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mosteiro novo

O conjunto edificado denominado “Mosteiro Novo”, que foi depois seminário, embora tendo essa designação, nunca chegou a ser mosteiro, nem sequer recolhimento. Enquadra-se, assim, na vasta série de instituições pias criadas em momentos difíceis relativamente às quais, por morte dos instituidores, desaparece a vontade e os fundos para as instituir verdadeira e concretamente. A doação destes edifícios para um futuro mosteiro ou recolhimento foi feita pelo Cón. Manuel Afonso Rocha, a 17 de dezembro de 1638, perante um tabelião e o bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650). Declarou então que tinha dado início a um mosteiro composto de casas, oficinas, igreja e coro, sob a invocação de S. José, destinado a religiosas ou religiosos, sob a cláusula de lhe celebrarem algumas missas e ofícios pela sua alma. Como o conjunto não estava concluído, entregava o governo e a sua administração à proteção do prelado e seus sucessores, dentro da intenção de o mesmo vir a servir de “recolhimento para damas ou mulheres de qualidade”. Caso tal não fosse possível, gostaria que o mosteiro fosse entregue “a religiosos virtuosos mendicantes ou outros que ali fizessem mais serviço a Deus” (SILVA e MENESES, 1998, II, 398-399). As informações do cónego, em princípio afastavam-se algo da realidade, não existindo qualquer “igreja com coro” e somente, na melhor hipótese, uma capela ou um oratório privado, pois que não se conhece para ali qualquer autorização de culto passado pela autoridade eclesiástica. Cerca de 10 anos depois, em 1647, o prelado dava autorização para ali residirem os sobrinhos do fundador, o Cón. António Spranger Rocha, seu irmão, o P.e Inácio Spranger e suas irmãs. Tudo indica ser então e ainda somente um espaço residencial e, muito provavelmente, a autorização do prelado era a oficialização da situação que se mantinha do anterior. Esta família viveu aí ao longo de todo o século, pois em 1691 faleceu nestas casas o também Cón. António Spranger, sobrinho dos anteriores. As casas devem ter ficado então devolutas, pois em finais de 1698, o bispo D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1722), pouco depois de tomar posse da Diocese, o que ocorreu a 28 de agosto de 1698, transferiu para ali o seminário diocesano, até então alojado no chamado colégio de S. Luís anexo à capela daquela evocação e ao paço episcopal. A 3 de janeiro de 1702 emitia um decreto com os novos estatutos do seminário, os quais foram confirmados, depois de ouvidos os elementos do mesmo, passando a ter um reitor, 10 colegiais e um número de pensionistas a livre arbítrio do bispo. Por 1720, Henrique Henriques de Noronha descrevia o conjunto edificado, então sob a evocação de S. Gonçalo e com uma “nobre igreja” dedicada a Jesus, Maria e José, onde existiam dois altares laterais, um de S. Gonçalo de Amarante e outro, de N.ª S.ra do Bom Despacho (NORONHA, 1996, p. 304). O terramoto de 1 de novembro de 1748 afetou bastante o edifício, tendo sido retirado dali o seminário, mas, por volta 1760, este regressou às mesmas instalações. O conjunto edificado que chegou até nós deve ser produto das obras dos finais do séc. XVII e inícios do XVIII, embora com obras de reabilitação dos anos seguintes, mas que não alteraram substancialmente a organização geral da estrutura. O conjunto do antigo Mosteiro Novo e do seminário apresenta um amplo pátio interior, sobre o qual corre o corpo que dá para a rua, que ainda no séc. XXI era chamada R. do Seminário, com uma pequena capela a nascente, profanada e sem qualquer recheio. A entrada para o pátio fica a poente desse corpo, parecendo manter preexistências dos finais do séc. XVII ou inícios do XVIII, com dois interessantes lanços de escadas e entrada para o piso nobre com alpendre refeito no séc. XIX. Ao longo da rua apresenta três portais ao gosto das primeiras décadas do séc. XVIII, mas a organização da fenestração parece anterior, salvo a janela com balcão, que deve corresponder à campanha de obras do séc. XIX. O edifício poente do pátio parece ter sido montado para os seminaristas internos, tal como o que corre sobre a rua parece ter sido ocupado pelos quadros superiores do seminário. O seminário foi transferido, em 1788, para o antigo colégio dos Jesuítas, mas logo em 1801 voltava ao edifício original, dada a instalação no colégio das forças inglesas de ocupação. Em 1909, o seminário era transferido para o novo edifício levantado na cerca do extinto convento da Encarnação, construído então pela Junta Geral do Distrito, mas a 20 de abril de 1911, com a extinção dos seminários pela República, voltava a funcionar, sem carácter oficial, nas antigas instalações do Mosteiro Novo. Em breve também o edifício era confiscado pelo Estado, tendo passado, em 1971, por uma remodelação total para a instalação do Laboratório Distrital de Análises Dr. Celestino da Costa Maia, até então a funcionar num edifício da R. das Pretas. Em 1976, e com a transferência do laboratório, o edifício ficava devoluto, tendo tido nova remodelação em 1988, e nova designação, então de Laboratório de Saúde Pública Dr. Câmara Pestana. Em 2000 voltava a estar parcialmente devoluto, aguardando definição de reutilização.     Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

