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formas de tratamento

O Sistema das Formas de Tratamento (SFT) em Português Europeu (PE), como referido por vários investigadores, entre outros, Lindley Cintra CINTRA, 1972), Gunther Hammermüller (HAMMERMULLER, 1993), Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 1997, 2001, 2002, 2008, 2009) e Isabel Margarida Duarte (DUARTE, 2010, 2011), é muito complexo. A sua complexidade, essencialmente de natureza pragmática, reside no facto de nem sempre o falante saber selecionar a forma que mais se adequa ao seu interlocutor. Este saber pragmático implica também uma competência de natureza sociolinguística e o conhecimento de várias formas para nos dirigirmos a outra pessoa, como ilustrado nos enunciados fornecidos em baixo: a. A senhora gosta de café ou prefere chá? Ø Gosta de café ou prefere chá? Ø Gostas de café ou preferes chá? A senhora Maria gosta de café ou prefere chá? A Maria gosta de café ou prefere chá? A dona Maria gosta de café ou prefere chá? A senhora dona Maria gosta de café ou prefere chá? Você gosta de café ou prefere chá? Tu gostas de café ou preferes chá?   A escolha de “tu”, “você”, “o/a senhor/a” ou “ø”, cujo conhecimento se relaciona com o domínio léxico-morfológico, é motivada pela maior ou menor familiaridade vs. distanciamento social, para além de fatores como a idade, o sexo/género, o nível de escolaridade e a posição social, existentes entre os interlocutores. No processo de adequação à situação discursiva, o falante terá “de possuir, no seu acervo lexical, um conjunto rico e variado de alternativas pelas quais possa optar, depois de avaliar devidamente a situação enunciativa, o estatuto e a relação entre os interlocutores entre os quais decorre a troca comunicativa” (DUARTE, 2011, 85). A 3.ª pessoa gramatical, a forma de tratamento mais frequente em português, contrariamente ao que ocorre, e.g., em espanhol, onde a forma “tu” é a mais usada, combina-se, no discurso: (i) com as diferentes formas nominais de nos dirigirmos ao outro (em 1a., 1d., 1e., 1f., 1g.); (ii) com o pronome “você” (em 1h.); (iii) e, sobretudo, com o sujeito nulo Ø (em 1b.), uma opção que permite evitar os mal-entendidos decorrentes de um uso inapropriado de “você”. Com efeito, o pronome “você”, quase generalizado no Português do Brasil (PB), coloca muitos problemas nas variedades do PE, sendo aceitável apenas em certas regiões e em certas variedades diastráticas, enquanto o seu uso na variedade-padrão se encontra muito condicionado a situações nas quais se está em presença de relações simétricas e de uma certa proximidade, de igual para igual, verificando-se como inaceitável na maior parte dos casos em que exista uma dissimetria social ou de idade entre os interlocutores. No Norte do país, que normalmente mantém os traços arcaizantes na língua, o uso de “você” é considerado uma enorme falta de educação. No entanto, nem sempre o uso de “você” pode ser depreciativo. Em certas situações, é até considerado apropriado, o que já não acontece com a variante “vossemecê”, que deve ser evitada em situações formais. Paiva Boléo (BOLÉO, 1946) confirma este uso, entre senhoras e senhores da chamada boa sociedade, se entre eles existir familiaridade. Refere também o facto de o uso de “você” ser mais urbano, em conversas informais entre jovens, embora seja mal considerado, ou mesmo visto como insultuoso, se for usado num ambiente rural. Por sua vez, Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 1997) defende que a estigmatização de “você” em PE é diferenciada em todas as regiões de Portugal e que as suas regras de uso dependem das classes sociais, das regiões, da idade e do género. Para Gunther Hammermüller (HAMMERMÜLLER, 1993), com base nos resultados de dois tipos de questionários realizados no Norte de Portugal, existiriam sete tipos de “você”: o “você” de respeito; o “você” de igualdade; o “você” de inferioridade; o “você” que elimina a ambiguidade (nas situações ambíguas onde não queremos ser informais, tratando a pessoa por “tu”, ou ser muito formais, tratando alguém por “o/a senhor/a”); o “você” afetuoso, com pessoas conhecidas dentro da família; o “você” de distanciamento, quando o locutor quer manter a distância com a pessoa a quem se dirige; e, por fim, o “você” metalinguístico, ou seja, quando usado para referir um “você”, como em “Você é um pronome” ou “Você é o sujeito da frase”, sendo desprovido de significado. De referir, por fim, que este problema só se coloca quando se usa “você” no singular. Na 3.ª pessoa do plural (3PP), “vocês” é perfeitamente aceitável, quando o locutor se dirige a vários destinatários. Em contrapartida, o uso da variante com pronome de 2.ª pessoa do plural, “vós”, relativamente confinado, nos princípios do séc. XXI quer geograficamente, quer do ponto de vista do tipo de discurso, é uma forma perfeitamente aceitável, e.g., na situação discursiva em que um sacerdote se dirige aos fiéis. Classificações Do ponto de vista morfossintático, segundo Lindley Cintra (CINTRA, 1972), o SFT do PE divide-se em três categorias: (i) o tratamento pronominal (“tu”, “você”, “vocês”, “Vossa Excelência”, “Vossa Alteza”, “Vossa Majestade”, “Vossa Senhoria”); (ii) o tratamento nominal (“o senhor”, “a senhora”, “o doutor”, “a dona”, “a doutora”, “o senhor ministro”, “o professor”, “o pai”, “a mãe”, “o avô”, “o Carlos”, “a Joana”, “a minha amiga”, “o patrão”, “a menina”, etc.); e (iii) o tratamento verbal (em português, o uso da 3.ª ou da 2.ª pessoa do verbo no singular, como em (1b.) e (1c.), sem sujeito expresso). O tratamento nominal é sempre acompanhado pela 3.ª pessoa verbal e distingue-se dos outros dois tipos por fazer sempre referência a algo relacionado com a pessoa a quem nos dirigimos. Esses traços individuais podem ser, e.g., o sexo/género: “o senhor”/“a senhora”; a profissão ou a categoria social: “o senhor doutor”/“o senhor ministro”; o parentesco: “o pai”/“a mãe”; o nome próprio: “o Joaquim”/“a Maria”; o nome de relação especial: “a menina”/“a minha amiga”. Gunther Hammermüller (HAMMERMÜLLER, 1993 e 2004) classifica as formas de tratamento em nominais, pronominais e verbais, como Lindley Cintra (CINTRA, 1972), mas propõe também a integração no sistema de uma nova categoria, designada por tratamento de evitação, que corresponde ao emprego da 3.ª pessoa (“Ø Deseja açúcar?”), uma forma alternativa utilizada para evitar a escolha de formas pronominais ou nominais que se referem aos estatutos sociais dos interlocutores. A perspetiva semântico-pragmática permite observar como o SFT se relaciona com a hierarquização da sociedade portuguesa. Neste plano, Lindley Cintra (CINTRA, 1972) distingue, e.g., formas de tratamento como: “você”, adequada para relações interpessoais que se se caracterizam como sendo de igual para igual, ou de superior para inferior, e que não implicam intimidade; “tu”, enquanto forma própria de intimidade; ou ainda as formas de cortesia que implicam uma distância entre os interlocutores, e.g.: “o senhor”, “o senhor doutor”, “o Joaquim”, “a Maria”, “a senhora Maria”, “a dona Maria”, “a senhora dona Maria”, “Vossa Excelência”, etc. O PE apresenta um sistema ternário para o tratamento alocutivo, ou o destinatário do discurso (“tu”/“você”/“o senhor”). A sua escolha realiza-se em função dos vários graus de aproximação e de distanciamento social entre o locutor e o alocutário, sendo “tu” empregue para o grau mais elevado da familiaridade, “você” para um grau intermédio e o “senhor” para o grau mais elevado de cortesia. A variedade PB apresenta um sistema mais reduzido, marcado pelo binómio “você”/“o senhor” nas suas variedades-padrão. A Figura 1, a seguir, sintetiza os dois sistemas nestas duas variedades do português, atendendo ao fator “grau de distância/proximidade” entre os interlocutores. [table id=96 /] No que se refere ao tratamento nominal, o português apresenta uma grande variedade de formas (Fig. 2, em baixo), cujo uso depende de vários fatores que definem a situação comunicacional e o funcionamento das relações sociais. As formas nominais, ou nomes vocatórios, podem ser acompanhadas de determinantes definidos e/ou possessivos, de adjetivos e de uma partícula interjetiva. O determinante utilizado pode aumentar ou reduzir a relação de proximidade ou de afastamento entre as pessoas. Os enunciados “ele é o meu caro amigo” e “ele é um amigo” distinguem-se, porque a escolha do possessivo precedido de artigo definido, no primeiro exemplo, implica uma familiaridade entre os interlocutores, enquanto o uso de um artigo indefinido, no segundo exemplo, implica a ausência de proximidade. O fator “nível de escolaridade/educação/habilitações académicas” implica formas de tratamento distintas, consoante alguém possua o título de doutor ou não, e.g.: “O senhor doutor tem tempo para mim?”/“O senhor tem tempo para mim?”/“Ø tem tempo para mim?”. Fatores como a formalidade ou informalidade da situação são também relevantes. Numa situação formal, é necessário tratar as pessoas com o respeito apropriado (“Vossa Excelência”, “o senhor”/“a senhora”) e, numa situação informal, usa-se, em geral, o tratamento de “tu”. As relações de respeito e de cortesia implicam sempre o tratamento formal (“o senhor”/“a senhora”). Uma situação de protocolo exige o tratamento mais formal possível (“Vossa Excelência”, “Vossa Santidade”, “Excelentíssimo Senhor Professor”, “Magnífico Reitor”, etc.). Atendendo ao grau de parentesco, usa-se o tratamento por “tu”, na maioria dos casos, embora se observe também, em algumas famílias, o uso de um tratamento respeitoso (“o senhor”/“a senhora”) com membros mais idosos (pais, tios, avós). É de notar ainda, em PE, a distinção semântica entre o uso do nome precedido ou não por artigo definido, com 2.ª ou 3.ª pessoas do singular, em função da situação comunicacional: “Maria, queres sair hoje à noite?”/“A Maria quer sair hoje à noite?”. Tanto no PB como no PE, observa-se o uso de títulos académicos, quer seja para homens quer seja para mulheres, embora haja alguma assimetria nestes usos, quando considerado o fator “género”. Para as mulheres, está reservado o uso do primeiro nome após o título profissional (“senhora doutora Sílvia”) e, excecionalmente, seguido do apelido (“senhora doutora Sílvia Vieira”); já para os homens, é a utilização do apelido que predomina (“senhor doutor Vieira”). Outra assimetria ligada ao género ocorre também quando se usam as formas “senhor”/“senhora”, que não são equivalentes socialmente. A gradação da distância é feita para o homem pelo uso do primeiro nome e/ou do apelido (e.g.: “ó Senhor António”, “ó Senhor Fonseca”, “ó Senhor António Fonseca”), enquanto para as mulheres a gradação é feita com base na hierarquia social (“a senhora”, “a dona”, “a senhora dona Ana” e, por vezes, seguido do apelido). No que diz respeito ao tratamento verbal, nota-se que, na variedade-padrão do PB, o singular só se usa na 3.ª pessoa, independentemente do grau de cortesia (“você”/“o senhor”/“Ø fala português?”), ao passo que, em PE, a oposição entre a 2.ª e a 3.ª pessoas do singular marca a distinção entre um contexto informal e um contexto formal (“Ø falas”/“Ø fala português?”). No plural, emprega-se a 3.ª pessoa em ambas as variedades do português para referir o alocutário em contextos formais e informais (“os senhores”/“vocês”/“Ø falam português?”). A forma verbal na 3.ª pessoa sem sujeito expresso, ou com sujeito nulo, constitui, em PE, uma estratégia que neutraliza o grau de deferência ou, em outras palavras, a expressão linguística com “grau zero de deferência” (CARREIRA, 2002, 175). [table id=97 /] De acordo com Maria Helena Araújo Carreira (CARREIRA, 2001), do ponto de vista dos participantes na interação verbal, as formas de tratamento podem ser classificadas nas seguintes categorias: elocutivas – EU designo EU – (designação do locutor, em português “eu” e “nós”); alocutivas – EU designo TU – (designação do alocutário, em português “tu”, “você”, “o(a) senhor(a)”, “o(a) doutor(a)”, “o João”, “a Maria”, etc.); e delocutivas – EU designo ELE – (designação do delocutário, em português “ele(s)”, “ela(s)”, “o(s) senhor(es)”, “a(s) senhora(s)”, etc.). A autora, face aos condicionamentos de tipo social que interferem na escolha da forma de tratamento adequada à situação, introduz dois novos planos de análise: o plano do eixo vertical, que representa a hierarquização dos lugares – relações sociais/profissionais, familiares e etárias –, e o plano do eixo horizontal, que dá conta da regulação da distância social – relações de proximidade ou distância social. SFT: Aspectos diacrónicos O SFT constitui um domínio muito sensível à mudança linguística por estar muito dependentes de variáveis sociais, em plena evolução. Na história do SFT em PE, podem ser delimitados, segundo Lindley Cintra, três grandes períodos: O primeiro período (finais do séc. XIII  até o começo do séc. XV): privilegia o sistema de tratamento pronominal, com recurso a “tu” e “vós”, usados entre íntimos e próximos, sendo a segunda forma utilizada entre pessoas cuja relação não permitia o uso de “tu”, fosse ela o Rei, um arcebispo ou um rústico; O segundo período (desde o séc. XV até aos finais do séc. XVIII): para além das formas pronominais “tu” e “vós”, surgem as primeiras formas de tratamento nominais de elevada cortesia, e.g.: “vossa mercê”, “Vossa Senhoria”, “Vossa Excelência”, “Vossa Majestade”, “Vossa Alteza”; No terceiro período (a partir da segunda metade do séc. XVIII): assiste-se à profusão de novas formas nominais de cortesia. A forma “vós” como tratamento cortês da 2.ª pessoa, dirigida só a uma pessoa, desaparece. Ao mesmo tempo, aumenta a degradação de “vossa mercê”, com o correspondente alargamento no emprego de “você”. Ficava assim aberto o caminho para o uso e para a expansão de formas nominais típicas do português dos princípios do séc. XXI, que exigem o verbo na 3.ª pessoa, e.g.: “o senhor”, “o senhor doutor”, “a mãe”, “o meu amigo”, “o Joaquim”, “a Maria”, “a dona Maria”, “a senhora dona Maria”, etc. O estudo de Lindley Cintra (CINTRA, 1972) configura, no que se refere à evolução do SFT no PE, as seguintes tendências: (i) uma progressiva eliminação do tratamento por “Vossa Excelência”, principalmente na língua corrente, conservando-se no registo oral apenas em certas profissões (telefonistas, empregados de comércio, etc.) e contextos (diplomacia, academias, tribunais, etc.) e na variedade escrita; (ii) o alargamento do uso do pronome “tu” e da 2.ª pessoa do singular, com perda do traço “intimidade”, que o caracterizava até então; (iii) a ampliação e, ao mesmo tempo, a redução do emprego do pronome “você”, com perda do seu carácter depreciativo e aumento do seu uso afetuoso, como se regista no PB; (iv) a manutenção dos tratamentos nominais variados e também uma lenta, mas progressiva, eliminação de tratamentos assentes na diferenciação social, tal como a que diferenciava o tratamento “a senhora Maria” (condição social inferior) de “dona Maria” ou “senhora dona Maria” (condição social superior). Algumas destas tendências seriam confirmadas mais tarde por Carlos Gouveia (GOUVEIA, 2008), para quem a mudança no sistema ocorre em direção a um maior nivelamento e reciprocidade sociais entre interlocutores. Este autor observa a extensão do uso de “você” em Portugal, especialmente entre os jovens, socialmente de classe média e popular, o que provoca alguma tensão junto de falantes mais idosos ou de estratos sociais elevados. No entanto, a continuação do uso de “senhor/a Dr./Dr.ª” e “senhor/a doutor/a” no local de trabalho, a primeira para alguém que é licenciado e a segunda para se dirigir a alguém que possui o doutoramento e/ou um médico, compensa o nivelamento apontado anteriormente. Parecem existir, assim, em PE, duas forças opostas que podem ocorrer no mesmo falante: uma que vai no sentido de minimizar as hierarquias sociais e outra que expressa a vontade da sua manutenção, parecendo atingir o sistema triádico que o caracteriza. Um dos aspectos mais notáveis do sistema antigo é a total ausência de tratamentos nominais, o que significa que não havia ainda separação entre os planos da intimidade e da cortesia/distância social. “Tu” ocupava o sector de intimidade, quando havia um certo grau de confiança entre as pessoas, e “vós” tinha um duplo emprego: como um singular de cortesia, destinado a pessoas importantes e a desconhecidos, e como plural indiferente ou forma para alguém se dirigir a várias pessoas. A componente nominal tem as suas raízes no final do séc. XV. De acordo com Lindley Cintra (CINTRA, 1972), as formas nominais, e.g. “vossa mercê”, “Vossa Alteza”, “Vossa Alteza Real”, “Vossa Senhoria”, remontam ao português medieval, tendo sido já atestadas no séc. XIV, como é o caso da forma “vossa mercê”, cujo primeiro registo data de 1331, em textos pertencentes à Corte, com carácter honorífico. No entanto, seria só a partir da segunda metade do séc. XV, período em que se observou a tendência para uma maior hierarquização social, que viria a ocorrer a expansão das formas nominais de tratamento. Assim, “vossa mercê”, a forma que teria dado origem ao “você”, atestada já no séc. XVII (mas cujo início de processo de pronominalização remonta ao séc. XVIII e cuja efetiva gramaticalização aconteceu no início do séc. XIX), era, nos sécs. XIV e XV, a forma nominal apropriada para falar com o Rei, deixando de ser usada, nesta situação, a partir do final do séc. XV, em 1490, altura em que passou a ser empregue para se dirigir a alguém nobre, estendendo-se o seu uso, no séc. XVI, aos burgueses. Nenhuma forma de tratamento passou por tantas transformações lentas e graduais como “vossa mercê”. Esta foi, no fim do séc. XV, substituída por outras formas, como “Vossa Senhoria” (usada pela primeira vez numa carta dirigida ao Rei, em 1434), “Vossa Alteza” (atestada pela primeira vez, também em relação ao Rei, nas Cortes de 1455), “Vossa Excelência” e “Vossa Majestade”. O documento que melhor ilustra esta expansão de formas nominais é a carta dedicatória da Crónica da Guiné, dirigida, em 1453, por Zurara. O cronista empregou, para o Rei, os tratamentos de “Vossa Alteza”, “Vossa Senhoria”, “vossa mercê” e também “vós”, e misturou os tratamentos nominal e o pronominal num mesmo parágrafo, enganando-se igualmente na concordância gramatical, uma vez que usou as fórmulas que exigem a 3.ª pessoa do singular (3PS) com a 2.ª pessoa do plural (2PP): “Como melhor sabe Vossa Alteza que uma das propriedades do magnânimo é querer antes dar que receber [...] E, como quer que em vossos factos se pudessem achar coisas assaz dignas de grande honra, de que bem poderes mandar fazer volume, Vossa Senhoria, usando como verdadeiro magnânimo, a quis antes dar que receber. E tanto é vossa magnanimidade mais grande quanto a coisa dada é mais nobre e mais excelente. Pelo qual, estando Vossa Mercê o ano passado e nesta cidade, me dissestes quanto desejáveis ver postos em escrito os feitos do Senhor Infante dom Henrique vosso tio” (ZURARA, 1949, 9-10). Com as mudanças nas relações políticas, sociais e culturais que decorrem do fim do feudalismo, assiste-se também a uma degradação das formas de tratamento, sendo necessário regular o seu uso. Em 1597, o filho do imperador Carlos V, Filipe II, publicou as leis, conhecidas por “leis das cortesias”, que estabeleciam os limites do emprego de cada forma de tratamento. Fixavam, para o Rei e a Rainha, o tratamento de “Vossa Majestade”; para os príncipes e as princesas, para os infantes e as infantas, para os genros e os cunhados de reis e para as suas noras e as suas cunhadas, fixavam o tratamento de “Vossa Alteza”; para os filhos legítimos dos infantes e para o duque de Bragança, a forma “Vossa Excelência”; e para os bispos, arcebispos, duques, marqueses, condes, governadores, embaixadores e vice-reis, a fórmula “Vossa Senhoria”. Em 1739, o Rei D. João V registou uma nova lei que também ameaçava de castigo cada pessoa que empregasse os pronomes de tratamento para com outras entidades além das enumeradas. Nela, transformou e alargou o emprego de “Vossa Senhoria” e de “Vossa Excelência”. A maior revolução no SFT do português foi provocada, a partir do séc. XIX, pelo aparecimento da 3PS, aplicada à segunda pessoa do discurso. Este tipo de forma de tratamento, acompanhado pelo primeiro nome, apelido ou nome de parentesco do interlocutor, passou a usar-se com bastante frequência em PE, entre as pessoas da mesma idade e categoria social entre as quais existia uma certa proximidade, permitindo a substituição não só das formas “você”, “o senhor”, mas também de “tu”, por outras formas nominais, e.g.: “O tio quer café?”/“A Maria não vai sair?”/“O Rodrigues está a brincar comigo?!”. A forma sem o sujeito expresso também passou a ser frequentemente utilizada, sendo adequada a todas as situações que não se pautem pela intimidade entre os interlocutores, como já anteriormente referido: “Ø Quer café?”/“Ø Não vai sair?”/“Ø Está a brincar comigo?!”. Formas de tratamento regionais O estudo do SFT do português falado, na variedade madeirense, está ainda por realizar. O conhecimento que se tem sobre esta questão é muito parcelar. Relativamente às características regionais na aplicação do sistema em PE-padrão (“tu”, “você”, “o/a senhor/a” e “Ø”) e nas suas correlações sociais de grau de proximidade/familiaridade e respeito, há que assinalar o estudo realizado por Alcina Sousa (SOUSA, 2012), com base num inquérito, cujo questionário segue o modelo da Eurolinguistix, aplicado junto de informantes madeirenses. Este trabalho permite observar as seguintes tendências, no que se refere às formas de tratamento usadas por falantes madeirenses em três tipos de situações: (i) de filhos para pais, com relações de maior intimidade e proximidade: uso de “tu” (mais frequente), sendo referidas pelos inquiridos outras formas, tais como “o senhor”/“a senhora”, “você”, “o pai”/“a mãe”; (ii) de crianças para familiares, onde estão em causa relações de respeito, relacionadas com a dissimetria das idades e da proximidade: o uso de “você” (o mais frequente), seguido de “o Senhor”/“a Senhora”, “o avô”/“a avó”; (iii) de patrão para empregado, ou seja, de superior para inferior, com maior distância social: “você”, seguido de nome + forma verbal na 3PS. Esta diversidade de usos nas três situações contempladas mostra que o próprio SFT do PE, no qual se incluiria a variedade regional, está sujeito a uma grande pressão social e que uma mesma situação poderá dar origem a várias possibilidades interpretativas e à escolha de formas de tratamento diferenciadas, consoante as características sociais (género, idade, escolaridade) dos falantes. Para além do SFT em PE-padrão e das suas micro-variações, ilustradas pelos resultados do estudo de Alcina Sousa (SOUSA, 2012), a variedade regional contempla também expressões vocatórias, seguidas de interjeições, tais como “amecê”, “apaz” (rapaz)/“apariga” (rapariga), “home”. Todas estas formas, pela sua configuração elíptica, parecem enquadrar-se na categoria de nomes hipocarísticos, descrita por Leite de Vasconcelos (VASCONCELOS, 1928). Trata-se de nomes informais, muito usados na linguagem infantil, razão pela qual seriam marcados por um traço semântico-pragmático de afetividade, adequado a situações em que se observa proximidade entre os interlocutores. O processo de hipocorização envolve o apagamento, ou truncação, de uma parte da palavra de base, que pode situar-se no início ou no fim da palavra, e.g.: Marissol > Sol; António > Tó; José > Zé; Fernando > Nando. Este processo pode ainda envolver duas palavras, e.g.: Maria Antónia > Mitó; Maria de Lurdes > Milu. Das expressões em uso nas variedades do português falado no arquipélago da Madeira acima referidas, “amecê” é a única palavra que se encontra registada na obra Vocabulário Madeirense, de Fernandes Augusto da Silva (SILVA, 1950), tendo sido também apontada por Canuto Soares, no seu artigo “Subsídios para o cancioneiro do arquipélago da Madeira. Tradições populares e vocábulos do arquipélago da Madeira”, publicado na revista Lusitana (SOARES, 1914), como sendo equivalente a “vossemecê”, ambas variantes do antigo “vossa mercê”. Também se encontra referida por José Rosado como estando em uso na ilha do Porto Santo, fazendo parte do artigo “Linguagem popular portossantense”, publicado, em 2003, na revista Xarabanda (ROSADO, 2003). Já “apaz” (<rapaz)/e “apariga” (<rapariga), expressões com truncação do segmento fonético inicial, encontram-se referidas no site Madeirense Puro, de onde foram retirados igualmente os seguintes exemplos, que representam varintes gráficas: “Ahpaz, tá-te dande?; “Ahpazzz tu tem cuidado para não emborcares essa tigela no chão”; “Ahpazz! Na’ tires os casques do talho!!”; “Ahpaaazzz... Grupe!”. A palavra que se destaca nestes exemplos é também parte integrante do título do blogue madeirense Apaz! Vais à Vila?. Quanto a “home” (< homem), trata-se de uma forma antiga, já atestada em português arcaico e integrada no seu sistema pronominal como forma de 3PS. É usada, na variedade regional, como um alocutivo/vocativo, e.g.: “Ah hôme, na m’atentes!”. O romance Canga, de Horácio Bento Gouveia (GOUVEIA, 1975), faz referência a uma forma pronominal “si”, também já atestada no PA, inicialmente delocutiva, mas usada como alocutiva, conforme pode ser observado nos seguintes exemplos, retirados desta obra: (1) - Antão que lh’aconteceu daí p’ra cá? - Si o sabe! - […] - Mei não acredita nei minhas intenções? - Cuma acraditar se si tem tão má fama!” (p. 50) - Si na diz a verdade! - Digo, digo - Mas si nã me disse ainda o que me quer!” (p. 63) (3) - Já ia tarde. Nem vua à Chapoeirada, a casa de me padrinho. - Se lh’agrada vua mai si.” (p. 64) O pronome de tratamento “si” parece funcionar, tal como surge nos diálogos acima, como uma variante popular e de respeito, relacionada com outras variantes que se caracterizam por requererem uma forma verbal na 3PS (“você” ou “senhor”), consoante a maior ou menor proximidade existente entre os interlocutores da interação verbal. Tal como nos outros domínios da variedade do Português Falado na Madeira (Sintaxe; Regionalismos ;Fonética), os dados provenientes das formas de tratamento, no plano léxico-pragmático, apontam, assim, para a coocorrência de traços arcaizantes (uso de “senhor” nas relações filhos/pais e uso de vocativos “home” e “si”) e de traços inovadores (uso de vocativos “apaz”, “apariga”).   Aline Bazenga (atualizado a 07.12.2017)

