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a paixão do povo e a páscoa porta a porta

Durante o recato que caracteriza a época pascal existe espaço para as brincadeiras infantis e juvenis. Mas estes jogos são usados por todos, desempenhando talvez a função de distracção num período usado pelos Cristãos para a reflexão. Talvez se possa encontrar nesta prática semelhanças com práticas contemporâneas visíveis noutras latitudes, onde o desporto e o lazer surgem como uma forma de alterar as rotinas concentradas num determinado período. Lembramos a este propósito o que ocorre em Inglaterra com o designado Boxing Day. Jogos Tradicionais Esta é umas das recriações da tradição realizada pela Casa do Povo da Camacha, que se realiza na altura da Quaresma. Neste período, nesta vila serrana da Madeira não se ouviam tocar os instrumentos musicais, como noutras épocas do ano. O recato em respeito pelo sofrimento do Salvador era regra, pelo que nos dias de descanso o tempo era ocupado com diversos jogos, casos do “jogo do pião”, jogo do batoque (consiste derrubar uma rolha de cortiça colocada no chão, atirando moedas) ou o jogo do burro (placa no chão numerada à qual os participantes atiram rodelas de borracha, ganhando quem atingir maior numero de pontos) ou o “jogo das pedrinhas” e “saltar à corda”. Outros jogos populares são as escondidas, a bilhardeira ou o Jogo do lenço. Os Acólitos e o Espírito Santo Já no elucidário faz-se referência às comissões que constituídas com a coordenação do pároco para levar a efeito a celebração do Espírito Santo. Ainda segundo o Elucidário Madeirense, esta comissão é reconhecida “pelas capas encarnadas dos seus membros, um dos quais leva a coroa, outro o ceptro, outro a bandeira e um quarto o pendão”. Na Camacha tal comissão está a cargo do Grupo de Acólito da Paróquia da Camacha, que se fazem acompanhar por saloias e instrumentistas. Na Camacha as visitas ocorrem durante três dias, em que o ponto mais alto ocorre no Domingo com as visitas aos estabelecimentos comerciais, seguindo-se o cortejo do pão, realizado em benefício dos mais necessitados da freguesia. Banda Paroquial de São Lourenço. Fonte: www.paroquiadacamacha.com Banda Paroquial de São Lourenço Tem realizado um concerto, por altura das Páscoa. Fundada em 1973, pelo pároco António Joaquim Figueira Pestana Martinho. Ao seu lado esteve o primeiro ensaiador e maestro, o professor Raul Gomes Serrão, seguido pelo maestro José da Costa Miranda. Por ter sido fundada sob a égide da Fábrica da Igreja Paroquial da Camacha a banda recebeu o nome do padroeiro da freguesia (São Lourenço). Registe ainda o facto de ter sido das primeiras bandas em solo português a adoptar elementos do sexo feminino na sua formação. O estandarte ostenta as cores vermelhas (o sangue derramado por São Lourenço) e o branco (evocativo da sua santidade) e no centro a lira musical bordada a ouro, ladeada pela grelha e pela palma. Senhor dos Passos e procissão do Enterro do Senhor Este é o centro das cerimónias religiosas dedicadas à Páscoa. As cerimónias começam na Quinta-feira com o acto do Lava-Pés. Na Sexta, realiza-se a Procissão do Enterro do Senhor, que percorre o Largo da Achada, no centro da freguesia, procissão recuperada pelo actual pároco depois de uma interrupção de quarenta anos. No Sábado realiza-se a Vigília Pascal “com a bênção do círio Pascal e do lume novo”. Finalmente, no Domingo, é tempo dos cristãos celebrarem Cristo Ressuscitado, realizando a eucaristia pela manhã, seguida da Procissão, novamente em redor da Achada. Gastronomia típica da Páscoa A gastronomia da Páscoa na Madeira apresenta características comuns a todas as freguesias. Entre os pratos tidos como mais representativos desta época conta-se o bacalhau assado, o filete de espada e de atum e o atum de escabeche, acompanhado de salada, inhame, feijão e batatas. No Domingo de Páscoa volta-se a comer carne, sendo um dos pratos o borrego assado. Na doçaria, comprovando a riqueza da doçaria madeirense, relacionado com a outrora dinâmica açucareira na ilha, de que damos alguns exemplos como os torrões de açucar, bolos e doces de amêndoas. Da terra o Homem retira o tremoço, apreciado ao longo do ano a acompanhar uma cerveja ou um copo de “vinho seco”, mas muito associado a esta época.     textos: César Rodrigues fotos: Rui A. Camacho  

