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forte dos louros

Deve datar da primeira metade do séc. XVII a construção da pequena fortificação particular que o comerciante Diogo Fernandes Branco mandou levantar nas suas propriedades dos Louros e que o capitão Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade do século. Para proteger o desembarcadouro particular das propriedades dos Louros, construiu-se uma pequena fortaleza retangular com uma esplanada capaz de cinco peças de artilharia ligeiras. A construção deve ter tido a direção do mestre das obras reais Bartolomeu João. Palavras-chave: fortes; arquitetura militar; comércio internacional; defesa.   Mateus Fernandes (c. 1520-1597), de acordo com apontamentos que deixou em Lisboa, ainda nos finais do séc. XVI realizara obras na foz da Ribeira Gonçalo Aires. As primeiras obras nesse local, que Mateus Fernandes refere terem sido feitas no governo do conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), eram para “levante”, constando de uma série de trincheiras e traveses, nas quais se fazia “vigia todas as noites” e que “têm casa”. O mestre Mateus Fernandes pedia, então, que fossem reforçados, dada a força da ribeira no inverno, com “um espigão”, ou seja, um baluarte, rebocado a cal por dentro e por fora (ANTT, Antigo Regime, Arquivo da Casa da Coroa, Cartas Missivas, mç. 2, n.º 53). A opção tomada para o que que ficaria com o nome de forte dos Louros, cerca de 50 anos depois, foi no sentido da construção, na margem oposta, de uma nova estrutura muito mais elevada, composta por um baluarte quadrangular, rematado nos cunhais por elegantes guaritas e com casa da guarda e paiol para norte. A construção deve datar da primeira metade do séc. XVII e talvez tenha continuado ainda durante o período filipino na encosta que domina a pequena praia de desembarque, mandada levantar por Diogo Fernandes Branco (c. 1600-1652), pai, como uma pequena fortificação particular. Este comerciante e armador construiu um pequeno empório comercial ao longo da primeira metade do século, que o Cap. Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade, com a montagem de armadas para comércio geral e, especificamente, de escravos, que circulavam entre as costas de África, os arquipélagos atlânticos e o Brasil (Pernambuco). Esta família tornou-se uma das mais poderosas casas comerciais da Madeira da segunda metade do séc. XVII. Para proteger o desembarcadouro particular nas suas propriedades dos Louros, cruzando fogos com a fortaleza de S. Tiago, construiu-se, então, uma pequena fortaleza retangular, com uma esplanada capaz de 5 peças de artilharia ligeiras, em que, por carta de 9 de dezembro de 1649, afirma, para um dos seus correspondentes, ter de gastar mais 2$000 cruzados, “além de 1$580 que nele estão gastos” (VIEIRA, 1996, 133-134). Com a construção da bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega) e as medidas de controlo do contrabando determinadas por D. João IV, a família Fernandes Branco oficializou a situação da sua fortaleza, colocando-a sob as ordens do Rei, mas pedindo a sua capitania. O Rei, por portaria de 4 de setembro de 1647, concedeu a capitania do forte dos Louros a Diogo Fernandes Branco, pai, enquanto fosse vivo, e determinou que, por sua morte, nela sucederia o seu filho (ANTT, Chancelaria de D. João IV, Portarias do Reino, liv. 2, fl. 245). Não temos informações sobre a construção do forte dos Louros, por certo sob direção do então mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), pois, embora muito simples como construção de defesa, possui as mais bonitas e elegantes guaritas que existem na Ilha. Perto dos finais do séc. XVII e falecido o Cap. Diogo Fernandes Branco sem herdeiros diretos, o controlo passou para o governador e a sua guarnição foi constituída com base em reservistas, assim sendo os seus artilheiros. Temos informações de artilheiros na situação de reserva, se assim se pode dizer, a transitarem dos fortes de primeira linha, como o do ilhéu, nos finais do séc. XVII a fortaleza mais importante, para o então denominado fortim dos Louros. Aconteceu assim, em 1690, com o velho tanoeiro Manuel Martins, que chegou depois a ser condestável do ilhéu, honorário, com certeza, pelo falecimento do seu irmão Simão Fernandes Forte, em 1698. A nomeação de 1690 de Manuel Martins para o fortim dos Louros especifica que havia servido mais de 20 anos na fortaleza de N.ª Sr.ª da Conceição do Ilhéu, pelo que se lhe dava mais uma pipa de vinho por ano. Atendia-se ainda ao facto de “se dar incapaz”, “já velho”, com “falta de vista” (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 966, fls. 139v. e 284). A capitania do forte dos Louros, no entanto, deve ter continuado na família, e a sua propriedade efetiva também, pois tanto os tenentes-coronéis Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em 1817, como António Pedro de Azevedo (1812-1889), entre 1841 e 1860, nas suas “descrições”, quase não referem este forte. No final do séc. XIX, o procurador-geral da Fazenda pública do Funchal, António Leite Monteiro, no tombo deste forte, datado de 7 de outubro de 1892, cita a sua construção pelo morgado e capitão Nicolau Geraldo de Atouguia Freitas Barreto, “que o ofereceu para poder obter a patente de capitão da sua guarnição auxiliar” (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 109), o que não é verdade, pois a construção é anterior. O Cap. Nicolau Geraldo de Freitas Barreto foi escudeiro e fidalgo da Casa Real, com mercê do hábito da Ordem de Cristo, e foi capitão do forte de N.ª Sr.ª da Encarnação dos Louros, por nomeação de 28 de maio de 1715, tendo tido armas concedidas em 1731, registadas na Câmara do Funchal (VERÍSSIMO, 1992, 152), que mandou pintar nas suas casas à rua do Esmeraldo, palacete onde se encontra instalado o Tribunal de Contas do Funchal (Arquitetura Senhorial). Nos inícios do séc. XVIII, segundo o Livro de Carga da Fortificação, era condestável deste forte António de Freitas, que recebeu, em 1724, cinco peças de artilharia de ferro montadas, de pequeno calibre, uma teria até oito libras, e alguns apetrechos de artilharia. Em 1729, era condestável do forte Bernardo de Sousa e, em 1730, Paulo Pereira de Lordelo. No final do século, o Gov. Diogo Pereira de Forjaz Coutinho, reconhecendo o pouco valor militar do forte dos Louros, pretendeu ali instalar uma fábrica de seda, mas a ideia não passou da documentação oficial. No entanto, todos os documentos seguintes são unânimes na necessidade da sua alienação, a tal ponto que Paulo Dias de Almeida já não o refere na sua descrição de 1817. No já citado Tombo Militar, onde o forte dos Louros tem o n.º 109, não consta a descrição de 1862, quando foi levantado pelo Ten.-Cor. António Pedro de Azevedo, que desenhou o forte e a área envolvente; e, em 1892, o forte é descrito como “insignificante”, situado a 1 km da cidade, para leste, junto à estrada geral de Santa Cruz e Machico. Encontrava-se levantado sobre a escarpa da ribeira de Gonçalo Aires, a 61 m de altura sobre o nível do mar e o Lazareto do Funchal. Havia então duas casas à carga do forte: uma dentro, com quatro quartos ladrilhados, um assoalhado e uma cozinha; outra fora, encostada ao muro do forte, mas totalmente em ruínas, e de que nada restou. São interessantes as confrontações do forte: pelo norte, com terras das freiras de S.ta Clara, “benfeitorizadas” por M.ª Rosa e Manuel de Gouveia; pelo sul, com a rocha sobranceira ao Lazareto; a leste e oeste, outra vez com terras das freiras de S.ta Clara. Saliente-se que os conventos haviam sido extintos em 1834; no entanto, as propriedades em causa não eram do convento, mas das freiras de S.ta Clara. António Leite Monteiro refere, em nota à descrição do tombo, que o forte dos Louros não tinha qualquer valor como defesa militar e, em face da sua má situação, já tinha sido proposta a sua venda, de que se poderia obter 200$000 réis, calculados pelo aluguer que a casa poderia alcançar. A sua alta localização não permitia bater-lhe o mar, o que aumentava o seu valor comercial e, dado que se encontrava dominado por toda a parte, quer de oriente, ocidente, ou norte, o seu valor militar era quase nulo, pelo que o melhor era vendê-lo. Por outro lado, com a situação do Lazareto na sua parte baixa, se se quisesse mantê-lo “naquela mal escolhida localidade”, teria o governo de despender algum dinheiro com o forte, pois não poderia, para o policiamento interno do Lazareto, deixar-se de incluir nele o mesmo forte. Haveria, então, que se estudar a localização da estrada para Santa Cruz e Machico, que teria de passar acima do forte e assim construir-se a nova ponte. A estrada passou efetivamente para cima da escarpa e o Lazareto fechou-se com um portão de ferro ao largo, encimado com as armas reais, hoje no jardim da Q.ta das Cruzes. Mas o forte acabou por ser entregue pelo Exército ao Ministério das Finanças, embora com inquilinos descendentes do antigo guarda-fiscal Henrique Marcelino de Nóbrega, de família ali residente há quase 100 anos e que somente dali saiu em 2014. O tombo seguinte, com o n.