Linguística

falar(es) na escrita

As duas faces de uma língua viva Constituída por uma vertente oral e outra escrita, uma língua é, por princípio, bifacial. Contudo, nem sempre os dois lados coexistem. Se for uma língua viva, a face oral, tem-na por inerência, mas pode não contemplar a escrita. Os crioulos cabo-verdianos constituirão um caso paradigmático disso mesmo, embora a situação se esteja a alterar com a tendência crescente para a fixação da fala do criouléu cabo-verdiano de Santiago, divergente, por exemplo, do de São Vicente. Se se tratar de uma língua morta, sucederá o inverso. É assim com a língua latina, que, grosso modo, subsiste apenas na escrita. Pela sua prolífera cisão, esta deu origem às línguas românicas, que, inicialmente, eram apenas faladas e que, por razões históricas, ganhando dimensão nacional ou regional, se tornaram, na sua maioria, escritas. A língua portuguesa, com 800 anos de história contados a partir do Testamento de D. Afonso II, datado de 1214, é exemplificativa de uma língua latina com escrita fixada, havendo percorrido um longo percurso para o efeito. Todavia, há línguas que estavam mortas e que voltaram a ganhar vida, ou seja, readquiriram uma vertente oral. Foi o que aconteceu com a hebraica, aquando da criação do Estado de Israel. É possível contar com outras línguas que nunca foram escritas e que desapareceram ad aeternum com a extinção da sua comunidade de falantes (cf., p. ex., DN, 7 fev. 2011, 49). Algumas mantêm-se vivas pontualmente, como os versos sânscritos recitados em exercícios de ioga. Neste conjunto de línguas, seria igualmente viável inserir o latim, já que a Santa Sé o usa ocasionalmente, sendo a sua língua oficial, embora o italiano a substitua em grande parte das ocasiões em que é indispensável recorrer a um registo linguístico de viva voz. Assim sendo, compreende-se que a dinâmica de um idioma é dada pelo facto de ele ser falado, usado na comunicação diária dos membros de uma comunidade. Esta evidência reencontra-se na relação dos termos “comum”, “comunidade” e “comunicação”, ao integrarem a mesma família. Entre línguas naturais mortas (desaparecidas ou conservadas), ressuscitadas e vivas, a relação entre as suas duas faces, os dois registos, é incontestável. Podem esses dois lados (ou apenas um deles) encontrar-se num estado latente/implícito (sem escrita ou sem oralidade) ou patente/explícito (com escrita e com oralidade). No geral, é à comunidade de falantes (os usuários das línguas numa ou nas duas facetas) que cabe decidir o que pretende fazer. Acontece que, nas trocas linguísticas quotidianas, a variedade da língua empregue raramente corresponde, com completude, à que está padronizada nos dicionários e nas gramáticas, nos compêndios e nos prontuários, já que os membros de uma comunidade vão recorrendo quer a diversos níveis da linguagem, consoante as situações de comunicação em que se encontram – das mais formais às mais informais –, quer a variedades sociais ou diatópicas com cunho específico. É preciso ter em conta que estas últimas recebem a influência da área geográfica onde os falantes nasceram e vivem ou onde passaram a residir, sem aí terem nascido. Assim, sucede que na Região Autónoma da Madeira (RAM) se fala de uma maneira que não é integralmente comum à do restante território nacional, embora também se recorra, nesta área geográfica insular, à variedade padrão, de modo mais premente na escrita documental e oficial. Compreende-se, consequentemente, a razão por que a variedade regional tem somente registo oral, não possuindo nenhum registo escrito oficial. É famosa a frase “O grade azougou e foi atupido na manta das tenerifas”, apresentada como um exemplo ilustrativo do falar regional usado pela população, sendo incompreensível a quem seja de fora, isto é, estranho à comunidade. Aliás, vão-se divulgando textos escritos “à madeirense” (incluindo do Porto Santo: cf., p. ex., ROSADO, 2003). É também esta a ideia que perpassa, por exemplo, no texto “Linguagem Popular da Madeira”, da obra homónima (SILVA, 2013, 23-27), e na crónica “Falares Ilhéus” (JARDIM, 1996, 23-24). No arquipélago, é frequente ouvir dizer, mesmo numa situação formal de comunicação, que determinada tarefa leva “horas de tempo” (“Esse trabalho leva duas horas de tempo”), mas a expressão não se deverá escrever, já que, no plano da escrita, vigorará a norma que aceita unicamente “horas” (“Esse trabalho leva duas horas”). Esta discrepância é fácil de entender, visto que as entidades que controlam o idioma, nomeadamente no que se refere ao ensino, para o manterem homogéneo, o mais uniformizado possível, optaram por uma grafia única, a da norma, um padrão imposto às restantes variedades. Assim, a qualidade bifacial do Português assume, do lado da escrita, à partida, a invariabilidade, mas reconhece, do lado da fala, a variabilidade. Infere-se, daí, que a norma é a única variedade com menos variação. Todavia, a este propósito, sublinhe-se que a definição de “norma” pode não ser unânime. Embora este conceito tenha uma base incontestável, quando a definição remete para “que serve de modelo, de padrão”, foi posto em causa, ultimamente, devido à população referencial que a consubstancia. A que falantes corresponde a norma? Reporta-se aos mais instruídos, sejam eles de que parte do país, e do mundo, forem? Tem origem, em exclusivo, nos falantes mais escolarizados (estrato social médio-alto) de uma área geográfica precisa (Lisboa ou Coimbra-Lisboa)? Para o Português Europeu, equivaleu à variedade usada pela classe alta do eixo Lisboa-Coimbra, e para o Português do Brasil, à das classes altas do Rio de Janeiro (CUNHA e CINTRA, 1995). Como já referido, este conceito de cariz social e geográfico tem sido alvo de alguma refutação, estando, claramente, a ser reequacionado (cf., p. ex., EMILIANO, 2009), o que é compreensível numa sociedade do séc.XXI que, pesem embora as enormes desigualdades sociais, tende para a existência de uma classe média mais forte, com diminuição dos extremos no que toca ao poder económico. Este é, pelo menos, o cenário generalizado na sociedade ocidental. Esquecendo, momentaneamente, a problemática colocada pelo conceito de “norma linguística” e centrando a temática na questão das variedades, sabe-se que, habitualmente, os falantes regionais dominam, pelo menos, duas variedades linguísticas: a exógena (a normativa) e a endógena (a nativa). Diz-se, então, que existe um fenómeno de diglossia, muito semelhante ao bilinguismo. Torna-se evidente, porém, que isso se aplica em exclusivo ao registo oral, uma vez que, na escrita, predominará a ortografia estabelecida para a língua oficial. Por exemplo, num bilhete para um familiar, um madeirense poderá escrever algo como “Vamos ir lalá lalém com Maria. Junta a mochilha!”, hesitando na grafia de “lalá”: “lá-lá”/“lá lá” e de “lalém”: “l’além”/“lá-além”/“lá além”. Todavia, se ele tivesse de transmitir esta mensagem a alguém que não fosse da mesma variedade diatópica, encontrando-se, além disso, numa situação de comunicação que requeresse adequação linguística, deveria alterá-la, adaptando-a com uma proposta como “Vamos dar um passeio acolá com a Maria. Apanha a mochila!”. Numa comparação geral destas duas possibilidades, observa-se que as divergências existentes entre o registo exógeno e o endógeno são substanciais e mereceriam a elaboração de um dicionário (Regionalismos Madeirenses) e de uma descrição gramatical (REBELO, 2014a). Esta deveria dar conta de todas as marcas linguísticas que individualizam a variedade regional a nível da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica, incluindo os outros campos dos Estudos Linguísticos, o que os vários trabalhos existentes, de que fazem parte as dissertações académicas, tenderam a fazer de modo parcial. Fica claro que a norma de uma língua viva tem uma vertente oral e uma escrita, mas tal não sucede com as variedades diatópicas, uma vez que possuem unicamente, em termos oficiais, registo oral. Pontualmente, quando se vê escrita nas mais diversas situações de comunicação, nem sempre, por diversas razões, é evidente a variante a fixar (REBELO, 2014b). Aliás, as corruptelas, ou seja, “pronúncia ou escrita de palavra, expressão, etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social” (HOUAISS, 2001), presentes nas entradas de vocabulários e glossários são prova disso mesmo. Com frequência, surgem na imprensa (cf. os jornais regionais publicados diária ou semanalmente na RAM) hesitações. É o caso de “persiana”, um vocábulo que não se usa no arquipélago e que é, sistematicamente, substituído pelo termo tido como regional “tapa-sol” ou “tapassol”, parecendo difícil escolher entre uma ou outra variante. Acontece de igual modo com muitos outros termos registados nos vocabulários existentes (cf. RIBEIRO, 1929; SILVA, 1950; SOUSA, 1950; PESTANA, 1970; e CALDEIRA, 1993, entre outros). Esta variação gráfica assinala-se, inclusive, nos estudos linguísticos, como os de Käte Brüdt (1938) e de Millet Rogers (1940, 1946 e 1948), que anotaram as palavras da forma como as ouviram pronunciadas pela população. A audição com apontamento foi a metodologia seguida por grande parte dos estudiosos da variedade insular madeirense. Aliás, estes dois investigadores, como quase todos os outros dos três primeiros quartéis do séc. XX, arranjaram uma transcrição sui generis para grafar a dinâmica da fala madeirense (REBELO, 2002b). Este método de registo do(s) falar(es) faz lembrar o da “pronúncia figurada” (REBELO e SANTOS, 2013, submetido), que se empregou extensivamente antes de haver alfabeto fonético internacional. Veja-se o seguinte exemplo para “vinho”, evidenciando a diferença entre a pronúncia figurada, como a expressa em “vâinho” (BRÜDT, 1937-1938), e uma transcrição fonética que se poderá considerar equivalente: ['vɐjɲu]. Sinteticamente, a expressão “pronúncia figurada” significa aquilo que os termos constituintes evidenciam, ou seja, é a representação escrita (figurada), através das letras do alfabeto latino e de determinados sinais adicionais, como acentos gráficos, usada para poder ser reproduzido por meio da leitura (articulação) um modo de dizer (pronúncia) de uma língua estrangeira ou de uma variedade geográfica. A única face visível da variedade diatópica madeirense A variedade insular madeirense, no seu todo, tem, consequentemente, patente a face oral, uma vez que é exteriorizada através da verbalização, e latente (invisível) a faceta escrita, dado que não possui gramática oficial, nem ortografia definida. O mesmo se verifica para as restantes variedades regionais portuguesas ou para as outras realidades não diatópicas lusófonas, como as africanas ou as asiáticas. Podem existir estudos que descrevam ou registem particularidades da oralidade das variedades, mas são restritos e pontuais. Aliás, a “transcrição alinhada” que acompanha as gravações dos CD’s Português Falado (BACELAR DO NASCIMENTO, 2001) normaliza consideravelmente a vitalidade da fala, distanciando-a bastante da grafia que surge a acompanhar o registo oral dos falantes gravados. Porém, esta situação tem vindo a ser alterada, dando-se visibilidade ao registo da variedade, como aconteceu para São Vicente (cf. FREITAS, 1994), embora não se tenha acesso às gravações realizadas pela pesquisadora. Quase todos os trabalhos, incluindo os académicos, curiosamente, facultam o registo escrito (transcrição), mas não dão o registo oral gravado que motivou a transcrição, sucedendo o mesmo com os trabalhos dos atlas linguísticos (REBELO e NUNES, 2009), em que apenas se publica a transcrição fonética dos termos cartografados. É assim desde o início das investigações, mas ressalva-se que, antigamente, os meios técnicos eram praticamente inexistentes. Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo e Lindley Cintra interessaram-se pelo estudo da variação diatópica portuguesa, procurando atestar (por escrito) estas realidades linguísticas ultradinâmicas. Quanto à existência de uma única variedade madeirense ou de muitas, uns preferem o singular (VASCONCELOS, 1901, 1970) e outros o plural (CINTRA, 1990, 2008). Escreveu Lindley Cintra que “[...] não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertence ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais. Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos de outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (CINTRA, 2008, 104). No entanto, apesar de optar pelo plural, não os identifica, nem os localiza. Indicar, unicamente, diversas particularidades não parece suficiente para justificar a existência do plural “dialetos madeirenses”. Foi testado o reconhecimento auditivo da variação na variedade insular madeirense (REBELO, 2011) e comprovou-se que dificilmente os ouvintes conseguem identificar, simplesmente pelo falar, a origem regional dos falantes. Assim, por falta de provas e de estudos consistentes sobre este assunto, opta-se por referir a variedade no geral e, consequentemente, no singular. Aliás, a designação “madeirense” (até prova em contrário) serve perfeitamente para o efeito, fazendo equivaler a linguagem regional ao identificativo do habitante (língua e gentílico), como acontece com a maioria das línguas vivas (REBELO, 2014a). Antes de os estudos pós-saussurianos centrarem a análise linguística na parole (fala), em vez de se concentrarem na langue (língua), os filólogos debruçavam-se sobre os textos escritos, em especial os literários. Deles colhiam informações pertinentes para o estudo da langue, em particular da sua diacronia e história. Criando-se a Linguística como disciplina científica, o que passa a interessar não são os textos fixados em suportes deterioráveis como o papel, mas a riqueza sincrónica da fala multivariável, com um suporte físico “imaterial” (o ar). Este afastamento da escrita levou os especialistas da linguagem, sobretudo os dedicados à análise da fala, num plano sincrónico, a olvidarem totalmente os registos literários. Ora, para os linguistas que têm procurado estudar o português falado na RAM, através de transcrições e de gravações, é de todo conveniente observar, igualmente, os contributos dos escritores regionais. No séc. XX, sobremaneira na primeira metade, indo mesmo aproximadamente até à déc. de 70, as transcrições linguísticas presentes em dissertações de licenciatura, e noutros trabalhos académicos, como se referiu, não diferiam muito das propostas presentes em textos literários, nos diálogos de personagens tipicamente regionais, estando ambos (trabalhos académicos e textos literários) muito próximos do método da “pronúncia figurada”. A descrição da fala regional importa aos estudiosos da linguagem e a um número considerável de escritores, embora numa abordagem menos científica do que a que orienta um linguista. Logo, é a Literatura que vai permitir registar a escrita do modo regional de falar, mesmo se algumas produções literárias não têm seguido esta via, o que aconteceu na recolha de contos populares (FREITAS, 1996) ou de rimances (FERRÉ e BOTO, 2008). Não se almeja, no entanto, abordar a questão da “Literatura Madeirense” (cf., p. ex., HOMEM, 1999 e SANTOS, 2007, 2008), mas tão-somente valorizar, para o falar da variedade madeirense na escrita, o contributo de textos literários de alguns escritores, mais ou menos conhecidos, consagrados ou não, relevantes ou insignificantes quanto ao cânone literário (SANTOS, 2008). A escrita da variedade madeirense: a relevância do texto literário Em termos linguísticos, se o português falado na RAM é apenas unifacial por possuir exclusivamente a face oral, quando olhado sob o prisma literário, torna-se bifacial. Contudo, a dimensão escrita que adquire não é ortográfica, mas fonográfica ou grafofónica (REBELO, 2013 e 2014, no prelo). Estes dois últimos termos estabelecem uma íntima relação entre a dimensão “gráfica” (representação escrita) e a “fonia” (produção oral) para dar conta das características regionais ou locais de um modo de falar. Consistem, por assim dizer, no mesmo processo empregue no registo da “pronúncia figurada”. Posto isto, convém, todavia, clarificar que as representações escritas do registo oral regional vão variando consoante os escritores e a maneira como captaram as sonoridades insulares, não havendo, portanto, uma relação unívoca entre estas duas faces. As causas para este fenómeno serão múltiplas e não se equacionam de momento. A poligrafia literária faz lembrar o polimorfismo próprio do Português Arcaico (cf., por exemplo, VÁZQUEZ CUESTA e LUZ, 1988). Por exemplo, o Dicionário Houaiss apresenta a evolução histórica dos significantes e verifica-se que nem sempre um determinado vocábulo (ex.: “igreja”) se escreveu da mesma maneira, tendo tido, num mesmo período ou em mais, várias formas (ex.: “egreja” e “ygreja”, entre outras possibilidades). Em parte, isso verifica-se porque os diversos autores tidos como regionais foram fixando e dando corpo gráfico, visibilidade impressa, às sonoridades insulares, segundo a sua própria captação da fala. Este processo de materialização dos diversos níveis da variedade insular (como o social: calão, gíria, etc.) na escrita literária sucedeu no plano internacional (p. ex., em França, com Raymon Queneau, e em Moçambique, com Mia Couto) e nacional, com escritores como Lídia Jorge ou Aquilino Ribeiro. Aliás, é sabido que já Gil Vicente procurara conferir um estilo linguístico a determinados tipos de personagens, moldando a grafia segundo traços de pronúncia. Logo, esta especificidade não se observa unicamente na RAM, uma vez que é comum a outras variedades, registos ou línguas. Deste modo, não é uma estratégia exclusiva do espaço criativo madeirense. Contudo, é aqui que a interessa observar, esboçando-lhe os contornos para a configurar. São, sobretudo, as personagens representativas das camadas sociais mais baixas, tipicamente populares, que, nos textos literários, vão “falar à madeirense”. O valor científico da linguagem popular (BOLÉO, 1942) e a problemática da relação entre “popular” e “regional” (VERDELHO, 1982) são tópicos prementes para o estudo do registo escrito das variedades. A escrita ficcional tende a querer assumir traços de realismo linguístico (REBELO, 2008, 2013, 2014 no prelo). Portanto, as personagens, enquanto entidades literárias intratextuais, ganham pujança extratextual, representando um modo de falar de um povo de uma região. Têm entidade individual, muitas vezes com nome próprio, mas identificam o conjunto, a comunidade. O texto adquire, então, um colorido regional quando estas personagens populares, quer iletradas quer pouco ou nada instruídas, falam, sendo recriadas pelos autores. A grafia da fala representada passa a ser desviante porque é uma “transgressão ortográfica”, visto corresponder a uma transcrição gráfico-fónica. As letras do alfabeto latino são usadas para escrever a pronúncia regional que se afasta da representação ortográfica normativa (como no processo da “pronúncia figurada” e de modo distinto da transcrição alinhada, representação ortográfica que acompanha linha a linha a produção de um texto oral). São, assim, as sonoridades específicas da variedade diatópica madeirense que passam a ser escritas. É complexo saber quem terá sido o primeiro autor a procurar registar o falar regional madeirense na escrita, nomeadamente literária, uma vez que a tendência foi quase sempre a de normalizar a grafia. Sem considerar o registo pontual de Mariana Xavier da Silva (1884), Ricardo Jardim, que passou alguns anos em Inglaterra, apresenta-se, com Saias de Balão, como o percursor, até que se descubra outra referência. Este autor regista a fala na escrita de maneira muito incipiente e de forma esporádica. Esta acontece, essencialmente, quando os “criados” falam, como se verifica no seguinte excerto: “Menêina, nã vaia p’ra riba!... Menêina, vai-se pisar!... Menêina, aprante-se p’ra aí! Esteja quètinha!... Credo! Abrenúncio!” (JARDIM, 1946, 32). Desta deixa, sobressai, entre mais particularidades, a ditongação do <i> tónico (êi), considerada como tipicamente madeirense. Em contraponto com Ricardo Jardim, indubitavelmente, um dos autores que mais empregaram este processo da escrita do falar terá sido, por certo, Horácio Bento de Gouveia (SANTOS, 2007). Se não o fez em todos os contos, usou-o, pelo menos, sistematicamente nos seus romances (ALMEIDA, 2000). Apresenta-se um excerto da obra Torna-Viagem: o Romance do Emigrante (GOUVEIA, 1995, 56): - Q’ aconteceu? - O navoeiro matou mê filho! - Aonde? - Na beira da rocha. - Antão ’tá no fundo da ribeira. – E chamou, repentinamente, com toda a força da arca do peito: - Manel? Manel? - O quia, mê pai? - Vem cá. Neste breve diálogo, além de outros fenómenos, regista-se a ditongação com crase em “quia” (que é), sendo notória, no início do diálogo, a ausência do artigo definido antes do possessivo (Sintaxe) com a frequente monotongação deste (“mê filho”). Estes traços são correntes na variedade madeirense, embora, como se sabe pelos trabalhos de vários estudiosos e linguistas como, p. ex., Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo ou Lindley Cintra, comuns a outras variedades portuguesas. Entre estas duas tendências extremas (usar pouco – Ricardo Jardim – e empregar muitíssimo – Horácio Bento de Gouveia), diversos autores foram escrevendo a variedade diatópica madeirense. No entremeio, estará, p. ex., António Marques da Silva, com a “crónica romanceada” Minha Gente, obra póstuma, mas cuja finalização data de 1951. Dando voz às gentes da zona de São Jorge (Santana), reproduz o autor o falar do povo local, como evidencia a citação que se transcreve (SILVA, 1985, 13): – O mê digosto é nã poder botar-me desta terra pá rua. Ainda cum queira mercar um casaco pá missa, nã se pode. Anda-se atolado em lameiro todo loi dias e o que se ganha mal dá pá barreiga... – E si que dê graças a Deus em ter uma buxada para meter na boca... – acrescentou o outro, no mesmo tom melancólico. – Si amode canda reinando ca vida, Man’leinho? – soltou de lá um mais folgazão. – Ora! Cadmiração! Por aquei é com ’um porco que tá dentro do chequeiro. No há com’as outras terras! O Rodrigues, porém, insistia: – Poi sim... Mas si que veja o prove do João Perfeiro, do Farrobo, um homem como um teil, que veio arrebentado daquelas terras do fasteio!... Destaca-se também nesta amostra da escrita da fala a ditongação de <i> tónico (“Man’leinho” – Manuelinho, “barreiga” – barriga, “aquei” – aqui, “teil” – til, “fasteio” – fastio). Este ditongo, com semivogal divergente da palatal ou da velar normativas, reencontra-se, p. ex., no estudo acústico sobre o falar do Porto Santo (REBELO, 2005). Sobressai o uso da forma de tratamento com “si”, entre vocabulário típico (“mercar”, “um lameiro” ou “reinando”) e diversos fenómenos fonéticos, como mudanças de timbres, supressões, etc. Realça-se a forma do artigo definido masculino plural “loi” e a monotongação do possessivo “mê” (meu), mas, aqui, antecedido do artigo (“o mê”). Como se verifica, a exploração das particularidades linguísticas registadas deveria ser alvo de uma investigação aprofundada, podendo, crê-se, ter um considerável interesse para o linguista. A reaproximação da Linguística à Literatura merece, assim, para o estudo da variedade insular, uma atenção especial. Além destes três autores mencionados, apontam-se outros por serem, porventura, os que mais ilustram esta estratégia linguístico-literária, recorrendo a uma transcrição linguística reconstruída (ficcionada) que aproxima a grafia da fonia. Decerto, os autores que viveram o período da Revolução dos Cravos, em meados da déc. de 70 do séc. XX, experimentaram uma revalorização de tudo o que se relacionava com o povo. Textos publicados nesse período tenderam, por isso, a sobrevalorizar o falar regional, na sua vertente popular e regional. É o que acontece com Pernas Ceifadas, de Maurício Melim Teixeira, com prefácio de Horácio Bento de Gouveia. Nesta obra, o autor, conferindo-lhe um cunho de realismo, afirma que “[...] a história apresentada se baseia em factos reais [...]