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canovai, stanislao

Stanislao Canovai nasceu a 27 de março de 1740 em Florença, e nesta mesma cidade morreu a 17 de novembro de 1812. Foi um dos matemáticos e físicos mais famosos do séc. XVIII, e é considerado o iniciador da corrente científica que se afirmou na segunda metade deste século, nas Escolas Pias de Toscana. A par disto, Canovai foi considerado pelos seus contemporâneos um grande escritor, pela sua doutrina e pelo seu estilo preciso e eloquente. Estudou em Florença e Pisa, como iniciante na Ordem dos Esculápios, e em 1765, foi nomeado para a cátedra de Filosofia e Teologia no seminário episcopal de Cortona, onde lecionou Matemática durante 15 anos. Em 1768, interrompeu, por um período muito curto, o seu ensino em Cortona para ensinar Física matemática no colégio real de Parma. Em seguida foi chamado para ensinar Hidráulica no colégio florentino dos Esculápios. Publicou em Florença, com o editor Giovacchino Pagani, o volume Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore. A obra apresentava-se bem fundamentada e historicamente fundada. Canovai confrontou códices e publicações, e discutiu as escolhas e declarações de estudiosos anteriores, como Angelo Maria Bandini. A obra visava sobretudo considerar e enquadrar o significado cultural do empreendimento de Vespúcio num âmbito crítico e científico mais amplo, e acabou por provocar um debate animado. Canovai, como eminente cientista, queria estabelecer a jornada de Vespúcio de forma conclusiva, e, em particular, decidiu examinar as rotas, a fim de resolver a questão da longitude. A passagem pela Madeira era crucial, dado que a Ilha e o arquipélago eram um dos pontos geográficos fundamentais, tanto para os cálculos de Canovai, como para confirmar a verdade histórica das várias viagens de Vespúcio. Obras de Stanislao Canovai: Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel Dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore (1798).   Valeria Biagi (atualizado a 28.01.2017)

Matemática

ateneu comercial do funchal

Fig. 1 – Capa do jornal Re-Nhau-Nhau (Funchal, 4 abr. 1935). O Ateneu Comercial do Funchal (AtCF) surgiu em nome dos interesses dos empregados do comércio a 8 de dezembro de 1898, sendo os seus estatutos votados só a 8 de janeiro de 1899 e o alvará que os aprovou datado de 22 de dezembro do mesmo ano. Em fevereiro de 1895 fundou-se a Associação de Socorros Mútuos dos Empregados do Comércio, que acabaria por ter uma curta duração, pois em abril do ano seguinte terá sido decidido exonerar os sócios que não pagavam as quotas; alguns destes membros, inseridos num grupo de empregados do comércio, estiveram na origem da criação do futuro Ateneu. Em novembro de 1897, alugaram um quarto ao número 14 da Rua da Sé, com os objetivos de se distraírem nas horas vagas e difundirem palestras educativas, levando assim ao nascimento de uma associação de classe. Os empregados pretendiam também encontrar proteção e apoio na defesa dos seus interesses junto dos patrões. Sob o impulso dos seus principais promotores, empenharam-se na recolha de um avultado número de adesões entre os seus colegas, abrindo, assim, caminho para a primeira reunião, na qual ficou deliberado nomear-se uma comissão para se constituir uma associação da respetiva classe profissional. O grupo reunia-se frequentemente no escritório de comissões de Júlio A. de Carvalho, à Rua do Sabão, e em estabelecimentos comerciais, em assembleias que somavam o empenho de vários colaboradores, o que permitiu que, em pouco tempo, fosse concretizada a aspiração de fundar uma agremiação para defesa dos empregados do comércio. À época debatiam-se, na sociedade local, questões relacionadas com a construção de um jardim no espaço do demolido Convento de São Francisco e do Teatro Municipal (inaugurado em 1888 com o nome de Teatro D. Maria Pia), a par de temas políticos. É neste contexto que nasce, em 1898, o AtCF, associação cujos membros lutam pela concretização daquilo que consideram serem as aspirações dos madeirenses. A atividade do AtCF abarca, assim, não só a defesa dos interesses dos empregados do comércio, mas também o domínio intelectual e o âmbito das obras de utilidade pública, procurando contribuir, dessa forma, para o progresso social da Madeira. Desde a sua fundação até 1900 o Ateneu funcionou no segundo andar do número 24 da Rua Direita, mudando-se, depois, para o número 3 do Largo da Sé, onde permaneceu até 1905. Nesse ano, transferiu-se para o número 108 da Rua dos Ferreiros, onde passou a dispor de instalações mais cómodas e capazes de permitirem o alargamento das diversas iniciativas. Com mais de 90 sócios fundadores, era constituído por personalidades influentes como César de Oliveira, Francisco António Ribeiro, João Maria Valente, Manuel Dias Tavares, Agostinho Dias Tavares, Luís Canuto Gonçalves, Vasco M. de Ornelas, João Gonçalves Farinha, João Pereira Martins, José de Freitas, Manuel Marques Júnior. Júlio A. de Carvalho, que acompanhava os acontecimentos do Ateneu Comercial de Lisboa, foi apontado como impulsionador deste projeto; Vieira de Castro, delegado do Banco de Portugal, fez a redação dos estatutos conforme os do Ateneu Comercial de Lisboa (AtCL) e tratou da sua aprovação. O Ateneu recebeu influências do AtCL, fundado a 10 de junho de 1880, bem como da Sociedade Nova Euterpe – que, em 1884, adotou o nome de Ateneu Comercial do Porto – e do Ateneu Popular, inaugurado em Coimbra em 1885. Segundo José Laurindo de Goes, a partir de 1850 surgiram, por toda a Europa, diversas coletividades com a designação de ateneu, bebendo a sua inspiração da antiguidade clássica Madrid, Roma, Londres ou Paris são exemplo dessa realidade. Fig. 2 – Imagem da simbologia do Ateneu Comercial do Funchal Para Jaime Vieira dos Santos, os fundadores destas coletividades eram homens de amplos horizontes, já que, para além dos proveitos resultantes da atividade comercial, tinham em vista ser homens de cultura, dignificando a sua profissão e elevando o seu espírito. Procuravam a sua própria valorização intelectual, bem como a de todos os membros do Ateneu e respetivas famílias. O comerciante não poderia ser um simples burguês boçal e inculto, mas deveria ser um verdadeiro homem de sociedade, que, ao lado das preocupações do lucro, se interessava também pelos acontecimentos que marcavam a realidade à sua volta Na Madeira, vivia-se um moderado progresso comercial e uma agitada discussão sobre os fundamentos da instauração da República, com vários títulos dedicados à causa republicana, bem demonstrativos do envolvimento e da participação da população na vida política da Ilha. Rafael Bordalo Pinheiro descrevia a época através de uma caricatura que apresentava o vilão madeirense, vestido a rigor, a segurar o deputado Manuel de Arriaga, enquanto pontapeava Fontes Pereira de Melo, chefe do governo da época. Para republicanos como Teófilo Braga, as comemorações camonianas realizadas no Ateneu significavamo começo de uma era nova da democracia portuguesa. A história desta instituição reparte-se em três fases. A primeira, desde a fundação até 1925, consiste sobretudo na sua afirmação enquanto coletividade. É a fase embrionária, marcada pelo entusiasmo dos membros do Ateneu, na qual assumiram grande significado as reivindicações sócio económicas dos anos 20. A segunda fase inicia-se em 1925, com a elaboração dos segundos estatutos, e prolonga-se até aos anos 60, sendo conhecida como o período áureo do AtCF pelos acontecimentos que nesta altura se despoletaram; considerada uma fase mais intelectual que sindical, atinge o seu clímax na década de 50. A terceira fase, iniciada nos anos 60, reflete algum esmorecimento das iniciativas, mantendo-se, no entanto, a realização de atividades como a Festa da Flor. Nos seus primeiros estatutos, o AtCF definia-se como “uma associação de instrução profissional, física e recreativa, representação e proteção mútuas, criada pelos empregados do comércio”, que tinha como finalidade proporcionar a “aquisição de conhecimentos teóricos e práticos que mais diretamente interessem à profissão do comércio em geral” (GOES, 1985, 128). Não se limitaria a agremiar empregados e a zelar pelos seus interesses, mas teria objetivos mais ambiciosos, os quais compreendiam os campos da cultura e da arte. Ao mesmo tempo, pretendia ser um espaço de descanso e partilha de opiniões. O projeto do AtCF visava a valorização intelectual dos associados e respetivas famílias, o que passava pela criação de escolas primárias para os filhos dos seus membros, por cursos de aperfeiçoamento linguístico para os sócios, por lições para o melhoramento da técnica comercial, por conferências sobre arte e literatura, por sessões científicas e palestras, pela ampliação progressiva da sua biblioteca, pela criação de divertimentos – como as tardes dançantes, festas de carácter regional, matinées destinadas às crianças, representações de pequenas peças teatrais – e por outras iniciativas que contribuíssem para estreitar os laços de solidariedade no interior da classe profissional. Seriam estas as linhas gerais estatutárias que algumas direções do AtCF procurariam concretizar ao longo dos tempos. Na qualidade de primeiro presidente da direção do Ateneu, entre 1898 e 1900, Sabino Joaquim Rodrigues procurou promover o desenvolvimento intelectual e social da vida da agremiação, zelando pelo melhoramento do nível de instrução dos seus sócios. Em fevereiro de 1899, inauguraram-se aulas ministradas por personalidades como Manuel Augusto Martins, Francisco Correia Caldas e Jaime Campos Ramalho. Em 1901, nos mandatos de José de Freitas e de Maximiano de Sousa Rodrigues, destacam-se a realização de uma exposição industrial e de uma récita no Teatro D. Maria, aquando da trasladação dos restos mortais de Almeida Garrett para o Mosteiro dos Jerónimos; em 1903, ocorreram a fundação de uma tuna e de um grupo dramático, a recolha de fundos para a construção de um monumento a Câmara Pestana e uma quermesse no então Jardim de São Francisco. Nesta altura, lutou-se pela Lei do Descanso Semanal, fizeram-se viagens pela Ilha e melhoramentos na sede do AtCF. Em 1905, sob a direção de João Lomelino Ferreira, a atividade reivindicativa diminuiu e a instituição virou-se para as áreas do desporto e das artes e letras. No final da primeira década, fundou-se o Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, pela mão de Luíz César Vieira, Francisco Melim e Aquino Baptista; no ano de 1912, foi criada uma escola de instrução primária para as crianças pobres, por proposta do presidente Agostinho Dias Tavares. Em 1913, com o objetivo de congregar a classe do comércio e de defender os seus interesses, alguns elementos do grupo desportivo fundaram O Athenista, jornal que se dedicava aos problemas mais graves da classe. Todavia, por pressão do patronato, por falta de apoio dos comerciantes e pela proximidade da Primeira Grande Guerra, O Athenista deixou de se publicar, o que coincidiu com o colapso do Ateneu. Só depois de 1925 foi possível assistir à retoma da associação e restituir-lhe a dinâmica dos primeiros tempos, por influência do presidente da direção, Carlos Alberto Ferreira, e dos presidentes que se lhe seguiram, personalidades como Diogo M. de Freitas, Juvenal de Araújo e Luís Vieira de Castro. A segunda fase do Ateneu seria marcada pela modificação dos estatutos iniciais, em março de 1925, cujo projeto de reforma foi elaborado pela comissão nomeada a 1 de março, sendo os princípios que regiam a coletividade lidos e aprovados em sessão de 29 de julho de 1925. Os 130 artigos dos novos estatutos veiculavam uma nova compreensão do Ateneu, que passou a definir-se como uma associação de classe de profissionais do comércio constituída tanto por empregados como por patrões – beneficiando, assim, de um critério mais alargado na admissão dos seus sócios, até porque muitos empregados do comércio se tinham tornado patrões com o passar dos anos. Para além da redefinição dos estatutos, também houve alterações nas atas, que recomeçaram a ser numeradas; escolheu-se, para símbolo do comércio, a figura alegórica de Mercúrio; e foi ainda decidido colocar um busto desta divindade no átrio do Ateneu. Seguiram-se tempos marcados por uma conjuntura de sentimentos autonomistas, pela falência de bancos da praça funchalense, em consequência da grande depressão, e pela Revolta da Madeira, bem como pelas transformações políticas que iriam consolidar a governação do Estado Novo. Apesar destas circunstâncias, o Ateneu impôs-se uma nova dinâmica, que acabaria por resultar num vasto conjunto de iniciativas de sucesso. As