista, do Castanheiro, dos Pintos, Nova de Santa Maria, do Esmeraldo, e no Lg. da Sé. Por editais de 23 de agosto de 1802 e de 6 de novembro de 1803, proibiu-se a construção de estufas no recinto da cidade, tendo o juiz do povo argumentado sobre os inconvenientes que daí advinham para a saúde pública, devido ao fumo e ao constante perigo de incêndio no período de laboração. Os comerciantes da praça do Funchal manifestaram-se contra, alegando os prejuízos referentes à deslocação das estufas para os subúrbios da cidade e contrariando os argumentos infundados do referido juiz do povo; o seu intento acabou por vencer. Na realidade, como referiam, só tinham existido, até 1803, três ameaços e apenas um incêndio na estufa de Phelps Page & Ca., em 29 de outubro de 1806. As estufas deste último foram alvo de um novo incêndio na noite de 10 para 11 de novembro de 1846, mas as perdas foram apenas nas instalações, uma vez que se conseguiu salvar o vinho. Depois disso, só existem referências a três incêndios na última década da centúria: a 20 de janeiro de 1894, o fogo devorou a estufa da firma de vinhos Araújo & Henriques, seguindo-se, a 15 de dezembro de 1898, outro incêndio na estufa do conde de Canavial, na R. 5 de Julho, onde estavam mais de 100 pipas de diversos proprietários; o último incêndio noticiado sucedeu a 11 de julho de 1900 num prédio da R. do Esmeraldo, propriedade dos herdeiros de Júlio Henriques de Freitas, que tinha no primeiro andar uma estufa com 49 pipas, que se salvaram. Tendo em consideração que estas estufas podiam laborar até seis meses, o gasto em lenhas era elevado, criando, certamente, dificuldades no seu abastecimento na cidade. Desta forma, em 27 de abril de 1835, surgiu a notícia de uma reclamação ao perfeito, reivindicando a substituição das lenhas pelo carvão. Esta medida não se concretizou, uma vez que, em 1919, apareceram anúncios nos jornais relativamente à venda de lenhas para queimar nas fornalhas das estufas. Assim, em 1919, foram anunciados serviços de venda de lenhas para cozinhas, estufas e engenhos em armazéns no Campo da Barca e no Calhau. Se as estufas não eram um perigo para a saúde e a segurança públicas, tornavam-se, no entanto, prejudiciais à pouca salubridade do burgo oitocentista, atingindo o centro do mesmo e as ruas de maior movimento em redor do porto do Funchal. Assim acontecia na área da Sé do Funchal, próxima da Alfândega e do cabrestante, onde, entre 1809 e 1834, laboraram as estufas de Gordon Duff & Ca., respetivamente no beco do Assucar e na R. do Esmeraldo. Aliás, considerando que a freguesia da Sé se situava na área central da cidade, surgirá uma ideia clara da implantação, pois entre 1839 e 1840 existiam 15 estufas, a que se seguiram 9 na freguesia de S. Pedro, denotando uma forte concentração na área circunvizinha da Alfândega e do porto do Funchal, concentração que, em parte, se justifica com base no objetivo de se conseguir um fácil transporte do vinho de embarque. De notar, entre 1839 e 1840, a também elevada concentração de estufas no beco dos Aranhas (4 e 5) e em S. Paulo (3 e 1), uma área ribeirinha ao mar pelo lado da Pontinha e sobranceira à ribeira de S. João. No termo da cidade, as estufas localizavam-se em Santa Luzia, em Caminho da Torrinha, em Torreão e, em Santa Maria Maior, na R. dos Balcões, na R. Bela de Santiago e na Rochinha. Fora da área do Funchal, encontravam-se apenas duas em Santa Cruz, em 1840, uma em S. Fernando, de Joaquim Telles de Menezes, e outra na R. Direita, de Augusto César de Oliveira. Entre 1805 e 1816, notava-se uma estabilização no número de estufas: era uma altura de medidas proibitivas e de discussão contrária à implantação e à utilidade daquelas. Passado este período, o número estabilizou-se, a que se seguiu, depois de solucionada a crise, um forte impulso entre 1817 e 1829. A década de 30 foi marcada por uma queda, que se acentua a partir de 1832. O período que decorreu entre 1834 e 1844 foi de certa estabilidade no número de estufas em laboração, apenas se notando um salto isolado em 1839. Desde 1845, a tendência era para subir, atingindo-se, em 1851, o número máximo de estufas (42); mas a situação vivida a partir de 1851 inverteu o processo, que se acentuou a partir de 1860. O primeiro dado surgiu num momento em que a discussão em torno das estufas se havia atenuado, estando a própria Câmara do Funchal de acordo com a sua utilização; mas, em 1851, o assunto volta a ser objeto de intensa discussão. Depois disto, só existem dados sobre as estufas em relação ao ano de 1905, em que estão contabilizadas 35, sendo 1 mista de fogo e sol, e 7 de sol. A crise do comércio do vinho ocorrida em finais do séc. XIX contribuiu para o lento desaparecimento do número de estufas, tal como vinha sucedendo com as empresas do sector. No entanto, a tradição de estufar o vinho não se perdeu, passando a fazer parte do processo de vinificação. Nota-se que esta é uma característica do processo de vinificação que só acontece com o vinho Madeira, podendo ser considerado um processo de criação regional. João da Câmara Leme, especialista em assuntos enológicos, teve oportunidade de, em França, entrar em contacto com os sistemas de aquecimento usados desde o primeiro quartel do séc. XIX, nomeadamente com os sistemas em vaso fechado concebidos por Appert, Ervais, Verguette, Cemotte e Pasteur. De regresso à Madeira, foi confrontado com o processo de estufagem em uso, notando que o “sistema de aquecimento lento com comunicação com ar ambiente” dava ao vinho um “sabor torrado de queimado muito desagradável”, ao mesmo tempo que lhe retirava as propriedades essenciais: “Um sistema que priva os vinhos novos das suas melhores qualidades naturais e lhes introduz efeitos persistentes; que lhes tira o açúcar, álcool, óleos essenciais, e lhes introduz, um sabor desagradável que o carvão vegetal empregado lhes não pode nunca tirar de tudo, e que os impede de adquirir a finura tão assinalada nos antigos vinhos de canteiro. Na destilação do vinho de garapa despreza-se o vinhão e guardam-se líquidos alcoólicos, éteres, e sais e guarda-se o vinhão” (Id., Ibid., 241). Perante a constatação, houve que tomar providências, optando-se por um sistema de aquecimento em vaso fechado, segundo o método de Pasteur, conhecido por pasteurização. Feitas as devidas experiências, João da Câmara Leme concluiu “que o gosto de novo desaparecia muito pouco para que o vinho Madeira pudesse ser embarcado em pouco tempo como vinho mais velho, e que os seus outros caracteres não tinham suficientemente melhorado”. Em 1889, ao fim de seis anos de estudo e 10 anos de ensaios e de experiências, estabeleceu um sistema de aquecimento e de afinamento dos vinhos que tomou o nome de sistema canavial. Adotava o novo método de aquecimento rápido e arrefecimento lento em recipiente fechado. Assim, “o vinho que vai ser aquecido entra, depois de medido, num reservatório superiormente disposto, donde desce, pelo seu próprio peso, por um cano de estanho, […] continuando depois a descer, sem encontrar nada no caminho que lhe apresse o aperfeiçoamento; e chegando finalmente, depois de ter marcado num termómetro a uma temperatura adquirida, ao fundo da mesma pipa d’onde sairá pouco antes, e cuja boca, disposta de modo a impedir perda de vapores, é fechada logo que termina a operação” (Id., Ibid., 242). O autor do sistema anota que, com este processo, o vinho não perde qualquer nível do teor alcoólico e apresenta melhorias; que não há indícios de presença de enxofre e tem um aroma muito agradável, o que significa que o processo permite um notável melhoramento da qualidade do vinho. A singularidade do processo assenta no facto de se tratar de um sistema estar hermeticamente fechado, no qual “cinco fornalhas introduzem ar quente em canos que dão três voltas nas estâncias; e que são guarnecidos de chapas de ferro para facilitarem a transmissão do calor, sempre bem regulado e facilmente observado por termómetros que se podem bem ler de fora”. Daqui resulta que “o vinho assim aquecido e afinado conserva todas as qualidades naturais, apresenta qualidades próprias do vinho de canteiro que tem cinco ou seis anos e uma notável finura muito apreciável; sem apresentar nenhum mau sabor, nem defeito algum, sendo convenientemente tratado, pode logo ser lotado com outros vinhos aquecidos e conservados livres de fermentos, e mesmo ser embarcado, sem risco de se alterar, e com grande economia de álcool” (Id., Ibid., 243). O método era considerado o único processo de tratamento por estufa que animava a qualidade do vinho fazendo-o adquirir características e qualidades próprias, podendo rivalizar com os melhores vinhos de canteiro, ou seja, os vinhos que não passavam pelas estufas, envelhecendo em pipas nos chamados canteiros, os assentos do vasilhame. O vinho canavial era normalmente preparado com o boal, apresentado as seguintes propriedades: digestivo, antisséptico, medicinal e alimentício. Assim, no primeiro quartel do séc. XX, a imprensa funchalense, através de anúncios que publicitavam a sua atividade, referia dois sistemas distintos de estufagem: o canavial e o de Pasteur. O sistema canavial foi iniciado por João da Câmara Leme e foi seu privilégio durante 15 anos, sendo usado em várias estufas. Estas ofereciam aos interessados os serviços de aquecimento e de afinamento dos vinhos. O aquecimento de uma pipa de vinho ficava por apenas 1$200, enquanto o afinamento por 3 meses era de 4$500, custando 6$000 o período de 6 meses. De acordo com anúncio que publicitava o sistema de Pasteur, encontrado nas estufas das ruas 5 de Junho e dos Aranhas, o custo era de 1$500 por pipa, sendo a quebra do volume do vinho baixa e implicando, para uma pipa, a poupança de 12.000 reis a 15.000 reis. Entre 1888 e 1920, verificaram-se diversos anúncios na imprensa que publicitaram o serviço de estufagem em que os serviços disponibilizados para o efeito eram de 3, 4 e 6 meses. Mas também surgiram anúncios sobre a liquidação de três estufas de vinho, o que poderá sugerir uma crise no sistema, por força dos constrangimentos do mercado. Muito antes de João da Câmara Leme, já tinha surgido uma notícia sobre outro invento de estufagem. O novo método adequava-se aos vinhos, “comunicando-lhes o calor internamente” e tornando-os “vermelhos em pouco tempo” (Id., Ibid., 243). Tudo indica que tal processo tenha sido uma importação francesa de Severiano Ferraz, uma vez que foi a França várias vezes, donde trouxe alambiques de destilação contínua, tendo travado contacto com as inovações da técnica francesa de destilação e de aquecimento do vinho. Em 1917, sabe-se que Salomão Veiga França (1893-19??) registou a patente de um aparelho de aquecimento de vinho, mas não temos qualquer informação sobre o mesmo e se funcionou. No período entre 1806 e 1872, através da documentação disponível, podemos acompanhar o número de pipas de vinho submetidas ao tratamento de estufagem por ambos os sistemas. A primeira conclusão possível é a de que até meados do século era reduzido o número de pipas de vinho estufado, quando comparado com os valores da produção e da exportação. A estufagem só se generalizou a partir da década de 50 no processo de vinificação do vinho Madeira. O período que decorreu entre 1856 e 1865 pode ser considerado um momento crítico. A crise do oídio refletiu-se nas produções e nas exportações, fazendo com que a oferta de vinhos já estufados fosse muito inferior à colheita e à procura. Isto poderá ser a prova da existência, em armazém, de elevados stocks de vinho de colheitas anteriores. As estufas, na verdade, não morreram, apenas foram aperfeiçoadas com o tempo. Os mecanismos a vapor e a moderna tecnologia elétrica substituíram as fornalhas de lenha, propiciando uma temperatura constante de 45 a 50 ºC por um período de três meses. No início do séc XXI, o sistema de canteiro convive de modo cordial com o das estufas; ambos persistem e são usados pelas empresas de acordo com o tipo de vinhos que se pretende fazer. Os chamados vinhos novos de cinco anos são quase sempre de estufa, enquanto os demais são de canteiro. Apenas uma empresa, Artur Barros & Sousa Lda., continua fiel à tradição do sistema de canteiro em todos os vinhos que comercializa. De acordo com a legislação em vigor nesta época, o vinho deverá manter-se nos recipientes a uma temperatura constante até 55º C, por um prazo de 90 dias. Anteriormente, o vinho sofria uma evaporação de cerca de 15 %, mas, com a nova tecnologia, as perdas tornaram-se reduzidas. A disponibilização no mercado só poderá acontecer após dois anos de estágio no canteiro. Nesta altura, a Madeira Wine Company Lda. dispõe, nas suas instalações, ao Lg. Severiano Ferraz, de dois tipos de estufas tradicionais: a estufa de cimento e a de madeira, usando, ali e na R. de S. Francisco, o chamado sistema de armazém de calor. Nas demais empresas, usam-se estufas modernas, com sistemas que permitem um melhor controlo de calor.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

História Económica e Social

economia

A definição da economia da Madeira convoca vários aspectos, desde o seu espaço e posicionamento no processo histórico peninsular e atlântico à preocupação das autoridades no sentido de assegurar a riqueza que torna sustentável a manutenção do espaço e da população. Teoria: os ciclos A primeira questão a merecer a nossa atenção prende-se com a tão celebrada teoria dos ciclos económicos da Madeira. De acordo com os seus arautos, o processo económico da Madeira articula-se de acordo com uma afirmação cíclica de produtos. Todavia, esta teoria, que teve o seu apogeu nas décs. de 50 e 60 do séc. XX, deixou de ter adeptos nos começos do séc. XXI. As suas bases foram lançadas em 1929 com Lúcio de Azevedo, sendo a teoria reforçada 20 anos depois com Fernand Braudel, conquistando grande adesão na historiografia brasileira. Ambos argumentam que o processo económico das ilhas se articulou de acordo com o regime produtivo de monocultura. Ainda em 1949, Orlando Ribeiro esclarecia que, no caso da Madeira, não era possível encontrar rastros de monocultura no regime de exploração agrícola madeirense, mas Joel Serrão, em 1950, insistia em definir o “ciclo dos cereais”. A mesma opinião também surgiu nas Canárias, onde, volvidos 20 anos, Elias Serra Rafols respondia a Francisco Morales Lezcano, enunciando que nunca existiu um regime de monocultura, uma vez que a economia canária foi dominada por uma variedade de culturas cuja atuação não é uniforme no tempo e no espaço. Mais tarde, Frédéric Mauro, secundado por Vitorino Magalhães Godinho, retomou a questão, defendendo que a economia insular se definiu apenas por um regime de produtos dominantes e não de monocultura. Vitorino Godinho introduziu, neste contexto, um novo conceito operatório: complexo histórico-geográfico. Na Madeira, a ideia vingou sobretudo junto de historiadores e eruditos, sendo difícil encontrar esta ideia expressa em qualquer análise de carácter económico. Ficou assim assente o ciclo dos cereais, do açúcar ou ouro branco, do vinho, do turismo, da banana e, certamente, da autonomia. A partir de 1979, esta forma de ver a história chegou à Madeira através da análise da história da arte e urbanismo da cidade, surgindo pela pena de António Aragão a ideia de que a cidade teve dois momentos distintos que definiram diversas formas de concretização artística e urbanística: a cidade do açúcar e a cidade do vinho. O impacto que o livro de António Aragão teve no meio académico e no público interessado levou a que a ideia acabasse por vingar. Uma análise aturada da economia insular mostra-nos que a mesma não se regeu por princípios exclusivistas, de acordo com a premência das solicitações externas. Pelo contrário, o seu desenvolvimento socioeconómico processou-se de forma variada, sendo a exploração económica dominada pela procura externa em consonância com as condições e recursos do meio, e com as solicitações da economia de subsistência. É difícil, se não impossível, conseguir definir um ciclo em que impere a monocultura de exportação num espaço amplo e multifacetado como é o do mundo insular. Os modelos, embora perfeitamente delineados, não se ajustam à realidade socioeconómica, que é extremamente variada e enriquecida com múltiplos matizes. Embora alguns produtos, como o trigo, o açúcar, o vinho e o pastel, surjam em épocas e ilhas diferenciadas como os mais importantes e definidores das trocas externas, não são os únicos na economia insular. Na verdade, a dominância destes produtos sucede apenas no sector da exportação e nunca na realidade global da Ilha, onde por vezes outros são mais dominantes enquanto fonte de riqueza familiar e de subsistência. Os ciclos de monocultivo são apenas a parte visível das exportações, pelo que limitar a análise económica a essa dinâmica é uma atitude reducionista que apenas reconhece a importância dos produtos com maior peso nas exportações. A Madeira é um microcosmo definido pela variedade de espaços ecológicos que não se compadecem com uma unicidade agrícola. Esta condição dominante levou a uma sistematização do devir socioeconómico em ciclos. A documentação é unânime na afirmação de que o empenho do ilhéu não se resume apenas ao produto que mais gira nas relações com o exterior. Há em todos uma certa preocupação com a autossuficiência que milita a favor da manutenção das culturas tradicionais que medram, lado a lado, com as dominantes no comércio externo. Esta polivalência produtiva manteve-se sempre no devir socioeconómico insular. A dominância de um ou de outro produto nas relações com o exterior não destrói essa polissemia produtiva, nem retira o empenho das gentes laboriosas nesse processo. Atesta-o as posturas municipais, nas quais, nos diversos sectores económicos, se expressa uma diversidade de interesses e o movimento quotidiano de produtos. Em todas as dinâmicas produtivas e comerciais que marcaram e definiram o processo histórico madeirense é gritante a extrema dependência da Ilha em relação ao exterior. A Europa detém, neste contexto, uma posição dominante, firmando-se como centro de orientações políticas e económicas. Essa situação comum ao mundo insular define uma das principais peculiaridades deste espaço: a extrema fragilidade e dependência da sua economia em relação ao velho continente. Para isso, em muito contribuiu a posição hegemónica das cidades-capitais dos impérios peninsulares, bem como a disponibilidade de recursos e meios das sociedades insulares. Por outro lado, é evidente que a afirmação de um produto no sector das exportações não é possível sem um sistema de policultura, principalmente em universos restritos como as ilhas. Assim, os canaviais subsistem se for possível assegurar um vasto hinterland de culturas de subsistência. Deste modo, os ciclos serão a visão mais deformada do processo económico da Ilha, a caricatura de uma realidade que é muito complexa. Entender a economia das ilhas e a sua história é, assim, reconhecer um estatuto diferenciado a estes espaços económicos. Nas ilhas, domina a diversidade geoeconómica, fruto da configuração geográfica. Na Madeira, esta situação provoca um escalonamento de culturas, impedindo a sua sobreposição. O espaço e os seus produtos O estudo e entendimento da história económica da Madeira só podem ter lugar no quadro do espaço atlântico criado pelo europeu a partir de princípios do séc. XV. A partir dessa altura, o Atlântico definiu-se como um espaço excecional dos impérios europeus, no qual as ilhas assumem uma função privilegiada no cruzamento de rotas, bem como na circulação de pessoas e produtos. A ilha foi, assim, um dos primeiros exemplos da afirmação económica europeia além das fronteiras peninsulares e a primeira demonstração do que viria a ser o mercado atlântico, materializando de forma clara as solicitações do velho continente e as esperanças e descobertas do Novo Mundo. O Atlântico tornou-se uma realidade de análise historiográfica a partir da déc. de 40 do séc. XX, sendo o exemplo dado pela historiografia norte-americana, preocupada em rastrear as origens europeias. O conceito de espaço atlântico começou a ser definido em 1947 com Louis Wright, mas terá sido o Mediterrâneo de F. Braudel que convocou a atenção a partir da déc. de 50. Os finais do séc. XX foram o momento de afirmação da historiografia atlântica. De ambos os lados do Atlântico, surgiram trabalhos em que este se constituiu como o objeto principal. No séc. XX, a história das ilhas atlânticas mereceu um tratamento preferencial no âmbito da história do Atlântico. Primeiro foram os investigadores europeus, como o já referido F. Braudel, Pierre Chaunu, Frédéric Mauro e Charles Verlinden, a destacar a importância do espaço insular no contexto da expansão europeia. Só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular, sendo pioneiros os trabalhos de Francisco Morales Padron e Vitorino Magalhães Godinho. Esta ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas do séc. XX e contribuiu para a abertura do conhecimento histórico às novas teorias e orientações. As décs. de 70 e 80 desse século foram importantes momentos no progresso da investigação e do saber históricos, contribuindo para tal a definição de estruturas institucionais e de iniciativas científicas. A historiografia foi defendendo única e exclusivamente a vinculação das ilhas ao Velho Mundo, realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Os sécs. XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos de tal relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que produtos como o vinho assumem o papel de protagonistas das trocas comerciais. Os estudos confirmam que o relacionamento da Ilha com o exterior não se resumia apenas a estas situações. À margem das importantes vias e mercados, subsistem outros fatores que ativaram também a economia madeirense desde o séc. XV. As conexões com os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) e com os afastados (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) foram já motivo de aprofundada explanação, que propiciou a valorização da estrutura comercial. A praça comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano e no litoral americano, e rosário de ilhas da América Central. No primeiro destino, destaca-se a costa marroquina, onde os Portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelos ilhéus. No séc. XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, surge um novo destino e mercado, que pautou as relações nas centúrias posteriores. O novo mundo e mercado significaram tanto a esperança de enriquecimento, como a forma de assegurar a posse de bens fundiários. O Atlântico não é só uma imensa massa de água polvilhada de ilhas, associando-se a uma larga tradição histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o seu nome. Assim, deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e arquipélagos que se tornaram relevantes no processo histórico do oceano, quase sempre como intermediários entre o mar-alto e os portos litorais dos continentes europeu, africano e americano. No Atlântico, as ilhas anicham-se, de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano, pois apenas os Açores, Santa Helena, Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam. As ilhas foram também espaços criadores de riqueza, sendo a agricultura a principal aposta. Esta exploração obedeceu às exigências da subsistência das populações e às solicitações do mercado externo face aos produtos de exportação. A valorização socioeconómica dos espaços insulares não foi unilinear, dependendo da confluência de dois fatores: primeiro, dos rumos da