º 110, corresponde à “Casa da guarda da foz da ribeira de Gonçalo Aires” e é assinado por António Pedro de Azevedo, a 17 de setembro de 1862, data em que procedeu ao levantamento da área. A casa é descrita como ocupando uma superfície de 29 ca, com 7 x 4 m, tendo porta e janelas com grades. António Pedro de Azevedo cita que foi “primitivamente destinada a alojar a guarda noturna encarregada de vigiar o contrabando neste porto”. Acrescenta que confrontava em todos os lados com terrenos do Lazareto do Funchal e o seu valor seria de 1000 réis, em virtude de a sua proximidade com o mar tornar insegura a sua situação. Em 1892, António Leite Monteiro reitera que o prédio “devia ser vendido”, parecendo que a venda se processou a 31 de janeiro de 1896, mas parte do documento encontra-se ilegível (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 110). A localização alcantilada do forte dos Louros inspirou inúmeros artistas, desde Andrew Picken (1815-1845), Funchal from the East, em 1840 e 1842, a William Gore Ouseley (1766-1866), por volta de 1850, Isabella de França (1795-1880), em 1853, etc., assim como o lazareto depois instalado no porto, por debaixo do forte, e onde era a antiga casa da guarda da foz da ribeira, que foi utilizado também como prisão militar, v.g., dos monárquicos da Revolta de Monsanto, em 1918, e dos elementos envolvidos na Revolta da Madeira, em 1931. Vista do Funchal com Forte dos Louros. Andrew Picken. 1840.   Imagens Arquivo Rui Carita. Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

Arquitetura História Militar Património

boa imprensa, a

A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, durante todo o século XIX e até o primeiro quartel do século XX, permite-nos analisar o discurso normativo segundos os cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. O conceito de boa imprensa, que se veio a tornar operativo no plano das orientações doutrinais e pastorais de Igreja na sua relação com o Mundo, é expressão de uma época marcada por uma cultura de combate, em que a imprensa foi usado como instrumento privilegiado de doutrinação ideológica e de ataque aos campos que pensavam e defendiam modelos de sociedade diferentes. Palavras-Chave: Comunicação Social, Igreja, Ideologia, Iluminismo, Cultura Laica, Doutrina, Teologia.     A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, publicada durante o séc. XIX e até ao primeiro quartel do séc. XX, permite analisar o discurso normativo dos cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. Se é um facto histórico que a autoridade da Igreja Católica e do papa já haviam sido contestadas pela Reforma protestante de Lutero e Calvino, no início do séc. XVI, mas no interior do cristianismo, cuja essência não se era questionada, o período em análise da boa imprensa é o tempo em que a autoridade das religiões reveladas, não apenas o cristianismo, mas igualmente o judaísmo e o islamismo, começava a ser equacionada e até refutada. A análise da imprensa católica madeirense, desde o século XIX até ao primeiro quartel do século XX, é feita no contexto de uma sociedade hoje munida da utensilagem mental que nos confere o Concílio Vaticano II e todas as correntes de pensamento que atravessaram todo os séculos XIX e XX e já mesmo do século do atual século XXI. Na verdade, se tivermos em conta que a boa imprensa formula como objetivo a doutrinação da sociedade, através de uma normatização, que inclui uma determinada conceção de família e do seu papel na sociedade, este trabalho é feito justamente no momento em que o Sínodo dos Bispos, patamar eclesiástico anterior a um concílio, acaba de realizar em Roma, sob o múnus do Papa Francisco, sob o tema da família, cujos cânones clássicos de família monogâmica, de casamento para uma vida inteira, sem a existência do divórcio, que continua a ser vedado no direito canónico, mas constantemente efetivado após uma vida conjugal, que, ab initio, se quis até a que a morte separasse os membros do casal. Essa realidade levanta novos desafios à Igreja Católica, nomeadamente a da confissão e absolvição bem como a da comunhão dos divorciados pela igreja e de novo casados à face das leis civis. Outro desafio não menos atual é o da união conjugal de indivíduos do mesmo sexo, questão que o sínodo episcopal não se absteve de debater, tal como a questão do batismo de crianças de pais solteiros. A Igreja Católica sempre foi apontada como uma instituição a quem fogem os tempos hodiernos de cada época, na medida em que a sua visão do tempo nem sempre coincide, segundo os seus críticos, com aquela que é a visão atualíssima, mas sempre efémera, visto que cada moda é sempre sufocada pela vaga sucessiva e ininterrupta que cada época tem para oferecer. A essa ideia, a igreja sempre contrapôs a dos valores eternos. Essa mutação constante dos tempos, geradora de insegurança, teria como alternativa, numa visão conservadora ou clássica, conforme a perspetiva, a segurança ontológica do lar, com os papéis bem definidos do modelo do homem, como pai e chefe de família, da mulher, como esposa e mãe, no quadro completo de uma relação tendencialmente procriadora, em que os filhos encontravam o tal universo seguro face à insegurança do mundo exterior. A este mundo interior da família, a Igreja oferecia, no espaço exterior, uma simbologia religiosa em que se incluía a devoção mariana, o culto dos santos, com o seu lado sacro e profano, as procissões e romarias, e uma exigência na penitência para o sacramento essencial da transubstanciação eucarística. É assim, neste cenário, que a barca de Pedro atravessa as vagas dos tempos, dos séculos XIX e XX: a família e o lar, a comunidade católica, com as suas datas simbólicas, do calendário litúrgico, consagradas como dias santos, a par dos feriados públicos, que mudam ao sabor dos regimes. Assim, a manutenção do universo católico tinha de ombrear com a chamada má imprensa, cujos valores não só divergiam dos valores pregados pela Igreja Católica, como, por vezes, os combatiam sistematicamente, num combate recíproco de exclusão mútua de legitimidade, ambos os lados convencidos de que eram detentores de uma crença que, metafísica e/ou religiosa, se propunha salvar a humanidade. A boa imprensa pretendia ser e declarava-se como o baluarte dos valores da doutrina, face a um mundo que se dissolvia nas correntes que queriam substituir a crença em Deus pela crença na ciência ou em ideologias que tinham a mesma estrutura teleológica, como o marxismo, mas que, em vez de situar a salvação na outra vida queriam uma sociedade perfeita neste mundo. A boa imprensa tinha uma missão e pretendia abarcar todos os aspetos da vida, não apenas a religião, mas igualmente a arte, a literatura e a própria ciência, criando, assim, uma cosmovisão que dispensava a imprensa má e pretendia assim conduzir o rebanho para os caminhos de Deus. A boa imprensa não se limitava à esfera estrita do religioso, dos sacramentos, das verdades da fé, como primeira instância do catolicismo, antes ambicionava oferecer uma identidade de vida cujas bases eram o catolicismo. A normatização da vida terrena e a relação do homem com o alto pela Igreja tem marcos ao longo dos séculos. Com efeito, podemos destacar três momentos marcantes na construção da identidade católica como norma desde os fins da Idade Média, com o Concílio de Trento (1545-1563), o Concílio Vaticano I (1869-1870) e o Concílio Vaticano II. Tudo isso levanta a questão dos novos desafios e valores com que a Igreja se vê confrontada, sobretudo desde o século XVIII. É nessa encruzilhada da História que é convocado o Concílio Vaticano II, no ano de 1961, pela bula papal Humanae Salutis, de João XXIII, concluído já no pontificado de Paulo VI. Este concílio, em contraste com os anteriores da história da Igreja, que, muitas vezes, significaram um maior enclausuramento da Igreja Católica face ao mundo, tem uma natureza de abertura ao mundo e representou, segundo algumas