preocupações dos sócios não se cingiam às questões económicas, mas incluíam também a transmissão de uma panorâmica etnográfica dos costumes da Madeira. Além disso, voltou a incentivar-se o sentido lúdico do baile. Nesta altura, vivia-se um período de maior participação política. Em 1926, foi enviada a Lisboa uma delegação para se encontrar com vários ministros, com o propósito de solucionar as reclamações do comércio local e da própria associação. Pretendia criar uma comissão de verificação e defesa do bordado da Madeira e garantir uma melhor proteção à indústria do bordado; ambicionava a expedição direta de encomendas postais e maior celeridade na sua entrega; apostava na criação de uma representação do comércio na Junta Autónoma da Madeira, no aumento da carteira de descontos nos bancos locais e na simplificação da contribuição industrial. Ao levar as suas pretensões ao Governo Central, os empregados do comércio procuravam também afirmar-se no interior da sociedade madeirense. Insistiram em requerimentos ao Poder Central, sendo 1927 o ano mais ativo, em que trocaram correspondência com o Conselho da Bolsa Agrícola em defesa dos agricultores; com o chefe de serviços da Alfândega, o Governo e a Câmara sobre a questão dos linhos, que era fundamental para a indústria dos Bordados Madeira; com a Direção da Associação Comercial de Lojistas de Lisboa sobre a pauta alfandegária; com o Ministro do Comércio acerca de mercadorias e do movimento de turistas; com o Ministério das Finanças sobre a situação dos impostos, a carteira de descontos, a recolha de moeda, a situação da vinicultura e da obra de verga, a importação das farinhas e outros temas do interesse dos madeirenses. O Ateneu funcionava como uma Câmara de Comércio, que promovia o diálogo com as entidades oficiais em vista da luta pela defesa do comércio da Ilha. Estas conversações permitiram que, em 1928, o Ateneu solicitasse às entidades competentes que os bilhetes de identidade passassem a ser feitos no Funchal; que, em 1929, a importação de farinhas fosse livre; que a situação dos vendedores ambulantes fosse regularizada; simultaneamente, procurou intervir no sentido de que o liceu do Funchal tivesse um edifício próprio. Quanto à década seguinte, destaca-se, em primeiro lugar, o facto de, em 1933, se ter preparado uma exposição de flores naturais, a realizar, em agosto, nos salões do Ateneu, iniciativa que não chegaria a concretizar-se, por motivos políticos. A questão viria a ser ultrapassada por uma manifestação de rua, já que se procurava utilizar as flores, com a sua cor e vivacidade, para fazer a propaganda relativa ao golpe de Estado de 28 de maio de 1926 e, desta forma, impressionar não só os madeirenses, como todos os visitantes da Ilha. O cuidado da questão etnográfica justificou que, em 1935, se efetuasse um levantamento das vendedoras de flores e se publicasse uma postura camarária onde se estipulava o uso do traje obrigatório para as floristas, que usaram o vestuário, pela primeira vez, nas comemorações do 28 de maio, instituindo-se assim, um traje-padrão. Em 1935, após a substituição de diversos dirigentes governativos da Ilha, face às nomeações de Salazar, com Fernão de Ornelas na Câmara Municipal do Funchal e João Abel de Freitas na Junta Geral, o AtCF iria ser o palco escolhido para debater os problemas económicos da Ilha e para procurar esclarecer o rumo dos dinheiros enviados para a Região. Pó, fumo e nada foi o resultado do debate, o que motivaria uma firme resposta de Salazar, em carta enviada ao Presidente da Junta Geral, caricaturada a 6 de junho de 1935 pelo trimensário humorístico Re-Nhau-Nhau. Apesar das dificuldades económicas, cria-se, em 1936, o Núcleo Fotográfico do Ateneu e faz-se o I Salão de Arte Fotográfica, tendo-se destacado, como colaboradores mais distintos, José Carlos de Mendonça, António Manuel Trigo, Eduardo Pereira, Pita Ferreira e Carlos Maria dos Santos. Com a Segunda Guerra Mundial, o comércio da Madeira viveu uma fase crítica, visto que muitos dos bens essenciais foram racionados – além disso, a população padeceu de fome com o conflito. Neste período, a atividade do AtCF enfraqueceu, levando, depois, algum tempo a recuperar a sua dinâmica. Nos primeiros anos da década de 40 fazem-se jogos florais com atribuição de prémios e, em 1942, surge a Festa da Primavera. Assiste-se à afirmação da literatura e do seu aspecto criativo. Carlos Cristóvão, Alfredo Vieira de Freitas e Florival dos Passos são personalidades que marcaram esta época. Horácio Bento de Gouveia assegura que foi “pelo fim da década de 1940 e por todo o decénio de 50” que o Ateneu teve “uma função retintamente cultural” e que desenvolveu, com consciência esclarecida, uma ação de mecenato (GOES, 1985, 131). Vivia-se o espírito clássico do ateneu, que implicava a crítica e o diálogo, com conferências de variadas temáticas em que várias figuras apresentaram as suas ideias. Passaram pelo AtCF, inscrevendo-se na sua história, Ângelo Augusto da Silva, Ernesto Baltazar Gonçalves, José Pereira da Costa, Horácio Bento de Gouveia, J. Vieira dos Santos, J. Brito Câmara, Aragão Mendes Correia, Carlos Lélis e Maria Mendonça, entre outros, os quais marcaram esta época e deram o seu contributo para a literatura da Madeira. Para lá das atividades de pendor intelectual, distinguia-se, no AtCF, uma vertente recreativa, no âmbito da qual havia lugar para diversas modalidades desportivas e passeios a pé, bailes, serões e convívios, ao jeito da belle époque, procurando o descanso mental e a distração da conjuntura económico-social que então se vivia. Em 1954, o Ateneu organizou o Natal do Recém-Nascido e a Festa da Rosa. Seguiram-se a Festa do Avental, em 1956, a organização do I Rally Automóvel do Ateneu e da Festa da Uva, em 1957, para além de uma excursão às Ilhas Canárias e, nos anos 60, uma viagem aos Açores. As relações de amizade com outras regiões do País e com outros países iam-se consolidando, conferindo ao Ateneu um carácter universal. Figuras de toda a Europa e de diferentes ramos de atividade ficaram ligadas a esta instituição, como foi o caso da Viscondessa de Porto Formoso. A Festa da Flor está indissociavelmente ligada ao Ateneu. A Festa da Flor terá a sua origem na Festa da Rosa, quando a direção do AtCF realizou um evento de que fazia parte uma exposição/concurso desta espécie de flores. Para estimular a participação e aumentar o entusiasmo dos membros do Ateneu, foram atribuídos vários prémios, alguns bastante valiosos. O êxito da iniciativa levou a que esta se realizasse todos os anos, não apenas com rosas, mas com qualquer flor, mudando-se a designação, em 1955, para Festa da Flor. Numa terra onde são abundantes as flores de várias espécies, o acontecimento ganhou projeção e adquiriu um valor turístico excecional, dando razão aos que defendiam que podia ali estar a génese de um atrativo turístico de categoria mundial. Ao longo desta década, o AtCF desempenhou papel relevante na procura da elevação do nível cultural da cidade, promovendo conferências, proporcionando noites de arte e outras distrações de carácter cultural. A partir dos anos 60, o associativismo ressente-se não só da adversidade da conjuntura sociopolítica, como também da falta de novas ideias. Nesta altura, o dinamismo e a capacidade criativa do Ateneu perdem fulgor, atravessando-se anos de reduzida expressão cultural pública, o que caracteriza a terceira fase desta instituição. Mantêm-se, no entanto, algumas atividades, nas quais se recordam momentos da história do Ateneu, ou de que fazem parte vários intelectuais madeirenses: por exemplo, Bernardete Falcão, Elisa de Carvalho e Alice Ogando participaram nas conferências realizadas nos anos 60, salientando o papel da mulher. Nos anos 70, destaca-se o aspeto alegórico e renova-se a Festa da Flor, sob a direção do paisagista Fernando Pessoa e do professor Francisco Simões, que aproximam a coletividade das artes plásticas. Depois de se ter realizado, em 1957, no Casino da Madeira, a Festa da Flor volta à sede por razões de espaço. Em 1974 autorizou-se o regresso das atividades culturais ao AtCF; esta retoma cultural foi assinalada no dia 10 de junho com uma conferência sobre Camões, proferida no Teatro Municipal do Funchal. Organizaram-se também exposições de autores como Isabel Cabral, Afonso Costa, Ruy Teles, Carlos Luz e Francisco Simões (Francisco d’Almada). Nesta terceira fase, a atividade do AtCF não se caracterizou pela novidade das suas iniciativas, mas pela repetição da realização de eventos culturais já anteriormente levados a cabo. Os associados organizaram conferências, colóquios, saraus musicais e literários, jogos florais, bailes, exposições, a Mostra do Antúrio e do Sapatinho e, em especial, a Festa da Flor. Em 1981, em razão do trabalho desenvolvido ao longo de várias décadas, o Governo Regional da Madeira (GRM), reunido em plenário, resolveu declarar de utilidade pública o AtCF por intermédio da Resolução n.º 268/81. Foram reconhecidos os importantes serviços que o Ateneu prestou à Região nos setores cultural, artístico, desportivo e comercial, dinamizando a participação cívica dos seus associados e promovendo o associativismo da Região, aos quais se ficou a dever o seu lugar de destaque no interior da sociedade madeirense. Em 1982 reabriu-se o ciclo cultural do Ateneu, com uma forte participação da juventude. Organizaram-se os Jogos Florais de Verão e convidaram-se personalidades como Maria Aurora, Ângela Varela e Gonçalo Nuno, para estimular o renascimento do Ateneu. Nas comemorações do Dia de Camões de 1983 assumiu especial relevo a conferência de Mendes Marques, designada “O Ateneu Comercial do Funchal do Passado ao Presente”, assim como a de Maria Margarida M. Silva. Foram, ainda, expostas várias obras de interesse existentes na biblioteca. Nos anos seguintes, a coletividade continuaria a desempenhar um papel importante na dinamização de atividades socioculturais. Ao assinalar o seu 85.º aniversário, em 1983, ficou claro que o Ateneu, paladino de todos os verdadeiros valores, não estava, nem nunca estaria ultrapassado, assim o quisessem as suas gentes. Entre períodos difíceis e épocas áureas, faziam-se balanços anuais, esperando, ao mesmo tempo, a revitalização desta associação da sociedade madeirense. Procurando adaptar-se à evolução da sociedade, os professores Atanásio e Vítor Costa souberam captar os jovens para as iniciativas do AtCF. Ao longo dos tempos, vários membros desta instituição têm colaborado com ela espontaneamente, empenhando a sua inteligência e o seu esforço em valorizar a atividade do Ateneu. Atingido o centenário da fundação do AtCF, o GRM afirmou-se disposto a apoiar esta instituição, que apresentou formalmente o projeto de reconstrução do edifício-sede, considerado monumento de interesse público. O palacete urbano do século XIX, situado na Rua dos Netos, foi adaptado às exigências da época, procurando contribuir-se, deste modo, para a revitalização do Ateneu, que enfrentara, desde os anos 60, um crescente esmorecimento das suas iniciativas. João Evangelista, presidente desta instituição entre 1983 e 1992, expressaria o seu descontentamento, referindo, com tristeza, que parecia ter caído uma maldição sobre o Ateneu. Os anos iniciais do século XXI foram difíceis, com David Abreu, presidente demissionário desde 2002, a confirmar a acumulação de dívidas, a degradação do edifício e o afastamento dos sócios, não permitindo o desenvolvimento do tipo de atividades que, no passado, o AtCF, na sua qualidade de associação interventiva, havia realizado.   Agostinho Lopes (atualizado a 23.01.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

cem – construindo o êxito em matemática

