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do ouro branco e pela vinha às quintas

Desde o Século XV, a Madeira recebeu comerciantes e turistas de diversas nacionalidades. Pela Madeira passaram, por exemplo, comerciantes venezianos e flamengos no contexto do afamado período do “ouro branco” deixando a sua marca na toponímia da cidade do Funchal e no sobrenome de famílias madeirenses, mas a partir do século XVII, com a paulatina substituição da cultura do açúcar pela da vinha, os comerciantes britânicos tornaram-se a comunidade estrangeira mais importante no arquipélago. A influência desta comunidade manifestou-se em alguns de setores económicos e na edificação, entre as quais se contam as tão conhecidas quintas da Camacha e do Santo da Serra.     Quinta do Jardim da Serra Esta Quinta, construída no século XIX pelo Cônsul Inglês Henry Veitch, tem importância fulcral na história da própria freguesia. Foi o nome desta propriedade que deu origem à denominação da freguesia: Jardim da Serra. Adaptada em 2010 numa excelente unidade hoteleira, preserva um edifício com arquitetura tradicional. É ainda possível contactar com as práticas de agricultura biológica e alguns exemplares de flores madeirenses nos amplos jardins da propriedade. Realce para o facto da quinta ter sido fonte de inspiração para Max Römer, e estar representada numa gravura do século XIX, patente na reitoria da Universidade da Madeira, no Funchal. Quinta das Romeiras Esta quinta foi desenhada pelo conhecido arquiteto português Raul Lino e foi mandada construir pelo Drº Alberto Araújo, como residência de férias. Foi construída no ano de 1933, ano em que a 14 de Abril o Diário da Madeira noticiava que se estava “trabalhando afanosamente na construção de uma opulenta vivenda de campo, no sítio das Romeiras, desta freguesia, donde se desfruta um largo e aprazível panorama. O povo já a baptizou de Quinta dos Penedos”. A escritora Maria Lamas em 1956 descrevia assim seus jardins: “Do branco de neve ao salmão, ao carmesim, ao amarelo-oiro e ao roxo, passando por todas as escalas de tons - quem poderá imaginar, sem a ter visto, aquela sinfonia de cores?” Quinta do Vale Paraíso Constituída por um edifício principal, construído em meados do século XIX, e por outros 9 de dimensões mais reduzidas, transformadas em pequenas residências de férias, as quais mantêm de um modo geral o nome da sua função original. Este espaço oferece ainda amplos jardins compostos por plantas endémicas e exóticas pertencentes a cerca de 220 espécies. A partir desta quinta acedemos, através de uma vereda, à Levada da Serra do Faial. fonte: ariscaropatrimonio.wordpress.com Quinta do Revoredo Esta propriedade foi mandada construir por John Blandy, em 1840, que depois de conhecer a Madeira como marinheiro de um navio inglês nas guerras napoleónicas viria a tornar-se no mais importante homem de negócios da ilha e cuja família ainda é uma das mais influentes na Região. Hoje a quinta é propriedade da edilidade e é nela que se encontra a sede da orquestra filarmónica de Santa Cruz, sendo utilizada também como Casa da Cultura do município. Quinta de São Cristóvão Esta quinta com caraterísticas da arquitetura portuguesa, foi mandada construir em 1692 pelo morgado Cristóvão Moniz de Menezes e manteve-se como propriedade da família até que recentemente Carlos Cristóvão da Câmara Leme Escórcio de Bettencourt, sem descendentes, o cedeu ao Governo Regional da Madeira. Chegou a albergar o Conservatório de Música e actualmente funciona como casa do artista. Este solar está ainda relacionado com a Paróquia do Piquinho, uma vez que foi aqui erigida a Capela de São Cristóvão, a qual recebe em Maio a festa religiosa de São Cristóvão. Também aqui funcionou uma escola fundada pela irmã Mary Jane Wilson, entre 1904 e 1910.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Arquitetura Património História Económica e Social Rotas

luzia (luísa susana grande de freitas lomelino)

  Luísa Susana Grande de Freitas Lomelino, cujo pseudónimo era Luzia, nasceu a 15 de Fevereiro de 1875, em Portalegre (cf. Registo de batismo de Luísa Grande, Arquivo Distrital de Portalegre). O pai era o capitão Eduardo Dias Grande, bisneto do Dr. Francisco Grande e Metelo, este último nascido em 1755 na freguesia de Galinde, reino de Leon, e formado pela Universidade de Salamanca. Dr. Francisco Grande e Metelo casou em 1797 com D. Antónia Isabel Caldeira d’Andrade, natural do Crato e oriunda de uma família brasonada, fixando a sua residência em Portalegre. Dos sete filhos do casal, apenas uma teve descendência, Antónia Benedita Grande e Caldeira (CONDE, 1990, p.40). Luzia com 26 anos de idade. Fotografia tirada em 12 de Março de 1901, chapa nº 19.009, Luísa Grande de Freitas Lomelino, espólio de José de Sainz-Trueva, Arquivo Regional da Madeira. O pai de Luzia tinha dois irmãos, o general José Maria Grande e D. Sofia Cândida Dias Grande, que foram os padrinhos de Luzia (cf. Registo de batismo de Luísa Grande, Arquivo Distrital de Portalegre). Eduardo Dias Grande foi Secretário-geral do Governo Civil do Distrito do Funchal (CLODE, 1983, p.251) e casou com uma rapariga da alta sociedade madeirense, Luísa de Freitas Lomelino, filha do morgado da Quinta das Cruzes, Nuno de Freitas Lomelino e D. Ana Welsh de Freitas Lomelino provenientes de uma antiga família madeirense, «Os primeiros deste apelido que passaram à Madeira, por 1470, foram Urbano Lomelino e seu irmão Baptista Lomelino, aristocratas de Génova, que fizeram assento em Santa Cruz» (CLODE, 1950, p. 188). Do casamento de Eduardo Dias Grande e Luísa de Freitas Lomelino nasce a primeira filha do casal, Ana Luísa, a 7 de Dezembro de 1867, na freguesia de S. Pedro, no Funchal (cf. Registo de batismo de Ana Luísa, Arquivo Regional da Madeira, livro 1372). Luzia nasce oito anos depois, já no continente, e logo ao nascer, o seu percurso de vida fica marcado por uma ausência, a da mãe, que morre após o parto (cf. Registo de óbito de Luísa Lomelino Dias Grande, Arquivo Distrital de Portalegre). Escreve José Martins dos Santos Conde que «a infeliz criança, envolta num cobertor, foi imediatamente transportada da casa onde nasceu, na Rua 1º de Maio, para a casa grande de sacadas de ferro, na Rua dos Canastreiros, onde morava a tia Sofia Cândida» (CONDE, 1990, p.40). O mesmo autor refere também que foi com a tia que Luzia viveu dois períodos importantes da sua vida: os seis meses que passou com ela quando nasceu, e, mais tarde, aos nove anos, quando é mandada de novo para casa da tia Sofia. Ao fim dos seis meses passados em Portalegre, o pai de Luzia, que sofria de uma grave doença pulmonar, decidiu mudar-se para a Madeira com as duas filhas, em busca de um clima mais favorável à sua doença. Foram viver para a Quinta das Cruzes (homónima da de Portalegre), propriedade dos avós maternos de Luzia (CONDE, 1990, p.42). Com nove anos apenas, Luzia vê a vida levar-lhe a pessoa que mais adora, o pai, que falece vítima de tuberculose. Aos catorze anos, é enviada pelos tios para o colégio das Salesas, em Lisboa (CONDE, 1990, p.42). Atingida a maioridade, Luísa «viveu algum tempo em Lisboa em casa dos viscondes de Geraz de Lima. Seguidamente acompanhou-os até à Madeira e passou a residir em casa da avó Ana, na Rua dos Netos, nº 19» (CONDE, 1990, p.42). É na Madeira que Luzia casa com Francisco João de Vasconcelos, a 4 de Abril de 1896 (cf. Registo de casamento de Luísa Grande de Freitas Lomelino e Francisco João de Vasconcelos Couto Cardoso, Livro 6814 A, Arquivo Regional da Madeira). Após os primeiros tempos na Quinta das Cruzes, os noivos rumaram ao Jardim do Mar e passaram a residir no Solar de Nossa Senhora da Piedade. Mas o casal não era feliz, e a Lei do Divórcio (de 3 de Novembro de 1910), que foi um dos primeiros atos legislativos do Governo Provisório saído da revolução de 5 de Outubro 1910, foi imediatamente aproveitada por Luzia. A 19 de Novembro de 1911, Luzia escreve no seu Jornal: «Seulette, seulette, sans compagnon ni maître… E agora, julgo que para sempre. Mas não me sinto feliz… Ai de mim! Ai de todos nós! Passamos a vida a dizer: se não fosse isto, se tivéssemos aquilo… Isto deixa de ser, temos enfim aquilo, e ri dos nossos vãos, temerários “ses”, a cruel, irónica felicidade!...» (CONDE, 1990, p.51). Posteriormente a esta fase da sua vida, Luzia vai ainda passar por grandes sofrimentos, já que para além do divórcio, terá vários problemas de saúde dos quais a tuberculose (SAINZ – TRUEVA, nº 20, 1989, p. 304) e a neurastenia, cultivará a solidão, com receio de uma nova desilusão, o que quase a conduziu à loucura, à destruição dos seus sonhos, a um desequilíbrio emocional e físico que a levaram a desejar a morte. Luzia recorre a um sanatório em França para se restabelecer e após esse período passa anos de uma interessante vida intelectual, tendo começado a publicar os seus livros, envolvendo-se na vida em sociedade, que era circunscrita a um pequeno mundo elegante, e inicia as suas viagens pelo estrangeiro Luzia, pelas várias terras pelas quais vai passando, sente a nostalgia de todos os lugares por onde foi deitando raízes (LUZIA, 1923, p. 172), como refere, em Cartas do Campo e da Cidade, mas à medida que os anos vão passando é da Madeira que sente mais falta, «a Madeira parece-me a minha terra de promissão onde hei de enfim descansar de tantos temporais que têm batido a minha pobre vida» (SOARES, s.d., p. 72). Tendo passado algum tempo nas terras portuguesas do norte, no Buçaco, nas suas estâncias de águas, decide voltar à Madeira. Nos primeiros anos, no Funchal, tudo lhe correu a seu gosto, num ambiente calmo e alegre, como refere Feliciano Soares: «Depois de vagabundear por hotéis, instalou-se logo adiante da Ponte Monumental, de tão estranha, impressionante paisagem, na quinta Nogueira de que ela, com os seus quadros, as estantes dos seus livros ricamente encadernados, as suas flores sempre renovadas, fez um petit chateau de France» (SOARES, s.d., p. 82). Luzia mudou-se da Quinta da Nogueira para a Quinta Carlos Alberto, na rua do Jasmineiro, número 3, onde, como constata Feliciano Soares, mão amiga lhe proporcionou o seu cantinho confortável e convidativo, pois Luzia não suportava qualquer esforço físico, e, desde que se mudou, «todos os males do mundo nela se reuniram para lhe demolirem a vida, numa lentidão tal que os seus amigos chegavam a iludir-se sobre a gravidade do seu estado» (SOARES, s.d., p. 86). Luzia deixara de se queixar, mostrando relativa boa disposição. Mais tarde, vem a confessar que «olhando o inaudito sofrimento da humanidade inteira, não se sentia com o direito de se queixar» (SOARES, s.d., p. 86). Os achaques foram-se multiplicando, o declínio acentuava-se, os médicos redobravam os cuidados e os amigos começavam a alarmar-se. Após sofrimentos físicos e morais que se prolongaram ao longo da vida, Luzia falece a 10 de Dezembro de 1945, pelas 14h, na Quinta Carlos Alberto (cf. Registo de óbito de Luísa Grande, nº 1569, Arquivo Regional da Madeira). Relativamente ao seu percurso literário, é desde tenra idade que Luzia sonha ser escritora. O seu primeiro conto é publicado a 8 de Janeiro de 1894, no Correio da Manhã (cf. Correio da Manhã, 08.01.1894, “A lenda das estrelas”). Luzia colaborou também na imprensa da Madeira, com o pseudónimo de Lady Butterfly (SOARES, s.d., p. 14).O lançamento do primeiro livro de Luzia, Os que se divertem, a comédia da vida, aconteceu quando a escritora tinha já quarenta e cinco anos, em 1920, e não foi uma surpresa no mundo das letras portuguesas. Como refere Feliciano Soares, na frequência assídua do salão de Maria Amália Vaz de Carvalho, Luzia foi conhecida de perto e logo admirada. Dir-se-ia que já se esperava que ela se afirmasse grande desde a primeira hora. O sucesso foi enorme e imediato e a obra conheceu três edições, a primeira em 1920 (229 pp.), a segunda em que não aparece data de publicação (223 pp.) e a terceira edição em 1929 (305 pp.), esta última uma edição aumentada e com ilustrações de Bernardo Marques (nesta edição novos capítulos são acrescentados, mas um é retirado, “As