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monteiro, josé leite

José Leite Monteiro nasceu no Porto a 27 de setembro de 1841. Foi advogado, professor, escritor e político. Fez o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em que ingressou em 1859, tendo concluído os estudos em 1864. Estabeleceu-se, em seguida, no Funchal, onde abriu um escritório de advocacia. Diz o Elucidário Madeirense que José Leire Monteiro nutria pela Madeira uma “carinhosa idolatria”, semelhante à que seria possível num filho natural da Ilha (SILVA e MENESES, II, 1998, 227); foi aí que desenvolveu a sua atividade profissional e intelectual. Foi professor no liceu do Funchal, depois de, em 1867, ter alcançado a nota mais elevada no concurso público para professor de Filosofia dos liceus. Passou a sua vida profissional na Ilha, a qual representaria um dos vértices das suas preocupações e dos seus interesses. Na vida pública, desempenhou funções em várias comissões de serviço, como governador civil substituto, como membro do Conselho do Distrito, como presidente da Junta Geral e como presidente da Câmara Municipal do Funchal. De salientar ainda que fez parte do Partido Fusionista e que entrou nas lutas políticas madeirenses de 1868, no âmbito das quais prestou serviços ao Partido Regenerador. José Leite Monteiro colaborou com vários jornais do Funchal, chegando a ser redator do jornal O Direito, órgão da política regeneradora. Também publicou vários livros, entre os quais se destacam O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal, de 1863, e Elementos de Direito Civil Portuguez, de 1895. Foi sócio efetivo da Associação de Direito Internacional. Em colaboração com o Cón. Alfredo César de Oliveira, coligiu diversos poemas dispersos de autores madeirenses, que acabariam por ser publicados num volume com o título Flores da Madeira. Morreu no Funchal, a 10 de março de 1920. Obras de José Leite Monteiro: O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal (1863); Elementos de Direito Civil Portuguez (1895).   Raquel Gonçalves (atualizado a 01.02.2018)

História da Educação Personalidades

nascimento, joão cabral do

João Cabral do Nascimento nasceu no Funchal (R. do Carmo), em março de 1897, no seio de uma família madeirense, cuja genealogia integra diversas filiações nacionais, como o próprio notou na sua Genealogia da Família Medina…, em cuja gens, de resto, Nascimento se inscrevia. Para além dos Medina e Vasconcelos, família com raiz judaica e com relevância política e cultural nas ilhas atlânticas, há também a referir os Caiados, família portuguesa instalada na Madeira desde o séc. XV (e nome que o autor recuperará para um dos seus pseudónimos – João de Cayado) e, entre outras, os Crawford, família escocesa residente na Ilha desde o séc. XVIII. Acresce ainda a este cosmopolitismo familiar a ligação de Cabral do Nascimento a um empresário francês residente na Madeira e casado com Matilde de Menezes Cabral, tia do autor Adolpho Constant Burnay, que foi padrinho de batismo de Cabral do Nascimento. Na verdade, trata-se de um escritor e agente cultural, cuja obra integra várias centenas de textos publicados em livro e na imprensa periódica, assim como um vasto conjunto de traduções, a criação e a coordenação de alguns dispositivos culturais (entre os quais se destaca o Arquivo Distrital do Funchal, diversos jornais e revistas) e ainda a colaboração em grupos e iniciativas que, na Madeira e na então metrópole, marcaram a vida cultural e política do séc. XX. Entre estes últimos, salientam-se o círculo integralista de António Sardinha, as tertúlias dos Artistas Independentes e diversos grupos de criadores e intelectuais ligados a periódicos como Orpheu, A Monarquia, Restauração, Cadernos de Poesia, Távola Redonda, Colóquio-Letras, etc. Não surpreende, portanto, que um dos traços mais marcantes na sua obra seja, justamente, um certo cosmopolitismo, que não deixa de conviver, sempre de forma (auto)crítica e tensional, com uma aguda atenção dada às realidades culturais, sociais e políticas de Portugal e da Madeira. Isto é, uma forma muito própria de nacionalismo e regionalismo que se distingue claramente do exclusivismo e do ufanismo que outros nacionalismos e regionalismos assumiram em Portugal e na Madeira no séc. XX. Parecendo paradoxal, este posicionamento ambivalente e tensional era já defendido por João Cabral (do Nascimento) em 1924, no artigo “Queiroz póstumo”, por si publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 26 de abril. Aqui, satirizando a “patriotice” dos que defendiam o confinamento da cultura portuguesa (e madeirense) aos limites das suas fronteiras geopolíticas e culturais, Nascimento defendia, com Eça de Queiroz, que “um povo só vive porque pensa” e “um espírito superior, afeito às coisas elevadas e espirituais, esse aprende a ser nacional se acaso atravessa o estrangeiro ou aí instala a sua residência” (CABRAL, DN, 26 abr. 1924, 1). É certo que, no primeiro quartel do séc. XX, Nascimento assumiu publicamente a sua adesão ao nacionalismo monárquico, quer junto do integralismo lusitano de António Sardinha, ao longo do ano de 1917, quer, depois, junto dos dissidentes nacionalistas integrais de Coimbra, entre os quais viria a ser uma figura-chave nos anos de 1921-22, ao serviço do semanário Restauração. É igualmente verdadeiro que muitos daqueles com quem privou foram figuras próximas de Salazar e do Estado Novo (Francisco Franco, António Ferro, João de Castro Osório, Luís Vieira de Castro, Amândio César, entre outros), sendo ainda notória, na versão de 1933 do seu Além-Mar, alguma aproximação de Nascimento a valores legitimados pelo regime recentemente instituído, algo que, de resto, aconteceu com muitos monárquicos, nesse mesmo período. Entre esses valores, destaque-se: a estética adotada no grafismo geométrico da capa do opúsculo; a opção pelo registo épico nacionalista; ou, na sua fábula, a subliminar manifestação de uma esperança num líder capaz de mobilizar a grei na busca de um caminho para a ordem. Esta nova versão revista de Além-Mar, poemeto épico publicado pela primeira vez em 1917, apresenta variações significativas na sua fábula, distanciando-se, por isso, do registo desencantado e antiépico da 1.ª edição, publicada nos anos da Grande Guerra. Tudo isto não invalida, porém, que se considere Cabral do Nascimento ora como um nacionalista cosmopolita, avesso a conceções monológicas e puras de nação, ora como um cosmopolita nacionalista, cuja obra evidencia um permanente trânsito e diálogo entre o que (lhe) era familiar e (lhe) era estranho, entre distintas culturas e línguas, entre diversos textos, tempos, posicionamentos ideológicos e estéticos, numa itinerância particularmente atenta a questões de identidade e de memória. O passado, a memória e a dor causada pela memória do que nesse mesmo passado foi experienciado ou foi desenhado como utopia serão, aliás, tópicos fundamentais na sua poesia, evidenciando-se de igual forma no trabalho que desenvolveu como arquivista, investigador sobre a história da Madeira, genealogista ou até antologiador de textos de períodos históricos anteriores. Na verdade, a autonomia crítica que sempre marcará a sua atuação como agente cultural e político leva-o a distanciar-se rapidamente do integralismo lusitano e do neorromantismo lusitanista, ao publicar no Diário da Madeira, logo a 25 de dezembro de 1917, uma carta em que se desvincula do grupo de Sardinha e das suas “doutrinas artísticas” (“Integralismo lusitano”, Diário da Madeira, 25 dez. 1917, 1). O mesmo acontecerá relativamente ao projeto político do Estado Novo, ao demarcar-se deste, e em particular do obscurantismo do seu lema, “orgulhosamente sós”, logo a partir da déc. de 1940. Já a residir em Lisboa e paralelamente à atividade docente que, iniciada em 1922 na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, será retomada nas escolas Veiga Beirão e Ferreira Borges (Lisboa, entre 1937 e 1958, ano da sua aposentação), Cabral do Nascimento reorienta a sua atividade cultural para a tradução de autores estrangeiros, os quais, assim, são integrados no sistema cultural português. Algumas dessas traduções viriam mesmo a ser objeto de censura pelo lápis azul. A evidenciar também esse distanciamento de Nascimento relativamente ao projeto de nação do Estado Novo, note-se que, nesse mesmo período, o autor insular não se inibe de publicar poemas como “Na vilazinha pobre”, onde, com o sarcasmo corrosivo que muitas vezes se encontra nos seus textos em prosa, denuncia os efeitos nefastos que entrevia nessa forma exclusivista de pensar as sociedades, as culturas e os sujeitos, ridicularizando a imagem de um “Portugal-vilazinha-pobre” que Salazar se orgulhava de estar a implementar no país. Enquanto autor literário (poeta, cronista e ficcionista), rejeitará sempre o registo panfletário, evitando, de igual forma, processos de referencialidade denotativa, heranças, certamente, do convívio inicial com a estética e a poética simbolistas. Mas nem por isso a obra de Cabral de Nascimento (literária e não só) pode ser lida como um conjunto de fenómenos culturais totalmente desvinculados da polis e da política. Move-o, sobretudo, a busca de um saber em crescendo, a que, porém, não são alheios os valores éticos e deontológicos do rigor autocrítico ou da exigência epistemológica, criativa e cívica que sempre manifestou. Lembre-se, a título de exemplo: o perfecionismo e a depuração linguística da sua poesia; a continuada revisão dos livros que foi publicando, incluindo-se também aqui as suas traduções; e até o seu afastamento da Madeira e dos cargos que aqui ocupava, quando, nos anos 30, na qualidade de cidadão insular, mas também enquanto diretor do Arquivo Distrital do Funchal e sócio eleito quer da Associação de Arqueólogos Portugueses, quer do Instituto Português de Arqueologia Histórica e Etnografia, se opõe à política de turismo em implementação na Ilha e às lutas locais pelo poder, no quadro das quais, em seu entender, não estavam a ser asseguradas a preservação e a dignificação do património histórico e cultural do arquipélago. A este