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares Religiões Rotas

camacha moldadora do vime

A partir de finais do século XIX a indústria do vime desenvolveu-se na Camacha até ocupar lugar central na economia local e ao ponto de, a par do folclore, se tornar um dos embaixadores da localidade serrana. Atualmente, o setor perdeu a importância detida outrora, muito por força das transformações sociais e económicas de uma região especializada nos serviços, com o turismo a desempenhar o papel que antes cabia ao setor primário. E é neste contexto que urge conhecer, não só os modos tradicionais de produção, mas também os processos inovadores. Bazar Flor da Achada Este bazar é atualmente mantido pelas filhas do proprietário, as quais têm outra ocupação profissional. Fazem-no dado ser uma tradição familiar. Para além de através desta relação familiar e da decisão das filhas em manter o negócio, é igualmente demonstrativo da importância da indústria na Camacha e do estatuto social detido. Entre algumas peças importadas do exterior é possível encontrar alguns trabalhos dos artesãos locais. A cobertura interior do teto em vimes é um pormenor que não nos escapa dada a sua particularidade. Café Relógio Um dos espaços que facilmente se associa ao vime, o Café Relógio está de forma directa relacionado com a história do vime, dado que para além de comerciar vimes alberga uma oficina onde se pode ver a execução do trabalho pelos artesãos. Para além desta facto, a torre do edifício alberga um relógio, originário da Igreja Paroquial de Walton, em Liverpool, e é um símbolo da presença inglesa na freguesia, tendo sido mandada construir pelo Drº Michael Graham no que era, na época, a Quinta da Camacha, sua propriedade. Realce-se que a comunidade inglesa na ilha da Madeira desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas artes tradicionais da freguesia, casos do bordado e do próprio vime. José de Jesus Fernandes Aprendeu com um tio quando tinha 12 anos a arte da obra de vime e aos 19 anos instalou-se por conta própria. Os intermediários traziam o vime do Porto da Cruz, de Santana e de Boaventura. Contribuindo na criação de modelos, chegou a empregar 200 pessoas. Hoje, ocupa sozinho a sua fábrica onde ainda guarda os moldes e as máquinas rudimentares usadas. Cada artesão tendia a especializar-se em determinadas peças. O mestre José Fernandes especializou-se na cestaria. José Pedro O artesão José Pedro, que começou a trabalhar na obra de vime com 8 anos, é um exemplo da inovação e criatividade que os artesãos colocam no seu trabalho. Se a reprodução a partir de outras peças está presente, a inovação surge como reflexo do desejo de aperfeiçoamento da peça segundo a perspetiva individual. Resultam daqui peças funcionais. Para lá chegar, contudo, é necessário várias etapas de confeção. Esta afirmação aplica-se aos trabalhos em que não recorre aos moldes, de dimensão média e grande, como móveis. Nesse caso faz-se o desenho da peça, moldando-se o ferro para o cobrir e ligar nas diversas partes com vime. José Fernandes da Silva Junto à Levada da Meia Serra, José Fernandes da Silva tem o seu pequeno atelier onde tece a arte do vime para com ela fazer cestaria em vime da Camacha. Ocorre também que José Fernandes da Silva é um dos artesãos que mais tem contribuindo para a perpetuação da arte da obra em vime, dando cursos de formação e participando em ações de divulgação. Plantação de Vimes Segundo registos, o início da produção e do uso na confeções de cestaria em vime data do século XIX, embora outras fontes apontem para um período bem anterior, isto é, no século XVI. Em todo o caso, foi no século XIX que o vime, primeiro introduzido na Camacha, veio a desempenhar um papel fundamental na freguesia, sendo sustento de parte significativa da população. Os campos deste pequeno vale eram ocupados na totalidade com vimeiros, restando uma pequena parcela na margem direita da ribeira. Cuidar dos vimeiros requer a execução de tarefas simples, sendo a principal a poda.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Património História Económica e Social Rotas Madeira Cultural

a arte da tradição e de ser artesão

Se os artesãos moldam as formas dos artefatos tradicionais, em simultâneo procedem igualmente à reinterpretação do legado. Na demanda diária as pequenas transformações da tradição não são visíveis, reafirmando-se neste contexto a sua pureza. As transformações são descortinadas apenas quando analisadas na perspetiva diacrónica ou através de inovadores movimentos trazidos por novos artesãos, os quais são influenciados por dinâmicas externas. É esta mescla de perspetivas sociais e de motivações idiossincráticas relativas aos próprios artistas que transforma constantemente a tradição. Isabel da Eira Isabel da Eira é fiandeira e tece barretes de orelhas, ou barretes de vilão, conhecidos pelo menos desde 1857. Fá-lo desde os 14 anos de idade com um rigor que os torna peças de artesanato consideradas de boa qualidade. Este barrete de orelhas é um dos que eram usados na Madeira, conhecendo-se variação entre as localidades, sendo preparados juntamente com os casacos para as condições meteorológicas extremas da alta montanha. A textura macia da lã resulta do modo como se fia e Isabel da Eira é considerada uma excelente fiandeira, sendo o seu trabalho reconhecido entre os colegas de actividade. As etapas da preparação consistem no lavar, secar, cardar e fiar. O Borracheiro Este bar tem uma relação especial com a história do transporte de carga da Madeira e, em particular, com a história dos borracheiros. A carga na ilha da Madeira era transportada por veredas e pelos Caminhos Reais. Este ponto situa-se num dos extremos da vereda que liga ao Porto da Cruz, terra de vinho. Os borracheiros, assim designados porque transportavam o vinho nos borrachos, avançavam em grupo de entre dez a quinze homens. Aqui chegados, anunciavam-se com o toque do búzio, instrumento musical que os acompanhava nas viagens e que servia de comunicação. Maria Vasconcelos Iniciou a aprendizagem da tapeçaria aos treze anos por vontade própria, e seguiu o modelo comum na época. Aprendeu com uma artesã, a quem eram reconhecidas competências pedagógicas, a troco de remuneração, enquadrando-se numa lógica particular de investimento educativo semelhante ao que ocorre na actualidade. A formação durou sete meses e incentivou a autonomia. Para além dos tapetes de retalhos, caraterizados pela criatividade quanto aos padrões e cores, as quais dependem na maior parte das vezes dos retalhos que os clientes trazem, tece casacos de lã numa parceria com a fiandeira Isabel da Eira, sendo a responsabilidade quanto às decisões relativas ao trabalho nas suas diversas dimensões partilhada. Artesão Humberto Ex-pedreiro, com o abrandar da construção civil na Madeira, iniciou a atividade de artesão em 2007. Faz peças em madeira para fins de natureza diversa: móveis, utensílios diversos, brinquedos, miniaturas, carrinhos de mão, colheres de pau, piões, bengalas. As peças são vendidas nas diversas feiras que se realizam na ilha. Café Relógio Um dos espaços que facilmente se associam ao vime, o Café Relógio, está de forma directa relacionado com a história da indústria, dado que para além de comerciar vimes, alberga uma oficina onde se pode ver a execução do trabalho pelos artesãos. Para além deste facto, a torre do edifício alberga um relógio, originário da Igreja Paroquial de Walton, em Liverpool, e é um símbolo da presença inglesa na freguesia, havendo sido mandada construir pelo Drº Michael Graham no que era, na época, a Quinta da Camacha, sua propriedade. Realce-se que a comunidade inglesa na ilha da Madeira desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas artes tradicionais da freguesia, casos do bordado e do próprio vime. Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho  