expansão atlântica e dos níveis de expressão em cada um; depois, das condições propiciadoras de cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou não de uma população autóctone. Nos sécs. XV e XVI, as ilhas e os arquipélagos firmaram um lugar de relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela função de escala económica ou mista: com a função de escala, surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha; como espaço económico, temos as Antilhas e a Madeira; e com a dupla função, económica e de escala, os arquipélagos das Canárias, dos Açores, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe. O papel da cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (como a vinha e os cereais), não se resumiu apenas à intervenção no processo económico, sendo este produto marcado por evidentes especificidades capazes de moldarem a sociedade, que dele se serviu para firmar a sua dimensão económica. A importância que o sector comercial lhe atribuiu transformou-a numa cultura dominante em todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer os contornos de uma nova realidade social. Foi precisamente esta tendência que levou a historiografia a definir o período da afirmação deste produto como o “ciclo do açúcar”. A omnipresença da cultura e as múltiplas implicações que gerou nos espaços em que foi cultivada levaram alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de análise: os ciclos de produção assentes na monocultura. Deste modo, o ciclo do açúcar resultava, não da exclusiva afirmação da cultura, mas da sua dominância ou hegemonia no sistema de trocas. Neste contexto, a grande aposta das autoridades assentou na definição de um regime de policultura capaz de garantir uma estabilidade económica à principal riqueza da Ilha, que continuava a ser a exploração agrícola. Primeiro, procurava-se assegurar o necessário equilíbrio entre as culturas de subsistência e de mercado, de forma que as primeiras pudessem suprir o mais possível as necessidades das populações. Depois, no quadro das culturas de exportação, promoveu-se uma diversificação, de acordo com as solicitações do mercado. Desde o Gov. José Silvestre Ribeiro, com a grande exposição industrial no palácio de S. Lourenço, em 1850, que se vinha apostando na criação ou incentivo de indústrias artesanais com potencialidades económicas nas exportações. Assim, assistiu-se à aposta nos bordados, nas obras de vimes, nos laticínios e nas conservas de peixe. O dealbar do séc. XX foi fértil no aparecimento de pequenas unidades industriais para suprir as carências da Ilha. Temos, assim, as fábricas de velas de estearina, de pregos, adubos químicos, tintas, telha de cimento, bolachas e biscoitos, massas alimentícias e bebidas. Perante este quadro, Fernando Augusto da Silva afirmava, em 1921, que, embora a Madeira fosse uma região mais agrícola que industrial, indústrias havia que se podiam considerar vigorosas e outras que prometiam vantagens, sendo já mais ou menos lucrativas. Este fenómeno era também gerador de novos empregos, sendo os trabalhadores recrutados entre a mão de obra rural, o que pode ser considerado o princípio de uma das vias que, conjuntamente com a emigração, está na origem do êxodo rural que se consolidará com a Segunda Guerra Mundial. Os primeiros resultados da política de diversificação e culturas começaram a surgir de imediato. Desde 1938, a Ilha produzia excedentes que exportava para o continente português e para alguns países europeus, como Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Alemanha e Itália, bem como para África e para os Açores, por força do incentivo da delegação da Junta Nacional de Exportações de Fruta no Funchal, criada em 1936, e do Grémio dos Exportadores de Frutas e Produtos Hortícolas da Madeira. Também não poderá esquecer-se os diversos viveiros promovidos pela estação agrária da Madeira em várias freguesias, como Ribeira Brava, Santana, Caniçal e Santo da Serra. De acordo com dados fornecidos por Ramon Honorato Rodrigues, a bananeira era a cultura de maior rentabilidade, quando comparada com a vinha ou cana-de-açúcar. Esta situação da valorização económica do produto prende-se com a demanda que o mesmo tinha nos mercados externos. Os dados disponíveis são esclarecedores relativamente às mudanças ocorridas na agricultura madeirense. Os produtos tradicionais foram perdendo importância e o estatuto de culturas ricas, surgindo outros com maior rentabilidade. É certo que a bananeira era uma cultura promissora, mas outras culturas de subsistência não lhe ficavam atrás. O principal resultado desta situação foi um nivelamento por baixo da riqueza, cavando-se cada vez mais o fosso do mundo rural e propiciando-se a emigração em catadupa para a Venezuela, a África do Sul e a Austrália. Neste longo processo, um conjunto restrito de produtos agrícolas teve uma função primordial, assumindo-se tais produtos como catalisadores da animação social e económica, ou definidores de uma diversa realidade societal. Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho e o trigo, primeiro, e o açúcar depois surgem como elementos aglutinadores de uma peculiar vivência com inevitáveis implicações políticas e urbanísticas. Os primeiros materializam a necessária garantia das condições de subsistência e do ritual cristão, enquanto o último encerra a ambição e voracidade mercantil da nova burguesia atlântico-mediterrânica, que fez da Madeira o principal pilar da sua afirmação na economia atlântica e mundial. O processo é irreversível, de modo que, em consonância com os movimentos económicos, sucede-se uma catadupa de produtos com valor utilitário para a sociedade insular ou com capacidade adequada para ativar as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu à economia agrícola, no segundo ele reparte-se entre os serviços, as indústrias artesanais (vimes e bordado) e, de novo, os produtos agrícolas. Os interesses em causa, quanto ao processo de desenvolvimento económico, não são pacíficos, sendo feito de embates permanentes entre a necessária manutenção da subsistência e a animação comercial externa. Foi, pois, nesta luta permanente entre os produtos de uma subsistência familiar, local e insular e os impostos relacionados com a permanente solicitação externa que se alicerçou a economia da Ilha até ao limiar do séc. XIX. Os produtos mencionados revelam-se fulcrais para a compreensão da evolução da realidade socioeconómica madeirense. Para dar conta de tal processo, deveremos, antes de mais, salientar que a tradição mediterrânico-atlântica, que define a realidade peninsular, se repercutiu, inevitavelmente, na estrutura agrária e, por conseguinte, no impacto ecológico que acompanhou a expansão atlântica. Dos portos do reino saíram as sementes, utensílios e homens que lançaram as bases dessa nova vivência atlântica e insular. A par disso, as novas realidades civilizacionais americanas e índicas contribuíram para o acesso a novas culturas e produtos com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu. Da Europa, saíram os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da América e Índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame e o arroz. Nesse contexto, as ilhas atlânticas, pela sua posição charneira no relacionamento entre esses mundos, surgem como viveiros da aclimatação desses produtos às novas condições ecossistémicas. A Madeira deteve uma posição importante neste contexto, afirmando-se, no séc. XV, como o viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo – os cereais, o pastel, a vinha e a cana-de-açúcar. A expansão europeia veio revolucionar o cardápio da Europa, aumentando a gama de produtos e condimentos. A pouco e pouco, a tradição culinária europeia foi sendo destronada pelo exotismo das novas sensações gustativas que acabaram por afeiçoar o paladar. Mas, até que isso se generalizasse, foi necessário conduzir o cereal e o vinho aos locais mais recônditos. Assim, as embarcações que sulcavam o oceano levavam nos seus porões, para além das manufaturas e bugigangas aliciadoras das populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito. Se o cereal podia encontrar produtos similares nas colónias europeias, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com o vinho, que era desconhecido e incapaz de se adaptar às suas condições mesológicas. Desta forma, o vinho foi conduzido da Europa ou das ilhas até aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu, consistindo no companheiro inseparável dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos primeiros, servia de antídoto para o escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos servia como recordação ou devaneio hilariante da terra-mãe. O vinho consistiu, assim, num dos principais elementos de união das gentes europeias na gesta da expansão além-Atlântico. Nas primeiras décadas oitocentistas, o vinho perde a sua posição preferencial nas trocas com o exterior. Quer na Madeira, quer fora, depara-se com uma conjuntura difícil, dominada pela fome e emigração. Essa precariedade da economia madeirense não derivou apenas da sua posição dependente em relação ao velho continente, mas também das diminutas possibilidades de usufruto concedidas pelos 741 km2 de superfície da Ilha. Neste contexto, salienta-se o papel do cabouqueiro, colono que recebe das principais gentes da Ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que estas receberam como benesse. Esse investimento da sua capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças, árvores de fruto, latadas, etc. É, assim, o colono que lança as bases dessa revolução técnico-agrícola, sendo um dos principais obreiros dessa harmoniosa paisagem rural. Os proprietários preferiam os bulícios ribeirinhos da cidade ou do burgo que tentavam erguer, fazendo com que a arquitetura e o viver quotidiano se adaptassem à medida dos réditos acumulados com o comércio do açúcar e do vinho. Empenhados nas lides administrativas ou entretidos nos jogos de pela e de canas, estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano. No princípio da ocupação da Ilha, as necessidades do cardápio e ritual cristãos comandaram a seleção das sementes que acompanharam os povoadores. As sementes do precioso cereal acompanham os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração vegetativa. A fertilidade do solo, resultante do seu estado virgem e das cinzas fertilizadoras das queimadas, fizeram elevar a produção a níveis nunca antes atingidos, criando excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e das praças do Norte de África. Até à déc. de 70 do séc. XV, a Madeira firma a sua posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois, a favor dos Açores, que passam a assumir uma posição dominante na política e na economia frumentárias do Atlântico. A Madeira inverte, assim, a sua situação: de área excedentária, a Ilha passa a uma posição de dependência em relação aos celeiros açoriano, canário e europeu. O estabelecimento de uma rota obrigatória a partir do fornecimento de cereal açoriano à Madeira criará as condições necessárias à afirmação da cultura da cana sacarina, produto tão insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senhorio e da Coroa na cultura deste novo produto conduziu à afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlântico-insular. A partir de então, os interesses mercantis dominam a dinâmica agrária madeirense. Na Ilha, as searas dão lugar aos canaviais, enquanto as vinhas se mantêm de modo insistente numa posição de destaque. Se o cereal pouco contribuía para aumentar os réditos dos seus intervenientes, o mesmo não se poderá dizer em relação ao açúcar e ao vinho, que, a seu tempo, contribuíram para o enriquecimento das gentes da Ilha. A própria Coroa e o senhorio fizeram depender grande parte das suas despesas ordinárias dessa fonte de receita. A par disso, o enobrecimento da vila, e futura cidade, do Funchal fez-se à custa desses dinheiros. O Funchal avançou para poente e adquiriu fama em novos e potenciais mercados. O vinho Madeira foi, sem dúvida, o que mais se evidenciou no universo das ilhas, e de forma especial na Madeira. O luzidio rubinéctar, que continua a encher os cálices de cristal, é não só a materialização da pujança económica presente, mas também o testemunho de um passado histórico de riqueza. Prende-o à Ilha uma tradição de mais de cinco séculos. Nele, refletem-se as épocas de progresso e de crise. Porém, no esquecimento de todos fica, quase sempre, a parte amarga da labuta diária do colono no campo e nas adegas, o árduo trabalho das vindimas, o alarido dos borracheiros. Para recriarmos essa ambiência passada, torna-se necessário olhar os restos materiais e ler os documentos, a partir dos quais ainda é possível desbobinar o filme do quotidiano de luta que se esconde por entre a ferrugem, a traça e o pó. O vinho Madeira, celebrado por poetas e apreciado por monarcas, príncipes, militares, exploradores e expedicionários, perdeu paulatinamente, ao longo do séc. XX, parte significativa do mercado, fruto da conjuntura criada nos finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX. A procura deste produto obrigou o madeirense a utilizar todo o vinho e a acelerar o processo de envelhecimento, de modo a satisfazer os pedidos. No entanto, a abertura dos mercados conduziu ao fastio a partir de 1814. Depois, as doenças acabaram com as cepas de boa qualidade, fazendo-as substituir pelo produtor direto, que se manteve lado a lado com as cepas europeias, numa promiscuidade pouco adequada à preservação da qualidade. O passado recente anunciou o retorno das castas tradicionais e abriu portas a novos momentos de riqueza. A presença da vinha na Madeira, associada aos primeiros colonos, é uma inevitabilidade do mundo cristão. O ritual religioso fez do pão e do vinho os elementos substanciais da sua prática, tornando-os símbolos da essência da vida humana e de Cristo. Ambos foram companheiros da expansão da cristandade, sendo responsáveis pela revolução dos hábitos alimentares. A partir do séc. VII, comer pão e beber vinho simbolizavam para o mundo cristão o sustento humano. Em meados do séc. XV, com o arranque do processo de ocupação e de aproveitamento da Ilha, é dada como certa a introdução de videiras do reino e, mais tarde, das célebres cepas do Mediterrâneo. João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, que receberam o domínio das capitanias do arquipélago sob a direção do Monarca e infante D. Henrique, procederam ao desbravamento e cultivo da terra, plantando as primeiras culturas trazidas do reino, nas quais se incluíam as cepas. O vinho Madeira adquiriu desde logo fama no mundo colonial, tornando-se na bebida preferida do militar e do aventureiro na América ou na Ásia. Escolhido pela aristocracia, manteve lugar cativo no mercado londrino, europeu e colonial. Perante isto, a partir do último quartel do séc. XVI, o ilhéu fez mudar os canaviais por vinhedos, ao mesmo tempo que conquistou novas terras à floresta, a sul e a norte da Ilha. Porém, embalado pela excessiva procura do vinho, o madeirense esqueceu-se de assegurar a autossuficiência. O vinho era a sua fonte de rendimento e a única moeda de troca para assegurar o alimento, a indumentária e as manufaturas, daqui resultando uma troca desigual para o madeirense e muito rentável para o inglês. No séc. XV, o vinho competia com o trigo e o açúcar, assumindo uma posição de relevo na economia local. Os trigais e os canaviais foram dando lugar às latadas e às balseiras, e a vinha tornou-se na cultura quase exclusiva. Tudo isto projetou o vinho para o primeiro lugar na atividade económica da Ilha, posição que manteve por mais de três séculos. O ilhéu apostou, assim, desde o último quartel do séc. XVI, na cultura da vinha, tirando dela o necessário para se sustentar, manter uma vida de luxo e construir sumptuosos palácios, igrejas e conventos. Entre o séc. XVII e princípios do XIX, a Madeira viveu embalada pela opulência do comércio do vinho. O madeirense, com tão avultados proventos, deixou-se vencer pelo luxo, habituou-se à vida cortesã e copiou os hábitos ingleses. A política exclusiva da cultura da vinha, imposta pelo mercantilismo inglês, mereceu a reprovação, quer do Gov. e Cap.-Gen. José. A. Sá Pereira, através de um regimento de agricultura para o Porto Santo, quer do Corr. e desembargador António Rodrigues Veloso, nas instruções que deixou, em 1782, na Câmara da Calheta. Mas foi tudo em vão, visto que ninguém foi capaz de travar a “febre vitícola”, nem de convencer o viticultor a diversificar as culturas da terra. Vivia-se um momento de grande procura do vinho no mercado internacional e as colheitas eram insuficientes para satisfazer a incessante procura. Perante tão desusada solicitação e à falta de melhor, socorriam-se dos vinhos do norte da Ilha e mesmo dos Açores e das Canárias para saciar o sedento colonialista. O comerciante inglês que surgiu a partir do séc. XVII soube tirar o máximo partido do produto, fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que o aguardavam nos quatro cantos do mundo. Vários fatores fizeram com que o inglês se instalasse na Ilha e se afirmasse como o principal negociante do vinho, nomeadamente as condições favoráveis exaradas nos tratados luso-britânicos e o favorecimento que as regulamentações britânicas do comércio colonial atribuíram à Madeira. Assim, o movimento de exportação do vinho da Madeira nos sécs. XVIII e XIX liga-se, de modo direto, ao traçado das rotas marítimas coloniais inglesas que tinham passagem obrigatória na Ilha. São as rotas da Inglaterra colonial que fazem do Funchal o porto de refresco e de carga para o vinho no percurso para as Índias Ocidentais e Orientais, de onde regressavam pela rota dos Açores, com o recheio colonial. Também os navios portugueses da rota das Índias ou do Brasil escalavam a Ilha, onde recebiam o vinho para as praças lusas. São ainda os navios ingleses que se dirigem à Madeira com manufaturas, retornando por Gibraltar, Lisboa ou Porto. Também os navios norte-americanos trazem as farinhas para sustento diário do madeirense, regressando carregados de vinho. Por tudo isto, o vinho madeirense conquistou o mercado britânico em África, Ásia e América, afirmando-se, até meados do séc. XIX, como a bebida dos funcionários e militares das colónias. Com o movimento independentista das colónias, todos regressaram à terra de origem trazendo o vinho na bagagem. Seiscentos anos depois da introdução da vinha na Madeira, estavam ainda presentes na memória os tempos áureos da apreciação e do comércio do vinho, apesar das dificuldades que pelo caminho surgiram. À euforia da procura sucedeu-se a crise dos mercados, agravada pela presença das doenças que atacaram a vinha (oídio e filoxera). A crise do sector produtivo, resultante de fatores botânicos, alastrou a todo o espaço vitícola, com efeitos semelhantes na economia e no mercado do vinho. Perdeu-se a ligação ancestral com as tradicionais castas europeias, mas, em contrapartida, descobriram-se novas variedades americanas. As dificuldades do negócio conduziram à debandada dos agentes que haviam traçado o mercado. No entanto, a Madeira conseguiu paulatinamente recuperar ou conquistar novos mercados. O séc. XVII foi o momento de viragem no mercado atlântico do vinho, conseguindo a Ilha levar a melhor na preferência do mercado norte-americano e das colónias das Antilhas. Para além disso, o vinho Madeira tornou-se, como vimos, numa moda do quotidiano das colónias britânicas. A vinha e o vinho assumem, assim, particular destaque na caracterização do processo histórico madeirense ao longo destes 600 anos de labor. Desde os primórdios da ocupação da Ilha, este produto manteve a mesma vivacidade na vida agrícola e no comércio. Os demais não tiveram capacidade suficiente para resistir à concorrência desenfreada de novos e potenciais mercados fornecedores de aquém e além-mar. Apenas o vinho resistiu à concorrência dos Açores, das Canárias, da Europa e do cabo da Boa Esperança, mantendo o tradicional grupo de apreciadores no velho e no novo mundos. Também a história do açúcar na Madeira se confunde com a conjuntura de expansão europeia e com os momentos de fulgor do arquipélago. A sua presença é multissecular e deixou rastros evidentes na sociedade madeirense. Dos sécs. XV e XVI, ficaram os imponentes monumentos, pinturas e peças de ourivesaria que foram comprados com os proventos do açúcar, e que, na sua maioria, foram colocados no Museu de Arte Sacra do Funchal. Do séc. XIX e do primeiro quartel do séc. XX, perduram ainda a maioria dos engenhos da nova vaga de cultura dos canaviais. Nesta altura, a cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora sobretudo do álcool e da aguardente. Foi certamente neste momento que surgiu a tão afamada poncha, irmã do ponche de Cabo Verde e da caipirinha do Brasil. O açúcar é, entre todos os produtos a que, no Ocidente, se atribuiu valor comercial, o que foi alvo de maiores inovações no seu fabrico. Note-se que, no caso do fabrico do vinho, a tecnologia pouco mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a necessidade de permanente atualização no que respeita ao açúcar, situação que se tornou mais clara no séc. XVIII com a concorrência da beterraba. O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A cana sacarina tem um período útil de vida em que a percentagem de sacarose é mais elevada. Assim, a cana está, em determinado momento, pronta para ser colhida, representando cada dia a mais que passe uma perda para o produto. Depois de cortada, tem pouco mais de 48 h para ser moída e cozida; caso contrário, começa a perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade de acelerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tecnológicas, que cobrem o processo de corte, esmagamento e cozedura. A isto junta-se a necessidade do aumento da mão de obra, que se fez à custa de escravos africanos. A cana-de-açúcar não está, porém, na origem da escravidão africana, mas no processo de afirmação da mesma a partir da Madeira. Quando a cultura sacarina se fazia em pequenas parcelas, a maior parte destas questões não se colocava. No entanto, quando se avançou para uma produção em larga escala, houve necessidade de encontrar soluções capazes de responder aos novos desafios. A viragem aconteceu, na Madeira, a partir de meados do séc. XV e implicou mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escravatura dos indígenas das Canárias e dos negros da costa da Guiné. É por isso que se assinalam, a partir do exemplo da Madeira, importantes inovações tecnológicas no sistema de moenda da cana com a generalização do sistema de cilindros. A história tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de tecnologia inovadora, que contribuiu para revolucionar a economia mundial. Os homens que circularam no espaço atlântico foram, pois, portadores de uma cultura tecnológica que divulgaram nos quatro cantos e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos madeirenses foi atribuída uma missão especial nos primórdios deste processo. O facto de os arquipélagos da Madeira e das Canárias terem sido meios de ligação da nova cultura económica do atlântico ocidental não quer dizer que tivesse havido uma transplantação total e igual para os novos espaços. As condições ambientais e os obreiros da transformação eram outros, como diversa foi a realidade que o produto gerou. Tal perspetiva deverá resultar das ciladas inerentes ao método de análise do processo histórico de forma retrospetiva, no qual, por vezes, o facto surge como a imagem e como a consequência. Tal como provaram alguns