respeito, não se ignore também que, em outubro de 1924, Nascimento assumira, por algum tempo, o cargo de delegado do Governo no Funchal, quando o presidente do Ministério era o madeirense Alfredo Rodrigues Gaspar. Nessa ocasião, participou no debate público sobre o modelo de política de turismo para a Madeira, defendendo, entre outras propostas, a criação de um museu regional, com a salvaguarda de que este não fosse destinado ao turista, como então se defendia na Ilha. Num artigo de opinião publicado a 28 de novembro de 1925, no Diário de Notícias do Funchal, a que deu o título “Acêrca do Museu”, João Cabral (do Nascimento) contra-argumentará esse posicionamento dominante, defendendo que o museu, com uma “biblioteca anexa” e dando visibilidade às “manifestações artísticas regionais (ou cujos documentos se consigam obter)”, deveria funcionar como dispositivo cultural, pedagógico e científico, destinado à “mocidade das escolas”, àqueles “que se entregam a monografias regionais” e, de um modo geral, ao “povo” que, assim, “adquiri[ria] certos conhecimentos […] que tanto lhe escasseiam” (CABRAL, DN, 28 nov. 1925, 1). Ainda a este respeito, recorde-se que no início de 1937, ano em que, desencantado com as dinâmicas políticas, sociais e culturais em curso na Ilha, acabará por abandonar o Funchal, passando a residir em Lisboa, Nascimento integrava o recém-formado Conselho de Turismo da Madeira, órgão local onde procurou, sem sucesso, arguir o seu posicionamento sobre a política de turismo para a Madeira, contra as perspetivas mercantilistas aí dominantes. Cabral do Nascimento constrói, assim, uma obra (literária e não só), cujos posicionamentos surgem em grande parte sustentados por uma experimentação do que era próprio do “outro”, mas que, de alguma forma, ao ser conhecido/experimentado, passava também (mesmo que em conflito ou oposição), a integrar o que era próprio de si e da sua obra: a língua, o texto, a cultura, a conceção estético-artística, os valores ideológico-políticos desse(s) “outro(s)”. Assim, e apesar de toda a autonomia que, após as décs. de 1920-1930, o levaria a evitar filiações em grupos ou até em associações políticas, culturais e profissionais (incluindo-se aqui a Sociedade Portuguesa de Autores e a Associação Portuguesa de Escritores, cujos convites para adesão declinou, respetivamente em 1965 e em 1973), Cabral do Nascimento assume-se como um autor não-insulado e em recorrente visitação de uma pluralidade de sistemas que quer conhecer por dentro e que ultrapassam em muito as fronteiras dos sistemas culturais madeirense e português. Experimentando-os até onde lhe permitia a sua alteridade, procurava depois rever ou confirmar o seu próprio lugar identitário, estético, epistemológico e político. Em simultâneo, afirmava-se como um sujeito que, apesar dessa contínua aprendizagem, assumia com determinação, mas sem protagonismos exibicionistas, o dever de e o legítimo direito a inscrever a sua voz (pessoal, literária e ideológica) e o seu corpo (físico, cultural e político) no mundo. Disso nos dá conta, e.g., no poema “Memória”, publicado significativamente nos números 32 e 33 de Panorama. Revista Portuguesa de Arte e Turismo (1947), onde encontramos uma voz poética periférica e ignorada pelos outros, ou melhor, pelo outro-eu, dado que esse outro é, na verdade, Lisboa. Mas é um sujeito que, mesmo perante essa marginalização, quer deixar as suas “passadas” e a sua “fala” “nova” inscritas nesse mundo que as não vê/lê/ouve ou que as insiste em rasurar da memória. A obra de Cabral do Nascimento dá conta de um complexo processo discursivo que fica marcado pelas dinâmicas da hipertextualidade e do contraponto, este último aqui entendido no sentido proposto por Edward Said). Apesar de perfeitamente aceites nos sistemas culturais e literários dos inícios do séc. XXI, na déc. de 1910, estas dinâmicas discursivas seriam inusitadas na Madeira e até a nível nacional, como demonstra a história da receção de autores coevos como Fernando Pessoa ou Almada Negreiros, efetivos interlocutores de Cabral do Nascimento, no debate sobre o modernismo e as vanguardas que, nesses mesmos anos, se desenvolvia em Portugal. Ler a obra poliédrica do autor madeirense exige, pois, um paralelo exercício de itinerância discursiva: ora pelos discursos desses outros autores evocados e transferidos criticamente para a obra de Nascimento, ora pelos múltiplos trabalhos do próprio autor madeirense. Estes últimos, justamente por se apresentarem como resultantes de um continuado exercício de revisão e reescrita, surgem como ensaios provisórios ou fragmentos de uma obra compósita e em devir, cuja construção do(s) sentido(s) ganha (um pouco à semelhança do drama em gente de Pessoa) com o cruzamento dessas múltiplas textualidades autónomas, mas afinal implicadas umas nas outras, e que, nessa exata medida, apelam a uma constante (re)leitura crítica e em rede. Trata-se, na verdade, de uma dinâmica de composição e de leitura que Nascimento experimentou, desde o início da sua vida literária, com a adoção do género folhetim, embora essa sua prática, por ser desconhecida até muito depois, não tenha sido analisada com a devida relevância por críticos e académicos atentos à obra e à poética do intelectual madeirense. Referimo-nos em particular a Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos, folhetim publicado no Diário da Madeira, na segunda metade de 1916, em coautoria com Ernesto Gonçalves, Luís Vieira de Castro, Alfredo de Freitas Branco e Álvaro Manso de Sousa; e, já em 1921-1922, aos folhetins publicados no jornal Restauração e atribuídos a três figuras autorais criadas por Nascimento: João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry. Convocando as palavras de Edward Said, quando atribui a alguns intelectuais o perfil da figura do exilado, um “perturbador do status quo”, ocupado em “derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação” (SAID, 2000, 13-14), podemos afirmar que também a obra de Nascimento, e pesem embora as suas simpatias conservadoras no domínio da política, nos revela um intelectual exílico, que quase sempre foi um tradutor: um mediador empenhado em viajar entre espaços, tempos, culturas e línguas, ora trazendo esses muitos outros até ao hic et nunc do texto e do leitor, ora, inversamente, levando estes até esses outros. O objetivo da globalidade heterogénea da sua obra foi, sobretudo, servir de ponte ou criar textos e dispositivos culturais capazes de suplantar os abismos temporais, espaciais, linguísticos, ideológicos e culturais que separam sujeitos e as suas comunidades. Não apenas com a missão de contribuir para o que considerava ser o bem comum, mas também como dinâmica fundamental de questionação autorreflexiva e de permanente refazer da sua própria identidade, quer como sujeito político, quer como autor literário e agente cultural. Poliédrica, também nas opções genológicas praticadas (poesia lírica; narrativa em verso e prosa; folhetim; ensaio; crónica; artigo jornalístico e artigo historiográfico; crítica literária; descrição genealógica, etc.), essa heterogeneidade e transitoriedade exílicas, não raras vezes geradoras de tensões e até de aparentes paradoxos, reencontram-se na sua assinatura autoral, ou melhor, nas suas assinaturas autorais, dado que foram vários os nomes com que assinou os seus trabalhos. O seu mais antigo texto conhecido até aos começos do séc. XXI surge assinado com o seu nome civil e remonta a 1913, tendo saído em Gente Nova, uma edição comemorativa do primeiro aniversário da Caixa Escolar do Lyceu do Funchal, escola frequentada por Nascimento a partir de 1911, onde participou em várias iniciativas culturais e onde realizaria os estudos secundários, antes de ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em outubro de 1915. Com apenas 15 anos, o jovem autor publicava, em 1913, a narrativa breve “Um engano”, onde o estranho e o fantástico fazem notar o diálogo que Nascimento sempre manterá com Edgar Allan Poe e com a cultura anglo-saxónica. A este respeito, saliente-se que a última edição (ne varietur) do seu Cancioneiro, datada de 1976, encerra, justamente, com uma “recriação em português” do poema “O corvo” de Poe, sublinhando, assim, o traço dialógico da sua poética, mas também a valorização da atividade tradutória e das culturas anglófonas na globalidade da sua obra A partir de 1913, o nome de Cabral do Nascimento passa a constar com crescente regularidade e destaque nos jornais funchalenses: Alma Nova; Heraldo da Madeira; e sobretudo Diário da Madeira, onde, até à déc. de 1920, será um assíduo colaborador, mesmo nos anos em que se encontrava a estudar em Lisboa e, depois de 1919, em Coimbra, em cuja universidade finalizará a licenciatura em Direito em 1922. Publicará também com regularidade no jornal A Monarquia, em Lisboa, no ano de 1917. E já na década seguinte, destacam-se as suas colaborações recorrentes no semanário Restauração de Coimbra (1921-1922) e no Diário de Notícias do Funchal (1923-1934). Porém, se a maioria desses textos dispersos e os vários livros que publicou ao longo da vida surgem assinados com o seu nome civil, embora, por vezes, com ligeiras variações (João Cabral, Joam Cabral do Nascimento, João Cabral do Nascimento, Cabral do Nascimento, J. C., J. C. N), foram também diversas as situações em que recorreu a pseudónimos, tais como: João de Caiado ou João de Cayado, nom de plume com que subscreveu, na déc. de 1910, vários artigos no Diário da Madeira; e Mário Gonçalves, pseudónimo com que assinou algumas traduções incómodas para o Estado Novo ou que não caberiam dentro da lista das suas afinidades eletivas. Esta variação na onomástica autoral da sua obra não se esgota aqui, chegando mesmo, nas décs. de 1910 e 1920, à criação dos semi-heterónimos Ismael de Bô, João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry, porquanto, nestes últimos casos, os textos subscritos por essas assinaturas apresentam de diferenciador relativamente aos textos assinados com o nome civil do escritor. Se o ideologema e os valores legíveis nessas textualidades se mantêm idênticos em uns