Cultura e Tradições Populares Rotas Madeira Cultural

do ouro branco e pela vinha às quintas

Desde o Século XV, a Madeira recebeu comerciantes e turistas de diversas nacionalidades. Pela Madeira passaram, por exemplo, comerciantes venezianos e flamengos no contexto do afamado período do “ouro branco” deixando a sua marca na toponímia da cidade do Funchal e no sobrenome de famílias madeirenses, mas a partir do século XVII, com a paulatina substituição da cultura do açúcar pela da vinha, os comerciantes britânicos tornaram-se a comunidade estrangeira mais importante no arquipélago. A influência desta comunidade manifestou-se em alguns de setores económicos e na edificação, entre as quais se contam as tão conhecidas quintas da Camacha e do Santo da Serra.     Quinta do Jardim da Serra Esta Quinta, construída no século XIX pelo Cônsul Inglês Henry Veitch, tem importância fulcral na história da própria freguesia. Foi o nome desta propriedade que deu origem à denominação da freguesia: Jardim da Serra. Adaptada em 2010 numa excelente unidade hoteleira, preserva um edifício com arquitetura tradicional. É ainda possível contactar com as práticas de agricultura biológica e alguns exemplares de flores madeirenses nos amplos jardins da propriedade. Realce para o facto da quinta ter sido fonte de inspiração para Max Römer, e estar representada numa gravura do século XIX, patente na reitoria da Universidade da Madeira, no Funchal. Quinta das Romeiras Esta quinta foi desenhada pelo conhecido arquiteto português Raul Lino e foi mandada construir pelo Drº Alberto Araújo, como residência de férias. Foi construída no ano de 1933, ano em que a 14 de Abril o Diário da Madeira noticiava que se estava “trabalhando afanosamente na construção de uma opulenta vivenda de campo, no sítio das Romeiras, desta freguesia, donde se desfruta um largo e aprazível panorama. O povo já a baptizou de Quinta dos Penedos”. A escritora Maria Lamas em 1956 descrevia assim seus jardins: “Do branco de neve ao salmão, ao carmesim, ao amarelo-oiro e ao roxo, passando por todas as escalas de tons - quem poderá imaginar, sem a ter visto, aquela sinfonia de cores?” Quinta do Vale Paraíso Constituída por um edifício principal, construído em meados do século XIX, e por outros 9 de dimensões mais reduzidas, transformadas em pequenas residências de férias, as quais mantêm de um modo geral o nome da sua função original. Este espaço oferece ainda amplos jardins compostos por plantas endémicas e exóticas pertencentes a cerca de 220 espécies. A partir desta quinta acedemos, através de uma vereda, à Levada da Serra do Faial. fonte: ariscaropatrimonio.wordpress.com Quinta do Revoredo Esta propriedade foi mandada construir por John Blandy, em 1840, que depois de conhecer a Madeira como marinheiro de um navio inglês nas guerras napoleónicas viria a tornar-se no mais importante homem de negócios da ilha e cuja família ainda é uma das mais influentes na Região. Hoje a quinta é propriedade da edilidade e é nela que se encontra a sede da orquestra filarmónica de Santa Cruz, sendo utilizada também como Casa da Cultura do município. Quinta de São Cristóvão Esta quinta com caraterísticas da arquitetura portuguesa, foi mandada construir em 1692 pelo morgado Cristóvão Moniz de Menezes e manteve-se como propriedade da família até que recentemente Carlos Cristóvão da Câmara Leme Escórcio de Bettencourt, sem descendentes, o cedeu ao Governo Regional da Madeira. Chegou a albergar o Conservatório de Música e actualmente funciona como casa do artista. Este solar está ainda relacionado com a Paróquia do Piquinho, uma vez que foi aqui erigida a Capela de São Cristóvão, a qual recebe em Maio a festa religiosa de São Cristóvão. Também aqui funcionou uma escola fundada pela irmã Mary Jane Wilson, entre 1904 e 1910.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Arquitetura Património História Económica e Social Rotas

vínculos (morgadios e capelas)