No final da déc. de 90 do séc. XX, a Associação de Professores de Matemática (APM) realizou um estudo, Matemática 2001 – Diagnóstico e Recomendações sobre o Ensino e Aprendizagem da Matemática, “com o propósito de elaborar um diagnóstico e um conjunto de recomendações sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática no nosso país” (ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA, 1998, 1). Este estudo tinha a preocupação de contribuir para a melhoria do ensino da matemática no início do séc. XXI. Dele emergiram recomendações específicas para uma reorganização curricular, repensando as finalidades do ensino da disciplina para as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula e para a formação de professores, entre outras. Em 2001, seguindo as recomendações advindas do estudo supracitado, o Ministério da Educação lançou o Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais, definindo as aptidões fundamentais que um aluno deveria ter desenvolvido no final de cada ciclo (1.º, 2.º e 3.º ciclos). Esta finalidade do ensino da matemática implicava mudanças nas práticas dos professores. Visando ir ao encontro das necessidades de formação para implementar tais mudanças, realizou-se na Madeira uma formação para professores de matemática. Em 2005, no âmbito do Plano de Ação para a Matemática, iniciou-se em todo o país uma formação de professores que teve como propósito melhorar a preparação para uma mais profícua implementação do novo programa da disciplina, então em experimentação, e que veio a ser homologado em 2007. Esta formação decorreu entre 2005 e 2011 e alcançou milhares de professores. O projeto CEM O CEM – Construindo o Êxito em Matemática é um projeto de formação contínua de professores de matemática do ensino básico que teve início no ano letivo 2006-2007, no âmbito do Plano Regional de Ação para a Matemática, e que conta com o apoio da referida Direção Regional e da Universidade da Madeira (UMa). Com uma visão ampla do que é a aprendizagem no geral e a aprendizagem da matemática em especial, foram adotadas três teorias sociais de aprendizagem que seriam o suporte teórico de toda a conceção e implementação do projeto. A teoria da aprendizagem situada, que vê a aprendizagem como participação, defende que, para aprender, as pessoas têm de se empenhar conjuntamente, sendo igualmente necessário que participem nas práticas e tenham uma meta a alcançar. Outra das teorias que sustentam o projeto é a teoria da atividade, que entende a aprendizagem como transformação, seja das práticas em que as pessoas (professores e alunos) se envolvem, seja das pessoas que aprendem (professores e alunos). O terceiro pilar teórico do projeto é a educação matemática crítica, que discute a aprendizagem como ação dialógica, defendendo que para aprender é preciso existir intencionalidade por parte de quem aprende, o que envolve ação e reflexão sobre essa ação. A partir destas três ferramentas teóricas, idealizou-se um projeto com cenários de aprendizagem para os professores e para os alunos. O projeto criado visou melhorar as aprendizagens e desenvolver as competências matemáticas nos alunos, trabalhando com os professores do ensino básico da Região Autónoma da Madeira (RAM) com os seguintes objetivos: a) promover um aprofundamento dos conhecimentos matemáticos e didáticos dos professores; b) favorecer a realização de experiências de desenvolvimento curricular que contemplem a planificação e a implementação de aulas, e posterior reflexão; c) promover o trabalho cooperativo entre docentes (intra e inter escolas). Com estes objetivos, foi promovida uma formação que teve em conta os conhecimentos matemático, didático e curricular, de acordo com os conteúdos matemáticos a abordar, e procurando atender às necessidades e solicitações dos professores. A realização de experiências de desenvolvimento curricular contemplou a planificação de aulas, a sua condução e posterior reflexão por parte dos professores envolvidos, apoiados pelos pares e pelas formadoras que integravam a equipa do projeto. No ano letivo de 2006-2007, iniciou-se o projeto CEM para professores do 3.º ano do 1.º ciclo. Cada equipa de formação era constituída por uma professora do 1º ciclo e por uma professora de matemática do 3.º ciclo e do secundário. Esta exigência prendeu-se com a procura de assegurar que tanto o conhecimento matemático quanto o didático e curricular estavam salvaguardados. Metodologia de trabalho do projeto CEM As equipas de professores destacados pela DRE prepararam a formação construindo propostas de trabalho adequadas ao tipo pretendido e criaram materiais visando o trabalho dos alunos na sala de aula e considerando a sua adequação a uma metodologia de atuação onde o discente é o elemento central do seu processo de aprendizagem. Quinzenalmente, as equipas de formação reuniam com os docentes, organizados em pequenos grupos (de não mais de 12), apresentavam e discutiam com os professores em formação as propostas de trabalho e os materiais construídos, refletindo sobre as metodologias de trabalho e as consequências das mesmas para a implementação das propostas. Finalmente, prestavam apoio aos professores, em contexto de sala de aula, na execução das propostas de trabalho construídas e amplamente discutidas nas reuniões. Cada professor envolvido na formação tinha a liberdade de adaptar à(s) sua(s) turma(s) a proposta construída pelo CEM, sendo essa adaptação apresentada e discutida com as equipas de formação. Os cenários de aprendizagem dos professores também tinham momentos de discussão e reflexão conjunta (professor, equipa formadora, restantes professores em formação) acerca da prática pedagógica resultante da implementação das propostas de trabalho na sala de aula. Os formandos tinham ainda de refletir sobre o processo e apresentar ao grupo de trabalho, com base em artigos científicos fornecidos pela equipa de formadores, diversas temáticas, como sejam, a avaliação das aprendizagens matemáticas e a comunicação matemática. Como estratégia complementar, os professores envolvidos no projeto dinamizavam, com o apoio da respetiva equipa formadora, seminários trimestrais nos estabelecimentos de ensino a que pertenciam, como meio de troca e partilha de experiências com os restantes colegas da escola. Dos cenários de aprendizagem criados para os docentes faziam também parte a análise e interpretação (por parte dos professores, apoiados pelas equipas de formação) dos documentos curriculares que foram emergindo ao longo de todos os anos de projeto. Este aspeto do trabalho é bastante apreciado pelos professores. A evolução do CEM Em 2006-2007, 57 professores do 3.º ano de escolaridade aderiram voluntariamente ao projeto. Em 2007-2008, entraram 119 novos professores, também do 3.º ano, e deu-se continuidade ao trabalho realizado com 49 dos docentes que integraram o projeto no ano anterior, na altura lecionando 4.º ano de escolaridade. Em 2008-2009, o projeto funcionou com 106 professores do 4.º ano (dos que tinham entrado para o projeto no ano antecedente) e entraram cerca de 100 novos professores do 3.º ano. Ainda em 2008-2009, foram preparadas propostas para o 1.º ano de escolaridade, disponibilizadas numa plataforma Moodle, introduzida nesse ano letivo como mais um meio de comunicação entre a equipa de formação e os professores em formação. A preparação das propostas para o 1.º ano foi a forma de garantir o elo de ligação aos professores que tinham terminado a formação presencial. No mesmo ano letivo, chegaram ao 2.º ciclo os primeiros alunos do projeto CEM. O CEM, para o 2.º ciclo do ensino básico (CEM2), surgiu como a continuidade natural e desejável a dar ao trabalho realizado por esses alunos no 1.º ciclo do ensino básico (CEB). Aderiram ao projeto 65 professores de matemática que estavam a lecionar ao 5.º ano de escolaridade e entraram para o projeto mais duas equipas de formação, cada uma delas constituída por duas professoras de matemática (uma do 2.º e outra do 3.º ciclo). Em 2009-2010, o projeto CEM (1.º ciclo) funcionou com cerca de 70 professores do 4.º ano. Foram preparadas propostas para o 2.º ano de escolaridade, disponibilizadas na plataforma Moodle. No CEM2, deu-se continuidade ao trabalho realizado no ano anterior com os professores de matemática do 5.º ano que se encontravam já a lecionar ao 6.º ano. Em 2010-2011, chegaram os primeiros alunos do projeto CEM (1.º e 2.º ciclos) ao 3.º ciclo. Assim, como forma de dar continuidade ao trabalho realizado nos ciclos anteriores, o projeto CEM estendeu-se ao 3.º ciclo do ensino básico (CEM3). Os objetivos do CEM3 são, basicamente, semelhantes aos que tínhamos para o 1.º e 2.º ciclos. Neste ano letivo, foi feita a generalização dos novos programas de matemática do ensino básico. Todo o trabalho desenvolvido teve em conta as orientações do novo programa, até então em experimentação. Iniciou-se o CEM3 com 56 professores do 7.º ano de escolaridade e com três formadoras licenciadas em matemática destacadas pela DRE. Entretanto, nesse ano letivo (2010-2011), a DRE quis alargar o projeto a um maior número de professores. Estreou-se assim uma nova modalidade do CEM para o 1.º CEB (CEM1): formação de formadores. As equipas do CEM1 prepararam 30 professores para fazerem formação a outros docentes por toda a RAM. Cada um destes formadores seria responsável por dinamizar a formação de um grupo de 12 professores. Esta modalidade perdeu a componente de trabalho conjunto na sala de aula. Seguiu-se um esquema semelhante para os professores do 5.º ano. 40 docentes das diferentes escolas da RAM receberam formação com a equipa do CEM2 e depois deram-na aos colegas da sua escola que lecionavam ao 5.º ano. Em 2011-2012, foram 48 os professores do 8.º ano que estiveram envolvidos na formação na sua modalidade original, sendo que muitos deles já tinham tido formação no âmbito do projeto CEM3 no ano anterior, quando lecionavam ao 7.º ano. Ao longo deste ano letivo, 19 professores do 1.º CEB receberam formação e replicaram-na a grupos de 12 professores. Também 33 professores do 6.º ano receberam formação e dinamizaram-na nas suas escolas para os colegas que lecionavam no mesmo ano de escolaridade. Em 2012-2013, o projeto CEM3 atingiu o último ano de escolaridade do 3.º ciclo, trabalhando na sua modalidade original (com acompanhamento na sala de aula). Foram 60 os professores do 9.º ano que frequentaram a formação. Para esse ano letivo (2012-2013), a DRE propôs que se adotasse uma metodologia semelhante à dos 1.º e 2.º ciclos para os 7.º e 8.º anos. Ou seja, professores dos 7.º e 8.º anos indicados pelas próprias escolas fariam formação com as equipas do CEM3 e depois dinamizariam a mesma formação nos seus estabelecimentos de ensino para os colegas que lecionavam ao 7.º ou 8.º ano, respetivamente. Mas esta formação para os 7.º e 8.º anos não teve o sucesso esperado, nomeadamente, devido à obrigatoriedade da mesma e à falta de critérios adequados para a seleção dos professores que iriam receber a formação com as equipas do CEM3 e replicá-la nas escolas. Em relação ao 1.º CEB, nesse ano, fez-se formação para todos professores da RAM que se encontravam a lecionar ao 4.º ano de escolaridade: 153 frequentaram essa formação. Note-se que muitos destes docentes já tinham frequentado o projeto CEM na sua modalidade original e, portanto, conheciam muito bem as metodologias de trabalho em questão. Este aspeto foi uma mais-valia para a formação e refletiu-se na profundidade das reflexões elaboradas pelos professores, quer sobre as propostas apresentadas, quer sobre a implementação das mesmas na sala de aula, e também no aproveitamento dos alunos. No que concerne ao 2.º CEB, no mesmo ano letivo, 26 professores do 5.º ano e 27 do 6.º ano participaram na formação. Muitos já tinham frequentado o CEM2 na sua modalidade original. Em 2013-2014, estando a DRE muito agradada com os resultados dos exames nacionais de matemática do ano anterior, solicitou novamente formação para todos os professores do 4.º ano da RAM e para os professores do 1.º e do 3.º (anos em que o novo programa de matemática, definido em 2013, estava a ser implementado). Iniciou-se com os professores destes 1.º e 3.º anos uma nova modalidade do CEM e apostou-se no b-learning, uma vez que muitos destes professores já tinham participado no projeto, numa das outras modalidades. No 2.º e 3.º ciclo, a formação foi para os professores que lecionavam aos 5.º e 7.º anos, respetivamente, uma vez que eram anos de implementação do novo programa de matemática (2013), como se disse. No 7.º ano, na modalidade original e no 5.º, sem acompanhamento na sala de aula. Os números do CEM  Ao longo destas linhas foi indicado o número de professores que participaram na formação do CEM nos três níveis de ensino. Quanto aos discentes, cada professor que participou no CEM tinha mais do que uma turma e terá trabalhado com uma metodologia semelhante nas várias turmas que tinha e pelas quais foi passando ao longo dos anos pós-projeto CEM. Não se consideram esses valores no quadro da fig. 1, mas somente o número de alunos no ano e turma com que o professor participou no projeto. Muitos destes discentes foram “alunos do CEM” durante diversos anos e ciclos de escolaridade. Também vários professores dos diferentes ciclos participaram no CEM durante vários anos. Ano letivo N.º de professores por ciclo N.º de alunos por ciclo 1.º  2.º 3.º 1.º 2.º 3.