leituras, o fim do complexo de fortaleza em que a Igreja tendeu a fechar-se depois da Idade Média. No tempo medieval, a Igreja confundia-se com o próprio mundo conhecido, o mundo europeu. Mas se os três concílios referidos são marcos na história do catolicismo, a doutrina de normatização da vida dos católicos pela Igreja, mesmo no plano secular, sempre existiu, desde os seus primórdios e isso traduz-se em 21 concílios ao longo destes mais de 2000 anos. A questão é saber se essa normatização coincide com a mensagem de Cristo, que aceitava o mundo na sua diversidade, como se vê quando conta a parábola do samaritano, ou quando convive com a mulher adúltera ou com o cobrador de impostos, porque a todos quer imbuir do seu amor, ou seja, Cristo inclui na sua mensagem a alteridade, o outro, que é constantemente recusado por sectores fundamentalistas das diversas culturas, atitude, a da recusa, que se torna um obstáculo à comunhão universal. Que a interpretação pelas Igrejas cristãs da doutrina de Cristo é suscetível de ser alterada ao longo dos séculos, provam-no vários factos. Basta ver que, ainda hoje, algumas Igrejas cristãs consideram autênticos e, portanto, de inspiração divina livros que as outras principais Igrejas cristãs não aceitam. A  Igreja Ortodoxa da Etiópia reconhece o Pastor de Hermas e os Atos de Paulo;  a Igreja Apostólica Arménia ora aceita a terceira Epístola aos Coríntios, ora não a inclui entre os livros canónicos do Novo Testamento; a mesma Igreja Arménia não incluía na sua Bíblia o Apocalipse até 1200. Já a Bíblia copta, adotado pela Igreja do Egito, continua a incluir as duas Epístolas de Clemente. Poder-se-á arguir que estas Igrejas não comungam com a Igreja de Roma da mesma perspetiva doutrinal. Bem, por um lado, todas estas Igrejas cristãs, e que não incluem as Igrejas protestantes, se consideram lídimas intérpretes da doutrina de Cristo; por outro, temos o exemplo livro do Apocalipse, que, durante muito tempo, não foi considerado autêntico pela própria Igreja Católica e que hoje o é. Isto alerta-nos, desde logo, para duas coisas: que a Igreja não é a instituição estática e imune ao espírito do tempo, como alguns, dentro e fora dos muros eclesiais, julgam, e que é sempre preciso saber ler na doutrina oficial o que ela contém de marca do eterno, divino ou humano. Qual a importância destes factos? Revelar que a análise das opções culturais, ideológicas e culturais deve passar pelo conhecimento de que mesmo o sagrado da mesma confissão, neste caso, o cristianismo, nem sequer chega ao estatuto de universal nas suas diferentes Igrejas, o que deve precaver os fiéis para uma aceitação cega das crenças e convicções. A busca da síntese de um corpo por natureza plural como é o corpo da Igreja será permanente. A pluralidade sociológica da Igreja é origem da tensão permanente no seu seio, o que, aliás, se verifica desde os primórdios da sua existência e inclui não apenas a questão ideológica e política dos seus membros, mas a polémica da masculinização da doutrina, que, nos primeiros séculos, teria levado à ascendência de uma perspetiva esvaziada do papel da mulher. Nesse processo, incluir-se-ia a postergação de um hipotético evangelho apócrifo atribuído a Maria Madalena, cuja liderança incomodaria os apóstolos. Se o documento é real, a sua autoria fica por confirmar. Contudo, do ponto de vista simbólico, significa a existência de um modelo de Igreja quase estático e outro modelo de Igreja dinâmico, capaz de atribuir um estatuto a mulher idêntico ao do homem. O Concílio Vaticano II vai questionar esse desfasamento temporal e vai trazer, naturalmente, para o seio da Igreja, melhor, vai revelar no seio da igreja aquilo que tinha vindo a ser oculto, pelo menos desde o século XIX: a multipolaridade de identidades sociais e políticas que faziam a sua própria leitura da doutrina até então oficializada numa versão essencialmente conservadora e normalmente veiculada pela boa imprensa, que, sob a capa da normatização, oferecia e impunha uma certa visão do mundo, de natureza conservadora. Ao abrir-se à sua pluralidade interna, a Igreja abria-se ao mundo como um todo, mas na sua variedade. É óbvio que essa abertura expunha a Igreja aos ventos da mudança e a confrontava com a sua própria unidade. A dialética social, que sempre existira no interior da Igreja, tornava-a agora vulnerável e suscetível de ver a essa unidade abalada, uma unidade que, tantas vezes, sufocara o processo dinâmico inerente a qualquer instituição humana, ainda que reivindicando-se de natureza divina. Era agora a vez de as forças progressistas quererem impor a sua visão da doutrina. Revelava-se, portanto, muito complexo o equilíbrio entre os diferentes sectores no seio da igreja, que tinham ligações ao exterior. Afinal, não é a isso que se assiste, às várias tentativas de se apropriação sectorial do carisma do Papa Francisco na sua ligação com o mundo? Desde aquele instante em que o universo emergiu da incubação em que sempre se mantivera que a natureza inicia o seu processo infindável de se auto-organizar, ainda antes que o ser pensante quisesse começar a ter a veleidade de ele mesmo repetir o gesto inicial do fiat lux, tenho ele aqui o sentido literal ou literário da passagem do caos à ordem natural das coisas, porque é disso mesmo que se trata: em cada momento e em todos os tempos há que reorganizar, refundar, ordenar os elementos que se dispersam, caoticamente, se não forem absorvidos e submetidos a um sistema que lhes dê a ordem necessária. Todas essas tentativas que, ao longo dos séculos, se propuseram e nos propuseram a construção de uma sociedade perfeita têm em si duas ideias propulsoras: o mundo está uma desordem; é preciso ordená-lo. E uma estrutura imanente: a do momento do fiat lux, faça-se a luz que supere as trevas. Ao querer repetir esse momento inaudito e irrepetível, os homens sempre reservaram para si o papel dos deuses. E, concomitantemente, sempre tenderam do politeísmo para o monoteísmo, isto é, não só quiseram repetir o instante da criação como sempre quiseram ser únicos no sistema que propunham, porque esta é a natureza das coisas: se o modelo de sociedade que se propõe é aquele que melhor a serve, por que razão se haveria, sequer, de discutir outro modelo que concorra com ele? E partir daí, entendem que esse outro modelo está para o primeiro, no tempo ou na avaliação que é proposto, como as trevas estão para a luz. E é nesse instante que começa a recusa do outro. Qualquer modelo filosófico, cultural ou religioso traz no seu ADN a ideia de proposta e a ideia de recusa. Se essa tensão não for superada através de um processo dialógico, essa recusa mútua trará a rutura em qualquer sociedade, exatamente o oposto do que propõe cada um dos vários modelos. Mas não haverá legitimidade em cada um dos modelos? Enquanto proposta, opção e direito à recusa do outro, sim; enquanto recusa do conhecimento, do direito à existência do outro e do diálogo com o outro, não. E não, porque o homem não é Deus, mesmo que aceitando o princípio teológico de que tenha sido feito à sua imagem e semelhança, o que não quer dizer igualdade absoluta, o que não significa que não tenha o direito de querer caminhar em direção ao absoluto, num processo hegeliano do espírito em busca de si mesmo. A República de Platão, a Cidade de Deus de Santo Agostinho, a Cidade do Sol de Campanela, a Utopia de Thomas More, todas essas obras foram sempre proposições de arquétipos de sociedades perfeitas a construir na Terra, tal como a proposta marxista de uma sociedade sem classes, onde não haveria mais exploração do homem pelo homem, ao contrário da sociedade capitalista, em que o homem seria lobo do próprio homem, e onde a igualdade seria perfeita. Todos estes modelos defendem, contudo, a harmonia entre os homens e todos eles são compatíveis com o “amai-vos uns aos outros” de Cristo, só que Ele, que era filho de Deus, segundo os cristãos, ainda assim, não teve a veleidade de propor um sistema, político ou mesmo teológico perfeito – “o meu Reino não é deste mundo” –, mas ninguém o levou a sério, foi, então, crucificado, e note-se que não é metáfora, como pode parecer neste (con)texto, mas facto histórico que todos aceitam. Já aqueles modelos eram e são todos deste mundo e pronunciavam-se sobre todos os aspetos da vida humana. A propósito do chocolate, proveniente da América Central, e que aparece na Europa no final do século XVI, o Padre José Tolentino de Mendonça lembra uma questão teológica religiosa sobre se o uso do