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pescas

O mar é uma constante no imaginário lusíada. Foi com o mar que se cumpriu Portugal e, durante muito tempo, no dizer do poeta, o mar foi português. Isto foi dito porque os portugueses se lançaram, no séc. XV, à sua conquista, batendo as barreiras do medo que atormentavam desde a antiguidade os potenciais navegantes do Atlântico. A economia das ilhas não se resumiu aos produtos trazidos pelos colonos europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao primeiro aspeto, é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de assentamento ribeirinha, se assumiram como exímios marinheiros e pescadores, tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor alimentar. A atividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a sua atenção pela abundância de peixe e mariscos, mas raras vezes satisfez as necessidades das populações. O Atlântico, próximo das ilhas e da costa africana, era considerado, desde a antiguidade, como um espaço privilegiado de pesca, descoberto pelos cartagineses, no séc. VI a. c.. Desta forma, aquilo que os portugueses buscavam não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra. Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana estão no mar – o óleo e a pele de lobo-marinho provenientes das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira, como prova a expedição que João Gonçalves Zarco fez para o reconhecimento da costa sul da ilha. Depois disso, múltiplos visitantes testemunharam essa riqueza. Cadamosto, em meados do séc. XV, refere que a ilha é rica “em garoupas, dourados e outros bons peixes” (ARAGÃO, 1981, 36). Em 1698, o governador D. António Jorge de Melo refere que “o peixe é muito bom e não caro, que remedeia muito a terra” (NASCIMENTO, 1930, 15). Em 1853, Isabella de França acrescenta a esta ideia de riqueza piscícola a descrição de alguns peixes, como a abrótea, o atum, o chicharro, o congro, o cherne, a garoupa, o pargo, a raia, o salmonete e a tainha. Diversos autores referem a abundância de peixe nas costas das ilhas. Deste modo é cada vez maior o conhecimento do peixe disponível à volta da Ilha, muito evidente na lista de A. Biddle, de 1910, e nos diversos estudos científicos que entretanto se fizeram. A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e andaluzes. Todavia, o balanço das capturas dos madeirenses e dos açorianos não foi suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. A descoberta do Atlântico é um ato simultâneo com a da Ilha. Os portugueses demandam a sul, à procura das terras, míticas e verdadeiras, já debuxadas nos mapas. João Gonçalves Zarco decide fazer o reconhecimento da costa madeirense: este momento merece ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa, mas também pelas revelações que lhe permitem o batismo dos diversos acidentes da costa. Na primeira busca, conseguiu boas oportunidades de abordagem e de fixação, enquanto, na segunda, a fauna marinha move a sua atenção. Um bando de garajaus deu nome a uma ponta: a Ponta do Garajau. Os lobos-marinhos que, no dizer do cronista, “era enquanto, e não foi pequeno refresco para a gente, porque mataram muitos deles, e tiveram na matança muito prazer e festa” (FRUTUOSO, 1873, 40), deram nome à Câmara de Lobos. No ano imediato, tratou-se do assentamento e reconheceu-se a terra que ficara no desconhecimento: a Ponta do Pargo, assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: “e o maior que até aquele tempo tinham visto, pela razão do qual peixe ficou nome aquela Ponta a do Pargo” (Id., Ibid., 69). O facto de a toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os navegadores depositavam nesta riqueza e do empenho com que a observavam: Porto das Salemas (Porto Santo), Baixa da Badajeira (Madeira), Porto do Pesqueiro (Madeira). Os mares da Madeira eram ricos em variedades e quantidades de peixe, como confirmam inúmeros visitantes estrangeiros. Em 1853, Isabella de França refere o chicharro, o peixe-espada, o gaiado, o atum, a abrótea, o pargo, o cherne, a garoupa, a tainha, o salmonete, a pescada, e o congro. A sua apreciação destes peixes faz-se pela sua aparência, e não pela degustação, pois deverá tê-los visto na praça ou nos portos das localidades por onde embarcou. A respeito do atum, tece o seguinte testemunho: “O atum é feio e escuro, de cerca de seis pés de comprido, carne avermelhada e grossa. É um espectáculo dos mais ridículos ver o campónio regressar a casa com a cabeça do atum na extremidade do bordão. A pesca do atum não corre sem perigo, pois já se tem visto puxar um homem pela borda fora” (FRANÇA, 1970, 117). Já em 1817, o governador Lúcio Travassos Valdez informa do envio, pelo mercador João Baptista Gambaro, estabelecido em Câmara de Lobos, de dois barris de atum, conservado de diversas formas (cozido, salgado e seco), que poderia ser uma alternativa ao bacalhau estrangeiro no abastecimento às embarcações. Desta forma, durante muito tempo, a disponibilidade do peixe estava limitada aos sistemas de conservação disponíveis. O peixe fresco era um privilégio quase só das zonas ribeirinhas e com portos de pesca. Aos demais, ficava o peixe salgado ou seco. Foi assim até que se começou a desenvolver a indústria de conservas, fundamentalmente de atum, em princípios do séc. XX, no Porto da Cruz (1909), no Paul do Mar (1912), em Pedra Sina (1939), no Penedo do Sono, em Porto Santo (1944), no Machico (1949). Atente-se que, na Madeira, o incremento da congelação só aconteceu a partir de 1972, sendo a primeira unidade criada em 1966, pela empresa Somagel. Por outro lado, a revelação e a descoberta do mar ganharam interesse devido à possibilidade de fruição das riquezas piscícolas. Mas a atenção do europeu ao mar não se orienta apenas neste sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, perceber os sistemas de correntes e ventos, compreender os acidentes da costa, os baixios, etc. É neste contexto que os portugueses iniciam uma ação pioneira que irá permitir o melhor conhecimento do mar e das suas possibilidades e recursos. As pescarias e as viagens de navegação e de descoberta ao longo da costa africana confundem-se. Os madeirenses pescavam nas costas da Berberia, um dos melhores bancos de peixe do Atlântico, como se conclui duma reclamação dos pescadores, em 1596, sobre o tributo que pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que de lá traziam. A pesca foi, a par da atividade agrícola, uma ocupação das gentes insulares ribeirinhas. Aliás, num espaço como a Madeira, onde a orografia condicionou a circulação terrestre, o mar é a via fundamental que liga os vários núcleos de povoamento que, por esse motivo, no início, se anicham no litoral. O mar foi o meio de comunicação mais usual e importante da comunidade insular, verificando-se a valorização da construção naval; ela surge, não apenas com a finalidade de assegurar o fornecimento de embarcações de cabotagem, mas também para dar apoio à navegação atlântica, no reparo das embarcações fustigadas pelos acidentes ou pelas tempestades oceânicas. Os estaleiros de construção e reparação naval proliferavam nas principais ilhas do meio insular, sendo esta atividade transformadora regulamentada e apoiada pelas autoridades locais e centrais, que, por exemplo, asseguravam as licenças necessárias para o corte das madeiras e definiam as dimensões e a capacidade das embarcações a construir. Os estaleiros de reparação e construção naval da Madeira situar-se-iam no Funchal, principal porto da Ilha, e em Machico, sede da capitania do norte, onde as madeiras eram abundantes. A construção de embarcações para a pesca está testemunhada desde o início da ocupação da Ilha. João de Barros refere mesmo que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz fizeram duas embarcações no Porto Santo, certamente com troncos de dragoeiro, tal como refere Frutuoso. Ao contrário do que acontece no início do séc. XXI, a pesca não era uma atividade exclusiva de alguns núcleos do sul; na verdade, alargava-se a toda a Ilha, apesar de se ter evidenciado mais na vertente sul. Para o ano de 1889, existe referência a 2158 pessoas ocupadas na atividade da pesca, para um total de 493 embarcações, 338 das quais estavam empenhadas na faina do atum e 121 na do gaiado. A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. Em 1595, foi capturada a primeira baleia na zona; sabe-se que outra rendeu 64.000 réis em 1692, enquanto uma terceira, já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis. Em 1741, Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a resistência das indústrias da Baía, temerosas da concorrência, impediu-o de levar por diante tal objetivo. A indústria em questão só terá lugar após a Primeira Grande Guerra, conhecendo-se três fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade, nos primeiros anos do séc. XX, altura em que surgem a fábrica da Ponta da Cruz, de João A. Júdice Fialho (1909), a fábrica do Paul do Mar, de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia Formosa, a fábrica de Pedra Sina, em S. Gonçalo, de Maximiano Antunes (1939), a fábrica de Machico (1949), de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís Nunes Vieira, e a fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui, o pescado da Ilha passará a ter dois destinos – o consumo público e a indústria de conservas –, o que veio permitir um aumento das capturas. Até então, o único destino era o consumo público, sob a forma de fresco ou salgado. Tenha-se em conta o interesse nas salinas em Câmara de Lobos e na Praia Formosa, de que existem testemunhos desde o séc. XVIII, mas que nunca adquiriram grande dimensão e interesse. É evidente a preocupação das autoridades no sentido da preservação deste recurso marinho. Assim, em 1547, a vereação acusa alguns pescadores de cana de usarem foles e redes, mantado a “criação de peixe” e o “peixe miúdo”, proibindo tal ação com a pena de 500 reais. Esta determinação passou a postura, sendo a pena de 1000 reis, que subia para 2000 réis, no caso de o visado ser pescador. A medida voltou a ser recordada em 1623. Ao longo dos tempos, continuamos a assistir a esta manifestação de interesse pela preservação deste recurso, que se alarga, em épocas posteriores, ao combate ao sistema de pesca através de bomba. Os aparelhos usados na armação da pesca na primeira década do séc. XX são referidos por A. Loureiro. Também se defendeu a indústria por meio de regulamentos que delimitavam a forma da pescada quanto às redes a usar e que, no séc. XIX, restringiam o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da Ilha e na Ponta de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877, recomendando ao governador medidas contra essa prática. O pescado chegava mais ao Funchal, onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo, sucedia que as diversas localidades da vertente sul, embora dispondo de núcleos piscatórios, se debatiam quase sempre com a sua falta, pelo facto de os pescadores preferirem a sua venda na cidade. As autoridades municipais foram portanto forçadas a tomar medidas. Em Machico, os pescadores da vila estavam obrigados a venderem aí 1/4 do pescado, passando, em 1640, para 1/3; no ano de 1638, esta limitação de saída era total, sobretudo na época da Quaresma, em que o consumo de pescado aumentava. Por outro lado, em 1751, não obstante recomendar-se que a venda do pescado fosse feita primeiro à população local, podendo as sobras ser depois levadas ao Funchal, refere-se o privilégio dado a algumas embarcações para o fornecimento, fora desta regra, ao convento de S. Francisco, ao juiz dos Resíduos e às capelas do Funchal. Já na Ponta do Sol, a Câmara proibiu, em 1704, a sua venda para fora do concelho e, em 1727, obrigava os pescadores a irem todos os dias ao mar, sob pena de 2000 réis. Idêntica obrigação existia em Machico para o ano de 1679, onde os pescadores preferiam o serviço de barqueiros ao da pesca. Atente-se que, em 1674, na Ponta de Sol, o arrais de um barco foi preso por não trazer peixe do mar. Mesmo assim, o Funchal não estava devidamente abastecido de pescado, necessitando de importar arenque salgado de Inglaterra. A prova disso está no facto de o foral de 1516 isentar os ingleses do pagamento do dízimo. Em 1768, o governador e Cap.-Gen. Sá Pereira, em carta ao conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, testemunha sobre uma representação dos moradores da Madeira, “sobre o promover-se a pescaria tão útil, e tão necessária aqui para que este povo possa livrar-se da miséria, a que está reduzido por falta de alimento, obrigado a sustentar-se de carnes, e peixes salgados, e corruptos, que aqui introduzem os Ingleses com grave prejuízo dos seus habitantes” (SANTOS, 2010, 368). Em 1771, o mesmo governador, no capítulo 26 do regimento dado ao Porto Santo, penaliza os moços indigentes, obrigando-os a dedicarem-se à agricultura ou às pescas. Já em 1783, o corregedor organiza um regulamento para as pescas nas ilhas da Madeira e Porto Santo – o Estabelecimento das Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo –, que não teve efeito. Finalmente, em 1792 foi autorizado o estabelecimento de uma Fabrica de Pescaria, e Salinas, a ser instalada na Praia Formosa. E em novembro de 1822 foi formada uma Sociedade Piscatória na Madeira, com intuito de promover as pescarias, vindo, para o efeito, pescadores de Sesimbra para ensinar aos madeirenses as artes da pesca. Tais carências levavam a Ilha a importar peixe seco e salgado de Lisboa, do Algarve, das Canárias, de Santa Cruz da Berberia, de Cabo Verde, da Irlanda, da Escócia, da Noruega, da Suécia, da Dinamarca, do norte de França, da América do Norte e da Terra Nova. Os ingleses eram quem mais abastecia a Ilha deste peixe importado, muitas vezes com qualidade duvidosa, pois foram insistentes as reclamações sobre a venda de peixe podre. De acordo com informações da imprensa do Funchal, a partir do último quartel do séc. XIX, são frequentes as referências ao abastecimento do Funchal com peixe, lapas, caramujos e carne das cagarras das ilhas Selvagens. Os proprietários das ilhas organizavam campanhas temporárias com trabalhadores para a caça e a pesca, retornando ao Funchal com elevadas quantidades de produto salgado ou seco para venda na cidade. A faina da caça às cagarras e aos coelhos e da pesca ocorria entre os meses de agosto e outubro. No retorno, os trabalhadores enchiam a embarcação que os trazia de volta com caixas de lapas, caramujos, engodos, barris de salga de coelhos, cagarras, e peixe, sacos de penas de cagarra e óleo de cagarra. O peixe era fundamentalmente o atum, a cavala e o gaiado, que descarregavam no Funchal ou em Câmara de Lobos. Em 1907, sabemos da safra de 13.000 gaiados que foram vendidos no Funchal a 240 réis ao kg. Já em 1912, a safra foi de 16.000 gaiados, havendo problemas entre os pescadores e a firma proprietária quanto à distribuição dos quinhões. Os mares das Selvagens eram, assim, ricos em pescado, alcançando o imposto do mesmo, no primeiro quartel do séc. XX, valores elevados, apenas suplantados pelo Funchal e pela Câmara de Lobos. A faina nestas paragens era sempre complicada, acontecendo, por diversas vezes, naufrágios e situações de falta de mantimentos, indo, muitas vezes, as embarcações arribar à ilha vizinha de Tenerife. Desta forma, em novembro de 1916, os pescadores regressados ao Funchal mandaram celebrar uma missa de ação de graças na igreja de S. Gonçalo, por não terem sido vítimas de qualquer desastre. A pesca e a venda do peixe fresco, resultante desta faina, ou seco e salgado, por importação do estrangeiro ou de produção própria na Ilha, estavam sujeitas a apertadas medidas de controlo que consideravam a salvaguarda da saúde e a sanidade públicas e também a especulação dos vendedores. Aqui é clara uma evidência: em terra banhada pelo mar, onde o peixe abunda, o peixe da safra local era limitado e parece que a faina era pouco atrativa para os homens do mar, que preferiam dedicar-se à função de barqueiros nas ligações costeiras. Desta forma, são insistentes as reclamações das vereações municipais, quanto à sua falta como à coação dos pescadores para irem ao mar. Em 1847, foram estabelecidas isenções de direitos à entrada de peixe salgado, para suprir problemas de fome. Sabemos que, no ano imediato, a sua importação foi de 6464 arrobas, na sua maioria da Terceira, de Portimão e de Lisboa. A venda do pescado era feita na praça, de acordo com condições estabelecidas pelas posturas. Estava proibida a revenda do peixe fresco ou salgado sem licença dos oficiais da câmara. O peixe que sobrava de um dia para outro era salpresado e, depois de mostrado aos almotaceis, poderia ser vendido. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tabelados e a todos os que o procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que, através dos seus escravos, procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras. A carência de peixe é uma constante na Ilha, acusando a vereação, em 1547, de os madeirenses não quererem ir pescar, pois “onde devem de ir pescar quatro vezes na semana muitas vezes não vão senão uma e isto porque a tal preço dão o peixe que assim se remedeiam com um dia de trabalho na semana como se todos os dias trabalhassem [...]” (COSTA, 1998, 404). Desta forma, os homens-bons da Ponta Sol, em 1782, assistiam, no Calhau, à distribuição do peixe. As praças para a venda do peixe existiram em todos os municípios, sendo uma forma de regular e fiscalizar a venda do pescado. Na sua falta, o peixe vendia-se em locais determinados pela câmara, como sucedia em 1856, na Madalena do Mar. Temos notícias das praças da Ponta de Sol, em 1840, a qual foi reformada em 1931, do Porto Moniz, em 1894, de S. Vicente, em 1896, e do Porto Santo, em 1889. A do Funchal existe desde o séc. XV, tendo sido ampliada em 1730. Sabemos ainda que, desde 1546, existia no Funchal uma rua do peixe, que pode estar associada a este espaço público de venda. A partir de 1840, temos o mercado do peixe de S. Pedro, reformado em 1880 e 1889, e em 1940 integrado no mercado dos lavradores. A lota aparece no arquipélago da Madeira em 1953, no Funchal, seguindo-se outras em Câmara de Lobos, Machico, Santa Cruz, Paul do Mar, Porto do Moniz, Porto Santo, Caniçal, Ribeira Brava e Calheta. A lota passa a substituir o calhau como espaço de primeira venda da safra, por leilão ou contrato. Os funcionários municipais, almotaceis e guardas-mores da saúde tinham especial cuidado na fiscalização do pescado fresco ou seco que se vendia na Ilha. O pescado salgado ou seco importado, nomeadamente pelos mercadores ingleses, não era apresentado para venda nas melhores condições, obrigando, inúmeras vezes, os funcionários da saúde a intervir, gerando alguns conflitos com esta comunidade. Em 1634, os comerciantes ingleses Roberto Veloni e Diogo Dom são acusados por colocarem à venda, em lojas suas onde empregavam vendedeiras, peixe (bacalhau e sardinha) em más condições. Em 1813, repete-se esta situação, com a casa inglesa Murdoch Yuille Wardop & Comp a reclamar uma indemnização pelo pescado lançado ao mar pelo guarda da saúde. Nesta mesma data, o bispo, em visita à Camacha, refere o uso na alimentação de arenques e cavalas salgados que, trazidos pelos ingleses, se apresentavam muitas vezes em má qualidade e deitavam um mau cheiro. A Madeira importava pescado seco e salgado de diversos portos nacionais e estrangeiros. Torna-se difícil entender a razão desta importação de peixe seco ou salgado, tanto mais que os mares da Ilha eram ricos em peixe. Para além de poder ser uma imposição desta comunidade inglesa, com domínio quase total do mercado da Ilha, poderão ser outras as razões para esta valorização do pescado importado, ainda que de má qualidade pelas condições de acondicionamento. Em 1827, Alfred Lyall afirmava que “há grande abundância de peixe, de grande variedade e de muitas espécies, normalmente muito bom, mas talvez inferior em sabor e firmeza na sua carne, quando comparado com o dos nossos mares” (SILVA, 2008. 111). A necessidade de assegurar a subsistência dos colonos obrigou ao aproveitamento dos recursos disponíveis no meio com valor alimentar, como foi o caso da pesca, uma atividade das populações ribeirinhas. O peixe foi também um dos recursos mais valorizados no início da ocupação da Ilha. A prova disso está no imposto lançado, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, este era cobrado pelos Jesuítas que, desde a segunda metade do séc. XVI, tiveram assento na Ilha. O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do calhau, depois Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores, cuja influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma comunidade de homens do mar com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. O grupo de madeirenses com ligação ao mar era elevado, mas parece existir uma predileção pela atividade ligada ao transporte costeiro, em detrimento da pesca. Os municípios instavam os homens do mar para irem à pesca, mas estes preferiam outros serviços mais remunerados. Em 1889, temos, em toda a Ilha, 2158 indivíduos associados a 493 barcos (127 de 4 remos, 200 de 2 remos e 121 canoas). Destes, como já referido em cima, 338 estavam dedicados à faina do atum e 121 ao gaiado, assumindo estas duas espécies uma importância dominante nas pescarias. A pesca ocupava, em 1914, mais de 1500 pescadores com 537 embarcações; já em 1931 existiam 1500 pescadores, que usavam 24 embarcações a motor e 508 à vela ou a remos. A partir de 1853, os governadores civis atuaram no sentido da valorização dos portos de pesca do arquipélago com diversos melhoramentos. O desenvolvimento de algumas indústrias no séc. XX levou à sua valorização. Em 1908, Vicente de Almeida D’Eça refere os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, São Jorge, Ponta Delgada, São Vicente, Seixal, Porto do Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara de Lobo e Porto Santo. Em 1909, Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e Porto Santo. Esta situação é também testemunhada por Orlando Ribeiro, em 1947, quando esteve na Ilha em estudos, afirmando em 1949 que “nas encostas da Madeira a cada abrigo correspondia um porto de pesca” (RIBEIRO, 1985, 104). Os mares da Madeira, embora não tão ricos como os do continente, apresentavam uma variedade significativa, pois podia-se pescar desde moluscos (lapas e caramujos), a crustáceos (caranguejo) e peixe (alfonsinho, bodião, boga, castanheta, chicharro, cavala, chicharro, mero, moreia, pargo, peixe espada preto, sardinha, salmonete, solha, tunídeos). São ainda assinalados diversos pesqueiros, isto é, espaços marinhos próximo à costa, onde este pescado aparece com abundância: Pedras, Cabeço Baixinho, Cabeço do Moinho, Largo do Mesinho, Pé da Poita, Pedra Lage, Pedra do Marracho, Pedra do capitão, e Canto do Porto.   Direitos e tributos O pescado estava sujeito a diversos tributos sendo, no início, considerado como uma renda dos capitães, que auferiam, pela sua exploração, o foro e o dízimo. A 26 de setembro de 1433, o infante D. Henrique recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas da Madeira, de Porto Santo e das Desertas. Ainda nesta data, a Coroa, a pedido do infante D. Henrique, concedeu todo o cuidado espiritual das ilhas à ordem de Cristo, reservando para si o foro e o dízimo do pescado. Este dízimo foi abolido a 5 de abril de 1808, por ordem de Beresford, aquando da ocupação inglesa da ilha da Madeira. No Porto Santo, a referida abolição ocorreu em 1832. O dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca, no Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, era cobrado pelos Jesuítas. Temos dados sobre a arrecadação deste rendimento para os anos de 1759 a 1761. Já da receita da diocese sabemos que, em 1517, era de 200$000 réis, subindo, em 1581, para 363$600 e, em 1583, para 454$500. Este tributo foi abolido, na Ilha, por alvará de 20 de outubro de 1803, situação que só teve efeito durante quatro meses. Entretanto, os pescadores estabeleciam, entre si, alguns compromissos com o valor da faina. Assim, no Caniçal, existiu o quartão, que era o mesmo que um quarto, a parte que cada pescador do Caniçal tirava do seu quinhão da pesca para o pároco da freguesia, como forma de custear as despesas de serviço religioso, em seu benefício, durante o ano. Eram reservados ainda outros quartos – para as festas da Senhora da Piedade, de S. Sebastião, do Espírito Santo e do Santíssimo Sacramento. A par destes, existiram outros tributos de cariz social, como o socorro que apoiava os companheiros doentes, e o quinhão morto para acudir a qualquer desastre, do qual, no fim do ano, entre 25 de dezembro e 1 de janeiro, era distribuído o sobrante entre todos, sendo conhecido como a ajuda do pão-da-festa ou passadia. Em 1937, surgiu a Associação de Socorros Mútuos dos Pescadores da Madeira, que em 1953 deu lugar à Casa dos Pescadores, com instalações em Machico e Câmara de Lobos (1939), no Paul do Mar (1944), no Funchal (1950) e no Caniçal (1954). Em 1817, na tabela dos direitos ad valorem cobrados no Funchal, temos a indicação da sua cobrança sobre o peixe fresco, com sal ou de conserva, relativamente às seguintes espécies: atum, chicharro, carapau, lampreia, salmão e sardinha. Em 1954, o imposto ad valorem, de 3 % sobre o pescado, rendia à câmara do Funchal 115.000$000 escudos. O imposto de pescado era uma receita do Estado e da Câmara Municipal. No reinado de D. Maria, foi determinado, por alvará com força de lei, de 20 de junho de 1787, que fossem levantados os impostos sobre o pescado, porque haviam contribuído para a situação de decadência a que tinham chegado as pescarias do Reino e das ilhas adjacentes. O imposto sobre os barcos de pesca e pescarias (1830/1843), foi criado por decreto de 9 de novembro de 1830, sendo substituído, em 10 de julho de 1843, por outro imposto, de 6 % sobre os lucro da venda do pescado fresco, nomeadamente sobre as partes ou quinhões, excetuando apenas as comedorias, as caldeiradas, as restomengas e as carnadas; a sua coleta foi atribuída à Junta do Crédito Público. Pela lei de 10 de julho de 1843, só eram obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercessem a sua indústria em água salgada e somente naquela parte dos rios até onde chegassem as marés vivas do ano. Pelo decreto de 3 de dezembro de 1891, foram criados, na dependência do Ministério dos Negócios da Fazenda, diversos postos fiscais, com a missão especial de cobrar o imposto de pescado. Este imposto, cobrado pela Guarda Fiscal, era também conhecido como dízimo, e só foi abolido por decreto-Lei n.º 237/70, de 25 de maio. Sobre a cobrança do imposto de pescado encontramos as seguintes informações: em 1921, era de 59.257$96 escudos, sofrendo uma quebra significativa, no ano imediato, para 4346$48; em 1933, era de apenas 1259$52.   Peixe à mesa Por fim, importa verificar qual a importância que os recursos marinhos assumem no quotidiano e na alimentação dos madeirenses. A dieta dos madeirenses baseava-se no aproveitamento dos recursos disponíveis com valor alimentar, isto é, a caça e pesca e os derivados da atividade pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido importante na atividade das populações ribeirinhas, que usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe. Através dos livros de receita e despesa, podemos acompanhar o dia a dia da mesa conventual, onde é regular a presença de carne e peixe, frescos ou salgados. No convento da Encarnação, a mesa dos sécs. XVII e XVIII era farta. O pão corria todos os dias à mesa, acompanhado de carne ou peixe. O peixe comia-se às quartas, sextas, sábados e dias prescritos pela Igreja. Poderia ser bacalhau, atum sardinha, arenques, pargos e chicharros. Mas nem sempre foi assim, uma vez que, por diversas vezes, foi manifestada a dificuldade no abastecimento de peixe aos conventos, o que fez com que estivessem isentos da obrigação da abstinência. A abstinência da carne era geral na altura da Quaresma, o que elevava o consumo de pescado. As pastorais determinavam regras sobre o consumo de carne e peixe pelos fiéis. Assim, a carne não podia ser misturada com o peixe e todos aqueles que estavam sujeitos ao jejum só podiam servir-se da carne ao jantar, sendo exceção os domingos, onde o consumo estava facultado. Daqui resulta a tradição popular do consumo da carne aos domingos. A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O pouco que se sabe resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Esta servia-se quase só do que a terra dava, isto é, frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Consumia-se algum peixe fresco ou seco, pescado na costa, mas a carne e o pão parecem ser uma raridade. Esta frugalidade está presente em todos os testemunhos de autores estrangeiros. Assim, na segunda metade do séc. XVIII, George Forster destaca que “os camponeses são excecionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne” (FORSTER, 1986, 72), mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, que era o principal ingrediente na alimentação do camponês. A isto juntava-se o consumo de peixe fumado ou em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto ao inhame, à batata e ao pão. O peixe consumido era o bacalhau dos Estados Unidos e o peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa, destacando-se o arenque de fumo ou de salmoura, muito apreciado pelo povo como conduto para o pão e as batatas. Esta situação ainda perdurava na década de 50 do séc. XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de duas toneladas eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e as indústrias de conservas. No Funchal, existia uma praça onde este era vendido aos interessados de acordo com uma lista de prioridades. Primeiro, deveriam servir o capitão, depois os conventos e os oficiais da governança e, finalmente, o povo. Em 1732, o bispo tinha um barco que provia às suas necessidades de pescado. Na Ponta de Sol, em 1782, um homem bom do concelho assistia a esta distribuição do pescado. A generalização das praças e dos mercados do peixe nos demais concelhos só aconteceu muito mais tarde: no Porto Santo, em 1889, no Porto Moniz, em 1894, e em S. Vicente, em 1896.   Ciências do mar O mar não foi valorizado apenas como recurso económico. Já a partir do séc. XVII se regista o seu valor científico com os diversos estudos realizados. A passagem pelo Funchal de alguns cientistas ingleses propiciou uma primeira descoberta de muitas das raridades da fauna marinha nos mares madeirenses. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane (1687) e James Cook (1768 e 1772). No decurso do séc. XIX, redobrou o interesse pela Ilha por parte de súbditos ingleses residentes ou de passagem pelo Funchal. Destes, podemos destacar os estudos de Richard Lowe (1833-1846), interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate Johnson seguiu-lhe o encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900. O empenho dos madeirenses no estudo da fauna marinha poderá ser assinalado com os estudos de João José Barbosa du Bocage. O primeiro apelo neste sentido foi feito por José Silvestre Ribeiro quando, em 1850, criou o Gabinete de História Natural, que desapareceu com a sua saída, em 1852. A aposta no estudo e na divulgação dos recursos marinhos só aconteceu mais tarde, com a criação do Aquário do Museu Municipal, que foi aberto ao público em 1951. A publicação do Boletim do Museu Municipal, desde 1945, e os estudos de Adão Nunes, de Adolfo César de Noronha e de Günther Maul vieram a revelar quão rico é o património marinho madeirense.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