º 2006-2007 57 - - 1140 - - 2007-2008 168 - - 3360 - - 2008-2009 206 65 - 4012 1625 - 2009-2010 70 31 - 140 775 - 2010-2011 15 40 56 1920 1000 1046 2011-2012 19 33 48 2400 825 772 2012-2013 153 53 113 3060 1300 2418 2013-2014 235 36 29 4700 900 658 Fig. 1 – Quadro com o número de docentes e discentes que participaram no projeto CEM entre os anos letivos de 2006-2007 e 2013-2014. Os resultados do projeto CEM Os resultados obtidos são, em termos gerais, semelhantes para o CEM1 e para os CEM2 e CEM3. Podemos avaliar o projeto tendo em conta: as aprendizagens matemáticas dos alunos e as transformações nas práticas dos professores. Para avaliar as aprendizagens matemáticas dos alunos, temos disponíveis os seguintes elementos: resultados das provas de aferição e dos exames nacionais; observação do trabalho dos alunos aquando da participação das equipas de formação nas aulas dos professores em formação; partilha feita pelos professores nas reuniões quinzenais sobre o desempenho dos alunos nas aulas; inquéritos realizados aos alunos; portefólios elaborados pelos professores; múltiplas teses de mestrado realizadas na UMa. No que diz respeito aos resultados das provas de aferição dos alunos do projeto CEM1, CEM2 e CEM3, podemos constatar, ao longo dos anos, que estes são ligeiramente melhores do que os resultados globais dos alunos da RAM. A grande diferença está na ausência da classificação mais baixa (nível E) nos alunos do projeto e de uma percentagem maior de alunos com classificação superior (nível C). No ano 2012-2013, a média dos resultados dos exames nacionais dos alunos da RAM foi superior à média dos resultados dos exames nacionais dos alunos de Portugal continental. Da observação direta do trabalho dos alunos, denota-se aprendizagens significativas ao nível dos conteúdos matemáticos, maior interesse e empenho para com a aprendizagem da matemática, mudança de atitude em relação a esta disciplina, mais competência na resolução de problemas matemáticos e utilização da matemática de forma crítica. Os professores que recebem “os alunos do CEM” referem que estes aprenderam a discutir ideias matemáticas e a comunicar matematicamente, quer por escrito, quer oralmente; têm um forte poder de argumentação; sabem trabalhar cooperativamente, com materiais manipulativos e com software informático, mantendo uma postura crítica face à aprendizagem da matemática; têm muita facilidade em discutir estratégias e procedimentos, bem como em fundamentar as suas opiniões. Estes resultados são também corroborados pelos autores das várias teses e relatórios de mestrado em ensino da matemática no 3.º CEB e no secundário elaboradas na UMa, por professores que frequentaram o CEM. Para avaliar as transformações nas práticas dos professores, dispomos dos seguintes meios: reuniões quinzenais, idas às escolas, reflexões; planificação e execução das aulas, escolha dos materiais e seleção de estratégias; portefólios elaborados pelos docentes; inquéritos realizados aos mesmos; e a dissertação de doutoramento da Eva Gouveia. Da análise de todos estes instrumentos de avaliação podemos afirmar que houve mudanças ao nível dos conhecimentos científicos e didáticos dos professores envolvidos no projeto, visíveis através de um maior rigor científico-matemático e de uma maior necessidade de aprofundamento dos conhecimentos matemáticos. Houve também mudanças no que diz respeito à planificação e condução das aulas, bem como à reflexão que passaram a fazer sobre as aulas participadas. As planificações tornaram-se mais sistematizadas e fundamentadas; as aulas, menos expositivas e mais centradas no aluno; os conteúdos matemáticos, tratados com maior rigor científico; os professores, mais críticos em relação ao seu desempenho. No geral, ao final de um ano de projeto, a prática pedagógica dos professores envolvidos no mesmo sofreu transformações, quer na diversificação de estratégias, quer na crescente inclusão de materiais manipulativos nas suas planificações e nas suas práticas, bem como na segurança com que passaram a trabalhar a matemática. No que diz respeito ao trabalho cooperativo entre os docentes, houve alguns casos de sucesso, mas, de um modo geral, os professores ainda resistem ao trabalho cooperativo intra e inter escolas. As formadoras do projeto As formadoras do CEM são uma parte fundamental do projeto. Para que tudo decorra da melhor forma possível, quando em contacto direto com os professores em formação, é necessário um forte trabalho de bastidores que também merece ser destacado. Semanalmente, houve reuniões de trabalho entre as formadoras do projeto e a sua coordenadora. Foi nessas reuniões que se definiram ou redefiniram estratégias de trabalho, se discutiram as propostas apresentadas e debatidas com e pelos professores, e se consideraram artigos científicos sobre a aprendizagem da matemática, a avaliação das aprendizagens matemáticas, a utilização de materiais manipuláveis e softwares educativos e applets na aula de matemática, entre outros.   Elsa Fernandes (atualizado a 29.12.2016) 

Educação História da Educação

tetos de alfarge

Os tetos de alfarge ou de laçaria existentes na RAM constituem uma incontornável persistência do que terá sido uma rara e inovadora expressão artística de âmbito arquitetónico com forte componente estrutural experimentada em Portugal. O seu tempo áureo estará de forma muito particular ligado ao curto reinado de D. Manuel I (1496-1521), e a sua permanência enquanto processo construtivo terá superado as questões de estilo, ditado pelo gosto particular deste rei, resistindo inclusivamente ao seu desvanecimento e readaptando-se sem perder a sua identidade tecnológica. Importará, contudo, reter de forma breve os antecedentes que consubstanciaram este ciclo artístico. Desde logo o surgimento, difusão e persistência da cultura islâmica em Portugal continental. No último quartel do séc. XX, esta foi divulgada e contextualizada através do contributo científico da arqueologia, da antropologia e da história, entre outras disciplinas. A sua ligação aos califados da Andaluzia inscreve-a numa faixa territorial do Sul da Península em estreita ligação com o Norte de África e o Médio Oriente, em termos de ancestrais ligações culturais e religiosas, pelo que se perceciona uma vasta unidade sociocultural cujas naturais diferenças são articuladas por fatores de comunicação. Seria com estes territórios que as Ilhas Atlânticas, em particular a Ilha da Madeira, viriam a estabelecer, a partir do séc. XV, uma estreita relação comercial, política e cultural, na senda das ancestrais navegações que ousaram vencer as colunas de Hércules e prospetar as costas Norte e Sul do vasto Atlântico. O início do séc. XV inicia-se praticamente com a conquista cristã de algumas praças do Norte de África por parte dos portugueses, configurando-se uma nova realidade geoestratégica. Neste contexto, as descobertas da Ilha da Madeira e, de seguida, do arquipélago dos Açores favoreceram a construção de uma ideia de expansão, surgindo novos centros geográficos readaptados a entrepostos estratégicos. Os estreitos contactos com a cultura islâmica são, a partir de então, uma realidade incontornável, tanto em tempo de paz como de guerra, e mesmo quando em pleno reinado de D. João III (1522-1578) se percebe a impossibilidade de permanência em tantas praças africanas as trocas culturais já se terão consolidado de forma estruturada. O investigador Rui Carita, que dedicou especial atenção aos tetos mudéjares da Madeira, refere três potenciais razões para o facto de existir um tão forte e coeso núcleo destes tetos na ilha. A primeira relaciona-se com os contactos que teriam tido lugar no espaço continental até à fundação da nacionalidade, com presença de árabes e moçárabes, ou seja, cristãos submetidos à lei islâmica. A segunda liga-se à conquista de pontos estratégicos no Norte de África nos inícios do séc. XV, cuja cultura elegante e refinada observada nos palácios e casas nobres teria encantado alguns portugueses. A terceira relaciona-se com a subida ao trono de D. Manuel I, duque de Beja, que praticamente impôs o desenvolvimento e intensificação deste tipo de gosto de tradição islâmica a todo o país. Existem registos da admiração dos portugueses aquando da sua entrada nas residências de Ceuta, descrevendo Gomes Eanes de Azurara, cronista-mor, a perplexidade dos portugueses perante as “grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de desvairadas cores, e os tetos forrados de olival, com formosas açoteias cercadas de mármores muito alvos e polidos”. Acrescenta o cronista: “nós outros mesquinhos, que não temos outro repouso senão pobres casas que, em comparação destas, querem parecer choças de porcos.” (CARITA e CARDOSO, 1983, 23). O Arqt. Hélder Carita, na sua análise espaciotemporal de enquadramento da arquitetura portuguesa a propósito da Casa dos Bicos, sublinha a importância que os tetos de alfarge, conjuntamente com os azulejos, terão tido na distinção desta arquitetura quinhentista. Acompanhamos esta análise e interrogamo-nos se nesse período histórico de renovação e reabilitação da “arte” islâmica, agora numa prerrogativa mudéjar, não existiriam ainda vestígios significativos do palácio árabe, bem como de casas contíguas das famílias dominantes que terão sido apropriadas pela nova aristocracia católica sem procederem necessariamente ao seu desmonte. Coloca-se, assim, a questão de como terão sido esses interiores e, sobretudo, como terão enobrecido em função do enriquecimento dos seus proprietários. O processo acumulativo e/ou de ocultação é tradicionalmente uma constante, ao invés da demolição e integral substituição, pelo que consideramos a possibilidade de muitos dos tetos de alfarge terem permanecido até ao terramoto. Até 2015, não se conheciam testemunhos escritos sobre a existência desses tetos anteriores ou posteriores ao terramoto de 1755 e a outras calamidades. Apenas se conhecia a crónica de Fernão Silva, que terá contado com o testemunho do cruzado Osberno, na conquista de Lisboa: “Lanço estas regras ao papel já sob o teto mourisco de uma casa que pertenceu porventura a algum príncipe Sarraceno, ou onde um dia se albergou, recoberta de lhamas doiradas, a filha de qualquer capitão da Kssaba, ninho alto de pedras luminosas, esta hoje alcáçova cristã, onde, desde há horas, canta o imaginário Truão de Guimarães.” (ARAÚJO, 1993, 45). As identidades culturais ter-se-ão desenvolvido e apurado na continuidade de ciclos económicos estáveis, incorporando subtis inovações e mesmo eventuais ruturas que não apagaram necessariamente as anteriores, que persistiram em lentas transformações/adaptações. Os tetos de Alfarge, apesar da rutura cultural que aparentemente terão introduzido nos finais do séc. XV, terão reencontrado em Portugal um novo ciclo após a morte de D. Manuel I, precisamente o de simplificação resultante de um eficaz processo tecnológico a que estão associados. Tal facto será resultado de um certo contraciclo cultural imposto por D. João III, no qual a exuberância dá lugar a uma grande contenção formal, retirando do espaço arquitetónico o esplendor luminoso da arte manuelina e, por inerência, as referências luxuriantes de pendor islâmico/oriental. A historiografia, de um modo geral, não terá aprofundado a forma como a cultura andaluza terá sido influente e integrada na arquitetura portuguesa, talvez por nunca a ter considerado suficientemente relevante para a sua formação, filiando-a apenas na superficialidade decorativa e não na configuração arquitetónica, em particular na identidade espácio-funcional, de que destacamos a arquitetura civil, tanto no continente como nas regiões autónomas da Madeira e Açores. Para melhor nos enquadrarmos neste específico tema, importará desde logo registar o que determina o termo “alfarge”. A sua definição difere significativamente entre Portugal e Espanha. No país vizinho, é praticamente consensual para os investigadores que a palavra se reporta a um teto plano de onde se destacam as vigas transversais planas, por vezes com incisões ou arestas sutadas, sob as quais pousa o tabuado. Entre essas vigas é comum observar-se uma decoração designada de laço. Al-farx, em árabe, significará “cobrir com ornato”. Em Portugal, terá sido Joaquim de Vasconcelos, no Guia de Portugal (1983), quem identificou e caracterizou esses tetos hispano-mouriscos, designando o alfarge numa perspetiva mais abrangente ao associá-lo a outras formas artísticas ditas de alfarge. Contudo, o mais corrente na época era referir-se esses tetos como hispano-mouriscos, de laço ou carpintaria de laçaria em aproximação à designação espanhola. Segundo Joaquim de Vasconcelos o “lavor do alfarge ou almoçarabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a conquista árabe até ao primeiro terço do século XVIII” (VASCONCELOS, 