Surgidos em Portugal no séc. XIII e consolidados na Baixa Idade Média, os morgadios – ou morgados – foram instituições características da península Ibérica e da nobreza, servindo como instrumentos jurídicos para salvaguardar e conservar os alicerces materiais dos grupos sociais nobres. Desta forma, através dos morgadios, prescrevia-se a inalienabilidade e indivisibilidade dos bens da família ou da casa, impedindo-se assim a sua fragmentação, por partilhas, após o falecimento do instituidor. A propriedade era transmitida, preferencialmente por ramo varonil, ao primogénito, de modo a alcançar uma sucessão perpétua no seio da família. Estas instituições acabaram, afinal, por contribuir para a manutenção de uma agricultura de natureza feudal. Em íntima relação com a questão económica, os vínculos tinham ainda por objetivo a manutenção de um estatuto social baseado na conservação de privilégios e de uma memória coletiva partilhada pelos membros da linhagem. No cômputo geral, uma propriedade vinculada – ao invés de uma propriedade livre ou alodial – implicava a prerrogativa da apropriação de uma porção dos seus rendimentos. Por vezes, nos documentos (testamentos, geralmente) que instituíam vínculos – morgadios ou capelas –, não era clara ou fácil de destrinçar a tipologia do vínculo criado, além de que ambas as palavras chegavam a ser usadas indiferentemente. O articulado das Ordenações Manuelinas, no parágrafo 49 do título 35 do livro II, estabelece a distinção entre morgadios e capelas, diferença que se passa a apresentar. Existe um morgadio quando, após cumpridos os encargos estipulados por vontade do fundador – comummente, missas pela sua alma –, o remanescente do rendimento dos bens do vínculo pertencer aos administradores ou quando o instituidor legar os bens com a condição de os herdeiros realizarem ou mandarem realizar missas e outras obras pias; existe uma capela, por outro lado, quando ficar estabelecido que, da totalidade dos rendimentos dos bens vinculados, os administradores terão direito a uma parte – 1/3, 1/4 ou 1/5 –, e o restante será usado em missas e outras obras de cariz piedoso. Pode dizer-se que, no primeiro caso, o que estava em causa, sobretudo, era uma dimensão secular – os bens materiais e a perpetuação do capital social e simbólico da linhagem –; no que concerne à capela, o mais importante era a dimensão espiritual – traduzida nos encargos pios. Tem sido apontado que, no quadro português, a ilha da Madeira foi uma das regiões onde a existência de instituições vinculares atingiu maior expressão. Cabral do Nascimento, no seu estudo “Capelas e morgados da Madeira” (1935), asseverou que, na Ilha, as capelas tiveram preponderância sobre os morgadios. Assim, na história deste espaço insular, o fenómeno da vinculação da propriedade assume uma importância de tal ordem que o seu desconhecimento compromete uma compreensão cabal do passado e do presente. Porém, a sua história global ainda está por fazer. Os vínculos foram precedidos pelas sesmarias – ou tiveram, na sua maior parte, origem nestas –, surgindo a partir de finais do séc. XV e, mormente, do séc. XVI. Instituídos no séc. XV, houve, e.g., os vínculos de Água de Mel, na freguesia de Santo António, que foi agregado à casa Carvalhal; de Consolação, na freguesia do Caniço, da família Ornelas e Vasconcelos; de João Afonso, em Câmara de Lobos, incorporado na casa Torre Bela; e de Vasco Moniz, em Machico, do qual José Bettencourt e Freitas foi o derradeiro representante. Na primeira metade da centúria quinhentista, foram criados vários vínculos de relevo na história da Madeira, de entre os quais se referenciam (em conjunto com os instituidores e as localidades) os seguintes: o da Lombada dos Esmeraldos, fundado por João Esmeraldo, na Ponta do Sol; o dos Lomelinos, por Urbano Lomelino, em Santa Cruz; o dos Franças, por João de França, na freguesia do Estreito da Calheta; o de São João de Latrão, por Nuno Fernandes Cardoso, em Gaula; o da Penha de Águia, por António Teixeira, na freguesia do Porto da Cruz; e o de São Gil, por D. Brites Escórcio, em Santa Cruz. Será útil fornecer ainda um exemplo pormenorizado de um vínculo que apresenta algumas das características gerais já apontadas e outras de índole diversa: o morgadio das Desertas, instituído no início da segunda metade do séc. XVI. Luís Gonçalves de Ataíde, filho do segundo casamento do 3.º capitão do donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, celebrado com Isabel de Ataíde, era proprietário da ilha Deserta e recebeu de sesmaria, a 24 de março de 1546, o ilhéu Chão. Obedecendo a uma determinação de sua mãe, instituiu, por uma escritura de compromisso de 3 de setembro de 1552, os referidos bens em morgado perpétuo, obrigando a sua terça. Um alvará régio de 28 de janeiro de 1576 confirmou e aprovou este morgadio. Por vontade do instituidor, ficou estabelecido que: depois do seu falecimento e do da sua consorte, a sucessão recairia no filho varão mais velho ou no neto ou bisneto – seguindo, no plano geral e em regra, a primogenitura varonil legítima, em detrimento das linhas secundogénita e feminina; todos os herdeiros sucessores ficavam obrigados a ampliar os bens vinculados, mediante a inserção no morgadio de metade da sua terça; de igual modo, era-lhes