Biologia Marinha História Económica e Social

pelourinhos

O pelourinho, inicialmente designado por picota, é uma coluna de pedra colocada num lugar público de uma cidade ou vila como símbolo do município e da sua jurisdição. Tudo parece indicar que deriva de costumes muito antigos, designadamente, da ereção nas cidades do ius italicum das estátuas de Mársias ou de Sileno, símbolos das liberdades municipais na Roma da Antiguidade. Remete também para a columna ou columna moenia romana, um poste ereto em praça pública no qual os sentenciados eram expostos No nordeste de Portugal, alguns pelourinhos aparecem associados aos berrões, estátuas de pedra da tribo pré-céltica dos vetões, mas essa associação pode ter sido induzida por acontecimentos posteriores e, muito provavelmente, pelas campanhas românticas de recuperação patrimonial, nos meados do séc. XIX. Nas épocas mais recuadas, eram pendurados nos pelourinhos alguns avisos municipais e, pontualmente, eram punidos e expostos os criminosos locais, embora na Madeira tal fosse feito, em princípio, no tronco. Este último termo significava “cepo com olhais, onde se prende o pé ou o pescoço” de um criminoso (SILVA, 1958, XI, 303), mas passou, logo nos finais do séc. XV e inícios do XVI, a indicar também prisão e cárcere, pelo que não é muito fácil entender a diferenciação entre tronco e prisão, parecendo utilizar-se a primeira palavra para os casos de reclusão de um alegado criminoso municipal e a segunda já para o cumprimento efetivo da pena. Os pelourinhos foram, pelo menos desde os finais do séc. XV, considerados o padrão ou o símbolo da liberdade municipal. Embora alguns historiadores, na sequência de Alexandre Herculano, entendam que o termo só começou a aparecer no séc. XVII, em substituição de “picota”, dado como sendo de origem popular, nos meados do séc. XVI, já existia na Madeira. Com efeito, “pelourinho” consta na planta do Funchal de Mateus Fernandes (III) (c.1520-1597) (BNB, Cart., 1090203), no largo que com essa denominação chegou até ao séc. XXI, sendo também referido assim, por volta de 1586-1590, em Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (1522-1591). A ida de um pelourinho para o Funchal deve-se ao jovem duque, futuro Rei D. Manuel (1469-1521), que enviou o seu ouvidor Brás Afonso Correia e o seu contador Luís de Atouguia, com provimento e regimento de 4 de julho de 1485, para demarcarem o chamado chão do Duque, o que foi feito a 5 de novembro do mesmo ano. O documento em causa referia que o duque, “por nobreza e honra” e “para boa ordem” da Ilha, cedia o chão para o concelho fazer uma praça “e nela uma boa câmara para o concelho, sobradada e que fosse tão grande e tal, que na lógia debaixo se pudessem fazer as audiências”. Além disso, queria que na dita praça “se fizesse uma casa para paço dos tabeliães, e por conseguinte se fizesse nela” também “uma muito boa picota” (ARM, Câmara..., fls. 25-25v.) (Urbanismo). O pelourinho do Funchal foi enviado pelo duque D. Manuel, por certo nesse ano de 1485, e foi colocado no largo em frente à igreja de S.ta Maria do Calhau, embora do outro lado da ribeira, que passou a ser designado “do Pelourinho”. Ao saber disso, em 1486, D. Manuel determinou que o pelourinho fosse levado para o largo previsto, junto da futura Câmara, no chamado chão do Duque, conforme a sua determinação anterior. Insistiu então: “E a picota onde a pusestes não me parece que esteja bem, porque não deve estar senão na praça onde está em todos” os outros municípios, assim, “ainda que nisso se faça algum gasto, encomendo-vos que para lá a mandes mudar” (Id., Ibid., 25v.-26). O pelourinho inicial era em madeira, pois na vereação de 23 de dezembro de 1488 o juiz Álvaro de Ornelas, os restantes vereadores e homens-bons, entre os quais Garcia da Vila, que tinha o pelouro das obras, determinaram “que se fizesse de pedraria o pé da picota na praça do campo do Duque, onde ora está a picota de pau”, mandando arrecadar para isso os 2$000 réis “que eram julgados pelo ouvidor para a dita picota” (COSTA, 1995, 228). Um mês e pouco depois, a 7 de fevereiro 1489, na vereação camarária do mesmo dia, pagou-se ao pedreiro Antão de França “o acarretar as pedras da picota ao chão do Duque, e de desfazer e tornar a fazer no dito chão onde ora está feito, e pôr a pedra miúda, e pôr cal, e de suas mãos armar o pé da dita picota, como está na praça junto com a Alfândega” velha (Id., Ibid., 238). Tudo parece indicar que chegou a haver dois pelourinhos, um em madeira e que seria o inicialmente enviado por D. Manuel, na praça junto da Alfândega, ou seja, na futura praça do pelourinho, e outro que tinha, pelo menos, uma base de pedra (em calcário-brecha da Arrábida) e que terá sido expedido do continente e das oficinas régias, sendo montado em fevereiro de 1489, no campo do Duque. Nos anos seguintes, com a construção da nova igreja, cujas obras começaram nos finais da déc. de 90 do séc. XV (Sé do Funchal), o pelourinho de pedra terá voltado ao seu antigo lugar, tal como está representado na planta do Funchal de 1567-1570. A 11 de fevereiro de 1492, o procurador recebeu de “André serralheiro” dois colares e duas algemas estanhadas para a picota (Id., Ibid., 336). Parece assim que se preparava a picota para servir de local de justiça. Mas, logo na vereação de 19 de setembro 1495, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530), futuro terceiro capitão do Funchal, foi convocado para que, como “alcaide-mor” (Alcaide e Alcaide-mor), “desse e fizesse tronco, em que se metessem todos os que fossem presos de noite e outros que se levariam perante os juízes, por dívidas e outras coisas leves e civis” (Id., Ibid., 389). O futuro capitão respondeu que tal já estava assegurado, utilizando-se para o efeito a casa do alcaide pequeno; não há mais referências a esse respeito, nem à utilização do pelourinho, habitual em casos de justiça municipais. Com a União Ibérica, deu-se um caso algo inédito em relação ao pelourinho no Funchal. Nos inícios de 1583, ocorreram vários incidentes implicando soldados do presídio castelhano (Presídio) e funchalenses, tendo intercedido o juiz da cidade, Manuel Vieira e sendo libertados os soldados envolvidos. No entanto, a 6 de março, envolveram-se soldados e populares, num confronto físico que passou a fazer-se à espada, resultando um português morto, Tomé Andrea, natural de Aveiro e tripulante da frota do Brasil retida na Ilha, e três soldados veteranos do presídio feridos, um deles com gravidade. Nas prisões efetuadas, encontravam-se os três veteranos envolvidos e um dos principais autores do desacato, o soldado Francisco de Espinosa. Os juízes do Funchal acabaram por determinar a pena de morte para este soldado, entregando Gaspar Afonso de Magalhães a sentença ao governador, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598). O conde não aceitou de ânimo leve o veredicto, mas ao cabo de várias pressões acabou por mandar sentenciar Francisco de Espinosa no pelourinho, algo perfeitamente inédito no Funchal, referindo-se que tal se fazia pela sua ascendência de fidalgo, pois qualquer pena de morte era executada fora da cidade, em princípio, no Lg. da Forca. Acresce que a pena de morte era da exclusiva responsabilidade régia e não encontrámos documentação da sentença ter ido à aprovação do monarca. No século seguinte, existe outra referência a uma sentença executada no pelourinho, mas simbólica e em efígie. Um jovem de famílias sem especiais pergaminhos, o estudante Francisco Rodrigues Jardim, em maio de 1629, apaixonara-se por uma jovem das principais famílias madeirenses, sua vizinha na R. dos Netos: D. Maria de Moura, filha do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos, já falecido, e de D. Catarina de Moura, entretanto casada em segundas núpcias com um primo do ex-marido, Miguel Rodrigues Neto de Atouguia. A família do estudante apoiara o mesmo, participando no rapto da jovem, mas ambos acabaram por ter de fugir para o Brasil. O processo foi levantado pelo corregedor Estevão Leitão de Meireles (Alçadas) e o jovem estudante foi condenado à morte na forca, logo, fora da cidade, em 1631. Dado não se encontrar na Madeira, a família da jovem promoveu o seu enforcamento em estátua no pelourinho da cidade. Pelos últimos anos do séc. XV, o duque D. Manuel enviou, com certeza, exemplares de pelourinho idênticos, e talvez também em madeira, para as vilas e sedes das capitanias de Machico e do Porto Santo, tal como enviou depois, em 1501, para a Ponta do Sol, então elevada a vila, e, em 1502, para a Calheta, e, em 1515, para Santa Cruz. Este último pelourinho era bastante semelhante ao do Funchal e, muito provavelmente, era também em calcário-brecha da serra da Arrábida, pedra utilizada na capela-mor da igreja matriz do Salvador de Santa Cruz. Conhecemos o pelourinho do Funchal através de um desenho de um viajante inglês, datado de 1832 e de dois fragmentos que foram depositados no parque arqueológico do Museu Quinta das Cruzes (MQC). O pelourinho de Santa Cruz foi litografado a partir de um desenho do reverendo James Bulwer (1794-1879), editado em Londres, em 1827, encontrando-se então no local hoje ocupado pelo cruzeiro com as armas dos Freitas (Cruzeiros), que, nessa litografia, ficava mais a poente. A imagem mostra o pelourinho de Santa Cruz com dois fustes de coluna torsos, à semelhança do pelourinho do Funchal, e unidos por um anel relevado, porém, já sem a base, elemento que subsiste nos fragmentos originais do do Funchal. Os pelourinhos de Machico e de Santa Cruz ainda vêm apontados nas plantas do major Inácio Joaquim de Castro, levantadas em 1799, mas do de Machico nada se sabe, devendo ter sido destruído pela aluvião de 9 de outubro de 1803 (Aluvião de 9 de outubro de 1803; Aluviões). Algo idêntico acontecera ao pelourinho da vila da Ponta do Sol, segundo relata Francisco Libânio de Cárceres em texto sobre aquela vila publicado na Revista Madeirense, indicando que, no dia 2 de novembro de 1799, um repentino golpe de mar arrasou a vigia e derrubou o antigo pelourinho que ficava à ilharga da praça. Sobre o pelourinho da Calheta, o Ten.-Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), na planta da Madeira de agosto de 1819, refere que era necessário reativar a bateria do Paul e colocar uma peça militar junto ao pelourinho da Calheta, que ficava a uma dezena de metros abaixo da igreja matriz (Fortes da Calheta), num largo que dava acesso ao caminho que levava ao convento franciscano (Convento de S. Sebastião da Calheta). Como a vila fora parcialmente destruída por uma “grande levadia do mar”, que arrasara o forte e 30 casas, levando ao abandono quase geral da mesma povoação (CARITA, 1982, 64), o pelourinho terá sido destruído por esse fenómeno, em 1799 ou então pela aluvião de 1803. Nada se sabe sobre o pelourinho da vila do Porto Santo, salvo que existe esse topónimo para o largo em frente ao edifício da antiga Câmara Municipal. Mas, como observámos antes, tendo D. Manuel enviado um pelourinho para o Funchal, com certeza que os enviou também para as restantes vilas sedes de capitania. O abandono e os inúmeros saques corsários a que esta Ilha foi entretanto sujeita devem ter feito desaparecer o pelourinho muito mais cedo que nos restantes municípios madeirenses. O pelourinho do Funchal foi mandado demolir pela vereação camarária, em novembro de 1835, dentro da ideologia, então vigente, de que os pelourinhos eram manifestações do Antigo Regime. Em 1989, toda a área foi sujeita a uma completa remodelação e voltou-se a instalar ali um pelourinho, réplica do antigo, mas em calcário de Molianos, tendo-se ainda restaurado o passo de procissão daquela praça. Como restavam dois pequenos fragmentos do pelourinho original no parque do MQC, como adiantámos, em calcário-brecha da Arrábida, um material que se tornara dificilmente disponível, com base neles e no desenho efetuado poucos meses antes da sua demolição, procedeu-se à execução da réplica, inaugurada no dia 21 de agosto desse ano de 1989. A aluvião de 20 de fevereiro de 2010 voltou a afetar gravemente toda a baixa da cidade, mas o pelourinho foi posteriormente restabelecido no local.   Rui Carita (atualizado a 19.11.2015)