e em outros, na escrita assinada pelos três semi-heterónimos ganham particular destaque registos e processos de construção discursiva que quase estão ausentes da poesia assinada com o nome civil do autor, embora aflorando pontualmente em algumas das suas crónicas. Entre estes traços distintos, destacamos o recurso à ironia, ao sarcasmo e à paródia, por vezes geradores de um discurso que toca o non-sens, distanciando-se, assim, da limpidez e contensão discursivas que se registam na sua poesia. E sublinhamos de igual forma, nos folhetins desses semi-heterónimos, o registo lúdico e provocatório, assim como uma técnica composicional que não raras vezes se aproxima de um certo experimentalismo, nomeadamente pela adoção do corte e colagem ou da citação recontextualizada. Retrato de João Cabral do Nascimento por Abel Manta Por outro lado, embora a sua obra tenha passado a ocupar um lugar discreto nos vários sistemas culturais lusófonos (incluindo-se aqui o nacional português, mas também o madeirense), Cabral do Nascimento foi um escritor e um agente cultural e político com mérito reconhecido ao longo de toda a sua vida, quer por figuras relevantes no panorama cultural e académico nacional e internacional, quer por algumas das principais instituições ligadas à cultura portuguesa do séc. XX. A consulta da correspondência e notas pessoais conservadas no seu espólio, à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (espólio N28), surpreende não apenas pelo número e prestígio dos seus interlocutores, mas acima de tudo pela heterogeneidade política, artística e geracional dessas figuras, incluindo-se aqui, entre muitos outros, nomes como: Abel Manta, Afonso Lopes Vieira, António Ferro, António Sardinha, António Sérgio, Carlos Queiroz, David Mourão-Ferreira, Fernando Lopes-Graça, Fernando Pessoa, Haroldo Campos, Jacinto do Prado Coelho, João Brito Câmara, João Ameal, João Gaspar Simões, Joaquim Montezuma de Carvalho, Jean Michel Massa, Jorge de Sena, Júlio Dantas, Leroy James Benoit, Luís Amaro, Luiz Peter Clode, Maria Archer, Philéas Lebesgue, Ruy Cinatti, Tomás Kim, Vitorino Nemésio. Confirmou-se, assim, o prognóstico que, logo em 1914, era publicado no Diário da Madeira, após a divulgação dos seus primeiros textos no Funchal e a sua intervenção nas Conferências Académicas Quinzenais do Lyceu: o tímido e discreto João Cabral do Nascimento (traço de personalidade que manterá ao longo da sua vida) era então apreciado como um jovem dotado de um “precoce e prometedor desenvolvimento intelectual” (“Lyceu do Funchal. Conferências académicas”, Diário da Madeira, 18 dez. 1914, 1). A matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa leva-o, no ano seguinte, até à capital, onde participou ativamente em vários círculos artísticos e culturais, muitas vezes acompanhado por dois amigos também do Funchal: Alfredo de Freitas Branco, escritor, monárquico e futuro visconde do Porto da Cruz, que, nos anos da Segunda Guerra Mundial, viria a ser um germanófilo e apoiante do regime nazi; e Luiz Vieira de Castro, também escritor, monárquico e filho do banqueiro madeirense Henrique Vieira de Castro, que em diversos momentos desses anos assumiria o papel de mecenas dos jovens criadores e intelectuais insulares. Em 1916, Nascimento publicava em Lisboa o seu primeiro livro, intitulado As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, o qual surpreenderá os escaparates e os críticos literários de então, sobretudo pela qualidade poética e por se tratar do primeiro livro de um jovem e desconhecido poeta madeirense. Os textos deste breve opúsculo de poemas, onde se torna evidente o diálogo com o simbolismo finissecular, eram significativamente dedicados a alguns dos seus companheiros de letras, insulares e continentais (Ernesto Gonçalves, Américo Durão, Alfredo Guisado, Elmano Vieira, Álvaro Manso de Sousa ou Luís Vieira de Castro), mas também a figuras autorais ficcionais, algumas das quais criadas pelo próprio Nascimento ou por amigos de carne e osso a quem também dedicava o livro: Ana Clara e Ismael de Bó, criados por Nascimento; Manoel de Lins, por Ernesto Gonçalves; e Pedro de Meneses, por Alfredo Guisado. As Três Princesas… viria a receber, nesse mesmo ano, uma crítica muito positiva publicada por Fernando Pessoa na revista Exílio, onde o criador do drama em gente sublinha uma suposta aproximação de Nascimento às vanguardas modernistas e em particular ao sensacionismo. O autor madeirense rejeitará sempre essa afiliação sensacionista, declarando-o abertamente num artigo que, em 1925, assinala a efeméride da publicação da revista Orpheu, publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 5 de abril, e intitulado “Dez anos depois”. Embora declarando a sua fidelidade aos “clássicos”, à “gramática” e à “decência”, Nascimento salienta, a relevância cultural e artística do projeto Orpheu, assim como a influência que essas primeiras experiências vanguardistas, “prudentemente expungi[das de] certas inconveniências da sua estética”, tiveram “não só na literatura, mas na música e nas artes plásticas, e em tudo o mais […] [d]a geração nova”, acrescentando ainda, em jeito de confissão, o seu encontro de passagem com o sensacionismo: “O movimento sensacionista colhera-me de surpresa, no acordar da lira – ó romântica imagem! – e enredára-me nas suas teias espessas” (CABRAL, DN, 5 abr. 1925, 1). Se dúvidas restassem acerca desta confissão estética e poética de Cabral do Nascimento relativamente à sua aproximação às vanguardas estéticas então em debate na capital, elas eclipsam-se quando notamos a dedicatória de alguns dos poemas de As Três Princesas… a Alfredo Guisado e Pedro de Meneses; quando percebemos toda a estrutura fragmentária e dialogante da globalidade da sua obra; quando verificamos que esse diálogo também inclui figuras autorais dotadas de alguma autonomia e que foram criadas pelo próprio Nascimento; e, sobretudo, quando lemos o projeto narrativo Novela Romântica…, publicado em folhetim, na segunda metade de 1916, no Diário da Madeira. Polifónica e irreverente, desde logo pela autoria coletiva atribuída a cinco artistas vagabundos e por adotar um registo narrativo por vezes non-sens e provocatoriamente sarcástico, essa narrativa fragmentária e autobiográfica dá conta das aventuras ficcionais de seis diletantes cosmopolitas em deriva pelo mundo: os cinco artistas vagabundos e Colecta de Nylves, uma mulher moderna transgressiva, que assume o papel de intelectual-líder do grupo. Mais do que uma simples narrativa ou um ato criativo meramente lúdico, esta novela constitui um irónico exercício autorreflexivo ora sobre a modernidade cosmopolita coeva, assombrada por inúmeras crises, de entre as quais a Primeira Guerra Mundial seria a mais evidente; ora sobre o papel das artes (os protagonistas da narrativa surgem associados às várias artes – a música, a dança, as artes plásticas, a poesia e a ficção), das vanguardas e dos neorromantismos no mundo seu contemporâneo. Oscilando entre, por um lado, o cosmopolitismo e a irreverência vanguardista que, na fábula, os artistas vagabundos efetivamente personificam e, por outro lado, a distância crítica que os narradores-autores constroem com o seu discurso (auto)irónico e sarcástico, acerca da vida e dos valores modernos, Novela Romântica… constitui-se, uma vez mais, como experimentação paródica de múltiplas tendências estéticas e poéticas, mas sobretudo como exercício de reflexão crítica promovida no Funchal, sobre o debate artístico e cultural que, nesse mesmo período, se desenrolava em Lisboa e Coimbra, assim como em outras cidades do país que, à semelhança do Funchal, muitas vezes são rasuradas da cartografia e da história do primeiro modernismo Português. A participação de Cabral do Nascimento neste debate estender-se-á de forma evidente até meados da déc. de 1920. Entre 18 e 27 de agosto de 1918, anuncia em vários textos publicados no Diário da Madeira o projeto já em curso de criação de uma Antologia de Poetas da Ilha da Madeira, projeto que, no entanto, nunca viria a ser editado. Nascimento propunha-se reunir um conjunto alargado de autores e textos do passado e do presente, por forma a inaugurar uma reflexão séria sobre a existência ou a necessidade de criação de uma literatura madeirense, conceito que aqui deve ser entendido enquanto sistema literário insular autónomo do nacional, algo muito próximo do que, nas décs. de 1920 e 1930, também acontecerá nos Açores e em Cabo Verde. Nesse mesmo jornal, saíram vários fragmentos de um estudo introdutório a constar nessa antologia, sendo que num desses fragmentos, transformado em artigo-ensaio sobre a “novíssima geração” de autores madeirenses, Nascimento aborda a questão da relação dos novíssimos insulares com as vanguardas. Não surpreende, portanto, que ainda em 1918 este intelectual integre a tertúlia dos Artistas Independentes (1918-1933), promovida no café funchalense Golden Gate, e em que também participaram Alfredo Miguéis, Emanuel Ribeiro, Ernesto Gonçalves, Francisco Franco, João Abel Manta e Henrique Franco. Em 1919, já a estudar na Universidade de Coimbra, para onde transferiu a sua matrícula depois da Primeira Guerra Mundial, funda, com Luiz Vieira de Castro, Alfredo Brochado e Américo Cortez Pinto, a eclética e efémera revista Ícaro, dirigida por Ernesto Gonçalves. Se o título aponta para o regresso a um certo classicismo, ao culto da beleza e da harmonia das formas, conforme é também sublinhado no editorial de abertura do n.º 1 da revista, a escolha da figura de Ícaro como patrono da publicação revela algo que, sendo profundamente moderno, é claramente verbalizado nesse mesmo texto de apresentação: o “frémito aventureiro – aspirando à Beleza, ao Sonho e à Vida”; a “ânsia imperfeita e humana” de absoluto e de “revelar, de anunciar novas formas de Sonho e de Beleza” (“Ícaro”, Ícaro, n.