Cartas de Clara”, sendo substituído pelo capítulo “A Récita de Caridade”, já publicado em Rindo e Chorando). Os que se divertem, a comédia da vida é um retrato da alta sociedade em que Luzia se movimentava. Os novos e velhos ricos, os vestidos, os eventos, a sociedade das aparências em que se movia são simultaneamente cenário e protagonistas das suas histórias. A ironia prevalece praticamente sobre todos os quadros que “pinta”, apontando os ridículos do que a rodeia. Dos retratos mais comuns, aparece o das mulheres: a mulher vaidosa, que só se importa com a aparência e tudo faz para ocultar a idade; a mulher que inveja, que desdenha das amigas íntimas e de outras mulheres; a escrava do chic; a intriguista; os flirts; as novas-ricas com seu mau gosto, a falta de cultura e educação; entre outras situações ridículas e pequenas. Rindo e Chorando (291 pp.) é publicado dois anos depois, em 1922, e mantém os mesmos traços e até as mesmas personagens do livro anterior. Sente-se quase como uma continuação das “comédias da vida”, mas revela uma ironia mais trágica que faz o leitor flutuar entre episódios de riso genuíno e de sorriso amargurado, de tão terrível que pode ser a ironia da vida. Cartas do campo e da cidade vem a público em 1923 (222 pp.), e, tal como o próprio nome indica, situa-se entre as paisagens e ambientes opostos destes dois lugares: das quarenta e quatro cartas, vinte e oito são escritas na cidade, algumas em Lisboa, outras no Funchal, e dezasseis no campo, a maioria delas nas Quintas de Portalegre. Cartas d’uma vagabunda é o quarto livro de Luzia (310 pp.), no qual não aparece a data de publicação. Esta obra revela a enorme paixão que Luzia tem pela epistolografia e como ela própria se destaca neste género. Nas cartas, Luzia testemunha que acaba de chegar de França e descreve como encontra Lisboa e os seus hotéis favoritos. Depois de instalada, retrata de novo a cidade e os seus ridículos. Nada escapa ao olhar de Luzia, dos políticos à moda, dos hábitos culturais à alta sociedade, todos são alvo da sua ironia. Mas um grupo em particular é alvo do seu mais violento sarcasmo, os novos-ricos. Nesta obra, Luzia continua a caracterizar-se pela sua irreverência, não faltando exemplos, como o trecho: «Parece-me que escolheste péssima conselheira. Por distração e... talvez por um bocadinho de implicação também, faço sempre o contrário do que o código elegante manda fazer» (LUZIA, s.d., p.31). Em Cartas d’uma vagabunda, Luzia também relembra os doces momentos passados no colégio das Salesas, e algumas das histórias da temporada passada em Pau, no sanatório, fazendo referência ao conflito mundial que o mundo tinha atravessado. A chegada a Portugal, a estadia em Lisboa, seguidamente, em Pedras Salgadas e, por fim, de novo a sua amada França. É o percurso que Cartas d’uma vagabunda leva o leitor a fazer. Sobre a vida…sobre a morte, máximas e reflexões surge em 1931 (84 pp.) e é um livro de pequeno formato em que Luzia faz reflexões sobre o que lhe ensinaram as suas vivências, iniciando um diálogo com a morte. Tem cinquenta e seis anos e abate-se sobre a sua alma a desilusão de sonhos desfeitos, de uma vida muito sofrida até ao momento: «Não sejas tão severo com os novos. Lembra-te que já seguiste a sua esperança e que eles caminham já para a tua desilusão…» (LUZIA, 1932, p.45). Como refere José Martins dos Santos Conde, Luzia, inteligente, culta e viajada, já sofrera «a morte dos seres mais queridos, a separação cruel do marido gastador e os espinhos da depressão e da doença, estava credenciada para transmitir aos menos experientes, em forma de breves sentenças e avisos, as suas experiências sobre a vida e os seus pensamentos sobre a morte» (CONDE, 1990, p.23). Almas e terras onde eu passei é publicado em 1936 (285 pp.) e é constituído por relatos de fragmentos da vida de Luzia, pedaços de memórias, das pessoas, das coisas e dos lugares por onde passou. O texto fixa impressões dos tempos vividos no Jardim do Mar, pedaços de histórias vividas em Portalegre, as “personagens” que com ela conviviam no sanatório, a vida elegante de Lisboa, o colégio das Salesas, a Madeira, a revolução, os seus bem-amados livros, entre muitos outros assuntos. Tudo desfila, de forma aprazível e bem contada, com toques de nostalgia e saudade, perante o leitor. Última Rosa de Verão (cartas de mulheres) surge quatro anos depois, em 1940 (329 pp.), com toda a probabilidade inspirado na leitura de Chéri (1920), da escritora francesa Colette, conta a história de Ana Guiomar, que é incumbida de “educar” o primo da sua amiga íntima Maria do Carmo, que vai uns tempos para fora. O primo de Maria do Carmo, Nuno, tem metade da idade de Ana Guiomar, e com a convivência ambos se apaixonam. O romance entre os dois é contado maioritariamente em cartas escritas de Ana Guiomar a Nuno. Como Conde refere, «manejando o género epistolar com a destreza que já lhe conhecemos – neste caso o uso da carta poderá ser um artifício literário – Luzia consegue uma perfeita urdidura de romance» (CONDE, 1990, p.26). São aqui retratados um amor impossível, a expressão de genuínos sentimentos e as condenações sociais. As semelhanças com a história de vida são evidentes. A morte da mãe de Ana Guiomar, o marido que a despreza, o divórcio, as vivências de infância, tudo no romance encontra um paralelo com vida real de Luzia. Como sublinha José Martins dos Santos Conde, «Luzia está aqui retratada de corpo e alma. Ninguém diga que este romance não é profundamente autobiográfico» (CONDE, 1990, p.28). Quatro anos antes da sua morte, em 1941, Luzia lança Lições da Vida, Impressões e Comentários (108 pp), mais um livro de pequeno formato, com reflexões sobre as efemeridades da vida, o amor, a beleza, as ilusões, os sonhos, a morte. Dias que já lá vão foi publicado um ano depois da morte de Luzia, em 1946(248 pp.), pois: «apesar de muito doente e quase cega Luzia continuava a escrever. Estava preparando um novo livro, intitulado Dias que já lá vão. Não teve tempo de o acabar» (CONDE, 1990, p.32), conta J. Conde. A edição apresenta um prefácio de Fernanda de Castro e Teresa Leitão, com ilustrações de Anne Marie Jauss. A maior parte das narrativas deste livro lembram os episódios da infância de Luzia em Portalegre, o início da sua paixão pelos livros, as aulas em casa, os invernos rudes que passava de livro na mão em frente à lareira, e descrevem a Quinta das Assomadas, nos meses de bom tempo, que fazia as suas delícias, cheia de flores campestres, águas da ribeira, onde brincava com a sua amiga Georgina e fingia ser D. Quixote. Os episódios do livro constituintes da segunda parte não sofreram os retoques da autora e isso faz-se notar. Sobressai um estilo definido pelo ritmo dos apontamentos, a que Luzia teria acrescentado sem dúvida graça e vivacidade se tivesse tido oportunidade de os trabalhar. José Martins dos Santos Conde refere que, logo após Luzia ter publicado o romance Última Rosa de Verão, tencionava editar um original intitulado Pelos Caminhos da Vida, e, de facto, é o que é anunciado na página seguinte à capa de Última Rosa de Verão, referindo-se à preparação daquela obra. O mesmo autor esclarece: «Desconhecemos os motivos por que o original em causa, já datilografado e rigorosamente corrigido, não chegou nunca a ser editado. Há, no entanto, uma suposição, que é quase uma evidência: as referências constantes a pessoas ainda vivas poderiam vir a melindrar muita gente» (CONDE, 1990, p.32). O estudioso informa que o inédito Pelos Caminhos da Vida tem como subtítulo Jornal, e trata-se, na verdade, de um diário íntimo da autora, de trezentas e cinquenta e nove páginas datilografadas. Abrangendo um período que vai de 24 de Julho de 1902 a 10 de Maio de 1915, Luzia começa-o com vinte e sete anos, quando era casada, e termina-o quando tinha já quarenta, depois do divórcio, na fase da sua vida em que não queria nada, apenas morrer. Apesar de Luzia ser uma presença estimada, e de se pressentirem naquela alma tantos sonhos, adivinhava-se também nela uma imensa solidão. Luzia redigiu uma última versão do seu testamento a 21 de Julho de 1945, no qual integrou dois apontamentos referentes às suas obras e aos seus papéis que deixou a duas amigas distintas: Laura de Castro Soares e Teresa Leitão de Barros. Laura de Castro, que usou o pseudónimo de Maria Francisca Teresa, nasceu no Funchal em 1870 e casou com o escritor e jornalista de Aveiro, Feliciano Soares. Foi a grande e íntima amiga de Luzia, desde a infância (CRUZ, III volume, 1953, p.49). No seu testamento Luzia escreve: «Lego à minha amiga Laura de Castro Soares a quantia de dez mil escudos, um anel rodeado de pérolas que pertenceu à sua mãe, o par de castiçais de prata que está na sala, uma bolsa de prata antiga e ainda todas as minhas cartas, papeis e retratos podendo-lhes dar o destino que quiser» (cf. Testamento de Luísa Grande, Arquivo Regional da Madeira). É a esta amiga que Luzia confia os seus papéis mais privados, todas as cartas, todos os retratos e também todos os diários íntimos, não deixando a nenhum familiar o precioso legado. Tal como não é a nenhum familiar que Luzia entrega a propriedade das suas obras e os seus inéditos que tinha deixado prontos para publicação, mas sim à amiga de Lisboa, Teresa Leitão de Barros, jornalista e escritora: «Deixo a Teresa Leitão de Barros, residente em Lisboa, a quantia de vinte mil escudos e a propriedade de todos os livros escritos e publicados por mim, a minha maior bandeja de prata e um tinteiro antigo de latão amarelo» (cf. Testamento de Luísa Grande, Arquivo Regional da Madeira). Após a morte de Luzia, Teresa Leitão de Barros, em parceria com Fernanda de Castro, publicam o livro Dias que já lá vão, a obra que Luzia tinha começado, mas que tinha deixado a meio. Não se consegue compreender o porquê desta escolha das escritoras, pois Luzia tinha deixado Pelos Caminhos da vida, Jornal I, já pronto para ser editado, estava dactilografado e rigorosamente corrigido. Foram várias as personalidades que depois da morte de Luzia a continuaram a referenciar e elogiar nos anos seguintes. O Visconde do Porto da Cruz refere que, depois de Maria Amália Vaz de Carvalho, Luzia foi a Senhora que mais ilustrou a Literatura feminina de Portugal: «Pelo seu imenso talento, pela sua vastíssima cultura literária e pela elegância do seu estilo, foi uma das maiores Escritoras de Portugal» (CRUZ, III volume, 1953, p.85). Um interessante livrinho composto de recortes de notícias sobre Luzia, bem como alguns inéditos da mesma, e sem autor, encontrado na biblioteca da Universidade da Madeira, testemunha que, em 1956, por algum motivo que se desconhece, foi feita uma grande evocação a Luzia na imprensa madeirense, bem como na nacional. Um dos artigos é considerado um texto inédito de Feliciano Soares, grande amigo de Luzia que acompanhou de perto a sua vida literária, e que já tinha falecido na data desta evocação à escritora. Neste artigo, Feliciano Soares revela um acontecimento extremamente importante e que demonstra o quanto Luzia era lida, reconhecida e apreciada na sua época: «É ainda digno de nota o facto de que quando a Lisboa chegou a dolorosa notícia do falecimento de Luzia, as livrarias exporem nas suas montras, lado a lado, os livros de Eça e os de Luzia» (Evocação de Luzia, no 11º aniversário da sua morte, Funchal, s.e., s.d.). Mesmo depois da sua morte, Luzia continuou a ser referenciada e elogiada, existindo um consenso comum entre as personalidades da época em considerar Luzia como uma das maiores escritoras portuguesas, existindo a convicção de que Luzia tinha criado uma obra que jamais seria destruída com o passar do tempo. Obras de Luzia:“A lenda das estrelas” in Correio da Manhã, 08.01.1894. Os que se divertem, A comédia da vida, 1ª edição, Lisboa, s.e., 1920. Os que se divertem, A comédia da vida, 2ª edição, Lisboa, Guimarães &C.ª, s.d. Os que se divertem, A comédia da vida, 3ª edição aumentada e com ilustrações de Bernardo Marques, Lisboa, s.e., 1929. Rindo e Chorando, Lisboa, Portugália, 1922. Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923. Cartas d’uma Vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d. Sobre a vida…sobre a morte, máximas e reflexões, Lisboa, s.e., 1931. Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936. Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940. Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941. Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946. “Ruas”, Bem Viver (dir. Fernanda Castro), ano 1, n.º 7, 1953, Lisboa.   Cláudia Sofia Neves   artigos relacionados nogueiras, viscondessa das areosa, matilde das neves e melo matos soares, laura veridiana castro e almeida (pseud. maria francisca teresa) fernandes, olímpia pio