chocolate quebrava ou não a lei do jejum no tempo da quaresma, defendo uns que sim e outros que não, pois se era alimento quando sólido e violava o jejum, diluído em água tornava-se bebida. Afirma o Padre Tolentino de Mendonça: “a questão de fundo não é tanto o chocolate em si quanto o que ele representa: o confronto de modos de interpretar o mundo. De um lado, perfila-se uma posição ascética de rutura; de outro, expressa-se um entendimento do valor do mundo e da criação” MENDONÇA (“Religião e Chocolate”). Portanto, nada fica de fora de qualquer sistema de valores que se outorgue o papel de ordenador de uma sociedade que se pronuncia sobre o que existe ou sobre o que aparece. O Catolicismo é, portanto, um dos vários sistema de valores que se propõem às sociedades,. E afirma-se não apenas no aspeto religioso, mas igualmente na representação cultural e normativa que pretende para a sociedade em que se insere, sem descurar a questão política. Na sociedade madeirense, isso é visível na imprensa católica, a chamada Boa imprensa, boa justamente porque, segunda a própria, ela veiculava esses valores e deles se fazia eco e múnus doutrinário. Esse modelo de sociedade manteve-se em todo o século XIX até o Concílio Vaticano II, em que o diálogo ecuménico veio instituir uma nova relação com as outras confissões religiosas e, assim, alterar o conceito de alteridade desde sempre presente na cultura ocidental. Que a imprensa católica ou denominada neste artigo boa imprensa não se confinava nem se pretendia confinar ao caráter religioso, di-lo logo, inclusive, a denominação de alguns periódicos. Em 1879, circulava na imprensa regional um jornal que se intitulava “Religião e Progresso”, que já no nome traz implícita várias mensagens: que a religião não era incompatível com o progresso, ideia muito divulgada desde o Iluminismo, em que a Razão vinha ocupar o lugar de Deus na vida do homem, e que se acentua com as doutrinas filosoficamente materialistas, estávamos então nas vésperas do auge das teorias marxistas que vieram a sustentar a revolução de outubro de 1917, ano em que do céu, desciam as anunciadas aparições de Fátima. O jornal “Religião e Progresso” autodefinia-se como “jornal religioso, litterário, politico e scientifico”, na grafia da época e antes da reforma ortográfico radical de 1911, o que significa que este periódico, embora se declarando logo como religioso e dizia ao que vinha, não deixa de dizer que cobria vários campos do saber, dispensado, assim, outras publicações que se apresentassem como literárias, políticas ou científicas, porque ali tudo podia ser encontrado. O que se percebe muito bem, porque, se o objetivo era o do caráter da normatividade essa normatividade devia abranger todos os aspetos da vida em sociedade e procurava não se deixar ultrapassar nem ser considerado ultrapassado. Essa autocaraterização teria ainda como intenção não dar oportunidade que a leitura de outras publicações, nos vários campos do saber, induzisse outros valores incompatíveis com o modelo de sociedade que a boa imprensa pretendia incutir na sociedade madeirense, portanto, a doutrinação era multidisciplinar, mesmo que partisse do campo religioso. Neste jornal, nessa edição de 6 de Dezembro de 1879, o artigo de fundo era precisamente “A penitencia”. O artigo começa por falar sobre a forma de proceder dos apóstolos. “Se quizermos mais uma prova da maneira de proceder dos Apostolos, abramos mais uma vez a Escriptura” e conta, o artigo, o caso de um homem de nome Simão que havia sido convertido pelo Apóstolo Filipe e a forma como ele reagiu ao ver o poder dos Apóstolos: “Tempos depois do baptismo d’este converso, vendo elle que pela imposição das mãos dos Apostolos sobre a cabeça dos novos convertidos, descia sobre elles o Espirito Sancto, pretendeu comprar este poder. Simão pensava naturalmente que lhe seria de muita vantagem alcançar este poder; porque, exercido, lhe seria bem rendoso”. A questão teológica é saber como é que Simão seria perdoado desta iniquidade. E aqui há a polémica entre o Catolicismo e o Protestantismo: “Se a fé somente é o que justifica o homem, bastar-lhe-ha recordar os artigos que o apostolo S. Philippe lhe havia ensinado antes do baptismo”, diz o articulista e prossegue: “Não foi isso, porém, o que lhe prescreveu São Pedro. Terminantemente lhe dice: - Poenitentiam age ab hac nequitia tua: - faze penitencia d’essa maldade”. E neste ponto, afirma o articulista: “Creio que o Protestantismo não negará a um Apostolo, o conhecimento d’aquillo que é necessario para a remissão dos peccados”. E prossegue lembrando: “Simão era crente: - Tunc et ipse credit: mas, se apesar da fé de Simão, o apóstolo obrigou-o a fazer penitencia (…) que devemos concluir? Que não é somente a fé que justifica o homem, mas sim acompanhada da penintencia, a qual é absolutamente necessaria para a justificação, e que, por consequencia, é erro consideral-a inutil”. Este é um ponto crucial numa órgão da imprensa católica porque a penitência e o perdão do pecado é um dogma essencial ao catolicismo e um poder inalienável sobre os crentes, a quem não bastava ter fé para lhes serem perdoados os pecados, questão que o autor do artigo levanta: “Se isto assim é, se a penitencia é necessaria para a remissão dos peccados, como é possível que Jesus Christo quizesse dizer [ou seja, tivesse dito]: - prégae o Evangello; os peccados serão perdoados àquelles que acreditarem?! Serão perdoados pela fé, sem a penitencia?! Por acaso, pode a Escriptura estar em desacordo com Jesus Christo? Não, por certo”. E finalmente o articulista chega ao pomo da discórdia: “Se ha desacôrdo, é porque a interpretação do Protestantismo é errada; atribue á Escriptura o que ella não diz. Tira d’ella o que lhe appraz e não o que lá se acha”. Portanto, a posição do protestantismo sobre a questão da importância da fé na salvação do homem só pode resultar de uma má interpretação da Escritura. E de falta de senso: “Apellemos para o bom senso. Quem será que ouvindo estas palavras: os pecados serão perdoados áquelles a quem os perdoardes, serão retidos áquelles a quem os retiverdes: entenderá o seguinte: os peccados serão perdoados áquelles que acreditarem, serão retidos áquelles que não acreditarem?! Bem, qual é, então, o ponto essencial para o qual pretende chamar a atenção o articulista, além da discórdia da interpretação e da falta de senso que atribui ao protestantismo ao sustentar que é a fé que nos salva? É o do poder do sacerdote de perdoar os pecados, sem o qual não há salvação. Esse poder desapareceria se bastasse a fé ao crente: “Jesus Christo não subjeita o perdão dos peccados á fé, mas sim ao poder que confere aos Apostolos: mitto vos… quorum remiseritis, quorum retinueritis peccata”. Portanto, o poder de perdoar ou não perdoar, de reter ou não reter “segundo se verificarem ou não certas condições”. O Evangelho e a sua pregação abrange todos, mas o perdão não: “Mandando pregar o Evangelho, ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar peccados, não ordena que seja a todos: quorum retinueritis. (…) Jesus Christo mandando prégar o Evangelho ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar os peccados, deixa ao juízo dos Apostolas [sic] o julgar se os homens teem ou não arrependimento”. Portanto, segundo o articulista C. como ele assina, Cristo “deixa ao juízo dos Apóstolos”, que são homens, não só perdoar, mas decidir se há arrependimento ou não do pecador, o que pode perfeitamente ser subjetivo, um poder discricionário e terrível para um crente. O papel da boa imprensa fica clarificado quando compaginado com escritos que se lhe opõem e denunciavam, do seu ponto de vista, os objetivos dela. É preciso notar que a missão da boa imprensa não tem fronteiras é uma estratégia que conheceu divulgação por todo o mundo católico, inclusive com legislação que não escondia o seu objetivo. Nos finais de 1841, o governo prussiano aprovava um decreto que considerava ofensivo hostil à religião como ofensivo e difamatório. Acontece que no mesmo decreto censório se confundia, deliberadamente ou não, a religião e a política. Diz-se deliberadamente ou não, visto que os autores do decreto poderiam não confundir a religião e a política com a intenção de o fazer, confundir porque em suas próprias conceções ideológicas as duas se confundiam, sendo também ambas obviamente conservadoras, não podendo nenhuma delas, nem a fé nem a política, ser, de modo algum, progressistas, contra isso se levantavam vozes por todo o lado. Karl Marx, a 5 de Maio