Património História Política e Institucional

portão dos varadouros

Antiga entrada da cidade, o portão foi construído em 1689, no tempo do governador D. Lourenço de Almada, na muralha defensiva do Funchal. A partir do séc. XIX, sobretudo quando a entrada da cidade passou para junto do palácio e fortaleza de S. Lourenço, foi perdendo progressivamente o interesse. Foi demolido, entre abril e maio de 1911, na sequência da implantação da República e das questões de poder entre os novos e os velhos grupos de republicanos. Acabou por ser reposto no mesmo local, quase 100 anos depois, em setembro de 2004, no quadro do início das celebrações dos 500 anos da cidade do Funchal. Palavras-chave: defesa; muralhas; República; anticlericalismo.   O portão dos Varadouros, antiga entrada da cidade, foi construído em 1689, no tempo do Gov. D. Lourenço de Almada (1645-1729) e encerrou aparatosamente a muralha defensiva do Funchal. Deixou de ter interesse, progressivamente, a partir dos inícios do séc. XIX, sobretudo dos meados da centúria, quando a entrada da cidade passou para junto do palácio e fortaleza de S. Lourenço, na sequência das obras do cais regional. Com a implantação da República e as questões de poder entre os novos e os velhos grupos republicanos, foi demolido, entre abril e maio de 1911. Acabou por ser reposto no mesmo local, quase 100 anos depois, em setembro de 2004, no quadro do início das celebrações dos 500 anos da cidade do Funchal. Portão dos Varadouros. Arquivo Rui Carita O regimento de fortificação de 1572, logo após o preâmbulo, definia muito concretamente a espessura das muralhas, a maneira de as fazer (de forma a resistirem ao clima marítimo) e o número de portas que a cintura deveria ter (Muralhas da cidade). Assim, o número de portas estabelecido era cinco: duas para serventia do mar, entre a fortaleza existente e a da Pç. do Pelourinho, e três para serviço da cidade, uma junto à ponte de N.ª Sr.ª do Calhau, outra junto às casas de Gaspar Correia, a poente da fortaleza, e a última junto a S. Paulo, na entrada da R. da Carreira, por onde haviam surgido os corsários franceses. O regimento remata com a indicação: “E não haverá mais portas” (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 2, fl. 140v.). A muralha estaria sumariamente levantada na primeira metade do séc. XVII, com as portas indicadas em cima. Citando o cronista Gaspar Frutuoso, por volta de 1590, “no muro da banda do mar tem uma porta de serventia, junto de Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto dos açougues, e outra, que é a mais principal, aos Varadouros, defronte da rua dos Mercadores” (FRUTUOSO, 1968, 111), mais tarde, da Alfândega. Mas nem a muralha nem a porta estavam prontas, concluindo-se quase 100 anos depois. Ao longo da segunda metade do séc. XVII, terminou-se, com dificuldade, o troço da frente mar da muralha, entre as fortalezas de S. Filipe do Lg. do Pelourinho e de S.to António da Alfândega (Reduto da Alfândega). Embora ao longo desse século vários governadores e provedores da Fazenda, como António Nunes Leite (em referência ao ano de 1621), escrevessem que “toda a cidade estava murada” (ANTT, Corpo Cronológico, parte I, mç. 118, doc. 151), a verdade é que não foi bem assim. O espaço compreendido entre as fortificações mencionadas, onde se situava o cabrestante, os açougues e o mercado municipal de peixe, não possuía muro de defesa na verdadeira aceção da palavra. A muralha era então constituída pelos muros das próprias casas, com uma ou outra obra mais ou menos improvisada, como se veio a afirmar. Com efeito, em carta enviada em 1664 pelo provedor Ambrósio Vieira de Andrade, considerando o emprego do dinheiro atribuído às fortificações, o autor refere que quando o Gov. Diogo de Mendonça Furtado (c. 1620-c. 1680) chegara ao Funchal, em 1660, não havia muralha alguma na frente mar, tendo-se até enviado um rascunho do que deveria ser feito para Lisboa, documento que não chegou até nós. Portão dos Varadouros. Arquivo Rui Carita Não sabemos qual foi a resposta enviada ao pedido de 1664, pois só temos informações a esse respeito mais de 20 anos depois. Com efeito, em setembro de 1688, a corte insistiu para que fossem concluídos os “fortes e com boa posição” (ANTT, Provedoria..., liv. 968, fl. 61), iniciando-se então as obras, sob o Gov. João da Costa de Brito (c. 1640-c. 1700), com a indicação de que fossem auscultados os oficiais de guerra mais práticos no assunto. Nesse documento, foi ainda feita uma chamada de atenção para os vários redutos e plataformas que necessitavam de reparo e outros elementos que poderiam precisar de ser revistos ou totalmente reconstruídos. Durante a vigência do governador seguinte, D. Lourenço de Almada, houve uma nova insistência de Lisboa no sentido de se concluírem as intermináveis obras da fortificação do Funchal. Terá sido neste contexto que, em março de 1689, certos técnicos continentais aportaram à cidade: o Cap. de engenheiros António Rodrigues Ribeiro e um ajudante, o estudante de engenharia Manuel Gomes Ferreira, que completaram finalmente a muralha da frente mar da cidade e construíram um portão dentro do gosto maneirista internacional, justamente, o portão dos Varadouros. Este portão representa um certo empolamento para a cidade do Funchal, embora tenha um desenho muito simples, em comparação com os inúmeros portões congéneres levantados por essa época nas praças-fortes continentais. Apresenta dois pares de colunas meias-colunas de cada lado da porta, esta com um arco de volta perfeita e as armas do Funchal ao centro; tem ainda cornija e um largo frontão redondo, encimado pelas armas reais. Sob estas, encontra-se uma inscrição em latim: “Perfecta haec varii praefecti / maenia frusta, praeteriti cu / piunt tempore quisque suo, sed / domino Laurentio ea est seruata / voluptas. D. Almada qui istud fi / ne coronat opus. Anno 1689”, que pode ser traduzir por: “Cada um dos antecedentes governadores de balde se esforçou por concluir estas muralhas; ao senhor Lourenço de Almada estava reservada a satisfação da sua conclusão. Ano de 1689” (SILVA e MENESES, II, 1998, 467). Portão dos Varadouros, 1909. Arquivo Rui Carita O Elucidário Madeirense indica que era por este portão que os governadores e prelados faziam a sua entrada solene na cidade e que tal cerimónia se “revestia sempre de extraordinário luzimento, com a presença do elemento oficial, todas as tropas da guarnição, as pessoas mais gradas da terra, o clero, fidalgos, cavaleiros e muito povo” (Id., Ibid., 468), algo repetido depois por outros autores. Não encontrámos, no entanto, registo coevo de tais cerimónias, nomeadamente na correspondência dos governadores e dos bispos alusivas à sua chegada à Ilha. Assim, a terem acontecido nos moldes descritos, terão sido entradas de carácter excecional. Com a implantação da República, o portão foi alvo de complicada polémica, pretendendo os mais novos a sua demolição imediata, alegando a necessidade de limpeza da área. Efetivamente, grassava na cidade uma epidemia de cólera, mas as razões para esse ato iconoclasta eram essencialmente políticas. O portão ostentava as armas reais e possuía, em anexo, uma pequena capela dedicada a N.ª Sr.ª do Monte dos Varadouros, tudo elementos que os republicanos mais novos queriam fazer desaparecer rapidamente. Os mais velhos, como era o caso do Gov. civil Manuel Augusto Martins (1867-1936), aconselhavam alguma contenção, mas, entre abril e maio de 1911, na preparação das primeiras e polémicas eleições republicanas, efetuadas a 28 de maio daquele ano, o portão foi demolido. As pedras foram guardadas nas arrecadações camarárias, transitando depois para as arrecadações do palácio de S. Pedro (Palácios) e, mais tarde, para o parque arqueológico do Museu Quinta das Cruzes. O recheio da capela, com o retábulo e a imagem de N.ª Sr.ª do Monte, foi entregue à Sé do Funchal, encontrando-se a capela remontada na antiga sacristia desta Catedral, sob a sua torre sineira (Sé do Funchal). Rua da Praia e Varadouros. Arquivo Rui Carita A ideia de remontar o portão foi ensaiada várias vezes pela Câmara Municipal do Funchal, tendo-se iniciado o estudo da recolocação dos materiais e executado os desenhos prévios em junho de 1993. O projeto levantou então alguma polémica, pelo que, somente em setembro de 2004, em parceria com entidades privadas, foi levada a cabo a remontagem, no âmbito e no início das celebrações dos 500 anos da cidade do Funchal.     Rui Carita (atualizado a 18.02.2018)