1983, 38). Raul Proença, referindo-se a este autor, propôs: “que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço (em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicutado. A etimologia que se dava à palavra alfarge (...) era al-farash, que alguns traduziam por assoalhado” (PROENÇA, 1983, 38-39). Pedro Dias, na sua obra Arquitetura Mudéjar Portuguesa: Tentativa de Sistematização, incorpora de forma inovadora o mudejarismo na historiografia nacional. A contextualização das diferentes expressões artísticas no ambiente arquitetónico são agora parte integrante do processo e não simples revestimento ou adorno. No caso dos tetos, este autor, tal como Rui Carita, procura salientar a sua relevância na fábrica da arquitetura, revelando inclusivamente o importante carpinteiro da obra-mestra dos Paços de Sintra: “O carpinteiro João Cordeiro era ‘...mestre das ditas obras dos paços nos ditos Serviços e em fazer rosas para a Capela e Estrelas e Rezimbros para a dita Capela.’". Prossegue o autor com uma nota da maior relevância por ter data: "um documento mais antigo, datado de 1450, referente a um crime cometido em Évora por um jovem, alude a que este era bom carpinteiro ‘... de obra de laço e coisas subtis de carpintaria...’, o que a nosso ver, é uma alusão aos tetos mudéjares” (DIAS, 1994, 55). Esta datação revelará sobretudo uma prática conhecida e em uso no período do reinado de D. Manuel I, época em que esta arte atingiu o seu maior esplendor. Dos diversos núcleos que este autor reporta, apoiando-se no trabalho da historiadora Luísa Clode e especialmente na incisiva investigação de Rui Carita, destacamos o Mudéjar Madeirense. Rui Carita procurou identificar os tetos madeirenses numa perspetiva integradora da história da arte no contexto alargado, ou seja, para além do fenómeno regional. Neste sentido, considera que "teremos de filiar o conjunto de tetos mudéjares da Madeira no conjunto geral de trabalhos provenientes da área e dos artifícios de Sevilha, como foi entre nós o caso das importações de azulejos para a Sé, Santa Clara, Santa Cruz”. Dada a qualidade impar dos tetos da Sé, “efetivamente bastante acima de todos os outros exemplares, ainda se poderá avançar com a hipótese de se ter deslocado ao Funchal uma equipa específica para esse trabalho, em princípio, a mando de D. Manuel I e que localmente terá formado e divulgado este tipo de gosto" (CARITA, 1989, 180). Esta possibilidade não só nos parece verosímil como terá pelo menos potenciado o interesse por parte do corpo eclesiástico e da elite local em aceder a tão elaborada e nobre arte. De outro modo, como explicar a profusão destes tetos em igrejas, capelas e casas nobres madeirenses? Também o arquipélago dos Açores acolhe um importante núcleo de tetos de alfarge, muito embora os sucessivos terramotos e tremores de terra tenham destruído a sua grande parte. Importa contudo salientar que consideramos a possibilidade de nos Açores se ter edificado, no período filipino, um segundo ciclo de tetos de Alfarge, reconstruções e construção de novos por via da instalação de famílias castelhanas associadas ao tráfego comercial com a América Latina, situação que terá tido menor importância na Madeira. Do mesmo modo que se dá conta da existência de tetos de alfarge no Continente, anteriores ao período Manuelino, também nos parece plausível ter sucedido o mesmo na Madeira, com a particularidade de se ter estabelecido um roteiro marítimo estratégico com as Praças Africanas. São diversos os testemunhos que dão conta de se terem transportado dessas Praças diversos elementos estruturais e artísticos para Portugal, mas também para a Madeira, e, se os homens da elite portuguesa se deixaram deslumbrar pelo requinte e conforto dos cómodos da aristocracia muçulmana, de que se destacariam os tetos pela sua exuberância e influência nas espacialidades, com alguma probabilidade os mestres e artesãos que trabalharam nesses lugares terão percecionado e, quiçá, aprendido essas técnicas e efeitos artísticos, independentemente da sua condição sociorreligiosa. Cidades como o Funchal e Angra do Heroísmo, entre outras, terão recorrido a técnicos de elevada qualidade e experiência, a título individual ou integrados em contratos integrais de empreitadas de obras reais, da Igreja ou mesmo privadas, da aristocracia local, originando porventura uma continuada prática iniciada no séc. XV. Tais técnicos provavelmente terão origem na Andaluzia, nas Praças Africanas ou nas Ilhas Canárias, e terão sido os primeiros mestres de carpinteiros portugueses da carpintaria de laçaria. O forte núcleo de tetos de alfarge existentes na Madeira, bem como a sua qualidade, sugere que esta arte terá sido muito apreciada durante um largo período de tempo, mesmo depois de, no Continente, já se ter iniciado outro ciclo estético de tetos, o terá permitido a fixação de um número considerável de artífices e respetivos aprendizes. A Sé e a Alfandega distinguem-se precisamente pela magnificência dos tetos de alfarge, com especial relevância para a primeira, de que se destaca o excelente programa pictórico que cobre pranchas de forro, bem como traves, frisos e tirantes. Também no teto do coro alto do Convento de Santa Clara podemos observar uma elaborada pintura, reforçando a tese de que a Madeira terá tido um ciclo de grande erudição na construção de tetos de alfarge. Admitimos que as principais igrejas matrizes construídas ou renovadas neste período terão integrado estes tetos, que seguramente terão procurado distinguir-se entre si, ainda que mantendo a base canónica, principalmente por via da pintura e dos motivos geométricos da carpintaria, alguns notáveis. São exemplos as matrizes da Ponta do Sol, da Calheta e do Loreto. Ter-se-ão perdido o de Santa Cruz e o de Machico, como provavelmente os de outras igrejas desta época. Esta realidade será em tudo semelhante à identidade das capelas públicas e privadas, bem como das que terão sido instituídas por famílias da aristocracia nas comunidades de sua influência, integradas nos solares ou isoladas nas propriedades dos morgados. O seu isolamento e as partilhas conflituosas terão dificultado a sua manutenção, sobretudo a do património integrado e dos tetos de alfarge. As Capelas que mantiveram o teto de alfarge resumem-se à dos Reis Magos, na Calheta, à Capela da Glória, no Campanário, e à de São Paulo, na rua da Carreira, no Funchal. Esta última terá sido mandada construir pelo 1.º capitão donatário em 1426, em madeira, sendo apenas alterada para pedra e cal algumas décadas depois. Este teto de alfarge denota um certo “arcaísmo”, ou seja, a sua expressão revela um inusitado “experimentalismo”, quiçá por via de uma deficiente interpretação das formas, medidas e proporções canónicas. Admitimos estar na presença de um teto executado por uma “interpretação de memória” de alguém com uma prática e um saber insuficientes face ao que esta arte exige, provavelmente um aprendiz. Presumimos que terão existido outras capelas com tetos de alfarge, alguns tardios, que terão introduzido a sua “simplificação”, tal como, em idêntico período e processo, terá ocorrido com a arquitetura tradicional solarenga, de que a capela constituía uma parte indissociável. As denominadas casas de Quinta da tradição madeirense (que antecederam o período da renovação introduzido pelos ingleses no séc. XVIII) constituíram, durante séculos, a expressão da erudição da arquitetura solarenga na região. Salões, câmaras e capelas incorporavam, provavelmente, tetos de linhagem na arte do alfarge. Os pequenos mirantes, nalguns casos, refletiam também a memória do alfarge, como é o caso particular do teto do mirante e da casa de Dona Guiomar, posterior Quinta da Vigia, que foi remontado em 1770, embora já figurasse na planta de Mateus Fernandes de 1567/70. Cidades e Vilas exibiam Capelas como a de São Luís de França, na rua do Bispo no Funchal, e a Capela da Glória, no Campanário (Ribeira Brava), com localizações distintas: uma urbana, de identidade erudita, e outra rural, isolada. Em ambas, podemos observar a “memória” do alfarge na armação simplificada, despojadas de ornamentos geométricos ou de pinturas. Contudo, podemos observar, no caso de São Luís, as incisões do graminho nas traves, bem como a meia-cana no tabuado e sobretudo a passagem do ângulo dos planos inclinados com o “espaço de espera”, de transição, para o plano central. A Capela da Glória será o paradigma de tetos simplificados nesta tipologia, tal como o Solar Welsh (1685) em relação à arquitetura tradicional solarenga. Este pequeno teto apresenta uma armação simplificada, mantendo contudo a proporção dada pelo ângulo dos planos inclinados e, naturalmente, pela transição para o plano central, direito. Curiosamente, e apesar da sua reduzida dimensão, integra cantoneiras com apoios em tudo semelhantes aos que observamos na Ilha do Pico, nos Açores, especialmente o da Casa do Ouvidor, na estrada da Ribeira Seca, em São Roque. Esta “simplificação” dos tetos de alfarge em espaços religiosos surge também em algumas sacristias e/ou espaços de apoio e transição, como será o caso da sacristia do Convento de Santa Clara no Funchal, entre outras de ambos os arquipélagos. Nos Açores, registámos, em diferentes Ilhas, tetos de alfarge implantados em distintos programas tipológicos e em diferentes estados de originalidade e conservação. Contudo, os sucessivos terramotos, de que se destacam o de 1614 e o de 1 de janeiro de 1980, para nomear os mais aparentemente devastadores, terão contribuído para o seu quase total desaparecimento. Este último terá inclusivamente destruído um conjunto de tetos de alfarge que ainda persistiam, apesar de muito alterados, localizados nos grandes edifícios religiosos, como os da Sé de Angra e também dos principais edifícios governamentais, de que é exemplo o Palácio dos Capitães Generais, igualmente em Angra. Mas também conventos e outros edifícios de menor porte, de que destacamos solares, capelas e igrejas paroquiais, tiveram o mesmo infortúnio. Porém, permanecem ainda “memórias” em vários edifícios do núcleo histórico de Angra, destacando-se também um significativo número de tetos de alfarge de média e grande qualidade integrados em alguns dos principais solares da aristocracia terceirense. Destacamos, na Ilha Terceira e na cidade de Angra, as casas das famílias Reis Leite, Pamplona do Couto, Anes do Canto e Cortes Reais, bem como a casa urbana de D. Violante do Canto, posterior Sport Clube, que, com o sismo de 1980, viu o seu último piso derrocar, perdendo-se o teto que teria sido de alfarge, embora o Museu de Angra tivesse recolhido dois escudos de armas de famílias provavelmente com ligações espanholas. Para além destas casas nobres, assinalamos os tetos das casas onde se veio a situar a delegação de turismo. Fora de Angra, registamos o notável teto no solar conhecido como Quinta do Carvão no Caminho de Baixo, datado de 1634, os tetos de pequena dimensão da Quinta da Estrela ou os de quintas dispersas, como a de Santo António e do Espanhol, cuja tipologia de casa quadrada se distingue por ser única. Na Ilha Graciosa, em Santa Cruz, registamos a casa da família Brum do Canto, que, durante as obras de reabilitação, ao se derrubarem os tetos de estuque dos princípios do séc. XX, deixou expostos seis tetos de alfarge praticamente intactos que corresponderão ao modelo generalizado de tetos de alfarge simplificados que se terão vulgarizado nas casas solarengas dos Açores e da Madeira. No piso térreo, no átrio de entrada, o teto é de alfarge de “estrado”, apresentando os barrotes estruturais um conjunto de linhas incisivas e formando uma composição geométrica. Os guarda-pós laterais, ligeiramente inclinados, as meias-canas, que cobrem as juntas do forro, e um friso esculpido no perímetro da parede reforçam o desenho de alfarge. Dos três arquipélagos, serão as Canárias o núcleo mais dominante em termos de tetos de alfarge, quer pela quantidade, quer sobretudo pela diversidade de tipos e execução excecional. A sua forte ligação à Andaluzia através do porto de Sevilha terá sido determinante para o seu surgimento e implementação, pois terá sido de lá que partiu o maior número de arquitetos, mestres e artistas, havendo ainda, porém, a assinalar uma forte ligação à cultura portuguesa e, em particular, à muito apreciada classe profissional dos carpinteiros, nos primórdios do povoamento. Desde praticamente a ocupação das ilhas Canárias que aí se fixaram portugueses, provavelmente os seus primeiros “ocupantes”, para além da misteriosa população local conhecida por Guanches. Já sob domínio castelhano por força do Tratado de Tordesilhas, estes