de 1842, dia do seu 24º aniversário, estreia-se com o seu primeiro trabalho jornalístico justamente com um artigo que era uma verdadeira declaração de guerra a essa nova lei do governo da Prússia e, assim, uma guerra à boa imprensa prussiana. O artigo foi escrito no novel periódico «Rheinische Zeitung», o qual, justamente à luz do decreto referido, veio a ser alvo de censura e finalmente encerrado. Marx procura destruir o absurdo decreto, no seu ver, recorrendo, com eloquência e acutilância, à literatura, mas de uma forma cómica e sarcástica, procurando demonstrar que o decreto acabaria por provocar consequência contrárias aos seus objetivos: “A liberdade faz [de tal modo] parte da essência do homem que até os seus oponentes a implementam quando combatem a sua realidade; querem apropriar par si mesmos, como o ornamento mais precioso, aquilo que rejeitaram como ornamento da natureza humana”. E depois procurava demonstrar que ninguém logra combater a liberdade em si mesma, a não ser a liberdade do outro: “Nenhum homem combate a liberdade; quando muito combate a liberdade de outros. Assim, toda a liberdade existiu sempre num momento como um privilégio especial e noutro como um direito universal. A questão tem agora um significado consistente, pela primeira vez. A questão não é se a liberdade de imprensa deve existir, pois ela existe sempre. A questão é se a liberdade de imprensa é um privilégio de indivíduos particulares ou um privilégio da mente humana”. Essa era a questão essencial: a liberdade de imprensa existe sempre para quem tem toda a liberdade de defender as suas ideias, se elas foram permitidas pelo poder, mas não existe para aqueles que possam defender ideias que o poder, qualquer que ele seja, não consente. Por isso, Marx afirma nesse artigo: “A censura não abole a luta [entre boa imprensa e a má imprensa], fá-la unilateral, converte uma luta aberta numa luta escondia, converte a luta sobre princípios numa luta de princípio sem poder contra um poder sem principio. A verdadeira censura, baseada na própria essência da liberdade de imprensa, é a crítica. (…) A censura é a crítica como monopólio de poder”. A análise de Marx do decreto do governo da Prússia toca no ponto essencial da questão: o decreto não abole a luta entre a boa imprensa e a má imprensa, apenas a oculta. O que é que Marx critica e denuncia? Que as duas imprensas não possam pelejar em campo aberto e que a uma seja dada a luz do dia, a boa imprensa, e que a outra, a má imprensa, tenha de esconder-se para existir e criticar aquela. Esse é o âmago da questão: que as duas não possam ser legítimas e mesmo que se possam considerar, mutuamente, de má imprensa, à outra, e boa imprensa, a si mesma. E sobretudo critica que ambas ambicionem a viver sozinhas, sem concorrência, impondo a sua visão do mundo a toda a sociedade. Marx estava longe de imaginar – ou imagina? – que, em seu nome, a boa imprensa, católica, tenha sido proibida em países e regimes que se reclamaram da sua doutrina. Ou melhor, que a boa imprensa, nesses regimes, passou a ser aquela que veiculava a ou uma nova versão oficial contraposta a antiga versão oficial conservadora que a antiga boa imprensa, católica, veiculava. A boa imprensa, então, passara a ser a imprensa progressista. Este é um ponto que não pode ser torneado neste artigo em todas as suas latitudes e azimutes. Este jornal prussiano, contudo, não terá beneficiado daquela intimidade de que goza a imprensa regional, que têm as característica de proximidade e de familiar, como assinala o padre António Rego, num artigo justamente intitulado «A dignidade da imprensa regional”. A imprensa regional fala aos crentes, quase familiarmente, com a característica, como assinala o mesmo prelado, de, sendo os “jornais regionais uma espécie de reserva ecológica da imprensa” terem “defeitos dos pequenos espaços circulares onde as narrativas da aldeia falam mais de pessoas que de ideias. Ou das ideias de apenas algumas pessoas” (REGO, «A dignidade…). Ora o autor não deixa de assinalar - não obstante relevar o papel da Igreja na criação da imprensa regional e no seu desenvolvimento correspondendo ao apelo da Igreja universal -, por outro lado, que a mesma imprensa regional no “nosso país surgiu, na linha da boa imprensa”, desde diários, semanários e mensários, “que faziam circular as ideias nas dioceses e nas aldeias mais longínquas”. Mas não deixa de se queixar o autor que o poder político tenha olhado com desconfiança para esse “vaivém de informações”, certamente um poder político que, politicamente, não se revia ou até, talvez, era visado como sendo um poder que estava do outro lado dos valores que veiculava a boa imprensa. Em termos atuais e na dicotomia política europeia, esse poder político que olhava de soslaio essa imprensa tenderia a ser identificado com a esquerda, ao passo que a direita política, cultural e sociológica não se sentia visada, antes representada e identificada com essa boa imprensa. Rego, contudo, reconhecido como cidadão do mundo por todos, não procede a essa dicotomia fácil e simplista, limitando-se a assinalar, porém, a propósito do porte pago, uma forma de apoio à imprensa regional, que as flutuações do poder, sob o protesto de apoiar os órgãos de imprensa mais fortes, deixar cair os mais pequenos. A generosidade da ideia, contudo, trazia no bojo o propósito de “favorecer a criação de alternativas a uma imprensa cristã já existente por outra que, com mais apoios oficiais, autárquicos e nacionais refletisse a voz dos donos” (idem). Este artigo de António Rego escrito em 13 de Fevereiro de 2007 não deixa de ser simétrico - e até parecer ser uma resposta, quanto ao lugar donde parte, de defensor da boa imprensa - do de Karl Marx de 5 maio de 1842 contra o decreto prussiano de finais de 1841, já antes referido, em que Karl Marx se insurge contra o decreto, por na prática, defender os valores veiculados pela boa imprensa. E nessa posição simétrica da de artigo de Marx, que se queixava do decerto, Rego, queixa-se da forma como estava a ser usado o apoio à imprensa, nomeadamente através do apoio ao parte pago, para, na prática, criar dificultar a vida da boa imprensa, que, normalmente tinha dimensão local ou regional, em favor de uma imprensa de maior dimensão, mas que, na prática, já não partilhava os valores dessa boa imprensa, ou seja, era já não prosélita como a boa imprensa, mas, pior ainda, mas de um outro proselitismo, porque era laica e, ainda cima, aparentemente neutra, portanto mais difícil de combater. Ambos, porém, eram, em termos absolutos, isto é, quando não enquadrados em setores ditos conservadores ou progressistas, de direita ou de esquerda, rigorosamente equivalentes na defesa de um determinado tipo de empresa em desfavor de outro, posição, a de ambos, cuja legitimidade não pode ser contestada enquanto não propugnar abertamente a extinção e a perseguição ao outro tipo de imprensa. Por outro lado, o esquema cultural com que se encara os dois lados não pode, a não ser em termos epistemológicos, situar à esquerda ou à direita, em termos de progressistas ou conservadores, cada um dos setores, pois bem sabemos que essa utensilagem mental, para usar uma expressão de Fernand Braudel, nem sempre corresponde à realidade política em diferentes épocas e latitudes, pois não é verdade que a implantação da República no Brasil se deveu a um ato culturalmente de esquerda, visto hoje, da Princesa Isabel, de abolir a escravatura? E que os Democratas americanos, de esquerda em termos europeus, eram esclavagistas, no Sul dos Estados Unidos, e os Republicanos, considerados conservadores, eram favoráveis à abolição da escravatura? Em qualquer caso, o que se nota é um proselitismo em função da posição religiosa, política ou ideológica de cada um, que se pode revelar quer pela afirmação dos seus princípios, quer pelo combate aos princípios alheiros. É óbvio que, nos setores e territórios em que uma determinada crença ou ideológica é maioritária ou tem o privilégio da exclusividade, sendo proibidos as outras correntes ideológicas ou religiosas, a corrente predominante não precisa de as combater nem de se afirmar contra elas. No caso em que as correntes minoritárias são consentidas, estas têm a tendência em se afirmar, desde logo, perante a corrente dominante. No caso da Madeira, em que o catolicismo sempre foi maioritário, era normal que alguns órgãos de comunicação se afirmassem contra ele, como é o caso de uma revista, que, existindo no século XIX se intitulava justamente “Revista histórica do proselitismo anti-catholico”, dirigida por Robert Reid Kaylley. Voltando à questão do supra referido, publicado no jornal “Religião e Progresso”, a sua importância não podia ser maior no contexto da boa imprensa, porque ele versava, por um lado a penitência e o poder consequente de perdoar, por outro, a polémica explícita com o protestantismo, que entende que basta a fé e não os atos, segundo o artigo ali publicado, e por outro, pode, subtilmente, dar a entender que, se o perdão está reservado aos apóstolos, conforme lhes foi conferido por Cristo, ou seja, aos sacerdotes, e que, se sem esse perdão ninguém poderia ter salvação, então os não católicos não teriam salvação. Quer-se anátema maior lançado sobre os pecadores que não tivessem acesso livre a esse perdão. Quem: os que não se arrependiam? Desde logo! Os protestantes? Imediatamente a seguir! E mais: os que não partilhassem dos valores veiculados pelo catolicismo? Os que não liam a imprensa que os veiculava? Os que, concretamente, não liam aquele jornal? Estas são as questões que se levantam! Mas, depois, outro artigo do mesmo jornal, que também se intitulava político fala de um ato eleitoral. Penariam, também, eternamente, os que não partilhassem das ideias políticos que o jornal veiculava, porque se há um sistema de valores ele não se esgota na religião, estende-se a todos os campos, inclusive aos da política, ou seja, também os eleitores, por certo, não escapariam a retenção da absolvição. Mera especulação intelectual do leitor, inferência ilegítima do que ali não está? Não estão as deduções no campo da doutrina política, mas estão claramente as posologias da doutrina religiosa católica para os males do mundo. Sem perdão não há remissão. Não sendo este um tratado de teologia, importava aqui saber o conceito de pecado. Pecado é a ausência do bem, é a ausência de Deus, que origina o mal, o diabo. O diabo não é, como às vezes pareceu ser em certas correntes ultramontanas, o outro lado de Deus, o seu oposto equivalente, porque, então, dessa equivalência de duas potências, poderia, numa oposição de contrários, caminhar-se para uma síntese hegeliana de superação dessa dicotomia. Sendo Deus aquele que é, “Eu sou aquele que é”, I am that i am”, o diabo, que existe, neste caso como alegoria do mal, sendo aquele que não é – o bem, tende, numa homologia perigosa e de equipolência, a ser aquele que não é como nós, ou seja, o outro de nós mesmos, problema que subsiste na cultura ocidental desde sempre que ela existiu. Ora, se o diabo, como ausência do bem, deve ser extirpado, então o outro, que é aquele que não é – como eu [sou], tende, primeiro culturalmente, e, depois, em situações de afirmação radical de sistemas absolutos que a si mesmo se consideram perfeitos, fisicamente a ser eliminados, porque perturbam a ordem instituída. Como é que se entende a eliminação física dos não católicos, mesmo sendo crentes do mesmo Deus, pelas fogueiras da Inquisição, senão por se tratar do outro em relação ao conceito de sociedade que se defendia e, nessa sociedade, ao conceito que ela pretende impor da própria ideia de Deus? – “A cultura ocidental, erigida sob a égide da ontologia grega, historicamente relegou o outro em sua alteridade ao esquecimento, numa supremacia do ser que justificou as cruzadas, a colonização, a escravidão, os regimes totalitários como o fascismo e o nazismo, entre outros […]A modernidade fundada no racionalismo de Descartes, voltada para a ideia da perfeição e das verdades inatas (divinas), sem a perspetiva da existência do outro, dará luz o eu gestado no Ocidente desde Platão”. (BIRMAN, “O reconhecimento da alteridade, 275). Essa recusa do outro manifesta-se na religião, não só entre as religiões mas dentro das próprias religiões e as suas diferentes correntes. No Cristianismo, o caso das guerras permanentes entre católicos e protestantes, na Irlanda do Norte. No Islamismo, entre sunitas, xiitas, waabamitas, em que cada seira se considera o verdadeiro intérprete do pensamento do profeta. A designação de boa imprensa traz consigo uma valoração implícita no adjetivo bom. Ao autor de um artigo de dicionário ou de uma enciclopédia põe-se a mesma questão que se coloca ao sociólogo, que é a de saber se deve analisar os factos e as instituições sem emitir juízes de valor sobre os mesmos . No caso da análise da boa imprensa, ou seja, a imprensa católica, deverá o autor do texto limitar-se a observar, abstendo-se de ajuizar, mesmo que veja nela valore morais que possa considerar essenciais numa sociedade, situá-los num determinado tempo e lugar ou admitir que os valores que ela veicula são comuns a outros credos religiosos, cristãos ou não? A reflexão não tem de ter uma resposta explícita, mas não podia deixar e ser feita. Em qualquer circunstância, o enquadramento de um facto no seu tempo e na linha do tempo deve ser a resposta para a sua compreensão, o que, assim, obvia apologia ou condenação que lhe não é exigida. Tem sido essa a linha que este artigo, entender a boa imprensa no interstício de vários tempos e e correntes doutrinárias. O jornal «Pregador Imparcial da verdade, da Justiça e da Lei”, na sua edição de 6 de Dezembro de 1823, em tom grandiloquente, anunciava, num artigo intitulado «Alemanha» que o governo deste país tinha dado ordens severas contra as sociedade secretas, visando a maçonaria, obrigando a que “todo aquelle que aspirar aos Empregos, tanto civis como ecclesiáticos, està obrigado, para ser admitido aos exames, a apresentar certidões de Policia, que façaõ fé, de não ser parte em nenhuma destas associações, e deve ter-se muito em vista que se verifique esta condição, mormente quando se tratar de prover os lugares de ensino público”. O «Pregador Imparcial da Verdade…» não só publica, como incentiva que a medida se propague: “Publiquem-se pois em todas as Nações os quadros de todas as Lojas». Segundo o espírito do articulista, a publicação das litas dos maçónicos resulta da obrigação de servir o bem público. Não podem as instituições serem dominadas por indivíduos que possam contamina-las. Se as instituições resultam de um conjunto de circunstâncias, segundo Montesquieu, podemos concluir que as que existem são as melhores possíveis naquelas circunstâncias, porque resultam de uma determinada influência social. Impor-se-ia, portanto, saber o que será necessário para se atingir os objetivos que se pretendem alcançar o melhor possível. Ora, segundo o articulista, atingir o melhor possível os interesses sociais de uma instituição é varrer dela os indivíduos que, pertencendo a uma associação secreta como a maçonaria, supõe-se que não poderiam ter direito a ser titulares das mesmas instituições que, obviamente, para o articulista, deviam ser portadores dos valores que eram veiculados pela boa imprensa. Poderia, abusivamente ou por extensão ilegítima, segundo a máxima de Montesquieu de que se “a legislação resultou do espírito de uma nação” , seria lógico adaptar as leis-comando ao espírito da nação. Mas essa seria uma adaptação ilegítima porque o articulista transmite o sentimento de uma parte da nação que não pode ser tomado como o espírito nacional, que é o todo e não a parte. Assim é, quer viva a nação em monarquia ou em república, sendo que a igualdade que, em teoria, a república implica deveria ser ainda mais impeditivo que isto acontecesse num sistema de governo republicano, privar os cidadãos de pertencer às instituições públicas por não professarem uma ou outra religião e professando esta pertencessem a uma ala progressista ou conservadora desse credo religioso. Nem mesmo a natureza do regime, ao tempo monárquico, poderia ser respaldo para defender tal iniquidade. Não é natureza do regime, monárquico ou republicano, que vai determinar a justeza das leis que devem consagrar o sentido da justiça que é anterior às leis positivas universalmente aceites: “Dizer que não há nada justo e a não ser o que ordenam ou proíbem as leis positivas é [o mesmo que] dizer que antes de ser traçado o círculo nem todos os seus raios eram iguais” (ARON, 57). De facto, não se pode considerar válidos critérios cujos efeitos sejam a exclusão de uma parte da sociedade, mas sim aqueles critérios ou leis que, anotando as diferenças de uma determinada realidade social ou política, ou religiosa, sejam capazes de garantir essas diferenças. Ora o que diz o articulista é que a lei a aplicar deve ser aquela que considera válidas para integrar as instituições os cidadãos que não tenham pertença a instituições de