º 1, jul. 2019, 1). Em 1921, preside, em Lisboa, ao Comício dos Novos, representando a academia de Coimbra. Esta iniciativa, promovida por vários artistas ligados a Orpheu, a Exílio e a Portugal Futurista (e.g., António Ferro e Almada Negreiros), assim como às belas artes, teve lugar no cinema Chiado Terrace e procurou não só analisar criticamente os sistemas culturais e artísticos nacionais, como também discutir a necessidade de modernização da Sociedade Nacional de Belas Artes. A sua atividade cultural e política implicada em publicações periódicas intensifica-se nesse ano e no seguinte. Em 1921 colabora no único número da revista Nova Phenix Renascida, dirigida por Vieira de Castro, que, na linha de Ícaro e com uma orientação declaradamente europeísta, mas sem a pretensão de querer ser um “órgão de nenhuma côterie, nem tampouco […] [condicionado por] qualquer programa determinado”, assume o propósito de contribuir, com a sua “critica impiedosa”, para a dinamização e modernização do sistema literário nacional que, em palavras de Manoel de Menezes no texto de abertura da revista e intitulado “Portugal Literário”, necessitava regressar aos autores de avant-guerre, por se encontrar urgentemente necessitado de renascimento, fosse pelo vício do compadrio bajulador e falta de exigência da crítica, de autores, de pseudocríticos e das editoras; fosse pelo abandono da literatura por parte de autores conceituados e com valor, entretanto ocupados com a vida política; fosse ainda pela superficialidade e exibicionismo excessivo que encontravam na nova geração do Chiado (MENEZES, 1921, 1). Em fevereiro de 1922, ano em que termina o curso de Direito e regressa ao Funchal, toma ainda a função de subdiretor do semanário Restauração que ajudara a fundar em 1921, vindo a assumir, em maio de 1922, o cargo de secretário do Nacionalismo Integral, grupo monárquico defensor de um entendimento entre as diversas fações monárquicas, apoiado pelo madeirense Aires de Ornelas, e cujo órgão de divulgação foi esse mesmo jornal. O falhanço das negociações entre monárquicos estará implicado no regresso de Nascimento à Ilha e no seu progressivo afastamento da atividade político-partidária. No Funchal, exerce advocacia por um curto período, seguindo, logo depois, outros rumos profissionais que pouco terão a ver com a sua área de formação académica. Exerce a docência na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, mas logo reorienta a sua atividade profissional para a investigação e divulgação histórica. Na segunda metade da déc. de 1920, dá os primeiros passos para a constituição do que virá a ser o Arquivo Distrital do Funchal (posteriormente, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira (ABM)), instituição que apenas viria a ser constituída de jure em 1931, ano em que assume oficialmente o cargo de diretor, o qual seria por ele ocupado até 1954, embora de forma pouco convencional e por impasses administrativos. Leitor atento do que no mundo acontecia, colabora regularmente no Diário de Notícias, ao longo dos anos 20, onde vai comentando criticamente questões prementes na sociedade madeirense, em Portugal e a nível internacional: o bolcheviquismo; o fascismo; os totalitarismos; o antissemitismo crescente na Europa; a crise de Marrocos; as comemorações da suposta descoberta da Madeira por Zarco; o regionalismo insular; o descuido com que se tratava o património material e imaterial da Ilha; algumas decisões político-administrativas tomadas na Madeira; a morte ou o esquecimento de figuras relevantes da cultura portuguesa e madeirense, como Camilo Pessanha, Eça de Queiroz, Medina e Vasconcellos, António Sardinha, e muitos outros. Em junho de 1927 participa na excursão académica às ilhas Canárias, na qualidade de diretor pedagógico, em parceria com Manuel de Matos. Esta viagem ficaria registada em filme por Manuel Luiz Vieira, embora se desconheça o paradeiro da película. Na sequência dos movimentos autonomistas experienciados nas décs. de 1910 e 1920, nas ilhas da Macaronésia, esta viagem tinha como objetivo aproximar as culturas insulares atlânticas e aprofundar o conhecimento mútuo. Previa-se igualmente uma viagem aos Açores. Em 1928, João Cabral do Nascimento casa-se com Maria Franco e em 1929 nasce o seu único filho, João Crawford de Meneses Cabral, de quem virá a ter dois netos: o ator e encenador Filipe Crawford, especialista conceituado na área do teatro de máscara; e a artista plástica Maria Teresa Crawford Cabral. Ambos reconhecem o papel que Maria Franco e Cabral do Nascimento tiveram na sua formação estética e cultural. Maria Franco, também ela pintora e tradutora (cuja obra merece ser revisitada), era sobrinha de Francisco e Henrique Franco. O casamento entre ela e Cabral do Nascimento estreitava, assim, os laços de camaradagem cultural e amizade que, desde as décadas anteriores, existiam entre o escritor e os dois artistas plásticos. A este respeito, é de notar que em 1926 se publicara a 1.ª edição de Descaminho, onde a poesia de Nascimento se cruza com as xilogravuras de Francisco Franco, num processo dialogante inovador e que ultrapassa em muito o da tradicional ilustração visual de textos escrito. Em 1930, regressa temporariamente a Lisboa, desta vez com Maria Franco, e com um subsídio da Junta de Educação Nacional, encarregado da tarefa de realizar investigação em bibliotecas e arquivos sobre a história da Madeira. Na sequência desta sua atividade, publica vários estudos e recolhas documentais sobra a história da Madeira, assume oficialmente o cargo de diretor do Arquivo Distrital do Funchal (ADF), inicia a publicação do boletim desta instituição, intitulado Arquivo Histórico da Madeira (financiado pela Câmara Municipal do Funchal, mas cuja publicação seria muitas vezes suportada por Nascimento), dinamiza a incorporação, no ADF, de múltipla documentação relevante para o conhecimento da história do arquipélago que, até à data, se encontrava à guarda de diversas instituições ou até de particulares. Este processo gerará alguma conflituosidade institucional e social, nomeadamente com alguns responsáveis por instituições da Igreja Católica, que não aceitaram essa transferência documental. É particularmente acesa a polémica que, em 1934, Nascimento trava com o Cón. Homem de Gouveia, nas páginas de vários periódicos locais. O motivo da discussão não era explicitamente o da transferência de documentação da Igreja para um arquivo laico, mas compreende-se que esse assunto estaria no fundo da polémica. Já a residir definitivamente em Lisboa, é convidado a lecionar um curso de férias na Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1941, acompanha de perto a criação do projeto Cadernos de Poesia, cujo lema, “A poesia é só uma”, foi uma sugestão de Cabral do Nascimento, de acordo com testemunhos de Jorge de Sena, um dos mentores do projeto, e seu amigo pessoal. Em 1942, inicia a sua atividade tradutória, não por acaso com a publicação quer da História da Literatura Inglesa de Benjamin Ifor Evans, editada pelo Instituto Britânico, quer do romance O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Mr Hyde de Robert L. Stevenson. De extrema relevância para o sistema cultural português da segunda metade do séc. XX, seja pelo número de textos traduzidos, seja pela variedade e qualidade dos autores que, por essa via, entraram em Portugal, a obra tradutória de Nascimento ocupou-se, em grande parte, da transferência para português de textos anglófonos. Em 1943, recebe o Prémio Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional ao seu mais recente livre de poesia, Cancioneiro, editado nesse mesmo ano. Isso não invalida, porém, que em 1955, ano em que publica o seu último livro de poemas inéditos (Fábulas), a sua tradução de Le Lettere da Capri de Mário Soldati, assinada por Mário Gonçalves e a italiana Inácia Dias Fiorillo, tenha sido censurada pelo “lápis azul”. Assumindo, em português, o provocatório título Carne Viva, a tradução do romance de Soldati seria considerada pelos censores uma obra potencialmente pornográfica. Na déc. de 1960, visita por duas vezes Angola, província onde residiam o filho e os netos: Luanda, em 1961; Sá da Bandeira (mais tarde, Lubango), em 1962. Em carta a João Gaspar Simões, datada de 13 de outubro de 1962, assume o desejo de permanecer em Angola, não fosse a insegurança decorrente da Guerra Colonial, conflito que eclodira no ano anterior. São vários os poemas que, na secção final da última edição de Cancioneiro (1976), fazem referência a Angola ou até, de forma subliminar, à ruína ou ilusão do sonho imperial português. Em 1975, assiste à morte de Maria Franco, esposa e companheira de um longo percurso vida. Debilitado com essa perda e com alguns problemas de saúde agravados com o avançar da idade, morre a 2 de março de 1978, em Lisboa, no Campo Grande, a poucos dias de completar os 81 anos. O seu corpo foi sepultado no Cemitério do Alto de São João, na capital portuguesa, mas parte da sua obra permaneceu ativa, ainda que de forma discreta, seja nas muitas traduções por si realizadas e que continuaram a ser reeditadas; seja no ABM, cuja génese se fica a dever a Cabral do Nascimento e ao seu companheiro de juventude, Álvaro Manso de Sousa. A cidade do Funchal concedeu o nome de João Cabral do Nascimento a uma pequena rua situada no periférico bairro das Virtudes. Uma rua discreta, cortada por outras pequenas ruas e que termina num beco sem saída. A placa identificadora dessa rua apresenta-o como advogado e poeta. Contudo, a sua obra foi, como por aqui se torna evidente, bem mais vasta e complexa do que aí se indica. Obras de João Cabral do Nascimento: As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas (1916); Além-Mar. Poemeto Épico que Fez Joam Cabral do Nascimento para Narrar a História Tormentosa das Caravelas que Aportaram à Ilha da Senhor Infante na Madrugada do século XV (1917); Hora de Noa ou o Livro dos Trinta e Três Sonetos (1917); Alguns Sonetos (1924); “Queiroz póstumo” (1924); “Dez anos depois” (1925); “Acêrca do Museu” (1925); Descaminho (1926); Apontamentos de História Insular (1927); Arrabalde (1928); Documentos para a História das Capitanias da Madeira (1930); Genealogia da Família Medina da Ilha da Madeira, com Algumas Notas Inéditas acerca do Poeta Francisco de Paula Medina e Vasconcelos (1930); Litoral (1932); Poesias Escolhidas (1936); 33 Poesias (1941); Cancioneiro (1943); Confidência (1945); Líricas Portuguesas (1945); Lugares Selectos de Autores Portugueses que Escreveram sobre o Arquipélago da Madeira (1949); Poemas Narrativos Portugueses (1949); Digressão (1953); Fábulas (1955); A Madeira (1958); Colectânea de Versos Portugueses do Século XII ao Século XX (1964).   Ana Salgueiro (atualizado a 03.03.2018)