terão continuado a afluir, sendo as profissões de canteiros e carpinteiros as predominantes. Deste facto nos dá conta Maria del Carmen Fraga González em La Arquitetura Mudéjar en Canárias, onde identifica pelo nome e assinala a proveniência e a data da estadia destes profissionais através do respetivo registo notarial. Destacamos, entre um número considerável: “Alvaro Fernández. – Portugués, ‘estante’ en la isla de Tenerife, en 1508 cede, el 17 de octubre de 1508, a su compañero, también lusitano, Diego Alvarez la parte que le corresponde de trabajo y cobro en las casas de Guillén Castellano, en La Laguna [Álvaro Fernández. – Português, ‘fixado’ na ilha de Tenerife, em 1508 cede, a 17 de outubro de 1508, a seu companheiro, também lusitano, Diego Alvarez a parte que lhe corresponde de trabalho e ganho nas casas de Guillén Castellano, em La Laguna]” (FRAGA GONZÁLEZ, 1980, 46). Curiosamente, alguns traços da cultura arquitetónica portuguesa ter-se-ão enraizado neste arquipélago, como deste terão partido para os Açores e a Madeira, fenómeno perfeitamente natural num circuito regional de “torna-viagem” e, consequentemente, “torna-cultura” entre arquipélagos que iam adquirindo especificidades. Maria del Carmen González ilustra estas influências no livro citado, reforçando que existe um tipo de casas nas Canárias que caracteriza como “viviendas urbanas de influência portuguesa”, que “abundaban en Santa Cruz de la Palma en la segunda mitad del siglo XVI [habitações urbanas de influência portuguesa que abundavam em Santa Cruz de la Palma na segunda metade do séc. XVI]” (Id., Ibid., 71). Esta autora refere ainda outras influências dos portugueses, dando o exemplo da construção da porta da antiga sacristia da Paroquial del Realejo Bajo (Tenerife) executada pelos portugueses Duarte Báez e seu filho Simón Gómez, e continua reportando-se a Pérez Embib, que, no seu livro El Mudejarismo en la Arquitetura Portuguesa de la Época Manuelina, assegura: “conjuntos onubense y canário seria la influencia del morisco lusitano, que halla cumplida representación, en este sentido, en la Torre del Castillo de Alvito, la Quinta ‘Sempre Noiva’ en Arraiolos, etc. [conjuntos onubense e canário seria influência do mourisco lusitano, que encontra representação definitiva, neste sentido, na Torre do Castelo de Alvito, na Quinta ‘Sempre Noiva’ de Arraiolos, etc.]” (Id., Ibid., 75). Fica-nos como reflexão que artistas, artífices e arquitetos transitavam entre países, bem como entre novas realidades geográficas que se iniciaram nos arquipélagos atlânticos, para continuarem por outras e longínquas paragens, com especial relevo para o mundo ibero-americano, onde se destacam o Brasil, Cuba, o México, a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Esta realidade vem sobretudo reforçar a tese de que a arte mudéjar é um fenómeno hispânico. Para Enrique Nuere Matauco, dever-se-ão investigar estas ligações: “El estudo de nuestra carpentería debería extenderse a todo lo realizado en América, fundamentalmente por carpinteros salidos de España. También será muy interesante estudar la carpintaría portuguesa, con sus similitudes y discrepancias [O estudo da nossa carpintaria deveria alargar-se a tudo o que foi feito na América, essencialmente por carpinteiros idos de Espanha. Também será muito interessante estudar a carpintaria portuguesa, com as suas semelhanças e discrepâncias]” (NUERE MATAUCO, 2000, 18). O caminho que Portugal traçou no Brasil, em África ou no Oriente não terá, pois, despertado o mesmo interesse que nos territórios hispânicos no que respeita aos tetos de alfarge, mantendo-se, no entanto, em algumas vilas e cidades, parte desta gramática mudéjar associada às carpintarias que atrás reportámos. Como já referimos, a maioria dos tetos de alfarge que identificámos em território português integra-se numa armação simples, abatida à “maneira portuguesa”, provocando um abatimento do ângulo de inclinação e baixando a zona central denominada, em Espanha, almizate (“plano sob as tesouras”). Supomos que esta realidade esteja associada a uma certa simplificação do alfarge em Portugal. Em Espanha, o ângulo de elevação da cobertura parece-nos maior, empinando um pouco mais a respetiva cobertura, em virtude do ângulo estabelecido pelos pares, como se pode verificar no exemplo da Igreja do Convento de São Francisco, em Ayamonte. Estes tetos seguem a tratadística da carpintaria de alfarge espanhola. Em Portugal, o alfarge corrente, associado à casa, parece ter sido assimilado pela proporção dos telhados abatidos portugueses, não se distinguindo de forma evidente dos de origem hispânica. No entanto, importa registar que alguns tetos, nomeadamente de alguns palácios e igrejas portugueses, aparentemente terão seguido regras distintas, aproximando-se de outros de possíveis origens filiadas nas coberturas quase verticais góticas, como as coberturas múltiplas das grandes mesquitas peninsulares ou, ainda, como as coberturas dos palácios compactos, com pátio-claustro, da Andaluzia. Serão casos específicos com essa linhagem os Paços Reais de Coimbra e Sintra e das grandes naves da Sé do Funchal e das Matrizes de Caminha, Ponta do Sol e Calheta, entre outros. De um modo geral, no caso dos solares e pequenos templos, os tetos de alfarge em Portugal, incluindo os da Ilha da Madeira e dos Açores, estarão relacionados com a métrica dos telhados abatidos. Naturalmente que a complexidade de um teto de alfarge, ou de um teto de um telhado de tesouro(a), nada terá de semelhante a uma armação comum. Contudo, se nos abstrairmos da complexidade do alfarge, sobretudo das figuras geométricas decorativas localizadas no núcleo central horizontal (almizate), constatamos que se suprimiram as peças de transição nos quatro ângulos e de descarga para o frechal, razão principal para confirmarmos a simplificação do sistema. Consideramos que estas armações se inscrevem na genealogia da arquitetura tradicional mudéjar portuguesa e que terão na sua filiação múltiplos “contágios” resultantes da continuidade de diversas práticas construtivas de armações comuns. Por vezes, o que verificamos é a separação da armação do telhado, enquanto suporte de telha da armação do teto de alfarge, embora nalguns casos, e inclusivamente no plano geométrico, sejam quase coincidentes, como podemos observar no Palácio de Valeflores, em Santa Iria da Azóia, onde as varas são toscas e o varedo sem forro suporta a telha-vã, enquanto a armação de alfarge apresenta o rigor do cânone tanto nas secções e acabamentos como nas assemblagens dos motivos geométricos. Podemos observar uma situação semelhante na ilha da Madeira, em construções torreadas como a armação do Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, no Caniço, ou a armação quadrangular do teto da pequena Capela do Claustro do Convento de Santa Clara, no Funchal. Numa seleção de exemplos mais eruditos, em termos de tetos de alfarge, anotamos também os mais simples, nos quais a armação do teto e do telhado é coincidente, como o da Capela dos Reis Magos, no Estreito da Calheta, o do Salão Nobre da Misericórdia de Santa Cruz ou ainda o da Capela da Glória no Campanário; e, no caso das casas, assinalamos o teto simplificado do Solar Welsh, na Madeira, e a Casa Brum do Canto, na Graciosa, nos Açores. Retomando os tetos de alfarge em Portugal, diríamos que estes terão evoluído para uma simplificação dos processos construtivos relacionados com a complexidade dos motivos geométricos, o que se denomina por laçaria, em associação com as armações de suporte do telhado. As nossas observações levam-nos a supor que as armações dos tetos de alfarge se terão assim simplificado, sem perder, contudo, as regras de proporção, ou seja, a base do “cânone” imposto pelo processo construtivo e tecnológico e pela “memória” do geometrismo dado pela laçaria, enquanto métrica construtiva, resumindo-se agora ao “troço de espera” entre o plano inclinado (pano) e o plano horizontal (almizate). Os tetos comuns da arquitetura tradicional madeirense que observámos, principalmente no âmbito da arquitetura tradicional, mas também erudita, são compostos por uma sucessão de vigas de secção quadrangular denominados correntemente “varas” (no alfarge, serão os nodilhos), dispostas a partir do frechal até à linha e sobre as quais se aplica o forro, completam-se com os tirantes altos, ou tesouras (no alfarge, serão os pares), e os triângulos, ou tirantes de canto (no alfarge, serão os quadrais). Simples incisões de linhas retas nos bordos das varas dos tirantes/tesouras e nos tirantes de canto serão ainda a memória da laçaria (linhas obtidas através do graminho). O guarda-pó entre varas é constituído por tábuas inclinadas e integradas por rasgos verticais nas faces laterais das varas. Junto ao frechal, ligeiramente elevado para formar uma linha de composição, instala-se o friso de madeira trabalhado em cordão ou simples, definindo este o fim da parede e o início do teto. Por vezes, e em alternativa, recorre-se a uma ripa de meia-cana pregada às juntas do forro entre as varas de construções mais correntes, quer urbanas quer rurais. Todos estes elementos são as “memórias” que permaneceram do alfarge “canónico”, numa nova simplificada identidade filiada nos padrões ancestrais. Alguns destes procedimentos de simplificação já teriam, em parte, sido subtilmente integrados em tetos completos que terão iniciado a transição para a simplificação através de uma “matriz portuguesa”. Entre diversos exemplos, destacamos o teto de alfarge do coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal. A carpintaria desenvolvida a partir dos tetos de alfarge, nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde se terá efetuado um último estágio de simplificação, ter-se-á “propagado” nas arquiteturas das cidades portuguesas do espaço ultramarino. A sua influência terá perdurado durante séculos, não só na sua expressão erudita, mas sobretudo no domínio completo de uma arte que também produzia mobiliário, portas, janelas, varandas, proteções de vãos conventuais em reixa e muxarabis. Uma continuada linhagem de famílias de carpinteiros terá assegurado o saber coevo que se escalonava em aprendiz, oficial e mestre, categorias que chegaram ainda ao séc. XX. Esta terá sido uma das profissões mais valorizadas ao longo dos séculos. A ilha da Madeira, detentora de uma densa floresta rica em madeiras de todo o tipo, cedo terá beneficiado de licenças régias, atribuídas pelos capitães donatários para a construção de serras de água, realidade também comum aos Açores. Nascia assim uma outra linhagem de artesãos, os serradores, que forneciam a madeira em prancha ou em viga, segundo medidas-padrão controladas pelo grémio dos carpinteiros e confirmadas administrativamente por posturas municipais com os respetivos «livros dos regimentos oficiais mecânicos». As medidas eram então em palmos, pés, varas, tosas, provavelmente em tudo idênticas às praticadas no arquipélago das Canárias, que acolheu diversos carpinteiros provenientes da ilha da Madeira, estabelecendo uma relação inter-arquipélagos. Observamos a constância das secções e dos comprimentos das madeiras que compõem as armações, denotando uma assinalável regularidade própria de um fornecimento padronizado de madeiramentos, que, talvez por conveniência de transporte e otimização de paus, no corte na floresta e na serração, se mantinham dentro de medidas padrão para todos os componentes de uma armação mas também por ser mais fácil comercializar e tributar um produto padronizado. Uma das particularidades das armações de alfarge é precisamente a regularidade e rigor das peças que formam um intrincado e eficaz sistema estrutural. A qualidade tecnológica constitui, para além da expressão artística, a sua identidade, a sua distinção, sobretudo por possibilitar superar grandes vãos, mantendo secções esbeltas dos madeiramentos. Desafortunadamente, as casas madeirenses que incorporaram tetos de alfarge terão sido as que menos resistiram ao passar dos séculos. Chegaram-nos fotografias do Solar de Dona Mécia e da casa nobre dos Herédia, e pouco mais, mas seguramente muitos outros terão acolhido salas e câmaras de solares e mesmo de pequenas casas solarengas, muitas delas denotando armações simplificadas de alfarge. António Aragão revelou a nobreza das casas das famílias nobres, nacionais e estrangeiras, que se estabeleceram na Rua dos Mercadores e que terão incorporado nos seus confortáveis aposentos a expressão cultural das famílias originárias de Génova, da Flandres, da Andaluzia e das vizinhas Canárias, entre outras. A casa conhecida como de Colombo, construída ainda no séc. XV, poderá