Literatura

bettencourt, edmundo

Edmundo Bettencourt De seu nome completo Edmundo Alberto de Bettencourt (Funchal, 7 de agosto de 1899-Lisboa, 1 de fevereiro de 1973), revelou-se como poeta quando era ainda aluno do Liceu do Funchal, tendo publicado o primeiro poema (sonetilho) no Diário de Notícias. Findo o curso liceal, partiu, em 1918, com 19 anos, para Lisboa, onde, por pouco tempo, frequentou a Faculdade de Direito da Univ. de Lisboa, transferindo-se, mais tarde, para a de Coimbra, cidade da sua sagração como poeta-cantor, mas sem chegar a licenciar-se.   Colaborador assíduo da imprensa insular e continental, destacou-se como membro fundador da revista Presença (1927), tendo-se-lhe juntado mais tarde Casais Monteiro e Miguel Torga. Conhecida também como Folha de Arte e Cultura, congregou um movimento vanguardista, digno herdeiro do Orpheu. Edmundo de Bettencourt colaborou também noutras importantes revistas, com destaque para Bysâncio, Vértice, Ocidente e Seara Nova. Foi incluído por António Pedro no Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, por Campos de Figueiredo, na Breve Antologia de Poesia Moderna e, por João Carlos, no Cancioneiro de Coimbra. O seu estro refletiu-se ainda na Gacete Literaria de Madrid, bem como noutras revistas estrangeiras, tendo sido incluído por Vitorino Nemésio e Carlos Queirós noutras antologias. Em 1930, rompeu definitivamente com o movimento presencista, no que foi secundado por Branquinho da Fonseca e Miguel Torga, por achar que os presencistas se haviam demitido da defesa de valores sociais e políticos pelos quais sempre se batera e ainda por desejar seguir um caminho novo, eminentemente moderno. Recusou-se, também por isso, a colaborar na revista dissidente Sinal, mantendo-se, a partir de então, à margem de grupos literários, deixando igualmente de cantar e gravar discos e fixando-se definitivamente em Lisboa. Republicano, laico e anarquista convicto, pautava a sua vida pela vivência de ideais, tendo sempre recusado servir-se da política para benefício pessoal. Repudiava abertamente o salazarismo, tendo sido perseguido, sobretudo quando, por altura da Segunda Guerra Mundial, apôs a assinatura num abaixo-assinado de reivindicação sindical. Era então trabalhador na Comissão Reguladora do Comércio de Metais, na capital. Exerceu ainda outras profissões, a última das quais foi a de delegado de propaganda médica. Por haver, nos seus tempos de Coimbra, ousado cantar “Samaritana”, de Álvaro Leal, foi altamente atacado pela hierarquia da Igreja Católica, mas debalde, pois a sua voz de “rouxinol da Madeira” ou “bicho canoro” (como era conhecido) celebrizou para sempre esta canção. Publicou em vida quatro livros de poesia, nos quais reuniu poemas de vários anos, a saber: O Momento e a Legenda (1917-1930); Rede Invisível (1930-1933), que Herberto Helder muito elogiou; Poemas Surdos (1934-1940) e Ligação (1936-1962). Anos mais tarde, em 1963, o poeta Herberto Helder, de quem se tornou grande amigo e com o qual participou nas tertúlias dos cafés Gelo, Royal e Montanha, reuniu a sua poesia toda sob o título Poemas de Edmundo de Bettencourt, prefaciou-a e fê-la publicar pela Portugália Editora, na coleção Poetas de hoje. Por sua vez, a Assírio & Alvim, em 1981, procedeu a uma reedição de Poemas Surdos, livro no qual o poeta revela a sua faceta surrealizante. Herberto Helder considerou-o, com toda a justiça, uma das mais importantes vozes do modernismo português, bem como precursor do surrealismo em Portugal. João de Brito Câmara, outro poeta “madeirense” próximo da Presença, na importante entrevista que lhe fez para a separata literária do semanário Eco do Funchal, em 1944, aquando de uma breve passagem pela Madeira, levou-o a discorrer sobre a modernidade, afirmando-se então Bettencourt como um poeta 100% moderno. Não fora a sua natural timidez e o seu progressivo afastamento dos meios literários, mais cedo teria sido reconhecido como o grande poeta que efetivamente foi. Revelou-se também um exímio intérprete da canção de Coimbra, que revolucionou, e de canções populares, ombreando com António Menano, Paradela de Oliveira e Armando Góis, entre outros. Foi na república do Funchal, em Coimbra, que estilizou a arte canora, acompanhado, à guitarra, por Artur Paredes, mestre neste desempenho. Com ele e António Menano, realizou digressões a Espanha, atuando em Valhadolid, Salamanca e Madrid, e ao Brasil. Teve um retumbante êxito. Gravou na altura muitos discos, que lhe renderam bom dinheiro. Entusiasmado com o seu estro, o maestro Fernando Lopes Graça transformou o seu poema“Liberdade” num canto heróico. Foi elogiado por Manuel Alegre e Zeca Afonso, que o considerou o maior cantor de fados de sempre e precursor da canção de intervenção em Portugal. Edmundo de Bettencourt foi ainda crítico de cinema, tendo tentado introduzir, em Portugal, a fotografia experimental, no que foi pioneiro. Pelo seu alto valor como poeta-cantor, mereceu as caricaturas que dele fizeram vários artistas. Em 1999, aquando do centenário do seu nascimento, o Governo Regional da Madeira o homenageou com uma sessão pública e a colocação de uma placa de metal na casa onde nasceu, à R. dos Murças, no Funchal. No mesmo ano, a então Direção Regional dos Assuntos Culturais editou, em parceria com a Assírio & Alvim, a sua obra completa, Poemas de Edmundo de Bettencourt, bem como o livro de António Nunes, intitulado No Rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma Voz para a Modernidade. Pela mesma altura, publicaram-se alguns estudos, mormente na revista Islenha, sobre a sua poesia. Obras de Edmundo Bettencourt: O Momento e a Legenda (1930); Rede Invisível (1933); Poemas Surdos (1940); “Liberdade” (1946); Ligação (1962); Poemas de Edmundo de Bettencourt (1963).     Fátima Pitta Dionísio     artigos relacionados poetas cancioneiro geral (poetas madeirenses no) música joão cabral do nascimento  

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A Madeira é alfobre de poetas: afirmou-o, em 1953, Horácio Bento de Gouveia, no artigo “A Madeira e a Poesia”, publicado na Voz da Madeira de 28 de maio de 1953. Na verdade, um olhar sobre o texto poético escrito na Madeira ou sobre os autores que nasceram no arquipélago permite-nos apreciar a quantidade de poetas cujos textos foram publicados em livro, em antologias, coletâneas, jornais e revistas. Por outro lado, parece claro que, nas obras que o tempo guardou, se encontram as características que marcaram a literatura portuguesa ao longo dos séculos, nomeadamente traços dos movimentos literários, os seus modelos, os seus temas, as suas formas de sentir e de dizer o mundo e a vida. Num artigo publicado em Das Artes e da História da Madeira (17 jul. 1949), um autor que assina com a letra F. faz uma resenha dos poetas que, do seu ponto de vista, mereceriam constar de uma antologia de autores madeirenses, desvendando os seus nomes ao percorrer as coletâneas até então publicadas: Cancioneiro Geral (Garcia de Resende), Romanceiro do Archipelago da Madeira (Álvaro Rodrigues de Azevedo), Flores da Madeira (Alfredo César de Oliveira e José Leite Monteiro), Álbum Madeirense (Francisco Vieira), Álbum Literário, Almanach de Lembranças Madeirenses e a coleção de poesias de Manuel Gonçalves, o Feiticeiro do Norte. Numa espécie de organização inicial, os poetas da Ilha são distribuídos por “géneros poéticos”, o que contribui, de algum modo, para marcar um caminho das letras madeirenses: epopeia, na qual, com as devidas ressalvas, inclui Francisco Paula de Medina e Vasconcelos; tragédia ou “os poemas trágicos”, cultivados por Manuel Caetano Pimenta de Aguiar, José Anselmo Correia Henriques e Alberto Figueira Jardim; poemas religiosos, com relevo para António Veloso Lira, cónego da Sé, e Troilo Vasconcelos da Cunha; autos e comédias, que, tendo como principal cultor Baltazar Dias, têm outros representantes: José António Monteiro Teixeira, Carlos Acciaioly Ferraz de Noronha, Francisco Clementino de Sousa e Francisco António Ferreira; elegia, representada sobretudo por Francisco Paula de Medina e Vasconcelos. O autor destaca, depois, as “Poetisas” – que não insere em nenhum género poético – que considera merecerem estar representadas, tendo todas elas como modelo D. Joana de Castelo Branco e Maria Helena Jervis de Atouguia e Almeida (Berta de Ataíde). Segue-se um último capítulo, intitulado “Lirismo”, destinado às peças que não cabem nos compartimentos anteriores. De entre os poetas, o autor cita Francisco Álvares de Nóbrega, Francisco Vasconcelos Coutinho, Luís António Gonçalves de Freitas, Joaquim Pestana, Luís de Ornelas Pinto Coelho e João Gouveia. A par destes poetas, outros são apresentados como dignos da designação “poetas madeirenses”: António Policarpo dos Santos Sousa, Viscondessa das Nogueiras, Alfredo César de Oliveira, Alfredo Paula Sardinha, Cândido Álvaro da Câmara, António Feliciano Rodrigues, Vitorino José dos Santos. No período da poesia palaciana portuguesa, as capitanias do arquipélago – Machico, Porto Santo e Funchal – são cortes em miniatura, onde se imita o que se passa em Lisboa. Os primeiros poetas residentes no arquipélago estão, de algum modo, associados aos primeiros capitães e donatários, encontrando-se representados no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, ao lado de outros autores continentais. Desses “poetas da ilha”, destacam-se, nos primeiros séculos de povoamento da Madeira (sécs. XV e XVI): Tristão Teixeira (m. 1506), filho de Tristão Vaz, conhecido, em Machico, como Tristão das Damas e, na corte de D. Manuel, por Tristão da Ilha, João Gonçalves da Câmara (1414-1501), filho de João Gonçalves Zarco, João Gomes (m. 1495), escudeiro de D. Henrique, Pedro Correia, um dos principais poetas da Madeira, genro de Bartolomeu Perestrelo, Duarte de Brito (m. 1514), casado com uma das netas de Zarco, que terá sido um dos primeiros poetas a introduzir o lirismo bernardiniano (de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro) na literatura portuguesa, Manuel de Noronha (m. 1535), neto de João Gonçalves Zarco, Rui Dias de Sousa, casado com uma neta de Zarco, João Gomes de Abreu, casado com uma neta de Tristão Vaz, ou, ainda, Rui Gomes da Grã. O Funchal havia sido elevado à categoria de cidade em 1508, e tudo acontecia na azáfama de construções, de novidades que vinham do lado de lá do mar, do movimento do porto, por entre trocas comerciais e gente que se encontrava, a pretexto do comércio e das trocas que, ali, na babugem do mar, se operavam. Neste ambiente novo, a poesia dramática foi muito bem aceite. Talvez por esse motivo Baltazar Dias tenha sido tão admirado, quer pelo povo, quer pela nobreza, admiração para a qual também concorreu o facto de as suas obras serem herdeiras do humor de Gil Vicente, autor que agradava ao gosto popular, não obstante algumas só terem sido publicadas no séc. XVII: Auto da Malícia das Mulheres; História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma; Trovas sobre a Morte de D. João de Castro. A partir do séc. XVII, a cultura literária madeirense ganha um novo fôlego. Entretanto, aos poucos e sempre na esteira das modas do reino, vão escasseando os escritores eclesiásticos, dando-se lugar a uma liberdade de espírito que a literatura francesa preconizava. A Ilha recebe, deste modo, a influência das ideias e instituições literárias que chegam de França, a partir da corte de Luís XIV, modelos esses seguidos por Portugal, entre o reinado de D. João