estudos do séc. XX sobre a situação da economia açucareira do Mediterrâneo Atlântico, a conjuntura deste espaço é diversa da americana, seja ela insular ou continental. Por outro lado, também não se poderá colocar ao mesmo nível o caso de São Tomé, que, embora situado no sector ocidental do oceano, aproxima-se mais da realidade antilhana que dos arquipélagos da Madeira e das Canárias. A ideia de que a civilização do açúcar teve apenas uma forma de expressão no Atlântico Ocidental e Oriental deu origem a afirmações precipitadas, no âmbito da análise da economia e da sociedade, que lhe serviram de base. A historiografia associou ao açúcar, desde muito cedo, a escravatura, fazendo jus à afirmação de A. Antonil, segundo a qual os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho. Aqui também a relação não nos surge tão transparente como à primeira vista pode parecer. As Cruzadas, de acordo com a historiografia europeia, foram o princípio da expansão da cultura açucareira e da vinculação aos escravos. Nas colónias italianas do Mediterrâneo Oriental, surgem os primeiros indícios da nova dinâmica social, que passaria à Sicília e, depois, à Madeira, expandindo-se a partir deste arquipélago no Atlântico. Diz-se, ainda, que a ligação do escravo, negro ou não, à cultura dos canaviais foi uma invenção do Ocidente cristão, não tendo lugar no mundo muçulmano. Diferente é, todavia, a opinião de Yoro Fall, que encontra testemunhos evidentes dessa relação no usufruto de mão de obra negra pelas plantações muçulmanas do Egito e de Marrocos. Sucede que a escravatura da Madeira não assumiu uma posição similar à de Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Antilhas, não obstante o surto evidente de produção açucareira. Aí, ao invés daquilo que tem lugar nestes espaços, o escravo não dominou as relações sociais de produção. Existiu, sob a condição de operário especializado ou não, mas a sua posição não era dominante, tal como sucedia nas áreas supracitadas. Por fim, é de notar que a hipervalorização do açúcar na história da Madeira levou alguns aventureiros e progenitores de teorias de vanguarda a estabelecer também uma forma peculiar de urbanização do Funchal, de acordo com a sua presença. Deste modo, ao Funchal do séc. XVI chamam, sem saberem e explicarem porquê, cidade do açúcar, quando na realidade a expressão urbanística da cana-de-açúcar é manifestada pela ruralidade. O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da Ilha. Sucedeu assim até meados do séc. XVI, mas, a partir de finais do séc. XIX, tudo mudou. Assim, com os lucros advindos desse produto ergueram-se igrejas – a Sé do Funchal é um exemplo disso – e amplos palácios que se rechearam de obras de arte de importação, testemunhos evidentes que passaram a constar no Museu de Arte Sacra. A arte flamenga na Ilha é também um dom do açúcar. O progresso socioeconómico da Madeira e o seu protagonismo na expansão atlântica – nos Descobrimentos e defesa das praças africanas – só foram, assim, possíveis à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença de condição social, fruíram da riqueza. Até a opulência e luxúria da própria Coroa, lá longe no reino, foi conseguida, durante algum tempo, com o açúcar que esta arrecadava na Ilha. Na Madeira, um dos aspetos mais evidentes da revolução tecnológica iniciada no séc. XV prende-se com a capacidade do europeu de adaptar as técnicas de transformação conhecidas às circunstâncias e exigências de culturas e produtos tão desafiantes como a cana e o açúcar. O tributo de outras culturas foi evidente. Ao vinho foi-se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado, estamos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de aproveitamento das diversas fontes de energia. A tração animal, bem como a força motriz do vento e da água, foram usadas em simultâneo com os cereais e a cana sacarina. Por vezes, a mesma estrutura assume uma dupla função. Sucedeu assim na Madeira com o engenho da Ribeira Brava, posterior Museu Etnográfico, no qual a estrutura de aproveitamento da força motriz da água servia um engenho de cana e um moinho de cereais. As grandes questões deste período prendiam-se com a importância da Madeira resultante da expansão dos canaviais no espaço atlântico e da afirmação do açúcar no mercado europeu. Durante muito tempo, o estudo sobre o açúcar madeirense que teve maior visibilidade internacional foi o de Virgínia Rau e Borges Macedo sobre o livro dos estimos de 1494, em que a temática fundamental é a questão da propriedade. A esse, podemos juntar os textos de Fernando Jasmins Pereira, que, como os de Carlos Montenegro Miguel, Joel Serrão e Ernesto Gonçalves, não tiveram muita divulgação. A incidência temática recaiu quase só nos aspetos relacionados com o sistema de propriedade e com o comércio do açúcar no mercado europeu, ficando esquecidos aspetos fundamentais, como a tecnologia dos engenhos e o fabrico do açúcar. Nos últimos decénios do séc. XX, por força da realização de colóquios e do aparecimento de revistas, a temática açucareira voltou a motivar o interesse dos estudiosos. Neste contexto, é de assinalar os estudos de David Ferreira Gouveia, que equacionou alguns problemas de forma inovadora. A partir da segunda metade do séc. XVIII, assistiu-se à revelação da Madeira como estância para o turismo terapêutico, mercê das então exaltadas qualidades profiláticas do seu clima na cura da tuberculose, que cativaram a atenção de novos forasteiros. A tísica propiciou à Ilha, ao longo do séc. XIX, o convívio com poetas, escritores, políticos e aristocratas. Não obstante a polémica criada em torno das possibilidades deste sistema de cura, a Ilha permaneceu por muito tempo como local de acolhimento desses doentes, sendo considerada a primeira e principal estância de cura e convalescença do velho continente. Foi a presença, cada vez mais assídua, de tais doentes que provocou a necessidade de criação de infraestruturas de apoio: sanatórios, hospedagens e agentes, que serviam de intermediários entre esses forasteiros e os proprietários de tais espaços de acolhimento. Estes últimos foram o prelúdio dos posteriores agentes de viagens. O turismo, tal como hoje o entendemos, dava então os seus primeiros passos. Foi, pois, como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infraestruturas hoteleiras e que o turismo passou a ser uma atividade organizada e com uma função relevante na economia da Ilha. Mais uma vez, o inglês foi o protagonista. O turismo caminhou lado a lado com o vinho e o aparecimento de novas atividades. A vinha persistiu nas latadas e fez-se companheira dos vimieiros e bordadeiras. Esta harmonia revertia a favor da Ilha e tornava possível a existência de várias formas de atividade que garantiam a sobrevivência. A variedade foi a receita certa para manter de pé, por algum tempo, a frágil economia insular. Na déc. de 40, o comércio, a navegação e o turismo foram os grandes propulsores do desenvolvimento insular. As atividades em torno da obra de vimes e dos bordados tiveram nos estrangeiros, principalmente nos Ingleses, os seus principais promotores. A primeira metade do séc. XX foi marcada por profundas mudanças na economia madeirense, representando, para aqueles que a viveram, um momento para esquecer. Primeiro as guerras mundiais (1914-1919 e 1939-1945) e, depois, os problemas políticos e económicos dificultaram bastante a vida do madeirense. A guerra evidenciou a fragilidade da economia da Ilha e a sua extrema dependência face ao mercado externo. Os problemas económicos dão origem a convulsões sociais que se misturam com as políticas, assistindo-se, em fevereiro de 1931, à Revolta das Farinhas, a que se seguiu, em 1936, a Revolta do Leite. Para muitos madeirenses a solução foi a emigração para o Brasil, Venezuela, USA e Curaçau, que funcionou como válvula de escape para a miséria da sociedade. As medidas do Governo, com a criação da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos e as suas iniciativas, atenuaram os efeitos da crise em algumas famílias. Começava aqui um plano de fomento de infraestruturas consideradas primordiais para o progresso da Ilha. Assim, assistiu-se à reorganização do sistema de regadio, que iria permitir um maior aproveitamento agrícola através de novas levadas, e ao delineamento de um plano viário, que permitiria a aproximação das diversas localidades da Madeira. No passado, foram as condições do meio que fizeram da Ilha o principal motivo de atração turística. Nos sécs. XX-XXI, o turista é outro e por isso também as exigências são diferentes. Assim, aos motivos ambientais aliam-se os culturais, passando os dois a andar de braço dado. No fundo, é a simbiose do grand tour europeu com o turismo terapêutico insular. A economia insular  A geografia é determinante na função económica a atribuir aos espaços humanizados. Neste sentido, as condições particulares da Madeira definiram uma vocação eminentemente agrícola. A aposta nos serviços, como o turismo, surgiu por acaso e por influência britânica. No mundo insular atlântico, o arquipélago da Madeira assume uma posição particular, fruto da quase total ausência da dimensão arquipelágica. Na verdade, são apenas duas ilhas que mereceram ocupação humana, mas uma, o Porto Santo, pelas dificuldades de abastecimento de água, não permitiu a definição de uma situação socioeconómica assente na complementaridade dos espaços. Enquanto nos Açores e Canárias, devido à existência de diversas ilhas, existiram formas de exploração agrícola assente na complementaridade, no caso madeirense esta deverá buscar-se dentro do espaço da Ilha ou nos arquipélagos vizinhos. A Madeira apresenta-se, em termos orográficos, com múltiplas condições adversas ao avanço da exploração agrícola do solo. A configuração piramidal, dominada por uma costa alta cortada pelas bacias das ribeiras, fruto da erosão provocada pela força das ribeiras, torna o acesso difícil e limita as possibilidades da agricultura. A costa elevada condiciona a navegação costeira, que, até à déc. de 50 do séc. XX, foi o meio de contacto entre as diversas localidades. A orografia dificultava o transporte terrestre, pelo que apenas o automóvel do séc. XX conseguiu vencer os veleiros e vapores costeiros. Por tudo isto, o processo de povoamento foi condicionado. A falta de água levou ao quase abandono do Porto Santo e, na Madeira, as dificuldades de penetração no interior conduziram à existência de um povoamento costeiro, assente nas clareiras abertas pelas ribeiras, áreas de fácil acesso, mas também férteis, por força das aluviões de terras trazidas pela água. O acesso a norte, muito limitado por terra e mar, conduziu a que esta área tardasse na ocupação e valorização económica em relação ao que sucedeu na vertente sul. A configuração geográfica condiciona ainda a diversidade de microclimas, o que conduz à valorização das chamadas fajãs ou à possibilidade de escalonamento das culturas em altitude, procurando aproveitar as condições climáticas. Estas cambiantes permitem que, dentro do espaço da Ilha, se possa estabelecer uma complementaridade assente nas culturas de subsistência e mercado externo. Todavia, a tendência dominante da exploração do solo foram as culturas com grande valor económico, por força da demanda do mercado externo. A partir daqui, definiram-se ciclos ou, melhor dizendo, períodos de produtos dominantes, como foi o caso dos cereais, da cana-de-açúcar, do vinho e da banana. A área agrícola da Ilha, bastante limitada desde o início da ocupação, obrigou a uma exploração intensiva do solo, o que provocou diversas dificuldades na exploração agrícola – com o esgotamento do solo a obrigar ao sistema de pousio ou rotação de culturas – que limitaram as possibilidades de afirmação de uma produção em larga escala capaz de concorrer em pé de igualdade no mercado. É neste contexto que podemos assinalar a luta hercúlea do madeirense pela conquista de terra através da construção de poios em locais íngremes ou com elevada inclinação, que se tornaram numa das dominantes da paisagem madeirense e que provam a luta secular do seu habitante contra as condições adversas do solo. A possibilidade de sucesso de uma cultura não dependia tanto das condições da Ilha, mas do mercado. Enquanto a Ilha produzia açúcar de forma isolada, os madeirenses conseguiram elevada riqueza, mas, quando teve de competir com outros mercados, perdeu capacidade de intervenção por força da limitação do espaço e das condicionantes atrás anunciadas. Situação diferente sucedeu com o vinho, dadas as circunstâncias políticas que permitiram a fixação inglesa e o facto de este produto ter características específicas, sendo capaz de chegar a qualquer sítio em perfeitas condições. Neste caso, foram as características próprias do produto, e não da exploração agrícola, que favorecem a sua posição preferencial no mercado. A ocupação de um novo espaço obedece a determinados requisitos. Primeiro, deve propiciar condições para que sejam garantidas as condições de sobrevivência das populações. Assim, para além da disponibilidade de água, deve apresentar um solo adequado ao cultivo dos produtos básicos da subsistência, que no caso dos europeus do séc. XV assentava nos cereais e na vinha. Estas exigências são ainda mais importantes quando se fala de ilhas isoladas, onde as condições de acesso a outros espaços estão muito condicionadas por força do nível de desenvolvimento da navegação à vela. Na Madeira, o processo de povoamento foi muito rápido por força da inexistência de populações e da necessidade de ocupação deste espaço para assegurar o controlo do espaço atlântico. Nos primeiros 600 anos de ocupação humana do arquipélago, a riqueza dos madeirenses foi gerada por força do seu esforço. Um solo de recursos limitados e de difícil domínio constituiu um pesado fardo no quotidiano que chegou até aos nossos dias. Por outro lado, o avanço do povoamento e da população conduziram a alguns problemas. Os recursos da terra, por serem mal distribuídos e limitados, não se ajustavam ao crescimento populacional, obrigando, desde o início, à abertura de válvulas de escape como a emigração. Até meados do séc. XIX, podemos afirmar que a agricultura foi dominada por uma permanente tensão entre os interesses da subsistência e aquilo que demandava o mercado. Esta realidade é testemunhada de forma clara por Giulio Landi, em 1530: “A Ilha produziria maior quantidade se semeasse. Mas a ambição das riquezas faz com que os habitantes descuidando-se... se dediquem apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maior proveito” (ARAGÃO, 1981, 84). A crise do vinho colocou a necessidade de repensar os produtos dominantes e as formas de exploração económica. As autoridades foram determinadas no combate à tendência para uma exploração de monocultivo. A aposta estava num sistema de policultura, em que se misturavam as culturas de subsistência com aquelas que manifestavam valor mercantil. Deste modo, o momento da segunda metade da centúria oitocentista foi fértil na experimentação de uma diversidade de culturas com valor mercantil e da mercantilização de algumas atividades artesanais, como o bordado e a obra de vimes. A par disso, desde o séc. XVI que se vinha a experimentar novas culturas e frutos com valor alimentar, assumindo-se a Ilha como um dos espaços privilegiados de adaptação dos produtos do Novo Mundo. Os madeirenses rapidamente se habituaram aos novos sabores, pelo que, de uma alimentação tradicional assente nos cereais, se avançou rapidamente para outra baseada em novos produtos, como a batata, o inhame e a farinha de milho. Tudo isto aconteceu de uma forma clara a partir do séc. XIX e consolidou-se nos primeiros decénios do seguinte. O processo económico, quando assume uma posição de sucesso, mercê da inserção no mercado mundial, conduz a uma forma de exploração intensiva que provoca inevitavelmente o desequilíbrio entre aquilo que o quadro natural possibilita e o que o Homem exige. Na Madeira, a exploração económica fez-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações do mercado exterior, o que contribuiu ainda mais para agravar a relação entre o Homem e o quadro natural, arrastando os espaços para uma situação de total deterioração. O primeiro testemunho surge já em meados do séc. XV com Cadamosto: “As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia. A situação resulta da solicitação para a exploração intensiva por obrigação geral dos madeirenses em abastecer as cidades do reino e praças africanas de cereal” (Id., Ibid., 37). O cereal, que no início da ocupação do solo havia sido a cultura da prosperidade, rapidamente cedeu lugar aos canaviais, que em pouco tempo dominaram o espaço agrícola. A indústria para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro natural, lançando a Ilha num processo de desflorestação, de consequências imprevisíveis, e provocando a exaustão do solo agrícola. A situação é testemunhada, em 1689, por John Ovington: “A fertilidade da Ilha decaiu muito relativamente ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, como estéreis. A aridez de muitas das suas terras atribuem-na simploriamente ao aumento dos seus pecados” (Id., Ibid., 201). A opulência foi efémera, pois, a partir da terceira década do séc. XVI, o açúcar madeirense foi destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo a preferência em favor das Canárias, São Tomé e Brasil, que aparecem com preços mais competitivos. No entanto, a persistência de alguns lavradores, a fama da superior qualidade e a procura da doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura dos canaviais se mantivesse por largos anos, atingindo, em momentos de crise nos mercados americanos, alguma pujança. Ainda assim, como a cultura estava irremediavelmente condenada, o madeirense, a partir de meados do séc. XVI, foi forçado a canalizar as atenções para as vinhas, fazendo com que estas assumissem o espaço deixado pelos canaviais. Desta forma, por mais de dois séculos, a vinha e o vinho foram os principais aglutinadores das atividades económicas da Ilha, dando ao meio rural e urbano uma desusada animação. O Funchal cresceu em monumentalidade e as principais famílias reforçaram a posição económica. A mudança abalou a estrutura produtiva. Assim, enquanto o açúcar exigia apenas um complexo industrial, o engenho onde decorria a respetiva safra, o vinho necessitava de espaços distintos: o lagar, onde as uvas se transformam no saboroso mosto, e os armazéns da cidade, onde este fermenta e é preparado para atingir os necessários aroma e bouquet exigidos pelo mercado. Deste modo, o agricultor, colono ou não, detém apenas o controlo da viticultura, ficando reservado ao mercador o processo de vinificação. A conjuntura da primeira metade de Oitocentos, marcada pelos conflitos europeus e guerras de independência das colónias, e associada aos fatores de origem botânica (com o aparecimento do oídio, em 1852, e da filoxera, em 1872), conduziu ao paulatino apagamento da pujança económica do vinho. Como corolário disto, surge a fome nos anos 40 e, nas décs. de 50 e 80, a sangria emigratória para o continente americano, onde o madeirense foi substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de 70 anos, a confusão institucional e económica alargou-se aos domínios social e alimentar. Para além dos novos alimentos que ganharam relevo na culinária madeirense, definiram-se políticas de reconversão e ensaio de novos produtos com valor comercial, como foi o caso do tabaco e do chá. A emigração de Oitocentos e do período pós-Segunda Guerra Mundial foi responsável por um acentuado processo de desertificação da Ilha, arrastando muitas terras para o abandono. Foi o início de um pousio para as terras, já esgotadas com a exploração intensiva das culturas de subsistência e exportação. Em pleno apogeu da indústria vinhateira, teve lugar a afirmação de um novo sector de serviços. Na segunda metade do séc. XVIII, a Ilha assumiu outro papel, tornando-se espaço de acolhimento de doentes. A Europa oferecia ao aristocrata britânico vários motivos para o grand tour cultural, mas as ilhas ofereciam a amenidade do seu clima e ambientes paradisíacos, num retorno implícito ao paraíso perdido. Na Madeira, o turismo começou a dar os primeiros passos na segunda metade do séc. XVIII, mas foi a partir de finais da centúria seguinte que se consolidou como sector de serviços na sociedade funchalense. Alguém terá dito que os promotores do turismo insular foram os Gregos, mas os primeiros turistas foram, sem dúvida, os Ingleses. Os Gregos celebraram, na prolixa criação literária, as delícias das ilhas situadas além das colunas de Hércules. Os arquipélagos da Madeira e das Canárias foram considerados a mansão dos deuses, o jardim das delícias, onde convivem os heróis da mitologia. Todavia, foram os Ingleses, ainda que muito mais tarde, a desfrutar da ambiência paradisíaca reservada aos deuses e heróis, escolhendo-a como rincão de permanência, breve ou prolongada. Diz-se até, segundo a lenda de Machim, que a primeira viagem de núpcias, embora ocasional, terá sido protagonizada por um casal inglês. Na verdade, foi a visão mítica, perpetuada nos relatos antigos ou reavivada nos testemunhos coevos, que despertou o desusado interesse do inglês pelas belezas aprazíveis da Madeira. O ilhéu, autêntico cabouqueiro e jardineiro deste rincão, estava por demais embrenhado na árdua tarefa de erguer paredes e arrotear os poios, e por isso mantinha-se alheio ao usufruto das delícias. Para ele, a beleza agreste dos declives não passava de mais um entrave na luta contra a natureza. Assim, enquanto o inglês se entretinha nos passeios a cavalo ou em rede pelos mais recônditos locais da Ilha, o madeirense cavava e traçava os poios. A verdadeira descoberta da Madeira foi obra dos Ingleses, ainda que tenha sido o Português a descobrir o caminho para aí chegar. A situação com que a agricultura madeirense se depara na segunda metade do séc. XIX pode ser entendida como o início do processo de transformação que irá marcar a vida do mundo rural. A transformação política, a partir de 1820, conduziu à desestruturação de tal mundo, acabando com algumas situações que marcavam o dia a dia do campo. Acabaram-se os senhorios, mas persistiu o contrato de colonia. A crise do vinho obrigou a repensar-se a forma de aproveitamento do solo, acabando-se definitivamente com a tendência para a aposta preferencial numa cultura. A grande aposta passou a estar na diversificação de culturas e na aposta firme nas indústrias. No reduzido quadro industrial, temos de realçar a iniciativa de estrangeiros, nomeadamente britânicos, como Page, Leacock e Hinton. Miss Phelps esteve na origem da comercialização do bordado em Inglaterra; já Leacock foi o principal promotor da obra de vimes e da aposta na cultura da bananeira, com a criação, em 1928, da The Ocean Islands Fruit & Co Ltd. No séc. XX, passados os anos conturbados da República, o Governo da Ditadura e do Estado Novo definiram uma política concertada de valorização da produção nacional apostada em assegurar a autossubsistência. Apenas no período pós-25 de Abril de 1974, o processo autonómico permitiu repensar os rumos da atividade agrícola. A aposta das autoridades foi para uma agricultura assente numa variedade de culturas. Às culturas tradicionais, ditas ricas, como era o caso dos cereais, cana-de-açúcar, vinha e banana, juntavam-se agora outras, conhecidas como pobres, que acabaram, no entanto, por adquirir valor económico no mercado regional e externo. De entre estas, podemos salientar a batata comum –ou semilha, para o madeirense –, a batata-doce, a