. À parte algumas criações minhas, outros arranjos e outra disposição, ela sustenta-se num (entre tantos) caso real, bem funesto da sociedade madeirense” (TEIXEIRA, 1975, 9-10). O pendor realista é ainda salientado por Horácio Bento de Gouveia no prefácio da obra: “A prova evidentíssima reside no conteúdo da novela, no realismo das cenas, no aspecto fónico do linguajar das personagens”. Acrescenta Gouveia, a propósito: “Nota-se uma natural preocupação de gosto pelo termo raro, muitas vezes forçado. Infere-se, da sintaxe, muita leitura, bem que não completamente escoimada dos prejuízos inerentes à busca da verdade linguística” (Ibid., 12-13). Reencontra-se esta tendência nos diálogos que dão conta de um falar divergente do registo normativo (Ibid., 153-154): – Olhe nã repare nesta desarrumação qu’ at’ ia ûa vergonha! ’Tava [sic] acabande d’almoçar, sabe cuma ia... Mas antão o qu’ ia qu’ a trai pro cá? Precisa dalgûa coisa, ia? S’ iu puder ajudar ia só dezer, faça-se de casa, nã faça cirmónia! [...] – Eu gostava de tilfonar... Hesitava. – Pôs ia tilfonar... ora venha daí... largue lá esses acanhamentes... por ’quei, por ’quei... – e balançava-se, afanada. – Sabe qu’ o nosso... quer dizer... o mê pai trancou o tilfone e iu preciso muito tilfonar... desculpe vir incomodar... – Ora essa! Ora essa! Incomodar, proquia? Nã incomoda nada, nem um belisque... Ah, mas o sê pai trancua? Ora essa! – repetia – Mas antão proquia? – [...] – Tudo por causa do mê namorado... O qui é que quer? Ele é assim! Embirrou e agora? É teimoso que nem um jerico! Vá lá entender-se isto! O diabo do homem pendeu prá ‘li e tirem-lho da carcaça! – Ah, e iu a pensá qu’o sinhô Francisque era um home compreensive, honeste! Olhe que nem parece ser o qu’ ia! – estava despeitada – Sabe o qu’ ia: a gente vê, fala, mei nunca ia cuma se vivesse cum ele, nã se lhe conhece ei manhas. Aparências... Olhe menina: nem tude o que luz ia oure! Ora, são todes bons! Homes! Todes iguais, nem um só s’ escapa! Ia tude ûa súcia de bandides, ûa canhalha! Concluía por fim: – Mei vá lá, vá lá, nã demore mais aquei, qu’a meinha c’riosidade já lhe tirua munte tempe. Ia aquei, ia aquei! Pegue, ‘teija à vontade! Neste diálogo, assinala-se, de novo, a ditongação de <i> acentuado (“aquei”, “meinha”), que, porém, nem sempre ocorre (“compreensive”, “bandides”), assim como a de “é” (“ia”), entre múltiplas outras especificidades, como a mudança de timbre de <o> em posição final absoluta ou não (“todes”, “tempe”). Certos traços ocorrem igualmente no conto de Jorge Sumares “Mai Maiores qu’ essei Serras”, que data também do mesmo período de mudança política, assim como de paradigma estético-literário e linguístico, já que foi escrito em finais da déc. de 60 e publicado, parcialmente, em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Não sendo escritor de profissão, Sumares redigiu este texto aproximando os grafemas dos fonemas, ou melhor, as letras dos fones, como se constata da leitura do passo que se recortou da integralidade textual (um diálogo em que se “ouve” apenas uma das duas vozes, um dos dois interlocutores, o idoso popular, marcadamente regional): “Filhos? Tive nove. Seis homes e três melheres. Tudo se criua à conta de Deus. Inté a nossa Rosaira já tava criada cando Deus a chamua à sua devina presença. Já andava nui vinte. Veio-le um bicho no estâmego – lá foi” (SUMARES, 2005, 177). Curiosamente, a ditongação de <i> tónico não se verifica neste excerto, mas ocorre no decorrer do conto (REBELO, 2013). Porém, o fenómeno da ditongação sucede, p. ex., com o fonema [o] (<ou>) em “criua” (criou), “chamua” (chamou). Também sobressai a mudança de timbre vocálico por, na maioria dos casos, assimilação ou dissimilação, o que é evidente em “melheres” (mulheres), “devina” (divina) e “estâmego” (estômago). Dá-se ainda, e apenas, relevo ao plural “nui” (nos), assinalando um traço que é identificado como madeirense, isto é, o plural em <i>. Este fenómeno gerou controvérsia quanto à sua explicação, nomeadamente entre Millet Rogers e Eduardo Antonino Pestana (PESTANA, 1970) (Sintaxe). É indispensável referir que, antes destes autores, Ernesto Leal, no conto com o título homónimo da obra O Homem que Comia Névoa, de 1964, experimentara este exercício, mesmo se, como Ricardo Jardim, não lhe conferiu grande relevo na sua obra. No entanto, não se pode deixar de mencionar, ilustrando esta escrita fónica com um breve trecho (LEAL, 1964, 68-69): Na Portela das Mantas, à hora da névoa da manhã, o vilão grita assim e os sons ficam no ar, a baloiçarem-se: – Ó Maruia!... […] E a viloa responde: – Qu’é? […] – Onde estás, que não te vejo, ca névoa? […] – Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro. Mais uma vez, o <i> tónico surge ditongado (“Maruia” – Maria, “ruiba” – riba) e sobressai enquanto marca madeirense perante fenómenos populares geograficamente mais amplos, como a elisão em “Qu’é?” ou a aglutinação presente em “ca”. Estranhamente, as formas verbais “estás” e “Estou” mantêm-se intactas, quando correntemente se reduzem a “tás” e “Tou”. O mesmo acontece com o ditongo de “não”, que tende a monotongar na oralidade (“nã”). O vocábulo “couves” é, popularmente, por certo, mais empregue com a variante do ditongo “oi”, mas, neste excerto, mantém-se inalterado. Esta observação, aplicada a outros fenómenos e vocábulos, é válida para os restantes autores que seguem o processo de escrever o falar, já que, por vezes, não assinalam traços que se sabe serem comuns no registo da fala. Aliás, isso é notório em Francisco de Freitas Branco, que, embora não tenha escrito textos literários, seguiu esta estratégia em crónicas com alguma literariedade. Orientou-se este autor por uma transcrição alfabética do falar madeirense (da Madeira e do Porto Santo) inconstante e cambiante, muito versátil, como o comprovam a leitura das crónicas “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê Tenho esta Ideia Comeio (Crónica Literária)” e “Ainda nam Teinha Trêzianes, Comecei Cêde: Tentativa para Reprodução Escrita da Fala Viva” (REBELO, 2002a, 2004, 2008, 2013, 2014 no prelo). O processo terá desagradado aos falantes que se sentiram desvalorizados por considerarem que aquela escrita estava repleta de “erros”. Ora, o facto de as transcrições de Freitas Branco se reportarem a pessoas (reais – entidades extratextuais) e não a personagens (de papel e palavras – entidades intratextuais) terá criado equívocos difíceis de resolver, já que estas transcrições queriam sublinhar a riqueza da dinâmica da fala. Parece, então, que, se se sair do plano ficcional, a variedade diatópica continua a ser unifacial. Caberá aos linguistas ultrapassar esta dificuldade, se se pretender que a variedade endógena seja bifacial fora dos limites da Literatura, que, porém, tem continuado a alimentar o processo de transcrição da fala. Mais recentemente, um dos últimos autores que procuraram passar para a escrita o falar dos ilhéus do arquipélago terá sido Lídio Araújo, que recorre, abundantemente, ao processo em Filhos do Mar. A leitura deste livro é animada pelos diálogos recriados, que, além de serem muito enfáticos, como à partida o são os reais, transmitem um colorido local. As marcas do nível popular preenchem o discurso dialógico, como o seguinte excerto o evidencia (ARAÚJO, 2002, 83-84): – Pedro, acorda! Al’vãta-te O [sic: sem ponto] pae leiva-t’ô maar! [...] – O qu’ia pae, ô maar? – Seim! Êu t’prom’tei, um deia. Hôje vaes c’agênte! [...] – Ia ve’dade, pae? – interrogou, incrédulo, arregalando os olhos. – Ia seim! – E a mãe já saabe? – Já! D’spacha-te! Ao ler-se estas deixas das personagens, é como se se ouvisse as pessoas a expressarem-se nos seus modos de falar marcadamente sincopados e com múltiplos fenómenos estudados pela fonética combinatória (Fonética). A supressão de fonemas é assinalada pelo apóstrofo, como em “Al’vãta-te” (Levanta-te) e “t’prom’tei” (te prometi/prometi-te). A duplicação vocálica poderá indiciar vogais longas e/ou com um grau de abertura considerável, representando para o leitor a necessidade de as “dizer” duas vezes (“maar” – mar, “saabe” – sabe), como se houvesse duas vogais/duas sílabas. Este último fenómeno confere melodia ao falar, alongando os vocábulos por parecerem ganhar uma sílaba. Como para os autores já mencionados, além de o nível popular se destacar, surgem também nesta obra de Lídio Araújo particularidades regionais, como a ditongação de <i>, quer oral – “deia” (dia) –, quer nasal – “seim” (sim). Regista-se ainda a da vogal anterior semiaberta, que se encontra, p. ex., em “qu’ia” (que é) e em “leiva” (leva). Poderia alargar-se a exemplificação, mas esta parece ser suficiente para comprovar o valor deste livro, que, através da recriação do autor, reproduz o falar das gentes do mar madeirense de Câmara de Lobos. Nesta síntese, fica claro ser inviável referenciar todas as obras de cunho madeirense (que começam a ser em número considerável) em que o recurso da escrita da fala ocorre. Pelo traço característico que as permite reagrupar aqui, os escritores mencionados e as obras citadas, além de todos os restantes não referidos, aguardam um estudo linguístico aprofundado. Seguindo as pegadas dos filólogos do passado, o linguista do presente, dedicado à variação regional, terá todo o interesse em analisar as diversas transcrições literárias para a representação gráfica do falar insular, que revelam constituir um rico património (REBELO e GOMES, 2014). Muitas vezes, são dados impressionistas (REBELO, 2003, 2011) e intuitivos, já que, p. ex., a palatalização da lateral antecedida de [i] nem é comum (ANDRADE, 1994) nos textos transcritos. No entanto, não se distanciam substancialmente dos que as dissertações de licenciatura apresentaram (MACEDO, 1939; ROGERS, 1940, 1946, 1948; MONTEIRO, 1945, 1950; PEREIRA, 1952; PESTANA, 1954; NUNES, 1965). A título meramente exemplificativo, veja-se, em baixo, a Tabela 1, com algumas representações literárias da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares e Francisco de Freitas Branco. A variação no modo de grafar a vogal indica uma pronúncia particular que cada autor escreve à sua maneira, como a ouve. A tabela foi elaborada a partir de um levantamento de dados anteriormente realizado (REBELO, 2008) e nela facultam-se exemplos, destacando-se a negrito os segmentos a considerar. [table id=95 /] Assim, constata-se que há todo um trabalho de sistematização linguístico-literário a realizar para dar visibilidade à face escondida (a escrita da fala) da variedade insular madeirense, que, todavia, figura em vários textos literários, segundo os critérios individuais dos seus autores. É urgente compará-los para compreender em que pontos são credíveis, ou não, as suas propostas de escrita da fala da variedade diatópica madeirense. Enquanto isso não suceder e não houver interesse em escrever o falar madeirense (os falares madeirenses?), a variedade insular continuará a ser apenas unifacial, sobrevivendo no registo oral, até a comunidade regional assim o desejar.   Helena Rebelo (atualizado a 07.12.2017)  

Linguística Literatura

aragão, antónio

António Aragão Natural de São Vicente, na ilha da Madeira, António Aragão foi uma figura cultural multifacetada do séc. xx. A poesia terá sido a sua área de eleição, mas fez igualmente experiências no âmbito da narrativa e do texto dramático. Também se dedicou a outros planos de intervenção e de estudo, e.g.: a formação do Cine Clube do Funchal para a visualização de cinema cultural. Dirigiu duas instituições madeirenses de relevo: o Museu da Quinta das Cruzes e o Arquivo Distrital da Madeira. Palavras-chave: António Aragão; historiador; promotor cultural; artista; escritor; escrita experimental. Existem algumas fotografias a preto e branco de António Aragão, no n.º 28 da revista Margem, que lhe é dedicado. Nelas, sobressai uma figura de pequena estatura e de porte cuidado, vestida com um casaco de fazenda e tendo a cabeça coberta com uma boina ou boné de cor preta. Na cara barbeada repousam uns óculos de vista (ou de sol) de aros escuros e grossos, não muito grandes, que estavam bastante em moda na déc. de 60 do séc. XX. Aqueles recobrem-lhe o pequeno rosto e possibilitam o seu reconhecimento: dão-lhe a marca da intelectualidade que o diferenciou. Praticamente todas as fotografias se reportam à fase de maturidade da sua vida, englobando, sensivelmente, o período da déc. de 60 à de 90 do séc. XX. Este retrato caricatural não permite adivinhar a sua genialidade criativa, revelada nas múltiplas classificações que lhe foram atribuídas. Através do índice da revista Margem referida, fica sem se saber se foi promotor patrimonial da comunidade local (ou melhor, regional), historiador, arqueólogo, poeta, ficcionista, dramaturgo, criador experimentalista, pintor, escultor, desenhista, cinéfilo, ou, simplesmente, um intelectual interessado em preservar o passado aberto à novidade do futuro, na vivência do seu tempo presente. Além de possuir outros epítetos, não se resumirá a nenhum deles, porque será a soma de todos. A personalidade de António Aragão recorda os artistas renascentistas, devido à sua insaciedade de saber e de inventar; era uma pessoa curiosa, nutrindo vários interesses. O acervo que foi constituindo, e que algumas entidades públicas, além de outras privadas, tentam adquirir, revela esta pluralidade de interesses e a sua curiosidade pela diversidade cultural. As balizas temporais, medidas entre o nascimento a 22 de setembro de 1921, em São Vicente, na ilha da Madeira, e o falecimento a 11 de agosto de 2008, no Funchal, indicam que António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia viveu quase 87 anos; fá-los-ia no mês seguinte à sua morte, depois de uma fase de doença prolongada. Embora haja uma biografia divulgada e reiterada, seria preciso observar muitos detalhes para compreender inteiramente este homem do séc. XX, amante do passado e do futuro, e para evidenciar a sua faceta artística: foi escritor, poeta, pintor, escultor e também historiador e investigador. De facto, António Aragão destacou-se como um importante vulto da cultura portuguesa, não só pela sua vasta formação académica como pela sua criatividade na cultura e na arte, o que lhe permitiu vencer as barreiras da insularidade e afirmar-se nos meios académicos e culturais nacionais e europeus. O seu carácter irrequieto e polémico afastou-o do conformismo criativo. Era assim na investigação histórica, na etnografia, na pintura, na escultura e na arte da palavra. Além de todas as suas potencialidades e capacidades, também possuía uma grande paixão pelo cinema. Aliás, em 1955, contribuiu para a formação do Cine Clube do Funchal, a fim de possibilitar a visualização de obras de cinema alternativas às classificadas como comerciais. Da sua vida pessoal, poucas informações são divulgadas nas biografias existentes. Provavelmente por vontade própria, intentou separar a sua vida privada da sua vida pública. É sabido que se casou, em Roma, com Estela Teixeira da Fonte, de quem teve um filho, Marcos Aragão Correia, advogado de profissão. Sua irmã, Ruth Aragão de Carvalho, formada em ballet na capital portuguesa, casou-se com o ator Ruy de Carvalho. A nível de formação académica, a vida desafogada dos pais permitiu-lhe ir estudar no Liceu Jaime Moniz, o que poucos jovens ilhéus, sobretudo os nortenhos, podiam almejar. Posteriormente, como acontecia com os setimanistas madeirenses, seguiu para o continente e frequentou a Universidade de Lisboa, instituição onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, fazendo depois uma especialização em Biblioteconomia e Arquivística na Universidade de Coimbra. Estudou ainda etnografia e museologia em Paris, sob a orientação do diretor do Conselho Internacional de Museus da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Finalmente, dedicou-se ao estudo do Restauro de Arte, em Itália, mais precisamente no Instituto Central de Restauro de Roma, tendo usufruindo de um estágio no Laboratório do Vaticano. Tanto em Paris como em Roma, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). No âmbito do seu percurso profissional, fruto da diversificada e rica formação que tinha adquirido, desempenhou, no plano regional, alguns cargos importantes, tendo dirigido o Arquivo Distrital da Madeira e o Museu Quinta das Cruzes, e sido delegado dos Museus e Monumentos Nacionais na Madeira, associado à Comissão de Arte e Arqueologia da Câmara Municipal do Funchal. Os lugares por onde passou, no domínio laboral, coadunavam-se perfeitamente com os interesses que nutria, quer quanto à museologia, quer quanto à arquivística e à dimensão histórica da sua formação inicial. Notável é a sua atividade enquanto investigador e arqueólogo, da qual derivou vasta e conhecida obra: Os Pelourinhos da Madeira (o seu primeiro livro, de 1959); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700 (1981); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992). A partir das escavações arqueológicas por si dirigidas no lugar do aeroporto, onde se situava o Convento quinhentista de N.ª Sr.ª da Piedade (Santa Cruz), foi possível proceder ao levantamento da planta geral do Convento franciscano, ao estudo das suas características tipológicas e à exumação de variado espólio, onde se inclui uma vasta diversidade de padrões de azulejaria hispano-mourisca ou mudéjar, proveniente do Sul de Espanha, bem como múltiplos exemplares de azulejaria portuguesa seiscentista e setecentista, e de elementos primitivos em cantaria lavrada: portais do Convento, janelas, arco triunfal da igreja, condutas de águas, lajes tumulares e pavimentos, que passaram a constar nos jardins da Q.ta do Revoredo, Casa da Cultura de Santa Cruz. É de destacar que todos os trabalhos por ele efetuados se encontram devidamente catalogados e documentados com plantas rigorosas, desenhos e fotografias. Também se deve realçar a ação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, que era então o poder executivo do arquipélago, que encomendou e incentivou este trabalho e que, depois de entregue pelo autor, o depositou em grande parte no Museu Quinta das Cruzes. A par da profissão oficial, foi dando realce à sua faceta de artista, como comprovam as suas ilustrações do livro Canhenhos da Ilha de Horácio Bento de Gouveia. Outro exemplo é a sua poesia espacial OVO/POVO, apresentada, em 1977, na XIV Bienal de São Paulo, tendo tido uma exposição em Lisboa, no ano seguinte, e outra em Coimbra, no decorrer de 1980. Outro exemplo ainda foi a exposição PO.EX. 80, que esteve na Galeria Nacional de Arte Moderna, na capital portuguesa, em 1980 e em 1981. A sua vertente artística culminou em 2007, com uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, tendo, porém, exposto também na Madeira. Pese embora estas facetas, será sempre lembrado e reconhecido pela sua intervenção na literatura de cariz experimental, nomeadamente pela sua colaboração na organização dos dois números da revista Poesia Experimental (1964, 1966). A este propósito, como afirma Rui Nepomuceno: “Em Portugal, o experimentalismo poético e literário ocorreu em Lisboa nos meados dos anos 60, mais precisamente em 1964, com a publicação da ‘Revista Experimental 1’; muito embora desde os finais de 50 já tivesse começado a germinar, como até podemos verificar ao cotejar os trabalhos literários de António Aragão organizados e divulgados naquele decénio, na Madeira” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010). É curioso verificar que a linguística teve um papel preponderante neste movimento e, consequentemente, em António Aragão, algo que Rui Nepomuceno também sugere: “Deste modo, na teorização deste movimento, passaram a assumir grande importância e estatuto determinante os diversos fatores relacionados com a ‘Linguística Moderna’, a ‘Semiótica’, o ‘Estruturalismo’, e, obviamente, os diversos aspetos da ‘Teoria da Forma e da Informação’, de que foram principais intérpretes e seguidores no estrangeiro Abraham Moles, Saussure, Jakobson e, sobretudo, o muito citado Lévi-Strauss” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010); e esta influência tem reflexos em toda a sua criação literária (com particular incidência na linguagem verbal). Por conseguinte, foi pela dimensão literária e artística que António Aragão ganhou renome. Esta ligação com a linguagem manifestou-se em muitas das peças artísticas de António Aragão numa fase de maturidade da vida artística, já que teve um percurso marcado por diversos períodos. As artes plásticas associaram-se, de certo modo, à sua poesia, que usou a linguagem verbal como matéria de jogo em quadros ou em textos e não com o valor que tinha para os linguistas, algo que era próprio da poesia experimental. É preciso lembrar que, além de artista, foi curador de arte contemporânea e promoveu diversas exposições, inclusive na galeria associada à editora Vala Comum, que possuía em Lisboa. Ele próprio contribuiu muitíssimo para a produção de obras de arte de diversas tipologias. O fascínio pela impressão e pelos recortes, com colagens e montagens originalíssimas, acentuou esta veia artística, mais inovadora, se assim se pode dizer, do que a que concebeu em suportes como tela ou pedra. A sua obra vivenciou diversas fases, algo que foi mais notório na pintura. De um período figurativo inicial, com tendência naturalista, passou para uma vertente expressionista com opção pela abstração, por via de uma geometrização e autonomia do traço. Produziu, além de óleos, algumas aguarelas e, em determinada altura, recorreu à laca como material. Na última fase, concebeu composições a partir de colagens, construindo as suas pinturas essencialmente pela destruição do material-base (e.g., jornais). Os quadros, as gravuras, as esculturas e as outras peças concebidas por António Aragão, enquanto desenhista, pintor e escultor, têm merecido um estudo cuidado por parte de peritos. É o caso de Isabel Santa Clara, que releva três obras emblemáticas do artista: “Da obra pública de António Aragão, na qual o autor opta por uma figuração abstratizante, destacam-se, em 1960, o monumento comemorativo do quinto centenário da morte do infante D. Henrique, paralelepípedo com desenho inciso, no Porto Santo; os relevos da fachada da Escola Industrial, depois Escola Secundária de Francisco Franco; e um painel cerâmico no mercado de Santa Cruz, de 1962” (SANTA CLARA, “Artes plásticas”). Todas as obras foram fortemente marcadas pela época em que foram criadas. Assim, das peças mais conhecidas, destacam-se, primeiro, os painéis de cerâmica da Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal, onde sobressaem vultos que laboram. Depois, o colorido painel de cerâmica do mercado da localidade madeirense de Santa Cruz, que comunga da representação das ilustrações que António Aragão fez para o já referido livro Canhenhos de Horácio Bento de Gouveia. A terceira referência escultórica, que ficou localizada no Porto Santo, é designada popularmente por “pau de sabão”, pela analogia da forma que possui o bloco de pedra com uma medida de sabão azul. A rigidez do padrão comemorativo ficará para a eternidade a evocar o momento celebrativo e a criatividade de António Aragão. O padrão diferencia-se bastante dos painéis porque contém detalhes regionais, onde se observam trabalhadores, essencialmente agrícolas, mas também pescadores, quase todos sem rosto, que surgem a desempenhar tarefas do quotidiano, reportando uma vida de trabalho árduo. É de realçar igualmente a imagem de S.ta Ana, em cantaria rija, na Câmara Municipal de Santana, 1959. Desenho de António Aragão. 