V e meados do séc. XVIII. Por esta época, as letras da Madeira são fortemente influenciadas pelo academismo e pelo arcadismo. De entre os poetas desta altura, destaca-se Manuel Tomás (1585-1665), que, apesar de não ser natural da Madeira – nascera em Guimarães –, se destacou com um poema épico de influência camoniana – A Insulana (Antuérpia, 1635) – que o liga à história da Ilha, onde viveu grande parte da sua vida e onde se crê ter sido cónego capitular da Sé. É um poema em 10 cantos, com os artifícios da escola gongórica, num tempo em que o classicismo já tinha perdido a sua pujança. Manuel Tomás é, assim, pioneiro da épica madeirense, escrevendo este longo poema sobre a descoberta da ilha da Madeira. No reinado de D. João V, duas coletâneas pretendiam recolher o que de melhor se escrevia em Portugal: Fénix Renascida e Postilhão de Apolo. Nelas encontramos poemas de alguns poetas da Ilha, do séc. XVII: Francisco Vasconcelos Coutinho (1665-1723), autor de Feudo do Parnaso (1729); Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729), poeta e teólogo filho de Bartolomeu da Cunha, capitão general da Madeira, e autor do longo poema O Espelho do Invisível, no qual opta por um estilo que já foge da escola gongórica então dominante; António de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, que ficou célebre pela Cythara de Aonio, uma única compilação poética, de 626 páginas, encontrada no convento de S.ta Clara. O movimento do porto do Funchal ganha uma atividade intensa no séc. XVIII, com o comércio e com os visitantes que prometem o turismo que há de vir. É nesta época que a estética da Arcádia Lusitana, fundada em 1755 em oposição ao academismo literário, e do contramovimento Nova Arcádia influenciam, na Ilha, funcionários e pequenos burgueses que começam a despontar para a literatura. Nesta linha, surge o poeta Francisco Manuel de Oliveira (1741-1819), autor de dois volumes de poesia, Escolhas de Poesias Orientais e Colecção Poética. Outro poeta que se destaca neste século é Francisco Paula Medina de Vasconcellos (1768-1826), que, na senda de Manuel Tomás, nos deixou os poemas heroicos Zargueida, Descobrimento da Madeira (1806) e Georgeida (1819). Ainda nesta viragem do século, surge um outro poeta nascido na Ilha, em Machico, Francisco Álvares de Nóbrega (1772-1806). Revela-se um arcádico de transição, apesar de escrever sobre a sua consciência e o mau fado que o persegue, afastando-se, por esse motivo, das linhas básicas dessa escola literária. Foi apelidado “Camões pequeno” e ficou conhecido pelos seus sonetos, alguns deles satíricos, outros anticlericais, que lhe valeram a prisão. Em 1804, publicou Rimas. Muitos dos seus outros poemas foram queimados pela Inquisição, depois da sua morte. Mónica Teixeira insere-o no grupo dos poetas pré-românticos. Entre finais do séc. XVIII e o séc. XX, surgem poetas que João Fortunato de Oliveira reuniu na antologia Flores Agrestes. Desses, nomeiam-se apenas, a título exemplar: José António Monteiro Teixeira (1795-1876), com obras publicadas em Portugal e em França, na medida em que desempenhou as funções de cônsul deste país no Funchal; Jacinto Augusto de Sant’Ana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1824-1888), Visconde das Nogueiras, e João da Câmara Leme (1829-1902). Nas últimas décadas do séc. XVIII, o romantismo proliferava na Europa, caracterizando-se por uma visão do mundo contrária ao racionalismo e ao iluminismo e pela procura de um nacionalismo que viria a consolidar os Estados. No contexto romântico da ilha da Madeira, destacam-se alguns poetas, alguns dos quais pioneiros nas letras portuguesas, com colaborações frequentes em importantes revistas literárias regionais e nacionais, ao lado de grandes nomes da literatura portuguesa: Luiz da Costa Pereira (1819-1893), autor que fez parte da coletânea O Trovador, de Coimbra – e do grupo com o mesmo nome –, com os poemas “Recordação” e “O Orphão”; João de Nóbrega Soares (1831-1890), um assíduo colaborador da imprensa funchalense que revela uma arte poética muito pessoal e que, segundo Cabral do Nascimento, era o mais artista de todos os poetas desta altura; Luiz d’Ornellas Pinto Coelho (1843-1920) e Francisco Vieira (1849-1889), o compilador de Álbum Madeirense (1884), um romântico saudosista e nacionalista, ao gosto de Soares dos Passos, mas também de António Nobre. [caption id="attachment_14953" align="alignleft" width="192"] Fonte: Blog da Biblioteca Municipal do Funchal[/caption] As mentalidades começavam a mudar. É assim que, na aristocracia ou no seio da alta burguesia, surgem mulheres a participar de atividades e eventos ligados à arte e à literatura, a traduzir escritores estrangeiros e a organizar saraus artísticos no teatro ou em casas particulares. É o caso de Matilde de Sant’Ana e Vasconcelos (1824-1888), Viscondessa das Nogueiras, que tem poemas inseridos nas coletâneas Flores da Madeira, Album Madeirense e Prelúdios Poéticos; Matilde Olympia Sauvayre da Câmara (1871-1957), senhora ligada às artes – à música, ao teatro e à poesia; Berta de Ataíde, nome autoral de Maria Helena Jervis de Atouguia e Almeida (1847-1928), que editou Mosaicos, o seu livro principal; Joana da Piedade Velosa de Castel-Branco (?-1920), que colaborou em diversos jornais e revistas e editou, em Lisboa, As Minhas Flores, em 1905, e Fluctuações, em 1910; Eugénia Rego Pereira (1875-1947) e o seu livro Folhas Perdidas, em 1929; Maria Emília Acciaiuoli Rego e Georgina de Almeida, que têm poemas em Flores Agrestes, uma antologia de João Fortunato de Oliveira, poeta que organizou as primeiras coletâneas de autores madeirenses. Em 1883, Mariana Xavier da Silva publica Na Madeira. Offerendas, que merece da parte de Guiomar Torrezão, escritora e diretora do Almanach das Senhoras (1870), na “Introducção” que assina, um louvor também pelo facto de [ainda] ser rara a publicação da escrita feminina. No Funchal, entretanto, organizavam-se algumas associações de caráter cultural onde se liam os jornais nacionais e estrangeiros: o Clube Funchalense, o Clube dos Estrangeiros e o Clube da Associação Comercial do Funchal. Aí se lia, se conversava, se sabia do mundo. Não nos podemos esquecer de que a Ilha recebia influências das culturas de quem a ela chegava, sobretudo ingleses e franceses à procura da beleza da terra, da doçura do clima. Por outro lado, as famílias mais abastadas enviavam os seus filhos para a França, para a Inglaterra e para a Guiana Inglesa, a fim de estudarem nos melhores colégios. Em 1870, Joaquim Pestana (1840-1909) estreia-se na imprensa regional, no jornal Imprensa Livre, como poeta. O Diário de Notícias, onde publica quase diariamente – poemas e prosa poética – entre outubro de 1876 e outubro do ano seguinte, é o grande divulgador dos poetas românticos madeirenses. Escrevendo e publicando no contexto da ilha da Madeira, Joaquim Pestana é um dos poetas do seu tempo que mais se relaciona com o meio insular. Em Espinhos e Flores, o autor manifesta a sua natureza espiritual e a temática religiosa da sua produção literária. Foi o autor romântico que mais publicou no seu tempo, quer na ilha, quer no espaço nacional. Publicou em quase todos os jornais e nos principais almanaques nacionais: Almanaque Literário, Alagoano das Senhoras, Almanaque D. Luiz, Almanaque Insulano dos Açores e Almanaque da Madeira. Mónica Teixeira considera-o um “romântico insular”, na medida em que é coerente com a natureza e com a história da Ilha. O final do séc. XIX prima pelo aparecimento de algumas coletâneas literárias que reúnem os poetas da Ilha, nomeadamente aqueles cuja publicação se fazia nos jornais e nas revistas da altura, que se tornaram um meio eficaz de divulgação dos poetas da Madeira, dentro e fora da Ilha. O Diário de Notícias permite-nos, por exemplo, perceber as preferências literárias do público madeirense, que demonstra um gosto especial pelo texto poético. Em 1871, surge a primeira série da coletânea romântica Flores da Madeira (a segunda série há de aparecer em 1872), pela mão do Dr. José Leite Monteiro e do Cón. Alfredo César d’Oliveira. Nos poetas representados, é possível percorrer os valores locais do romantismo vivido na Madeira. Vários estudiosos se manifestaram acerca das duas séries desta compilação: Cabral do Nascimento e Teófilo de Braga, tecendo o primeiro uma crítica pouco abonatória aos poemas aí representados. Quase todos os poetas aí presentes seguem o rasto de Soares dos Passos, nas suas características ultrarromânticas, no seu tom fatalista, no ritmo muitas vezes laudatório, se bem que, nos poetas da Ilha, o estado de alma romântico seja atenuado pela beleza e pela doçura da natureza insular. Em 1874, uma outra coletânea poética surge, na Madeira, pela mão do poeta Francisco Vieira, Álbum Madeirense. Deve salientar-se que ter um poema integrado numa destas compilações era garantia do prestígio dos poetas. Nesta obra, estão publicadas 69 poesias, assinadas por 34 poetas, entre os quais 5 mulheres, alguns repetentes das coletâneas anteriores, recolhendo, desta forma, e uma vez mais, a produção literária local. No género almanaque, aparece, ainda, em 1883, o Álbum Poético e Charadístico que, além de poesias, inclui pensamentos, charadas e enigmas e recebe autores da Ilha e do continente. Da lista dos poetas aí representados, consta o nome de Joaquim Pestana. No entanto, na Ilha mais rural, surge uma outra voz, menos erudita e mais popular, um poeta que encontra eco junto das populações: Manuel Gonçalves (mais conhecido pelo Feiticeiro do Norte), nascido na freguesia do Arco de São Jorge, em 1858, onde veio a falecer em 1927. Foi agricultor, pedreiro e poeta. Era um homem do povo, analfabeto, com muita facilidade em fazer rimas. A sua poesia, dita sobretudo nos arraiais, ganhou adeptos por toda a Ilha: advoga as suas causas, não tem medo de contar a sua vida (igual à vida de outros camponeses que tinham, na terra, a base do seu sustento), é porta-voz dos anseios e das preocupações das gentes e reclama a atenção de quem governa. Emigrou para o Brasil em 1910, chegando a editar, naquele país, dois poemas. A maior parte da sua bibliografia está impressa em folhetos avulsos. O Funchal do primeiro quartel do séc. XX apresenta-se como uma cidade cosmopolita, onde, à semelhança do que acontecia no continente, se formavam tertúlias literárias. Mais uma vez, há que realçar o papel da imprensa. O Diário da Madeira projeta, então, outros autores do arquipélago, associados sob o nome de “os cinco vagabundos” – João Cabral do Nascimento, Luís Figueira de Castro, Álvaro Manso de Sousa, Rodolfo Ferreira e Visconde do Porto da Cruz, grupo esse que se alargará a Ernesto Gonçalves e a António da Cunha de Eça. Desfeita esta agremiação de intelectuais, forma-se outra com o Antonino Pestana, Manuel Pestana Reis, Eduardo Pereira, Fernando de Menezes Vaz e Juvenal de Araújo, entre outros. O séc. XX é de uma produção literária significativa na ilha da Madeira. Aí, com base no que se passa no continente, sobretudo nos centros culturais do país – Lisboa, Coimbra, no início do século, e Porto, na segunda metade de novecentos –, os autores experimentam as escolas em voga e adaptam-nas à sua insularidade: o romantismo, o modernismo e o grupo da Presença são exemplos deste caminho. A maioria dos poetas da época, apesar de, em alguns casos, publicarem livros individuais, faziam-se representar em coletâneas, em almanaques, como, por exemplo, o Almanaque Ilustrado do Diário da Madeira ou o Almanaque de Lembranças Madeirense, ou ainda na Revista Literária. Ressalte-se, aqui, alguns poetas que marcaram presença na vida literária do séc. XX: José Cruz Baptista Santos (1887-1959), jornalista que deixou, por entre a sua obra poética, Horas de Inspiração (1906), Rosas e Jasmins (1913) e Baladas, um inédito; Elmano Vieira (1892-1962), que deixou Livro Azul (1959) e muitos poemas dispersos em múltiplas publicações e antologias; António Feliciano Rodrigues (Castilho), que publicou, entre outros, Versos da Mocidade (1903), Versos Para os Meus Filhos (1910), Colar de Vidrilhos (1911) e Sonetos (1916). Na passagem para o modernismo, movimento para o qual a Madeira contribuiu com algumas páginas da sua literatura, um outro autor, João Gouveia (1880-1947), há de revelar-se muito importante para a história das letras madeirenses, na medida em que inaugura aquilo que, no entendimento crítico contemporâneo, pode ser considerado literatura regional, dado o seu sentir ilhéu e as marcas insulares da sua poesia. Fazem parte da sua obra, os livros de poemas Breviário (1900), Atlante (1903) e Almas do Outro Mundo (1908). De acordo com Mónica Teixeira, o poeta bebe a sua inspiração nos autores nacionais – António Nobre, Cesário Verde e Camilo Pessanha, assim como no poeta inglês Lord Byron, com quem partilha o seu amor à(s) ilha(s). A mundividência insular tem, no modernista Albino de Menezes (1889-1949), um seu representante. Por ele, apercebemo-nos das desigualdades (também culturais) entre a Ilha e o resto do país. A sua personalidade – e a sua escrita, obviamente – releva um sentimento de autor isolado, insulado, guardado pelo mar, que lhe cerra as portas do mundo, mas isolado por outras ilhas que se erguem dentro da própria Ilha. De entre todos os colaboradores de Orpheu, indicador das tendências literárias do seu tempo, foi Albino Menezes que figurou ao lado dos grandes nomes da literatura portuguesa desta época – Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros –, integrando-se nas expectativas sensacionistas dos dois primeiros. A sua vertente de poeta surge mais tarde: primeiro com quadras de natureza popularizante, publicadas no Diário de Notícias (27 jan. 1921) sob o título “Mulheres”, e, depois, com sonetos que reúnem características românticas, modernistas e decadentistas. O poema “Olá Vadio!”, publicado na Presença (n.