cebola, a ervilha, o feijão, o tomate e a vaginha, ou feijão em vagem. Depois, podemos juntar um grupo variado de frutas: abacate, ameixa, amora, anona, araçá, castanha, cereja, cidra, damasco, figo, goiaba, jambo, laranja, limão, maça, manga, maracujá, marmelo, noz, nêspera, pero, pera, pêssego e pitanga. As exportações As conexões insulares resultam mais de fatores estranhos à progressão do trato comercial que às exigências e possibilidades de troca. O facto de as ilhas apostarem na mesma forma de agricultura, orientada para as necessidades internas ou do mercado colonial, não deixou grande espaço para um estreitamento dos contactos comerciais. Os produtos de subsistência nem sempre foram suficientes para suprir as carências e, no caso da exportação, preferiu-se outros mercados mais vantajosos, pois as ilhas ou arquipélagos vizinhos não ofereciam idênticas condições de lucro. Por outro lado, os produtos de exportação, seja para o mercado europeu, seja para o colonial, acabaram por levar ao afrontamento entre estes limitados mercados. O caso mais evidente é o comércio do vinho, que atinge nos três arquipélagos – Madeira, Açores e Canárias –, no decurso dos sécs. XVIII e XIX, idêntico protagonismo nas rotas externas, provocando por vezes alguma tensão. Perante isto, as possibilidades de troca interna no mercado insular incidem quase só nos produtos de subsistência – primeiro o trigo e, depois, o milho – e nalgumas manufaturas de reexportação. As últimas resultaram da forma como se estruturaram as rotas oceânicas e permitiram o protagonismo de certas ilhas como portos de apoio, em detrimento de outras. Todavia, no decurso do séc. XVIII e no seguinte, todas as ilhas faziam parte do roteiro das embarcações. Suplantadas as dificuldades técnicas, as rotas de navegação ajustaram-se às exigências e interesses do mercado e dos mercadores. O mercado das ilhas tornou-se numa importante e complementar rota de navegação no Atlântico. Fala-se de um circuito fechado, que compreende a metrópole, a Madeira e os Açores, ou o Mediterrâneo, a Madeira e a rota Canárias-Berberia. A questão do trigo é uma das dominantes da história da metrópole portuguesa e das ilhas. Aliás, no decurso do séc. XIX foi uma das importantes questões do debate político. Assim, a luta pelo pão parece ter sido uma constante da história insular, muito particularmente na Madeira. Para tal concorreu a desarticulação entre o movimento demográfico e a economia de aproveitamento do solo. Na Madeira, há uma aposta preferencial nos produtos de exportação, com grande solicitação nos mercados do novo e do velho mundos, o que afasta as culturas de subsistência das áreas pobres de cultivo e as aproxima dos grandes centros de exportação. Esta incessante luta pelo pão determina o relacionamento entre as ilhas em todo o processo histórico. O tráfico interinsular assenta fundamentalmente na redistribuição dos meios de subsistência, o que origina alguma complementaridade, mais evidente nos primórdios da criação das sociedades insulares que nos momentos posteriores. É nesta lógica de complementaridade que se definem os circuitos interinsulares e que ganha forma, à escala das ilhas, um novo mercado que enlaça o chamado Mediterrâneo Atlântico. Açores, Canárias e Madeira unem-se quando os interesses e conjunturas não são adversos. O abastecimento de cereais foi um dos principais incentivos à manutenção das relações interinsulares, que foram uma constante na história madeirense. Todavia, em qualquer dos momentos, o Mediterrâneo atlântico não foi autossuficiente, carecendo da importação do mercado europeu ou do americano. Este último mercado tornou-se uma realidade no decurso dos sécs. XVIII e XIX, funcionando para a Madeira como contrapartida ao vinho. No período entre 1727 e 1810, entraram no porto do Funchal 4297 embarcações com cereal ou farinha, sendo 2053 (48 %) da América do Norte, 799 (19 %) de Inglaterra e 687 (16 %) dos Açores. Disto decorre que a Madeira fazia depender a sua subsistência dos tradicionais mercados consumidores do vinho, a América e a Europa do Norte, que totalizavam mais de dois terços do negócio. As ilhas dos Açores e das Canárias afirmam-se como celeiro de provimento da Madeira. Desde 1516 que a Coroa se viu na necessidade de regulamentar o negócio dos Açores, forçando os agricultores ao abastecimento do mercado madeirense. Os açorianos sempre se mostraram renitentes, quer em momentos de penúria, quer de abundância, pois o comércio com outras áreas parecia-lhes mais vantajoso. Daí a insistência da Coroa relativamente à permanência desta via de suprimento das carências alimentares dos madeirenses. Esta posição açoriana foi uma constante. Afirmou-se no séc. XVI e continuou nas centúrias seguintes. Em meados do séc. XVIII, como reflexo da Guerra dos Sete Anos, tardavam a aparecer os navios americanos com cereal e farinha, pelo que foi necessário o recurso a outros mercados como os Açores, que não se mostrou interessado em tal ligação. A alternativa foi, mais uma vez, Cádis e Canárias. Analisando a relação dos valores da importação de bens alimentares e da saída de vinhos no período de 1784 a 1786, constatamos que a situação é favorável à Madeira, mas eram os Ingleses que arrecadavam todos os lucros, mercê da política de adiantamentos quanto à compra do vinho. Perante as constantes incursões corsárias nesta importante área de passagem dominada pela Madeira e pelos Açores, a parte portuguesa foi muito afetada, não só pelas presas que sofreu, mas também pelos constantes bloqueios das rotas de comércio das ilhas e do Brasil. A Madeira, por exemplo, com uma economia dependente do mercado externo, viveu algumas vezes momentos aflitivos, pois viu-se impedida de sair com o vinho e sem qualquer possibilidade de se reabastecer de comestíveis e manufaturas. Esta realidade surgiu no culminar da viragem da economia insular, no decurso da segunda metade do séc. XVII. A aposta no vinho como meio ativador das trocas externas e a definição do mercado nas colónias ou na Europa do Norte provocaram o desvio de tais rotas, que foi vantajoso para os intervenientes. Os Açores, que no decurso do séc. XVI, em aliança com as Canárias, detinham a missão de suprir as necessidades frumentárias da Ilha, perderam inexoravelmente tal função a favor do novo mercado conquistado com o comércio do vinho. No período de 1510 a 1640, as ilhas acudiram com 69 % do cereal consumido no Funchal, com evidente destaque para os Açores, que proveu 55%, enquanto a Europa se quedou numa posição muito inferior – 28%. A situação mudou no decurso do séc. XIX, com a revolução dos hábitos alimentares das gentes das ilhas. O milho assumiu protagonismo, associando-se agora à batata. A crise de fome na ilha da Madeira, em 1847, é precisamente provocada pela falta deste tubérculo, atacado pela doença. Um dos fatores fundamentais do processo socioeconómico madeirense, a partir de finais do séc. XV, prende-se com as crises de subsistência, resultantes da desarticulação entre o sector produtivo e o movimento demográfico. A conjuntura resultou de mecanismos da sociedade colonial, que estabelece a dependência entre a metrópole e as colónias, e destas entre si. A adequação do processo económico do Mediterrâneo atlântico à realidade comandou o processo interno e externo, e levou as ilhas ou arquipélagos autossuficientes a uma situação de dependência. Foi o caso dos Açores e das Canárias, onde uma situação inicial de equilíbrio da economia agrária favoreceu uma autossuficiência que foi paulatinamente desapareceu. Por outro lado, a aceleração do processo conduziu ao esvaziamento da realidade própria do Mediterrâneo Atlântico. A complementaridade, que no decurso dos sécs. XV e XVI se havia afirmado como um mecanismo de autodefesa da economia insular, converte-se em afrontamento desmedido, evidente no comércio do vinho ou na política do porto franquismo. O comércio O comércio interinsular é uma característica da história económica das ilhas entre os sécs. XV e XVII e resulta, fundamentalmente, da complementaridade. A isto acresce um conjunto diversificado de fatores que evidenciam tal aproximação, tornando-a imprescindível para a marcha do processo económico. A situação torna-se mais evidente para os arquipélagos dos Açores, das Canárias e da Madeira. Em Cabo Verde, não obstante a existência de uma comunidade de insulares e de algumas relações comerciais, não há este tipo de relacionamento e complementaridade do Mediterrâneo atlântico. É de notar que a Madeira, pela posição geográfica e processo económico, foi a ilha que mais usufruiu desta realidade. As trocas insulares incidem na necessidade de abastecimento de cereais, mecanismo indispensável para o equilíbrio do desenvolvimento económico. O arquipélago da Madeira dispõe apenas de duas ilhas, e a segunda adquire pouca importância económica. Daqui resulta que o processo económico, como muito bem entendeu a Coroa, só foi possível graças ao vínculo de complementaridade com outros arquipélagos. Foi, pois, nos Açores que a Coroa encontrou a solução, mas foi nas Canárias que os madeirenses melhor conseguiram levar por diante tal política. O relacionamento comercial com as ilhas dos Açores e das Canários pode ser considerado unidirecional, uma vez que quase só tem como objetivo abastecer a Madeira de cereais. É, aliás, o cereal o principal motor destes contactos, mesmo entre os Açores e as Canárias. No período de 1510 a 1640, contabilizamos a entrada de 196.087,5 fanegas de trigo no Funchal, das quais 135.777,5 provinham das ilhas, correspondendo aos Açores 10.800 e às Canárias 27.777,5. Nos sécs. XVIII e XIX, continua a manter-se o relacionamento da Madeira com os arquipélagos vizinhos, mas é na América e na Europa do Norte que a Ilha encontra o abastecimento de cereais. O recurso a novos mercados abastecedores é-lhe mais vantajoso, visto que lhe permite a troca pelo vinho, o que raramente sucedia nas Canárias e nos Açores. Na segunda metade do séc. XIX, os contactos interinsulares a partir da Madeira mostram-se ocasionais. Os mercados atlânticos: Brasil A partir do séc. XVII, uma das rotas privilegiadas do comércio das ilhas é o Brasil. No caso português, este mercado, mercê da política monopolista do Estado, manteve-se fechado até 1765, altura em que se acabou com o sistema exclusivo das frotas criado em 1649. A constituição da Companhia do Comércio do Brasil veio retirar às ilhas a possibilidade de comércio com o país. Daí a reclamação dos insulares, a quem foi dada, em 1652, a possibilidade de envio de três embarcações dos Açores e duas da Madeira. Maior empenho teve a Madeira no comércio com o Brasil, já no decurso do séc. XVI, pela necessidade de açúcar para suprir, em momentos de dificuldade da produção de tal bem na Ilha, o fabrico de conservas e de casquinha. No decurso dos sécs. XVI e XVII, manteve-se o afrontamento entre os produtores locais e os mercadores do açúcar brasileiro. A partir de meados do séc. XVII, o açúcar madeirense foi, paulatinamente, definhando, rendendo-se a indústria do doce ao açúcar do Brasil. Ao açúcar, juntaram-se os couros, as madeiras e os escravos. Neste contexto, releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco, que conseguiu estabelecer uma trama de negócios a partir do Funchal, tendo Lisboa, Angola e Brasil como vértice do triângulo. No caso da Madeira, foi proibida, em 1776, a entrada do vinho, aguardente e vinagre nas regiões do sul, o que veio reforçar a tradicional relação com os portos do nordeste brasileiro. A esta limitação juntam-se outras, que insistiam na proibição da reexportação de produtos estrangeiros, o que levou à reclamação das autoridades pelo pouco interesse em mantê-la. Deste modo, em 1748, fez-se aumentar o número de embarcações para quatro, dando mais campo de manobra para o investimento madeirense na rota. Da Europa à América do Norte  Nos primórdios da ocupação das ilhas, foi a Europa que definiu as rotas do comércio. Porém, com o evoluir do processo, a vinculação europeia perdeu importância, acabando por ceder lugar ao Novo Mundo, que, para as ilhas, corresponde sobretudo à costa africana e à América (do Sul, Central e do Norte). O Oriente é apenas uma miragem com alguns reflexos na economia açoriana, mercê da função de escala e apoio à navegação estabelecida na ilha Terceira. A Europa manteve-se sempre presente no mercado insular, catapultando aspetos dominantes do relacionamento externo. As primeiras culturas lançadas nas ilhas surgem, precisamente, para corresponder às necessidades do mercado europeu. Primeiro os cereais, depois a cana-de-açúcar e o pastel, eis os produtos que marcam essa situação de dependência. Os cereais, juntamente com o pastel, são a marca dos Açores e delimitam rotas de escoamento com destino ao reino, Europa do Norte e Norte de África. O pastel, que, nos sécs. XVI e XVII, adquiriu grande pujança no mercado açoriano, foi o produto que projetou os Açores, nomeadamente São Miguel, nas rotas do tráfico europeu internacional e que começou por estabelecer o vínculo ao Reino Unido, que sairia reforçado mais tarde, no séc. XIX, com a laranja. Ambos os produtos – pastel e laranja – definem um mercado e uma opção socioeconómica com reflexos evidentes no devir açoriano. Na Madeira e nas Canárias, foi o açúcar que delineou o forte vínculo europeu. Também neste contexto, e ainda que seja a Flandres o principal destino, a Europa do Norte adquire uma posição cimeira, seguida do Mediterrâneo. A metrópole e o Estado Ao nível económico e financeiro, a relação entre a Madeira e o continente revela-se na entrega de toda a riqueza da Ilha. As culturas agrícolas são impostas para servir os caprichos da metrópole e todo o lucro situa-se no sector da circulação fora da Ilha. Sucedeu assim com a cana-de-açúcar, que se transformou na galinha dos ovos de ouro para a Coroa portuguesa entre finais do séc. XV e princípios do seguinte. Toda a riqueza resultante da exploração económica, impostos incluídos, é orientada para fora do espaço que a cria. Tão pouco sucede um investimento na valorização do local. O pouco que retornava surge sob a forma de caridade da própria Coroa, de oferta. O Rei D. Manuel foi de todos o mais caridoso para com os madeirenses, pelos quais distribuiu benesses e obras de arte, mas também o que mais fruiu das riquezas da Ilha. As finanças do reino foram marcadas por um permanente déficit, pelo que a Coroa teve necessidade de se socorrer de diversos meios para saldar a diferença. Desde o séc. XIV que a forma mais usual de solucionar o problema era o recurso a pedidos e empréstimos. Era com estas formas de financiamento que a Coroa cobria o déficit e as despesas bélicas, bem como a boda do casamento dos príncipes. O vigor demonstrado pelos madeirenses na defesa dos seus interesses tem expressão na recusa ao pedido de empréstimo de 1478, sendo reforçado no papel do Senado da Câmara do Funchal. Na verdade, a Madeira era, desde 1433, um espaço fora do controle da Coroa, dependendo do mestrado da Ordem de Cristo e tendo o infante D. Henrique como senhor. Mas a sua riqueza estava na mira da Coroa, pelo que D. Manuel, que também foi senhor da Ilha, deu a machadada final no processo de autogoverno dos madeirenses ao proceder, em 1497, à “nacionalização” da Madeira. A partir de finais do séc. XV, toda a riqueza gerada deixou de pertencer ao senhorio e passou para o usufruto da Coroa, indo a tempo de financiar as grandes viagens oceânicas e a despesa da Casa Real. A partir daqui, é evidente que a Madeira perdeu a capacidade reivindicativa perante a Coroa. O centralismo régio está patente na submissão e pronto acatamento pela vereação de todos os regimentos e decretos régios. É evidente que, durante o séc. XV e o primeiro quartel do seguinte, a principal fonte de receita do mundo português estava no açúcar madeirense. As receitas advinham dos direitos lançados e do comércio do açúcar apurado. Os dados financeiros disponíveis não evidenciam de forma clara a situação. Perderam-se os livros de contas, mas os poucos que se podem consultar não nos atraiçoam. Primeiro o senhorio e depois a Coroa oneravam este produto com diversas tributações, que lhes permitiam amealhar elevadas quantias que usavam em benefício próprio, no pagamento de tenças, esmolas, empréstimos e dívidas. No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surge com o valor mais elevado das comparticipações dos novos espaços insulares, com 5,3 %. Até à déc. de 30 do séc. XVI, os réditos fiscais resultantes da produção e comércio do açúcar asseguraram parte importante das fontes de financiamento do reino e dos projetos expansionistas. Em 1529, com o Tratado de Saragoça, foi encontrada uma solução provisória que, a curto prazo, parecia agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000 ducados para assegurar a posse das Molucas, que afinal se encontravam dentro da área de influência de Portugal. Mais uma vez, é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o madeirense António de Abreu o primeiro explorador. Por outro lado, os madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. Também João Rodrigues Castelhano é referenciado como recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado da sua fazenda 300.000 reais. A este juntaram-se Fernão Teixeira com 150.000 reais e Gonçalo Fernandes com 200.000 reais. O pagamento fez-se nos anos de 1530-1531 à custa dos dinheiros resultantes dos direitos da Coroa sobre o açúcar. A Madeira, como centro gerador da riqueza do reino e da forma colonial da administração, não passou desapercebida aos locais e visitantes. No séc. XVIII, a promoção do comércio do vinho gerou de novo elevada riqueza, pelo que a Ilha parecia querer regressar aos velhos tempos da opulência açucareira. É dentro desta ambiência que James Cook refere, em 1768, que a Coroa arrecadava na Ilha 20.000 libras por ano, mas poderia dar o dobro se estivesse nas mãos de outro povo. Em 1827, outro súbdito inglês, cujo nome se desconhece, apontava o destino desta receita: “o Rei pagava todas as despesas das legações no estrangeiro (isto antes de 1820) com o excedente dos seus rendimentos da Madeira. Todos os anos era transferida para Londres, com esse fim, uma quantia de 50 a 80.000 libras” (VIEIRA, 2014, 411). O contraste entre esta crescente riqueza que todos os anos enchia os cofres do reino e as condições cada vez mais precárias da população madeirense é evidente. Também Paulo Dias de Almeida, sendo enviado à Ilha para proceder ao estudo da defesa e da rede viária, fez notar o quanto tal relação enchia os cofres do Estado. O séc. XIX foi um marco na plena afirmação do debate político, que para muitos madeirenses foi alicerçado nos combates pela defesa do torrão natal. As mudanças políticas tão pouco solucionaram as ancestrais questões. O combate político avivou os ideais autonómicos e conduziu ao estabelecimento da autonomia administrativa por carta de lei de 12 de junho de 1901. A República jacobina foi marcadamente centralista, e o movimento autonomista das primeiras décadas do séc. XX, apoiado nos sectores políticos mais conservadores da sociedade madeirense, fez desta orfandade e sangria financeira o cavalo de batalha para a luta autonómica. Note-se que eram redobradas as razões para tal, uma vez que o esforço de investimento financeiro do Estado na região não suplantava os 0,2 %, quando o contributo financeiro da Ilha para o todo nacional chegava aos 12,5 %. No caso das províncias ultramarinas, o panorama da despesa é distinto, atingindo-se, em 1914-1915, os 16 %. O contraste é evidente e mobilizador de alguns sectores políticos da sociedade madeirense. Um exemplo mais a provar o tratamento de tipo colonial nas aplicações financeiras do Estado na região está na forma como se procedia ao lançamento de infraestruturas imprescindíveis para o desenvolvimento da Ilha. Incluem-se neste caso as obras do porto do Funchal e as dos aproveitamentos hidroagrícolas e elétricos. Para o primeiro, foi criada, em 1913, a Junta Autónoma das Obras do Porto Funchal, com o objetivo de coordenar as referidas obras e conseguir os meios financeiros necessários, sendo-lhe para isso atribuído o direito de arrecadação do imposto sobre o tabaco. Entre 1931 e 1933, as obras custaram 5.353.000 escudos, enquanto a receita do imposto, entre 1923 e 1932, foi de 25.123.841 escudos, isto é, os gastos foram de apenas 21 %. Por outro lado, as obras contribuíram para um incremento do movimento do porto com repercussão direta nas receitas da Alfândega, que, a partir de 1927, quadruplicaram. A promoção do sistema de regadio e de eletrificação foi encargo da Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos criada em 1944. O investimento desta Comissão, entre 1944 e 1968, foi de 340.152 contos, em que a comparticipação do Estado foi de apenas 29 %, sendo o resto de autofinanciamento. O esforço contributivo da região no período do Estado Novo não foi devidamente recompensado com o investimento. Mesmo assim, é neste período que temos a maior incidência e preocupação do Estado no investimento reprodutivo, com empreendimentos vultuosos, como o porto, o aeroporto e os aproveitamentos hidroelétricos e hidroagrícolas. O problema financeiro pesou de forma evidente no debate político sobre a autonomia. Ademais, para a maioria dos intervenientes é evidente o contraste entre uma ilha que alimentava permanentemente os cofres de Lisboa e o abandono a que estava votada. Desde o ano 1976, a economia madeirense assumiu vários matizes, nos quais é notório o acompanhamento da economia regional consoante as fases de desenvolvimento vivenciadas pela RAM. Tal pode ser verificado através de uma análise comparativa daqueles que eram os motores da economia na déc. de 70 do séc. XX e os propulsores da mesma no séc. XXI. O sector primário foi aquele que apresentou claramente uma diminuição do seu peso relativo na atividade económica, sendo que a proporção do valor acrescentado bruto (VAB) do sector no VAB regional diminuiu consideravelmente. Dados referentes ao ano de 1995 permitem constatar que o sector que engloba as atividades da agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca representava 3,3 % do VAB da Região, proporção que diminuiu, sendo reportado um peso de 1,9 % no ano de 2012. Em detrimento dos sectores primário e secundário, o sector terciário afirmou-se como principal motor económico, realidade que pode ser explicada pela influência que a atividade turística assume, mas também pela modernização a que o sector empresarial foi sujeito, impulsionada pelo ritmo de desenvolvimento que a Região estava a apresentar. Naturalmente, não só o comércio e as atividades relacionadas com o sector hoteleiro e com a restauração permitiram que a preponderância do sector terciário se tornasse mais evidente. O sector dos serviços, como, por exemplo, aqueles que estão associados ao apoio das empresas, também contribuiu para isso. Se, no ano de 1995, o sector terciário representava 76,4 % do VAB regional, a proporção aumentou significativamente no espaço de cerca de 20 anos, fixando-se, no ano 2012, em 84, 8 %. As atividades administrativas e os serviços de apoio, que representavam 6,7 % do total regional em 1995, passaram a representar 12,4 % no ano 2012. Cabe destacar que, para colmatar as insuficiências que a RAM apresentava em termos de infraestruturas, foram direcionadas verbas provenientes, na sua grande maioria, de fundos comunitários. Note-se que o sector da construção representou 12,04 % do VAB regional em 1995, reduzindo-se essa percentagem para metade no ano 2012, o que denota um auge do sector ocasionado pelo investimento em obras públicas e nas edificações construídas pelo sector privado. Em termos de emprego, o sector empregou 13,3 % da população empregada em 1995, passando a empregar cerca de 10,6 % em 2012. Como é possível constatar, a evolução da RAM condicionou a caracterização sectorial da economia, tendo sido clara a afirmação do sector terciário, que, em 2011, dava emprego a cerca de três quartos da população empregada, nomeadamente a 73,13 %, representando cerca de 85,26 % do investimento na Região.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 02.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