1944. Foto de Rui A Camacho   Óleo de António Aragão datado de 23 de Julho de 1946. Foto Rui A Camacho Na pintura, desde a déc. de 40 do séc. XX, evidenciou-se em diversas temáticas abordadas e na exploração de técnicas diferenciadas. Realizou exposições em Portugal (Galeria Divulgação, Quadrante, Galeria III, Galeria Diferença, FCG – II Exposição de Pintura Portuguesa) e no estrangeiro, nomeadamente em Espanha (Madrid, Sevilha, Barcelona), México, França (Paris) e Itália (Roma e Turim), encontrando-se representado em coleções particulares e oficiais em vários países, nomeadamente na Fundação Serralves, em Portugal. António Aragão concretizou um projeto artístico contemporâneo baseado em novas tecnologias numa casa que lhe pertenceu, situada na Lapa, em Lisboa. O projeto enquadrava uma associação de educação popular com uma galeria de arte vanguardista, ao qual foi atribuído mecenato pela Secretaria de Estado da Cultura. Antes da doença prolongada de que padeceu até à sua morte, António Aragão, de volta ao Funchal, pintou os seus últimos quadros, que constituíram uma série que intitulou Os Monstros e consistiram numa crítica corrosiva ao que considerava ser a hipocrisia dominante na sociedade. As últimas exposições individuais em vida de António Aragão foram realizadas na Madeira e comissariadas por António Rodrigues. A antepenúltima teve lugar em abril de 1996, na Casa da Cultura de Santa Cruz, e integrou 16 dos seus últimos quadros, bem como uma seleção retrospetiva de 13 trabalhos, em diferentes técnicas, realizados nas décs. de 50 e 60 do séc. XX. A penúltima, Exposição Retrospetiva, teve lugar na Casa da Luz, no Funchal. A última exposição de António Aragão antes da sua morte ocorreu no Museu de Arte Contemporânea da Madeira (Forte de S. Tiago, Funchal). Verifica-se que, por um lado, numa dimensão quase de intervenção social, se interessou por representar o povo, as pessoas, que não valem por si próprias porque não se identificam individualmente, mas configuram grupos profissionais; por outro lado, criou pinturas de paisagens, habitadas ou não, e exemplares de natureza morta. Estas últimas reportam-se, sobretudo, ao período inicial da produção artística, que foi mudando e se foi adaptando aos gostos e às vivências inspiradoras do criador. Em síntese, Isabel Santa Clara descreveu muito bem a versatilidade de António Aragão: “Uma vertente experimentalista sacudiu o panorama artístico de forma peculiar nas décadas de 70 e 80. No centro desta atividade está a multifacetada figura de António Aragão, de inesgotável disponibilidade para com os novos talentos, cujas inquietações e inconformismos lograva canalizar para uma profícua experimentação artística. Ganharam força as práticas de poesia visual e de mail art, potenciadas pelas capacidades técnicas, a acessibilidade, a rapidez e a liberdade de produção de múltiplos da eletrografia. Surgiu assim Filigrama, mail art zine editada entre 1981-1983, revista de folhas soltas, que ia sendo sucessivamente alterada na sua composição e enviada pessoalmente através dos circuitos internacionais da mail art, que passavam muito especialmente pelo Brasil” (SANTA CLARA, 2010, 186); tendo colaborado em diversas manifestações de mail art, divulgou os seus trabalhos em revistas da especialidade. Compreende-se a estreita interligação, assim sintetizada, entre a obra artística e a produção escrita do artista-escritor. António Aragão terá sido, na juventude, um dos poetas da Tertúlia Ritziana, e, em 1946, com cerca de 25 anos, viu o seu conto “Pressentimento” obter um prémio: o 2.º lugar nos Jogos Florais promovidos pelo Ateneu Comercial do Funchal. Em 1952, colaborou com Jorge de Freitas, com Florival dos Passos, com Rogério Correia e com Herberto Helder, entre outros, no caderno de poesia Arquipélago, e, em 1956, foi editor da revista literária Búzio, impressa e publicada a suas expensas, em que colaboraram, além do próprio, Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Eurico de Sousa, Jorge Sumares, José Escada, Esther de Lemos e David Mourão-Ferreira. A sua vasta obra foi publicada essencialmente no Funchal e em Lisboa, uma obra em que se encontram frequentemente textos criados em conjunto com outros autores. Dos seus trabalhos – livros inteiros, revistas ou composições singulares –, tanto de carácter científico como criativo, referenciamos, em seguida, alguns. São vários os seus textos na déc. de 60, designadamente no âmbito da ficção literária, incluindo a poesia e o teatro; participou em ações coletivas e antologias literárias. Em 1962, escreveu o Poema Primeiro; em 1964, o Romance de Iza Morfismo, e também, com Herberto Helder, Cadernos de hoje (uma antologia de poesia experimental); em 1965, colaborou no suplemento especial do Jornal do Fundão sobre poesia concreta com “Visopoemas” e “Ortofonias” (com Ernesto M. de Melo e Castro); em 1966, compôs Hidra I, Folhema 1 e Folhema 2; em 1967, Operação I; em 1968, Mais exactamente P(r)o(bl)emas; em 1969, “Hidra 2”. Na déc. de 70, publicou, para além da já mencionada monografia O Museu da Quinta das Cruzes, Poema Azul e Branco e o romance Um Buraco na Boca, em 1971; também neste ano, participou na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa. Em 1972, dirigiu a edição de Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal, e, em 1973, colaborou na Antologia da Poesia Concreta em Portugal. Em 1975, publicou Os Bancos antes da Nacionalização; em 1976, colaborou na Antologia da Poesia Visual Europeia; e, em 1979, produziu Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 e a já referida obra Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória. Nos anos 80, manteve o ritmo alucinante de escrita e de publicações. Assim, em 1981, apresentou não só o livro A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700, como também a peça de teatro Desastre Nu, que ganhou o 2.º prémio do Concurso de Peças de Teatro Inéditas promovido pela Secretaria de Estado da Cultura em 1980. Também neste ano, escreveu Metanemas e tornou-se um dos fundadores de Filigrama. Em 1982, publicou igualmente o opúsculo de carácter panfletário Pátria. Couves. Deus. Etc. e, ainda neste ano, Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly). Em 1983, compôs Líricas Portuguesas. Antologia e, no ano seguinte, iniciou as eletrografias: O Elogio da Loura do Ergasmo nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente e Merdade My Son, realizadas em 1984, 1985 e 1987, sendo publicadas em 1990. Em 1984, com Alberto Pimenta, deu à estampa Os 3 Farros. Descida aos Infermos (uma curiosa troca de correspondência entre os dois autores), além de ter publicado As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História. Ainda em 1984, numa divulgação em dois discos LP, resultado de trabalhos de investigação no campo etnográfico, ganharam visibilidade as suas recolhas de música tradicional das ilhas da Madeira e do Porto Santo, empreendidas na década anterior com Jorge Valdemar Guerra e com o músico Artur Andrade. Em 1985, fez uma exposição itinerante com Poemografias e, em 1987, apareceu uma nova edição, revista e aumentada, de Para a História do Funchal. Já com mais de 70 anos, ainda manteve alguma produção, tendo sido publicados, em 1992, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal, anteriormente mencionado, e o livro de contos Textos do Abocalipse, que colocaram várias questões, nomeadamente políticas. Além destes títulos, em 1993, foi reeditado o romance Um Buraco na Boca, que recria de algum modo a linguagem verbal, desafiando as convenções da norma. Escreveu ainda para várias publicações: Comércio do Funchal; Línea Sud, Nápoles; Letras e Artes, Lisboa; Expresso; Colóquio-Artes, FCG, Lisboa; Diário de Notícias, Lisboa; Comércio do Porto; Espaço Arte, Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira; e Diário de Notícias da Madeira. A nível internacional realça-se a sua participação em vários fóruns de natureza cultural e artística: Sevilha, 1980; em 1982, Itália e Brasil; 1983, Cuenca; 1984, Comuna de Milão, Itália; 1984, São Francisco, EUA, e Barcelona; 1985, Israel e Nova Iorque; 1986, México e Sevilha; 1987, México e França; 1989, Itália e Paris; 1990, Siegen, Alemanha, México e Washington; e 1992, Madrid. Em suma, as décs. de 60, de 70 e de 80, destacando-se, decerto, o ano de 1981, foram um período muito fértil, marcando toda a sua carreira. Quando se observa detalhadamente a listagem dos títulos, para se quantificarem as publicações não literárias e as literárias, verifica-se que estas se sobrepõem àquelas. Portanto, foi, indubitavelmente, um escritor insaciável e incansável, sendo-o mais de poesia do que de ficção ou de teatro. Contudo, os seus trabalhos não literários, quase todos dedicados à Madeira e ao Funchal, são referências incontornáveis para quem se dedica às temáticas de que trataram. António Aragão faleceu no Funchal, a 11 de agosto de 2008. A sua família doou ao Arquivo Regional da Madeira, posteriormente Arquivo Regional e Biblioteca Pública Regional da Madeira, grande parte do seu espólio histórico. No entanto, o legado do seu acervo artístico ao país e, particularmente, à Madeira foi reconhecido ainda em vida pela Câmara Municipal do Funchal, que atribuiu o seu nome a uma via citadina. Obras de António Aragão: Os Pelourinhos da Madeira (1959); Poema Primeiro (1962); Romance de Iza Morfismo (1964); Visopoemas (1965); Ortofonias (1965); Hidra I (1966); Folhema 1 (1966); Folhema 2 (1966); Operação I (1967); Mais exactamente P(r)o(bl)emas (1968); Hidra 2 (1969); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Poema Azul e Branco (1971); Um Buraco na Boca (1971); Os Bancos antes da Nacionalização (1975); Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 (1979); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); Desastre Nu (1981); A Madeira Vista por Estrangeiros (1981); Metanemas (1981); Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly) (1982); Pátria. Couves. Deus. Etc. (1982); Líricas Portuguesas. Antologia (1983); Os 3 Farros. Descida aos Infermos (1984); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Elogio da Loura do Ergasmo Nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente (1990); Merdade My Son (1990); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992); Textos do Abocalipse (1992).   Helena Rebelo Miguel Fonseca (atualizado a 14.07.2017)

Artes e Design Cultura e Tradições Populares História da Arte Património Literatura Madeira Cultural Personalidades

convento de são francisco do funchal

O mais importante e interventivo Convento na vida geral da Madeira sempre foi o de S. Francisco do Funchal, com profundas raízes locais e, ao mesmo tempo, com um especial sentido de liberdade imediatista, que criou inúmeros problemas às autoridades instituídas. Os Franciscanos acompanharam os primeiros povoadores em 1420, e foi-lhes depois entregue a assistência espiritual nos primeiros anos do povoamento. Dez anos depois, por volta de 1430, estava na Madeira Fr. Rogério, então também acompanhado de frades de origem castelhana, galega e biscainha que, segundo Fr. Manuel da Esperança, bem podiam encher de conventos toda a Ilha, se ela tivesse povoações nas quais se sustentassem. Acrescenta ainda o cronista que tal não teria acontecido de imediato, pois “vinham fugidos do mundo e não podiam (ou não queriam) ver gente”. Assim, “encovados pela serra, conversavam só com Deus, pretendendo imitar o rigor da penitência” (ESPERANÇA, 1666, 670-671). Foi com esse espírito que os Franciscanos se instalaram num eremitério com a invocação de S. João Baptista, cerca de 10 anos depois, por volta de 1440, como viria a escrever, mais tarde, Fr. Nuno Cão (c. 1460-1530/1531), vigário do Funchal, em sentença de 1499: “que haveria ora sessenta anos” que ali se tinham fixado (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 11, n.º 1). O eremitério era na margem direita do ribeiro de S. João, no Funchal, e teria quase uma dezena de irmãos leigos, tendo tido como guardião Fr. Pedro das Covas ou Fr. Pedro Mourão, “homem velho e de muita autoridade” (SILVA, 1946, 163). Os Franciscanos da província de Portugal só em 1450 conseguiram autorização, pela bula Iniunctum Nobis, de 28 de abril desse ano, do Papa Nicolau V para manterem um eremitério na Madeira, que já teriam erguido sem qualquer beneplácito. Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita   Convento de São Francisco. (pormenor) Arquivo Rui Carita   A comunidade madeirense foi entregue ao vigário provincial dos observantes portugueses, mas, como haveria de referir o vigário do Funchal, os Franciscanos que à “ilha iam habitar e morar, iam de passada a ver o mundo, cada um por sua arte e não faziam assento” definitivo, correndo “para as outras ilhas de baixo (as Canárias, em princípio), como caminhantes” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 11, n.º 1). Essa situação e a interferência das outras comunidades provinciais ibéricas acabaram por levar os Franciscanos a sair da Madeira, em 1459, então nove elementos, dois padres e sete leigos, vindo a instalar-se, por ordem real, no futuro Convento de Xabregas, em Lisboa, sob o padroado da condessa da Atouguia. No continente, e depois do falecimento do infante D. Henrique, em 1460, os principais das Ordens de S. Francisco e de Cristo procuraram um entendimento e, por certo, uma delimitação de campos de ação. Encontrado esse acordo, regressaram os Franciscanos à Ilha, embora somente quatro do grupo que havia saído em 1459, voltando a ocupar o pequeno Hospício de S. João, por volta de 1464. Os Franciscanos voltaram sob a direção de Fr. Rodrigo de Arruda, homem de certa influência junto do geral da Ordem, em Roma, e que fora já provincial em Portugal, além de manter relações pessoais de amizade com o segundo capitão donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Referiu o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) e transcreve Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) que, tendo os Franciscanos acompanhado o Cap. João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), este lhes deu agasalho no Funchal, numas casas em lugar ermo, de onde depois se transferiram para o edifício que construíram “em baixo na vila […], nuns chãos e terras defronte de Santa Catarina, além da ribeira” (FRUTUOSO, 1968, 86). Foi, assim, na sua primeira residência, a pequena capela de S. João Batista, ou de S. João da Ribeira, que se vieram a instalar, de novo, em 1464, e que, pouco tempo depois, teria breve de autorização do Papa Sisto IV, de 1476. Entretanto, Fr. Rodrigo de Arruda, logo que chegou ao Funchal, aproveitando as boas disposições dos habitantes e a autorização que já possuía, tratou de levantar um novo convento no centro da povoação. Os Franciscanos achavam o sítio em São João da Ribeira impróprio para a sua instalação, “escondido no meio da ribeira e tão distante do povo para o serviço dele, nas confissões e sermões, e noutros ministérios da alma”, ainda acrescentando as Saudades da Terra que a causa da mudança, para além de que “o lugar era ermo”, era que um frade, “por induzimento do Demónio, que sempre urde semelhantes teias”, se tinha ali enforcado, havendo assim necessidade de encontrar outro sítio (Id., Ibid., 85). O terreno escolhido foi um que pertencera a Clara Esteves, que em testamento o havia vinculado a um seu parente, o então escudeiro João do Porto, cedendo os religiosos, em troca, o Hospício de S. João, menos a capela, tendo tudo sido autorizado pela infanta D. Beatriz, como tutora de seu filho, o duque D. Diogo, grão-mestre da Ordem de Cristo, a quem a Ilha pertencia. A instalação no Funchal deve datar de 1473, como se pode ler na lápide sepulcral dos fundadores, Luís Álvares da Costa e seu filho, Francisco Álvares da Costa, provedor da Fazenda, igualmente o ano do testamento de Clara Esteves, de 1 de janeiro, que já deixava ao Convento, por certo ainda à comunidade de S. João da Ribeira, 2000 réis, uma peça de pardo para vestuário e 30 varas de burel para vestes. Laje sepulcral dos fundadores. 1473. Arquivo Rui Carita As instalações do novo Convento progrediram rapidamente, já tendo guardião em 1476, Fr. Rodrigo Contendas, tendo-se ali registado, em finais de 1482, o célebre milagre com a imagem de um crucifixo. Segundo a tradição, esta imagem, que “falava algumas vezes” com Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, aos pés de cujo altar foi depois sepultada, teria realizado um milagre, a 26 de dezembro de 1482. Nesse dia, pregando então o P.e Fr. Rodrigo, viu D. Helena o “braço direito do dito crucifixo derribado fora da cruz, todo ao lado do corpo”, milagre depois autenticado pelo bispo D. Fr. Loureço de Távora (1566-1629), a 24 de outubro de 1615 (BNP, IGRAPRF, 1775, fls. 85-88). O Convento passou logo a usufruir dos privilégios gerais concedidos por D. Afonso V, em 2 de abril de 1459, em que se isentava os Franciscanos do pagamento de fintas, taxas e tributos, como a sisa e a dízima, a “portagem costumada de peão”, o vinho, a carne e o pescado. O longo documento de isenção refere ainda aquilo que comprassem para seu mantimento, “para seus vestidos e necessidades”, materiais que comprassem para reparação dos mosteiros e casas, tais como pedra, cal, areia, madeira, pregadura, tabuado, cavalgaduras e animais de carga, “com seus aparelhos, que para servidão comprarem”, “posto que os tornem a vender”, etc. O mesmo se passava com as coisas que lhes fossem dadas ou deixadas, “que eles possuir não possam, e quaisquer joias e ornamentos” que comprassem ou lhes vendessem para os serviços divinos, assim como vestimentas, capas, livros, imagens e quaisquer outras coisas “que para isso pertencerem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 1, n.º 4). As obras da primeira fase do Convento foram, assim, iniciadas em 1474, e o Convento já se encontrava habitado por volta de 1487, numa primeira fase das obras. Gaspar Vaz, que fora para a Madeira em 1539, por ordem de D. João III, em carta de 20 de maio de 1542 dá conta ao Rei das obras que, nessa altura, decorriam no Convento de S. Francisco, ordenadas pelo visitador da Ordem, Fr. Nuno, que, “por o mosteiro de S. Francisco estar mal remediado de dormitório, ordenou uma obra mui formosa e honrada, a saber: dormitório novo e debaixo refeitório com seu peio”, ou seja, uma fonte de água (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 72, doc. 9). O visitador que ordenara estas obras era também um pregador de grande fama e fora angariar fundos para as obras necessárias ao Convento do Funchal, e reformar igualmente os restantes Conventos franciscanos locais, que, após terem formado uma província autónoma, por bula de Sisto IV, de 1477, tinham voltado a depender da província de Portugal, por bula de Inocêncio VIII, em 1488. O Convento veio a ser sucessivamente ampliado, logo a partir de 1550, quando beneficiou de um legado de D. Maria de Atouguia, filha do provedor Francisco Álvares da Costa, que, falecendo solteira, a 11 de fevereiro desse ano, deixou uma pensão para missas por sua alma e para aquisição da cerca. Nos anos seguintes, era ampliada a igreja, sendo sagrada a 14 de março de 1554 pelo bispo castelhano D. Sancho Trujillo, que, passando pela Ilha vindo das Canárias, ali passou algum tempo. Este bispo castelhano pretendeu depois, inclusivamente, ser titular do bispado do Funchal, quando era bispo de pleno direito D. Fr. Gaspar do Casal (1510-1584), embora o mesmo nunca se tenha deslocado ao Funchal, tendo sido depois, em 1557, bispo de Leiria e, em 1579, de Coimbra. O Convento já possuía importantes adegas em 1566, conforme consta do saque corsário de outubro desse ano, onde alguns dos huguenotes franceses estiveram alojados e se teriam embebedado. Aliás, alguns dos frades do Convento de S. Francisco teriam sido dos poucos habitantes da cidade que afrontaram as forças francesas, por indicação do comissário, Fr. Baltasar Curado, na rua da Carreira, tendo à frente Fr. Álvaro de Miranda, que em Mazagão se havia notabilizado contra os mouros, mas ali foi morto, tal como cinco dos frades que o acompanhavam. No interior do Convento, ainda seria morto o sacristão, o P.e Fr. Rodrigo de Portalegre, que ali tinha ficado a esconder o tesouro com o vigário Fr. João dos Reis. O vigário, entretanto descoberto na sua cela, veio a escapar à morte por ter revelado o esconderijo das pratas do Convento. A cerca e o claustro de S. Francisco serviram depois para o enterramento das cerca de 300 vítimas do saque dos corsários franceses. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), mais tarde, por volta de 1722, escreve que os 10 Franciscanos mortos durante o saque de 3 de outubro foram sepultados no chamado “capítulo velho”, “debaixo de uma só campa”, seguindo as informações de Fr. Manuel da Esperança (ESPERANÇA, 1666, 684). O cronista acha serem muitos corpos para uma só sepultura, embora entenda que ali foi sepultado, pelo menos, Fr. Álvaro de Miranda, por determinação de seu irmão João Mendes de Miranda, porque da família do instituidor da capela daquele capítulo, ou seja, Simão Acciauoli (c. 1480-1544). Os Franciscanos mortos tinham sido, para além de Fr. Álvaro de Miranda e de Fr. Rodrigo de Portalegre, que refere como Rodrigo de Santiago, já mencionados, ainda Fr. Inácio de Leiria, Fr. Pedro de Eça, Fr. Pantaleão, Fr. Manuel da Cruz, Fr. Custódio Corista, Fr. Simão Corista e Fr. Francisco Cartaxo, assim como Fr. Gaspar “Terceiro”, um irmão donato, ou seja, que ainda não havia professado, embora já de alguma idade, por certo, que “pasmou e de pasmo morreu” (NORONHA, 1996, 240).   