caráter secreto. Essa recusa do outro enquanto indivíduo que não partilha dos mesmos valores é um fenómeno resultante da vida em sociedade, porque o homem, no seu estado natural, isto é, anterior ao estado de vida em sociedade, vive “uma verdadeira paz, pelo menos um estado alheio à distinção paz-guerra” (idem, 58). Esta atitude resulta, segundo Montesquieu, da vida em sociedade, ao contrário do que pensa Hobbes, para quem o homem vive, naturalmente, em estado de guerra permanente contra o seu semelhante. Esta diferença de conceitos, em que, segundo um, Hobbes, o homem é um ser por natureza inimigo do homem, como sua característica intrínseca, ao passo que para Montesquieu, essa não é a sua natureza, sendo conflito um fenómeno social, não sendo possível regressar ao estado de pureza do homem imaginável antes de viver em coletividade, como o concebeu Jean-Jacques Rosseau, conduz à necessidade de superar o conflito em sociedade através da aceitação do outro, a questão da alteridade na cultura ocidental. Esse equilíbrio social só pode ser conseguido através da constatação de que a ordem social é, por regra, heterógena e a liberdade de todos não pode senão resultar da inclusão social de todos os membros de uma sociedade. Hobbes defende um poder absoluto em resultado desse conflito social permanente em guerra com os seus semelhantes. Observa assim, que, neste ponto, o articulista coincide na com Hobbes e não com Cristo, ao defender que não devem ter acesso a certos empregos, nomeadamente ao ensino público , em virtude de serem maçónicos, os pedreiros-livres, defendo que todas as polícias, sabendo as lojas maçónicas há muito, deveriam imprimir as listas dos seus membros e se não as fazem é “porque appareceriaõ talvez marcados com este ferrete o Duque, o Marquez, o Conde, o Cavalheiro, o Magistrado, o Frade, o Clerigo” (in «Pregador Imparcial da Verdade») e acrescenta que não poderia haver mal de tal coisa porque sabiam da existência da lei. Se o autor de um artigo se deve dispensar o papel de julgar as instituições, não deve eximir-se ao dever de fornecer todos os dados a quem o deve fazer, o leitor. A equação dos dados num artigo deve permitir ao leitor o papel de julgar, de que se deve dispensar o autor. Se aqui a atitude do articulista do texto «Alemanha” deriva da sua ideia de organização da sociedade e dos valores que defendia, essa atitude deve ser confrontada com o que pensam sobre a questão da organização social os grandes pensadores de correntes diversas. Assim será possível verificar a finalidade imanente das atitudes humanas com as do autor daquele artigo e sobretudo o momento histórico em que aquele é escrito. Há, com efeito, dois aspetos atitudes culturais claramente identificáveis no jornal. Por um lado, esta atitude da boa imprensa de recusar de tudo o que saia dos cânones da doutrina católica tem um contexto histórico-cultural. Antes de mais, convém esclarecer que a própria existência da boa imprensa é um si mesma uma prova de que os tempos da afirmação inquestionável da autoridade teológica já passara. O aparecimento da boa imprensa coincide com uma necessidade de reafirmar e manter a unidade da mensagem católica num tempo em que outro tipo de autoridade começava a surgir e que abalava a autoridade teológica. Passara o tempo em que a autoridade política e religiosa coincidiam e juntas formavam a autoridade universal. Os tempos agora eram outros e o tempo histórico da sociedade europeia nos princípios do século XIX haveriam de conhecer profundas alterações. Se o poder político era afirmado pela força das armas, o poder religioso era firmado pela poder teológico sustentado na infalibilidade papal. É nesse contexto que o Concílio Vaticano I proclama a infalibilidade papal, dogma da teologia católica que confere ao papa o dom de definir a interpretação e clarificação em matéria de fé e moral, na medida em que ele, em comunhão com o Sagrado Magistério, o faz no gozo da assistência sobrenatural do Espirito Santo, e, desse modo, fica imune a todo o erro. A função de Magistério da Igreja é do múnus do Papa  e pelos bispos em comunhão com ele. Auguste Comte assevera que o início do século XIX assiste ao fim de uma tipo de sociedade, que tem origem na Idade Média, em que o poder se caracteriza pelos dois adjetivos: teológico e militar. Esses poderes, teológico e militar, partilhavam a supremacia numa sociedade claramente marcada pela hierarquia eclesiástica e militar. A supremacia desses poderes está em vias de ceder o lugar a um outro tipo de sociedade científica e militar: “A sociedade que nasce é científica no mesmo sentido em que a sociedade que morre era teológica” (Comte in ARON, 59). Segundo Comte, a forma de pensar dos tempos passados, a dos teólogos estava a ser substituída pela forma de pensa dos sábios. A sociedade do início do século tinha agora uma nova categoria social que lhe fornecia a base intelectual e moral, que era a dos sábios, que herdavam o poder espiritual dos padres e passavam a ser o novo modelo de pensar, a nova fonte das ideias que serviam a nova ordem social, ao mesmo tempo que os industriais haviam de substituir os militares. Nesta nova ordem, a força militar desapareceria porque era uma sociedade em que os novos detentores do poder exerciam-no pelo pensamento científico e não pela força. Analisando este nova sociedade que despontava, Auguste Comte conclui que a reforma social a que se assistia implica um reforma intelectual e isso só se faria entre a síntese da ciência e de uma política positiva. Neste cenário, em que o poder teológico cede o passo aos sábios, a nova classe intelectual proposta por Comte, é natural que a boa imprensa sinta a necessidade de reafirmar o modelo de sociedade e de família proposto pela doutrina católica, que se confronta, ainda por cima, com perturbações sociais derivadas das contradições de uma sociedade em crise de mudança. Vários modelos confrontam-se então: o modelo proposto por Comte é aquele que visa superar as contradições sociais resultante do confronto entre a ordem antiga, teológica e militar, pela nova ordem, científica e social. Ao lado destes dois modelos, surge o grande doutrinador da Revolução, Karl Marx. Montesquieu, por sua vez, defende a doutrina das instituições livres. Em confronto com estes três modelos, o modelo proposto pela boa imprensa, em que as verdades são eternas, imutáveis e indiscutíveis, e, desde o Vaticano I, reforçadas com a infalibilidade papal, que, obviamente é uma resposta a esse novo tipo de autoridade científica que surge: como contestar o que existe por inspiração divina, através do Espírito Santo? Além de querer divulgar esse modelo à sociedade, a missão da boa imprensa visa reforçar a unidade interna da Igreja. A sociedade tinha de ser visto no seu todo para ser compreendida e esse era agora – então - o objetivo da sociologia. Nenhum facto devia ser entendido isoladamente, sobretudo a partir de uma ciência como a biologia. Já não bastava analisar os fenómenos de per si, mas integrados epistemologicamente. As ciências já não podem ser puramente analíticas, mas devem ter caráter sintético. Isto origina a conceção sociológica da unidade histórica. Ora não se pode entender a sociologia como se ela fosse uma ciência de natureza inorgânica , que tem um caráter analítico ao estabelecerem leis entre fenómenos isolados. Tal como a biologia, que não pode explicar um órgão ou uma função sem integrá-lo anatomicamente, não se pode compreender um acontecimento, por mais relevante, sem o situar na sincronia, isto é, no seu tempo, e na corrente diacrónica, ou seja, conhecer os seus antecedentes e, eventualmente, estabelecer, prospectivamente, eventuais desenvolvimentos futuros. Um cientista não pode cortar uma parte do organismo para saber como ele funciona. Pode deter-se, epistemologicamente, sobre ele mas só o pode explicar no todo, porque estamos a falar da vida e não da morte. Essa inserção do elemento no todo da biologia transfere-se para a sociologia, em que o todo tem primazia sobre o elemento. Segundo o pensamento de Comte, “Não compreendemos a situação da religião […] numa sociedade particular, se não considerarmos o todo dessa sociedade”. (ARON, 86). Não é possível compreender o papel da boa imprensa, por um lado, sem conhecer a evolução histórica da sociedade no seu todo e, por outro, a própria evolução e reinterpretação da doutrina da Igreja à luz do Evangelho, é certo, mas também à luz da sua adaptação constante à sociedade do seu tempo, o que contradiz a ideia comum