Património

quinta vigia

A área da grande plataforma sobre a baía do Funchal, em frente aos pequenos ilhéus do porto, onde João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471) e a família se instalaram, foi registada, logo nos meados do séc. XV, pelo primeiro capitão do Funchal, e parte desses terrenos foram aforados depois, pela capitoa viúva D. Constança Rodrigues, em 1484, para subsistência da sua mercearia de Santa Catarina. Pouco sabemos sobre construções na área dos Ilhéus, designação geral advinda dos ilhéus do porto, não registando a planta de Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), em 1567, especiais obras na área, aí nomeada “terras de pão” e com uma edificação no local da futura quinta, mas que poderá indicar somente uma estrutura de apoio agrícola. Poucos anos antes, em 1563, procedera-se à medição dos bens da capela de Santa Catarina, instituída pela capitoa viúva, sem fazer referência a qualquer edificação, mas informando que os terrenos estavam plantados “todos de vinho” e aforados a António Rebelo de Lima (ARM, Juízo..., Capela de Constança Rodrigues, a Velha, cx. 15, proc. 4), embora, pela planta referida, saibamos que depois viessem a estar “de pão” (BNB, cartografia, 1090203). Uma propriedade nesta área é depois mencionada, em 1661, como pertencendo ao sargento-mor do Funchal, Diogo da Costa do Quental (1619-1669) e sua mulher, D. Mécia de Vasconcelos (1608-1692), localizando-se acima de Santa Catarina e do “serrado das Amoreiras” de D. Sancho de Herédia (ABM, Juízo..., t. 1, fls. 276v.-277v.). Em abril do ano seguinte, o sargento-mor e a mulher obtinham a instituição da capela de N.ª S.ª das Angústias e Almas, “cita na sua quinta aos Ilhéus”, podendo celebrar ofícios divinos nesse templo que tinham “dotado com dois mil réis cada um ano de foro” (APEF, Alvarás de..., liv. 1, fl. 33); a autorização fora passada pelo deão, doutor Pedro Moreira (c. 1600-1674) (Sedição de 1668). Pelo testamento do sargento-mor, de outubro de 1668, alguns bens ficaram vinculados ao morgado perpétuo instituído nas Angústias com o encargo de duas missas rezadas “todas as semanas do mundo”, na capela, sendo nomeado herdeiro o sobrinho Diogo Valente do Quental. D. Mécia faleceu um ano depois, onerando a capela com mais uma missa aos domingos e nas nove festas da Virgem, tendo designado como herdeiro também um sobrinho, Jorge de Andrade de Vasconcelos (c. 1630-1692). Dada a obrigação de se celebrarem duas missas por semana, muito provavelmente, datam da déc. de 60 do séc. XVII o retábulo e a imagem de vulto de N.ª S.ª da capela das Angústias, atribuíveis à oficina de Manuel Pereira (c. 1605-1679), autora, na década anterior, do camarim da sé do Funchal. O edifício passou por obras sucessivas nos anos seguintes; a tela do camarim deve ser ligeiramente mais recente, mas estes elementos principais devem datar dessa outra época. Com o falecimento de Jorge de Andrade de Vasconcelos, sem descendência, ficaram herdeiras as suas irmãs, também sem filhos, Beatriz de Menezes, Bernarda de Vasconcelos e Serafina de Andrade e Vasconcelos, pelo que, por testamento da última, aprovado a 12 de maio de 1702, foi nomeado herdeiro um sobrinho, um dos maiores proprietários da época, o morgado Francisco de Vasconcelos Bettencourt (1644-1717), casado com Guiomar de Sá (1654-1682), e embora Serafina de Andrade e Vasconcelos só viesse a falecer a 10 de dezembro de 1709. O morgado Francisco de Vasconcelos Bettencourt, “o Novo”, era senhor de avultados bens e deve ter assumido alguns encargos ainda em vida da sua tia Serafina, o que se coaduna com a aprovação do testamento em que é nomeado herdeiro, alguns anos antes do falecimento da mesma. A capela de N.ª S.ª das Angústias foi remodelada entre a última década do séc. XVII e os primeiros anos de Setecentos, sendo o interior dotado de um lambrim de azulejos com cenas da vida de S.to António de uma oficina de Lisboa próxima da de Gabriel del Barco (1648-c. 1708). Do começo do séc. XVIII é a execução do frontal de altar a imitar embutidos marmóreos, obra de Carlos Braunio, provavelmente, um frade franciscano italiano dos arredores de Milão, de Braunio, que terá estado no convento de S. Francisco do Funchal e que deixou na Madeira um frontal semelhante, assinado e datado de 1709, hoje na capela da Consolação, na R. da Levada de Santa Luzia, mas proveniente daquele convento. A importância da capela na família está patente no batizado da neta Inácia Maria Rosa de Sá Vilhena, em 1710, vindo esta quarta filha do futuro morgado Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt (1681-1741) e de sua mulher D. Mariana Inês de Vilhena (c. 1680-1755) a casar-se com o capitão-mor Mendo Brito de Oliveira (Ordenanças e Vilhena, D. Guiomar). Nos primeiros anos do séc. XVIII a capela foi, assim, reabilitada. Foram reaproveitados para a fachada, provavelmente, elementos da construção anterior, devendo-se ter procedido também a trabalhos nas casas anexas, para norte, onde poderão ter habitado as irmãs Beatriz de Menezes, Bernarda de Vasconcelos e Serafina de Andrade e Vasconcelos. As obras e a propriedade efetiva da capela e do morgadio das Angústias só passaram para os Bettencourt de Vasconcelos em 1710, pois D. Serafina de Andrade e Vasconcelos faleceu a 10 de dezembro de 1709, como dissemos, e não consta que os netos do anterior proprietário tivessem sido ali batizados. Infelizmente, as complexas obras que foram efetuadas no edifício, no seu lado norte, durante o século seguinte, quando serviu de apoio aos serviços de instalação de algumas das mais importantes figuras da aristocracia europeia, na parte localizada a sul, impossibilitam uma análise mais aprofundada do imóvel. Quinta Vigia - Illustrated News. 1870. Arq. Rui Carita O morgado Francisco de Vasconcelos Bettencourt faleceu a 4 de outubro de 1717 e os seus bens passaram para o filho, Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt, um dos mais ativos fidalgos e comerciantes do seu tempo, que, falecido a 29 de novembro de 1741, deixou como herdeiros a mulher D. Mariana de Vilhena e os filhos. D. Mariana Inês de Vilhena faleceria em 1755 e, cerca de 10 anos depois, o único filho varão, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766). A propriedade passaria então para a filha, a “Ilustríssima Senhora Dona” Guiomar Madalena de Sá Vasconcelos Bettencourt Machado e Vilhena, uma das personalidades mais fascinantes do seu tempo e que deu uma nova vida a toda a área em apreço. Com a posse da propriedade por D. Guiomar, deu-se início, quase de imediato, à rentabilização do terreno, até então de “terra e rocha”, nomeadamente, com o plantio de malvasia na encosta de São Lázaro, no que se despendeu mais de 2 contos de réis. Mais tarde, em 1782, tendo sido determinada a abertura naquela encosta de um caminho que daria acesso ao novo desembarcadouro da Pontinha, tornou-se necessário refazer as paredes que sustentavam as fazendas da quinta até à casa de prazer, ou seja, o mirante de D. Guiomar, já assinalado na planta da cidade do comandante Skinner, de 1775, embora só editada em 1791, em Londres. A morgada deve ter feito grandes obras na quinta; pelo menos, erigiu este mirante, que chegou aos nossos dias com o seu nome e terá levantado o corpo principal da residência. Tendo mandado edificar um importante prédio no Lrg. da Sé e na R. do Capitão para servir de sede à sua casa comercial, e tendo, nos últimos anos, residido preferencialmente “na sua Quinta das Angústias do sítio dos Ilhéus” (ABM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 11, fl. 130v.), onde veio a falecer a 15 de março de 1789, também ali fez importantes obras. O corpo neoclássico apresenta as molduras das portas e das janelas em calcário de lioz da serra de Sintra, provavelmente da área de Pero Pinheiro; são em tudo semelhantes às molduras utilizadas na mesma época na reforma das casas da Alfândega do Funchal (Alfândega Nova). Considerando as fortes relações de D. Guiomar com a Junta e Provedoria da Fazenda (embora reconhecendo que estas, comercialmente, nem sempre foram as melhores) e sabendo que a morgada gozava da total proteção do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (c. 1745-1798), é provável que, tal como nas obras da Junta da Fazenda, ela tenha recorrido à importação das molduras das oficinas continentais que realizavam as obras de reconstrução da cidade de Lisboa. Mirante da Quinta Vigia. 1885. Arqu. Rui Carita   Renné Masst. Mirante da Quinta Vigia. 1884. Arq. Rui Carita O mirante de D. Guiomar é, por ventura, o elemento mais interessante do conjunto, apresentando planta quadrada e dois pisos, realizando-se o acesso exterior ao andar superior por três lanços de escadas, compondo-se uma escadaria maneirista, com corrimão e pilastras de cantaria. O piso térreo apresenta um amplo portal serliano, para o lado do mar, encimado por uma varanda corrida, de sacada, assente em cachorrada muito elaborada, tudo com elementos decorativos de entre os finais do séc. XVI e os inícios do XVII, indiciando assim uma muito provável remontagem dos finais de Setecentos. Interiormente, o piso superior é dotado de teto de caixotão, oitavado e pintado, e apoiado em pendentes e mísulas ainda de gosto algo mudéjar, mas regional, parecendo também ter havido um reaproveitamento de elementos anteriores. Com o falecimento de D. Guiomar de Vilhena ficou como seu herdeiro o sobrinho Cor. Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo (c. 1752-1798), mas a quinta estaria, por certo, arrendada à família do cônsul francês Nicolau de La Tuellièrie (c. 1750-1820), ligado à importante família de Pedro Jorge Monteiro, comerciante que, com D. Guiomar, afrontara a liderança britânica no comércio de exportação dos vinhos da Madeira. Foram, com certeza, os La Tuellièrie e os Monteiro que encomendaram, em Lisboa, na Real Fábrica do Rato, os painéis de azulejos com as fábulas de La Fontaine legendadas em francês, atribuíveis a Francisco de Paula e Oliveira, datáveis de entre 1790 e 1800, que mandaram montar na varanda coberta, uma estrutura anexada a sul do edifício principal, naturalmente já construído. Varanda coberta e azulejos de Francisco de Paula e Oliveira. Arqu. Rui Carita Em 1793 realizou-se na capela das Angústias o casamento, em segundas núpcias, do Dr. António José Monteiro, natural de Pernambuco e filho do mercador Pedro Jorge Monteiro, com a sua sobrinha Mariana de La Tuellièrie; em 1807, o matrimónio de Ana Carlota Monteiro, filha do primeiro casamento do Dr. António José Monteiro; em 1810, o de Maria Monteiro, também filha do primeiro casamento do Dr. António José Monteiro, com Inácio Castelo Branco do Canto Munhoz Melo e Sampaio. No entanto, somente em fevereiro de 1815 foi efetivada a venda da quinta, por João de Carvalhal Esmeraldo (1778-1837), futuro conde (Carvalhal, 1.º conde), ao Dr. António José Monteiro. Com o falecimento de António José, em julho de 1816, a quinta passou para o cônsul Nicolau de La Tuellièrie e, falecido este, em fevereiro de 1820, foi deixada à sua viúva. A posse da propriedade era algo complexa, dado os encargos que comportava e a partilha a que havia sido sujeita ao longo desses anos, p. ex., em 1807, com a construção do cemitério da Misericórdia (Cemitério das Angústias) e a abertura do caminho das Angústias em terrenos da quinta, propriedade de João de Carvalhal Esmeraldo, futuro conde de Carvalhal. Assim, Luís de Ornelas e Vasconcelos, um dos herdeiros da Quinta das Angústias, pois casara com Ana Carlota, viúva de Nicolau de La Tuellièrie, fez ainda aforamento perpétuo, em 1823 e ao morgado António Caetano Aragão, de terrenos anexos às Angústias deste último. A 15 de março de 1842, a quinta foi arrendada aos restantes coproprietários, Elvira e Maria Monteiro, com a obrigação de proceder a consertos na propriedade e a reparações urgentes na “varanda da casa que faz frente para o mar”, para sublocação a Dugdale McKellar (GUERRA, Ibid., 128). Confirmava-se, então, que a residência em apreço era uma das mais conceituadas da cidade. Quinta Vigia. 1890. Arq. Rui Carita   Quinta Vigia. Arq. Rui Carita Nos meados de 1849, aportou ao Funchal o príncipe Maximiliano (1817-1852), duque de Leuchtenberg, filho do príncipe Eugénio Napoleão e genro do czar Nicolau I. O também arquiduque da Rússia era irmão da imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Bragança (1812-1873), e do príncipe Augusto (1810-1835), que fora o primeiro marido de D. Maria II, mas que falecera pouco depois de chegar a Lisboa, e ainda da rainha Josefina da Suécia e da Noruega (1807-1876). O governador José Silvestre Ribeiro (1807-1891) teve ordens para disponibilizar as instalações do palácio de S. Lourenço ao duque de Leuchtenberg, mas o mesmo, até por viajar com uma comitiva, optou por se alojar na Quinta das Angústias. Esteve na Madeira entre 27 de agosto de 1849 e 23 de abril de 1850, tendo os elementos da sua comitiva sido pintados na ilha por Karl Briullov (1799-1852), inclusivamente, o príncipe Maximiliano, num dos poucos retratos a óleo que se conhece do mesmo. Certamente por indicação do irmão, a 28 de agosto de 1852, seguiu-se a instalação da imperatriz viúva do Brasil, D. Amélia de Leuchtenberg e Bragança, juntamente com a princesa D. Maria Amélia (1831-1853), na esperança de que o clima da Madeira melhorasse a saúde da jovem, afetada pela tuberculose, tal como o tio. A Câmara do Funchal solicitou logo que os nomes da ex-imperatriz e da sua filha fossem dados às ruas anexas à quinta, mas a princesa faleceu num curto espaço de tempo, a 4 de fevereiro de 1853, para grande consternação da população do Funchal, não só pela sua pouca idade, mas também por ser a filha mais nova do falecido rei D. Pedro IV. A ex-imperatriz saiu com o corpo para Lisboa, a 6 de maio seguinte, tendo fundado no Funchal, em homenagem à filha, o Hospício Princesa D. Maria Amélia, cujos passos iniciais ainda acompanhou na Ilha, em instalações provisórias, lançando-se depois, em Londres e em Paris, um concurso internacional para a construção do edifício, por ventura, o primeiro que a ser realizado em Portugal. Quinta Davis. Arq. Rui Carita Em 1849, um comerciante inglês, Richard Davies, radicado na R. do Carmo, no Funchal, começou a adquirir terrenos junto da Quinta das Angústias como sub aforamento de uma “porção de terra no sítio a que antigamente chamavam a vigia de Santa Catarina” (ABM, Registos Notariais, liv. 1249, fls. 47v.