imposto o uso dos apelidos e das armas das linhagens; era-lhes ainda interdita a venda, a troca, o escambo ou a alienação dos bens do morgadio; e teriam de ser cumpridos vários encargos pios – quatro missas anuais pela alma dos pais do instituidor. As duas pequenas ilhas nomeadas – Deserta e ilhéu Chão – fizeram parte do património dos descendentes de Luís Gonçalves de Ataíde até 1864. Tradicionalmente considerados como instrumentos jurídicos usados pela fidalguia ou pequena nobreza da Madeira, diga-se, no entanto, que indivíduos houve, de outros grupos sociais menos privilegiados, que também instituíram vínculos. A tutela judicial sobre estas instituições pertencia, desde o séc. XV até ao final do Antigo Regime, ao Juízo dos Resíduos e Provedoria das Capelas. O primeiro juiz de que há menção, João do Porto, foi indigitado no ano de 1486. As atribuições deste organismo incluíam, nomeadamente, a fiscalização da observância dos encargos pios. Desta incumbência ficaram, posteriormente, encarregados o corregedor da comarca do Funchal (de 1820 a 1837), a comissão da Santa Casa da Misericórdia do Funchal e, finalmente, os administradores dos concelhos (consoante o que foi estabelecido no Código Administrativo de 1842). O desenvolvimento económico e a riqueza criados pela transformação e comercialização do açúcar, desde o séc. XV, conduziram a um fenómeno alargado de vinculação de propriedades e ao absentismo dos proprietários. Diz Álvaro Rodrigues de Azevedo (em palavras sobejamente conhecidas e amiudadas vezes citadas) que “O sesmeiro, rico, enfastiou-se da vida campesina, ufanou-se de sua originária fidalguia, e apeteceu vivenda de mais aparato e bulício; desprezou, por isso, a terra; vinculou-a, na mira de assegurar-se dos réditos dela; contratou-lhe a cultura com os colonos livres” (FRUTUOSO, 1873, 678). Como seria de esperar, as conjunturas económicas de crise também tinham influência nas instituições vinculares. Na primeira metade do séc. XVII, devido ao decréscimo da produção açucareira e dos movimentos comerciais, vários administradores de capelas viram-se incapazes de cumprir os encargos pios nos moldes em que haviam sido instituídos e solicitaram a sua diminuição. Outro tempo de crise, em meados do séc. XIX, por causa do declínio do comércio e da produção de vinho, e de uma carestia de víveres, foi o contexto no qual eclodiram propostas atinentes à abolição dos vínculos, como se verá adiante. Vários documentos – de teor algo crítico quanto à existência e às consequências dos vínculos, ressalve-se – fazem alusão à proliferação destas instituições na Madeira. O Gov. Luís Beltrão de Gouveia, em ofício datado de 22 de abril de 1814, a propósito do imposto de sisa, faz uma série de considerações sobre a propriedade. Nesse sentido, refere que a Madeira “é verdadeiramente a Pátria dos Morgados” e divide o espaço insular em quatro partes, de molde a demonstrar que as transações de propriedades seriam de pouco relevo, não justificando a existência de um imposto: uma parte “de rochedos escarpados improdutivos”; duas “possuídas, administradas, e amortizadas nos grandes e pequenos Proprietários” (em que se inseriam os vínculos); e a última composta de bens alodiais (ALMEIDA,1907, 244). Em 1847, o governador civil José Silvestre Ribeiro, ao arrolar as várias razões que obrigavam os madeirenses à emigração – para ele, um fenómeno deveras nefasto –, referencia, no domínio da propriedade, os vínculos e o contrato de colonia. Neste sentido, calcula, porventura com algum exagero, que 2/3 das terras agricultáveis da ilha da Madeira estavam vinculadas. Esta realidade, ao manter muitas propriedades inalienáveis, imunes a reformas e fora do mercado, constituía um fator de bloqueio do mundo agrícola, beneficiando os proprietários absentistas e prejudicando os colonos. O cálculo de José Silvestre Ribeiro tem sido mencionado em vários trabalhos posteriores sobre a história da Madeira para demonstrar a grande disseminação, neste espaço insular, das instituições vinculares. O juiz de direito José Pereira Sanches e Castro, em 1856, ao pronunciar-se sobre as perversidades que tinham lugar com o contrato de colonia e sobre a relação deste com a instituição vincular, afirma que “a maior parte dos terrenos aproveitáveis para a cultura são vinculados” e que era imperativo extinguir os vínculos (CASTRO, 1986, 232 e 236). Com o marquês de Pombal, principiou uma vaga, que durou quase um século, de normas que restringiram a existência e a criação de vínculos. Este foi um processo gradual e de longo prazo que começou por visar as instituições vinculares de menor valor ou rendimento e que culminou, finalmente, na sua extinção completa, em 1863. Apontem-se os diplomas mais relevantes. Assim, por intermédio de legislação datada de 9 de setembro de 1769 e de 3 de agosto de 1770, estabeleceu-se a abolição ou anexação de vínculos que não chegassem a 200$000 réis de rendimento nas províncias da Estremadura e do Alentejo, e a 100$000 réis nas restantes; acresce que a instituição de morgadios ficou dependente de licença régia. Posteriormente, o decreto de 4 de abril de 1832, de Mouzinho da Silveira, aboliu os vínculos cujos rendimentos não montassem a pelo menos 200$000 réis. A carta de lei de 30 de julho de 1860 – em articulação com o decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861 – suprimiu os morgadios que não tivessem, no mínimo, 400$000 réis de rendimento líquido anual e tornou, ainda, a extinção facultativa para os conjuntos de vínculos que, anexados e sob o mesmo administrador, totalizassem 600$000 réis de rendimento por ano; ademais, sob pena de abolição, estabeleceu a obrigatoriedade, num período de dois anos, do registo de morgadios e capelas existentes e a existir. No fim deste processo histórico está a carta de lei de 19 de maio de 1863, a qual estabeleceu, no art. 1.