ter sido um dos exemplos. Pela qualidade dos seus vãos de cantaria, denota ter sido uma casa de grande riqueza. As suas câmaras terão provavelmente tido um ou mais salões com armação de alfarge integrados, tal como outros motivos decorativos associados ao mudejarismo, como os tradicionais azulejos hispano-árabes e os pavimentos de tijoleira. Para além das casas urbanas, registamos também algumas casas nobres rurais, como os Solares do Esmeraldo, na Ponta do Sol, ou a Quinta do Morgado, no Arco da Calheta, bem como algumas casas solarengas da nobreza de S. Jorge, na costa Norte, que terão tido provavelmente alguns tetos que se filiavam nas técnicas construtivas dos tetos de alfarge, ainda que com uma grande probabilidade de serem simplificados. Nesse tempo histórico, quase todas estas casas teriam tido, direta ou indiretamente, uma intensa ligação ao comércio marítimo, estabelecendo-se, nesse sentido, relações culturais e político-económicas entre os arquipélagos atlânticos e a Andaluzia, bem como outros territórios. Formou-se, assim, uma comunidade recetora e difusora que, de Portugal e Espanha e respetivos arquipélagos atlânticos, alargou a sua geografia de influência para os territórios ibero-americanos. Através da sua observação in situ, e numa análise comparativa, compreenderemos melhor o fenómeno da sua dispersão e permanência nesses territórios, bem como o seu continuado trânsito em torna-viagem e respetivas transferências. Ao contrário das Ilhas Canárias e de uma parte significativa do mundo hispânico na América, em que esses tetos não só permaneceram como se manteve a arte e a técnica da sua construção durante séculos, na ilha da Madeira tal não ocorreu. A renovação do gosto e a perda da tradição desta carpintaria específica fizeram com que se tivesse perdido grande parte destes tetos. Nalguns casos, o fogo terá sido a sua principal causa de desaparecimento. Desse facto nos dá conta António Aragão, ao relatar o grande fogo ocorrido em 26 de julho de 1593, que terá consumido, em 4 h, 154 casas: “moradas de casas, as melhores e mais principais de toda a cidade” (ARAGÃO, 1979, 175). Infelizmente, assim sucedeu, em pleno séc. XX (1957), com o Solar de Dona Mécia, datado no lintel da porta exterior de 1606, mas aparecendo já na planta de 1567/70, pelo que deve ter sido levantado, dadas as armas que ostenta, por João de Ornelas de Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal. Um outro solar, este de grandes dimensões, terá igualmente perdido os seus tetos, com grande probabilidade, no séc. XX. Reportamo-nos ao Solar da Quinta da Lombada na Ponta do Sol, residência do fidalgo flamengo João Esmeraldo, que o ampliou e enobreceu em 1493, após aquisição a Rui Gonçalves da Câmara, filho do 1.º capitão donatário Gonçalves Zarco, e que, seguramente, teria tido tetos de alfarge. João Esmeraldo construiu quase em simultâneo, mais precisamente em 1495, uma casa no Funchal, a que já nos reportámos como sendo a Casa de Colombo, que foi demolida. O seu construtor foi identificado pelo historiador António Aragão (ARAGÃO, 1979, 114) como tendo sido Garcia Gomes, pedreiro. A sua qualidade arquitetónica e a condição social do seu proprietário levam-nos à possibilidade de aquela ter tido teto(s) de alfarge, tal como os teriam a do mercador castelhano João de Valdavesso e a de Francisco de Salamanca, ambas no Funchal, que eram, segundo António Aragão, “ricas casas e aposentos” (Id., Ibid., 114). Outras causas estarão relacionadas com a perda destas casas, em particular a grande mobilidade da sociedade madeirense e, sobretudo, os grandes aluviões, sendo de especial gravidade o que ocorreu em 1803. Estas calamidades cíclicas ocorreram em praticamente todas as cidades ribeirinhas, desde logo no Funchal, mas também em Santa Cruz, Machico, Ponta do Sol, Calheta ou mesmo São Jorge, e noutras localidades de menor dimensão na costa Norte. Estas levaram seguramente para o mar partes significativas destas urbanidades e com elas edifícios religiosos e da nobreza que ocupavam os melhores terrenos planos. Como exemplo, entre tantos, referimos o claustro e respetivas dependências do Convento de São Bernardinho em Câmara de Lobos. Registamos ainda o forte tremor de terra de 1748, que danificou muitas igrejas e terá destruído muitas construções. Parece-nos possível que esta arte se tenha prolongado durante todo o séc. XVI em ambos os arquipélagos (Madeira e Açores) e, apesar das calamidades e do abandono da sua reparação e conservação, um novo incremento terá ocorrido durante o séc. XVII devido, provavelmente, à ocupação filipina, particularmente nos Açores. Contudo, consideramos que as sucessivas simplificações se terão iniciado ainda em finais do séc. XVI, mantendo-se assim os indispensáveis conhecimentos para o seu (hipotético) recrudescimento no referido período filipino, com recurso a mestres locais, e reintroduzindo-se a arte com o reforço de artífices recrutados nas colónias espanholas e/ou nas Canárias, onde tal arte se terá mantido coerente até praticamente aos finais do séc. XIX. Registamos ainda a inesperada (re)construção de um conjunto de tetos de alfarge no Solar dos Herédia, erigido nos finais do século XVIII na Vila da Ribeira Brava, na Madeira, posteriores Paços do Concelho. Esta família, há muito radicada na região, provavelmente reconstruiu este solar recuperando os tetos de uma anterior casa. Fica, no entanto, a dúvida sobre se estes tetos serão integralmente originais do séc. XVI, altura em que esta família de origem castelhana se radicou na Madeira, e, naturalmente, se os seus autores teriam sido igualmente oriundos de Castela, tal como seria interessante saber se teriam sido os mesmos a integrarem uma potencial campanha de obras de melhoramentos da casa de Dona Mécia, no Funchal. A coerência das armações simples à vista que observámos na arquitetura tradicional rural e urbana (aldeias e vilas) em todo o território português, com particular incidência nas Ilhas Atlânticas, parece-nos resultar de uma prática ancestral, aplicada sobretudo nas casas de “transição” social, ou de tipologia de sobrado, ainda que por vezes de piso térreo, mas de “volume expressivo”. Parte significativa da identidade tipológica das casas a que nos reportamos será consequência da tradição do alfarge e da identidade mudéjar associada, introduzida no séc. XVI em Portugal, ainda que esta, na realidade, já se tivesse enraizado discretamente nos séculos anteriores.   Victor Mestre (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património

calçada madeirense: bordados de pedra a preto e branco

No séc. XVI, Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra, trata com admiração e elogio as “calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, II, 117). De acordo com Sainz-Trueva, a utilização de seixos pretos e brancos na calçada madeirense atingiria o apogeu nos sécs. XVIII e XIX. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofrerá um grande declínio motivado, essencialmente, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa tradição, falta de mão de obra e de motivação da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos salários, menor disponibilidade da pedra natural local e utilização de novos tipos de materiais para pavimentação. Ainda segundo Sainz-Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da cidade e arredores ajudaram a apagar os traços mais característicos da Madeira antiga, cada vez mais confrontada com ventos do progresso, que nem sempre contemplam da melhor forma os testemunhos de uma herança secular” (SAINZ-TRUEVA, 1991, 132 e 133). A calçada madeirense é muito anterior à chamada calçada portuguesa, dela distinta, a qual utiliza pedra facetada, de morfologia aproximadamente cúbica ou paralelepipédica, de cores preta (identificada como sendo basalto) e cinzenta-escura, branca ou rosada (identificada como sendo calcário). A calçada portuguesa, nacional e internacionalmente prestigiada, foi criada em 1842 pelo Ten.-Cor. e Eng.º Eusébio Pinheiro Furtado, quando no comando do Batalhão de Caçadores 5, que, querendo combater o ócio dos seus soldados, os pôs a revestir a parada do quartel com pedrinhas pretas e brancas. A calçada madeirense constitui uma autêntica referência histórica e patrimonial do arquipélago e é um símbolo da geodiversidade litológica local, sendo por vezes confundida com a calçada portuguesa propriamente dita. Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram um conjunto de investigações com os seguintes objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada na calçada madeirense dos pontos de vista textural, petrográfico, químico, mineralógico e físico-mecânico; identificar os locais de proveniência da pedra natural; homenagear os profissionais com um papel ativo na preservação do secular trabalho que envolve a aplicação de pedra de seixo ou de calhau rolado, contribuindo desta forma para a preservação dos ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pedagógica de divulgação da calçada madeirense junto da população e das entidades competentes, sensibilizando-as para a importância da preservação desta técnica, em vez de se proceder à substituição da pedra natural por outros materiais; valorizar o património edificado e dignificar a arte dos trabalhos concebidos com pedra natural, pequena e rolada. Materiais e amostragem A pedra natural local, de origem vulcânica e sedimentar, potencialmente adequada à aplicação na calçada madeirense, e que foi objeto da referida investigação, foi amostrada em depósitos de praia, em pequenos afloramentos de rocha carbonatada e em obras de recuperação de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto Santo. Nos textos consultados e nos diálogos mantidos com alguns estudiosos e profissionais do sector é frequente referir-se serem os seixos brancos feitos de calcário originário de Portugal continental, tendo provavelmente servido de lastro em navios que outrora aportavam ao Funchal. Foi propósito da já mencionada investigação referir os locais de proveniência da pedra natural utilizada nas calçadas; tendo em conta, quer o levantamento já efetuado, quer a extensão da sua aplicação em todo o arquipélago, admite-se que a pedra aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, a recolha dos materiais está restringida a depósitos de algumas praias (figs. 1 e 2) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa Cruz), Madalena do Mar (Ponta de Sol) e Calhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de Dentro (Porto Santo) –, devidamente autorizada pelas autoridades regionais competentes (Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus da Região Autónoma da Madeira e capitania do Porto do Funchal). A amostragem dos materiais nas praias foi feita na baixa-mar, por duas razões (fig. 1): a primeira, porque a secção da praia é mais ampla; a segunda, porque a recolha de material é feita em maior segurança durante a maré baixa.   Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem entre as cotas 0-165 m, correspondendo-lhes idades compreendidas entre os 13,5 e os 18 milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo sido neles identificados foraminíferos, celentrados, briozoários, equinodermes, crustáceos, anelídeos e grande variedade de espécies de lamelibrânquios e de gastrópodes – isto é, nos calcários figuram quase todos os grandes grupos de invertebrados, bem como restos de seláceos e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzindo Silva atribui aos calcários da ilha do Porto Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edificada sob clima tropical a profundidade que não devia exceder os 40 m; normalmente, este tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa e/ou cor branca amarelada.No que diz respeito às rochas carbonatadas, identificadas como sendo calcários recifais marinhos, elas apresentam as cores seguintes: castanha-avermelhada, branca leitosa, branca amarelada ou branca avermelhada. Trata-se de materiais com origem no concelho de São Vicente, na ilha da Madeira (fig. 3), no ilhéu da Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra de Dentro, ilha do Porto Santo (fig. 4). No caso dos calcários que ocorrem no afloramento do sítio dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicente, eles são, essencialmente, recifais, associados a tufos de cor castanha-avermelhada, e aglomerados, cujos fósseis marinhos identificados correspondem a várias espécies de lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes, coraliários, crustáceos e foraminíferos. Dados de geocronologia isotópica apontam a idade de sete milhões de anos (Miocénico Superior) para os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do séc. XXI, puderam ser observados alguns dos antigos depósitos de calcário recifal no sítio do Furtado da Achada do Barrinho, Lameiros, ao percorrer o itinerário turístico-geológico denominado Rota da Cal (fig. 3).   