-49). No mesmo ano ainda, comprou ao jovem António Leandro de Carvalhal Esmeraldo (1831-1888), depois 2.º conde de Carvalhal, uma vasta fazenda ao lado da anterior, vindo assim a mandar reformular a residência da Quinta Vigia ou Quinta Davies. Já havia uma habitação nesta área, residindo nela, nos inícios de 1847, a família Rutheford; tinha sido alvo de uma tentativa de assalto por parte de alguns populares, direta ou indiretamente liderados pelo Cón. Teles de Meneses, no quadro das altercações ocorridas com o proselitismo do reverendo metodista Robert Reid Kalley (1809-1888) e que tinha levado à deslocação para a Madeira do governador José Silvestre Ribeiro. Ainda nos finais desse ano de 1847, a rainha viúva Adelaide de Inglaterra, nascida Saxe-Meiningen (1792-1849), passou também uns meses na Madeira para se restabelecer de problemas de saúde, ocupando a quinta com as suas damas de companhia. O governador José Silvestre Ribeiro interferiu decididamente na instalação da rainha, que ali esteve até abril do ano seguinte, tendo depois recebido um enorme castiçal de prata, hoje na Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, em retribuição da hospitalidade. A rainha, entretanto, faleceria no final desse ano, em Londres. A Quinta Vigia, cerca de 10 anos depois, era já uma importante referência internacional, recebendo a Imperatriz Isabel de Áustria (1837-1898) e a comitiva que a acompanhava, tendo sido fotografada por Vicente Gomes da Silva (1827-1906) poucos dias após o seu alojamento no local, em 1860. Tal como às importantes figuras mencionadas atrás, também lhe foi oferecida residência no palácio de S. Lourenço, existindo, inclusivamente, informações sobre obras para a sua instalação. Porém, a Imperatriz, conhecida romanticamente por Sissi, optaria pela Quinta Vigia para residir no Funchal, entre novembro daquele ano e abril do seguinte. Durante a sua estadia, veio de Lisboa o infante D. Luís, que seria depois rei de Portugal, para apresentar cumprimentos em nome do irmão, D. Pedro V. Um ou dois anos mais tarde, em 1863 ou 1864, o ilustrador Joseph Selleny (1824-1875) editou, em Viena, uma litografia da sé do Funchal com a imperatriz em primeiro plano. Sissi e as suas damas de companhia na Quinta Vigia. 1860. Arq. Rui Carita Nos meados de 1885, ainda ocuparia a Quinta Vigia o príncipe Pedro II Nicolau von Holstein-Gottorp (1827-1900), grão-duque de Oldemburgo, que, em março desse ano, organizou uma quermesse na quinta. Possuía uma guarda pessoal de cossacos, que andavam na cidade a cavalo, tendo sido assim fotografados na Photographia Vicentes, à R. da Carreira, e que despertavam uma enorme curiosidade aos locais. Em outubro de 1859, entretanto, falecera Ana Carlota Monteiro de Ornelas, proprietária da Quinta das Angústias, herdando-a Nicolau Hemitério de La Tuellièrie e Maria Monteiro. A propriedade seria arrendada à britânica Margarida Yuille Wardrop, em junho de 1860, mas, em fevereiro de 1862, Nicolau Hemitério vendeu a sua parte ao procurador João António Pereira, devido às avultadas dívidas acumuladas, assistindo ao ato da escritura os representantes dos senhorios diretos da propriedade, ou seja, do marquês de Castelo Melhor, herdeiro de grande parte das propriedades dos Câmara da antiga casa dos condes da Calheta, e do morgado António Caetano Aragão, que outorgaram a transação e receberam o laudémio dela decorrente. Em setembro de 1863, instalou-se na Madeira o conde Alexandre Charles de Lambert (1815-1865), general de cavalaria e ajudante de campo do imperador da Rússia, embora nascido em Paris. O conde começou por se instalar na R. da Ponte de S. Lázaro e, em março de 1864, adquiriu a Quinta das Angústias aos proprietários, João António Pereira e João Gregório Rodrigues, este último, herdeiro de Maria Monteiro. Parecem datar dos anos seguintes as obras realizadas sobre a então R. Imperatriz D. Amélia, com o levantamento de uma fachada neoclássica e a reparação da muralha sobre o porto, com a execução dos compartimentos enterrados, hoje arquivo da presidência do Governo Regional da Madeira (GRM). A quinta deve ter tido obras para receber o casamento do conde de Lambert com Marie Louise Marguerite de Savary Lancosme Brèves (1840-1909), filha dos condes de Lancosme Brèves que tinha então 25 anos e que também nascera em Paris. O matrimónio ocorreu na capela da quinta, a 19 de fevereiro de 1865, com a autorização de D. Patrício Xavier de Moura (c. 1800-1872), bispo do Funchal, tendo assistido, entre outros, os pais da noiva, também a residirem no Funchal à data. O conde de Lambert faleceu inopinadamente na sua quinta, aos 49 anos, a 1 de agosto desse ano, às 04.00 h, deixando a jovem condessa grávida e numa situação económica complicada. A 4 de janeiro de 1866, recebeu a confirmação do seu batizado o pequeno conde Carlos Alexandre (1865-1944), que nascera a 30 de dezembro e que, temendo-se o pior, fora logo batizado, tal como declara a certidão. Na cerimónia religiosa estiveram presentes os pais da condessa, o 2.º conde de Carvalhal, o general José Júlio do Amaral, comandante da 9.ª divisão, e os vice-cônsules de França no Funchal. A condessa, no registo de batismo, é dada como residente na Calç. de Santa Clara, provavelmente, no local onde residiam os pais, para que não ficasse na quinta com o cadáver do marido. A condessa viu-se na situação de ter que pedir um empréstimo de 12 contos à firma russa Krohn Brothers para transportar o corpo do conde para Paris, encontrando-se este, até então, embalsamado e depositado na capela das Angústias, servindo também o crédito para proceder a “reparos e outros arranjamentos” na quinta, com vista ao seu futuro arrendamento (ABM, Registos Notariais, liv. 1276, fls. 12v.-13v.). A condessa e o filho saíram para França em agosto de 1867, mas mantiveram a posse da quinta até 1903. O jovem conde de Lambert veio a ser uma das grandes figuras da aviação internacional, atribuindo-se-lhe as primeiras experiências de construção de hidroaviões; foi ainda o primeiro aviador a sobrevoar a Torre Eiffel e o primeiro a voar na Bélgica e na Holanda, p. ex.. Conde Lambert. Arqu. Rui Carita O comerciante Charles Ridpath Blandy (1812-1879), entretanto e face ao crescente movimento do porto, começara a adquirir terrenos na baixa de Santa Catarina. Em agosto de 1879, com a morte do 6.º marquês de Castelo Melhor, a firma Blandy Brothers & Co. comprou uma parte do domínio direto do foro da Quinta das Angústias de que eram enfiteutas os herdeiros do velho conde de Lambert. Grande parte dos interesses da área, inclusivamente a propriedade da pequena capela de Santa Catarina, passaram para a dita firma inglesa durante esses anos. O célebre médico Paul Langerhans (1847-1888), autor da descoberta das células que ainda hoje têm o seu nome e que constituíram objeto de análise na sua tese de doutoramento de 1869, no verão de 1875, afetado pela tuberculose, viu-se na contingência de ter de suspender a carreira universitária, escolhendo a Madeira para se tentar restabelecer. Ficaria na Ilha dois anos e meio, recuperando e aproveitando para se dedicar ao estudo da fauna marítima dos mares madeirenses e, depois, dos das Canárias. Regressou à Alemanha em 1878, mas estava de novo na Madeira em junho de 1879. Casou com uma viúva alemã, Margarreth, cujo marido tinha sido seu doente e, em junho de 1886, a família instalou-se na Quinta das Angústias. Langerhans faleceu na propriedade, a 20 de julho de 1888, sendo sepultado no cemitério britânico e regressando a viúva e a filha à Alemanha. Nos seis meses anteriores à estadia de Paul Langerhans na Quinta das Angústias, esteve ali o marquês de Albizzi, Niccolò Marc Antonio Albizzi, que editaria, em Paris, as suas memórias de seis meses na Madeira, recorrendo a fotografias de João Francisco Camacho (1833-1898) e, provavelmente, de outros, imagens depois gravadas por diversos artistas, em Paris, perfazendo um total de quase 40 estampas. Uma das ilustrações é “Le pavillon de notre quinta” (ALBIZZI, 1888, 71), facilmente identificável como o mirante de D. Guiomar; outra, “Hamac”, da qual se conhece a fotografia original, representando o marquês a ser transportado em rede, com um acompanhante, indicando o empedrado e o enquadramento que terá sido tirada no parque da “sua quinta” das Angústias (Id., Ibid., 83). Os primeiros anos do séc. XX colocaram em causa, e inclusivamente sob a atenção internacional, a situação das quintas sobre o porto do Funchal, competindo os interesses britânicos na Madeira com os alemães, que pretendiam a montagem de uma ampla rede de sanatórios e eram acusados por aqueles de estarem a encobrir um negócio de casinos (Sanatórios e Casinos). Os prazos da Quinta das Angústias, entretanto, porque fora do megaprojeto dos sanatórios alemães, foram adquiridos à firma Blandy Brothers & Co., a 18 de agosto de 1903, pelo bacharel Júlio Paulo de Freitas (1863-1946), que, no dia seguinte, comprou igualmente a quinta à condessa de Lambert e ao filho através dos seus procuradores no Funchal, também a Blandy Brothers. A Quinta Vigia, nos finais do séc. XIX, continuou a servir como abrigo, por excelência, dos doentes do turismo terapêutico, guardando-se inúmeros registos fotográficos e aguarelas românticas de Ella du Cane (1874-1943), editadas depois, em 1909. Entretanto, em maio de 1904, a então propriedade de Mr. Bennet Stanford fora adquirida pela Sociedade dos Sanatórios da Madeira, tal como a Quinta Bianchi, mas o projeto de instalação daquela gorou-se, pois a firma Blandy Brothers & Co. conseguira ficar com a Quinta Pavão, mais tarde integrada na Empresa dos Casinos da Madeira. Ao longo das décadas seguintes, com a extinção da Sociedade dos Casinos, a Quinta Vigia passou à propriedade do Estado, tendo servido de aquartelamento militar da Guarda Republicana, em 1921, transformando-se depois em parque público, com várias instalações desportivas, como ringues de patinagem, p. ex.. Com o falecimento de Júlio Paulo de Freitas na Quinta das Angústias, em 1946, a mesma ficou para a sua afilhada, Isabel Vasconcelos da Cunha; em 1964, foi residência de Tomaz da Cunha Santos (1933-2013). Com a reativação da Empresa dos Casinos Madeira e o projeto de instalação do novo edifício do Casino Park Hotel, o dec.-lei de 11 de dezembro de 1967 determinou a aquisição da quinta para o Estado, por permuta das quintas Bianchi e Pavão, a demolir para aquela construção. A quinta foi desocupada pelos proprietários pouco tempo depois, mas o processo de expropriação arrastou-se pelos anos seguintes, inclusivamente por não haver acordo nos valores patrimoniais dos azulejos da capela, do frontal de altar, entre outros. A Quinta das Angústias encontrava-se devoluta, em dezembro de 1974, tendo sido sugerido pelo então presidente da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, Rui Vieira (1926-2009), que fosse utilizada para as festas da cidade ou festas do fim do ano, a acontecer nesse mês, tendo sido aí montadas, pela comissão diretiva do Museu da Quinta das Cruzes, várias exposições de artes plásticas e presépios da coleção do mesmo museu (Museu Quinta das Cruzes e Quinta das Cruzes). Pretendia-se, assim, aproveitando algum vazio de poder, desbloquear a situação de impasse em que se havia caído e evitar futuros desmandos, dando urgente ocupação e serventia ao espaço. Nesse quadro, em 1975, passaram a funcionar ali os ateliers e as aulas do Instituto de Artes Plásticas da Madeira (Universidade da Madeira). Com a progressiva instalação do GRM, a partir de 1979 reiniciaram-se as negociações para ali se instalar a presidência do governo, tendo o edifício sido objeto de um projeto de reabilitação da autoria do Arq. António Marques Miguel, assessorado localmente pela Arq. Elisabete de Andrade. Por resolução da presidência do GRM de junho de 1982, em memória da antiga quinta anexa e do seu espaço público, a designação da nova habitação da presidência do governo passou a ser Quinta Vigia. A inauguração da Quinta Vigia como residência oficial do presidente do GRM ocorreu a 2 de maio de 1984. Quinta Vigia. Residência. Arqu. Rui Carita A reabilitação do conjunto manteve toda a estrutura exterior dos antigos edifícios, da capela, do parque e jardim envolventes, conservando inclusivamente o mirante e as duas casinhas de prazer sobre o porto do Funchal. Interiormente, as salas superiores do edifício neoclássico, em princípio, mandado levantar por D. Guiomar, foram interligadas, servindo de área de receção e apoiando-se na varanda sobre o parque, onde estão os célebres azulejos das fábulas de La Fontaine. O andar térreo encontra-se ocupado com os gabinetes da presidência do governo, tendo uma parte do secretariado passado para o mirante de D. Guiomar. O interior foi decorado conforme as quintas madeirenses antigas, dos sécs. XIX e XX, com mobiliário ao gosto inglês dessa época, parte do qual, proveniente dos acervos dos museus da Região, recriando-se assim a ambiência dessas mesmas propriedades. O parque encontra-se aberto ao público.   Rui Carita (atualizado a 16.12.2017)