º, que ficavam “abolidos todos os morgados e capelas atualmente existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, e declarados alodiais os bens de que se compõem” (VASCONCELLOS, 1864, 200), com exceção da casa de Bragança. É muito significativo que, no séc. XIX, várias propostas para a completa supressão de vínculos tenham provido das ilhas (Madeira e Açores) – terras onde havia uma maior proliferação destas instituições e onde, conexamente, os seus efeitos estruturais perniciosos para a economia e sociedade eram mais prementes (ou como tal sentidos). Logo na sessão de 8 de março de 1822 das Cortes Constituintes, o deputado João Bento de Medeiros Mântua, de São Miguel, apresentou um projeto para a extinção dos vínculos nos Açores. Outras iniciativas se seguiram. Aquelas que aqui interessa explorar diretamente, por serem relativas à Madeira, são as de António Correia Herédia e do barão de São Pedro, em época de profunda crise. O barão de São Pedro, Daniel de Ornelas de Vasconcelos, apresentou, na sessão de 15 de fevereiro de 1850, na Câmara dos Pares do Reino, um projeto de lei com o propósito de abolir todos os vínculos no arquipélago da Madeira. Esta proposta foi antecedida pela defesa, em 1847, na imprensa do Funchal, por António Correia Herédia, da extinção destas instituições. Herédia redigiu ainda um manifesto, datado de 1849, intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, que encontrou uma viva oposição de vários morgados e administradores da Madeira, os quais responderam com um outro panfleto – Resposta ao Folheto Intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, de 1850. Esta guerra panfletária teve ainda mais desenvolvimentos, com novas publicações de António Correia Herédia: As Contradições Vinculadas pelo A. das Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira e Duas Palavras sobre a Representação ou Exposição dos Morgados e Immediatos Successores, ambas igualmente de 1850. O barão de São Pedro, no seu projeto legislativo, referenciava o estado de crise que imperava na Madeira e defendia, como medida necessária e salutar, a supressão dos vínculos, considerados ineficazes e prejudiciais, porquanto não permitiam o progresso da agricultura e o incremento financeiro e comercial. A iniciativa foi muito bem aceite na Madeira e originou uma grande vaga de apoio em órgãos de imprensa e por parte de organismos de poder local (várias câmaras municipais e juntas de paróquia) e inclusive de vários indivíduos (proprietários e membros da elite) – organismos e indivíduos que redigiram petições com argumentos a defender a extinção. Entre os defensores desta medida estavam, como seria de esperar, proprietários de bens livres, lavradores ricos, comerciantes, funcionários públicos, clérigos seculares e ainda diversos administradores de vínculos. Por outro lado, vários morgados opositores, em exposição remetida à Câmara dos Pares do Reino, pretendiam contraditar os argumentos do barão de São Pedro. A realidade, todavia, é que o projeto não chegou a ser aprovado em sede parlamentar. Foi necessário esperar por 1863, ano em que foram abolidos os vínculos em Portugal, como se viu. Na sequência da lei de 30 de julho de 1860 e do decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861, foi redigido o Tombo do Registo Vincular do Funchal, em três volumes. Esta fonte documental apresenta, em virtude do que foi prescrito nas duas normas, somente uma amostra dos vínculos que existiram na Madeira; ainda assim, contém informações relevantes que não devem ser ignoradas. A partir das análises de Cabral do Nascimento, no seu estudo já referido, e sobretudo de Miguel Jasmins Rodrigues, em “Abolição dos morgadios: o caso da Madeira” (2013), fica-se a conhecer um tanto do seu conteúdo. Foram registados, deste modo, de 1862 a 1865, os bens de vínculo de 15 casas, através de traslados de documentos que suportavam juridicamente a existência das instituições vinculares (títulos de instituições, anexações, desanexações, hipotecas, sub-rogações ou expropriações, sentenças de supressão, descrições de valores e encargos). Neste âmbito, foram inscritas as seguintes informações: as várias parcelas que compunham cada vínculo; o rendimento anual das mesmas; a identidade e a situação – foreiro ou colono – de quem as cultivava; os produtos agricultados; e o usufruto de água por direito. Os administradores e representantes das 15 casas, preponderantemente absentistas, eram João José de Bettencourt e Freitas, o marquês de Castelo Melhor, João Cabral de Noronha, o visconde de Torre Bela, Urbano Egídio da Costa Campos, Sebastião Francisco Falcão de Melo Trigoso, João Facundo Alves Spínola de Freitas, João de