No Museu de História Natural do Jardim Botânico da Madeira pode ser observado um rico e diversificado espólio de exemplares de fósseis marinhos originários das ilhas da Madeira e do Porto Santo. No conjunto, destacam-se, entre os fósseis mais representativos, lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes e algas coralinas, fósseis que apresentam, na generalidade, um elevado grau de preservação, situação que permite a fácil identificação das respetivas espécies. Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada aplicada na calçada madeirense observam-se os exo-esqueletos de várias espécies de fósseis marinhos (fig. 5). Aspetos texturais A população designa vulgarmente a pedra aplicada na calçada madeirense por seixo, calhau ou cascalho rolado – mas, em termos técnicos e científicos, as denominações seixo e calhau não têm o mesmo significado. Efetivamente, em termos técnicos e científicos, os referidos nomes correspondem a designações que estão intimamente relacionadas com aspetos texturais, isto é, com a dimensão e a forma das peças individuais do material pétreo. A escala granulométrica de Chester K. Wentworth, utilizada em sedimentologia, estabelece designações e limites dimensionais para as partículas constituintes dos sedimentos. Nesta escala, a designação calhau é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 256 mm e 64 mm, e a designação seixo é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 64 mm e 4 mm (fig. 6). Por outro lado, o estudo morfométrico dos materiais pétreos – isto é, o estudo das diferentes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na calçada – permite, de acordo com a classificação de Theodor Zingg, definir que eles apresentam, normalmente, forma oblata ou discoidal. Os seixos e calhaus de rocha vulcânica apresentam-se lisos, polidos, entre arredondados e bem arredondados, e a cor escura que exibem é normalmente devida à patine que vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da poluição e da sujidade acumulada. Tipologias e propriedades No âmbito da referida investigação, a caracterização petrográfica, mineralógica e química dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amostrados nas calçadas madeirenses foi realizada no departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das tipologias relevantes. No que diz respeito às rochas vulcânicas, utilizando a relação entre a percentagem de sílica (SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O) adotada no sistema classificativo das rochas vulcânicas proposto por Peter Francis, foi possível definir as litologias seguintes: traquibasalto, traquiandesito e traquito, que apresentam tonalidades que vão desde o cinzento-escuro até ao cinzento-claro (fig. 6); basalto, hawaiíto e representantes do grupo minor varieties, que inclui diversos tipos de rochas vulcânicas menos comuns; normalmente, estes tipos litológicos apresentam cor preta. Os resultados da análise química obtidos por fluorescência de raios X indicam que as amostras estudadas de seixos ou calhaus de calcário do arquipélago da Madeira apresentam teores muito baixos de sílica (SiO2) e de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200 ppm. Diferentemente, no caso das amostras de calcário utilizado em calçada portuguesa (técnica também presente no arquipélago da Madeira), provenientes das localidades de Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa, em Portugal continental, os teores de sílica (SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40 % e 3,19 %. Assim sendo, os resultados analíticos obtidos permitem identificar a origem do seixo e do calhau de calcário aplicado na calçada madeirense, a qual está relacionada com rochas carbonatadas locais (calcário recifal muito puro). De facto, as investigações realizadas mostram que a pedra calcária aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte das ilhas da Madeira e do Porto Santo (figs. 3, 4 e 5). Por sua vez, as propriedades físico-mecânicas dos principais tipos de pedra natural utilizados na calçada madeirense foram avaliadas no Laboratório de São Mamede de Infesta (Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (posteriormente, Laboratório Nacional de Energia e Geologia). A determinação da resistência ao desgaste por abrasão em vários provetes de pedra natural foi realizada através do método de desgaste de Capon. Os resultados obtidos permitem concluir que a rocha traquibasáltica é a que apresenta menor desgaste (0,6 mm), e que o calcário recifal é a rocha que apresenta maior desgaste (4,2 mm). Se observarmos alguns pavimentos pelos quais há grande circulação de pessoas, verificamos facilmente que a superfície superior e exposta da pedra calcária se apresenta plana, ou seja, com maior grau de desgaste, quando comparada com a superfície superior e exposta da pedra vulcânica contiguamente aplicada, que se apresenta abaulada ou convexa (fig. 7). Aplicação da calçada madeirense A calçada madeirense é uma manifestação do património insular madeirense, sendo também testemunho da atividade desenvolvida por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita na maior parte das vezes por mãos anónimas, revela a sensibilidade naïve dos seus autores (e.g., fig. 20) e é um testemunho cultural que merece ser divulgado e preservado. Na feitura da calçada madeirense, a aplicação dos materiais pétreos no terreno poderá realizar-se diretamente sobre uma camada de solo silto-argiloso (designado localmente por cerro). Caso contrário, a aplicação dos materiais passa por diversas etapas: preparação do fundo de caixa com aplicação de tout venant sobre o terreno e colocação de pó de pedra sobre o tout venant e tirada de pontos (fig. 8); colocação da pedra segundo o seu eixo maior (isto é, para um sistema de eixos XYZ, em que X representa o comprimento máximo, Y a largura máxima e Z a espessura máxima) (fig. 9); betonagem das juntas entre as pedras, com uma mistura líquida de calda de areia e cimento, numa proporção de três partes de areia para cinco de cimento (fig. 10); calcamento e nivelamento do pavimento com calcão mecânico e acabamento com maço de madeira de plátano (fig. 11); colocação de areia fina sobre o pavimento, com o objetivo de remover o excedente da calda de cimento e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o varrimento (fig. 12). Para se ter noção do grau de exigência que esta arte de pavimentação implica, marcou-se no chão, com motivo em espinha, a área de 1 m2. Verificou-se que em cada metro quadrado foram aplicados, em média, 1023 seixos. Este valor é elucidativo dos milhares de seixos que foram utilizados para fazer o pavimento de calçada madeirense que existe no jardim municipal do Funchal (fig. 13). Tendo em conta a proveniência dos materiais, pode dizer-se que se assemelham a praias que foram transferidas para o espaço urbano e rural. Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos Pessoa introduziu uma alteração à calçada madeirense tradicional – a variante de calçada madeirense com pedra partida; trata-se de um pavimento menos escorregadio e que oferece maior atrito ao calçado, permitindo melhor andamento e mais conforto (fig. 14).   Motivos A calçada madeirense pode ser construída utilizando unicamente calhaus e seixos de rochas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais ou menos escura, cuja monocromia é quebrada devido às diferentes orientações conferidas pela disposição dos materiais (figs. 14 e 17). Quando são utilizadas rochas vulcânicas e sedimentares, a policromia a preto e branco apresenta uma grande diversidade de padrões e temas geométricos e florais estilizados que ornamentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, palácios, casas, quintais e jardins (figs. 15-22). Muitos dos motivos dos pontos do bordado da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, corda, granitos e richelieu – foram aproveitados pelos calceteiros para serem representados na decoração da calçada madeirense. O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, é talvez o local que reúne a maior diversidade de padrões e de motivos geométricos e florais estilizados, com vários pontos de bordado da Madeira.   No pavimento, predomina geralmente o material mais abundante, isto é, calhaus e seixos de rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas rochas sedimentares para realçar alguns aspetos florais, brasões de armas, monogramas, datas e a cruz de Cristo (figs. 23 e 24). Os pavimentos de calçada madeirense apresentam pouca reflexão da luz e são facilmente limpos utilizando a tradicional vassoura de urze.   Preservação Em meados da segunda déc. do séc. XXI, a calçada foi modificada e adulterada em alguns espaços, com a aplicação de materiais estranhos a esta técnica e com a remoção de motivos. A pedra rolada foi substituída por cubos e paralelepípedos de mármore e coberta por argamassas de areia, cimento e material betuminoso, ou por alcatrão (figs. 25 e 26).   Na requalificação urbana que ocorreu no núcleo histórico de Câmara de Lobos, o antigo brasão do concelho – que estava colocado no adro da igreja de S. Sebastião, fazendo parte de um tapete de pedra rolada – deu lugar a um pavimento de “calçada madeirense” de blocos e calhaus partidos; perdeu-se, assim, o único exemplo de heráldica municipal em calçada madeirense construída no arquipélago, restando dela apenas registos fotográficos (fig. 27).Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na zona velha do Funchal, foi observada a existência de diferenças cromáticas entre as argamassas em algumas obras de recuperação, viu-se serem muito diferentes as dimensões dos seixos utilizados e serem os espaços entre pedras roladas – porque grandes – preenchidos por argamassa.  Nas travessas da Malta e do Redondo, o pavimento de calçada madeirense foi coberto por tapete betuminoso. Noutros locais, verificou-se ser total o abandono da calçada, como no caso dos passeios na estrada do João Abel de Freitas e na estrada da Boa Nova, e advir grande perigo – tanto para peões como para utilizadores de viaturas motorizadas – das pedras, encontrando-se estas soltas entre a estrada e o passeio (fig. 28).   O desenvolvimento das raízes das árvores de grande porte destruiu e só ergueu por vezes o pavimento – como aconteceu na capela de N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria Amélia –, carente de trabalhos de manutenção regulares.No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na ilha do Porto Santo, observou-se a presença de grandes manchas de cera, com origem no pagamento de promessas feito por alguns fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior remoção. Durante a referida investigação, teve-se oportunidade de acompanhar diversas obras de recuperação de antigas calçadas e de construção de novas pavimentações. Exemplos disso mesmo são o antigo palacete dos Zinos, posteriormente palacete do Lugar de Baixo, recuperado em 2004 pelo Governo Regional da Madeira (GRM) (fig. 29); os jardins de Santa Luzia, recuperados em 2004 pela Câmara Municipal do Funchal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma menção honrosa na categoria de espaços exteriores de uso público, no quadro do Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista, em 2005) (fig. 30); o pavimento onde está representado o cronograma dos vários Batalhões de Infantaria e dos Caçadores na Universidade da Madeira, recuperado por calceteiros da Câmara Municipal do Funchal, em 2008 (figs. 31 e 32).   A preservação da calçada madeirense, nas antigas quintas e jardins públicos e privados, casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste-se de uma importância crucial, especialmente para os núcleos e zonas históricas das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a profissão e a formação do calceteiro é imprescindível para a manutenção dos referidos espaços. Além disso, o património material da calçada madeirense constitui um legado de grande valor, sob os vários aspetos da sua composição, da diversidade dos materiais geológicos utilizados, com presença de fósseis marinhos, e da diversidade de padrões construídos e desenhados.   João Baptista Pereira Silva Celso de Sousa Figueiredo Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Arquitetura Património Geologia

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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