Arquitetura Património

quinta do monte

Quinta do Monte. 1920. Arquivo Rui Carita. Nos meados e nos finais do séc. XVIII assistiu-se à expansão da cidade do Funchal pelas encostas e à fixação esporádica das famílias dos principais comerciantes e proprietários madeirenses na área da freguesia do Monte, durante a época de verão (Urbanismo). Com o confisco dos bens do Colégio dos Jesuítas pela Fazenda Régia, em 1768, o património da Companhia foi colocado em hasta pública e arrematado, em 1770; entre ele, contavam-se duas propriedades situadas abaixo da igreja do Monte que vieram a ser adquiridas pelo cônsul britânico Charles Murray. Este cônsul construiu ali uma residência e, especialmente, um parque e jardim importantes, que acabaram por se tornar lendários, mas que, poucos anos depois do investimento, colocou à venda, por se retirar para Inglaterra. O governador Diogo Pereira Forjaz Coutinho (c. 1735-1798), em carta de 1788, informava para Lisboa que o comerciante Carlos Murray se propunha vender a “Quinta do Bello Monte, para os governadores passarem o verão” (ABM, Governo Civil, liv. 519, fl. 4v.). Declarava ainda que aquela zona era habitada, entre os meses de junho e novembro, por causa dos “calores muito intensos na cidade” e que, algumas vezes, o próprio se vira obrigado a pedir emprestada uma dessas residências, “visto que todos têm o capricho de não querer dar de arrendamento casa no campo” (Id., Ibid., fls. 4v.-6). Acrescentava igualmente que, dada a qualidade do conjunto em causa, com os seus jardins, cascatas e árvores de fruto, seria a “hipótese ideal” (Id., Ibid.) para se estabelecer uma residência de verão. Porém, a quinta veio a ser adquirida por privados. Também na área do Pico, em 1784, foi negociada uma propriedade pertencente ao comerciante João Crisóstomo Costa e Silva para saldar uma dívida de 4:250$000 réis ao padre Simão Lúcio de Nóbrega, sendo esse mesmo património adquirido pelo comerciante inglês Carlos Alder. A propriedade confrontava com terrenos aforados aos morgados Pedro Agostinho Pereira de Agrella e Câmara, João José de Ornelas Cabral e José Joaquim de Bettencourt e Freitas, dono da Quinta do Faial, em Santa Maria Maior, pelo que as negociações levaram algum tempo, vindo Carlos Alder a ceder os seus direitos a outro comerciante inglês. As primeiras obras da futura Quinta do Monte, ou Quinta do Pico, como também era referida, datam de 1802. Foram mandadas fazer pelo jovem escocês James David Webster Gordon (1783-1850), que, por esses anos, se encontrava no Funchal a trabalhar para a firma Newton, Gordon, Cossart & Co., fundada por volta de 1745, por Francis Newton e William Gordon, seu parente (Cossart Gordon). James David, por vezes referido como James Dempster, era o filho mais novo de Thomas Gordon (1737-1804) e de sua mulher Agnes, filha de John Dempster de Dunnichen (1732-1818), jurista e deputado natural de Dundee, na Escócia. Um irmão mais velho, Thomas William Gordon, veio a ser coronel da Guarda Real e a morrer em Verdun, em 1814; um outro irmão, James Murray Gordon (1782-1850), casaria com Sarah Almeria, filha de John Caulfield, arquidiácono de Kilmore e chegaria a vice-almirante da Marinha Real Britânica. James Gordon fixou-se na ilha da Madeira, casando mais tarde, em 1826, com Theodosia Arabella Pollock, sobrinha do general George Pollock (1786-1872) da Companhia das Índias Orientais; a aproximação entre ambos deve ter sido propiciada pelo irmão James Murray Gordon, da Marinha Britânica. Data dessa época a construção da residência da Quinta do Monte, depois descrita como tendo sido levantada a partir do projeto de um arquiteto inglês, o que é muito provável, dadas as relações formais da construção com o chamado estilo regency. Embora com muitas alterações e desenvolvimentos nos anos seguintes, a ampla relação do piso térreo com o espaço do jardim; as janelas com bandeiras envidraçadas, inseridas em arcos de volta perfeita; a utilização contínua de paredes curvas, ao gosto do rococó internacional; as cornijas decoradas com medalhões, entre outros aspectos, fazem da edificação em apreço uma das mais próximas da arquitetura inglesa da época na Madeira. A boa relação de James Gordon com esse seu irmão parece estar patente numa pintura a óleo que foi recentemente vendida em Inglaterra, na Christies’Art People, pelos herdeiros dos mesmos Gordon, figurando o comerciante da Madeira com a mulher e os dois filhos, em Balmaghie, juntamente com as sobrinhas Ameria e Geraldine Gordon, no que parece ser uma pintura celebrativa da visita dos primos madeirenses. Dada a idade aparente dos jovens Webster Thomas e Russell Manners Gordon (1829-1906), a pintura deve datar de entre 1832 a 1835. James Gordon e Theodosia Arabella manteriam, assim, os seus contatos na Grã-Bretanha, tanto na Escócia como em Londres. Neste sentido, por volta de 1837 ou pouco depois, receberam na Quinta do Monte o pintor e litógrafo Andrew Picken (1815-1845). Em 1840, Andrew Picken editou uma litografia da Quinta do Monte com a seguinte dedicatória: “To J. D. Webster Gordon, Esqre. This print of Mount House, Madeira, is respectfully dedicated, by his very obediente servant, The Artist” (COL. FREDERICO DE FREITAS, 1840). A grande aguarela que por certo lhe serviu de modelo, que veio a ser adquirida aos herdeiros dos Gordon Torre Bela pela Câmara Municipal do Funchal, terá sido pintada antes, entre 1837 e 1839. No primeiro plano da imagem aparece um pequeno grupo, onde uma jovem parece estar a desenhar ou a escrever, com um rapaz mais velho a ajudar. Em frente, de pé, um outro rapaz e uma senhora, acompanhados por dois cães, seguem o desenrolar dos trabalhos. Tudo indica que se tratam dos irmãos Webster e Russel, da sua irmã mais nova, Bárbara Gordon e da mãe. Cerca de dois anos mais tarde, a 1 de agosto de 1842, Andrew Picken era perceptor dos filhos de James Gordon na quinta do Monte, conforme relata o príncipe Adalberto da Prússia (1811-1873), que o acompanhou e aos seus educandos em alguns momentos, nomeadamente, numa visita aos jardins, que afirmou serem paradisíacos, repletos de flores esplêndidas, muitas exóticas, e árvores de todos os cantos do mundo. A proprietária da quinta, Theodosia Arabella Gordon, mostrara-lhe com orgulho o álbum de Picken, também editado com a data de 1840 e a ela dedicado. Os irmãos Webster e Russel acabariam por ir para Londres, sendo educados no colégio de Eton, seguindo Webster a carreira militar e regressando Russel a Portugal. Ainda em Londres, este último conheceu Filomena Gabriela Correia Brandão Henriques de Noronha (1829-1925), filha de João Correia Brandão de Bettencourt Henriques de Noronha (1794-1875), 2.º visconde de Torre Bela (Torre Bela, visconde e conde de), vindo a contrair matrimónio a 15 de setembro de 1857, em St. John’s Wood Westminster e regressando depois à Madeira. No final de 1859, aportou na Madeira a arquiduquesa Carlota de Saxe-Coburgo (1840-1927), futura imperatriz do México, que, com a partida do marido para a América Latina, passou a residir na Quinta Bianchi, hoje desparecida, por motivo da construção do complexo do casino (Quinta Vigia). Nas memórias que a mesma deixou, Un Hiver à Madère, 1859-1860, publicadas em Viena no ano de 1863, explica que uma das primeiras deslocações que efetuou foi à Quinta do Monte, onde a recebeu Mrs. Gordon, “velha inglesa muito simpática, cujo filho casou há pouco tempo com uma portuguesa, filha do visconde de Torre Bela” (NASCIMENTO, 1951, 88-101), parecendo assim que terá conhecido o visconde em Viena, quando este era aí diplomata. Theodosia Arabella Pollock Gordon terá falecido no final de 1859. A quinta foi herdada pelo seu filho mais velho, o major Webster Thomas Gordon e, em 1860, este legou-a ao seu irmão Russel Manners Gordon, que introduziu vários melhoramentos na propriedade, mandando-a murar. Parece datar do mesmo ano, sensivelmente, a construção do jardim denominado Jardim Malakoff, em homenagem aos heróis da vitória de Sebastopol e ao castelo capturado pelas tropas anglo-francesas em 1855. Incluía um miradouro e uma aparatosa torre, adaptada a mirante, alguns anos depois, ao gosto das casinhas de prazer das quintas madeirenses (Casinha de prazer, Quintas madeirenses). A homenagem dos viscondes de Torre Bela à batalha de Sebastopol indicia também um certo tributo ao irmão Webster Gordon, oficial do exército inglês, e aponta ainda a vocação de diplomata internacional que, pouco depois, o visconde assumiria. Data, assim, desses anos de 1860, a restruturação da área a sul da casa de residência com um amplo terraço suportado por um paredão monumental e envolvido por um grande relvado, hoje delimitado por exemplares de notável porte arbóreo. Um curso de água atravessa a propriedade, facilitando a existência de uma cascata que desagua num lago onde a casa é refletida, desenvolvendo-se o jardim até a um amplo miradouro, gradeado e com vista sobre o Funchal. Nos meados da déc. de 60, a quinta foi vendida a Peter Cossart (1807-1870), na sequência da fusão das casas de exportação de vinhos Cossart, Gordon & Co., embora alguns descendentes da família remetam a compra da propriedade aos fundadores daquela empresa. Em 1871, vivia na casa Leland Crosthwait Cossart (1843-1898), filho de Peter Cossart e de Jane Edwards, filha do também comerciante Thomas Edwards, datando dessa déc. de 70 e ainda da de 80 a reforma dos estuques, com a colocação do brasão da família Cossart, bem como a encomenda de uma vasta coleção de vasos, dispostos sobre plintos em cerâmica, igualmente decorados com os unicórnios das armas dos Cossart. Os desmandos ocorridos na déc. de 90 do séc. XX, período em que a quinta esteve encerrada, fizeram com que nenhum desses elementos chegasse até nós senão por fotografia. A importante propriedade foi vendida, a 23 de junho de 1890, ao banqueiro Luís Rocha Machado (1848-1912), que a decorou de novo. Foi palco de inúmeras receções, destacando-se a de 23 de junho de 1901, uma garden party oferecida aos Reis de Portugal, D. Carlos e Dona Amélia. Nesta ocasião, a propriedade aparece referida como Quinta do Pico, existindo abundante documentação fotográfica da altura, aliás, de toda a visita régia, nomeadamente imagens captadas pelo próprio rei D. Carlos, que se dedicava à fotografia. A Quinta do Monte conheceu fama internacional também por ter servido de residência aos ex-Imperadores da Áustria, Carlos de Áustria (1887-1922) e Zita de Bourbon-Parma (1892-1989), descendente da Casa de Bragança. O casal fora enviado para a Madeira pelo Governo inglês, aportando na Ilha a 10 de novembro de 1921, no cruzador Cardiff, fixando residência na Vila Vitória, dependência do Reid’s Palace Hotel. Com a chegada dos seus sete filhos e encontrando-se a família numa situação económica muito difícil, instalaram-se na Quinta do Monte, a convite de Luís Rocha Machado, a 2 de fevereiro de 1922. O ex-imperador sofreria já de problemas de saúde e o clima do Monte, naquele inverno, ter-lhe-á sido fatal, acabando Carlos por falecer com uma pneumonia dupla, inopinadamente, a 2 de abril daquele ano. No dia 5, de acordo com a sua última vontade, foi sepultado na igreja do Monte, onde ainda jaz; a família acabaria por sair da Madeira a 19 de maio do mesmo ano de 1922. O funeral do ex-imperador foi acompanhado de enorme comoção popular e a sua capela funerária, logo nos meses seguintes e nos anos subsequentes, foi alvo de especial devoção. Com efeito, Carlos veio a ser beatificado a 3 de outubro de 2004 pelo Papa João Paulo II (1920-2005), que visitara a Madeira a 12 de maio de 1991, encontrando-se então com os descendentes do ex-Imperador, que lhe entregaram documentação concernente ao falecido; reza a tradição que havia sido batizado Karol Józef Wojtyła, na Polónia, justamente em homenagem a esse imperador austro-húngaro católico. Ainda nos finais de 1922, a quinta foi visitada pelos aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral, no regresso da sua triunfal viagem aérea ao Brasil. Entre 1930 e 1940, em memória de Carlos de Áustria, a quem se atribui o incentivo da devoção do Sagrado Coração de Jesus na Madeira, o herdeiro da quinta, Luís da Rocha Machado (1890-1973), mandou construir uma capela dessa evocação em uma das dependências da casa, incorporando no seu interior um teto pintado com as armas da família Cossart. Nas décs. de 60 e 70, a quinta viveu um novo apogeu, sendo então residência de uma das filhas de Luís da Rocha Machado, Helena do Carmo Rocha Machado, que se casara com Fernando José Martins de Almeida Couto (1924-2006). Nesta época, volta a haver abundante documentação fotográfica dos interiores e exteriores da propriedade. A 11 de janeiro de 1968, em visita à Madeira, Zita da Áustria e sua filha mais velha, a arquiduquesa Adelaide de Habsburgo (1914-1971), acompanhadas por seus primos, D. Duarte Nuno (1907-1976), duque de Bragança (1907-1976) e a infanta D. Filipa de Bragança (1905-1990), estiveram pela última vez na quinta, sendo recebidas por Fernando de Almeida Couto. Deslocaram-se, depois, à igreja do Monte, para rezar na capela mortuária do ex-Imperador, na presença do governador civil, comandante Inocêncio Camacho de Freitas (1899- 1969) e do bispo do Funchal, D. João António da Silva Saraiva (1923-1976), que dirigiu as orações. A família Almeida Couto deixou de viver na quinta nos meados da déc. de 70, tendo ali residido pontualmente os pintores Lourdes Castro (1930-) e Manuel Zimbro (1944-2003), que acabaram por se fixar no Caniço. Nos finais da déc. de 70 e nos inícios da de 80, a venda da quinta foi alvo de anúncios na comunicação social continental, tendo havido pressão dos herdeiros para que fosse adquirida pelo Governo Regional da Madeira (GRM). Com o projeto de instalação do campus universitário da Universidade da Madeira (UMa) (Universidade da Madeira), o GRM veio a acordar comprar a quinta, cuja tutela foi confiada à Secretaria Regional da Educação, vindo o recheio a ser adquirido à parte, por um valor adicional de 10 mil contos. Em 1989, a comissão instaladora da UMa e a secretaria regional da tutela solicitaram uma peritagem do inventário do recheio, na ordem de cerca de 50 peças, sendo o valor então estimado em 15 mil contos e a posterior aquisição dos bens feita pela futura UMa. Em maio de 1990, o primeiro-ministro Prof. Aníbal Cavaco Silva visitou a quinta e percorreu demoradamente o parque na companhia das autoridades superiores da Região. Desta viagem resultou o aval do governo central para ali instalar a reitoria da UMa. Assim, a quinta foi comprada pelo GRM, em 1991, visando a futura instalação da UMa, que adquiriu o mobiliário da propriedade. Contudo, nos anos seguintes, o projeto de acomodação da reitoria da UMa na quinta foi abandonado, optando-se por uma instalação mais central, no antigo colégio dos Jesuítas e por estabelecer os vários departamentos, que entretanto tinham aumentado bastante em relação ao inicialmente equacionado, no complexo tecnológico da Penteada. Com essa alteração e encontrando-se devoluta, a propriedade entrou em acelerada degradação, passando para a tutela da Secretaria do Equipamento Social, para que fossem realizadas obras urgentes de consolidação da residência. Mas tanto o parque como a quinta chegaram a ser vandalizados: p. ex., uma pequena boca-de-fogo inglesa, do tipo caronada, datável dos primeiros anos do séc. XIX, que se encontrava junto ao miradouro, foi lançada do alto do paredão, e a capela foi alvo de fogo posto, perdendo-se todo o recheio e uma parte dos tetos de estuque. Nos anos seguintes, a quinta foi igualmente alvo do confronto político no quadro da sua tutela e utilização, encontrando-se a comunicação social repleta de acusações sobre o desaparecimento de boa parte do espólio e até da própria lista do mesmo. Por sua vez, algum do mobiliário da quinta equipa hoje a reitoria da UMa. Em 1996, o conjunto foi classificado pelo seu valor regional e, em agosto de 2000, foi aberto um concurso público para a concessão de obra pública, visando a recuperação, ampliação, restauro, conservação, valorização e divulgação da Quinta do Monte, incluindo a reabilitação do seu espólio botânico, a instalação de um parque temático e de um núcleo museológico. No entanto, a opção a curto prazo foi no sentido de proceder à concessão dos jardins, que passaram a ter exploração privada, encontrando-se abertos ao público como Jardins do Imperador.   Rui Carita (atualizado a 16.12.2017)

Arquitetura Património História Económica e Social