Planta da cidade 1570. Arquivo Rui Carita   Planta da cidade e Convento 1567. Arquivo Rui Carita Na armada de socorro de uma semana e pouco depois, provavelmente teria vindo o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1530-1595), que levantou uma planta da cidade, aproximadamente entre 1567 e 1570, onde se percebem as dimensões e a forma geral do Convento de S. Francisco. O edifício ocupava cerca de metade do posterior jardim municipal, dando sobre a rua dessa evocação nos começos do séc. XXI e ocupando a igreja o limite sul do jardim, com o adro lateral a avançar para a Av. Arriaga. A igreja parece já apresentar planta em cruz latina, com o braço sul do transepto saliente, tal como parece ter tido nártex nessa época, indicado com um ponteado para a colunata, como se encontra marcado para os claustros. O dormitório, sob o qual se encontrava o refeitório, deveria ficar para norte, e a cerca envolvia o Convento pelo norte e poente, prolongando-se até ao que é, nos começos do séc. XXI, a R. Conselheiro José Silvestre Ribeiro e ocupando a Av. Arriga quase até à R. das Fontes, tendo o teatro municipal sido levantado no antigo espaço da cerca do Convento. Registam depois as Saudades da Terra, entre 1585 e 1590, que, naquela altura, estava fundado um Mosteiro de S. Francisco da observância, “de boas oficinas, como um dos mais nobres e graves do reino” que os Franciscanos tinham em Portugal, em que sempre estavam perto de 50 frades (FRUTUOSO, 1968, 114). A grande mobilidade social dos Franciscanos é patente depois no recenseamento de 1598, “tirado pelos róis das confissões”, onde se refere o Mosteiro de S. Francisco, “que geralmente tem quarenta religiosos” (BGUC, cód. 210, fl. 30), o que é perfeitamente indicativo de que, mesmo pelos róis de confissões, era impossível assegurar um número concreto. A igreja era “muito grande e lustrosa”, segundo escreveu Frutuoso, especialmente após a ampliação levada a cabo pelo P.e Fr. Diogo Nabo, “guardião dela e comissário de toda a ilha”. Havia então oito capelas “muito ricas” e dois altares, que pensamos serem os colaterais, para além da capela-mor. Diziam missa “uma hora ante manhã”, onde concorria muito povo, dando muitas esmolas na portaria e tendo o púlpito sempre três a quatro pregadores. A cerca era muito grande, com “água de levadas”, com que regavam muita hortaliça “de couves murcianas, beringelas e cardos”, e tinham pomar com “árvores de espinho”, palmeiras, ciprestes, pereiras, romeiras “e toda a frescura que se pode ter de frutas e ervas cheirosas”, sem se ter necessidade das de fora. Na cerca, também tinham muitas uvas e, como a população era “gente de tanta caridade”, no verão juntavam de esmolas trinta pipas de vinho (Id., Ibid., 114).                     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita A cerca do Convento de S. Francisco do Funchal, confrontando para poente com o solar de D. Mécia, como ficou depois conhecido, ficaria no final do século seguinte ligada a uma das mais célebres ocorrências de então. Este solar fora levantado, em princípio, por João de Ornelas de Magalhães, alcaide da fortaleza do Funchal por nomeação de 14 de maio de 1555, pois já figura na planta da cidade, dos anos de 1567 a 1570, e ostenta no portal exterior as armas desta família. O acidente ocorreu a 7 de março de 1695: encontrando-se D. Mécia de Vasconcelos na janela do seu solar, foi atingida por um tiro disparado por um Franciscano na cerca do Convento. Regista o termo de óbito do cura da Sé, o P.e Francisco de Bettencourt e Sá, que certo religioso de S. Francisco, “natural desta ilha”, para matar um francelho que estava pousado em uma árvore, lhe fez um tiro de espingarda e, disparando-a, deu “um perdigoto na testa por cima do olho” de D. Mécia, de tal sorte “que perdeu os sentidos e o juízo”, falecendo pouco depois (ABM, Sé, Óbitos, liv. 9, fl. 24). Certidão do Guardião do Convento de São Francisco. 1619. Arquivo Rui Carita Com a concentração de inúmeras capelas vinculadas às principais famílias insulares, muitas das quais com sepultura no Convento de S. Francisco, a comunidade adquiriu uma notável influência na vida económica e social insular, não deixando o edifício de crescer nos anos seguintes. O primeiro problema foi o dos testamentos e do usufruto dos legados dos mesmos e, depois, o da impossibilidade de, a curto prazo, cumprir muitos desses legados pios, logo nos meados do séc. XVI, especialmente pela enormidade de missas a celebrar “enquanto o mundo for mundo”, como por vezes se registou. A questão do elevado número de missas, estando muitas já em atraso, levou o prelado, nos finais desse século, a ter de solicitar autorização de Roma para o seu perdão (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, t. 3, 608-608v.). Depois, foi a progressiva centralização do poder nos sécs. XVII e XVIII, quer régio quer eclesiástico, aspeto relativamente ao qual os membros desta comunidade, com a sua tradicional liberdade de movimentos e de costumes, e a sua facilidade de palavra, não ofereciam especial vocação de subordinação. Os problemas com os legados testamentários ocorreram logo em meados do séc. XVI, colocando em oposição o cabido da Sé do Funchal e os Franciscanos. Queixaram-se, então, os membros do cabido a D. João III, “por descargo de suas consciências”, em carta de 22 de maio de 1550, das formas fraudulentas dos frades do Convento de S. Francisco “no fazer dos testamentos”. Contam que, tendo falecido um mês antes “um certo doutor físico de uma prosternação”, o mesmo fora visitado e “importunado”, quando acamado, por um padre que então servia de guardião do Convento, de nome Fr. António de Leiria, conseguindo que o mesmo fizesse testamento a favor do Convento. Escrevem os elementos do cabido que o testamento em questão “foi feito de tal maneira, que tendo ele perto de trezentos mil réis de fazenda, sem sua mulher viva e com três filhas para casar, despendeu em legados para o mosteiro, missa e ofícios, sessenta mil réis”. O enfermo ainda recuperou e pediu para ser revisto o testamento, mas tendo perdido a fala (embora acenasse a cabeça), os Franciscanos não aceitaram a alteração. Pedindo para ser enterrado na Sé, dado dali ser freguês, e vindo o corpo, os Franciscanos foram buscar “o defunto com a tumba”, que levaram para S. Francisco, não atendendo a “excomunhões” (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 84, doc. 59), nem ao provisor, deão e cabido que ali estavam. Os elementos do cabido queixam-se ainda de que os Franciscanos “usurpavam a jurisdição do arcebispado”, utilizando inibitórias do Dr. Luís de Alarcão, “como juiz apostólico com comissão do Núncio”, para mudarem o vigário da vila da Calheta, “desta jurisdição, que servia como ouvidor pedâneo pelo cabido”. Remata a missiva: “E porque isto é em grande prejuízo do Seu padroado, lho fazemos saber”, para se tomarem as devidas providências (Id., Ibid.). Assinam todos os membros do cabido, mas não consta que se tivessem tomado especiais providências contra os Franciscanos. No final do episcopado de D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), a 31 de outubro de 1607, reprovava-se o procedimento de alguns oradores franciscanos, que pregavam “paixões e escândalos esquecidos da obrigação do seu ofício”. Determinou assim o bispo que não fossem admitidos ao púlpito da Sé sem a sua expressa comissão e licença, tendo comunicado inclusivamente à hierarquia da Ordem as atitudes inconvenientes de Fr. António de Pádua, enquanto pregador na Catedral (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, n.º 19). Mais tarde, nas Constituições Sinodais do seu sucessor, de 14 de junho de 1615, o assunto voltava a ser recomendado ao comissário do Convento de S. Francisco do Funchal, alertando-o para que recrutasse pregadores experientes e sabedores, que soubessem atrair os fiéis, caso contrário o prelado reservava-se no direito de prover o lugar a pessoas mais competentes. O assunto, no entanto, atravessaria todo o séc. XVII e passaria ao seguinte. As questões com os Franciscanos ocorreram essencialmente por duas ordens de razões. A primeira, ligada à nova custódia de S. Tiago Menor da ilha da Madeira, determinada por patente do geral da Ordem, em 5 de junho de 1683, e confirmada por Inocêncio XI, a 30 de junho de 1683, pela qual os Conventos da Madeira voltaram a ser separados da província de Portugal. A situação foi sancionada por resolução régia de 6 de maio de 1688, ficando a nova custódia sob proteção régia, por alvará de 23 de janeiro de 1689, que colocava o Convento de S.ta Clara na dependência do custódio do Convento de S. Francisco. A situação levou a confrontos entre os frades e as freiras, com interferências dos primeiros nas eleições e na organização interna do Convento das Clarissas, que muito “escandalizavam” a população. O assunto já levara a um alerta do príncipe regente D. Pedro para o Gov. João de Saldanha da Gama, em 1673 (ABM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 1215, fl. 63), mas também tocava ao prelado, que envidou esforços no sentido de serenar os ânimos entre as duas comunidades seráficas. A segunda razão dos problemas com os Franciscanos envolvia, periodicamente, as violentas e inoportunas pregações na Sé, cujo púlpito lhes estava atribuído, pelas quais eram inclusivamente pagos, mas que se afastavam por vezes bastante da contenção a que deviam obedecer. O assunto voltaria a agudizar-se poucos anos depois, sendo objeto de acórdão do cabido, de 16 de janeiro de 1684, onde se refere “que o púlpito não era lugar de despiques”, a propósito da contenda pessoal, e perfeitamente privada, entre dois pregadores franciscanos, os padres Fr. Raul de Santo António e Fr. Manuel de Santo Inácio, que aproveitaram os seus sermões para, do púlpito da Sé, fazerem ataques mútuos (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, fls. 32ss.). O cabido decidiu a suspensão dos Franciscanos, voltando a advertir o padre comissário do Funchal para, no prazo de 15 dias, enviar à Catedral religiosos de “melhor talento” de outros Conventos. Insistia o cabido que, caso contrário, preencheria o lugar de pregador “em sujeitos, que com mais exemplo e aproveitamento dos ouvintes, pregassem a palavra de Deus” (Ibid., fls. 47ss.). Os avançados anos do prelado e, muito especialmente, o desgaste sofrido com os problemas em que se viu envolvido com os Franciscanos, e outros, como a censura régia pela excomunhão lançada sobre o governador, que prendera, sem sua autorização, o deão da Sé, Pedro Moreira (c. 1600-1674), fizeram com que, depois de uma breve enfermidade, D. Fr. Gabriel de Almeida (c. 1600-1674) falecesse no Funchal, a 13 de julho de 1674, com pouco mais de dois anos de episcopado. Mais tarde, também a tradicional mobilidade da comunidade franciscana era alvo de provisões do Desembargo do Paço, de 24 de setembro de 1718 e de 21 de outubro de 1729, determinando-se que se deveria notificar os capitães dos navios e os respetivos cônsules, para que não levassem “religioso algum” sem expressa licença dos seus prelados, ou seja, dos superiores dos conventos, “sob pena pecuniária e de prisão”. O segundo diploma, dirigido ao custódio provincial, especifica inclusivamente que faltar ao cumprimento daquela provisão implicava a pena de cem mil réis “para os cativos” no Norte de África e um mês de cadeia (BNP, IGRAPRF, 1775, 88v.). Mas os Franciscanos eram “uma força da natureza” e, pouco tempo depois, o governador e capitão-general Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, a 21 de junho de 1738, queixava-se para o secretário de Estado, em Lisboa, da fuga da Madeira de Fr. Álvaro de São Luís (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 45). O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ocupou um importante papel na história da Madeira ao longo de todo o Antigo Regime. A igreja do Convento era o verdadeiro panteão de grande parte das mais antigas famílias do arquipélago, e nas suas Confrarias tinham assento não só os principais membros dessas famílias, como os quadros superiores da Ilha, incluindo governador, bispo e provedor da Fazenda, aspeto que persistiu inclusivamente até à extinção do Convento. Em 1722, Henrique Henriques de Noronha descreve o Convento, começando pela cerca e claustro, afirmando que tem um chafariz no meio “e um asseado jardim”, para o qual davam as varandas, sustentadas por colunas “de cantaria fina”. Para o claustro davam a sacristia e as casas da Confraria da Senhora da Soledade e dos Irmãos Terceiros, “ambas custosamente asseadas”, a última, em princípio, dedicada depois a Nossa Senhora da Conceição (NORONHA, 1996, 234). Refere o cronista que o Convento deveria ter, pelos seus estatutos, 50 religiosos, mas tinha então muitos mais. A igreja era de uma só nave, com quatro altares de cada lado da nave, dois colaterais e altar-mor, referindo Noronha que, em tempos, o cadeiral tinha ficado na capela-mor, mas que o removera Fr. Diogo Nabo antes de 1554, ampliando então aquela capela e passando a entrada principal para a fachada sul, devendo o cadeiral do coro ter passado para o fundo da nave, a poente. O altar-mor tinha “nobre retábulo”, já dotado de tribuna, e a mesma estava “coberta por excelente pintura do Santo Patriarca” (Id., Ibid., 236) dos Franciscanos, cuja pintura não sobreviveu. Toda a igreja fora azulejada em 1632, incluindo a capela-mor, onde tinham sepultura os religiosos, como era hábito nas casas franciscanas, tendo as armas dos Costa nas paredes e, ao centro, a sepultura dos fundadores Luís Álvares da Costa e Francisco Álvares da Costa, com a indicação da data de 1473, coberta por laje de brecha calcária da serra da Arrábida, que se encontra no cemitério de S. Martinho. O altar colateral do lado do evangelho era dedicado a St.o António “de Pádua, imagem milagrosa” (Id., Ibid.), como se podia constatar, segundo o cronista, pelos inúmeros votos mandados pintar e colocados na parede junto do mesmo altar. Fora fundado por Rui Gonçalves de Velosa, filho único de Gonçalo Anes Veloso, escudeiro do infante D. Fernando e fundador do Hospital e capela de S. Bartolomeu. O fundador deste altar encontrava-se sepultado aos pés do mesmo, com sua mulher Leonor Dória. No altar colateral do lado da epístola, dedicada às Almas Santas, onde figurava o Senhor do Milagre, “que representando estar morto tem a boca aberta, como quem fala”, encontrava-se sepultada, em frente, D. Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, que fora mulher de Martim Mendes de Vasconcelos, o Velho. Ao seu lado, e numa laje flamenga, com “lâminas de bronze” e uma figura feminina a rezar, estava sepultada Joana Valente, “devota das Chagas de Cristo” (Id., Ibid., 236-237), que fora a primeira mulher do terceiro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). Distribuídas pela nave da igreja, do lado do evangelho, encontrava-se a capela do Espírito Santo, depois também dos mártires de Marrocos, que fora fundada por D. Maria de Bettencourt (c. 1430-1491), mulher de Rui Gonçalves da Câmara (c. 1430-1497), mas cujo marido que não estava ali sepultado, dado ser capitão da ilha de São Miguel, nos Açores. Na parede lateral, estava um brasão com o leão de negro e rampante, armado de vermelho, dos Bettencourt, a “agarrar” uma flor-de-lis, símbolo da ligação desta linhagem à família real de França. Seguia-se a capela de N.a S.ra dos Anjos, mandada edificar por Manuel de Amil (1509-1585), filho do bacharel João Fernandes de Amil (c. 1460-c. 1520), que fora o primeiro provedor da misericórdia do Funchal. A terceira capela do lado do evangelho era dedicada a S. João Batista, tendo sido fundada pela família Mondragão e da qual era então administrador Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt Machado (1644-1717), pai da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1789). A última capela era dedicada a S. Diogo, “que antigamente se chamou de Santiago” e fora instituída por Lourenço da Gama Pereira (c. 1521-1604), que ali se encontrava sepultado com a primeira mulher, Águeda Teixeira, e a segunda, Isabel de Mondragão. O instituidor era irmão do célebre António da Gama Pereira (1520-1595), desembargador do Paço na época de Filipe II de Castela, e que “dispôs as ordenações do reino” (NORONHA, 1996, 238-239) as famosas Ordenações Filipinas, terminadas e aprovadas em 1595, embora só editadas em 1603, elaboradas em colaboração com Damião de Aguiar e Jorge Cabedo de Vasconcelos, que Noronha não cita. Rainha Santa Isabel. 1640. Arquivo Rui Carita A primeira capela do lado da epístola devia corresponder ao inicial braço do transepto, sendo citada como “maior que as demais, custosamente ornada e com porta travessa para o adro”. Era dedicada à Rainha S.ta Isabel e encontrava-se entregue aos Irmãos Terceiros de S. Francisco, “e ali têm enterro os que querem” (Id., Ibid.). Desta capela deve restar a magnífica imagem da Rainha Santa, que a tradição dá como proveniente do Convento da Encarnação, mas que tem muito mais probabilidades de ser desta capela, até porque desde os inícios do séc. XX se encontrava no Museu Municipal, onde podia ter chegado pelos Irmãos Terceiros, antes de ter figurado no antigo Museu da Cidade nos inícios da déc. de 80 do séc. XX. Seguia-se a capela de N.a S.ra da Conceição, “imagem de grande devoção”, onde existiam as sepulturas de António da Silva Madeira e de Jerónimo Pires do Canto, que, por se terem extinguido os herdeiros, ficara devoluta para o Convento. A terceira capela era de N.a S.ra da Encarnação, fora instituída por Diogo de Barcelos e passara depois para Jerónimo Vieira da Costa. A quarta capela era de N.a S.ra da Graça e tinha sido edificada por João Gomes da Ilha (c. 1430-1495), o Trovador, pajem do livro do infante D. Henrique, e que passou depois ao seu filho Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1460-1544), que fora vedor das obras da Sé. Por baixo desta capela ainda havia outra, mais pequena, “a qual edificaram de moderno” (Id., Ibid.) os irmãos da Confraria de S. Benedito, no dizer do cronista, pelo que seria capela levantada já nos inícios do séc. XVIII. Esta devoção era, em Portugal e no Brasil, geralmente dos escravos forros, havendo uma imagem deste frade na capela do Corpo Santo, mas não se conhecendo qualquer documentação a esse respeito para o Funchal. À volta dos claustros ainda existiam mais capelas, a começar pela levantada no chamado “capítulo velho” por Simão Acciauoli, dedicada a Nossa Senhora da Piedade, “que é de excelente pintura”, no dizer do cronista, que só teve idêntica referência para a pintura do retábulo-mor. No “capítulo novo” ficava a capela da Virgem Santíssima e, anteriormente, dos mártires de Marrocos, que, segundo a tradição, teriam passado depois para a capela do Espírito Santo, instituída por Maria de Bettencourt. Nesta capela tinham os religiosos “a sua aula, decentemente ornada”, e igualmente muitas “sepulturas nobres, cujos donos dizem os seus letreiros”. No andar superior ainda existiam mais capelas, como a de N.a S.ra da Estrela e, com especial destaque, “outra que chamam” de N.a S.ra da Escada, ou do Poço, com “imagem de muita devoção” (Id., Ibid., 241), curiosamente uma imagem, muito provavelmente flamenga, em pedra, o que, até por razões de transporte, não é comum. Na passagem dos claustros para a portaria ainda ficava a capela de N.a S.ra da Piedade, acerca da qual havia crentes que afirmaram “que a viram chorar” e, na sua sequência, a capela de S. Caetano. Na portaria havia a capela do Senhor Crucificado e, da parte de fora, outra capela de S. João Batista, “cuja imagem se tirou do mar, misteriosamente”. Igualmente da porta de fora da portaria e pegada com esta estava a capela de N.a S.ra de Jerusalém, “edificada com as próprias medidas do Santo Sepulcro”, seguindo-se logo outra capela da Virgem da Piedade, “onde concorre a todas as horas muita gente”. O mesmo se passava com a capela das Almas, que lhe ficava contígua, sendo “as suas paredes interiores cobertas artificiosamente de ossos e caveiras organizados” (Id., Ibid.). A capela dos Ossos dos Franciscanos do Funchal resistiu à reconstrução dos finais do séc. XVIII, sendo referida na Viagem à Cochinchina do botânico e pintor sir John Barrow (1764-1848), em 1792 e 1793, sendo inclusivamente representada em litografia colorida na edição de 1806 (BARROW, 1806, 37A). Apresenta retábulo ao gosto dos finais do séc. XVII e inícios do séc. XVIII, com pintura de S. Miguel das Almas e duas grandes imagens sobre a mesa do altar, uma das quais parece ser de S. Sebastião. As paredes e o teto encontravam-se totalmente revestidos de caveiras enquadradas por ossos longos, talvez tíbias ou perónios, sobre lambril pintado ou revestido a azulejos. A vida do Convento de S. Francisco foi de alguma forma contida na vigência do bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), freire da Ordem de Cristo, que chegou ao Funchal a 22 de junho de 1725, não se registando nesse episcopado especiais problemas. Dos poucos livros deste Convento que chegaram aos nossos dias consta o Livro das Patentes, iniciado em 1732 por Fr. Jorge dos Serafins, que fora examinador e definidor das custódias açorianas franciscanas e então custódio provincial da de S. Tiago Menor da ilha da Madeira. Das várias provisões lançadas pelo custódio provincial, a primeira aborda o inteiro cumprimento da celebração das missas a que os Franciscanos se encontravam obrigados, incluindo as do dia de finados, no qual deveriam dizer missa “pelas benditas almas do Purgatório”, assunto que os “reverendos prelados locais, respeitando a indigência dos conventos”, descuravam, inclusivamente deixando que alguns clérigos pobres cobrassem dinheiro pelas mesmas, em nome individual da alma encomendada, o que se proibia terminantemente a partir do dia 1 de novembro seguinte, pois essas missas eram em nome “das almas de todos os finados defuntos” (ANTT, Conventos, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 1, fl. 7). A segunda provisão aborda o inveterado costume de muitos Franciscanos divulgarem “fora de portas” o que se passava no Convento, tal como as possíveis culpas de uns e de outros. O assunto já teria ido a capítulo e, em “nome do crédito dos religiosos desta Santa Custódia”, Fr. Jorge dos Serafins ameaçava com “pena de excomunhão maior, ipso facto incurrenda” todo aquele que revelasse a seculares, a religiosos de outra Ordem e a religiosas “defeito algum de seus irmãos” de que se pudesse atribuir culpa grave. Nessa sequência, advertia igualmente os padres pregadores e confessores que deveriam renovar as suas patentes 15 dias antes de as mesmas findarem, ou seja, no final do ano. As patentes deveriam ser entregues ao seu secretário, o P.e Fr. João de Santa Rosa, para serem avaliadas, o mesmo se passando com os novos padres que, no último capítulo, tinham sido instituídos “confessores de seculares”, e que até ao final de dezembro se deveriam pôr “expeditos para fazerem o seu exame”. Tendo tido conhecimento da falta de inúmeros livros nas várias livrarias dos Conventos da custódia, assunto que lembrara aos vários responsáveis e sobre o qual inclusivamente o Santo Padre já se pronunciara, listava vários dos livros em falta e voltava a ameaçar com pena de excomunhão os infratores (Id., Ibid., fol. 8). Com o novo bispo do Funchal, D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), que chegou à Ilha a 5 de setembro de 1741, a situação de início ainda teve outra cobertura, pois o prelado era Franciscano e vinha acompanhado de dois padres pregadores, igualmente “frades menores”, para o ajudarem na sua missão: Fr. Lourenço de Santa Maria e Fr. João do Sacramento. O novo bispo e os padres pregadores recolheram-se durante 12 dias no Convento de S. Francisco do Funchal, pelo que D. Fr. João do Nascimento só tomou posse da Diocese a 17 desse mês. De imediato, fez publicar uma carta pastoral, tal como fizera o seu antecessor, especialmente dedicada à “reforma dos costumes, à extirpação de abusos, restauração, perfeição e esplendor do culto divino”, assim como outra, dirigida ao cabido da Sé, introduzindo algumas modificações nos serviços do culto ali realizados (APEF, cx. 122, doc. 3, fls. 21v.