º 5, 4 jun. 1927), é um dos mais conhecidos do autor, um texto claramente modernista que, apesar de descrever o movimento num cais de Lisboa, faz lembrar, pelos pormenores, a sua origem insular. Outros autores madeirenses da mesma geração inserem-se ainda nesta corrente, como Cabral do Nascimento (1897-1978), que revela um sentido renovador, inspirado numa sensibilidade lírica nacional, chamando a atenção para os perigos de uma ameaçadora rutura com os valores da cultura portuguesa. Teve um papel muito importante na cultura literária da Ilha e do país, como tradutor e organizador de coletâneas, nomeadamente de Líricas Portuguesas e O Livro de Cesário Verde. Como poeta, publicou, em Lisboa, no ano de 1916, o seu primeiro livro de poesia, As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruinas, obra essa elogiada por Fernando Pessoa pelo seu caráter sensacionista. No entanto, havia de se distanciar das linhas do movimento de Orpheu, chamando-lhe Mónica Teixeira um “clássico moderno”, um autor com um caminho muito próprio que define a poesia dos seus livros: Além-Mar (1917), onde se denota um certo patriotismo insular, Descaminho (1926), Arrabalde (1928), Litoral (1932), Confidência (1945) e Digressão (1953). Filósofo Y, Príncipe d’Arcádia ou Cavaleiro do Cisne são os nomes autorais de outro poeta que se destaca na Ilha, sobretudo a partir dos anos 20 da centúria: Octávio José dos Santos ou Octávio de Marialva. Nascido no Funchal em 1898, onde viria a falecer a 3 de junho de 1992, da sua obra versátil, na medida em que toca vários temas – filosofia, teosofia, astronomia e esoterismo –, destaca-se a poesia, género no qual revela a sua permanente procura de harmonia com o universo. Publicou, entre outros livros de poesia, A Morte do Cisne (1923), A Sinfonia do Eu (1937) e Olimpo – 25 Poemas da Grécia (1991). Da geração da Presença, destaca-se, na Ilha, o escritor João Brito Câmara (1909-1967), delegado da Associação Portuguesa de Escritores (APE) na Madeira, entre 1956 e 1958. Foi diretor da página literária do semanário Eco do Funchal, o “Eco Literário”, que se revelou importante na divulgação de autores contemporâneos: Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Florival de Passos, Rogério Correia, Horácio Bento de Gouveia, Octávio de Marialva, Luís Marino e Baptista Santos. Foi, porém, como poeta que este advogado mais se distinguiu. Cabral do Nascimento assinou o prefácio do seu primeiro livro de poesia: Manhã (1927). Publicou, ainda, Relance (1942), Auto da Lenda (1943), um poemeto nacionalista com características épicas, Ilha (1940) e Poesias Completas (1967), cujo prefácio é da autoria de Fernando Namora. Edmundo de Bettencourt (1899-1973) foi, também, um dos fundadores da Presença, juntamente com José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Colaborou em diversos jornais e revistas e consagrou-se um dos grandes poetas da época, na Madeira e no continente. Em 1930, publica O Momento e a Legenda, a sua primeira e solitária obra em mais de 30 anos. Só em 1963, Bettencourt volta a evidenciar-se com a publicação de toda a sua obra. Os Poemas de Edmundo Bettencourt integram, além de O Momento e Legenda, Rede Invisível, de 1930-31, Poemas Surdos, de 1934-40, e Ligação, escrito entre 1936 e 1962, e são prefaciados por Herberto Helder. Um outro poeta com algum significado nesta época é Carlos Agapito Camacho (1903-1994), que assina os seus textos sob o pseudónimo Santiago de Melo. Como poeta e ensaísta, colabora na imprensa, nomeadamente no Diário da Madeira e no semanário Trabalho e União, onde assina, sobretudo, artigos de crítica literária e crítica social, assumindo um discurso provocatório e fantástico e demarcando-se pela sua originalidade, pela ironia e pelo ritmo das frases, levando o Visconde do Porto da Cruz a chamá-lo “o ritmador da ironia”. Em 1928, surge integrado no segundo grupo da Presença, com quem politicamente mais se identifica, e publica os poemas “Insolação”, “Senti Saudades de Mim” e “Claro-Escuro” na Presença (n.º 28, vol. 2, ago.-set. 1930). “Insolação” virá a ser publicado, a 13 de dezembro desse ano, em Trabalho e União e Luís Marino publica-o na coletânea Musa Insular, caraterizando-o como um poeta modernista com estilo próprio. Octávio de Marialva dedica-lhe o soneto “Don Juan” que o Diário da Madeira publica no dia 10 de agosto de 1930. Em Musa Insular, Luís Marino reúne uma plêiade de 372 poetas madeirenses, entre o séc. XV e a data da publicação (1959) deste “espicilégio popular madeirense”, como lhe chama o próprio autor no prólogo da obra: desde João Gonçalves da Câmara (1414-1501) a Carlos Maximiliano Alves de Menezes Cabral (1942-), o último poeta referenciado nesta obra. Luís Marino é o nome literário de Luís Gomes da Silva (1909-1996). De entre a sua vasta produção literária, destacamos: Revoada de Sonhos (1932), Cardos e Papoilas (1944), O Pobre e o Rico (1950), O Canto do Cisne. Poemas (s.d.) e Bolas de Sabão (s.d.). [caption id="attachment_14724" align="alignleft" width="218"] António Aragão[/caption] Os anos 50 são essencialmente ligados à poesia e a uma certa afirmação do meio insular. Por esse motivo, à semelhança do que já havia acontecido no séc. XIX com Flores da Madeira, alguns dos poetas madeirenses são reunidos em coletâneas. Surge, de facto, em 1952, Arquipélago, uma publicação do jornal Eco do Funchal, na qual se destacam poetas como António Aragão, Carlos Cristóvão, Florival de Passos, Jorge Freitas, Rebelo Quintal, Rogério Correia e Silvério Pereira. É este o primeiro palco de Herberto Helder. Nascido no Funchal, em 1930, cedo se afastou da Ilha e abriu o seu mundo a outros mundos. Desde cedo, também, manifestou interesse por determinadas culturas que, ao longo do tempo, sofreram grandes mutações. É lá que o poeta vai beber a sua linguagem (quase) ritualística, a ideia de uma metamorfose contínua e a noção de poeta como alquimista, como um deus ou um mago possuído pela força animista da linguagem. O autor, considerado, hoje, um dos maiores vultos da literatura portuguesa, participa também num opúsculo, Poemas Bestiais, em 1954, com Carlos Camacho e Jorge Freitas, uma publicação que passa praticamente em silêncio pelo Funchal. Esta é uma obra provocatória, um pouco na linha de Arquipélago e de Aerópago, que aparece como uma resposta bem-disposta à primeira coletânea. Estas coletâneas permitiram desencadear uma certa consciência literária madeirense, pela mão de escritores como António Aragão (1921-2008), Cabral do Nascimento ou Edmundo Bettencourt (1899-1973). Os suplementos literários dos jornais continuam a desempenhar um papel fundamental na vida cultural e literária da Madeira na segunda metade do séc. XX. Pedra é um desses casos. Surge em duas séries: a 25 de março de 1965, no jornal Eco do Funchal, e a 22 de janeiro de 1967, no Comércio do Funchal. Um olhar descomprometido permite-nos perceber nomes até então desconhecidos no panorama literário madeirense: Vicente Jorge Silva, Luís Manuel Angélica, José de Sainz-Trueva, entre outros. Alguns dos autores do séc. XX deixaram a sua poesia dispersa na imprensa ou referenciada em coletâneas: César Pestana (1904-1986), por exemplo, ou João França (1908-1996), mais conhecido pela sua prosa. A partir dos anos 70, alguns poetas madeirenses são integrados em antologias organizadas no continente. É o caso de Poesia 70 (Porto, 1970), Poesia 71 (Porto, 1971) e Poemografias (Lisboa, 1985). Na Ilha, José António Gonçalves (1954-2006) é o responsável pela divulgação literária de muitos dos poetas insulares. Pelas suas mãos, também se organizaram antologias de poesia: Ilha (1975), Ilha 2 (1979), Ilha 3 (1991), Ilha 4 (1994) e Ilha 5 (2006), esta última organizada pelo seu filho depois da sua morte, Cadernos Ilha, que contou com 12 volumes publicados a partir de 1988, e Livros de Cordel, que teve 10 números. Para além disso, o poeta integrou, em 1973, o Caderno de Poesia & Crítica Movimento, lado a lado com António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Pedro Tamen, José Bento, A. J. Vieira de Freitas, José Agostinho Baptista e Gualdino Avelino Rodrigues. Nos anos 70, foi o responsável pela página literária do Jornal da Madeira, “Poesia 2000”, e, nos anos 90, pelo suplemento cultural do jornal Notícias da Madeira. A ele se deve também uma vasta criação poética, de que salientamos: Os Pássaros Breves (1995), Pedra Revolta (2000), Esquivas São as Aves (2001), Memórias da Casa de Pedra (2002) e As Sombras no Arvoredo (2004). Verifica-se, nestes anos, a tendência para juntar os poetas da Madeira com os dos Açores numa antologia insular, um ensaio das afinidades entre poetas de ilhas, na medida em que alguns poetas refletiram sobre eventuais pontos de contacto das escritas ilhoas, ainda que as respostas dos dois arquipélagos pareçam ter sido diferentes ao longo dos tempos: por um lado, os Açores reagem mais facilmente às correntes que se erguem na Europa e na América; por outro, a Madeira aproxima-se mais do que vai acontecendo em território português. Surge, assim, Pontos Luminosos. Açores e Madeira, uma antologia de poesia do séc. XX que abriga também alguns poetas do início do séc. XXI: João Carlos Abreu (n. Funchal, 1935); Irene Lucília Andrade (n. Funchal, 1938); António Aragão (n. São Vicente Madeira, 1924); José Agostinho Baptista (n. Funchal, 1948); Isabel Aguiar Barcelos (n. Funchal, 1958); Edmundo Bettencourt (n. Funchal, 1889); João David Pinto Correia (n. Funchal, 1939); Ana Margarida Falcão (n. Funchal, 1949); A. J. Vieira de Freitas (n. Madeira, 1940); São Moniz Gouveia (n. Santo António da Serra, Madeira, 1967); Octávio de Marialva (n. Funchal, 1898); José Tolentino Mendonça (n. Machico, Madeira, 1965); José Viale Moutinho (n. Funchal, 1945); João Cabral do Nascimento (n. Funchal 1987); José de Sainz Trueva (n. Funchal, 1947); Ângela Varela (n. Camacha, Madeira, 1938), e alguns poetas açorianos. A Ilha continua a inspirar poetas. Os que mais se têm destacado no panorama literário são, sobretudo, aqueles que conseguiram ultrapassar as fronteiras basálticas da Ilha, alguns dos quais com grande projeção nacional e mesmo internacional. Organizados cronologicamente pela data do seu nascimento, ressaltamos alguns autores: Herberto Hélder (1930-2015), a sua vasta obra, que se iniciou como uma procura surrealista, experimenta o poder da palavra