Bettencourt Baptista, o visconde do Amparo, Agostinho de Ornelas Vasconcelos Rolim de Moura, Luís da Câmara Leme, José Cupertino da Câmara, Remígio António da Silva Barreto, Laureano Francisco da Câmara Falcão e Manuel Raimundo Telo de Meneses Torresão. Os vínculos criados nos dois primeiros séculos da história da Madeira – sécs. XV e XVI – perfazem 67% dos vínculos inventariados; os restantes – 33% – representam obviamente os que foram instituídos em época subsequente. A importância das duas centúrias mais remotas sai reforçada quando se apura que 85% do rendimento anual da totalidade dos vínculos registados pertence aos que foram fundados em Quatrocentos e em Quinhentos. É percetível também uma ligação estreita entre a instituição vincular e o contrato de colonia, porquanto a maioria dos morgados – i.e., detentores ou administradores de morgadios – referidos no Registo Vincular faz explorar as suas terras recorrendo a colonos. Três categorias de morgadios podem ainda ser percecionadas nesta fonte: a que consistiu na transformação de um senhorio banal em propriedade, facto que ocorreu com o morgadio dos marqueses de Castelo Melhor; a dos morgadios compostos por propriedades dispersas por toda a ilha da Madeira, como os de Agostinho de Ornelas Rolim de Moura, do visconde de Torre Bela e de Luís da Câmara Leme; e, enfim, os morgadios que abarcavam propriedades somente em uma ou duas freguesias, e.g., os de João de Bettencourt Baptista (no Porto da Cruz e em Santa Cruz) e João Facundo Spínola de Freitas (na Ponta do Pargo e Calheta). Os morgados que detêm um maior número de vínculos e de parcelas são os intervenientes finais num processo transecular de concentração de propriedade, quer por via de heranças, quer através de estratégias matrimoniais. Sirvam de exemplo João José de Bettencourt e Freitas (com pouco mais de 140 parcelas) e, de novo, os viscondes de Torre Bela (com mais de 170) e Agostinho de Ornelas Rolim de Moura (com quase 140). Na sequência, ainda, das normas de 1860 e 1861, foram depositados na Torre do Tombo processos de registo vincular provenientes de vários distritos, entre eles o do Funchal (10 processos). Alfredo Pimenta, na sua obra Vínculos Portugueses. Catálogo dos Registros Vinculares Feitos em obediência às Prescrições da Lei de 30 de Julho de 1860, e Existentes no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo, catalogou essa documentação. Partindo desse trabalho, dá-se aqui nota de um processo constituído pela cópia de registos de vários vínculos criados na ilha da Madeira e administrados por João Correia Brandão Henriques de Noronha, 2.º visconde de Torre Bela. Pretende-se ilustrar a confluência de várias instituições vinculares nas mãos de um mesmo administrador. Mencionem-se, assim, os seguintes instituidores de vínculos (acompanhados das datas dos documentos de criação, quando conhecidas): João Afonso Correia, a 11 de maio de 1490; António Correia, o Grande, a 29 de dezembro de 1572; D. Isabel de Bettencourt, a 2 de dezembro de 1561; D. Maria Vieira, a 23 de julho de 1592; António Correia Bettencourt e primeira mulher, D. Joana Henriques, a 21 de abril de 1624 e a 21 de julho de 1643, e ainda pelo dito e sua segunda consorte, D. Maria da Câmara, a 10 de dezembro de 1670; D. Mécia da Câmara, a 2 de outubro de 1676; D. Guiomar Correia; D. Isabel Abreu, a 29 de outubro de 1545; D. Maria Pestana, a 2 de janeiro de 1566; António Gonçalves da Câmara, a 2 de novembro de 1545; D. João Henriques e mulher, D. Joana; D. Isabel Fernandes, a 27 de novembro de 1546; Pedro de Brito, a 2 de dezembro de 1586; D. Isabel Afonso, anteriormente a 1561; D. Joana Cabral, a 12 de junho de 1598; D. Ana Murante, a 2 de novembro de 1569 até 29 de fevereiro de 1570; Pedro de Bettencourt Henriques, a 27 de dezembro de 1688; António Correia Bettencourt Henriques e mulher, D. Antónia Joana Francisca Henriques, e Henrique Henriques de Noronha e mulher, a 17 de fevereiro de 1706; D. Antónia Joana Francisca Henriques, a 20 de maio de 1746; João de Bettencourt Henriques, a 27 de novembro de 1649; António da Silva Barreto; Fr. Francisco Bettencourt e Fr. Pedro de Noronha; D. Beatriz Chamorra, a 27 de abril de 1565; Inácio da Câmara Leme e mulher, D. Isabel de Castelbranco; Filipe Gentil de Limoges e mulher, D. Isabel Achiaioli de Vasconcelos, a 23 de novembro de 1674 e em datas posteriores. De 1834 até 1878, prolongando um fenómeno que vinha do Antigo Regime, no conjunto das elites municipais do Funchal, continuava a avultar o grupo dos proprietários – morgados e administradores de morgadios e capelas. A título de exemplo, podemos nomear Aires de Ornelas e Vasconcelos, António Caetano Aragão, Tristão Joaquim da Câmara Júnior, António Bettencourt da Silva Favila, Francisco Araújo Bettencourt Esmeraldo, João de Freitas Correia e Silva, João José Bettencourt e Freitas, João José de Ornelas Cabral, Manuel de Gouveia Rego, Nuno de Freitas Lomelino, António de Carvalhal Esmeraldo (2.º conde de Carvalhal, tido como o homem mais abastado na sua época), Diogo França Neto (visconde de São João) e Diogo Frazão Figueiroa (visconde da Calçada).   Filipe dos Santos     artigos relacionados colonia documentário "Colonia e Vilões" capelas morgado dos piornais elites madeirenses e sua reprodução