Literatura

meneses, sérvulo drummond de

Advogado, político e jornalista madeirense, com grande influência local durante a época liberal. Nasceu em 1802 no Funchal, tendo perecido no mesmo local em 1862. Palavras-chave: Política; Jornalismo.   Sérvulo Drummond de Meneses nasceu no Funchal, em 23 de dezembro de 1802, sendo filho de João Nepomuceno Correia Drummond e de Maria Isidora de Meneses e Brito. Casou-se com Maria Carlota Arnaut, com quem teve cinco filhos. Concluiu o curso liceal no Funchal e depois iniciou-se como praticante no escritório do tio, o escrivão Inácio Correia Drummond, sendo, mais tarde, nomeado escrivão judicial. Antes de 1820, foi cadete do Corpo de Artilharia Auxiliar, mas, após a Constituição de 1822, tornou-se advogado provisionado, tendo efetuado o concurso de provas junto do Tribunal Superior de Justiça, apesar de não ser formado em Direito, acabando por se destacar como um dos mais distintos advogados do seu tempo e por deixar algumas peças de carácter administrativo e civil, umas inéditas e outras avulsas. Militou no partido cartista, ou liberal, e, mais tarde, no partido cabralista, militância que terá facilitado o seu acesso à carreira política. Foi presidente da Câmara Municipal do Funchal e vereador da mesma Câmara, tendo fundado, a 12 de janeiro de 1838, a Biblioteca Municipal do Funchal, importante estrutura cultural do arquipélago. Entre os cargos públicos que exerceu, relevam-se também o de vogal do Conselho Distrital, o de procurador à Junta Geral, o de secretário-geral do Governo Civil e o de governador civil interino, na ausência do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1848-1849). Como jornalista, foi redator e diretor do periódico funchalense A Flor do Oceano, entre 1828 e 1866, tendo colaborado igualmente em outros periódicos, entre os quais O Regedor (1823 e 1828) e A Ordem (1852-1860). Foi autor de várias obras de interesse regional, como Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo, publicado no Funchal (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850; o 3.º vol., de 1852), é de António Jacinto de Freitas); Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal; Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco; Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847. Como poeta, publicou, na juventude, poemas que foram incluídos na Collecção d’Algumas Obras Poeticas offerecidas ao Ilmo. e Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho. Foi agraciado com o grau de cavalaria da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, de Vila Viçosa. Faleceu no Funchal, a 13 de janeiro de 1867. Obras de Sérvulo Drummond de Meneses: Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal (1848); Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco (1848); Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847 (1848); Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850).   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 24.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional

mosteiro novo

O conjunto edificado denominado “Mosteiro Novo”, que foi depois seminário, embora tendo essa designação, nunca chegou a ser mosteiro, nem sequer recolhimento. Enquadra-se, assim, na vasta série de instituições pias criadas em momentos difíceis relativamente às quais, por morte dos instituidores, desaparece a vontade e os fundos para as instituir verdadeira e concretamente. A doação destes edifícios para um futuro mosteiro ou recolhimento foi feita pelo Cón. Manuel Afonso Rocha, a 17 de dezembro de 1638, perante um tabelião e o bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650). Declarou então que tinha dado início a um mosteiro composto de casas, oficinas, igreja e coro, sob a invocação de S. José, destinado a religiosas ou religiosos, sob a cláusula de lhe celebrarem algumas missas e ofícios pela sua alma. Como o conjunto não estava concluído, entregava o governo e a sua administração à proteção do prelado e seus sucessores, dentro da intenção de o mesmo vir a servir de “recolhimento para damas ou mulheres de qualidade”. Caso tal não fosse possível, gostaria que o mosteiro fosse entregue “a religiosos virtuosos mendicantes ou outros que ali fizessem mais serviço a Deus” (SILVA e MENESES, 1998, II, 398-399). As informações do cónego, em princípio afastavam-se algo da realidade, não existindo qualquer “igreja com coro” e somente, na melhor hipótese, uma capela ou um oratório privado, pois que não se conhece para ali qualquer autorização de culto passado pela autoridade eclesiástica. Cerca de 10 anos depois, em 1647, o prelado dava autorização para ali residirem os sobrinhos do fundador, o Cón. António Spranger Rocha, seu irmão, o P.e Inácio Spranger e suas irmãs. Tudo indica ser então e ainda somente um espaço residencial e, muito provavelmente, a autorização do prelado era a oficialização da situação que se mantinha do anterior. Esta família viveu aí ao longo de todo o século, pois em 1691 faleceu nestas casas o também Cón. António Spranger, sobrinho dos anteriores. As casas devem ter ficado então devolutas, pois em finais de 1698, o bispo D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1722), pouco depois de tomar posse da Diocese, o que ocorreu a 28 de agosto de 1698, transferiu para ali o seminário diocesano, até então alojado no chamado colégio de S. Luís anexo à capela daquela evocação e ao paço episcopal. A 3 de janeiro de 1702 emitia um decreto com os novos estatutos do seminário, os quais foram confirmados, depois de ouvidos os elementos do mesmo, passando a ter um reitor, 10 colegiais e um número de pensionistas a livre arbítrio do bispo. Por 1720, Henrique Henriques de Noronha descrevia o conjunto edificado, então sob a evocação de S. Gonçalo e com uma “nobre igreja” dedicada a Jesus, Maria e José, onde existiam dois altares laterais, um de S. Gonçalo de Amarante e outro, de N.ª S.ra do Bom Despacho (NORONHA, 1996, p. 304). O terramoto de 1 de novembro de 1748 afetou bastante o edifício, tendo sido retirado dali o seminário, mas, por volta 1760, este regressou às mesmas instalações. O conjunto edificado que chegou até nós deve ser produto das obras dos finais do séc. XVII e inícios do XVIII, embora com obras de reabilitação dos anos seguintes, mas que não alteraram substancialmente a organização geral da estrutura. O conjunto do antigo Mosteiro Novo e do seminário apresenta um amplo pátio interior, sobre o qual corre o corpo que dá para a rua, que ainda no séc. XXI era chamada R. do Seminário, com uma pequena capela a nascente, profanada e sem qualquer recheio. A entrada para o pátio fica a poente desse corpo, parecendo manter preexistências dos finais do séc. XVII ou inícios do XVIII, com dois interessantes lanços de escadas e entrada para o piso nobre com alpendre refeito no séc. XIX. Ao longo da rua apresenta três portais ao gosto das primeiras décadas do séc. XVIII, mas a organização da fenestração parece anterior, salvo a janela com balcão, que deve corresponder à campanha de obras do séc. XIX. O edifício poente do pátio parece ter sido montado para os seminaristas internos, tal como o que corre sobre a rua parece ter sido ocupado pelos quadros superiores do seminário. O seminário foi transferido, em 1788, para o antigo colégio dos Jesuítas, mas logo em 1801 voltava ao edifício original, dada a instalação no colégio das forças inglesas de ocupação. Em 1909, o seminário era transferido para o novo edifício levantado na cerca do extinto convento da Encarnação, construído então pela Junta Geral do Distrito, mas a 20 de abril de 1911, com a extinção dos seminários pela República, voltava a funcionar, sem carácter oficial, nas antigas instalações do Mosteiro Novo. Em breve também o edifício era confiscado pelo Estado, tendo passado, em 1971, por uma remodelação total para a instalação do Laboratório Distrital de Análises Dr. Celestino da Costa Maia, até então a funcionar num edifício da R. das Pretas. Em 1976, e com a transferência do laboratório, o edifício ficava devoluto, tendo tido nova remodelação em 1988, e nova designação, então de Laboratório de Saúde Pública Dr. Câmara Pestana. Em 2000 voltava a estar parcialmente devoluto, aguardando definição de reutilização.     Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Arquitetura Património Religiões

melo, antónio júlio de santa marta do vadre de mesquita e