e propõe uma reflexão sobre a escrita. De entre a sua poesia, sublinham-se as obras seguintes: Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Cobra (1977), O Corpo o Luxo a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), A Cabeça entre as Mãos (1982), As Magias (1987), Última Ciência (1988), Do Mundo (1994) e Poesia Toda (1973 e 1996). Irene Lucília Andrade (n. 1938) publicou O Pé Dentro d’Água (1980), Ilha que é Gente (1986), A Mão que Amansa os Frutos (1991), Estrada de um Dia Só (1995), Protesto e Canto de Atena (2002), Água de Mel e Manacá (2002). Ao longo do tempo, integrou coletâneas dedicadas à poesia insular: Ilha 2, Ilha 3 e Ilha 4, Duplo Olhar (1997), Poetti Contemporanei dell'Isola di Madera, (Itália, 2001), Saudades da Ilha – Evocações Poéticas da Ilha da Madeira (2003) e Pontos Luminosos – Açores e Madeira: Antologia de Poesia do Século XX (2006). Ângela Varela (n. 1938) é uma poetisa representada em jornais e revistas da Ilha e do continente, bem como nas antologias Ilha 3, com “Espaços de Passagem”, de 1991, e Ilha 4, com “Corpo – Ilha”, de 1994. João David Pinto-Correia (n. 1939), docente universitário na área da literatura, escreveu, entre outras obras, Este Branco Silêncio (1991) e Onze Mais um Poemas e Lugares (2001). A. J. Vieira de Freitas (1940-1982) publicou A Palavra que Somos (1971), Habitar o Tempo (1975) e Erosão (1982). A ele se deve, também, a coordenação da antologia Da Ilha que Somos (1977), que pretendeu transmitir a voz poética da insula. No prefácio que assina, o poeta explica que o insular intui a poesia a partir da limitação geográfica da Ilha. A obra reúne, assim, um conjunto de “jovens poetas”, alguns dos quais não madeirenses, que pretendem traduzir o complexo mundo do ilhéu. De entre os autores aí representados, destacam-se Fátima Dionísio, A. Brito Figueiroa, Carlos Alberto Fernandes e Laurindo Gois, estes três últimos ligados ao grupo Ilha. José de Sainz-Trueva (n. 1947) manteve, desde muito jovem, uma produção poética regular na imprensa regional e de Lisboa, bem como em revistas literárias e várias antologias publicadas no Funchal, no Porto e em Lisboa. Em 2013, publicou O Lento Arder das Coisas. José Viale Moutinho (n. 1945) é um dos poetas da Ilha que viveu grande parte da sua vida fora dela. Jornalista, cronista, investigador, contista e poeta, tem, entre muitas outras, as seguintes obras poéticas publicadas: Urgência (1966); Atento Como um Lobo (1975); Os Laços (1979); Quarteto de Viagens e Paixões (1980); Correm Turvas as Águas Deste Rio (1982); Piano Bar (1986); Máscaras Venezianas. Poemas (1987); Tretze Quadres de Mário Botas (1987); As Portas Entreabertas: Poesia 1975 – 1985 (1990); Un Caballo en la Niebla (1992), que foi considerado pela revista Leer (Madrid) um dos 100 melhores livros da déc. de 90; Caderno de Entardecer (1996); O Amoroso (1997 e 2004); Nomes de Árvores Queimadas (1997); Areias Onde Gregos se Perdem (1998); Poemas Tristes (2001); A Ilha do Ogre (2003); Outono: Entre as Máscaras (2003); Sombra de Cavaleiro Andante: Antologia Poética 1975-2003 (2004); Por um Bosque tão Sombrio e Outros Poemas (2007); São Coisas Tais Efeitos Só do Acaso? (2009). João Dionísio (n. 1947) foi um dos três madeirenses (com José de Sainz-Trueva e António Aragão) a participar numa nova vertente do experimentalismo apresentado nas antologias portuenses Poesia 70 e Poesia 71. Tem a sua obra poética dispersa por antologias várias. Recorrendo, com frequência, ao poema em prosa, publicou, por exemplo, A Cidade de Álea (1981), Os Açúcares ou o Ruído do Silêncio (1996), Uma Inquestionável Distância (1999) e Os Construtores da Memória (2000). José Agostinho Baptista (n. 1948) foi jornalista e tradutor, tendo sido responsável pela tradução em português de alguns autores de língua inglesa, como Walt Whitman e Tennessee Williams. Assumiu-se como um dos grandes poetas dos sécs. XX e XXI. Da sua vasta obra publicada, destacam-se os livros: Deste Lado Onde (1976); O Último Romântico (1981); Morrer no Sul (1893); Auto-Retrato (1986); Paixão e Cinzas (1992); Canções da Terra Distante (1994); Agora e na Hora da Nossa Morte (1998); Biografia (2000); Anjos Caídos (2003), que lhe mereceu o Prémio PEN de Poesia; Esta Voz é Quase o Vento (2004), que lhe valeu o Grande Prémio de Poesia APE/CTT; Quatro Luas (2006); Além-Mar (2007); Assim na Terra como no Céu (2014). José Tolentino Mendonça (n. 1965) é dos mais reconhecidos poetas da sua geração, tendo sido distinguido por diversos prémios literários, como o Cidade de Lisboa de Poesia, em 1998, e o PEN Clube Português, em 2004. À semelhança de José Agostinho Baptista, foi distinguido com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, tendo sido considerado um dos 100 portugueses mais influentes em 2012 pela Revista do jornal Expresso. Da sua vasta obra literária, destacamos: Os Dias Contados (1990); Longe Não Sabia (1997); A Que Distância Deixaste o Coração (1998); Baldios (1999); De Igual Para Igual (2001); A Estrada Branca (2005); A Noite Abre Meus Olhos (2006); O Viajante Sem Sono (2009); A Papoila e o Monge (2013). A atividade poética da ilha da Madeira mostra-se, assim, intensa. Talvez a sua condição insular e os singulares fatores geográficos e culturais façam dela uma terra de poetas. Registe-se, pois, outros nomes que fazem parte da história literária da Ilha: Carlos Alberto Fernandes, Eurico de Sousa, Gualdino Avelino Rodrigues, Guilhermina Luz, Isabel Aguiar Barcelos, Jorge Freitas, Luís Viveiros, Laura Moniz (nome com que passou a assinar São Moniz Gouveia após alteração do nome civil), João Carlos Abreu, entre muitos outros poetas que terão, certamente, lugar na história da literatura que se faz na Ilha. Há outros poetas, porém, que, não tendo nascido na Ilha, dela fizeram a sua casa. De entre os muitos que se deixaram inspirar pela Madeira, sublinham-se alguns pela importância que o tempo lhes tem dado: João de Brito Câmara (1909-1967) nasceu em Lisboa, mas foi viver para o Funchal com quatro anos. Advogado, foi sócio do Instituto Cultural da Madeira e pertenceu à Associação Portuguesa de Escritores (de que foi delegado na Ilha, entre 1956 e 1958). Colaborou na imprensa regional. Escreveu Manhã (1927), Relance (1942), Auto da Lenda (1943), Ilha (1950) e Poesias Completas (1967). Maria Aurora Carvalho Homem (1937-2010), natural da Beira-Alta, escolheu a Madeira para viver a partir de 1974. Como poeta, publicou Raízes do Silêncio (1982), Ilha a Duas Vozes, com João Carlos Abreu (1988), Cintilações, poesia sobre aquarelas de Mellos (1995), Uma Voz de Muda Espera (1995) e 12 Textos de Desejo (2003). Carlos Nogueira Fino (n. 1950), apesar de ter nascido em Évora, residiu na Madeira desde 1959, optando pela Ilha como sujeito nos seus poemas. Dos seus livros de poesia, destacamos XXIII Poemas de Ilhamar (1987), Simbiose (1988), Este Cais Vertical (1989), Contemplação do Olhar (1992), (Pre)Meditação (1992), Segundo Livro de Ishtar (1994), Arco e Promontório (1997), Inquietação da Água (1998), O Deus Familiar (2001), Funchal (2004) e 39 poemas (2006). A poesia é voz antiga na Madeira. As suas raízes (con)fundem-se com as origens humanas da Ilha. No princípio, destacaram-se os poetas palacianos, depois os que beberam a sua arte no colégio religioso, seguidos dos que foram nascendo dos salões onde as tertúlias literárias aconteciam e nas páginas dos jornais. A Madeira foi acompanhando, ao longo da história da literatura, as correntes estéticas e ideológicas do resto do país. No entanto, muitos dos poetas de origem madeirense deixaram que a Ilha entrasse nos seus versos. Basta percorrer os títulos de algumas obras já citadas para perceber que o imaginário da Ilha está, de algum modo, presente nos poetas que citamos. Veja-se, por exemplo, as coletâneas Flores da Madeira, Álbum Madeirense e Ilha, ou nomes de obras como A Divina Ilha, de Albino Menezes, ou XXIII Poemas de Ilhamar, de Carlos Fino. A partir dos finais do séc. XX, os poetas madeirenses procuraram o estatuto de cidadãos do mundo, mais preocupados com os temas e os problemas que se colocam à humanidade do que propriamente com temas locais e regionais. A Ilh a, porém, parece continuar a desencadear vocações poéticas, na medida em que todos os anos aparecem novos poetas e novos livros de poesia, dando conta da importância deste espaço para a literatura.   Graça Maria Nóbrega Alves (atualizado a 11.12.2018)

Literatura

ovington, john

Nascido em Melsonby, Yorkshire, em 1653, entrou aos 15 anos para o Trinity College de Dublin, obtendo o bacharelato em 1675 e a licenciatura em 1678. Finalizou a sua formação no John’s College de Cambridge, onde ingressou em 1779. Não se sabe quando foi ordenado, mas muito provavelmente terá sido no mesmo ano de ingresso no John’s College. Integrou a Companhia das Índias Orientais 10 anos depois, partindo a 11 de abril de 1689 do porto de Gravesend, no navio inglês Benjamim daquela Companhia, como capelão de bordo, dentro do costume dos navios ingleses, de guerra ou mercantes, de contratar um capelão. Foi nessa viagem que passou pelo Funchal, tendo como destino Surat, na província de Guzerate, na Índia, onde aquela Companhia inglesa se havia instalado em 1608 e consolidado a sua presença após a batalha de Swally, a 29 e 30 de novembro de 1612, contra uma armada portuguesa enviada de Goa para os desalojar. O Rev. John Ovington domiciliou-se em Surat durante dois anos e meio, mas a cidade entrava em decadência com a transferência da sede da Companhia para Bombaim, em 1687, cidade que entrara para a Coroa inglesa em 1662 no dote de casamento de D. Catarina de Bragança (1638-1701) com Carlos II (1630-1685). A Rainha D. Catarina de Bragança introduzira o chá na corte inglesa, pelo que essa bebida passou a gozar de certa divulgação, sendo um dos principais negócios da Companhia das Índias Orientais. Regressado John Ovington a Inglaterra por volta de 1692, veio a editar as memórias da sua viagem em 1696, sendo estas, posteriormente, sucessivamente reeditadas e traduzidas. No entanto, à época, foi o folheto que escreveu a divulgar o chá, editado em 1699, que lhe deu renome, para o bem e para o mal. Até essa data, o chá era considerado uma bebida somente de senhoras, o que lhe veio a causar alguns problemas, tendo sido o seu principal delator um capitão de navio concorrente da Companhia, Alexander Hamilton, que não se escusou de o apelidar de “fêmea Ovington” e “mole hermafrodita” (SILVA, 1981, 177-178). No entanto, os trabalhos de Ovington já haviam sido reconhecidos antes de 1696, tendo sido nomeado capelão do Rei Guilherme III (1650-1702), ensinando na Universidade de Dublin e acabando os seus dias, solteiro, como reitor de St. Margaret, Lee, no condado de Kent e Diocese de Rochester, em finais de junho de 1731. Alguns anos depois, especialmente após a tradução francesa de Jean-Pierre Niceron (1685-1738), editada como Voyages Faits à Surate & en d'Autres Lieux de l'Asie & de l'Afrique (Paris, 1725), a sua obra passa a ser conhecida como apresentando franca influência mongol e aspetos do ascetismo indiano e persa deveras interessante. Seguiremos a tradução de António Ribeiro Marques da Silva, feita a partir da edição da responsabilidade da Oxford University Press, editada em Londres em 1929 e incluída em A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700. A sua descrição da ilha da Madeira começa pela habitual abordagem histórica inglesa, na base da mítica viagem de Machim e Ana de Arfet, a que, com alguns anacronismos, se segue a viagem dos primeiros capitães, não nomeados, que, desembarcados depois para o povoamento, “em pouco tempo, transformaram a região num paraíso” (OVINGTON, 1981, 196). Ovington deve ter consultado a descrição de Cadamosto (1432-1488), pois utiliza termos e medidas iguais, elogiando a fertilidade do solo da Ilha e ressaltando “que todos os seus produtos, pela notável beleza e abundância, fizeram-na ganhar o título de ‘Rainha das Ilhas’” (Id., Ibid.). O capelão refere também que dali se exportava vinho e açúcar, sendo este “considerado o melhor do mundo” (Id., Ibid., 197). No entanto, o