-22v.). Ao longo do seu episcopado, no entanto, reacenderam-se alguns problemas, com situações que já vinham do anterior, como a demência do P.e Fr. João de São José Ferraz, cuja interdição foi solicitada pelo procurador-geral da custódia da ilha da Madeira, o P.e Fr. José da Conceição, em 1748, ou os incidentes relacionados com a expulsão da ilha de dois franciscanos, Fr. João de São José e Fr. José do Rosário, em 1755. Por vezes, era ao contrário, como em 1753, quando o custódio provincial, então Fr. José de Santa Maria, solicitou aos visitadores da mesma custódia no continente que obrigassem três religiosos do Funchal, que se encontravam em Lisboa, a regressar ao Convento, dado já ter expirado há muito o prazo da licença que lhes fora concedida. O controlo das instâncias superiores apertou-se ao longo do séc. XVIII, acusando os visitadores quase sempre os Franciscanos de “relaxados”, quer na forma como se comportavam dentro do Convento, quer em relação às eleições, aos seus deveres, etc., como se queixa em carta do Funchal, de 28 de maio de 1753, o visitador Fr. José da Natividade ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real, enviando, inclusivamente, uma representação do custódio provincial Fr. José de Santa Maria (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 13). Os problemas envolviam mesmo a atividade exterior dos Franciscanos, como se queixa depois o Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804), futuro barão de Alverca, em ofício de 21 de novembro de 1768, a respeito de um caso contrabando de tabaco, envolvendo o guardião do Convento, Fr. António de São Guilherme. O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ultrapassou sempre os pontuais problemas em que se foram envolvendo alguns dos seus membros, pois manteve-se, até à sua extinção, graças à capacidade de intervenção dos Franciscanos e à força das suas Confrarias, como um dos mais importantes centros de decisão políticos e económicos da Madeira. Assim, embora o gabinete pombalino tenha decretado a restrição de entradas nos conventos, com a subida ao trono de D. Maria I, em março de 1777, e o afastamento do marquês de Pombal, logo se envidaram esforços para ultrapassar a situação, sendo autorizada a entrada de 12 noviços por ano no Convento de S. Francisco do Funchal. Em carta datada do Convento do Funchal, de 8 de junho de 1777, o vigário custódio provincial Fr. Manuel de São José acusava a receção da autorização régia e agradecia. O Convento devia ter por essa data cerca de 100 religiosos, entre padres professos, leigos e noviços. A documentação das suas Confrarias, na maior parte, não chegou aos nossos dias, mas mesmo numa altura de franca recessão desse tipo de atividades, como no consulado pombalino, sucederam-se as iniciativas desse género. Por petição de 23 de março de 1765, e.g., o morgado João José de Bettencourt de Vasconcelos (1715-1766), familiar do Santo Ofício e administrador da capela de S. João Batista da igreja de S. Francisco, encabeçava uma lista dos principais proprietários madeirenses para fundarem uma nova Confraria de Nossa Senhora dos Anjos, Mãe dos Homens, e de S. José, Rei dos Homens. A petição era dirigida a Fr. António da Encarnação, vigário custódio da província, e incluía inúmeros eclesiásticos, como os padres doutores António José de Vasconcelos, João Henriques de Aragão e Manuel José da Rosa, Domingos João Alves da Silva Barreto, o Cap. António Vogado Teles de Meneses e os importantes comerciantes Pedro Jorge Monteiro, José João Veríssimo e José Fayan, entre outros. Os estatutos da Confraria seriam aprovados a 15 de fevereiro de 1767, e, tendo já falecido o promotor, era eleito como prefeito da mesma o então governador e capitão-general José Correia de Sá, enviado à Madeira para a extinção da Companhia de Jesus, que assina juntamente com o secretário António João Spínola de Macedo, para além dos outros membros da mesa. O documento é ainda reconhecido a 5 de março seguinte, pelo tabelião de notas Bartolomeu Fernandes e por Domingos Afonso Barroso, provedor da Fazenda. A aprovação do Rei D. José ocorreu a 27 de outubro seguinte e foi registada no Funchal a 23 de abril de 1769, tendo sido eleito para prefeito o então governador e capitão-general João António de Sá Pereira, servindo de secretário o padre genealogista José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, filho do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos e depois fidalgo-capelão, por nomeação de 5 de fevereiro de 1782. Armas de Mouzinho de Albuquerque. Arquivo Rui Carita A importância das Confrarias do Convento de S. Francisco está ainda patente na confraria de N.ª S.ra da Soledade, que, nos finais do séc. XVIII, assumiu a tradição de integrar sempre como irmãos o governador da Madeira e a mulher, quando o acompanhava, elaborando artísticas folhas aguareladas com as armas dos mesmos. A tradição manteve-se até à extinção do Convento, sendo a última folha dedicada ao prefeito liberal e governador militar Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846) – e D. Ana de Mascarenhas de Ataíde –, que, a 14 de março de 1835, entrou como “irmão protetor e presidente da confraria”, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da mesma Confraria” (ARM, Governo Civil, liv. 235, fl. 71). Seria Mouzinho de Albuquerque, no entanto, como prefeito da província, poucos meses depois, em agosto desse ano, a determinar as instruções para a extinção do Convento e, logicamente, da Confraria da Soledade. Os elementos chegados até nós não nos permitem uma avaliação mínima da vida económica dos Franciscanos do Funchal. Os livros das Confrarias são muito escassos e os de “receita e despesa” quase inexistentes. A vida do Convento não se afastava, no entanto, da dos conventos de S. Bernardino de Câmara de Lobos ou da Piedade de Santa Cruz, mas era mais complexa, dado o maior número de frades e, também, dada a sociedade urbana e a classe social que serviam e onde se inseriam. Existem dois livros de sacristia de “Registos de Missa” que dão uma pálida ideia do movimento do Convento, que celebrava semanalmente, nos finais do séc. XVIII, quase 100 missas, enquanto S. Bernardino, na mesma época, e.g., celebrava entre 20 e 30, embora os preços fossem semelhantes: na generalidade, entre $200 e $300 réis a missa. Na primeira semana do mês de agosto de 1797, v.g., celebraram-se 85 missas, sendo 7 pelas obrigações do Convento, 19 pelas obras pias, 34 pelas capelas, 5 pelas Confrarias e 2 pelos frades. Houve ainda uma celebrada na Festa do Ilhéu, provavelmente a festa de Nossa Senhora da Conceição, e que deve ter custado 1$500 réis, dado envolver a deslocação, e 15 missas dos “ofícios de frade e de grade”, que é possível que correspondam às missas em que é dada a comunhão aos fiéis na grade. Somente foram contabilizadas 14 a $200 réis, sendo as restantes das obrigações gerais do Convento, rendendo o conjunto 4$300 réis. Celebraram missa nessa semana 23 religiosos, incluindo o custódio provincial, o guardião, “o mais digno”, etc., tendo o domingo 20 missas, o maior número, rondando as 10 a 12 nos restantes dias da semana (ANTT, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 2, fl. 1). Na semana seguinte, a segunda semana de agosto de 1797, os números foram semelhantes, celebrando-se 95 missas, com um “noturno das Almas”, obrigação do Convento, em princípio, porque não contabilizado, rendendo nove missas a $300 réis e outras seis a $200, num montante de 3$900 réis (Ibid., fl. 1v.). Na terceira semana, celebraram-se 79 missas, uma com “com festa na Fortaleza”, que deve ser a de S. Lourenço e que deve ter rendido $800 réis, embora tenha havido outra, não especificada, que rendeu 450, contabilizando-se, com mais cinco missas a $300, duas a $250 e nove a $200, 5$050 réis (Ibid., fl. 2). Nos inícios do séc. XIX, os preços subiram em relação ao século anterior, passando as missas a render entre $300 e $500 réis, pelo que, embora não havendo um significativo decréscimo no número geral das mesmas, deu-se um franco aumento do montante global cobrado. Na quarta semana de julho de 1809, e.g., celebraram-se 87 missas, entre as quais umas de obrigação do Convento e 52 de grade, 1 a 1$000 réis e 51 a $400 réis, somando 21$400 réis, montante muito acima do cobrado semanalmente nos finais do século anterior. Para os anos seguintes, existem informações gerais da vida económica do Convento, entre 1809 e 1832, correspondendo, assim, sensivelmente à fase final da vida do Convento. A descrição do tipo de missas é mais sucinta, deixando de se referir as missas das Confrarias, provavelmente incluídas nas capelas, e aumentando o preço das mesmas, cobrando-se no mínimo 400 réis por missa. Os totais semanais passaram a rondar os 20$000 réis e, por mês, as missas renderam à sacristia quantias acima dos 80$000 réis. Para estes anos, as despesas gerais do Convento não se afastam especialmente, e.g., das do de S. Bernardino de Câmara de Lobos. No mês de julho de 1809, o Convento teve uma receita de 360$800 e uma despesa de 287$720. O Convento já vinha com um saldo positivo do ano anterior, “de alsas”, como se dizia, de 1808$236, ficando então com 1881$316, como certificam o guardião, Fr. Matias de S. Boaventura, o síndico, Pedro de Santa Ana, os discretos Fr. Manuel da Piedade, Fr. Januário das Chagas de São Francisco, Fr. António de São Joaquim e Fr. António de N.ª S.ª das Dores (Ibid., liv. 5, fl. 2). Tal como nos restantes conventos franciscanos masculinos, as principais receitas vinham das missas e cerimónias realizadas fora do Convento e da venda de hábitos de burel e hábitos de saial, com o pormenor de tanto se terem vendido os de saial para enterro de homens, como os de burel para enterro de mulheres, o que até então não se tinha verificado. Os preços também são muito mais altos que os praticados em S. Bernardino nos finais do século anterior: entre 3$000 a 6$000 réis, em S. Francisco, não incluindo, em princípio, acompanhamento. Por “um hábito de burel e três religiosos, a seiscentos réis cada, para Sabina, da freguesia de São Martinho”, e.g., só cobraram 4$800 réis, e por um hábito de saial para João Paulo Medina, sem referir acompanhamento, cobraram 6$000. Os Franciscanos cobraram 9$400 réis “por merecido” dos religiosos que tinham ido à festa da Visitação na misericórdia do Funchal, 18$000 pela novena e procissão do Carmo e mais 10$000 pelas matinas da dita festa. Nas despesas desse mês entrou essencialmente a aquisição de carne de vaca, que custou mais de 100$000 réis, tal como peixe, bacalhau, azeite, manteiga, queijos, toucinho, presunto, azeitonas, sal, milho, semilhas, couves, feijão, chá, açúcar, etc. Algumas aquisições vinham de fora, como as cebolas, compradas no Caniço, que tiveram um acréscimo de 2$000 réis, “pelo frete, carreto e pagamento do moço que tirou as cebolas do Caniço”. Nesse mês também se adquiriu cerveja e sabão, tal como se pagou $400 réis para amolar as navalhas de barba do irmão leigo Fr. José das Mercês. Também se adquiriram umas rodas para o relógio, que custaram 1$000 réis, tal como se pagou $400 pela montagem das mesmas e ao moço António de Aguiar seis meses e 20 dias, a 3$000 réis por mês, o que somou 20$000 (Ibid., liv. 5, fls. 1v.-2). A partir dos inícios do séc. XVIII, com a oficialização da custódia, tinha passado a Fazenda Real a tomar a seu cargo a manutenção destes edifícios e a assumir a reconstrução do Convento de S. Francisco do Funchal, dado o templo primitivo ser considerado acanhado e modesto. As obras do Convento tiveram início por volta de 1750, data do reenvio para o Funchal da planta efetuada pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), já devidamente corrigida, para o que D. João V tinha atribuído a valiosa esmola de 20.000 cruzados (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 973, fl. 112v.). O edifício teria então passado por várias ampliações, até para suportar a população de 100 religiosos, com admissão de 12 noviços em cada ano, autorizada a partir de junho de 1777. Em julho de 1780, deve-se ter inaugurado uma parte da construção, dado ter-se exumado, em 1880, uma inscrição alusiva a D. Maria I, ao Papa Pio VI e ao P.e Fr. Bernardo. A inscrição teria sido depositada no arquivo municipal, mas, segundo os autores do Elucidário, algumas décadas depois tinha desaparecido. No entanto, entre agosto e setembro já não havia dinheiro para continuar as obras, pedindo o principal do Convento a deslocação ao Brasil de dois irmãos leigos, para ali recolherem esmolas, certificando o velho mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins, a 19 de outubro desse ano, para a corte de Lisboa, que as obras ainda continuavam. No ano seguinte, voltou a haver pedidos de subsídios para as obras, requerendo os Franciscanos inclusivamente o edifício do extinto Colégio dos Jesuítas, dadas as obras e os vários cursos que lecionavam então em S. Francisco, motivando a troca de cartas entre o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro e o bispo do Funchal D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1710-1784), em 9 de agosto e 6 de novembro de 1781. Nesta sequência, igualmente requereu Fr. Manuel de São Boaventura “as sobras do subsídio literário e do almoxarifado” do Funchal, para se continuar a construção do novo Convento (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, docs. 588 e 599). A 10 de fevereiro de 1782, as obras passaram por novas alterações; o mestre das obras reais José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) refere alterações de custo. Face às dificuldades de obtenção de pedra, as obras e correriam o risco de parar, pois o pedreiro de Câmara de Lobos encarregado de a fornecer faltara ao ajuste. Alvitra-se, então, o trabalho das companhias de ordenança no retirar da pedra da pedreira, entendido como uma esmola das mesmas para os Franciscanos, o que foi autorizado pelo governador a 30 de agosto desse ano (ABM, Governo Civil, liv. 520, fl. 104). O Convento esteve assim em obras durante todo o final do séc. XVIII, possivelmente sob uma desastrosa administração, pelo que nunca chegou a ser acabada a enorme igreja, até à extinção dos conventos nos meados do séc. XIX, o que levou à sua demolição. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido como “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A extinção do Convento de S. Francisco do Funchal foi acionada pelo prefeito Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, em agosto de 1835, em articulação com Diogo Teles de Meneses (1788-1872), provedor da Alfândega (ABM, Alfândega do Funchal, liv. 675), tendo decorrido sem especiais dificuldades e quase sem qualquer interferência da autoridade religiosa. O Convento de S. Francisco do Funchal foi desocupado por forças militares a 9 de agosto de 1834 e, pouco mais de 15 dias depois, a 27 de agosto, o prefeito mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Dado não terem ocorrido problemas, nesse mesmo dia 27 de agosto, o prefeito enviava para o provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851), instruções precisas sobre a execução do decreto de 30 de maio sobre a extinção dos conventos, para que tal se efetuasse nos restantes conventos do concelho do Funchal. As instruções determinavam que se deveria fazer o inventário dos bens do Convento em causa, entregando-se ao representante do cabido da Sé do Funchal as alfaias religiosas, os paramentos, “ornatos dos templos e utensílios de culto”. As imagens e as cruzes, porém, deveriam permanecer onde estivessem. As igrejas deveriam ser fechadas, ficando as chaves à disposição do prefeito, mas na posse do provedor do concelho, que elaboraria, entretanto, uma relação dos religiosos de cada convento. No espaço de um mês, os religiosos deveriam apresentar-se na prefeitura, com uma relação testemunhável, para que se verificasse se teriam direito à pensão anual para a sua sustentação, prevista no artigo 4.º do decreto de 30 de maio anterior. Luís Mouzinho de Albuquerque recomendava que a diligência deveria ser feita com “a mais escrupulosa atenção”, em que tudo fosse praticado com a maior “circunspeção, prudência e urbanidade”, para que de maneira alguma houvesse lugar a “escândalos dos povos ou pretexto à maledicência” (VERÍSSIMO, 2002, 69-77). As imagens e muitas das pinturas, entretanto, foram transferidas para outros locais, como a imagem do Senhor do Milagre do Convento de S. Francisco, que teria falado algumas vezes com Helena Gonçalves da Câmara – razão pela qual recebeu essa designação –, e que foi transferida para a Sé, inclusivamente com o diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, assim como outras alfaias, pelo menos entre 1848 e 1850, na vigência do governador civil José Silvestre Ribeiro (1807-1891), para a igreja do Colégio do Funchal, que nesses anos foi reabilitada e entregue à Diocese. A transferência das pinturas e imagens que ainda restavam nas instalações do Convento para a igreja do antigo Colégio dos Jesuítas deve datar de fevereiro de 1847, tendo sido acordada entre o governador e o bispo D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1797-1862), quando se preparou a instalação, em S. Francisco, do Asilo de Mendicidade do Funchal, com cerca de 400 indigentes, cuja administração foi entregue ao prelado e cuja inauguração se fez a 27 de março desse ano (MENESES, 1848, 25-30 e 50-54). Algumas das telas existentes nesta igreja, como parte da coleção mariana da sacristia, senão mesmo toda, a tela dos mártires de Marrocos, a de Nossa Senhora do Pópulo, etc., pertenceram, por certo, ao Convento de S. Francisco, pois não fazem parte dos sucessivos inventários do Colégio, podendo a tela de N.ª S.ra da Porciúncula ter vindo da capela do Hospício da Ribeira Brava ou também de S. Francisco. O mesmo deve ter acontecido com algumas imagens, como a de S. Luís, Rei de França, em barro, aparentemente de produção regional, que se encontra na sacristia do Colégio, e o conjunto de imagens de roca, que se encontram no Museu de Arte Sacra do Funchal. O mesmo se teria passado com o conjunto de bustos relicários dos mártires de Marrocos, que foram descobertos quase emparedados na torre do Colégio e que igualmente transitaram para aquele Museu. Outra parte do espólio do Convento de S. Francisco transitou para o Convento de S.ta Clara, como foi o caso dos dois grandes painéis de azulejos de S. Francisco e de S.ta Clara, de oficinas de Lisboa (1740-1760), posteriormente remontados na portaria daquele Convento. No coro de baixo de S.ta Clara, algumas das pinturas que decoram as paredes laterais, segundo a tradição, terão vindo também de S. Francisco. A maioria das pratas, entretanto, fora arrecadada na Alfândega, e, em 28 de maio de 1836, elas seguiram para a Casa da Moeda de Lisboa, onde o antigo prefeito da Madeira fora provedor. Sem especial explicação, somente em virtude da portaria de 9 de junho de 1886, os livros do Convento de S. Francisco foram entregues à repartição da Fazenda do Funchal, sendo posteriormente incorporados na Torre do Tombo, juntamente com os da Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, mas não os que estavam no Governo Civil, que passaram, depois, ao Arquivo Regional da Madeira, nem a biblioteca, que deve ter recolhido ao paço episcopal e ao Seminário, peregrinando e perdendo-se pelos vários locais por que quer o paço, quer o seminário foram passando, assim se explicando que quase nada da importante documentação bibliográfica ali guardada tenha chegado até nós. O edifício foi logo disputado pelos novos poderes liberais instituídos, como a Câmara Municipal do Funchal, que o requereu e o recebeu por decreto de 7 de novembro de 1844, para construção, nesse espaço, de um amplo edifício destinado à instalação da nova Câmara Municipal e dos tribunais judiciais, mas a situação de instabilidade política retardou o projeto. O concurso público para apresentação de um projeto só se veio a realizar em 1864 e, a 11 de março de 1866, saía da Sé do Funchal “um luzido cortejo” presidido pelo bispo do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que fora bispo de Cabo Verde, cortejo onde se incorporaram as autoridades superiores do distrito, procedendo ao lançamento da primeira pedra do novo conjunto de edifícios, que não passou da primeira pedra (SILVA e MENESES, 1998, I, 313). [caption id="attachment_14397" align="alignleft" width="199"] Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita.[/caption] [caption id="attachment_14394" align="alignleft" width="226"] Demolição do Convento de São Francisco[/caption] Nos anos seguintes, os edifícios do velho Convento arruinavam-se progressivamente, mas só devem ter sido demolidos nos inícios da déc. de 70, pois restam algumas fotografias do conjunto, ainda parcialmente de pé. Nos anos seguintes, parte da cerca foi dando origem aos novos arruamentos, depois as ruas Hermenegildo Capelo, Serpa Pinto e Conselheiro José Silvestre Ribeiro, e, por volta de 1880, ao jardim municipal e ao teatro municipal. Do conjunto edificado parecem só restar o brasão de armas nacionais e franciscanas, no canto sudeste do jardim, e o chafariz da cerca do Convento, que nos inícios do séc. XIX já estava na vizinha praça da Constituição, então passeio público, servindo de base ao conjunto do largo do Chafariz, cuja pilastra superior parece ter sido encomendada para o monumento à Constituição de 1820 – chegando ao Funchal depois da abolição da mesma, nunca chegou a ser montada no monumento, cuja base também já havia sido demolida.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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junta de planeamento 1975