António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), 3.º visconde de Andaluz, foi para a Madeira como secretário-geral do governador, D. Tomás de Sousa e Holstein, marquês de Sesimbra; porém, o marquês de Sesimbra não estaria um ano no lugar. António Melo foi nomeado para o lugar de governador civil do Funchal em setembro de 1879. Coube ao seu Executivo tentar acalmar a agitação política, que se devia à nomeação de nobres da Corte, o que não se enquadrava já na vida política portuguesa. Palavras-chave: Arranjos familiares; Governo civil; Partidos Políticos; Regeneração; Tumultos populares.   O governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), do Partido Regenerador, foi exonerado em 1868 pelo Executivo do açoriano conde de Ávila, António José de Ávila (1806-1881), do Partido Reformista ou Partido Popular, então uma cisão do Partido Histórico (Partido Histórico e Partidos políticos). As complexas alianças entre estes partidos levaram o Governo de Lisboa a colocar em S. Lourenço duas figuras da aristocracia da Corte de Lisboa: o marquês de Sesimbra, D. Tomás de Sousa e Holstein (1839-1887), filho do duque de Palmela (1781-1850), como governador civil, e o 3.º visconde de Andaluz, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), como secretário-geral. Estas duas escolhas foram alicerçadas em vagas ligações familiares às antigas famílias insulares e foram por certo resultado da pressão dos elementos do Partido Histórico, incapazes de compreender as novas realidades dos meados e da segunda metade do séc. XIX. O marquês de Sesimbra era casado com uma filha dos marqueses da Ribeira Grande, descendentes de Zarco, mas dos Açores, e viria a ser sogro do futuro conselheiro Aires de Ornelas e Vasconcelos (1866-1930); o visconde de Andaluz estaria para se casar com uma filha do barão da Conceição, Fortunato Joaquim Figueira (1809-1885), abastado proprietário que se havia fixado no Funchal nesse mesmo ano de 1868. O marquês de Sesimbra – ou de Cezimbra, como então aparece escrito – foi nomeado por decreto de 9 de setembro e viria a tomar posse a 17 de outubro de 1868, após Te Deum na catedral do Funchal celebrado à uma da tarde; disso nos dá conta o visconde de Andaluz, seu secretário-geral, que o comunicou às autoridades do Funchal, convidando-as para o evento. A administração do marquês ir-se-ia pautar por uma simples gestão administrativa, sendo praticamente toda a correspondência assinada pelo secretário-geral. Realizadas eleições em maio do seguinte ano de 1869, e passado o verão, o marquês de Sesimbra retirou-se, nos primeiros dias de setembro, para o continente, não completando um ano de governo na Madeira. Palácio e Fortaleza de São Lourenço. 1870. Arquivo Rui Carita O visconde de Andaluz tinha sido nomeado governador civil do Funchal por decreto de 4 de setembro, tomando posse a 8 do mesmo mês. Faria então uma proclamação aos “Habitantes do distrito do Funchal! Por decreto de 4 do corrente Houve por Bem Sua Majestade” nomeá-lo governador civil. Apelava então: “Auxiliai-me com o seu conselho e com as suas luzes […] pela prosperidade desta Terra, que eu hei de esforçar-me em promover os interesses dela com solicitude e dedicação” (ABM, Alfândega do Funchal, circular de 9 set. 1869). Era um discurso um pouco ultrapassado para a época, semelhante às proclamações liberais dos anos 30 e 40, conhecidas no Funchal durante a vigência da Junta Governativa de 1847 e o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) – proclamações que alguns anos depois ainda viriam a surgir, então ainda mais estranhas ao contexto político da época. O novo governador tentou fazer face à situação algo agitada que se vivia, não só política, como geral. No arquipélago, nem sempre se encontrava gente à altura para os vários locais diretivos e, ao mesmo tempo, não se conseguiam definir especificamente estruturas partidárias, daí resultando vagas organizações articuladas em relações pessoais em torno dos membros mais influentes das elites locais. Em maio de 1870, e.g., tendo o visconde de Andaluz suspendido o administrador do concelho de Santana, “não havendo naquela localidade pessoa com os requisitos necessários para, na atual conjetura entrar na referida vagatura”, solicitava à Casa Fiscal da Alfândega do Funchal a disponibilização do funcionário Joaquim Pinto Coelho (1817-1885) para ocupar o lugar (Ibid., Alfândega do Funchal, of. 23 abr. 1870) – uma nomeação acertada, considerando o tempo em que aquele funcionário ocupou o lugar da Alfândega. Nos inícios de 1870, por decreto de 2 de janeiro, procedeu-se à dissolução das Cortes e, a 3 de fevereiro seguinte, à reunião das assembleias eleitorais. Na Madeira, as eleições decorreram a 1 de maio, voltando a sair os nomes de Luís Vicente de Afonseca (1803-1878) e Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901). Porém, as eleições decorreram muito mal e, especialmente em Machico, ocorreram tumultos graves. Acontece que o governador destacara para os principais centros eleitorais forças de Caçadores 12, nem sempre comandados por elementos capazes de manter o sangue frio. As forças militares acabaram por se refugiar na igreja matriz e, acossadas pela populaça, fizeram fogo sobre a multidão, o que resultou em vários mortos (Tumultos populares). Houve também incidentes em outros locais, inclusivamente no Funchal. O Partido Popular, que se achava na oposição, tinha um certo domínio sobre as massas populares e quando Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos (1825-1906), então membro do Partido Fusionista, desembarcou no Funchal, ido precisamente de Machico, foi preso na Pontinha e conduzido à Pr. da Constituição para justiça popular. Evitou o assassinato o jovem Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), uma das figuras prestigiadas do Partido Popular, que se interpôs entre os populares e Trindade e Vasconcelos. Como o visconde de Andaluz tinha feito vários contactos e estabelecido um pacto de não intervenção nos assuntos do Partido Popular, foi isso que aconteceu em relação a novas alterações da ordem pública em Machico, aquando dos funerais das vítimas do dia 1 de maio. Os acontecimentos de Machico produziram grande sensação na imprensa madeirense e, de imediato, no continente, sendo o visconde violentamente atacado nas Cortes e na imprensa de Lisboa. Em julho ainda apareciam na comunicação social de Lisboa abaixo-assinados respeitantes aos acontecimentos de Machico e à maneira pouco ortodoxa como haviam sido encaminhados juridicamente. Um conjunto de cinco guardas da Alfândega do Funchal, e.g., fora indiciado e preso “pelo crime de cumplicidade nas mortes e ferimentos feitos pela força militar dentro do templo de Machico” (A Revolução de Setembro, n.º 8416, Lisboa, 5 jul. 1870, 1). O despacho fora emitido pelo juiz da comarca oriental do Funchal, Cassiano Sepúlveda Teixeira, e os guardas não entendiam como podiam ser acusados de “crimes eleitorais e políticos” e de “crimes de violência contra membros da assembleia eleitoral” (Ibid.), quando o que estava em causa era uma série de mortes entre a população local, cujos autores tinham sido os soldados de Caçadores 12, como se queixam então os guardas António José Nunes, Jacinto Augusto Ferreira, Januário Esteves de Sousa, Augusto Celestino Lacerda e António Vieira. O visconde de Andaluz foi exonerado em poucos dias, por dec. de 14 de maio de 1870. Foi nomeado como governador do distrito do Funchal Afonso de Castro (1824-1885), que tomou posse a 19 desse mês de maio, mas que não estaria na Madeira senão oito dias, face a mais uma intentona militar do duque de Saldanha (1790-1876) em Lisboa. Poucos meses depois, e face ao insucesso das nomeações, D. João Frederico da Câmara Leme voltava a ocupar o lugar de governador civil. O 3.º visconde de Andaluz era bacharel em Direito e herdou o título de seu pai, Joaquim José dos Mártires de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1806-1863), que o tinha recebido por doação de sua tia materna, Maria Bárbara do Vadre de Almeida Castelo Branco, viúva do 1.º visconde, António Luís Maria de Mariz Sarmento, dado do casamento não ter havido descendência. Embora tenha sido uma situação algo insólita, o 3.º visconde de Andaluz, um ano depois do falecimento do pai, conseguiu a confirmação do título por carta régia do D. Luís (1838-1889), de 17 de dezembro de 1864. Casou-se no Funchal com D. Ana Joaquina Figueira, filha dos barões da Conceição. Desse casamento houve quatro filhas, tendo-se a mais velha casado com o conde de Vila Verde, D. Pedro de Almeida e Noronha Portugal Camões Albuquerque Moniz e Sousa (1865-1908). A 4 dezembro de 1890, o 3.º visconde de Andaluz ainda seria nomeado governador civil de Santarém, lugar que ocupou até 2 de janeiro de 1892. Terá falecido cerca de 10 anos depois.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional Personalidades

música tradicional

A música tradicional madeirense da atualidade resulta da combinação de um conjunto de elementos trazidos por sucessivas levas de povoadores. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), estes contributos foram evoluindo de forma isolada, mas recebendo pontuais influências de novas populações, de visitantes ocasionais ou ainda, a partir do séc. XX, dos meios de comunicação social de âmbito nacional, com particular incidência nas estações radiofónicas, ou da generalização do ensino oficial, com a chegada de docentes de diversos pontos do país. Deste modo, popularizaram-se na RAM canções que, com o tempo, têm vindo a assumir, para muitos, um carácter tradicional. Como é natural, trata-se de peças cuja identificação nem sempre é fácil, pois há pouca investigação feita sobre o tema nas diversas regiões do país. No caso particular das cantigas religiosas, é ainda necessário referir a influência de sacerdotes portadores de orientações precisas por parte da hierarquia ou de uma formação padronizada nos seminários que frequentaram. Um último aspeto que poderá estar na origem de algumas influências alheias é o regresso de emigrantes que trazem das terras onde viveram elementos tradicionais passíveis de ser incorporados na tradição. No entanto, seja por o fenómeno ser ainda relativamente recente, em termos de mecanismos de mudança cultural, seja apenas por ainda não ter havido quem o estudasse seriamente, a verdade é que não se sabe, atualmente, se essa componente se manifesta. Não é possível definir características genéricas da música tradicional madeirense. Por esse motivo, e de modo a facilitar a exposição, optou-se por abordar aqui, separadamente, cada um dos grandes géneros musicais, após uma primeira referência ao bailinho, o elemento mais conhecido e identitário da tradição musical da RAM. Aborda-se igualmente a mourisca, que, embora com menor realce, constitui também um modelo musical transversal a diversos géneros. Bailinho Com um padrão rítmico bastante simples, o bailinho é executado geralmente na tonalidade de Sol Maior, por ser aquela a que mais facilmente se adapta a voz. É esta melodia que está na base de muitos dos mais conhecidos bailes regionais, sendo também a forma assumida pela mais popular forma de canto improvisado em despique da RAM (com o nome de bailinho, retirada, meia noite ou outro). Encontramo-lo ainda a dar o “som” de muitos romances tradicionais, cantigas narrativas, cantigas de lazer, etc. De certa forma, é um elemento que, por si só, permite a qualquer não madeirense identificar uma melodia como sendo da