teatro, história do

Em Portugal até ao séc. XV circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo. No séc. XVI a Igreja permite que o povo participe na liturgia, cujas formas são essencialmente dramáticas. Estas mantêm-se assim unidas aos costumes e festas populares, dando seguimento a uma corrente oposta à da erudição humanista da Renascença que valorizava as comédias clássicas. Com o surgimento de povoadores na ilha, como o moçárabe, a poesia de reminiscências medievais, une-se ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracterizando os primeiros esboços de arte referidas pelos autores. No séc. XVII, o teatro assume um papel de diversão e de reflexão crítica e nos séculos seguintes são fluentes os nomes de autores naturais da ilha ou que por ela tenham passado. No séc. XIX as publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Palavras-chave: teatro, drama, poesia dramática, liturgia cristã, povo, costumes, festas populares, Renascença (da Itália), comédias clássicas, povoadores, moçárabe, poesia de reminiscências medievais, composições árabes. O texto dramático integra-se no modo literário do drama. É constituído por um texto principal e por um texto secundário; enquanto o primeiro contém réplicas, atos linguísticos realizados pelas personagens, o segundo é formado por didascálicas ou indicações cénicas. No texto dramático monológico, apesar de não existirem réplicas, os elementos dialógicos podem estar presentes de forma implícita ou latente. Desprovido de narrador, a ação subordina-se às exigências do conflito, o tempo é relativamente condensado, o espaço é rarefeito, as personagens supérfluas são eliminadas e os episódios laterais são abolidos, dado destinar-se a ser representado e encenado por atores que, no palco, são peças fundamentais. O teatro tem origem na Grécia antiga, nas homenagens religiosas ao deus Dionísio. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes e Antífanes figuram entre os principais autores dramáticos deste período. A comédia, a tragédia, a tragicomédia, o auto e a farsa são as espécies que representam o género e prosperam ao longo dos séculos. A comédia tem o quotidiano como temática, satirizando os defeitos humanos e a sociedade em geral. Aristóteles defendia que era a imitação de seres humanos inferiores, não quanto a toda a espécie de vícios, mas apenas quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. As personagens eram estereótipos das debilidades humanas, como o rabugento, o avaro, o apaixonado e o mesquinho; clichês que se disseminam pela história, principalmente na Europa. A estrutura consiste numa situação inicial complicada, que finaliza bem. Ainda do ponto de vista de Aristóteles, a tragédia, imitação de uma ação de carácter elevado, suscita o terror e a piedade, e tem como objetivo a purificação das emoções. Tem um carácter mais sério e solene, e personagens humanas pertencentes às classes nobres, como reis e príncipes, que sofrem às mãos dos deuses e do destino. A estrutura parte de uma ação inicial feliz, que tem um final trágico. A temática é baseada no sofrimento e no infortúnio do protagonista. A tragicomédia é uma obra dramática que matiza elementos trágicos e cómicos ou risíveis. Aristóteles é também um dos primeiros pensadores a utilizar o conceito, salientando que os dois géneros utilizam na sua composição a mesma métrica, os mesmos cantos e os mesmos ritmos. O auto é uma peça curta, geralmente de conteúdo religioso ou profano e, sobretudo, simbólico, uma vez que as suas personagens não são humanas, mas entidades abstratas, como a hipocrisia, a bondade, a luxúria, a virtude, entre outras. É representado por ocasião das grandes festas religiosas, nos pátios ou no interior das igrejas, e muitas vezes nas praças. A farsa, surgida por volta do séc. XIV, é normalmente uma pequena peça teatral, que tem como objetivo satirizar os costumes e despertar o riso por meio da representação de situações ridículas, grotescas ou engraçadas. Na verdade, para António de Sousa Bastos, atendendo à etimologia, drama é toda a obra teatral, trágica, dramática, cómica ou burlesca; o termo evoluiu semanticamente, passando a designar qualquer peça teatral, em prosa ou verso, que constitua um meio-termo entre a tragédia e a comédia. Embora sério na essência, o drama admite todo o género de personagens e exprime toda a sorte de sentimentos. As peças dramáticas possuem um carácter comovedor e uma forma mais familiar do que a tragédia, mas aproximam-se dela pela natureza e complicação dos acontecimentos, tirando da comédia os seus processos de intriga, a linguagem natural e a cópia dos costumes e situações vulgares da vida. De modo mais preciso, António Sousa Bastos diz-nos o seguinte: “A peça literária é aquela cuja forma, mais ou menos teatral, é todavia primorosa no conceito, nos caracteres e especialmente na linguagem” (BASTOS, 1994, 84). É precisamente este conceito de peça que envolve o de literatura dramática. Deste modo, a representação teatral é inseparável de uma literatura que lhe dá corpo e que é a matéria que a sustenta. Em Portugal, mormente na Madeira, a literatura dramática acompanha a história da nação. Uma vez que circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo, pode afirmar-se que, até ao séc. XV, a fórmula de Shakespeare, “the form and pressure of the times” [a forma e a pressão dos tempos] não se aplica à realidade portuguesa. À medida que o elemento moçárabe que compõe a raça portuguesa perde relevância, o fisco, a enfiteuse manuelina, os dízimos, os exércitos permanentes, as ordens mendicantes, a desigualdade social e o fanatismo religioso dificultam a subsistência da classe social mais baixa e a sua arte espontânea e criadora. O elemento aristocrático ou leonês, que compõe a linha de fronteira entre Espanha e Portugal, vive na ociosidade da corte e promove passatempos nas festas reais, uma moda seguida na Europa, que os monarcas portugueses se prezam de imitar; condicionalismos que projetam as principais tradições da nação para as páginas das crónicas monásticas. O povo não as conhece, de modo que Portugal quase fica sem festas nacionais. Os ensaios dramáticos surgem a partir das tradições épicas da Idade Média de dois dialetos franceses, frequentemente chamados línguas do sim, a língua d’ oil e d’oc (“oc” significava “sim” no sul de França e “oil” tinha o mesmo significado no norte). A língua d’ oil vulgariza o nome de Bon Amis entre o povo. D. Sancho I concedeu o feudo de umas terras do Douro a um farsante ou bobo chamado Bonamis, a seu irmão, Acompaniado, e aos descendentes. Segundo Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo foi precisamente um serviço feudal grotesco que fez com que aparecesse em Portugal a palavra “arremedilho” que o estudioso interpreta como uma espécie de farsa mímica, “farsas em miniatura, dotadas de música e, sobretudo, de um ‘texto’ escrito segundo o esquema do contraste, pelo que a recitação deveria ser confiada a um par de atores pelo menos” (PICCHIO, 1964, 33); “embora, arrimidilum, longe de ser sinónimo de entremez ou farsa e de provar a vetusta existência de um ‘género’ típico da tradição dramática portuguesa, equivalia, pelo contrário, [...] a ‘imitação burlesca’ prometida ao soberano por jograis remedadores, isto é, por bobos cuja especialidade consistia em ridicularizar o próximo macaqueando-lhe o semblante” (Id., Ibid., 33-34). O conceito de bonifrates enraíza nesta época. Foi pela influência da língua d'oc na aristocracia portuguesa que nos primeiros séculos da monarquia se conheceram as “cortes de amor”, que têm vagas analogias com os espetáculos cénicos. No Cancioneiro da Ajuda, que exclui os géneros mais vulgares, nas cantigas de escárnio e de maldizer, existem versos que aludem àquelas “cortes”, ao debate entre damas e cavaleiros de uma casuística sentimental, de que são exemplo os seguintes: “E vej'a muitos aqui razoar / Que a mais grave coita de soflrer / Veela ome, e ren non lhe dizer, etc.” (BRAGA, 1870, 6). Por seu turno, o povo desconhece essa poesia subtil e canta as suas prosas e hinos farsis na liturgia cristã, até que a pressão do catolicismo lhe impõe silêncio. O espírito aristocrático procura banir o costume simples e natural do vulgo e proíbe uma poesia dramática arreigada a costumes populares. Deste modo, no séc. XVI, ao contrário do que se passa na centúria anterior, quando o teatro encontra condições sociais e mentais de desenvolvimento favoráveis, como os papas se tornam príncipes temporais, a Igreja mostra-se aristocrática e afasta o povo da participação na liturgia. Francisco I de França e o Parlamento são, por vezes, severos nas repressões para os que representam farsas e comédias políticas, aplicando-lhes a censura prévia. Cronologicamente, estas proibições coincidem com a condenação eclesiástica que se encontra geralmente transcrita nas Constituições episcopais portuguesas, que excluem da liturgia as representações populares. Em 1534, lê-se nas Constituições do Bispado de Évora: “Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas e seculares de qualquer estado ou condição que sejam, que não comam nas igrejas, nem bebam, com mesas nem sem mesas, nem cantem, nem bailem em elas, nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro delas sobre cousas profanas; nem se façam nas ditas igrejas ou adros delas jogos alguns, posto que sejam vigília de santos ou dalguma festa; nem representações que sejam da Paixão de Nosso Senhor J. C., ou da sua ressurreição, ou nascença, de dia nem de noite, sem nossa especial licença; por que de tais autos se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem escândalo no coração daqueles que não estão mui firmes na nossa santa fé católica, vendo as desordens que nisto se fazem” (BRAGA, 1898, 72). Repetem esta proibição de representar autos da Paixão, da ressurreição e da natividade nas igrejas as Constituições episcopais de Lisboa, em 1536, de Braga, em 1537, de Angra, em 1559, de Lamego, em 1561, de Miranda, em 1536, e do Funchal, em 1538. Contudo, consentem a persistência do costume com especial licença do ordinário ou bispo. Esta proibição canónica remete para a existência de um teatro hierático em Portugal nos três últimos séculos da Idade Média, que chega ainda à Madeira, e mostra também que não são somente espetáculos religiosos que se usam. As formas litúrgicas do cristianismo são eminentemente dramáticas e o povo, que não abandona rapidamente os costumes, toma parte nas cerimónias do culto. Embora se reconhecessem nesses autos hieráticos a persistência de costumes, as manifestações populares são toleradas com uma certa benevolência. Tal como se lê num decreto da Universidade de Paris em 1444: “Os nossos predecessores, que eram grandes personagens, permitiram estas festas. […] Nós não fazemos todas estas cousas a sério, mas por jogo, para nos divertirmos segundo o antigo costume, para que a tolice (folie) que nos é natural se expanda uma vez por ano. Os toneis de vinho rebentariam, se lhes não dessem ar por vezes […]. É por isso que consagramos alguns dias ás representações e chocarrices” (BRAGA, 1898, 73). Com este espírito, os mistérios, os milagres e as moralidades passam de formas hieráticas a farsas políticas e sarcásticas comédias burguesas. Gil Vicente apropria-se desses elementos tradicionais e exerce sobre eles o seu génio dramático. Na verdade, essas formas de teatro podem desenvolver dramas sacros, poemas narrativos e sequências líricas; outros ficam na espontaneidade dos costumes populares, como os dramas da vida quotidiana. Deste modo, as formas dramáticas mantêm-se unidas aos costumes e às festas populares e a obra de Gil Vicente, colocada na transição do séc. XV para o XVI, surge dessa tradição. As vigílias do Natal são a primeira forma da sua escrita e muitos dos seus autos continuaram a ser representados em igrejas. Inspirado no espírito de tolerância racional, resiste aos obstáculos, cuja tendência é reprimir a sua obra e a fundação do teatro nacional. Desprovidos de raízes étnicas e com simpatia pela Idade Média, os seus autos não poderiam vencer a corrente da erudição humanista da Renascença que impõe ao gosto da corte, da Universidade e dos solares da fidalguia as comédias clássicas e as suas imitações italianas. Garcia de Resende afirmava aliás que o criador do género dramático não fora Gil Vicente, mas o espanhol Juan del Enzina. Na verdade, Gil Vicente mantém o interesse e a atenção do povo, a sua obra tenta resistir ao Tribunal do Santo Ofício, à presunção das tragicomédias dos Jesuítas, que pretendem sobrepor-se ao teatro popular, e também às comédias clássicas. Para Duarte Ivo Cruz, um teatro litúrgico religioso, um teatro popular e jogralesco e um teatro de origem cortesã, provenientes da época medieval, atingem a faixa ocidental da Península Ibérica naquela época. Estes três ramos dramatúrgicos não são estanques, embora o filão litúrgico, quase todo perdido, tenha sido o mais praticado. Na Madeira, Balthazar Dias, nascido em finais do séc. XV, é considerado o principal contemporâneo de Gil Vicente e um dos principais expoentes da literatura dramática portuguesa. No entanto, já no alvor da centúria, afluem à Ilha, a passos brandos, povoadores como o moçárabe, elemento importante do povo que traz consigo o carácter português e o que a arte popular e tradicional possui de original. É precisamente a fusão com as “correntes estranhas”, transportadas pelos povoadores, que dá à literatura uma originalidade própria. A poesia de reminiscências medievais, unida ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracteriza os primeiros esboços de arte, a que vários autores fazem referência. Por seu lado, os capitães donatários dão continuidade à vida palaciana, já que a aristocracia permanece parte do tempo no continente, enquanto na Ilha se erguem os seus palacetes. Analisado o teor de várias composições de diversos poetas fidalgos madeirenses, pode verificar-se que se aproximam das do reino, como acontece com os poetas inseridos no Cancioneiro de Garcia de Resende. Autores como Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, o visconde do Porto da Cruz, o conde de Sabugosa, Francisco Trigoso de Aragão Morato, entre outros, fazem o historial dessa poesia de contornos dramáticos que tão bem caracteriza essa época. Atesta este estudioso que a forma mais usada nos divertimentos cénicos da corte de D. Afonso V e de D. João II é justamente a mímica, e que os momos, acompanhados de dança, nem sempre são mudos, já que alguns dizem palavras apropriadas ao carácter das pessoas que representam. No casamento da Infanta D. Leonor, precisamente irmã de D. Afonso V, com o Imperador Frederico III de Habsburgo, representam-se vários momos, a que um poeta do Cancioneiro Geral também chama autos, como pode ler-se no seguinte verso: “Eram vossos tempos Autos/Nas festas da Imperatriz/Mas agora calar chyz/Nem é tempo de crisautos” (fl. 47, v, col. 2.). Duarte de Brito é o autor dos versos e o visado é João Gomes da Ilha, dois madeirenses ilustrados constantes do Cancioneiro. Apesar da controvérsia sobre a naturalidade do autor, tal como a relata João de Freitas Branco, o compositor tem ligações à Ilha e a ilhéus e fornece dados de valor irrefutável sobre as criações literárias da época. Quanto a D. Afonso V, é por mais evidente que conhece a primeira Renascença da Itália: manda aí estudar os artistas portugueses e chega a visitar a corte francesa, na qual são muito usados os divertimentos dramáticos, tal como se pode ler no poema seguinte: “Por Framengos, Genoveses Froreniyns e Castelhanos/mal nos vindo/com seus novos entremezes dam-nos trinta mil avanos,/vam-se rindo” (BRAGA, 1970, 8). Também D. João II, à semelhança de seu pai, manda os artistas portugueses fazer aperfeiçoamento em Itália e mantém relações diretas com Angelo Poliziano, um dos primeiros que no séc. XV inicia em Itália a imitação do teatro clássico, e cuja obra-prima, Orféo, é escrita para uma festa palaciana. Nos divertimentos dos serões da corte de D. João II encontra-se uma representação cénica criada pelo conde de Vimioso, que Garcia de Resende conserva. O que se passa fora dos palácios, o popular, está pouco documentado e conduz a opiniões controversas, no que respeita à existência de uma literatura original, embora não seja completamente desconhecido. Relativamente a Baltazar Dias, não se sabe ao certo onde nasce, mas sabe-se que passa grande parte do tempo no continente, onde vem a falecer. Barbosa Machado, uma das principais e mais antigas fontes de conhecimento do autor, afirma “que foi um dos celebres poetas que floresceram no reinado de D. Sebastião, particularmente na composição de autos, com a circunstância de ser cego de nascimento” (MACHADO, I, 1741, 446). Nas mais diversas histórias de literatura e de dicionários de teatro, é citado como o “poeta popular” mais incontestável. Na verdade, os conhecimentos literários que revela mostram que aprendera as formas e os temas poéticos elementares da atmosfera espiritual da Ilha, o que lhe permitiu criar obra memorável. Tradições medievais, lendas de santos, gestos de paladinos, amores desventurados, mágoas de exílio e visões de peregrinos, são uma presença na alma dos insulares que marca o espírito deste poeta. A corrente humanista apenas o influencia ligeiramente, como se pode constatar num requerimento que dirige a D. João III para publicar os seus autos e trovas; no texto, declara que é natural da ilha da Madeira, que cantou vidas de santos, que animou na técnica gótica dos seus autos, que celebrou feitos de heróis portugueses, como D. João de Castro, e que riu dos disparates da época e da variedade das mulheres. Álvaro Rodrigues de Azevedo destaca-o como contemporâneo de D. Sebastião e autor de vários autos dramáticos, uns sacros e outros profanos, à semelhança de Gil Vicente. Parte das obras do autor, mencionadas por Inocêncio da Silva, tem grande divulgação em várias edições: Auto de St.º Aleixo, edições de 1613, 1616, 1638, 1749 e 1791, Auto de El-Rei Salomão, edição de 1613, Auto da Paixão de Cristo, edição de 1613, Auto da Feira da Ladra, edição de 1613, Auto de Santa Catharina, Virgem Mártir, edições de 1610, 1038, 1659, 1727, 1786, Auto da Malícia das Mulheres, edições de 1640 e 1793, Auto do Nascimento de Cristo, edição de 1665, Conselhos Para Bem Casar, edições de 1638, 1659, 1680, História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma, edição de 1660, Trovas de Arte Maior Sobre a Morte de D. João de Castro e Tragédia do Marquez de Mantua, edição 1665. No séc. XVII, Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723) enriquece a literatura dramática madeirense com a sua obra. É bacharel em leis, formado na Universidade de Coimbra entre 1686 e 1697. Em 1697, é nomeado ouvidor da Capitania do Funchal. São famosos os seus poemas à morte de D. Pedro II, sucedida em 1706, e um elogio dramático em honra do governador e capitão-general da ilha da Madeira, João de Saldanha da Gama, quando termina o seu governo em 1718. O elogio dramático, representado em 1718 pelas freiras de Santa Clara, possui um argumento simples. A peça, intitulada Residência do Governador e Capitão General da Ilha da Madeira, é uma obra de arte viva, cuja ação assume a função de pedagogia política, já que evidencia sentido de justiça e de razão, princípios que devem nortear a conduta humana perante um mundo cheio de controvérsias e de excessos. O objetivo é, precisamente, mostrar ao leitor e ao espectador essas imagens e abrir um espaço de reflexão sobre os princípios que devem orientar o comportamento dos homens. Decorrido num só ato e em seis cenas, o autor apresenta ao espetador uma espécie de julgamento em praça pública, em que as personagens principais não são mais do que (falsas) testemunhas de acusação e o réu é o Gov. João de Saldanha. Na estrutura interna, a ação é dividida em três partes: a exposição, que corresponde ao momento em que as personagens abstratas – a corte, a Ilha, a saudade, a religião, a justiça e a fama – vão sendo apresentadas, por ordem decrescente de importância; o conflito, que diz respeito aos argumentos de acusação que cada uma das personagens vai expondo contra o governador; e o desenlace, momento em que se chega a um veredicto final. A corte, símbolo do poder régio e da virtude soberana, é a primeira personagem a entrar em cena, a cantar e a incitar a que se apresentem as queixas relativas ao governador. O teatro assume um papel de diversão, de arma pedagógica e de espaço para a reflexão crítica, já que demonstra que o verdadeiro governador é aquele que é constante, humilde, justo, dono da verdade e da razão. Enquanto no séc. XVII apenas há registo do elogio dramático atrás referido, a partir da centúria seguinte abundam os nomes de autores naturais da Ilha ou que por ela passaram. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo Menezes, Sousa Bastos, Inocêncio da Silva e, mais recentemente, Luiz Francisco Rebello, fazem o historial dos múltiplos escritores e das principais obras dramáticas. Joaquim de Menezes e Ataíde (1765-1828) é o primeiro autor destacado, que Inocêncio da Silva considera um distinto escritor, apesar de a maioria das suas composições poéticas e dramáticas ter sido publicada por Luiz José Baiardo, seu secretário durante vários anos. Nascido na mesma década, Manuel Caetano Pimenta de Aguiar (1765-1832) inscreve o nome na história da literatura dramática da Madeira com uma vasta produção dramática, sendo por muitos considerado o precursor de Almeida Garrett. O curso de artes e ciências feito em França dá-lhe a intuição de que em Portugal não há um verdadeiro teatro, razão que o leva a cultivar os trágicos franceses. Com esse espírito, escreve tragédias, apresenta uma obra original e desperta o gosto para este género literário. Começa a publicar em 1816 e, num curto período, imprime dez tragédias escritas em verso, intituladas Virginia, Os Dois Irmãos Inimigos, D. João I, Arria, Destruição de Jerusalém, D. Sebastião em Africa, Conquista do Peru, Eudoxia Liciana, Morte de Socrates e Carácter dos Lusitanos. Fernando Augusto da Silva e Carlos Menezes citam a representação de um drama seu em três atos, intitulado A Festa do Olimpo, no Teatro Grande, em 1822. No último quartel do século, Luiz José Baiardo (n. 1775) é sobejamente conhecido por publicar em seu nome, como já se referiu, a obra de Joaquim de Menezes e Ataíde, bispo do Funchal. Dada a sua paixão pelo teatro e a sua inibição de figurar como autor, o clérigo cede a sua obra a Luiz José Baiardo, seu fâmulo, consentindo que a divulgue como sua. A partir de 1821, já em Lisboa, Baiardo escreve peças originais e traduz outras. Da sua autoria são: O Moiro de Ormuz, comédia mágica representada pela primeira vez no Teatro do Salitre, em 1826, Valadomir Elevado ao Throno de Seus Maiores, O Combate de Touros, Gullistan, O Marquez de Pomhal ou o Terremoto de 1785, A Virtude Triumphante ou os Mágicos de Granada, Hariadan Barha Roxa, As Luvas Amarellas, Christierno Rei de Dinamarca, Templo da Innocencia, Figaro, O Delator, Alberto I, O Caminho Escuro, Gullistan, Miguel Valadomir, etc. Em 1838, redige um periódico semanal, Atalaia dos Teatros, do qual saem alguns números, mostrando mais uma vez a paixão pela representação e pelo género dramático. José Anselmo Correia Henriques (1777-1831), natural da Ribeira Brava, segue a carreira diplomática em vários países europeus e também no Brasil, no Rio de Janeiro, onde desempenha cargos da confiança do príncipe regente, quando a corte e o governo português ali estão estabelecidos. Embora se tenha dedicado mais à poesia, cultiva a tragédia e a comédia, e publica traduções, nomeadamente de uma comédia intitulada A Escola do Escandalo, composta por Ricardo Brinsley Sheridan. Da sua autoria são as tragédias A Revolução de Portugal e Mesquita. A sua obra encontra-se publicada em Paris, Londres, Hamburgo, Veneza e Christiania, o que indica que terá passado algum tempo nessa cidade, no exercício de funções consulares ou diplomáticas. Luiz da Costa Pereira (1819-1893) é considerado um homem do teatro pelos autores do Elucidário Madeirense, dada a sua vocação para autor, ator, ensaiador e diretor técnico. Efetivamente, exerce o cargo de comissário régio no teatro D. Maria, e é professor de declamação e da arte de representar no Real Conservatório de Lisboa. Camilo Castelo Branco elogia o seu trabalho de encenador. Traduz e adapta à cena portuguesa algumas peças de teatro estrangeiro e escreve o livro Rudimentos da Arte Dramática, de que só publica a primeira parte. Entre as peças que traduz conta-se Calumnia, de Scribe. Manuel Luís Viana de Freitas (1820-1861) destaca-se com um drama intitulado D. Luiz d'Athayde, e por ser sócio correspondente do Instituto Dramático de Coimbra, dada a sua paixão pelo teatro. Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos (1822-1854) é redator do periódico Beija-Flor e funcionário público nas ilhas de Cabo Verde. Em 1845, publica no Funchal um drama intitulado Amor e Pátria, que foi estreou no teatro Concórdia, em 1844. Em Cabo Verde, é redator do Boletim Official, onde publica o romance Um Filho Chorado. João de Andrade Corvo (1824-1890) distingue-se como jornalista, político e escritor. O desempenho de elevados cargos públicos proporciona-lhe um conhecimento dos problemas reais do país e sensibilidade em assuntos de carácter social, como a abolição da escravatura e a emigração, e condu-lo ao público através do texto dramático. Na altura em que o oidium tuckerii chega à Madeira, Andrade Corvo desloca-se à Ilha a fim de estudar essa enfermidade da vinha. A peça O Alliciador retrata esses tempos, a situação dos camponeses, decorrente dos “contratos de colónia”, e os dramas do aliciamento e da emigração clandestina, uma necessidade para muitos madeirenses. O drama é representado no teatro D. Maria II, em Lisboa. Outro dos autores que se destaca é Álvaro Rodrigues de Azevedo (1824-1898). Após a obtenção da licenciatura em Direito, na Universidade de Coimbra, desloca-se de Vila Franca de Xira para o Funchal em 1856. A par da carreira de professor, faz investigação da história da Madeira, envolve-se na vida política, escreve para a imprensa, dirige periódicos e publica uma vasta obra. Sensível aos problemas sociais dos madeirenses, bem como aos seus usos e costumes, escreve o drama A Família do Demerarista, sobre o madeirense que enriquece nos países de emigração à custa do seu trabalho e regressa à terra natal com vontade de ajudar a família e os da terra – contrariando os retratos feitos por João de Nóbrega Soares e Andrade Corvo, que o descrevem como um explorador dos seus compatriotas. João de Nóbrega Soares (1831-1890) é professor e jornalista. Como escritor, cultiva vários géneros literários, entre eles o dramático. São de sua autoria as peças Qual dos Dois?, Um Quarto com Duas Camas e A Virtude Premiada. Esta peça é um drama de atualidade que contém no final um conjunto de notas sobre vários pontos geográficos da Guiana Inglesa que são, precisamente, o espaço em que se movimentam as várias personagens ligadas à emigração de madeirenses no ano de 1861. Na verdade, João de Nóbrega Soares viaja por África e pela América do Norte e percorre o trilho dos portugueses naquelas terras, o que lhe permite fazer retratos aproximados dos dramas de muitos conterrâneos seus ao longo do séc. XIX. A peça é representada no teatro Esperança, na Madeira, colhe os maiores aplausos, e o autor confirma que a literatura dramática é o género que melhor retrata o crer e o viver do povo. Ao escrever a peça, o seu principal objetivo fora esclarecer e proteger os camponeses que na época emigravam engajados para terras longínquas, à procura de trabalho e de uma vida melhor. M. Knowler visita a Madeira em 1845 e profere no Funchal uma série de seis conferências sobre poesia dramática, nas quais revela elevado conhecimento do assunto. Encontram-se publicadas em Inglaterra e contêm referências à passagem do autor pela Ilha. Eugénio Maximiliano Azevedo (1850-1911) inicia-se na escrita dramática ainda jovem, sobretudo com comédias. Fazem parte desse tempo Por Força!, Paulo, Santos de Casa... e Duas Crianças, representadas no Teatro Ginásio, entre 1873 e 1874, e Vida Airada, representada no teatro D. Maria, em 1875. Na mesma época traduz A Familia Mougrol, de grande sucesso no Teatro Ginásio, e Um Fura-vidas, imitada da comédia italiana Un Uomo d’Affari. Nas décs. de 80 e de 90 escreve Os Annos da Menina, O Epílogo, Cinta e Bordão, representadas no Teatro Ginásio e no teatro D. Maria, e O Crime das Picôas, representada no teatro do Príncipe Real. A peça original de maior valor é o drama histórico Ignez de Castro, representada no teatro Príncipe Real de Lisboa, na rua dos Condes, no teatro Príncipe Real do Porto, na rua Nova de Sá da Bandeira e, por fim, no teatro Lucinda, do Rio de Janeiro. Para uma sociedade de amadores faialenses escreve a comédia de costumes açorianos Ralham as comadres…, representada em 1879 no teatro União, da Horta. A peça é representada na Madeira em 1901. Do seu rol de traduções e de imitações, fazem parte Os Jesuitas, Tosca, Causa Celebre, Purgatório de Casados, A Mendiga, O Amor, O Convento do Diabo, As Surpresas do Divorcio, Naná, O Az de Paus, Os Filhos do Capitão Grant e A Honra. O primeiro trabalho do autor a aparecer no teatro é a comédia Entre a Vitima e o Carrasco, traduzida do espanhol. Para além de escritor dramático, é, em final de vida, crítico teatral e comissário régio do teatro Normal. O seu nome é uma presença constante na história do teatro madeirense, pelo impulso e apoio dado à subida ao palco da peça Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes. Também João de Freitas Branco (1854-1910) se distingue na literatura dramática, na crítica, na escrita de originais e na tradução de peças estrangeiras. Depois de ter viajado e permanecido alguns anos fora do país, em Inglaterra, França, e especialmente na Áustria, onde adquire conhecimentos de línguas estrangeiras, regressa a Portugal e divulga os trabalhos dos dramaturgos mais famosos do norte da Europa, Suécia, Dinamarca e Alemanha, traduzindo diretamente dos originais as suas principais obras. Entre elas, contam-se a Casa da Boneca e o Esteio da Sociedade, de Ibsen, Uma Fallencia, de Bjornson, Penedos do Inferno, de Blumenthal e O Fim de Sodoma, de Sudermann. Sousa Bastos, em A Carteira do Artista e no Diccionario do Theatro Portuguez, elenca a obra traduzida pelo madeirense e a que sobe aos palcos dos mais importantes teatros de Lisboa, o teatro D. Maria e o Teatro Ginásio. Luiz António Gonçalves de Freitas (1858-1904), chefe de repartição no Governo Civil de Lisboa, administrador de concelho e deputado, redige e colabora em importantes jornais, embora os trabalhos literários sejam a sua paixão. Aos 12 anos, em 1871, “publicava o seu primeiro livro original, Phantasias, ensaios litterarios e a sua tradução do Monge de Kremsmanster de Alphonse Karr” (BASTOS, 1898, 495). O seu primeiro trabalho do género dramático é a opereta escrita em verso A Pupila de Beltrão, para ser representada pelos alunos do 5.º ano do curso de Direito de 1879/1880. A peça é levada à cena pela primeira vez no Teatro Académico de Coimbra, em 1880. Em 1886, em homenagem a Leopoldo Carvalho, Noite de Núpcias é representada no Ginásio e posteriormente nos teatros da rua dos Condes e Avenida. Em 1897, sobe à cena no teatro da rua dos Condes a sua ópera cómica Pif! Puf! Publica também, entre dramas, comédias e operetas, À Beira do Abismo, Sob as Cinzas, traduzida de Charles Méronvel, O Club dos Perigosos, Rachel, Por Causa d´Um Cabelo, Pecados da Mocidade e Velha Farça. É sócio e diretor da empresa que explora o teatro Avenida, dado o seu gosto pelo drama e pela representação; traduz para esta empresa, em parceria com Sousa Bastos, uma opereta em três atos, Josephina Vendida por Suas Irmãs. João dos Reis Gomes (1869-1950), militar de carreira, professor do ensino secundário e técnico, jornalista e crítico de arte, na sua qualidade de autor, escreve obras de cariz histórico, filosófico e dramático. O Teatro e o Actor, em 1905, A Música e o Teatro, em 1919, e ainda Figuras de Teatro, em 1928, são obras que distinguem este escritor. Em 1912, escreve o drama Guiomar Teixeira, extraído da sua novela madeirense A Filha de Tristão das Damas. A peça é representada por amadores em 1913; pela Companhia Vitaliani-Duse em 1914; e em 1922, por ocasião das festas da comemoração do V centenário da descoberta da Madeira, novamente pelo primitivo grupo de amadores, embora com algumas substituições. A obra é um expoente da literatura dramática da Madeira, pelos motivos históricos retratados e porque a estreia oferece a novidade de fundir o cinema e a ação dramática. Efetivamente, é a primeira vez que em Portugal se utilizam efeitos especiais cinematográficos como o pano de fundo, e que estes se combinam com a representação dos atores. Maximiliano de Azevedo impulsiona a estreia da peça em Lisboa, dado ser um homem de teatro e ter conhecimentos que satisfaziam as ambições da representação do autor da peça. Francisco Bento de Gouveia (1874-1921) colabora numa revista que foi levada à cena no teatro Manuel de Arriaga. No final de século, em 1877, Olimpia Pio Fernandes escreve um drama intitulado Alda ou a Filha do Mar, que foi representado no Funchal. As principais cenas da peça são publicadas pela imprensa regional, com a qual colaborou. Francisco Jorge de Abreu (1878-1932) é jornalista de profissão. Além de muitos artigos disseminados por vários periódicos do Funchal, de Lisboa e do Porto, traduz várias peças teatrais. José Jorge Rodrigues dos Santos, ou apenas Jorge Santos (1879-1958), segue a carreira diplomática na Suécia e na Dinamarca. É autor de três peças dramáticas representadas no teatro nacional: em 1903, Crime de Amor, que põe em cena um caso de incesto, e A Festa da Actriz, uma derivação da estética naturalista; e, em 1908, Mar de Lágrimas, escrita em colaboração com João Gouveia. Escreve ainda Rosa Enamorada e uma peça de costumes madeirenses, Vinho Novo, entregue no teatro nacional em 1903, mas que não chegou a ser representada. João Gouveia (1880-1947) é um escritor apaixonado pela aeronáutica. Da sua autoria são duas peças levadas à cena no teatro nacional, nomeadamente Engano de Alma, em 1904, e Mar de Lágrimas, em 1908, com a colaboração do seu conterrâneo Jorge Santos. Em 1912, escreve Balões e Aeroplanos. Salienta-se, igualmente, Alberto Figueira Jardim (1882-1970), bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, professor do liceu do Funchal, colaborador de alguns jornais na região e autor de uma vasta obra, que escreve uma fábula trágica, Galateia, publicada no Funchal em 1920, e a comédia Honra, Drama e a Laranja de Califa, peça em dois atos. Alfredo Freitas Branco (1890-1975), também conhecido por Visconde do Porto da Cruz, escreve Madrinha de Guerra em 1919, uma comédia cuja ação é centrada em Lisboa no ano de 1917. No mesmo ano, publica um auto designado Auto da Primavera, para o qual seu primo Luís Freitas Branco escreve uma música, e, em 1922, publica a peça A Canção de Solveig. A estes autores junta-se Álvaro Leal (1891-1931), autor de revistas e de operetas, umas escritas individualmente, outras em coautoria, como A Conferência, uma adaptação do francês, em 1924, Aqui para Nós, revista em um ato e três quadros, Jesus!, peça sacra, episódio bíblico em três etapas, de parceria com Pedro Bandeira, Isso Era d’ Antes, revista em um prólogo, dois atos e seis quadras, com outros autores, Sol de Portugal, revista em dois atos e doze quadros, com Lourenço Rodrigues, Prata da Casa, série de oito quadros de conjunto, a imitar uma revista novamente em colaboração com Pedro Bandeira. Escreve também o melodrama O Alfinete egípcio, em colaboração com Carlos Ferreira, representado apenas em tradução espanhola. É ainda autor das comédias Pegadas na Areia, da qual foi colaborador Lourenço Rodrigues, representada no teatro nacional em 1930, e Nero, escrita com Guedes Vaz. Algumas destas peças encontram-se no Arquivo Distrital do Porto. Augusto Elmano Vieira (1893-1962), bacharel em Direito pela Universidade de Lisboa em 1920, exerce o jornalismo, a advocacia e é membro da Câmara Municipal do Funchal. Como escritor dramático, colabora na revista de costumes madeirenses A Madeira por Dentro, representada no teatro Dr. Manuel de Arriaga, e na opereta regional A Menina dos Bordados, representada no pavilhão Paris. Em 1915 escreve o episódio dramático A Ultima Bênção, publicado no Funchal, em 1917. A peça é representada no teatro Circo, do Funchal, e no teatro nacional, em Lisboa, com muito sucesso, dado a gente da Ilha ser muito sensível ao tema retratado, a emigração madeirense; a ação é, pois, fundamental para esclarecer tanto os que partem para destinos transatlânticos, como os que ficam, aguardando que os seus regressem depressa. João França (1908-1996) que escreve várias peças de teatro, entre dramas, farsas e comédias, levadas à cena no Funchal por amadores, entre 1924 e 1930, nas quais representa alguns papéis. Algumas constituem grande êxito, como Mimi, O Regenerado e Amor Sem Deus. Escreve também uma opereta, Zé do Telhado, representada no teatro Avenida, em 1944, uma adaptação de O Bobo, de Alexandre Herculano, publicada em 1964 com o título O Drama do Bobo, uma comédia, Um Mundo Àparte, premiada em 1970 no concurso de originais para o teatro Maria Matos, proibida pela censura, e o monólogo Sol nas Minhas Mãos. Em 1978 publica o drama O Emigrante, peça em que retrata a emigração madeirense para a América no primeiro lustro do séc. XX. João de Brito Câmara (1909-1967) publica, em 1943, no Funchal, o Auto da Lenda, que é a descrição poética da lenda que conta os amores de Ana d’Arfat e Machim, que em tempos idos terão chegado à Madeira. Alberto Figueira Gomes (n. 1913) foi um estudioso da história insular madeirense e das fontes das principais tradições poéticas. A publicação da obra Poesia e Dramaturgia Populares no Século XVI – Baltasar Dias vai ao encontro desse gosto do autor. Em 1965, publica Encontros no Pireu, peça em um ato. Ernesto Leal (1913-2005) publica a obra teatral Afonso III, “história fabulosa e irónica de um rei sem história”. Finalmente, António Aragão (Funchal, 1921-2008) é autor de uma única peça dramática, Desastre Nu, distinguida em 1980, na qual propõe uma visão despojada e desencantada do mundo tecnocrático seu contemporâneo, dada a sua ligação ao experimentalismo dos anos 60 e 70. Em termos conclusivos, e segundo os autores do Elucidário Madeirense, a literatura dramática na Madeira foi, no início, uma articulação entre o génio dramático dos criadores e a fome, a pobreza e a necessidade. As famílias ilustres dedicavam-se à filantropia, forma de sobressaírem socialmente, algo que distingue e caracteriza o teatro na Madeira. Afirma Derrida que, quando os povos atingem um certo grau de civilização, os espetáculos são uma necessidade, “uma energia […] a única arte da vida” (MATEUS, 1977, 36). No séc. XIX, principalmente, os títulos dos jornais e outras publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Ao longo dos séculos, organiza-se um movimento mundano de apoio ao teatro, do meio citadino ao rural, suscitando paixões e levando-o a desempenhar um papel importante no cenário político, social e cultural de cada época.   Elina Baptista (atualizado a 10.01.2017)

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calçada madeirense: bordados de pedra a preto e branco

No séc. XVI, Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra, trata com admiração e elogio as “calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, II, 117). De acordo com Sainz-Trueva, a utilização de seixos pretos e brancos na calçada madeirense atingiria o apogeu nos sécs. XVIII e XIX. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofrerá um grande declínio motivado, essencialmente, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa tradição, falta de mão de obra e de motivação da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos salários, menor disponibilidade da pedra natural local e utilização de novos tipos de materiais para pavimentação. Ainda segundo Sainz-Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da cidade e arredores ajudaram a apagar os traços mais característicos da Madeira antiga, cada vez mais confrontada com ventos do progresso, que nem sempre contemplam da melhor forma os testemunhos de uma herança secular” (SAINZ-TRUEVA, 1991, 132 e 133). A calçada madeirense é muito anterior à chamada calçada portuguesa, dela distinta, a qual utiliza pedra facetada, de morfologia aproximadamente cúbica ou paralelepipédica, de cores preta (identificada como sendo basalto) e cinzenta-escura, branca ou rosada (identificada como sendo calcário). A calçada portuguesa, nacional e internacionalmente prestigiada, foi criada em 1842 pelo Ten.-Cor. e Eng.º Eusébio Pinheiro Furtado, quando no comando do Batalhão de Caçadores 5, que, querendo combater o ócio dos seus soldados, os pôs a revestir a parada do quartel com pedrinhas pretas e brancas. A calçada madeirense constitui uma autêntica referência histórica e patrimonial do arquipélago e é um símbolo da geodiversidade litológica local, sendo por vezes confundida com a calçada portuguesa propriamente dita. Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram um conjunto de investigações com os seguintes objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada na calçada madeirense dos pontos de vista textural, petrográfico, químico, mineralógico e físico-mecânico; identificar os locais de proveniência da pedra natural; homenagear os profissionais com um papel ativo na preservação do secular trabalho que envolve a aplicação de pedra de seixo ou de calhau rolado, contribuindo desta forma para a preservação dos ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pedagógica de divulgação da calçada madeirense junto da população e das entidades competentes, sensibilizando-as para a importância da preservação desta técnica, em vez de se proceder à substituição da pedra natural por outros materiais; valorizar o património edificado e dignificar a arte dos trabalhos concebidos com pedra natural, pequena e rolada. Materiais e amostragem A pedra natural local, de origem vulcânica e sedimentar, potencialmente adequada à aplicação na calçada madeirense, e que foi objeto da referida investigação, foi amostrada em depósitos de praia, em pequenos afloramentos de rocha carbonatada e em obras de recuperação de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto Santo. Nos textos consultados e nos diálogos mantidos com alguns estudiosos e profissionais do sector é frequente referir-se serem os seixos brancos feitos de calcário originário de Portugal continental, tendo provavelmente servido de lastro em navios que outrora aportavam ao Funchal. Foi propósito da já mencionada investigação referir os locais de proveniência da pedra natural utilizada nas calçadas; tendo em conta, quer o levantamento já efetuado, quer a extensão da sua aplicação em todo o arquipélago, admite-se que a pedra aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, a recolha dos materiais está restringida a depósitos de algumas praias (figs. 1 e 2) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa Cruz), Madalena do Mar (Ponta de Sol) e Calhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de Dentro (Porto Santo) –, devidamente autorizada pelas autoridades regionais competentes (Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus da Região Autónoma da Madeira e capitania do Porto do Funchal). A amostragem dos materiais nas praias foi feita na baixa-mar, por duas razões (fig. 1): a primeira, porque a secção da praia é mais ampla; a segunda, porque a recolha de material é feita em maior segurança durante a maré baixa.   Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem entre as cotas 0-165 m, correspondendo-lhes idades compreendidas entre os 13,5 e os 18 milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo sido neles identificados foraminíferos, celentrados, briozoários, equinodermes, crustáceos, anelídeos e grande variedade de espécies de lamelibrânquios e de gastrópodes – isto é, nos calcários figuram quase todos os grandes grupos de invertebrados, bem como restos de seláceos e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzindo Silva atribui aos calcários da ilha do Porto Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edificada sob clima tropical a profundidade que não devia exceder os 40 m; normalmente, este tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa e/ou cor branca amarelada.No que diz respeito às rochas carbonatadas, identificadas como sendo calcários recifais marinhos, elas apresentam as cores seguintes: castanha-avermelhada, branca leitosa, branca amarelada ou branca avermelhada. Trata-se de materiais com origem no concelho de São Vicente, na ilha da Madeira (fig. 3), no ilhéu da Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra de Dentro, ilha do Porto Santo (fig. 4). No caso dos calcários que ocorrem no afloramento do sítio dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicente, eles são, essencialmente, recifais, associados a tufos de cor castanha-avermelhada, e aglomerados, cujos fósseis marinhos identificados correspondem a várias espécies de lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes, coraliários, crustáceos e foraminíferos. Dados de geocronologia isotópica apontam a idade de sete milhões de anos (Miocénico Superior) para os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do séc. XXI, puderam ser observados alguns dos antigos depósitos de calcário recifal no sítio do Furtado da Achada do Barrinho, Lameiros, ao percorrer o itinerário turístico-geológico denominado Rota da Cal (fig. 3).   No Museu de História Natural do Jardim Botânico da Madeira pode ser observado um rico e diversificado espólio de exemplares de fósseis marinhos originários das ilhas da Madeira e do Porto Santo. No conjunto, destacam-se, entre os fósseis mais representativos, lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes e algas coralinas, fósseis que apresentam, na generalidade, um elevado grau de preservação, situação que permite a fácil identificação das respetivas espécies. Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada aplicada na calçada madeirense observam-se os exo-esqueletos de várias espécies de fósseis marinhos (fig. 5). Aspetos texturais A população designa vulgarmente a pedra aplicada na calçada madeirense por seixo, calhau ou cascalho rolado – mas, em termos técnicos e científicos, as denominações seixo e calhau não têm o mesmo significado. Efetivamente, em termos técnicos e científicos, os referidos nomes correspondem a designações que estão intimamente relacionadas com aspetos texturais, isto é, com a dimensão e a forma das peças individuais do material pétreo. A escala granulométrica de Chester K. Wentworth, utilizada em sedimentologia, estabelece designações e limites dimensionais para as partículas constituintes dos sedimentos. Nesta escala, a designação calhau é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 256 mm e 64 mm, e a designação seixo é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 64 mm e 4 mm (fig. 6). Por outro lado, o estudo morfométrico dos materiais pétreos – isto é, o estudo das diferentes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na calçada – permite, de acordo com a classificação de Theodor Zingg, definir que eles apresentam, normalmente, forma oblata ou discoidal. Os seixos e calhaus de rocha vulcânica apresentam-se lisos, polidos, entre arredondados e bem arredondados, e a cor escura que exibem é normalmente devida à patine que vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da poluição e da sujidade acumulada. Tipologias e propriedades No âmbito da referida investigação, a caracterização petrográfica, mineralógica e química dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amostrados nas calçadas madeirenses foi realizada no departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das tipologias relevantes. No que diz respeito às rochas vulcânicas, utilizando a relação entre a percentagem de sílica (SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O) adotada no sistema classificativo das rochas vulcânicas proposto por Peter Francis, foi possível definir as litologias seguintes: traquibasalto, traquiandesito e traquito, que apresentam tonalidades que vão desde o cinzento-escuro até ao cinzento-claro (fig. 6); basalto, hawaiíto e representantes do grupo minor varieties, que inclui diversos tipos de rochas vulcânicas menos comuns; normalmente, estes tipos litológicos apresentam cor preta. Os resultados da análise química obtidos por fluorescência de raios X indicam que as amostras estudadas de seixos ou calhaus de calcário do arquipélago da Madeira apresentam teores muito baixos de sílica (SiO2) e de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200 ppm. Diferentemente, no caso das amostras de calcário utilizado em calçada portuguesa (técnica também presente no arquipélago da Madeira), provenientes das localidades de Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa, em Portugal continental, os teores de sílica (SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40 % e 3,19 %. Assim sendo, os resultados analíticos obtidos permitem identificar a origem do seixo e do calhau de calcário aplicado na calçada madeirense, a qual está relacionada com rochas carbonatadas locais (calcário recifal muito puro). De facto, as investigações realizadas mostram que a pedra calcária aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte das ilhas da Madeira e do Porto Santo (figs. 3, 4 e 5). Por sua vez, as propriedades físico-mecânicas dos principais tipos de pedra natural utilizados na calçada madeirense foram avaliadas no Laboratório de São Mamede de Infesta (Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (posteriormente, Laboratório Nacional de Energia e Geologia). A determinação da resistência ao desgaste por abrasão em vários provetes de pedra natural foi realizada através do método de desgaste de Capon. Os resultados obtidos permitem concluir que a rocha traquibasáltica é a que apresenta menor desgaste (0,6 mm), e que o calcário recifal é a rocha que apresenta maior desgaste (4,2 mm). Se observarmos alguns pavimentos pelos quais há grande circulação de pessoas, verificamos facilmente que a superfície superior e exposta da pedra calcária se apresenta plana, ou seja, com maior grau de desgaste, quando comparada com a superfície superior e exposta da pedra vulcânica contiguamente aplicada, que se apresenta abaulada ou convexa (fig. 7). Aplicação da calçada madeirense A calçada madeirense é uma manifestação do património insular madeirense, sendo também testemunho da atividade desenvolvida por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita na maior parte das vezes por mãos anónimas, revela a sensibilidade naïve dos seus autores (e.g., fig. 20) e é um testemunho cultural que merece ser divulgado e preservado. Na feitura da calçada madeirense, a aplicação dos materiais pétreos no terreno poderá realizar-se diretamente sobre uma camada de solo silto-argiloso (designado localmente por cerro). Caso contrário, a aplicação dos materiais passa por diversas etapas: preparação do fundo de caixa com aplicação de tout venant sobre o terreno e colocação de pó de pedra sobre o tout venant e tirada de pontos (fig. 8); colocação da pedra segundo o seu eixo maior (isto é, para um sistema de eixos XYZ, em que X representa o comprimento máximo, Y a largura máxima e Z a espessura máxima) (fig. 9); betonagem das juntas entre as pedras, com uma mistura líquida de calda de areia e cimento, numa proporção de três partes de areia para cinco de cimento (fig. 10); calcamento e nivelamento do pavimento com calcão mecânico e acabamento com maço de madeira de plátano (fig. 11); colocação de areia fina sobre o pavimento, com o objetivo de remover o excedente da calda de cimento e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o varrimento (fig. 12). Para se ter noção do grau de exigência que esta arte de pavimentação implica, marcou-se no chão, com motivo em espinha, a área de 1 m2. Verificou-se que em cada metro quadrado foram aplicados, em média, 1023 seixos. Este valor é elucidativo dos milhares de seixos que foram utilizados para fazer o pavimento de calçada madeirense que existe no jardim municipal do Funchal (fig. 13). Tendo em conta a proveniência dos materiais, pode dizer-se que se assemelham a praias que foram transferidas para o espaço urbano e rural. Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos Pessoa introduziu uma alteração à calçada madeirense tradicional – a variante de calçada madeirense com pedra partida; trata-se de um pavimento menos escorregadio e que oferece maior atrito ao calçado, permitindo melhor andamento e mais conforto (fig. 14).   Motivos A calçada madeirense pode ser construída utilizando unicamente calhaus e seixos de rochas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais ou menos escura, cuja monocromia é quebrada devido às diferentes orientações conferidas pela disposição dos materiais (figs. 14 e 17). Quando são utilizadas rochas vulcânicas e sedimentares, a policromia a preto e branco apresenta uma grande diversidade de padrões e temas geométricos e florais estilizados que ornamentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, palácios, casas, quintais e jardins (figs. 15-22). Muitos dos motivos dos pontos do bordado da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, corda, granitos e richelieu – foram aproveitados pelos calceteiros para serem representados na decoração da calçada madeirense. O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, é talvez o local que reúne a maior diversidade de padrões e de motivos geométricos e florais estilizados, com vários pontos de bordado da Madeira.   No pavimento, predomina geralmente o material mais abundante, isto é, calhaus e seixos de rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas rochas sedimentares para realçar alguns aspetos florais, brasões de armas, monogramas, datas e a cruz de Cristo (figs. 23 e 24). Os pavimentos de calçada madeirense apresentam pouca reflexão da luz e são facilmente limpos utilizando a tradicional vassoura de urze.   Preservação Em meados da segunda déc. do séc. XXI, a calçada foi modificada e adulterada em alguns espaços, com a aplicação de materiais estranhos a esta técnica e com a remoção de motivos. A pedra rolada foi substituída por cubos e paralelepípedos de mármore e coberta por argamassas de areia, cimento e material betuminoso, ou por alcatrão (figs. 25 e 26).   Na requalificação urbana que ocorreu no núcleo histórico de Câmara de Lobos, o antigo brasão do concelho – que estava colocado no adro da igreja de S. Sebastião, fazendo parte de um tapete de pedra rolada – deu lugar a um pavimento de “calçada madeirense” de blocos e calhaus partidos; perdeu-se, assim, o único exemplo de heráldica municipal em calçada madeirense construída no arquipélago, restando dela apenas registos fotográficos (fig. 27).Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na zona velha do Funchal, foi observada a existência de diferenças cromáticas entre as argamassas em algumas obras de recuperação, viu-se serem muito diferentes as dimensões dos seixos utilizados e serem os espaços entre pedras roladas – porque grandes – preenchidos por argamassa.  Nas travessas da Malta e do Redondo, o pavimento de calçada madeirense foi coberto por tapete betuminoso. Noutros locais, verificou-se ser total o abandono da calçada, como no caso dos passeios na estrada do João Abel de Freitas e na estrada da Boa Nova, e advir grande perigo – tanto para peões como para utilizadores de viaturas motorizadas – das pedras, encontrando-se estas soltas entre a estrada e o passeio (fig. 28).   O desenvolvimento das raízes das árvores de grande porte destruiu e só ergueu por vezes o pavimento – como aconteceu na capela de N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria Amélia –, carente de trabalhos de manutenção regulares.No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na ilha do Porto Santo, observou-se a presença de grandes manchas de cera, com origem no pagamento de promessas feito por alguns fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior remoção. Durante a referida investigação, teve-se oportunidade de acompanhar diversas obras de recuperação de antigas calçadas e de construção de novas pavimentações. Exemplos disso mesmo são o antigo palacete dos Zinos, posteriormente palacete do Lugar de Baixo, recuperado em 2004 pelo Governo Regional da Madeira (GRM) (fig. 29); os jardins de Santa Luzia, recuperados em 2004 pela Câmara Municipal do Funchal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma menção honrosa na categoria de espaços exteriores de uso público, no quadro do Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista, em 2005) (fig. 30); o pavimento onde está representado o cronograma dos vários Batalhões de Infantaria e dos Caçadores na Universidade da Madeira, recuperado por calceteiros da Câmara Municipal do Funchal, em 2008 (figs. 31 e 32).   A preservação da calçada madeirense, nas antigas quintas e jardins públicos e privados, casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste-se de uma importância crucial, especialmente para os núcleos e zonas históricas das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a profissão e a formação do calceteiro é imprescindível para a manutenção dos referidos espaços. Além disso, o património material da calçada madeirense constitui um legado de grande valor, sob os vários aspetos da sua composição, da diversidade dos materiais geológicos utilizados, com presença de fósseis marinhos, e da diversidade de padrões construídos e desenhados.   João Baptista Pereira Silva Celso de Sousa Figueiredo Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património Geologia

dívida

Historicamente, o ato ou o contrato do empréstimo esteve sempre presente em momentos de adversidades e foi um meio usado não só por parte da Coroa, como também por parte do Estado, uma vez que as receitas dificilmente cobriam as despesas. Desta forma, desenvolveu-se o caminho para o recurso a empréstimos, a sisas e a pedidos. O processo de ocupação e de organização do sistema de senhorio surgiu também incluído numa situação de dívida, quando, em 1460, a Coroa ficou endividada ao infante D. Fernando. Desta forma, a doação será entendida como uma forma de saldar essa dívida. Esta situação foi muito importante, pois materializou uma condição de dívida não quantificada, implicando um compromisso entre os envolvidos que, no caso da Coroa, era sempre pago com mercês, com doações e com títulos. São muitos os casos de famílias, ou de madeirenses isolados, que atuavam de livre vontade, esperando receber por parte da Coroa a merecida contrapartida. Estabelecia-se, assim, uma cadeia de dependências com o poder instituído, que depois se repercutia nas despesas ordinárias da Fazenda Real. A partir do séc. XV, começaram a surgir vários documentos de conventos, de misericórdias e de confrarias que atestam casos de dívidas. Os registos notariais também foram repositórios importantes para o conhecimento de tais realidades; no entanto, no que diz respeito às épocas anteriores ao séc. XVIII, esses registos desapareceram na sua quase totalidade. Além do mais, teriam acontecido muitos mais casos na vida quotidiana entre indivíduos em que a palavra e uma qualquer testemunha seriam suficientes para firmar uma dívida. A dívida entre os cidadãos afetava a sociedade como um todo, por força de uma gestão inadequada dos recursos e da riqueza. Atente-se que Simão Gonçalves da Câmara, capitão do Funchal, deixou aos herdeiros uma dívida de 50.000 cruzados. Para além disso, é necessário considerar as dívidas dos cidadãos em tributos e em impostos à Coroa ou ao Estado, que conduziam a inúmeras penhoras e a vendas em hasta pública. A dívida dos impostos era sinónimo de decadência das famílias e era uma marca de tempos em que o direito à terra não era suficiente como sinónimo de riqueza. Existiram várias casas e famílias importantes que foram alvo de penhora, durante os sécs. XVIII e XIX, e cujo património foi arrecadado por mercadores estrangeiros, fundamentalmente ingleses. Em 4 de fevereiro de 1786, foi executada, e.g., a dívida de Manuel da Silva Carvalho no valor de 17.486$428. Noutros casos, verificou-se o pedido de perdão da dívida: assim sucedeu com o caso de Ignácio Gonçalves de Abreu, em 27 de julho de 1820, que teve um parecer favorável, e o requerimento do Maj. José Pedro de Vasconcellos para saldar a sua própria dívida em prestações anuais, de 22 de outubro de 1825. De entre estes, destaca-se também o caso de Guiomar de Sá e de Pedro Jorge Monteiro. Guiomar de Sá morreu em 1796, deixando um património falido pelos seus administradores que seria depois hipotecado por dívidas à Fazenda Real, nomeadamente direitos alfandegários do período de 1788 a 1790. A dívida à Fazenda Real era de 65.975$655, tendo-se usado como penhora as joias de ouro e prata, os títulos de propriedades e as escrituras de dívida. Um decreto de D. Maria I, de 7 de julho de 1791, determinou a forma de pagamento da dívida em prestações anuais de 10.000$000. O P.e Manuel de Jesus, atuou, como testamenteiro, de forma desastrosa nesta situação, levando a que a Fazenda Real determinasse a arrematação dos bens arrestados pela dívida, a 21 de abril de 1796. Em 1824, John Blandy (1783-1855) comprou à Junta da Fazenda do Funchal a quinta de João Bruno Acciaoly, em Santa Luzia, que havia sido penhorada. As adegas de São Francisco, no Funchal, onde, no princípio do séc. XX, se encontravam as Blandy Wine Lodges, foram adquiridas à Câmara do Funchal depois de 1836, altura em que foram expropriadas à família madeirense de Pedro Jorge Monteiro e do cônsul francês Nicolau de La Tuelliére, casado com uma filha do primeiro, uma família historicamente ligada aos vinhos e com grande poder neste comércio, durante a segunda metade do séc. XVIII, embora se encontrasse então falida. Em 1855, a Qt. do Palheiro Ferreiro, a propriedade do Conde Carvalhal que havia sido penhorada por dívidas à Fazenda Real, foi comprada por Charles Ridpath Blandy (1812-1879). A par disso, é necessário ponderar que a inexistência de regras no crédito privado conduzia a uma exploração usurária que penalizava as populações com poucos recursos e criava situações de dependência relativamente ao grupo de prestamistas e de usurários nacionais e estrangeiros, que funcionavam como mecanismo de afirmação e de favorecimento desta minoria detentora de recursos financeiros. Os juros chegavam a valores de 25 %, gerando situações de rutura, com a hipoteca dos poucos recursos da população. Penhorava-se tudo, inclusive as benfeitorias dos colonos nas terras de senhoria. Esta situação tornava-se ainda mais perniciosa quando se sujeitava a população a empréstimos ou a adiantamentos com hipoteca da colheita do vinho, a ser entregue na altura da vindima. Os percalços evidentes do ciclo agrícola favoreciam esta usual dependência dos viticultores, acabando os mercadores estrangeiros, nomeadamente os ingleses, por usar tal situação a seu favor. Perante isto, as autoridades clamavam por melhores medidas e a Igreja apontava o dedo acusador aos usuários e aos prestamistas: porém, a situação continuaria. Em 1800, o governador insistia na necessidade da criação de uma caixa de crédito público, como forma de disciplinar as situações abusivas e de travar o endividamento das populações. Contudo, esta situação só seria contemplada a partir da década de 70 do séc. XIX, intervindo a Misericórdia do Funchal, a partir de 1873, com o Banco de Crédito Agrícola e Industrial. Não se deverá esquecer o papel da Misericórdia e das diversas confrarias, que existiam nas diversas freguesias da Ilha, na concessão de créditos à população a um juro de 5 % durante aqueles tempos, um fator apaziguador da opressiva usura que existia sobre as populações. O primeiro empréstimo das autoridades públicas de que temos referência reporta-se a D. Afonso III, que se socorreu de tal meio para preparar uma expedição de apoio ao Rei de Castela, na sua luta contra os mouros. Por norma, estes pedidos faziam-se em situações ocasionais de guerra ou de casamento dos príncipes. No entanto, em 1478, D. Afonso V lançou um tributo extraordinário para as guerras com Castela, aprovado nas Cortes. Da despesa de 36.000 dobras, caberia à Madeira 1.200$00 rs, mas os madeirenses escusaram-se ao pagamento deste imposto, insistindo nas 4000 arrobas de açúcar que haviam dado de empréstimo, que só ficou saldado em 5 de agosto de 1497. A 12 de julho de 1480, o Rei reduziu o tributo para 800.000 reais, mediante o pagamento imediato de 600.000, ao seu enviado especial, Diogo Afonso (o que só veio a acontecer em 1482). Atente-se que o senhorio era muito cauteloso na questão do pagamento das dívidas, no sentido de uma correta administração financeira, evitando perdas na arrecadação dos direitos e demoras nos pagamentos das despesas. Em 1489, em face de uma dívida acumulada do município relacionada com sacos e com lojas para o armazenamento do trigo (tendo o objetivo de acautelar a falta daquele na vila), o duque ordenou o pagamento pela dízima, admoestando os vereadores que “daqui adiante tende melhor cuidado de arrecadar essas rendas de guisa; que o concelho não caia em dívidas e necessidades, pois tem renda que o pode suprir” (AHM, XVI, 1973, 221). A celeridade no pagamento dos compromissos financeiros, no sentido de evitar dívidas, nunca foi constante. O pagamento destes soldos era, muitas vezes, feito a partir da consignação da receita de alguns direitos cobrados nos almoxarifados ou nas freguesias. A quebra dos compromissos de pagamento acontecia quando surgiam problemas na sua arrecadação ou quando a coleta não era capaz de suprir a despesa que lhes estava consignada; daí as reclamações e as ordens no sentido de serem saldadas. Em 25 de agosto de 1659, ordenou-se o pagamento da comenda em dívida no valor de 867$440 réis, de António de Albuquerque; em 21 de julho de 1690, estavam em dívida 373$333 réis da tença de 1687-88 pertencente a Alexandre de Moura, que a viúva, Ana Luísa de Moura, então reivindicava; em 2 de janeiro de 1691, Luís de Bern Salinas atribuiu a Salvador Sauvaire e a Pedro de Faria, mercadores, a cobrança das dívidas de uma tença, quer as de um procurador que as não pagou antes de falecer, quer as do almoxarife. Em 1682, o Sarg.