História Económica e Social

bettencourt, edmundo

Edmundo Bettencourt De seu nome completo Edmundo Alberto de Bettencourt (Funchal, 7 de agosto de 1899-Lisboa, 1 de fevereiro de 1973), revelou-se como poeta quando era ainda aluno do Liceu do Funchal, tendo publicado o primeiro poema (sonetilho) no Diário de Notícias. Findo o curso liceal, partiu, em 1918, com 19 anos, para Lisboa, onde, por pouco tempo, frequentou a Faculdade de Direito da Univ. de Lisboa, transferindo-se, mais tarde, para a de Coimbra, cidade da sua sagração como poeta-cantor, mas sem chegar a licenciar-se.   Colaborador assíduo da imprensa insular e continental, destacou-se como membro fundador da revista Presença (1927), tendo-se-lhe juntado mais tarde Casais Monteiro e Miguel Torga. Conhecida também como Folha de Arte e Cultura, congregou um movimento vanguardista, digno herdeiro do Orpheu. Edmundo de Bettencourt colaborou também noutras importantes revistas, com destaque para Bysâncio, Vértice, Ocidente e Seara Nova. Foi incluído por António Pedro no Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, por Campos de Figueiredo, na Breve Antologia de Poesia Moderna e, por João Carlos, no Cancioneiro de Coimbra. O seu estro refletiu-se ainda na Gacete Literaria de Madrid, bem como noutras revistas estrangeiras, tendo sido incluído por Vitorino Nemésio e Carlos Queirós noutras antologias. Em 1930, rompeu definitivamente com o movimento presencista, no que foi secundado por Branquinho da Fonseca e Miguel Torga, por achar que os presencistas se haviam demitido da defesa de valores sociais e políticos pelos quais sempre se batera e ainda por desejar seguir um caminho novo, eminentemente moderno. Recusou-se, também por isso, a colaborar na revista dissidente Sinal, mantendo-se, a partir de então, à margem de grupos literários, deixando igualmente de cantar e gravar discos e fixando-se definitivamente em Lisboa. Republicano, laico e anarquista convicto, pautava a sua vida pela vivência de ideais, tendo sempre recusado servir-se da política para benefício pessoal. Repudiava abertamente o salazarismo, tendo sido perseguido, sobretudo quando, por altura da Segunda Guerra Mundial, apôs a assinatura num abaixo-assinado de reivindicação sindical. Era então trabalhador na Comissão Reguladora do Comércio de Metais, na capital. Exerceu ainda outras profissões, a última das quais foi a de delegado de propaganda médica. Por haver, nos seus tempos de Coimbra, ousado cantar “Samaritana”, de Álvaro Leal, foi altamente atacado pela hierarquia da Igreja Católica, mas debalde, pois a sua voz de “rouxinol da Madeira” ou “bicho canoro” (como era conhecido) celebrizou para sempre esta canção. Publicou em vida quatro livros de poesia, nos quais reuniu poemas de vários anos, a saber: O Momento e a Legenda (1917-1930); Rede Invisível (1930-1933), que Herberto Helder muito elogiou; Poemas Surdos (1934-1940) e Ligação (1936-1962). Anos mais tarde, em 1963, o poeta Herberto Helder, de quem se tornou grande amigo e com o qual participou nas tertúlias dos cafés Gelo, Royal e Montanha, reuniu a sua poesia toda sob o título Poemas de Edmundo de Bettencourt, prefaciou-a e fê-la publicar pela Portugália Editora, na coleção Poetas de hoje. Por sua vez, a Assírio & Alvim, em 1981, procedeu a uma reedição de Poemas Surdos, livro no qual o poeta revela a sua faceta surrealizante. Herberto Helder considerou-o, com toda a justiça, uma das mais importantes vozes do modernismo português, bem como precursor do surrealismo em Portugal. João de Brito Câmara, outro poeta “madeirense” próximo da Presença, na importante entrevista que lhe fez para a separata literária do semanário Eco do Funchal, em 1944, aquando de uma breve passagem pela Madeira, levou-o a discorrer sobre a modernidade, afirmando-se então Bettencourt como um poeta 100% moderno. Não fora a sua natural timidez e o seu progressivo afastamento dos meios literários, mais cedo teria sido reconhecido como o grande poeta que efetivamente foi. Revelou-se também um exímio intérprete da canção de Coimbra, que revolucionou, e de canções populares, ombreando com António Menano, Paradela de Oliveira e Armando Góis, entre outros. Foi na república do Funchal, em Coimbra, que estilizou a arte canora, acompanhado, à guitarra, por Artur Paredes, mestre neste desempenho. Com ele e António Menano, realizou digressões a Espanha, atuando em Valhadolid, Salamanca e Madrid, e ao Brasil. Teve um retumbante êxito. Gravou na altura muitos discos, que lhe renderam bom dinheiro. Entusiasmado com o seu estro, o maestro Fernando Lopes Graça transformou o seu poema“Liberdade” num canto heróico. Foi elogiado por Manuel Alegre e Zeca Afonso, que o considerou o maior cantor de fados de sempre e precursor da canção de intervenção em Portugal. Edmundo de Bettencourt foi ainda crítico de cinema, tendo tentado introduzir, em Portugal, a fotografia experimental, no que foi pioneiro. Pelo seu alto valor como poeta-cantor, mereceu as caricaturas que dele fizeram vários artistas. Em 1999, aquando do centenário do seu nascimento, o Governo Regional da Madeira o homenageou com uma sessão pública e a colocação de uma placa de metal na casa onde nasceu, à R. dos Murças, no Funchal. No mesmo ano, a então Direção Regional dos Assuntos Culturais editou, em parceria com a Assírio & Alvim, a sua obra completa, Poemas de Edmundo de Bettencourt, bem como o livro de António Nunes, intitulado No Rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma Voz para a Modernidade. Pela mesma altura, publicaram-se alguns estudos, mormente na revista Islenha, sobre a sua poesia. Obras de Edmundo Bettencourt: O Momento e a Legenda (1930); Rede Invisível (1933); Poemas Surdos (1940); “Liberdade” (1946); Ligação (1962); Poemas de Edmundo de Bettencourt (1963).     Fátima Pitta Dionísio     artigos relacionados poetas cancioneiro geral (poetas madeirenses no) música joão cabral do nascimento  

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