A transição da Madeira para o processo democrático foi de certa forma calma, se comparada com a agitação vivida no continente ou nas antigas colónias portuguesas de África. As forças militares e militarizadas não colocaram especiais problemas ao Movimento das Forças Armadas (MFA), e a primeira agitação, aliás vaga, decorreu na manifestação do 1.º de Maio, quando apareceu um cartaz a colocar em causa a presença no Funchal dos ex-governantes Américo Thomaz (1894-1987) e Marcello Caetano (1906-1980), com os dizeres “A Madeira não é caixote de lixo”. A notícia chegou a António de Spínola (1910-1996), que presidia à Junta de Salvação Nacional e se comprometera com Marcello Caetano, no quartel do Carmo, a fornecer-lhe proteção pessoal, pelo que poucos dias depois se encontrava na Madeira um delegado do Movimento, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-) (Azeredo, Carlos de). A função do delegado do Movimento era a segurança das altas figuras do final do Estado Novo, mas, embarcadas as mesmas para o Brasil, a 20 de maio, teve de aguardar a nomeação do governador civil do Funchal (Governo civil), Fernando Rebelo (1919-2002) (Rebelo, Fernando Pereira), somente exarada a 7 de agosto. O novo governador tomou posse em S. Lourenço a 8 de agosto e, nesse mesmo dia, Carlos de Azeredo regressou ao continente, fixando-se no Porto. A 13 de setembro de 1974, o novo governador civil do Funchal – em consequência do pedido de exoneração de Rui Vieira (1926-2012), pedido que nunca fora aceite por Carlos de Azeredo – nomeava nova presidência para a Junta Geral. A 10 de outubro, a Junta Geral é dissolvido e é nomeada uma comissão administrativa, que também não resistiu muito tempo. As nomeações que se seguiram, essencialmente de elementos sem impacto político e social nas restantes estruturas locais, que não haviam sofrido especiais alterações, tornariam a situação geral insustentável a curto prazo. A instabilidade que se viria a desenvolver depois na Ilha levou a que, por solicitação dos elementos do Movimento na Madeira, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo, então graduado em brigadeiro, regressasse no final desse ano de 1974 ao Funchal. A 11 março de 1975, em Lisboa, entretanto, registava-se novo pronunciamento militar. O grupo mais moderado de forças políticas e militares ligadas ao Gen. António de Spínola, que não tinha aceitado o seu afastamento, a 30 de setembro, na sequência do falhanço da manifestação da “maioria silenciosa” de dois dias antes, nem, essencialmente, o acelerado processo de descolonização e de politização progressiva da sociedade portuguesa, movimentou-se. Os grupos mais politizados e a Comissão Coordenadora estavam, no entanto, atentos à movimentação, pelo que a mesma se saldou por um novo fracasso, sendo o Gen. Spínola definitivamente afastado, e tendo tido, inclusivamente, de abandonar o país. As notícias chegadas ao Funchal levaram à realização de manifestações de rua em apoio ao MFA. O processo foi acompanhado pelos comandos militares madeirenses, não tomando o Brig. Carlos de Azeredo qualquer posição, dependente, até certo ponto, que estava ainda do governador civil, Fernando Rebelo. Carlos de Azeredo encontrava-se nessa manhã numa cerimónia de distribuição de diplomas e condecorações na sede da Polícia de Segurança Pública do Funchal, à R. dos Netos, e, tendo sido informado pelo Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015) do que se passava em Lisboa, não interrompeu a distribuição. Escreveria mais tarde que continuou “calmamente na cerimónia” (AZEREDO, 2004, 205), mas, regressado ao palácio de S. Lourenço, acompanhou a situação, como os vários oficiais do seu gabinete, com a máxima apreensão. Com o pronunciamento de 11 de março, as forças mais à esquerda desenvolveram o que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso e popularizado como PREC. No dia seguinte, a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado eram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução, a que se seguiria um plano de nacionalização da Banca, dos Seguros, dos Transportes, etc. Este período constituiu a fase mais marcante da tentativa de revolução portuguesa, durante o qual as tensões políticas e sociais atingiram uma virulência nunca experimentada. Principalmente o verão desse ano de 1975, o chamado “verão quente”, prestou-se a todo o tipo de violências numa sociedade considerada até então de brandos costumes e que nesse período parecia ter querido deixar de o ser. As forças madeirenses ligadas ao velho Movimento Democrático mostraram-se completamente incapazes de fazer face à situação e, a 20 março, Fernando Rebelo deixava o cargo de governador civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, onde fora chamado, desconhecendo o motivo e tendo tido então as mais sérias reservas e apreensões, Carlos de Azeredo tomava posse desse cargo, por despacho do ministro da Administração Interna. A nomeação de um elemento dado como próximo do Gen. António de Spínola não foi bem aceite nos sectores militares e civis continentais ligados ao PREC, que preferiam a nomeação do Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015), mas representou uma vitória para os sectores mais moderados e marcaria, na Madeira, o início da progressiva demarcação em relação ao processo continental. O Brig. Carlos de Azeredo, como governador civil – mas sempre fardado –, quase de imediato, a 25 de março, dava posse no Funchal à Junta de Planeamento para a Madeira, criada pelo dec.-lei n.º 139/75, promulgado no polémico dia 11 de março, pelo Presidente da República, Gen. Francisco da Costa Gomes (1914-2001), e publicado a 18 seguinte. O dec.-lei já considerava este órgão com um cariz transitório, mas com forte poder de decisão, sendo composto pelo governador civil, que presidia, com voto de qualidade, e por três vogais. Este órgão vinha um pouco na sequência do grupo criado alguns anos antes no âmbito da Junta Geral, a comissão regional de planeamento, mas já com funções deliberativas mais amplas, superintendendo, inclusivamente, sobre a mesma Junta Geral que, embora dissolvida, continuava em exercício. Foram então empossados como vogais João Abel de Freitas (n. 1942), Virgílio Higino Pereira (n. 1941) e José Manuel Paquete de Oliveira (1936-2016), que dirigia o Diário de Notícias. A presença de João Abel de Freitas, ligado à comissão do salário mínimo, e mesmo dos restantes elementos, pois que a sua nomeação fora acordada em Lisboa, não reunia o consenso alargado que alguns sectores locais requeriam, pelo que a Junta de Planeamento foi alvo de críticas no Jornal da Madeira, o que levou Carlos de Azeredo a convocar a S. Lourenço Alberto João Jardim (1943-), recentemente colocado à frente daquele jornal pelo bispo do Funchal, D. Francisco Antunes Santana (1924-1982), embora tal não tenha refreado os ataques daquele periódico à nova estrutura governativa regional. As críticas ainda aumentaram com o dec.-lei de 2 de julho de 1975, que alargava os poderes da Junta de Planeamento para proceder ao saneamento dos serviços do Estado e dos corpos administrativos, podendo suspender por 90 dias os funcionários desses organismos e nomear comissões para efetuarem reclassificações dos mesmos. Foi por esse diploma que se acrescentou um quarto elemento à Junta de Planeamento, dado como representante do comando militar, Faria Leal, que desde o início participava já em todas as reuniões. A Junta de Planeamento sofreria uma contínua contestação, não só local, dado que, como o governador Carlos de Azeredo anunciara na sua formação, tinha sido escolhida de cúpula, por decisão autocrática, logo sem a consulta das forças políticas já sumariamente colocadas no terreno, como igualmente dos círculos mais à esquerda do MFA nacional, que a consideravam não revolucionária. Poucos dias depois, comemorando-se o segundo 1.º de Maio em liberdade, deslocar-se-iam à Madeira dois conselheiros da revolução, o Com. Carlos de Almada Contreiras e o Maj. José Manuel Costa Neves, que participariam na manifestação, mas que quase não contactaram os elementos das forças armadas de S. Lourenço, limitando-se o Brig. Carlos de Azeredo a depois os acompanhar ao aeroporto. Ao contrário do ano anterior, também nenhum dos elementos militares da Madeira participou na mesma manifestação que, inclusivamente, levou a alguns incidentes na baixa da cidade, o que não acontecera no ano precedente. A Junta de Planeamento começou a conhecer dificuldades de articulação interna a partir das eleições de 25 de abril de 1975 (Eleições Autonomia), que elegeram a Assembleia Constituinte (sendo a organização dessas eleições a mais importante missão de que a referida Junta estava incumbida). Assim, se até então a sua nomeação de cúpula, como havia sido referido por Carlos de Azeredo na sua apresentação pública, era defensável por não ter havido eleições na Região, a partir daquela data, tal já não era sustentável. Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de 1975, que começara a 11 de março, e logo a 4 de abril registara uma tentativa de assalto ao palácio de S. Lourenço por uma manifestação de produtores de cana-de-açúcar – situação geral à qual Carlos de Azeredo deu uma resposta que não foi entendida como correta, nem pela esquerda, nem pela direita, tentando limitar a sua atuação a uma gestão negociada de crise, que nunca fora bem aceite por alguns elementos da Junta de Planeamento. A cisão foi iniciada pelo pedido de demissão de João Abel de Freitas, a 5 de agosto de 1975, pois que o mesmo não poderia ter sido feito pelo Maj. Faria Leal, dada a sua condição militar, pretendendo ambos a detenção de alguns empresários madeirenses por sabotagem económica. A demissão de João Abel Freitas foi imediatamente aceite pelo Brig. Carlos de Azeredo, e seguiu-se-lhe a demissão dos restantes membros. Estava assim aberto o caminho para a constituição de um novo órgão de gestão governativa da futura Região Autónoma da Madeira, que, embora ainda não democrático nem verdadeiramente representativo das forças políticas com representação no terreno, caminhava já nesse sentido: a Junta Governativa e de Desenvolvimento de 1976. Levaria, no entanto, mais de seis meses para ser negociada e tomar posse.     Rui Carita (atualizado a 09.06.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

convento de são bernardino

O primeiro convento franciscano que se fundou fora do Funchal teve por titular S. Bernardino de Sena, um dos grandes santos da mesma ordem, e foi fundado na freguesia de Câmara de Lobos, entre 1459 e 1460, em lugar ermo e solitário, a certa distância da igreja matriz, a norte do Pico da Torre, ainda restando grande parte dos seus edifícios, embora das campanhas de obras dos sécs. XVIII, XIX e XX. O convento teve uma humilde e obscura origem, mas tornou-se célebre e afamado em toda a Ilha, e até no continente, por ter ali vivido e falecido Fr. Pedro da Guarda (1435-1505), a que o povo chama “santo servo de Deus” (VERÍSSIMO, 2002, 79-91). A fundação é atribuída a Fr. Gil de Carvalho, um humilde frade franciscano que veio do continente do reino para a Madeira, quando os Franciscanos que ocupavam o hospício de S. João da Ribeira acabavam de sair da Ilha para irem estabelecer uma comunidade nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, que fundaram em 1456, sobre as ruínas do antigo paço de Xabregas e a invocação de S.ta Maria de Jesus, mas que ficou mais conhecido por Convento de S. Francisco. Desejando Fr. Gil viver em lugar desértico como eremita, como escreveu depois o deão, António Gonçalves de Andrade (1795-1868), anotador da História Insular do P.e António Cordeiro (1641-1722) a partir da História Seráfica, levantou um pequeno cenóbio com dois cubículos “em dois pés de terra semeada entre rochas”, num dos quais habitava o fundador e no outro João Afonso e Martinho Afonso, os quais esmolavam pelo povoado para a sustentação dos três (SOLEDADE, 1705, III, 170-171). Crescendo o número de religiosos, trataram de levantar um pequeno convento em terreno que lhes foi doado por João Afonso Correia (c. 1435-1490), escudeiro do infante D. Henrique, e sua mulher, Inês Lopes, que na Ilha foram o tronco da casa Torre Bela. A nova casa religiosa erguia-se num sítio afastado da povoação, cercado de um lado pela ribeira e do outro, por uma rocha, sendo bem própria para o género de vida a que se dedicavam. Passados alguns anos reuniram-se outros religiosos, que formaram a comunidade inicial, mas uma enchente da ribeira, pelos anos de 1480, haveria de destruir a pequena ermida e os primeiros cubículos, o que desgostou irremediavelmente Fr. Gil de Carvalho, que se retirou para o continente, entregando a direção a Fr. Jorge de Sousa. Foi Fr. Jorge de Sousa que reconstruiu o convento, um pouco mais acima, ao abrigo das correntes caudalosas da ribeira, tendo sido levantada nova e mais vasta igreja, com novas celas, “que logo foram habitadas”, tendo ficado o espaço inferior do inicial ermitério para “algumas oficinas de menor importância” (SOLEDADE, Ibid., 173). Data dos finais do séc. XV aos inícios do XVI a organização canónica do convento como uma verdadeira casa monástica, depois de ter melhorado consideravelmente as condições materiais através de doações, contratos de arrendamento, etc., como era hábito, pois estes mosteiros funcionavam também como empresas agrícolas. A fama e o desenvolvimento da comunidade encontram-se decididamente ligados à presença ali de Fr. Pedro da Guarda que, nascido na Guarda, em 1435 e que, tendo professado por 1455, “querendo subtrair-se à admiração que causavam as suas virtudes” (SILVA e MENESES, 1998, II, 103), se refugiou em S. Bernardino por 1485. Falecido em 1505, logo a sua fama se espalhou pela Ilha e pelo continente, sendo referido por Fr. Marcos de Lisboa (1510-1591), depois bispo do Porto, na terceira parte das suas Crónicas de los Frayles Menores, editadas em Salamanca, em 1570, não tendo nunca cessado o culto popular que lhe tem sido devotado. A comunidade de S. Bernardino foi crescendo ao longo do séc. XVI e, por 1584, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) refere que ali viviam permanentemente 7 a 8 religiosos, sendo o Convento “abastado de toda a fruta e vinhos” (FRUTUOSO, 1968, 122). Em 1598, no Recenseamento dos Fogos, Almas, Freguesia, e Mais Igrejas, registavam-se 10 a 12 religiosos, sinal de continuar a crescer a população residente do Convento e, por certo, pela devoção suscitada com a ocorrência, no ano anterior, da localização da sepultura de Fr. Pedro da Guarda. No início do ano anterior, a 9 de janeiro de 1597, registam as vereações do Funchal não se ter realizado sessão da parte da manhã, por falta de comparência dos oficiais do concelho, que haviam sido informados de que os franciscanos tinham descoberto os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda (ABM, Câmara Municipal do Funchal, 1313, 3 v.). A exumação oficial deve ter ocorrido depois, a 28 de janeiro desse ano, na presença, de novo do bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), do reitor do colégio do Funchal, P.e Cristóvão João “e outras pessoas qualificadas”, como regista a História Seráfica (SOLEDADE, Ibid., 173). O certificado de transladação de Fr. Ambrósio de Jesus, à época definidor-geral e comissário dos conventos franciscanos da Madeira, datado de 23 de maio de 1624, regista somente tal ter ocorrido em janeiro de 1597 e reivindica para si o ter encontrado, nos claustros, os restos do corpo de Fr. Pedro da Guarda (Girão, 1992, 8, 396-397). A capela-mor da nova igreja foi fundada por Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520), filho mais novo de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves, filha de Zarco, e a sua mulher Isabel Correia, que era filha dos doadores do terreno em que se tinha levantado o primitivo convento. Pajem da rainha D. Leonor e um dos homens-bons do concelho do Funchal, onde serviu de vereador, guarda-mor da saúde e procurador do concelho, Rui Mendes de Vasconcelos mandou redigir cédula de testamento a 15 de setembro de 1515, antes de seguir para o reino, onde determina vir a ser enterrado no meio da capela-mor, junto dos seus filhos já falecidos. A capela teria sido reconstruída por 1533 e a lápide em causa, nessas ou nas obras seguintes, transferida para o adro da igreja, onde se encontra. Mais tarde, o neto homónimo Rui Mendes de Vasconcelos deixou ainda em testamento, de 16 de abril de 1569, 160$000 réis da sua terça para sufrágios por sua alma. Com essa importância deveriam ainda ser compradas várias alfaias e paramentos, como um cálice de prata dourada, de três marcos, uma vestimenta, uma capa e um frontal de seda de damasco. O remanescente seria aplicado em bens de raiz, “em boa terra, em Câmara de Lobos, e em água” para subsistência dos frades, tudo ficando enfeudado, “enquanto o mundo durar” (VERÍSSIMO, 2002, 33), a duas missas semanais rezadas, às quartas e às sextas, pela sua alma e as dos seus filhos. O seu testamento não veio a ser aprovado, fazendo-se inventário e partilhas, de forma a assegurar o legado. Os bens destinados a esse efeito, embora ligeiramente inferiores aos inicialmente destinados, à época, cumpriam suficientemente o determinado, mas o mesmo não viria a ocorrer alguns anos depois. O neto do segundo Rui Mendes de Vasconcelos, por via materna, também padroeiro da mesma capela-mor, João de Bettencourt de Vasconcelos (1535-1615), nos finais do século, requeria ao bispo do Funchal a redução das missas em questão. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos já tinha exposto a situação para Roma e havia recebido uma carta da Sagrada Congregação dos Cardeais, de 4 de outubro de 1589, concedendo-lhe o poder para reduzir as capelas e missa dos administradores do seu bispado “que se sentissem carregados com grande número de missas e encargos, ao justo e razoável, conforme as propriedades e rendimentos” (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, tombo 3, 608-608 v.). O despacho do pedido do administrador da capela-mor de S. Bernardino teve a data de 19 de dezembro de 1593, reduzindo o bispo o número de missas de duas semanais para uma por mês, mas mantendo as demais obrigações dos padroeiros, que eram o pagamento de azeite, pão, peixe ou carne e vinho para a subsistência dos frades. João de Bettencourt de Vasconcelos, a quem, regista Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) no seu Nobiliário Genealógico, chamavam “o Cavaleiro, de alcunha”, tendo passado à Índia por capitão da nau São Gregório, sucedeu, entretanto na terça dos seus avós, por morte de seu irmão Rui Mendes de Vasconcelos, homónimo dos vários avós e que falecera sem descendência. Por testamento aprovado em 12 de dezembro de 1607, como administrador dos bens do irmão, refere que a terça do mesmo ainda tinha como obrigação para o Convento de S. Bernardino uma pipa de vinho novo, quatro arrobas de azeite e 3$500 réis de missas rezadas e cantadas, pelo que deve ter havido ainda outras alterações a estes legados. No seu testamento, João de Bettencourt de Vasconcelos deixou vinculada a sua terça nas fazendas por cima de Câmara de Lobos e abaixo da quinta da Torre, deixando-a aos frades de S. Bernardino. Determinou que a administração desta capela, depois conhecida como “Terça dos Frades”, deveria passar à sua filha Helena de Vasconcelos (c. 1572-1625), instituidora da capela-mor da igreja do Colégio do Funchal, dado o filho Henrique de Bettencourt não ter descendência e falecer pouco depois, em 1620, e Guiomar de Bettencourt (c. 1571-1607), a irmã mais velha, já ter falecido. Data de cerca de 1633 a construção de três pequenas capelas na cerca, para além de outros melhoramentos nos edifícios do Convento. As capelas de homenagem a Fr. Pedro da Guarda ficavam, uma junto à sepultura do “santo”, identificada nos finais do século anterior, outra junto da cozinha, onde a tradição contava ter havido anjos a ajudá-lo nos seus trabalhos e a última, junto à pequena lapa onde costumava meditar, isolado de tudo e de todos. Por esses anos igualmente se fizeram obras nos claustros e na casa do capítulo, para o que Rui Mendes de Vasconcelos (II) deixara os materiais, como madeira de cedro e que a mandara colocar na loja do mosteiro. Saliente-se, no entanto, que nem sempre estas determinações testamentárias eram cumpridas, pois que no documento em questão se refere a importação de uma laje da Flandres, que não temos informação de alguma vez ter existido, tal como determina que se fizessem grades de ferro, de varões grossos, lavrados e dourados para a capela-mor, de modelo idêntico aos da capela do Santíssimo da sé do Funchal, a fim de substituir os de madeira que já estavam velhos, que também mais ninguém volta a referir. Alguns anos depois Henrique Henriques de Noronha descreve pormenorizadamente o Convento, a “uma légua da cidade do Funchal, para poente”, por cima do lugar de Câmara de Lobos, que com os anos fora aumentando o número de edifícios, especialmente graças à contínua romagem do “Servo de Deus”, constituindo-se numa das melhores casas franciscanas e a segunda da Custódia de S. Tiago Menor da Madeira. Tinham então boas oficinas e “excelentes cómodos” para os 18 religiosos que habitavam no Convento. Compreendia três dormitórios, que com a igreja formavam um “perfeito quadro”, com um claustro rodeado de varandas sobre pilares de “cantaria fina” e no meio uma fonte de “perene água” (NORONHA, 1996, 250-251). O cronista descreve as várias capelas, uma das quais no claustro, dedicada a Fr. Pedro da Guarda, “onde misteriosamente foram achadas as relíquias na sua sepultura, pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, em oito de janeiro de 1597”, o que, se de algum modo pode ser confirmado pelas vereações camarárias do Funchal, que no dia seguinte não tiveram sessão por todos terem acorrido a Câmara de Lobos, embora esteja em desacordo com o que escreveu Fr. Fernando da Soledade, que regista o dia 28 de janeiro, e, logicamente, omite ter sido o bispo do Funchal a fazer o achado. Refere-se ainda à capela construída na antiga cozinha, também dedicada ao “santo”, onde “vinham os anjos beneficiar o comer, enquanto ele se ocupava em outra maior contemplação”, figurando aí a sua imagem de joelhos, em oração, dentro da antiga chaminé “e os anjos ocupados no ofício do Santo” (Id., Ibid.). Nos claustros havia outra capela, que servia de capítulo aos religiosos, dedicada a N.ª Sr.ª da Piedade, “cuja imagem é de maravilhosa pintura”, capela fundada por André Afonso Drumond e sua mulher Branca de Atouguia. Fora do claustro, junto à portaria e à igreja ainda havia outra capela, dedicada às almas, com uma confraria e, a “poucos passos adiante”, ainda a capela de S. Lourenço, dentro da qual, do lado da epístola, ficava uma “lapa fechada com grades de ferro” (Id., Ibid., 252), que ainda subsiste, onde era tradição que Fr. Pedro da Guarda se retirava para oração. A igreja era “proporcionada ao convento”, de uma só nave, com capela-mor e dois altares colaterais: o do lado do evangelho dedicado ao Senhor Jesus, com irmandade e, o da parte da epístola, à Conceição de N.ª Sr.