-mor de Machico não recebeu o seu soldo de 28$000 réis, porque a renda da imposição para o mesmo ano chegou apenas a 22$000 réis. A ordem para saldar esta dívida aconteceu a 20 de outubro de 1684. No entanto, foi mais difícil a cobrança de pedidos e de empréstimos para as guerras contra Espanha, nomeadamente em épocas de dificuldade económica. Os madeirenses sempre se manifestaram desfavoráveis à cobrança deste tipo de donativo, talvez devido à distância a que se encontravam do conflito; e, quando esta reivindicação régia aparecia, sempre se levantavam vozes que reclamavam sobre a insuficiente defesa da Ilha. No caso do donativo, a dívida acumulada dos anos de 1649-1650 e as queixas de que os ricos eram favorecidos em detrimento dos pobres levaram a Coroa a isentar deste encargo os mendicantes e aqueles que não tinham posses. Mesmo assim, não foi fácil demover os devedores ao seu pagamento, uma vez que, em 1651, a Coroa apelava à Junta da Fazenda no sentido de uma maior celeridade na arrecadação do donativo e da décima de guerra da cidade do Funchal, pela necessidade que havia deste dinheiro para a guerra de fronteiras. Entretanto, por carta régia de 10 dezembro de 1656, determinou-se o lançamento de uma contribuição anual no valor de 20.000 cruzados para a defesa do reino. De novo, surgiram várias reações dos madeirenses, com manifestações em 1658, certamente contra a presença do licenciado António Freire Cardoso, que havia sido enviado pela Coroa com alçada para superintender os serviços de administração e os negócios do donativo. O mau ano agrícola justificava esta reação dos madeirenses e obrigava a uma conciliação das partes, face à manifestação de força do poder régio. Assim, a Coroa assumiu uma atitude conciliatória, afirmando: “vos hajais de novo que eu fique bem servido, e os povos sem queixas” (VIEIRA, 2014, 321). No entanto, da parte dos madeirenses, a intenção seria protelar o pagamento da dívida, de forma que, em 1662, esta atingiu os 54.745$000 réis. São insistentes as recomendações para a cobrança (em 1676, 1677, 1683, 1688 e 1691), demonstrando que os madeirenses teriam conseguido levar a melhor nesta situação. A solicitação do esforço nacional para a guerra não terminou com as pazes de 1668, uma vez que se tornava necessário reparar as fortalezas e cobrir as despesas em atraso, no valor de 100.000 cruzados. Para este esforço nacional, por um período de três anos, a Madeira deveria contribuir com 3.232$500 rs. Contudo, os madeirenses persistiam na resistência a esta tributação, de forma que, em 1711, o governador Duarte Sodré Pereira se queixava da falta de cobrança e de um motim que se tinha levantado por esse motivo. Os madeirenses tinham motivos para se manifestar contra este esforço financeiro extraordinário, uma vez que existiam na Ilha instituições em estado de rutura financeira. Estavam neste caso também as finanças municipais, que nunca foram folgadas, gerando, por diversas vezes, situações de rutura financeira que impediam o cumprimento dos compromissos estabelecidos. Em 1687, o município de Machico tinha uma dívida acumulada à Coroa de 140$000 da meia-maquia, e, em 1690, uma de 146$000 réis, referente à rubrica de usuais, obrigando-a lançar um finto entre os seus contribuintes para poder saldar a dívida. Em 21 de abril de 1799, o comerciante Carlos Alder Saldanha também reclamou uma dívida da Fazenda Real, por venda de pano azul, para fardamento. Em 1824, a Câmara do Funchal traçava o quadro aflitivo do seu cofre e a necessidade de encontrar fontes de receita, uma vez que, segundo se afirmava, “as rendas, não têm sido poderosas a contrastar [com] as grandes e indispensáveis despesas a que é obrigada” (VIEIRA, 2014, 461). Para além de uma despesa de mais de 8000$00, refere-se ainda o pagamento mensal de 100$000 rs para uma dívida contraída nos cofres da Real Fazenda. A isto, acresce outra dívida de quase 2000$00 a João Carvalhal Esmeraldo para a construção do mercado público. Idêntica situação aconteceria com a Junta Geral. A partir de 1856, esta deixou de poder contar com o imposto das estufas, que fora extinto. Assim, em 1846, a dívida era superior a 3000$00 rs. Por outro lado, a Comissão tinha quase só a capacidade de proceder a pequenos reparos, devendo socorrer-se de subscrições públicas para a realização de grandes obras, como a ponte do Ribeiro Seco e a estrada monumental até Câmara de Lobos. O finto foi, assim, sinónimo de encargos suplementares para as dívidas ou para as despesas extraordinárias, não tendo nunca merecido a aceitação dos madeirenses, talvez por se sentirem por demais agravados com os diversos tributos a que estavam sujeitos. As populações insistiam nesta manifestação adversa e não se deixaram intimidar, obrigando a Coroa, por alvará de 1749, a perdoar o finto para as obras de fortificação e os vencidos desde 1739 a 1745, em razão dos prejuízos causados à Ilha pelo terramoto de 1748. Vencida esta etapa, as manifestações continuaram de forma permanente contra estas tributações extraordinárias: pois, em 1799, o povo devia à Junta da Fazenda a importância de 162.000 cruzados, proveniente de 18 anos da mesma contribuição, que o Governo insistia em arrecadar. A partir de finais do séc. XVIII, a opção para estas necessidades monetárias passa por ações de contração de dívida pública no próprio país e no estrangeiro. Em 1796, foi feito um empréstimo, no valor de 10.000 cruzados, a que se juntaram, no ano seguinte, mais 12.000, em papel-moeda. Foi o primeiro título de dívida pública com o intuito de custear despesas bélicas. A garantia apresentada foi o lançamento de uma nova décima eclesiástica, cobrada pelo quinto dos bens da Coroa, e um tributo sobre as comendas das Ordens Militares. Por alvará de 7 de março de 1801, procedeu-se a um segundo empréstimo de dívida pública, no valor de 12.000.000 de cruzados. Para isso, consignou-se um novo imposto sobre os prédios de Lisboa e do Porto, no valor de 3 % sobre as rendas urbanas, bem como um aumento nos direitos do açúcar e do algodão. Por alvará de 2 de setembro, o empréstimo foi aumentado, de forma a poder custear-se as despesas do hospital da Marinha. Em 29 de julho, a Junta Provisional do Porto emitiu um empréstimo, no valor de 2.000.000 de cruzados, dando, como garantia, os direitos a cobrar sobre o vinho e o azeite exportados pela barra e pelos portos das outras três províncias nortenhas. A 8 de julho de 1817, houve outro empréstimo de 4.000.000 de cruzados, dando-se como garantia um imposto de 15 % ad valorem sobre os géneros estrangeiros importados, como o arenque, a bolacha, a carne salgada, a manteiga de vaca, o presunto, o queijo e o toucinho. Entre 1796 e 1827, surgiram seis empréstimos que totalizaram o valor de 15.701contos. Durante o mesmo período, ocorreram seis operações de consolidação da dívida, no valor de 4718contos. A dívida pública era uma questão constante e incontornável, obrigando à criação de infraestruturas para a sua administração. Por alvará de 13 de março de 1797, foi criada a Junta da Administração das Rendas aplicadas aos juros do empréstimo feito ao Real Erário com o objetivo de gerir o empréstimo feito. Por ordem de 20 de julho de 1810, tinham sido criadas as Juntas de Melhoramento da Agricultura, que só surgiram na Madeira, nos Açores, em Cabo Verde e em São Tomé por alvará de 18 de setembro de 1811. A função desta estrutura era promover o melhor aproveitamento da agricultura. Eram compostas pelo governador, pelo capitão general, que a elas presidia, pelo ouvidor, pelo juiz ordinário, e pelos escrivães da Câmara e da Fazenda, na qualidade de deputados. Tinham uma só caixa, com o equivalente aos juros da dívida consolidada, mais 1 % da amortização que deveria ser aprovada em Cortes para a promoção da agricultura e do arroteamento dos baldios: estava assim aberta a porta para a presença do Estado no financiamento da agricultura. A 27 de outubro de 1820, a Junta Provisional do Porto criou uma comissão para apurar a existência de papel selado e a sua liquidação, que, pelas Cortes de 1821, teria poderes sobre a amortização da dívida, associando novos rendimentos. A Constituição de 1822 reconheceu a dívida pública e estabeleceu a necessidade de agregar os fundos necessários para a saldar, que seriam também administrados de forma separada. Uma carta de lei, de 15 de abril de 1835, autorizou a venda dos bens nacionais (na Madeira, em 1841, referenciou-se o apuramento do valor de 27.427$465 da venda destes bens), incluindo os das ordens religiosas que haviam sido extintas, uma decisão justificada pela necessidade de amortização da dívida pública. A 23 de abril de 1835, na Junta do Crédito Público, estabeleceu-se o Grande Livro da dívida geral inscrita do Estado, para o registo da referida dívida pública. O Estado liberal transformou a atitude de pedinte, manifestada através de pedidos e empréstimos, numa atitude impositiva de tributos e impostos capazes de cobrir os empréstimos ainda em dívida. Surgiu assim a décima de juros, que era um imposto sobre os empréstimos e outros atos, pago pelos credores, que proporcionava um benefício de capital para a dívida interna consolidada. Foi criado a 6 de maio de 1841, passando a fazer parte das receitas da Junta de Crédito Público, por carta de lei de 9 de novembro de 1841, como meio de pagamento da dívida. Existe ainda uma referência ao imposto de sisa das vendas e das trocas dos bens de raiz que, por carta de lei de 9 de novembro de 1841, passou a pertencer às receitas da Junta de Crédito Público, como meio de pagamento da dívida. Mesmo assim, a atitude dos madeirenses será de devedores às Finanças. As condições económicas da Ilha eram desfavoráveis e impediam os contribuintes de manter em dia o pagamento dos impostos. Desta forma, a partir da segunda metade do séc. XIX, era notório o valor em dívida dos contribuintes. Em maio de 1840, os porto-santenses deviam à Fazenda Real o valor de 12.230$211 réis. A partir de meados dessa centúria, a dívida dos madeirenses à Fazenda continuou a subir: em 1850, o valor era de 512.839$640; em 1860-1861, de 5.712$044; em 1861-1862, de 29.221$654; em 1871-1872, de 79.113$044; e em 1875-1876, de 8.420$117. Perante isto, foram definidas medidas que favoreciam o pagamento sem penalização por decreto de 31 de dezembro de 1887, que autorizou o pagamento da contribuição de repartição em dívida no distrito do Funchal sem qualquer acréscimo de juro, pago em 60 prestações mensais. Depois, uma lei de 8 de maio de 1888 permitiu o pagamento em prestações mensais das contribuições de repartição e de lançamento em dívida no distrito do Funchal até dezembro de 1887, e também o abono de 3 % aos devedores que não aproveitassem esta faculdade. Mas muitos arrestos de bens aconteceram no decurso do séc. XIX, por força de inúmeras adversidades da economia da Ilha, que impediram muitos madeirenses de pagar os tributos ou os impostos de que eram devedores, acabando por ver os seus bens penhorados e arrematados em praça pública por estrangeiros, nomeadamente os Ingleses, que, a partir de então, passaram a assumir um papel dominante no sistema fundiário, por força deste processo. A partir da Revolução Liberal, a instabilidade política condicionou a contabilidade pública e o sistema de arrecadação de impostos, bem como o quadro da receita e da despesa, tendo-se lançado vários empréstimos para cobrir a elevada despesa. Na Regeneração, em 1852, ocorreu a primeira tentativa de disciplina financeira com a consolidação da dívida. Todavia, o deficit orçamental manteve-se até ao governo da Ditadura, com o recurso permanente à dívida externa, que, a partir de 1902, passou a assentar em empréstimos quase exclusivamente internos. A situação da Madeira arrastava-se, de igual modo, na condição de devedora, por força da crise económica resultante da decadência da produção do vinho. O texto A Winter in Madeira and a Summer in Spain and Florence, de autor desconhecido e publicado em 1850 na cidade de Nova Iorque, informa sobre a situação desastrosa das finanças portuguesas e da terrível situação do arquipélago, com uma dívida de 100.000$000 que não tinha cobertura nos rendimentos tributários. Contudo, nada disto seria novidade para o escritor anónimo, uma vez que situações semelhantes aconteciam em alguns estados americanos do Oeste. O regime republicano conseguiu estabelecer, nos seus primeiros anos, de 1912 a 1914, algum equilíbrio entre a receita e a despesa, mas a Primeira Guerra Mundial gerou novos desequilíbrios, por força da inflação galopante, tendo-se as dívidas mantido, em crescendo. A ordem e a disciplina financeira só aconteceriam em 1929, com a chegada de Oliveira Salazar ao Ministério das Finanças. Assim, a dívida flutuante externa foi paga em junho de 1929 e a interna foi amortizada em junho de 1934. A situação, no entanto, piorou na déc. de 60, com o aumento da despesa que causou o aumento dos recursos ao crédito. Na década seguinte, houve os agravamentos provocados pela crise do petróleo (1973-1979) e a instabilidade do período revolucionário (1974-1976), que conduziram a um acentuado desequilíbrio orçamental, por força de um aumento significativo da despesa, tendo obrigado, de novo, ao crescimento da dívida pública. Dívida pública regional – Madeira  A partir de 1974, agravou-se a situação de dependência financeira das instituições existentes na Região e também daquelas que foram criadas pelo processo da autonomia de 1976. A necessidade de contração de empréstimos, no sentido de resolver problemas momentâneos de tesouraria e de financiamento dos projetos de investimento, conduziu, ao longo dos tempos, ao aumento da dívida pública regional. Com o decreto legislativo que os aprovava, os orçamentos anuais expressavam esta situação através da definição das diversas formas de gestão e de negociação junto dos credores. O Estatuto Provisório da Região, aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, estabeleceu no artigo n.º 58 que o financiamento do deficit deveria ser definido por um diploma do Governo. Por seu lado, o estatuto definitivo, da lei n.º 130/99, de 21 de agosto, determinava que as autorizações para os empréstimos competiam à Assembleia Legislativa (art. n.º 36, alínea d), referindo ainda que apenas os empréstimos com prazo superior a um ano careceriam desta autorização (art. n.º 113). A Lei das Finanças Regionais (lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro, com a alteração introduzida pela lei orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro) ocupava-se de forma especial da dívida pública regional (arts. n.os 26 a 36), definindo que a dívida pública flutuante deveria ser usada para suprir as necessidades da tesouraria, não podendo ultrapassar os 35 % da receita do ano económico anterior (art. n.º 30). A dívida pública fundada para acudir a necessidades de investimento só pode acontecer com a autorização da Assembleia Legislativa (art. n.º 27, n.º 1), situação já determinada na lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro. Entretanto, os limites a este endividamento seriam estabelecidos anualmente na lei do orçamento (art. n.º 30) e deveriam ter expressão no orçamento regional, através do decreto legislativo regional que o aprovaria, onde se estabeleceriam os limites do endividamento e a possibilidade de a Secretaria Regional do Plano e Finanças (SRPF) realizar diversas operações de gestão da mesma dívida. Desta forma, os pedidos de empréstimo eram estabelecidos por resolução do Governo e aprovados pela Assembleia. A lei de 2007 determinou ainda mecanismos de controlo da dívida pública regional, com a obrigatoriedade de a Região fornecer informações semestralmente (art. n.º 13), existindo sanções para o incumprimento das regras. Os anos de 1985 e 1986 foram de particular significado para esta conjuntura de difícil execução orçamental, originando a negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República, que assumiu a dívida interna, no valor de 66 milhões de contos. Desta forma, pela resolução n.º 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo Regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, que foi assinado a 26 de fevereiro de 1986. Em 22 de setembro de 1989, houve um novo programa de recuperação financeira, que duraria até 31 de dezembro de 1997 e que se repercutiu logo no orçamento regional do ano de 1990. Nesta data, a Região tinha uma dívida consolidada de 44,2 milhões de contos. Em 1999, o governo da República assumiu a dívida de 550 milhões de contos das duas regiões autónomas e, no ano imediato, assumiu outros 60 milhões do Serviço Regional de Saúde. Com o Estatuto de 1999 (lei n.º 1/99, de 21 de agosto), a dívida pública regional ficou definida no artigo n.º 113. A partir de 2007, a Região encontrou-se obrigada a apresentar semestralmente uma estimativa da dívida regional. Nesse ano, ao abrigo do disposto no artigo n.º 8 do dec. leg. regional n.º 3A/2007/M, de 9 de janeiro (Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2007), e no artigo n.º 28 da Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas), que concedeu ao Governo regional a faculdade de contrair empréstimos para amortizar outros empréstimos anteriormente contraídos, procedeu-se, em 29 junho, à 2.ª emissão do empréstimo obrigacionista a que se reportou a resolução n.º 677/2006 do Conselho do Governo de 25 de maio, cujo produto, como se referiu, se destinou à amortização total do empréstimo RAM 97-1.ª às 3.ª séries. Nesta lei de 2007, estabeleceram-se as normas sobre as formas de realização da dívida fundada (art. n.º 28) e flutuante (art. n.º 29), sendo determinado, para esta última, um limite de 35 % do orçamento corrente do ano anterior, enquanto os da primeira eram determinados anualmente pela lei do orçamento. Também pelo dec. leg. regional n.º 32/2009/M, de 30 de dezembro, procedeu-se à alteração do artigo n.º 5, do dec. leg. regional n.º 45/2008/M, respeitante ao endividamento líquido regional. Em 2005, a dívida madeirense situava-se nos 478 milhões de euros, e em 2010, segundo uma auditoria do Tribunal de Contas, era de 963 milhões. A 30 de junho de 2011, o Governo regional assumia uma dívida de 5800 milhões de euros, mas em outubro os dados de um estudo encomendado pelo mesmo Governo revelavam que a dívida se situava nos 333.800 milhões. A 27 de setembro, outro relatório da Inspeção Geral de Finanças reportava uma dívida total da região em 6328 milhões de euros, incluindo neste valor a referente dívida às autarquias e ao sector empresarial da RAM. Neste ano de 2011, com a intervenção do Banco Central Europeu, do Fundo Monetário Internacional e da Comissão Europeia a nível nacional, iniciou-se um processo de mudança no esquema da dívida; esta intervenção obrigou ao estabelecimento de condições específicas para a Madeira poder negociar e resolver a sua dívida, situação que acarretava um retrocesso na autonomia financeira e tributária e estabelecia uma elevada penalização para os contribuintes. Assim, de acordo com um memorandum de intenções, aquela passaria a ser gerida pelo Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, tutelado pelo Ministério das Finanças. A dívida da RAM, fruto do elevado nível de desenvolvimento, baseado no intenso investimento que a Região fez na sua autonomia, aumentou consideravelmente ao longo dos anos, sendo os dados referentes ao período iniciado no ano 2008 os mais expressivos. Nas contas regionais foi feita uma referência ao montante no qual se cifra a dívida direta, sendo também referido o valor da dívida indireta. Segundo os dados da Direção Regional de Orçamento e Contabilidade, a 31 de dezembro de 2011, a dívida direta da RAM aumentou consideravelmente no espaço de cerca de duas décadas: no ano de 1994, era de 578,227 milhões de euros, tendo aumentado cerca de 12,1 % no ano seguinte, para 648,310 milhões de euros. O aumento da dívida direta também se verificou nos anos de 1996 e 1997, durante os quais aquela assumiu os valores de 727,310 e 771,398 milhões de euros, respetivamente. O ano de 1998 foi marcado por uma diminuição na ordem dos 31,6 %, originando que a dívida direta diminuísse para 527,699 milhões de euros. De igual forma, no ano seguinte, o valor baixou para 388,267 milhões de euros, o que constituiu um decréscimo de 26,4 %. Seguidamente, a evolução da dívida direta assumiu uma tendência de crescimento, sendo de destacar a variação anual de 53,7 % constatada no ano 2008, o que correspondeu a um valor absoluto de 734,919 milhões de euros. No ano 2011, a dívida direta da RAM era de 1009,955 milhões de euros. Entre o ano 1994 e o ano 2011, destacaram-se os empréstimos contraídos pela Região que foram concedidos pelo Banco Europeu de Investimento, e.g., o empréstimo contraído no ano de 1994, orientado para as infraestruturas, de 69,831 milhões de euros, e o empréstimo de longo prazo com o valor de 50,0 milhões de euros, contraído em 2008. Os empréstimos de valor mais elevado registados neste período foram de natureza obrigacionista. No que concerne à dívida indireta, constituída pelas garantias e pelos vales prestados pela RAM (tomando a informação patente nos pareceres sobre a conta da RAM, da responsabilidade do Tribunal de Contas, e nos dados publicados pela SRPF), constatamos que se verificou um aumento muito significativo. Embora, no ano de 1995, o valor fosse de 70,7 milhões de euros, aquele aumentaria, no ano de 2011, para 1467,9 milhões de euros, o que significa um aumento de cerca de 20,76 vezes. Neste intervalo de tempo, só se verificaram taxas de variação anuais negativas em duas oportunidades: no ano de 1996, quando a dívida era de 67,4 milhões de euros, e no ano de 2010, momento em que o total de avales era de 1193,3 milhões de euros. São de ressaltar os dados verificados nos seguintes anos: em 2003, durante o qual a dívida indireta aumentou em cerca de 72,3 %, em relação ao ano anterior, tomando o valor de 341,6 milhões de euros; e em 2004, quando as garantias e os avales assumidos até à data atingiram o valor de 551,4 milhões de euros, revelando um aumento de 61,4 % face ao ano anterior. Todavia, e não obstante a informação apresentada pelas entidades até 2011, o Tribunal de Contas constatou (na sua auditoria de 2009, orientada para os encargos assumidos e não pagos da Administração Regional Direta da Madeira) que parte dos encargos que careciam de pagamento e tinham sido assumidos pela RAM não tinha sido reportada pelas entidades governamentais. Perante tal realidade, a dívida total e oficialmente comunicada foi sujeita a novas verificações que originaram um aumento significativo da variável, revelando a principal causa pela qual a Região teve de recorrer ao Plano de Ajustamento Económico e Financeiro. Em setembro de 2011, a SRPF informou que as responsabilidades da Região, a 30 de junho de 2011,eram de 5,8 mil milhões de euros, dos quais 3 mil milhões do Governo regional e 2,8 mil milhões de euros do sector público empresarial, estando aqui incluídos 1,2 mil milhões de euros de avales concedidos a empresas públicas, detidas ou participadas pela Região. Assim sendo, a informação disponibilizada até àquela data teve de ser reformulada, tendo em consideração a dívida não comunicada. Vários dados do Banco de Portugal situavam a dívida bruta da administração regional no ano de 2000 em 428 milhões de euros; no entanto, no ano seguinte, o valor aumentou para 470 milhões de euros. No ano de 2004, a dívida da administração regional ascendeu a 1109 milhões, tendo sido verificados aumentos nos anos seguintes que originaram o aumento do valor, no ano de 2009, para 2674 milhões de euros e, no ano de 2010, para um novo máximo de 3642 milhões de euros. No início da segunda década do novo milénio, a dívida bruta da administração regional escalou para valores nunca antes verificados, tendo sido, no ano de 2011, igual a 4058 milhões de euros. Os dados provisórios relativos aos anos 2012 e 2013 colocaram a dívida bruta em 4118 e 4291 milhões de euros, respetivamente. Em relação aos montantes verificados no quadriénio de 2010-2013, foi notória a importância relativa que a dívida do subsector Governo regional e serviços e fundos autónomos assumiu, em contrapartida da dívida respeitante às empresas públicas. Se bem que, no ano de 2010, a dívida do Governo regional representasse 64.2 % do total da dívida bruta, no ano de 2013, o valor provisório apresentaria um aumento do peso relativo deste subsector, de cerca de 74,3 %, representando a dívida afeta ao sector que engloba as empresas públicas incluídas na administração pública regional 25,7 %, quando a proporção em 2010 era de 35,8 %. A acumulação de deficits orçamentais, que contribuíram para o incremento da dívida da RAM, foi um alvo de reparo por parte do Tribunal de Contas. No parecer das contas da RAM relativo ao ano de 2011, o Tribunal constatava que “o orçamento da Região tem revelado pouca aderência à realidade, o que permitiu assumir despesa durante a execução orçamental muito para além da efetiva capacidade de suportar a realização dessa despesa, e levou, com crescente frequência, à acumulação de pagamentos em atraso” (TRIBUNAL DE CONTAS, 2012). Legislação: dec.-lei n.º 75/87, de 13 de fevereiro; portaria n.º 672/81, de 6 de agosto; portaria n.º 1028/81, de 30 de novembro; portaria n.º 663/82, de 3 de julho; portaria n.º 1146/82, de 14 de dezembro; portaria n.º 38-A/83, de 12 de janeiro; portaria n.º 687/83, de 20 de junho; portaria n.º 883/83, de 17 de setembro; portaria n.º 1054-B/83, de 23 de dezembro; portaria n.º 518/84, de 27 de julho; portaria n.º 783/85, de 16 de outubro; portaria n.º 186/86, de 8 de maio; portaria n.º 698-A/94, de 26 de julho; resolução n.º 171/81, de 6 de agosto; resolução n.º 243/81, de novembro; resolução n.º 72/82, de 24 de abril; resolução n.º 204-A/82, de 16 de novembro; resolução do Conselho de Ministros n.º 59-A/83, de 23 de dezembro; resolução n.º 1/85/M, de 17 de maio; resolução da Assembleia Regional n.º 3/85/M, de 27 de julho; resolução da Assembleia Regional n.º 4/85/M, de 18 de outubro; resolução do Conselho de Ministros n.º 4/86, de 9 de janeiro; resolução da Assembleia Regional n.º 1/86/M, de 18 de abril; resolução da Assembleia Regional n.º 2/86/M, de 20 de junho; resolução da Assembleia Regional n.º 3/87/M, de 7 de fevereiro; resolução da Assembleia Regional n.º 4/87/M, de 7 de fevereiro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 8/90/M, de 6 de dezembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 9/90/M, de 6 de dezembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 11/94/M, de 5 de setembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 14/98/M, de 7 de julho; resolução do Conselho de Ministros n.º 105/98, de 14 de agosto; resolução do Conselho de Ministros n.º 137/98, de 4 de dezembro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 1/99/M, de 16 de janeiro; resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 14/99/M, de 6 de julho.   Alberto Vieira (atualizado a 03.01.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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