RAM, sendo, atualmente, a forma musical mais presente e espontânea em todos os ambientes festivos na Região, acompanhada por qualquer instrumento ou mesmo por formas improvisadas de criar som. É importante chamar aqui a atenção para uma confusão bastante frequente resultante da coincidência do nome deste género musical. Existe uma canção muito conhecida, interpretada pelo cantor madeirense Max, que tem precisamente o nome de “Bailinho da Madeira”. No entanto, apesar da referência na sua letra ao bailinho, musicalmente esta nada tem a ver com ele. Antes pelo contrário, a música tradicional que serviu de inspiração para algumas das suas frases musicais foi o charamba. A grande popularidade desta canção tem feito com que seja frequente a confusão. Mourisca A mourisca madeirense dos começos do séc. XXI apresenta características que a aproximam de um vira valseado. Musicalmente, baseia-se no compasso binário composto, padrão rítmico de 6/8. Harmonicamente, tem a forma tradicional de alternância entre tónica e dominante. Na tradição local, principalmente a que se pode identificar através de recolhas efetuadas em anos anteriores, encontram-se formas de mourisca em diversas circunstâncias. Existem referências e alguns registos de mouriscas cantadas em despique, com letras improvisadas; contudo já não se encontram cultores desta prática, sobrevivendo apenas como canção de letra fixa. A sua grande força é traduzida numa dança, conhecida predominantemente na zona sul da ilha, em torno da Camacha, da Gaula, do Machico e do Caniçal. Existem algumas referências quanto à existência da mourisca dançada pelos populares em outras zonas, como os Canhas. Esta pode ser denominada, de forma indiferente, como mourisca ou chama-rita. No Porto Santo, existia o baile sério, nos começos do séc. XXI executado apenas pelo grupo folclórico desta ilha. Trata-se de uma variante da mourisca madeirense, com uma letra própria. Os habitantes da ilha consideravam-no a dança dos grupos mais abastados da ilha, em oposição à meia volta ou ao baile do ladrão, associados às classes populares. A sua letra é fixa, tal como na mourisca da ilha da Madeira, alternando quadra com refrão. As quadras são entoadas alternadamente por uma mulher e por um homem, sendo o refrão cantado em coro. Cantigas de trabalho Como resultado da transformação dos modos de vida e das atividades produtivas rurais, as cantigas associadas ao trabalho encontram-se atualmente numa situação peculiar. Com efeito, a verdade é que, nas zonas rurais, já não se ouve cantar a chamusca, a cava, a sementeira, a erva, a ceifa do trigo, a malha na eira, a boiada ou cantigas do moleiro, de acartar lenha, dos borracheiros, do linho, dos pastores, etc. Com o desaparecimento das atividades agrícolas que lhes estavam associadas, estas cantigas perderam o seu carácter funcional. De uma forma geral, podemos considerar que as cantigas de trabalho assumem diversas das características a seguir enunciadas: – Género exclusivamente vocal, sem acompanhamento instrumental; – Estrutura musical vulgar, nalguns casos simétrica; – Melodia simples e curta, muitas vezes irregular, com intervalos curtos; – Andamento lento e livre, dependente da respiração de cada um. O seu tempo é relativo e variável, dependendo da sensibilidade de quem canta e também do trabalho associado; – A tonalidade é a que melhor serve ao intérprete. Por vezes, verifica-se um prolongamento da última nota (de 8 ou 12 tempos finais), como, por exemplo, na cantiga da ceifa, da carga ou dos borracheiros. Não há mudança de tom; – Padrão rítmico: 2+2; 4+4; – Canto monódico. No entanto, a sua entoação pode variar, existindo diferentes formas de o fazer: a) Um único intérprete canta a totalidade da cantiga, ou cada um canta a sua quadra; b) Uma voz inicia a quadra e, nos dois últimos versos, os restantes participantes acompanham em uníssono imperfeito; c) Todos entoam, em conjunto, quadras já conhecidas; d) Cada um improvisa a sua quadra. – Sem refrão; – Forma de cantar: alto (agudo), voz de cabeça; – São frequentes os modos arcaicos (sistema modal); As características mais notórias da letra são: – A mesma letra pode servir para diferentes melodias, podendo ser de temática completamente alheia à tarefa. Esta é geralmente pouco profunda, mas ligada à tarefa do dia-a-dia, às dificuldades da vida. São temas recorrentes: Deus, amor, saudade, tristeza, alegria, humor, malandrice; – É frequente a apropriação de versos já conhecidos e pertencentes a cantigas de lazer, de carácter religioso ou romances tradicionais; – O cantar de improviso é um fator importante neste género de música associada ao trabalho caseiro, dependendo da capacidade poética de quem canta; – Entre as quadras ou versos, são frequentes os apupos ou onomatopeias; Listam-se abaixo algumas das mais significativas cantigas de trabalho madeirenses. Borracheiros Na costa norte da Madeira, as uvas eram tradicionalmente apanhadas e levadas para um lagar local. O mosto era posteriormente acartado para as adegas do Funchal, onde iria fazer parte do processo de produção do famoso vinho generoso. A ausência de boas vias de comunicação obrigava a que o seu transporte fosse feito em odres (borrachos) carregados aos ombros de homens pelas veredas da serra. Podiam juntar-se várias dezenas de borracheiros, que, em fila, faziam o percurso até à cidade. Como forma de atenuar a dureza da caminhada, iam entoando uma cantiga específica. O primeiro homem da fila era o chamado candeeiro, que cantava umas quadras de métrica irregular, a que respondiam os restantes (o gado), com vivas. O último do grupo era o boieiro. O canto servia para animar os elementos do grupo, fazendo alusão ao próprio caminho, podendo também incluir elementos de troça em relação a algum componente ou de incentivo ao esforço. A construção de estradas e infraestruturas levou ao inevitável fim dos borracheiros. Em 1974, por iniciativa de Eduardo Caldeira, constituiu-se um grupo, no Porto da Cruz, que recuperou essas tradições, apresentando-as em diversos eventos madeirenses. Cantiga da carga A força humana foi, desde sempre, o elemento que assegurou o transporte na ilha. Mesmo cargas pesadas eram levadas aos ombros ou à cabeça. Por vezes, onde os terrenos o permitiam, podia recorrer-se à ajuda de animais para facilitar a tarefa. No entanto, a ida à serra para recolher lenha para aquecer a casa ou cozinhar, ou para cortar erva para o gado que, no palheiro, a aguardava, dificilmente escapava à necessidade da força humana para o transporte dos pesados fardos. Esta cantiga era entoada naqueles percursos do regresso, aliviando, de certa forma, a dureza do esforço. A letra era composta por quadras, que podiam ser improvisadas, intercaladas por apupos e entoadas numa cadência lenta, acompanhando o ritmo lento da tarefa. Cantiga de embalar Adormecer uma criança é uma tarefa que pode ser árdua e que está muito dependente do tempo necessário para atingir o objetivo. Assim, a tradicional cantiga de embalar tem um andamento muito lento, sem grandes irregularidades. A letra tem versos intercalados por onomatopeias destinadas a fazer adormecer mais facilmente a criança.   Cantigas de carácter religioso O ciclo do Natal O primeiro momento do ciclo do Natal na Madeira, em termos musicais, é constituído pelas Missas do Parto. No seu estudo sobre o tema, Rufino da Silva (1998) afirma que os cantos que têm presença certa nestas cerimónias são conhecidos, pelo menos, desde finais do séc. XIX>, sendo no entanto impossível determinar se são de origem madeirense. Segundo o mesmo autor, estes cânticos apresentam traços de lirismo popular, revelam influência minhota pela harmonização em terceiras e a sua estrutura harmónica é basicamente de alternância entre a tónica e dominante e quase exclusivamente em modo maior. Embora esta seja a caracterização da maior parte das canções, o autor detecta nalgumas delas traços de influência do canto gregoriano.   Romagem. Missa do Galo. Boaventura. Foto: Rui A. Camacho A missa da Noite de Natal é um mais alto momento das vivências religiosas da população regional. Associadas à importância litúrgica de comemorar o nascimento de Cristo, há diversas práticas tradicionais que ajudam a que esta seja realmente a grande Festa. Em alguns locais, esta celebração ainda assume características muito próprias, terminando com as romagens, nas quais grupos de vizinhos, familiares ou amigos percorrem a nave do templo tocando e cantando, para levar até ao sacerdote as suas oferendas. A própria missa é intercalada por diversos momentos de representação e entoação de cantos, como o da “Anunciação aos Pastores” ou a “Pensação do Menino”, tradicionalmente cantados junto do presépio. Possivelmente, estes serão os últimos vestígios de um ancestral auto apresentado na ocasião. A alteração das condições de realização da cerimónia, incluindo alguma necessidade de encurtar a sua duração, poderá estar na origem da eliminação de componentes ou redução do número de estrofes entoadas, daí resultando a sobrevivência de apenas algumas canções isoladas. As romagens são um bom exemplo de uma outra realidade: o que aqui é tradicional é o contexto de interpretação e não a canção em si. Apesar de ser uma tradição que tende a perder-se, nos locais onde se mantém, a principal preocupação dos vários grupos que preparam a sua romaria é mostrar qualquer coisa que as pessoas presentes na igreja não conheçam, pelo menos no que respeita à letra, pelo que muitas vezes se adapta uma música conhecida a uma letra criada. Principalmente nas zonas onde essa preocupação pela conservação da tradição é maior, o grupo que apresente uma romaria que ele ou outro cantou naquela igreja no ano anterior ou dois anos antes, da qual toda a gente se lembra, é alvo de troça, uma vez que não foi capaz de preparar e apresentar uma romagem original, o que obriga a questionar o lugar da tradição. A tradição está na prática de as pessoas de um determinado sítio se reunirem e levarem uma canção para a missa de Natal, com ou sem instrumentos. Por definição, se o que o grupo tem de apresentar é uma novidade, então as músicas não podem ser tradicionais. O que acontece por vezes é que se o público gostar de uma romaria de Natal, seja pela situação em que ela foi apresentada, seja pela qualidade artística da sua melodia ou da sua letra, esta permanece e pode tornar-se tradicional, como uma cantiga de passatempo.   