ª. O retábulo-mor possuía três nichos, sendo o central ocupado pela imagem de S. Bernardino de Sena e os laterais, pelas imagens de S. Francisco e de S.to António. Na parede do lado da epístola figuravam as armas dos Vasconcelos e, no lado oposto, havia uma tribuna. Na porta lateral que saía para os claustros havia uma laje com as letras A e D, indicação de que ali havia sido enterrado Fr. António Descalço, “religioso leigo cuja virtude e largas penitências lhe adquiriram larga veneração” (Id., Ibid.), mas na lápide aí existente no começo do séc. XXI figura o nome por extenso do frade leigo, por certo bem anterior aos anos de 1722, em que foram escritas as memórias do cronista Noronha. Fr. António Descalço havia sido canavieiro de açúcar de António Correia, o Grande (1457-1572), filho dos doadores do terreno inicial do Convento, tendo entrado como donato, ou seja “consagrado ao Senhor”, em referência a alguém mais novo e que estaria a preparar-se para seguir a vida religiosa, professando depois, mas como leigo. Passou a usar o nome de Descalço, “porque jamais calçou alparcatas” e quando se “faziam gretas nos pés, do exercício, as cozia com fio de sapateiro”. Faleceu em 27 de maio de 1590, o que parece corresponder à lápide depois colocada, tendo escrito Noronha que foi contemporâneo de Fr. Pedro da Guarda, “que sem dúvida seria o modelo do seu espírito”. No entanto, tendo o “santo” falecido em 1505, não podem ter sido contemporâneos, pois embora o antigo amo, António Correia, tenha falecido com 115 anos, um canavieiro que sempre andou descalço dificilmente teria passado dos 70 anos. Escreveu também Noronha que sobre a sua sepultura “se viam algumas vezes luzes” e ouviam cânticos amenos, com “um suavíssimo cheiro, que saindo dela se fundia por toda a igreja” (Id., Ibid., 251-253). Na descrição de Noronha do então oratório de S. Sebastião da Calheta, refere-se que no Convento de S. Bernardino se havia homiziado Pedro Bettencourt de Atouguia (1622-c. 1680), o qual tinha assassinado, por problemas de coleta de impostos, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, a 29 de dezembro de 1642. O corregedor viera à Madeira para investigar uma série de tumultos ocorridos no ano anterior e, tomando conta da fazenda real, passou a tratar dos vários pagamentos em atraso. Entre esses pagamentos encontravam-se os de Pedro de Bettencourt, Manuel Homem da Câmara e outros, pelo que dirigindo-se à Câmara do Funchal, então nas traseiras da sé, para prender o último, foi assassinado às portas da mesma por Pedro de Bettencourt. Conta então Noronha, que foi depois preso, em princípio, pelo seguinte corregedor Jorge de Castro Osório, por sua vez, morto por envenenamento poucos meses depois (Aclamação de D. João IV). O morgado Pedro de Bettencourt teria, entretanto “arrombado a prisão” e passou a viver homiziado, de início, no Convento de Câmara de Lobos, “mas com tal mudança de vida”, que despendia a maior parte dos rendimentos do morgado em benefício da caridade, tendo feito “à sua custa as varandas do claustro de S. Bernardino”. Aí permaneceu até 1670, data em que comprou o terreno para o oratório de S. Sebastião da Calheta, cuja construção se iniciou por essa data, professando ali como Fr. José da Encarnação, onde “andou sempre descalço” e foi depois sepultado na capela-mor daquele oratório (Id., Ibid., 257). O Convento de S. Bernardino beneficiava, entretanto do púlpito da colegiada de S. Sebastião da Câmara de Lobos, pelo menos, desde o alvará de D. Filipe II, de 20 de outubro de 1612, que atribuiu ao guardião um ordenado anual de 15$000 réis e a obrigação de pregar na colegiada no Advento e na Quaresma, o mesmo acontecendo com os restantes conventos franciscanos, em relação às colegiadas das matrizes das freguesias próximas. Mais tarde, com a dinastia dos Bragança, as porções e esmolas dos sermões auferidas pelos religiosos estariam isentas do pagamento da décima, por provisão régia de maio de 1650. Os frades de S. Bernardino, e o Convento em geral, a partir dos inícios e meados do séc. XVII, vieram a beneficiar com o recrudescimento da devoção de Fr. Pedro da Guarda, tendo sido contínuas as tentativas de beatificação e os processos enviados para Roma. O Papa Urbano VIII, a 30 de agosto de 1625 ordenou, inclusivamente ao bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), que, com dois dignatários da Sé, fizesse nova inquirição por autoridade apostólica. O processo foi concluído em 1628, sendo enviado para Roma, mas não tendo conhecido despacho. Novas tentativas foram feitas pelo P.e Fr. Baptista de Jesus, que se deslocou a Roma para negociar a causa, ainda sendo conduzida outra tentativa pelo deão, vigário-geral e provisor do bispado em sé vacante, Pedro Moreira (c. 1600-1674), em 1652, igualmente sem resultados. O erário público, entretanto concorreu igualmente para os processos de beatificação, determinando o rei D. João IV, por alvará de 3 de setembro de 1653, que os ministros da justiça aplicassem na Ilha metade das condenações pecuniárias para ajuda das despesas. A determinação de D. João IV foi confirmada cem anos depois, pelo bisneto D. José, por novo alvará, em 27 de fevereiro de 1753, para que se mantivesse a ajuda das despesas ao processo de beatificação do “Santo Servo de Deus” (BNP, Índice Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda, 118 v.), assunto cumprido ao longo dos séculos seguintes, mas sem resultado, ainda se arrastando o processo por Roma. O Convento de S. Bernardino veio a ser totalmente reconstruído nos inícios e meados do séc. XVIII, quase que somente se tendo preservado a lapa e a sepultura de Fr. Pedro da Guarda, assim como algumas das lápides sepulcrais. As obras devem ter-se iniciado por 1735, como atesta a data inscrita na base da cruz do frontispício da igreja e prolongaram-se, pelo menos para além de 1747, como se inscreveu no lintel de uma das janelas próximo da torre. A igreja ficou então dotada de três portas com molduras assentes em colunas oitavadas e conjunto rematado por cornija relevada sobre a qual assenta um pequeno nicho de cantaria aparente. O conjunto das portas parece ter tido o risco de um mestre das obras reais anterior, talvez Manuel de Vasconcelos, mas toda a fachada deve ter sido reformulada nos inícios do XIX, depois da aluvião de 1803 e ainda nas obras de 1924 a 1928, não sendo fácil deduzir o que ficou das campanhas de obras mais antigas e, inclusivamente, se não se aproveitaram cantarias de outros locais do Convento. Para estas obras, em princípio, o guardião e demais frades tiveram autorização da Câmara do Funchal, por alvará de 13 de janeiro de 1742, licença para cortar vinte e cinco paus nas serras do concelho. Entre 1730 e 1740 também se encomendaram vários painéis de azulejos para os claustros a uma das boas oficinas de Lisboa, de que chegaram aos nossos dias dois muito bons e grandes arcanjos, podendo ter sido mais. De 1740 a 1750 também deve ser o lavabo da sacristia, dos mais interessantes existentes na Região e que, contra o que seria de esperar, recupera o trigrama de S. Bernardino de Sena, de que se haviam apropriado os Jesuítas para a sua emblemática oficial, o que à época teria sido uma atitude corajosa. O Convento voltou a ter obras após o terramoto de 1748, que afetou bastante toda esta área e, então quase uma nova reconstrução, após a terrível aluvião de 9 de outubro de 1803. A descrição da aluvião de João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), o célebre “Dr. Piolho”, dada a fraca estatura, feita a pedido da Câmara do Funchal, refere que a ribeira da Saraiva ou ribeiro dos Frades levara “a cerca, claustros, cozinha, refeitório e adega” do Convento, de que só ficara a igreja e a casa dos romeiros. Uma testemunha ocular, a 15 de outubro seguinte, refere mesmo que “o convento do Servo de Deus também foi ao mar” e “dizem que escapou parte do refeitório e um pequeno celeiro” (VERÍSSIMO, 2002, 65). No livro de Receita e Despesa dessa época registam-se “o gasto que se fez depois do dia 10 deste mês de outubro, quando amanheceu a triste cena do aluvião, que levou este nosso convento com as alfaias que nele se achavam, etc.”. Os frades tiveram assim que adquirir quatro panelas, um tacho, uma frigideira, duas peneiras, seis copos, um cutelo, dois quartos, balança e pesos, tendo tudo custado 16$350 réis. Tiveram também de contratar um carpinteiro, por dois dias, “para consertos”, como regista o escrivão Fr. João de Santa Rosa (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, fl. 87). No pedido depois feito pelo guardião Fr. Matias de São Boaventura para se fazer uma vistoria, refere-se que os frades tiveram de trepar pela rocha vizinha do lado nascente, pois a água havia tomado a saída do Convento, demolido a portaria e entrado na igreja. Os frades tiveram que se recolher nas instalações dos Terceiros e na casa dos romeiros, pois haviam ficado sem os dormitórios e mais instalações, solicitando poder utilizar o rendimento da capela instituída por João de Bettencourt de Vasconcelos para a reedificação do Convento. A vistoria determinada pelo provedor dos resíduos e capelas só veio a ocorrer a oito de julho de 1805, levada a cabo pelo então mestre das obras reais e antigo mestre entalhador Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), assessorado pelo mestre António José Barreto, que lhe haveria de suceder. Os prejuízos tinham sido muito grandes, perdendo-se na totalidade o muro da cerca, as latrinas, o dormitório que estava ao lado do ribeiro, a cozinha e loja anexa, a casa de profundis, o refeitório, a adega, metade do claustro, a capela da cozinha do servo de Deus, a da cova do “santo”, a sacristia e a varanda que lhe ficava em cima, tal como as celas junto da mesma varanda. Na igreja, encontrava-se perdido o teto sextavado, o altar teria de ser refeito, e os azulejos, porque em mau estado, teriam de ser retirados. A ribeira dos Frades alterara o seu leito, passando então junto à porta travessa da igreja, que ia para a capela-mor, tudo necessitando de ser assim corrigido. As obras tiveram autorização do provedor-proprietário das capelas, Pedro Nicolau Bettencourt de Freitas e Meneses, devendo ser colocados em praça “os frutos” do morgadio instituído por João de Bettencourt de Vasconcelos, para se liquidarem pela melhor oferta. Satisfeitos os legados pios, deveria aplicar-se o remanescente na reconstrução do Convento e da capela-mor, de acordo com as diretivas deixadas no auto de vistoria. Ao longo dos anos seguintes as obras arrastaram-se, ainda havendo pagamentos em julho de 1822 e, em 1827, o síndico do Convento queixava-se que a vistoria às obras se achava por completar, em relação à capela-mor, oficinas do Convento e outras instalações. Estes anos foram muito complexos em Portugal com a implantação do primeiro liberalismo e com a contrarrevolução do infante D. Miguel, seguindo-se a guerra civil que, não tendo afetado fisicamente a Madeira, levou à emigração dos principais quadros eclesiásticos insulares, como grande parte dos cónegos da sé e dos vigários das freguesias. As obras do Convento nunca teriam sido completadas. A vida quotidiana da comunidade de S. Bernardino entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX pode ser analisada pelos quatro livros de receita e despesa que sobreviveram. A documentação do Convento parece ter-se perdido parcialmente com a aluvião de 1803, tendo ficado alguns livros de despesas de obras no conjunto proveniente da provedoria do Funchal; os quatro livros de receita e despesa foram depositados na Torre do Tombo, indo integrar o núcleo dos conventos, tendo a documentação avulsa ficado no núcleo do Ministério das Finanças do mesmo arquivo. O estado de conservação dos cadernos iniciais do Livro de Contas de setembro de 1792 a 1798, quando era guardião o P.e Fr. António do Amor Divino, é testemunho da dificuldade por que deve ter passado toda a documentação do Convento. As receitas do Convento provinham essencialmente de foros e de missas, inclusive nos altares das confrarias, capelas e oratório do síndico, sermões na Quaresma e no Advento na colegiada de Câmara de Lobos, tal como da venda de túnicas, hábitos de saial e de burel para mortalhas, aspeto que era igualmente praticado nos restantes conventos franciscanos masculinos da Ilha. Um hábito de burel e o acompanhamento de um funeral registados, e.g., na primeira semana de setembro de 1792, custaram 2$500 réis, embora um outro enviado para o campanário na mesma semana tivesse custado somente $8000 réis. Os hábitos para mortalha eram feitos no Convento, comprando-se periodicamente uma vara de burel, como nos inícios de fevereiro do ano seguinte, que custou 6$000 réis. As túnicas também ali deviam ser feitas, vindo o linho sedado ou em rama, da Ponta do Pargo e da Fajã da Ovelha, em princípio, como esmola. Na última semana de maio de 1798, e.g., entre os inúmeros envios de hábitos de burel e de saial, registam-se verbas de 4$000 réis, para o do burel enviado para o funeral de Manuel de Sousa, das Eiras, acompanhado por dois religiosos “a 500 réis cada um” e 9$000 réis, para o hábito de saial enviado para Rita dos Santos, da Várzea, cujo funeral foi acompanhado por seis religiosos. Nessa semana também se receberam 3$000 réis pelo “caminho e assistência” ao ofício das exéquias do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, falecido no Funchal, a 30 de março desse ano, determinadas pelo Cap.-mor Filipe Esmeraldo e nas quais participaram cinco religiosos “a 600 rs.” (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, f. 1v.). As verbas auferidas pelas missas eram também variáveis, registando-se, e.g., na primeira semana de fevereiro de 1793, 35 missas, que renderam 2$800 réis; na segunda semana, 25 missas, 2$000; na terceira, 33 missas, 2$050; e na quarta, 35 missas, 1$800, dependendo assim de onde eram celebradas e dos acordos anteriormente estabelecidos. Havia uma série de missas que eram obrigação do Convento, outras de outras obrigações, tal como as das capelas e das confrarias, nem todas pagas. Na última semana de abril de 1798, no livro de contas de quando era guardião o P.e pregador Fr. Manuel da Piedade, especifica-se que se “disseram” 23 missas, 7 do Convento, 3 de obrigações, 3 das confrarias e 4 de “ofícios de frades”, somente tendo sido pagas quatro, a 200$000 réis, pelo que houve de receita 800$000 réis (Ibid., liv. 2, fl. s/n.ºv.). Nas semanas seguintes variam os quantitativos, havendo missas pagas a $200, a $300 e, inclusivamente, a 1$550 réis, como ocorreu na terceira semana de maio desse ano de 1798 e que parece corresponder à missa que antecedeu ou finalizou o “Noturno da confraria de Jesus” (Ibid., liv. 2, fl. 1) As festas dos padroeiros das confrarias sedeadas no Convento eram igualmente fontes de receita, principalmente se tivessem sermão, podendo chegar aos 3$000 réis. Os foros representavam ainda maiores fontes de receita, como os provenientes da antiga Terça dos Frades, que a célebre morgada Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789) chegou a colocar em tribunal, em 1771, face à aplicação da lei pombalina de 4 de julho de 1768 e do alvará de 12 de maio do ano seguinte sobre os bens vinculados, mas que veio a ter despacho da Relação de 14 de dezembro de 1776, favorável ao Convento e condenando a morgada ao pagamento das custas do processo. Os seus sucessores acabaram por continuar a pagar a célebre “terça”, como o seu sobrinho-neto João de Carvalhal (1778-1837), futuro conde de Carvalhal, que em janeiro de 1811 pagou pela “sua capela”, 16$440 réis, para além de ter rendido ao Convento, “do merecido da Capela da Terça”, mais 49$400 réis (Ibid., liv. 3, fl. 3). Outra fonte de rendimento eram os peditórios, que extravasavam, em princípio as áreas estabelecidas, pois concorriam com o pequeno Convento de S. Sebastião da Calheta e mesmo com o oratório da Porciúncula da Ribeira Brava. Os peditórios decorriam em determinados períodos, consoante as festas em causa e os produtos a recolher, como era o caso do vinho, do trigo e do pão, para o que o Convento adquiria o vasilhame para a recolha e pagava a determinados “moços” ou donatos para fazerem o peditório, tal como depois pagava pontualmente os transportes, quando excediam as quantidades transportáveis pelo homem. Uma vez recolhidos no Convento, uma parte dos mesmos era vendido. As despesas do Convento eram essencialmente na alimentação, feita à base de peixe de aquisição local, ao contrário dos conventos do Funchal onde a aquisição de peixe era mais difícil, mas também de bacalhau, de salmão fumado, de carne e legumes. Na última semana de março de 1793, e.g., uma das principais despesas foi a do peixe fresco, quase 7$000 réis, mas sendo ultrapassada pela do bacalhau, em que se gastou 7$200 réis. Compraram-se ainda feijão “fradinho”, legumes vários e fruta, vários tipos de azeite, inclusivamente “de peixe”, e lenha para cozinhar, uma despesa sempre corrente; nessa semana, foram 23 feixes, 15 a $150 réis e 8 a $100, num total de 3$050 réis (Ibid., liv. 1, f. 11v.). Os frades cultivavam ainda terrenos na sua cerca e em outras propriedades, inclusivamente, contratando pessoal em épocas de maior trabalho. Tinham vinhas e produziam vinho em adega própria e aguardente, tal como criavam animais. Pontualmente compravam um porco “para o chiqueiro”, que depois deviam matar pelo Natal, tal como também compravam galinhas e tinham ovos, pois, pontualmente, aparece o envio de ovos para o Convento de S.ta Clara, de onde depois recebiam doces. No dia de Jesus, ou seja 1 de janeiro, havia cavacas, tal como também nesse mês, a abertura da arca do servo de Deus era assinalada com um jantar de galinha. Pelo Entrudo consumiam carne de vaca e sonhos, antes do jejum e abstinência da Quaresma. Na Quinta-feira Santa não faltava o arroz-doce e em toda a Semana Santa tinham biscoitos, havendo cavacas do dia de S. João Batista, tal como carneiro e cerejas, aparecendo para outras datas festivas aquisições de especiarias, presunto, queijos e outros doces. As despesas gerais incluíam ainda nesses dias festivos o pagamento de músicos, tal como o do transporte de determinadas entidades que visitavam o Convento, vindas, geralmente, do Funchal, que incluíam, não só o barco como o de rede até S. Bernardino. Uma das contínuas despesas era ainda o tabaco, por certo para consumo do Convento, mas também para pagamento de “mimos” a visitantes, funcionários e simples trabalhadores. Contínua era também a despesa com os irmãos doentes, que obrigava à alteração da alimentação, que passava, essencialmente, a dieta de frango e canja, tal como exigia o pagamento dos medicamentos. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido pelo “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A execução do decreto na Madeira foi determinada pelo prefeito da província da Madeira, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846), que a 27 de agosto desse ano enviava ao provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851) instruções precisas a esse respeito, embora somente cumpridas quase um ano depois. As primeiras diligências ocorreram assim a 7 de abril de 1835, na presença do provedor do concelho, do tabelião Domingos João de Gouveia e do fiscal da fazenda Manuel Joaquim Lopes. Elaborado o inventário do Convento, registaram-se como objetos sagrados, uma custódia, uma âmbula, quatro cálices e um relicário de prata dourada, assim como nas capelas se inventariaram quatro lampadários de prata, um turíbulo, um naveta e três castiçais. Os objetos sagrados foram entregues ao P.e Alexandrino Salgado, vigário capitular da Diocese, e os não sagrados recolheram à provedoria da Fazenda, tendo seguido, a 28 de maio de 1836, no brigue de guerra Tejo, para a Casa da Moeda de Lisboa, de que o prefeito da Madeira havia sido provedor. Todo o conjunto de paramentos e vestiária foi entregue à Diocese e inventariou-se ainda os adornos de prata das diversas imagens. Foram ainda inventariados os livros de coro: um saltério, um antifonário, um livro de missas e um livro de calendário, conjunto entregue à Diocese. No entanto, o conjunto dos 35 livros da biblioteca, os manuscritos de contas do Convento, e um maço de 78 papéis avulsos de escrituras, títulos, provisões e outros documentos, recolheram ao governo civil, sendo depois entregues na provedoria da fazenda. Inventariou-se também todo o mobiliário do Convento, como mesas, cadeiras e, inclusivamente, vidros, loiças, cobres e demais objetos de cozinha, posteriormente vendidos em hasta pública. No mesmo dia do inventário os funcionários da provedoria da fazenda tomaram posse oficial do conjunto dos imóveis, tal como dos bens do Convento, que depois de inventariados e avaliados, previa-se também colocar em hasta pública. Tal aconteceu pouco depois com as diversas propriedades, mas o mesmo não veio a acontecer de imediato com o imóvel. Uma parte do recheio do Convento, a cargo da colegiada da matriz de S. Sebastião de Câmara de Lobos e do vigário-geral da Diocese, foi sendo distribuído pelas matrizes limítrofes, como já havia acontecido com o património dos Jesuítas e aconteceu então com os conventos franciscanos. Na altura do inventário, tal como a paramentaria foi entregue à Diocese, alguns móveis, como os cinco confessionários, duas cadeiras e duas escadas para armações, foram de imediato transferidos para a matriz de Câmara de Lobos. Em abril de 1835, o vigário da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos recebeu o sino maior do Convento e o menor foi entregue à matriz da Santíssima Trindade da Tabua. Refere o P.e Pita Ferreira que a imagem de N.ª Sr.ª da Conceição seguiu para a matriz, o sacrário foi oferecido à igreja da Piedade do Curral das Freiras, em 1850, e a imagem do Senhor Jesus foi oferecida à capela da Vera Cruz, na Quinta Grande, em 1866. Com a implantação do Governo liberal foi nomeado para o Funchal um novo vigário capitular e governador do bispado, o Cón. António Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1795-c.1845), que se havia refugiado em Cabo Verde e depois no Brasil, em razão das suas ideias liberais. Tendo já publicado no Porto um folheto contra o culto do “santo”, uma vez na Madeira, a 2 de junho de 1835, fez uma visita extraordinária à capela e lapa de Fr. Pedro da Guarda no extinto convento de Câmara de Lobos. Tendo examinado o monumento onde se guardavam os restos mortais do Franciscano, junto do altar-mor da igreja, mandou-os destruir, o mesmo mandando fazer à pintura existente na capela do “santo” e demais imagens que encontrou, tudo sendo queimado em novo “auto de fé” ao sabor do antigo regime. Entendia assim cumprir o seu “rigoroso dever, para desagravar a verdadeira e sã doutrina do cristianismo”, pois que nunca havia sido canonicamente autorizado o culto de Fr. Pedro da Guarda (A Flor do Oceano, 21 jun. 1835, 30). Se esfriaram e diminuíram momentaneamente estes preitos de devoção e piedade, mas não se extinguiram de todo, tendo-se transformado na sede da paróquia de S.ta Cecília, um número considerável de indivíduos procura a sepultura, onde foram depostos os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda. As imagens só se retiraram da igreja de S. Bernardino a 18 de junho de 1837, umas para a igreja paroquial e outras para a posse de algumas famílias que as conservaram, passando a incorporá-las na procissão anual das Cinzas. Entre estas, encontra-se o busto relicário de Fr. Pedro da Guarda, aparentemente datável dos meados ou finais do séc. XVII, que pertenceu à família de Jorge Sabino de Castro, que em outubro de 2002 a doou ao antigo Convento de S. Bernardino. O edifício do Convento foi vendido em hasta pública, a 12 de março de 1872, por 811$000 réis, a Manuel Joaquim Lopes, sendo registado como Convento Velho, e não integrando a capela dos Terceiros e a casa dos romeiros, então registadas como Convento Novo. A venda já se enquadrava num outro contexto político e religioso, pois desde 1857 já funcionava no antigo convento uma escola feminina e, pelo menos desde 1867, se pretendia reedificar o convento e retomar o processo de beatificação do santo, editando-se folhetos sobre a vida do mesmo e reativando-se a devoção através da Ordem Terceira e dos Salesianos, que ali instalaram uma escola. Fig. 1 – Luís Bernes, Desenho do Convento de São Bernardino em Câmara de Lobos, Luís Bernes. Fonte: Semana Ilustrada, 9 out. 1898, 217. O edifício do velho convento, entretanto, arruinava-se decididamente, como comprova o desenho editado pelo pintor Luís António Bernes (1864-1936) na Semana Ilustrada de 9 de outubro de 1898, assim como algumas fotografias da época, mas que ao mesmo tempo demonstram o interesse que passara a haver pelo imóvel. Efetivamente, a 6 de julho desse ano de 1898, os proprietários tinham vendido o convento velho por 60$000 réis ao prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), mas que era mais uma doação do que uma venda, pois foi vendido muito abaixo do preço pelo qual o haviam adquirido. As ruinas do velho convento vieram a ser pontualmente recuperadas por iniciativa da M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). O projeto de recuperação do edifício teve início por volta de 1911, mas só foi concretizado em meados de 1916 para funcionamento do curso preparatório para o seminário diocesano. Foi neste edifício que a M.e Mary veio a falecer, em 18 de outubro desse ano, não tendo assistido à chegada dos alunos. O edifício voltaria a ter obras de reabilitação, por iniciativa do pároco de Câmara de Lobos, P.e João Joaquim de Carvalho (1865-1942), entre janeiro de 1924 e meados de 1928. A igreja sofreria uma total remodelação, eliminou-se grande parte das preexistências, como a antiga tribuna e as armas dos Vasconcelos nas paredes norte e sul da capela-mor, removeram-se igualmente as lápides sepulcrais e encomendou-se em Braga um retábulo-mor com amplo camarim, executado naquela cidade pela antiga oficina do entalhador Leandro de Sousa Braga (1837-1897), que ainda usava o seu nome. O retábulo custou 12$000 réis e chegou ao Funchal a 24 de setembro de 1926, procedendo à montagem um dos mestres entalhadores da mesma oficina. No ano seguinte ainda haveriam de chegar os altares colaterais, em abril de 1927. A igreja seria de novo benzida pelo bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), a 24 de outubro de 1926, durante as festas de S. Francisco, nesse ano ligeiramente adaptadas para coincidirem com as celebrações do 7.º centenário da morte do patriarca dos Franciscanos. Até 1933, continuou ali a funcionar o curso preparatório do Seminário Diocesano, que nessa data foi integrado no Seminário da Encarnação. O conjunto voltaria a sofrer reabilitação em 1960, para a instalação da paróquia de S.ta Cecília, tendo decorrido, em 2014 e 2016, novas obras de reabilitação geral do conjunto, a cargo da mesma paróquia e com o apoio da Ordem de S. Francisco, segundo projeto de 2006 do ateliê dos arquitetos Victor Mestre e Sofia Aleixo.     Rui Carita (atualizado a 20.02.2017)

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