principal produto de exportação da Ilha era o vinho, tendo as videiras vindo de Creta e sendo então três ou quatro castas, com as quais aquele era produzido. Um, menos apreciado, era da cor do champanhe; outro, mais forte e de cor mais clara, era semelhante ao vinho branco; a terceira espécie, rica e deliciosa, era designada por Malvasia; a quarta espécie era o tinto, mas era muito inferior em gosto. O texto de Ovington é um dos primeiros textos a descrever o tratamento do vinho madeirense: “Para fermentar e tratar o vinho, trituram e cozem uma pedra chamada gesso, da qual atiram nove ou dez libras para dentro de cada pipa”. O reverendo cita igualmente que, por aquela data, se começou a perceber as qualidades da fermentação ao calor do sol, informando que se desviava o batoque “da abertura da pipa e, desta maneira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 197-198). John Ovington refere que eram “muito vulgares os citrinos, dos quais os nativos fazem um doce delicioso” (Id., Ibid., 198) chamado sucket, que era anualmente exportado para França, em dois ou três pequenos barcos. O açúcar com que realizavam a cristalização de frutos, “muitas vezes receitado como remédio para a tuberculose pulmonar”, raramente era exportado devido à sua escassez, pois mal chegava para as necessidades da Ilha (Id., Ibid.). O termo “sucket” utilizado por Ovington deve corresponder a qualquer doce que se chupava, a uma espécie de rebuçado de funcho que deve ter visto apenas na Ilha, pois, na época, os doces de exportação seriam chamados de compotas, doces e casquinha, uma conserva feita com cidra cristalizada, conforme consta da documentação local. No entanto, este negócio de doces era mais importante do que Ovington pensava, exportando-se muito mais do que os três citados pequenos barcos para França. O informador de António Jorge de Melo (c. 1640-1704) afirmava mesmo que poderiam estar envolvidos nos cômputos gerais anuais cerca de 20 embarcações só de um tipo destes doces. As bananas devem ter estarrecido o puritano reverendo, que refere: “são tão apreciadas e até veneradas que ganharam, entre os nativos, a crença de serem o fruto proibido. E parecendo confirmar esta crença, as plantas exibem as vastas folhas que sendo tão grandes os levaram a dar crédito à sua utilidade na proteção da nudez de Adão e Eva. É considerado quase crime sem perdão cortar com uma faca este fruto que, depois do corte, apresenta leve semelhança com o Nosso Salvador crucificado; e isto, segundo dizem, é ferir a sua sagrada imagem” (Id., Ibid., 199). Seguindo a descrição de Ovington, lemos igualmente: “os negociantes ingleses, que se calcula não ultrapassarem uma dúzia, seguem a maneira de viver inglesa característica das suas cidades e da casa de campo. Enfastiados da cidade, recreiam-se nas suas propriedades rurais, para as quais nos convidaram solenemente levando-nos a nós, forasteiros, a um fresco lugar onde borbulhavam fontes à sombra da ramagem de laranjeiras e limoeiros. A Natureza aqui oferecia-nos um quadro de alegria e amor e esperava-nos com toda a pompa, amenidade e beleza de paisagem campestre. As colinas e vales abafados de vinha, ofereciam-nos o penetrante odor das uvas maduras” (Id., Ibid., 199). O vinho da Madeira ocupa uma boa parte do texto referente à Ilha, escrevendo com certo espanto Ovington que os madeirenses “quando bebem em companhia não impõem aos outros o vinho que devem beber. O criado empunha a garrafa entregando ao convidado o copo e lentamente verte a quantidade que aquele deseja. Deste modo, cada um toma a quantidade que lhe apetece, não sendo, por isso, os mais sóbrios forçados a beber de mais contra sua vontade” (Id., Ibid., 200). Acrescenta ainda que urinar na rua é considerado indecente e pode fazer com que “as pessoas sejam censuradas por embriaguez” (Id., Ibid.). Esta passagem de Ovington leva-nos a pensar que os excessos de consumo de álcool vigentes na Madeira nos séculos seguintes não eram então notórios. As apreciações mais complexas do reverendo anglicano vão para a forma de viver e vestir dos madeirenses, que lhe deve ter inspirado algum receio e que, a par de informações vinculadas provavelmente pelos comerciantes ingleses, o fez esboçar um quadro quase tenebroso da Madeira daquele tempo, a que é necessário dar o desconto devido à sua condição de puritano e estrangeiro. Escreveu, assim, que as pessoas optavam por uma maneira de vestir extremamente solene, trajando todas de negro, à semelhança, segundo entendeu, dos elementos eclesiásticos, “para melhor captarem as boas graças dessa classe que disfruta de tanta autoridade entre eles” (Id., Ibid.). Acrescenta ainda que não conseguiam deixar de viver sem “a galhardia que atribuem ao uso de uma espada ou punhal. Esses apêndices inseparáveis são até usados pelos criados que servem à mesa e que orgulhosamente se pavoneiam com os pratos, naqueles trajes solenes, com os punhos de uma espada de, pelo menos, uma jarda de comprimento (quase um metro) e isto em pleno verão” (Id., Ibid.). Esse e outros pormenores levaram o capelão anglicano a escrever que “o execrável pecado do homicídio ganhou também, não apenas impunidade, mas até reputação. Mergulhar as mãos em sangue tornou-se característica de qualquer cavalheiro de posição social e distinção” (Id., Ibid., 203), acrescentando: “são muito propensos a este crime, caindo frequentemente nele, devido ao fácil acolhimento das igrejas que os resguardam de qualquer ação judicial e aonde acorrem sempre que se lhes ofereça oportunidade” (Id., Ibid.), o que, embora fosse verdade, não era assim tão linear (Alçadas). O capelão anglicano atribuía esta situação à Igreja Católica, dizendo que “o número de clérigos aumenta aqui, assim como em outros países papistas, até para opressão de leigos com os quais parecem rivalizar em quantidade. Custa a crer como tantos ricos eclesiásticos podem ser sustentados com o labor de tão escassa população” (Id., Ibid.). Acrescentava ainda: “reduz-se este espanto sabendo que – segundo nos dizem – com o fim de evitar uma sobrecarga para a igreja, ninguém neste país é admitido na clerezia, se não conseguir possuir algum património” (Id., Ibid.). As apreciações mais difíceis de Ovington apontam para uma certa promiscuidade sexual que encontrou na Ilha e que, mais tarde, também apontará a Bombaim. Embora seja de colocar algumas reservas às suas observação, parece não haver dúvidas quanto à existência de uma certa libertinagem na Ilha, já confirmada, e.g., com Giulio Landi (c. 1510-1578) nos anos 30 do século anterior. Ovington cita que “a inconstância do marido encoraja (embora sem o direito de desculpar) a mesma leviandade da esposa, cujo sexo é dotado de uma fraqueza que não lhe dá resistência contra os encantos de sedutoras tentações. Portanto, são aqui as mulheres tão capazes de enganar os maridos como estes de enganar as mulheres, uns aos outros igualmente acessíveis a forasteiros, especialmente as mulheres, cuja disposição nesse sentido é mais excitada pelo facto de viverem enclausuradas, guardadas e afastadas de qualquer convívio” (Id., Ibid., 202). Ovington aponta como uma das principais razões de tal situação os arranjos matrimoniais efetuados pelas famílias, à semelhança, e.g., do que era praticado na Índia, onde as crianças de tenra idade se comprometiam, através de contrato, aos cinco ou seis anos. Ao preparar-se um casamento, as primeiras informações procuradas eram sobre a ascendência e posição económica do pendente, procurando-se evitar a “detestada afinidade com os mouros e judeus, entre eles muito numerosos” (Id., Ibid.). No âmbito deste tema, ressalta ainda que uma das atitudes que mais o “surpreendeu foi a proibição que uma certa velha dama levantou às pretensões de um jovem candidato à mão de sua filha, informada da saúde e vigor da constituição do jovem, assim como da moderação e castidade nos seus costumes dos quais constava nunca ter sofrido qualquer doença venérea” (Id., Ibid., 203), concluindo a senhora que tal se devia à fraqueza da constituição física do jovem, pois “pensava não haver necessidade de objeções de consciência para pecados tão veniais cuja prática, em sua opinião, era meritória” (Id., Ibid.). As apreciações gerais sobre a cidade são sumárias, registando Ovington que “as casas são feitas sem grande dispêndio ou esplendor, nem se distinguem pelo embelezamento artístico nem interiormente se apresentam ricas de ornamentos e mobiliários. Algumas atingem uma razoável altura” – por certo as típicas torres do Funchal para se ver o mar – “mas sem outra característica de grandeza. Geralmente são de telhados baixos, permitindo todas a ventilação através de janelas que, sem vidros, ficam abertas durante o dia e fechadas com postigos de madeira, à noite” (Id., Ibid., 200-201). No entanto, o reverendo deixou-se extasiar perante a igreja dos Jesuítas, que considerou “de longe o mais belo de todos os seus templos” (Id., Ibid., 204), descrevendo principalmente as iluminações e festas por ocasião do dia de S.to Inácio. Informa, então, que se cantou “uma série das mais escolhidas antífonas com o acompanhamento melodioso de instrumentos e música coral, suficientes, se a sua doutrina lhes correspondesse, para nos cativar e levar à conversão” (Id., Ibid.). Conta, por último, que “algumas capelas, assim como as casas, são construídas sobre colinas tão íngremes que parecem ameaçar de quedas graves os que saem delas, os quais certamente não deixarão de invocar a proteção dos santos, para afastamento desses perigos” (Id., Ibid.). O texto de John Ovington encontra-se logicamente eivado de referências anticatólicas, dada a época em que foi escrito, na qual não havia, e.g., nenhum cemitério ou igreja anglicana. Para tal também concorreu um problema que terá havido com alguns marinheiros do navio da Companhia inglesa, que Ovington e os companheiros entenderam que teriam sido presos em terra pelos padres do Colégio dos Jesuítas, que serão acusados pelo reverendo de serem profundamente incultos, “de grande incapacidade cultural, facilmente denunciada na sua ignorância”, de tal forma que apenas um em cada três com quem conversou “compreendia o latim” (Id., Ibid., 204). Isto não pode, no entanto, ser verdade, salvo se, em vez de padres, tivesse estado à conversa com leigos. Também acusa os cónegos da Sé de profunda indolência e de atrasarem o relógio da torre uma hora para não rezarem as matinas às 4 h da manhã. Como o “levantar-se cedo representa uma grande maçada, especialmente para homens corpulentos, decidiram que o relógio, de manhã, nunca bateria as quatro horas senão quando fossem realmente cinco” (Id., Ibid., 206), o que era explicado como uma pontual avaria. Para resolver o assunto dos seus homens presos em terra, o capitão do navio optou por sequestrar uma embarcação vinda das zonas rurais para o Funchal, que transportava um abade e um vigário. O capitão escreveu então uma carta ao cônsul britânico, que pensamos ser John Carter, para interceder junto do governador, então Lourenço de Almada (1645-1729), propondo a troca dos prisioneiros. Ao contrário do que esperava, recebeu a bordo alguns dos comerciantes britânicos, “trazendo consigo dinheiro para uma viagem” (Id., Ibid., 208), tal era a situação de insegurança sentida em terra com o sequestro dos eclesiásticos. Face à situação, o capitão optou por enviar todos para terra, incluindo o abade e o vigário, “até porque pensava que os padres seriam tão inúteis para ele no mar, como geralmente o são em terra, constituindo um pesado fardo em terra como no mar” (Id., Ibid.), esquecendo-se John Ovington que também era padre, pelo que o mesmo, em princípio, também se aplicava a ele. Esta memória terá sido escrita algum tempo depois do referido acontecimento, pois acrescenta que, dia e meio depois da partida do navio, chegavam ao Funchal dois navios de guerra franceses e que, mal tinham deitado a âncora, a tornavam a levantar, seguindo para as Canárias, informados de ter sido esse o destino do navio inglês. O Benjamim, no entanto, torneou a ilha da La Palma, a leste, e seguiu diretamente para a ilha de Santiago, em Cabo Verde, malogrando assim a perseguição francesa (Id., Ibid., 209). Na sequência do texto sobre a Madeira, descreve ainda os peixes-voadores que observou a bordo e um tornado que sofreram. Obras de John Ovington: A Voyage to Suratt, in The Year 1689 (1696); An Essay upon the Nature and Qualities of Tea (1699).   Rui Carita (atualizado a 15.12.2017) artigos relacionados: açúcar banana vinho