Noite de Reis. Foto: Rui A. Camacho Cantiga de Reis Na noite de 5 para 6 de janeiro, formam-se grupos que percorrem as casas dos vizinhos ou amigos, entoando cantos próprios da época, como forma de desejar um bom Ano Novo. Ao chegar à porta, canta-se enquanto se aguarda que o dono da casa abra e ofereça a todos as bebidas e bolos que os esperam. Depois de uns minutos de convívio, há que prosseguir o percurso, que dura até de manhã. Em cada zona da ilha tende a haver um canto próprio desta noite, embora haja alguns mais conhecidos que são partilhados por várias localidades. A cantiga é entoada em uníssono por todos os participantes. A sua estrutura melódica é constituída por duas partes distintas: uma primeira cantada em compasso de 3/4 e uma segunda em compasso de 3/8, embora haja casos em que surge o compasso 2/4. No final, é frequente haver uma quadra de despedida aos donos da casa. Espírito Santo. Camacha. Foto: Rui A. Camacho Espírito Santo Após a Páscoa, começam as visitas das insígnias do Espírito Santo às casas. Num número de domingos variável em função da quantidade de locais a percorrer, forma-se um grupo constituído pelos festeiros, portadores das insígnias (pendão com a pomba desenhada, coroa e cetro), músicos e duas ou quatro saloias (meninas que transportam cestos para acolher as ofertas). Ao chegar a cada casa, as saloias entoam o Hino, que pode variar de freguesia para freguesia, alusivo à entrada do Espírito Santo, a que se seguem o pedido e o agradecimento das esmolas ao dono da casa. Podem seguir-se outras cantigas, de acordo com pedidos feitos pelos moradores e/ou decisão dos festeiros. Cantigas de lazer Cantos improvisados Brinco em bailinho O despique em bailinho é, ainda hoje, o momento alto da festa popular. Em qualquer arraial tradicional, ou mesmo nas festas familiares, se pode encontrar um brinco. Um músico, pelo menos – tocando rajão, braguinha ou viola de arame, hoje frequentemente substituídos pelo acordeão –, atrai uma roda de cantadores que, à vez, entoam as suas quadras, podendo haver um acompanhamento adicional de palmas (se necessário, pode-se prescindir inclusivamente da presença de músicos). Musicalmente, encontramos uma melodia tonal, com base na harmonia da tónica, dominante.   Despique. Arraial de Ponta Delgada. Foto: Rui A. Camacho O canto é, no essencial, improvisado. No entanto, um bom despicador pode recorrer, se necessário, a quadras decoradas. Esta situação será um recurso aceite no contexto de um despique que se prolongue num arraial. A tentativa de “atirar” quadras críticas ou irónicas sobre os restantes pode proporcionar momentos de grande alegria. A forma poética escolhida é a quadra de verso curto, com rima cruzada (ABAB ou ABCB). Habitualmente, cada verso é bisado, e após o segundo verso toca-se o interlúdio musical. Por vezes, o despicador acrescenta mais dois versos (rima CB ou DB), como mecanismo que permite completar melhor a ideia. Em casos mais raros, poderá ser entoada uma nova quadra completa, tendência que se tem tornado mais comum em tempos mais recentes, possível sinal de uma menor capacidade inventiva e de síntese. A satisfação dos presentes é manifestada por meio de apupos. O despicador, ao chegar a sua vez, pode prescindir de participar, passando a vez ao seguinte. A conclusão mais natural do despique será a que resultar do progressivo abandono dos participantes, vencidos pelo mais inspirado. Num arraial, o brinco poderia prolongar-se por longo tempo, sendo um dos grandes momentos de animação antes da generalização dos grupos de música moderna. Na ilha do Porto Santo, é habitual chamar “Retirada” ao despique em bailinho. Charamba   Charamba. Foto: Rui A. Camacho É hoje a forma musical associada por excelência à viola de arame, embora tradicionalmente pudesse ser acompanhado por outros instrumentos. É uma forma de canto despicado, quase exclusivamente masculino. Na maior parte das vezes, os tocadores não participam no canto, sendo este alternado entre os participantes, que podem cantar quadras ou estrofes mais longas e também com uma métrica variável. A sequência é obrigatoriamente no sentido dos ponteiros do relógio. Ao conjunto dos charambistas que participam numa determinada sessão chama-se “quadrado”. Segundo alguns dos intérpretes tradicionais, o importante neste género musical era o conteúdo do que se cantava. Nalguns casos, acordava-se previamente um tema (fundamento) que estaria obrigatoriamente presente em todas as intervenções. O tema poderia também ser acordado após quadras iniciais entoadas pelos participantes. No momento do canto, o intérprete tem toda a liberdade de definir o andamento e a extensão dos seus versos. Se necessário, o tocador terá de “ir atrás” do cantor, prolongando as frases musicais ou repetindo-as. Para alguns, a opção é ir tocando uns acordes muito simples durante o canto. As quadras são entoadas com repetição de cada verso ou repetindo cada par de versos. Após a repetição, há o indispensável interlúdio musical, que tem uma forma padronizada e bem definida, num padrão rítmico regular de 2/4 (embora possa mudar para 5/8), sendo ele que, musicalmente, define o charamba. A estrutura harmónica é simples, baseando-se na Tónica e Dominante do tom de Sol maior. O seu andamento é lento/andante. Jogos cantados Nos momentos de convívio dos mais jovens, seja entre si, seja com os adultos da família ou amigos, as lengalengas e os jogos ocupavam um lugar importante. Estes apresentam uma grande diversidade de características, podendo ser cantados ou não, tal como ter associada uma coreografia própria. Embora não sendo possível efetuar generalizações, existe um conjunto de aspetos que se podem apresentar como sendo muito comuns aos jogos cantados: – São cantados em tom maior, com refrão e um ritmo simples; – É habitual possuírem refrão, cantado por todos em uníssono, intercalado com outras partes entoadas a solo por algum dos participantes; – Sem acompanhamento instrumental; – Recurso a acompanhamento de palmas; – A sua letra é composta maioritariamente por quadras de verso curto Muitos dos jogos têm uma coreografia associada. Os jogadores podem colocar-se em roda simples ou dupla, podendo ter um elemento no centro, podem estar em fila, frente a frente, etc. Histórias Outra forma muito comum de passar o tempo livre, ou mesmo acompanhar as longas horas de trabalho do bordado, era contando ou cantando histórias. Estas podiam assumir características diversificadas. Tanto podiam ser os antigos romances da tradição hispânica, como narrativas inspiradas em factos da vida real, como ainda histórias de animais ou mesmo lengalengas. Um elemento importante é assumirem, com grande frequência, um carácter didático ou terem uma conclusão moral. A sua componente musical varia muito. Ainda podemos encontrar alguns romances com as suas melodias ancestrais, a par de outros textos a que se foi adaptando uma música mais recente. Nestes casos, o facto de se tratar de uma melodia bem conhecida facilitava a sua memorização e podia tornar mais recetivos os ouvintes. De qualquer modo, são sempre melodias com frases musicais curtas, que se vão repetindo ao longo de todo o texto. Danças As duas formas dançadas mais comuns na RAM são os já referidos bailinho e mourisca. Para além delas, pode referir-se duas outras tradicionais da ilha do Porto Santo, a Meia Volta e o Ladrão, e uma outra, a Dança das Espadas, associada à festa de São Pedro, na Ribeira Brava. Meia volta Na ilha do Porto Santo, os momentos de festa em família ou com vizinhos e amigos tinham lugar nas eiras ou num espaço amplo dentro de casa. Aí, o tocador da rabeca colocava-se no centro e os restantes participantes do baile iam formando pares em roda (pares que nunca se tocavam, realçavam alguns dos mais antigos). Na roda, incluíam-se os tocadores dos outros instrumentos, como o rajão e viola de arame. Caso único nas danças da RAM, existia um mandador que orientava a sequência coreográfica do baile, ao mesmo tempo que cantava e tocava a viola de arame. Os restantes cantadores ficavam fora da roda. A música tem ainda hoje carácter modal (frígio), claro sintoma da sua antiguidade, embora todas as hipóteses até hoje lançadas para explicar a sua origem sejam puramente especulativas. Tradicionalmente, o canto era improvisado. Atualmente extinto da tradição, são elementos do Grupo Folclórico local que preservam a sua recordação. Musicalmente, apresenta uma sequência harmónica de três acordes: Sol, Lá, Sol, tom de Sol maior. O andamento é moderado e mantém-se sempre inalterável, mudando o número de notas musicais, criando uma intensidade sonora e desenvolvendo uma dinâmica rítmica, enquanto o violino executa uma interessante melodia com base na escala de Sol maior. A meia volta é única em relação a todas as outras músicas tradicionais. Dança das espadas Música tradicionalmente executada durante os festejos de São Pedro, na Ribeira Brava. Praticada até meados do séc. XX, esta dança desapareceu progressivamente da tradição, sendo alvo de trabalho de reconstituição em finais do século, tendo posteriormente retomado o seu lugar na festa.   Dança das Espadas. Ribeira Brava. Foto: Rui A. Camacho É interpretada por um conjunto de homens com um trajo próprio, tendo duas partes distintas: uma executada em marcha e a outra com uma coreografia própria. Aspecto peculiar, a dança é apenas instrumental, sem qualquer canto associado, o que faz com que seja a única dança da tradição popular que apresenta essas características. Musicalmente, é simples, baseando-se apenas em quatro compassos, em tom maior. Embora haja registo de ligeiras alterações, podemos definir o acompanhamento musical como sendo feito por rajão, braguinha, viola de arame e pandeiro.   Jorge Torres Rui Camacho (atualizado a 01.02.2018)

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