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re-nhau-nhau - trimensário humorístico

O Re-nhau-nhau foi um trimensário humorístico madeirense, centrado na caracterização do Zé Povinho da Madeira, estereótipo que teve grande importância e um papel relevante no sucesso deste periódico. O jornal saiu pela primeira vez com um número especial no dia 16 de dezembro de 1929, sendo o primeiro número datado de 20 de dezembro desse mesmo ano. O último número, por sua vez, tem a data de 20 de dezembro de 1977. O Re-nhau-nhau surge numa época de “apagada e vil tristeza”. A imprensa existente nesta época estava na dependência dos poderes económico, político e religioso. Os jornais de maior projeção no arquipélago pertenciam aos grandes senhores da terra ou à instituição religiosa. O Re-nhau-nhau surge num contexto histórico difícil, devido à implantação no país de uma férrea ditadura que iria condicionar decisivamente a livre expressão e cercear a liberdade de imprensa, criando a censura prévia e uma polícia política que coartava a liberdade de pensamento, assim como todas as iniciativas jornalísticas que surgiriam. O Re-nhau-nhau surge com esta significativa e corajosa justificação: “Os nossos irrequietos e verdes anos, o nosso inconformismo, não se compadeciam com o estagnamento jornalistico da nossa terra com a brandura das suas críticas” (“Editorial”, Re-nhau-nhau, 29 dez. 1929, 1). Enquanto jornal satírico, iria colocar em evidência esta situação de dependência em que vivia a imprensa regional, sendo portador duma mensagem nova, imbuído de ideais e valores desconhecidos na sociedade madeirense. Era um jornal que pretendia viver exclusivamente das receitas provenientes da sua venda ao público e do recurso a alguma publicidade. A caricatura era então uma arte pouco conhecida na Madeira e o Re-nhau-nhau, revelando-a na Ilha, alforriou-a, emparelhando, assim, por mérito próprio, ao lado das Belas Artes. Das suas oficinas saíram as primeiras gravuras que ilustraram todos os jornais diários madeirenses. Foi aqui que se desenvolveu e aperfeiçoou o sistema da gravura em linolito, que mais tarde todos os jornais madeirenses utilizaram. A ideia surgiu numa noite, junto a uma esquina da R. da Ribeira de S. João, que dá para a Trav. das Violetas, quando Gonçalves Preto, João Miguel e Eduardo Nunes discutiram “a possibilidade de fazerem um semanário humurístico, mas feito com um humurismo (sic) tal que fosse capaz de fazer o indígena morrer de riso, desopilhando o figado e regiões adjacentes” (“Editorial”, Re-nhau-nhau, 21 dez. 1936, 1). Começaram logo a fazer contas, fantasiando os fabulosos lucros que lhes traria um jornal de quatro páginas, idealizando-o recheado de anúncios pagos a peso de ouro. Mas, infelizmente, apenas oito anos passados desde o dia que deu à luz este jornal, estes mesmos homens constatavam que “Proventos deixa-nos Re-nhau-nhau o suficiente para contrairmos as nossas dívidas...” (Ibid.), pois tudo o que recebiam se destinava à tipografia. Arrumadas as ideias e resolvidos os problemas que dificultavam a saída do jornal, o primeiro número surge a 16 de dezembro de 1929, um número especial, onde estes jovens apresentam as ideias mestras do seu projeto: publicar um trimensário humorístico, ilustrado com caricaturas, que sairia aos dias 10, 20 e 30 de cada mês. Este número especial caricatura alguns jovens da “Briosa” – os académicos do Liceu Nacional do Funchal – e também os colaboradores iniciais do Re-nhau-nhau. No desenho de capa do número assinalado como especial, e sob o título “Dedicado Aos Briosos da Briosa Academia”, são apresentados dois estudantes de capa e batina estudantil, naquele tempo um hábito muito em voga mesmo para estudantes liceais, que fora introduzido nos liceus nos finais do séc. XIX e vigoraria até 1939; são eles Teixeira Jardim, presidente da Academia, e Liberato Ribeiro, presidente da Executiva. A seguir surge o subtítulo: “Re-nhau-nhau ao dar os primeiros ares da sua graça, dedica este número especial de miaus a todos os futuros Pais da Pátria em geral, e às suas noivas em particular...” (Re-nhau-nhau, 16 dez. 1929, 1). Mas o seu programa só nos é apresentado no n.º 1, com a justificação de que: “Re-nhau-nhau, ao miar pela primeira vez, neste número dedicado à Briosa, deveria como é costume, fazer a sua apresentação oficial. Como agora porém, se não pode brincar com a tropa e muito menos com os oficiais, vai esta apresentação particular, ficando reservada a apresentação solene para o nosso segundo numero” (Re-nhau-nhau, 16 dez. 1929), que saíria dali a quatro dias, exactamente, no dia 20 de dezembro. Logo na segunda página, num artigo assinado por “Gonçalves de côr ausente”, com o título “In principio erat verbum”, Gonçalves Preto explica a configuração do jornal: “No principio era o verbo! E o verbo se fez carne, e a carne se fez homem, e o homem se fez jornalista. E no principio o jornalista contentava-se apenas com o verbo de encher... colunas. Mas hoje tudo mudou e só o verbo não basta; são precisas as gravuras. Daí a razão do nosso jornal aparecer ilustrado por ilustres ilustradores, que nos honram com as suas ilustrações” . Advertia, ainda, que não aceitariam a colaboração de jornalistas consagrados, “porque estamos na verdura da mocidade e não admitimos os maduros” (GONÇALVES DE CÔR AUSENTE, Re-nhau-nhau, 20 dez. 1929, 2). O cabeçalho do periódico é da autoria de Roberto Cunha, também conhecido pela alcunha de “Terrique”: compõe-se de um gato, de rabo hirto, acossado por uma mão coberta de luva, que o incita a rugir, significando, talvez, o ferir ou arranhar, mas com... luva. O rugido que sai da sua boca é o título do trimensário Re-nhau-nhau. O felino, apoiado nas duas patas traseiras e com as duas da frente levantadas, prepara-se para atacar a sua presa, assumindo a sua posição característica de ataque, encolhendo-se e preparando-se para saltar. Este cabeçalho que se mantém sem alteração até ao último dia da existência do jornal foi o seu ex-libris. De acordo com um dos colaboradores, Manuel Peres (Pinto da Silva), este cabeçalho foi gravado pela primeira vez no Porto, num famoso gravador dessa cidade. As dificuldades em colocar nos escaparates um jornal desta dimensão eram enormes. Estes jovens, entre os 17 e os 24 anos – Gonçalves Preto, João Miguel, Roberto Cunha, Manuel Peres, Gualberto Malho Rodrigues e José Cardoso –, meteram mãos à obra e levantaram um jornal que duraria 48 anos, tantos quantos o regime durante o qual nasceu e cresceu: “sem nunca se ter afastado da sua orientação inicial, tem vindo pela vida fora, com um sorriso ou com uma ironia, sacudir a monotonia sórdida do nosso burgo, como unica nota de vida numa cidade morta” (Re-nhau-nhau, 21 dez. 1935). O Re-nhau-nhau veio assim a constituir um ponto de encontro e de confluência de ideias, um espaço de diálogo e de debate onde outros jovens talentosos se juntaram àqueles, como os redatores Noé Pestana e João França, os caricaturistas Ivo Ferreira, Teixeira Cabral, Alírio Sequeira, Ramon Fernandes, João Rosa, Júlio e Paulo Sá Brás, os gravadores Mendonça, Agostinho, Semeão Gomes (Lico) e Bernardo, e ainda os ilustradores continentais Natalino, Quim e Abel Aragão Teixeira. Estes serão presenças assíduas até um determinado momento, mas a partir de certa altura cada um segue o rumo da sua vida e muitos abandonam o jornal. Esses são substituídos por outros jovens de grande talento e valor, que darão qualidade e vida ao jornal até 1977. A publicação deste jornal causou algum alvoroço na cidade, pois as pessoas não estavam habituadas às novas metodologias usadas por estes jovens irreverentes, que vinham revolucionar o jornalismo da praça, e teciam considerações pejorativas em torno do jornal e dos seus criadores, destinando-lhe um fim precoce. Enganaram-se estes profetas da desgraça, pois o jornal acabou sendo o mais popular entre o povo madeirense e continuou por muitos e bons anos. Abordando os assuntos de forma caricatural, com a sua pontinha de sátira, conseguiram, com o seu riso, fazer aquilo que competia aos jornais sérios: divulgar os problemas de maior interesse para a Madeira, comentar as coisas que não estavam feitas ou a decorrer como deveriam, sugerindo aquilo que, no seu entender, constituiria melhor solução para os problemas da terra. Em resumo: “Aplaudindo quando nos parece de justiça e ironizando sempre que é necessário, temos vivido durante estes […] anos”. Muitas das sugestões preconizadas por estes jovens foram aceites, o que prova as boas intenções de que estava imbuído o jornal: “Re-nhau-nhau tem sido, desde o seu principio, o único periódico que pugna, sinceramente, pelas causas de interesse retintamente madeirense” (Re-nhau-nhau, 21 dez. 1936). O tamanho do jornal era de 33,5 cm de comprimento por 25 cm de largura. Estas medidas permaneceram sem alteração até 1940, mas iriam alterar-se para outras um pouco maiores na déc. de 60. O preço, no início da sua publicação, era de 1$50, baixando para 1$00 (uma pataca, como apregoavam), a partir do n.º 73 de 4 de fevereiro de 1932, continuando assim durante bastante tempo. Seria um preço razoável para a época e para o tipo de jornal que era o Re-nhau-nhau, pois era o mesmo preço do café no Golden Gate. O periódico compunha-se de uma primeira página, ¾ da qual eram preenchidos com uma moldura ilustrada de algum acontecimento importante na Região, na fórmula já experimentada em outros jornais do género no continente, e uma contracapa caricaturada a toda a página. Como jornal humorístico, não tinha secções regulares, persistindo algumas mais tempo do que outras. Durante algum tempo, foram permanentes as seguintes secções: “Jazz Band”, onde se comentavam os faits divers madeirenses; “Zaz Paz Traz” e “Bchi-Bchi”, espaços de poesia; “Politiquices”, secção onde se analisavam, humoristicamente, os acontecimentos políticos da Região; “Fitas e Teatradas”, espaço dedicado à crítica cinematográfica, teatral e restante atividade artística madeirense. Outros espaços existiram no Re-nhau-nhau, que eram oferecidos a alguns jovens de valor, que aí publicavam os seus textos em prosa ou em verso. Este periódico sofreu ligeiras alterações de direção e administração a partir da morte de João Miguel e de Gonçalves Preto. Em 1959, com a morte de João Miguel, a administração passou para os seus herdeiros, e a partir de 1971, com o falecimento de Gonçalves Preto, a direção passou para Maria Mendonça, que por motivo de grave doença o abandonou, algum tempo depois, em favor de Gil Gomes. Um homem em particular foi responsável pelo êxito do Re-nhau-nhau. Referimo-nos a Pedro Alberto Gonçalves Preto, que nasceu no dia 7 de setembro de 1907, na freguesia da Sé, no Funchal, filho de Francisco M. de Freitas Gonçalves Preto, advogado, homem ligado à República na Madeira, e de Sofia Amélia Figueira Gonçalves Preto. Desempenhou o cargo de diretor até à sua morte, dedicando grande parte da sua vida ao jornal, por vezes mesmo em precárias condições de saúde; ao seu cuidado tinha a grande maioria das secções do trimensário: “Jazz Band”, “Fitas e Teatradas”, “Zaz Paz Traz”, “Politiquices”, etc. Segundo alguns colaboradores do Re-nhau-nhau, houve vezes em que Gonçalves Preto o escreveu sozinho, do princípio ao fim. Usava, nas suas brincadeiras jornalísticas, os pseudónimos Gonçalves de Côr Ausente, Preto e Branco (quando escrevia a meias com João Miguel) ou simplesmente Preto. Faleceu no Hospital dos Marmeleiros, no Funchal, no dia 15 de maio de 1971.   Emanuel Janes (atualizado a 17.12.2017) artigos relacionados: pedro, alberto gonçalves periódicos literários (sécs. XIX e XX) nau sem rumo atlântico, revista

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