de a Igreja Católica não ser capaz de introduzir no seu seio dinâmicas vivas capazes de a reatualizarem, à luz dos tempos, o que o estudo dos vinte e um consílios da sua história milenar certamente elucida. Poderá sempre ser acusada de estar mais preocupada de manter o statu quo ante, de manter a autoridade incontestável do seu Magistério na pessoa do papa, mas nunca de ignorar a passagem do tempo, elemento fundamental do seu porvir, porque a Igreja olha os tempos que passam com a sabedoria do Tempo eterno de que é detentora, não apenas enquanto instituição, mas o do Verbo de que se proclama representante. Enquanto a boa imprensa propõe a prática da doutrina cristã na Terra para ganhar o paraíso; o positivismo advoga o progresso humano com base nos avanços da ciência – etimologicamente scientia, note-se, porque é aqui importante -, como meio para a transformação da humanidade; já o marxismo propõe-se construir uma sociedade de justiça através da dialética que afirma estar imanente a uma sociedade dividia em classes. Assim, as três correntes de pensamento convergem em dois aspetos: a scientia, a ciência e o seu caráter teleológico. Pela ciência, o conhecimento, da Verdade, a boa imprensa promete ao crente o alcance do céu; com o progresso da ciência, podemos alcançar o progresso ilimitado da Humanidade, defendem os positivistas; com a ciência da sua circunstância e conhecendo os limites da sua vontade no momento da sua escolha – “Os homens fazem sua própria história, mas não as fazem segundo sua livre vontade; em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado”, (Karl Marx in «O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 2008, p. 207, citado em FRANKLIM, 204), o homem construirá a grande síntese final que é a sociedade sem classes. Assim, as três correntes, caminham para um fim previsível, o paraíso, sendo que a boa imprensa, isto é, a religião católica nos propõe vencer as agruras deste mundo com o paraíso no outro; o positivismo e o marxismo propõem-se construir um outro mundo ainda neste mundo. Perante isto, é de concluir – con[s]ciência certa – que, se não desistirem da sua caminhada, ainda que po percursos diversos e até divergentes – hão de encontrar-se todos às portas de uma Nova Jerusalém, e também nesse caso, serão vencidas as fronteiras entre este mundo e hoje: “Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar já não existia. Vi a cidade santa, a Nova Jerusalém, que descia do céu de junto de Deus”. (Apocalipse, 21: 1,2). Tanto Comte como Marx pretendem uma nova forma de organização do poder temporal, isto é, do poder político, mas enquanto Marx proponha a revolução, os positivistas de Augusto Comte acreditavam que o poder temporal podia ser reformado pelo poder espiritual que caberia aos sábios e filósofos, que teriam o mesmo papel que caberia aos padres na idade teológica, segundo a sua conceção: “O poder espiritual deve regrar os sentimentos dos homens, uni-los em vista de um trabalho comum” (ARON, 97). Para os marxistas, não só todas as estruturas do velho poder devem ruir pela força da revolução, como o papel de construir uma sociedade nova competia às vanguardas revolucionárias, quais sacerdotes de uma nova metafísica revolucionária. A boa imprensa segue a linha de que o poder de transformar o coração dos homens deve continuar a ser da Igreja e do seu magistério - sacerdotes, bispos e o papa -, cuja autoridade advém da Verdade que lhe(s) inspira o Espírito Santo, fonte da renovação constante da Igreja, cabendo a esta espalhar, desde o tempo de Cristo, a conversão interior dos homens e da humanidade. Para a boa imprensa, o Catolicismo era a verdadeira Religião da Humidade e a Igreja, Católica por natureza, isto é, universal, tinha o direito e o dever de divulgar a sua mensagem através dos meios de comunicação ao seu dispor. Os positivistas, por seu lado, proponham-se instituir a sua Religião da Humanidade, um nova religião, de que as religiões do passado eram apenas formas provisórias, que procuravam no sobrenatural e nos deuses aquilo que devia ser procurado no cerne da própria humanidade, cuja unidade moral e humana era o Ser Supremo de si mesma. À escolástica de Tomás de Aquino e dos Padres da Igreja, que tanto tinham influenciado e fundamentado o catolicismo, Comte contraponha a filosofia positivista como o fundamento da sua nova religião. Embora positivista, esta nova religião não dispensava, todavia, os seus templos e capelas e até um novo calendário, o calendário positivista composto por treze meses de vinte e oito dias, com base no calendário lunar e tinha como ideal o altruísmo, palavra criada por Comte. Em síntese espontânea: em que é que diverge o espírito semântico d’ o amor ao próximo de Cristo, o altruísmo de Comte e a igualdade de Karl Marx? O que sabemos, porque observamos a passagem do tempo e do que ele deixa prevalecer, é que o poder espiritual que subsiste é exercido pelas igrejas do passado ou pelo poder de ideólogos, e não pelos verdadeiros sábios ou filósofos, como idealizava Comte na sua nova religião. Se Comte pretendia uma desvalorização dos conflitos ideológicos e do poder temporal, isto é, do poder político, ambição comum aos doutrinadores da boa imprensa, a verdade é que a Europa e o Mundo sucumbiram, por duas vezes, no século XX a esses conflitos que tiveram por base a questão ideológica e que fizeram perecer milhões de seres humanos. Comte preferia a desvalorização do conflito ideológico e do poder da hierarquia temporal e um ascendência do poder espiritual dos sábios sobre a organização social, mas isso está longe de ser uma realidade: “Provavelmente os homens preferem sempre o que os divide ao que os une. Provavelmente cada sociedade é obrigada a insistir no que tem de particular e não nos traços comuns que compartilha com todas as sociedades” . (ARON, 98) Há ideias e os valores que numa sociedade são subtilmente insinuados, aliás, muitas vezes com uma eficácia muito maior, por uma determinado doutrina religiosa ou corrente ideológica ou cultural do que aqueles explicitamente expostos. Quando os revolucionários franceses mudaram o calendário gregoriano por uma calendário próprio ou quando os positivistas pretendiam impor o seu calendário sabiam que isso era uma forma de incutir os valores simbólicos que esse calendário implicava. Hoje é frequente determinadas confissões religiosas minoritárias nos países maioritariamente católicos, como o nosso, reivindicar a legitimidade de lhes ser concedido o dia de guarda da sua religião, o caso de judeus e adventistas, para descanso, tal como os católicos têm o domingo, ou os momentos diários de oração e meditação, caso dos muçulmanos. Os rituais e implicações culturais de um calendário religioso não deixam de ser reivindicados pela boa imprensa, num reafirmação dos valores católicos face ao movimento de secularização da sociedade, que vinha já dos séculos passados: “a rivalidade medieval entre o papado e o império, a Reforma protestante, o século das Luzes, para citar apenas as etapas principais da secularização das sociedades europeias” (Gianni Vattimo in BINDÉ, 35/36). Essa secularização tem ainda outros momento importante na crescente secularização, como a revolução tecnológica, sobretudo no século XIX e a crescente urbanização da sociedade, o que leva “à «perda do centro», isto é, a dissolução das tradições comuns e das crenças nos mesmos valores, seja do ponto de vista religioso seja do ponto de vista ideológico” (idem, 37). Esse movimento de secularização, tem, assim, um largo rastro, e, para os alguns, nomeadamente para os arautos da boa imprensa, que o queriam impedir, ou para outros que o observavam e ou até senão o desejavam, nada lamentavam, como Nietzsche ou Spengler, significava o crepúsculo do Ocidente, esquecendo, como lembra Vattimo, que o crepúsculo, ou alpardinho, no dizer madeirense, “não é apenas o declínio do Sol no poente, mas aquela luz lenta e insegura que anuncia uma nova aurora”. A boa imprensa não deixava de estar atenta a esse movimento da secularização. Num artigo de 11 de dezembro de 1909, no jornal «Brado d’Oeste», defendia-se o descanso semanal e insurgia-se contra o seu incumprimento: . “um abuso que não deve continuar”. Se a questão era a do trabalho e a do direito ao descanso semanal, a questão das datas importantes do calendário litúrgico e o valores da família eram uma constante neste bissemanário da imprensa católica. No próprio dia 25 de Dezembro, dia de natal, no editorial do «Brado d’Oeste» o editorialista escreve: “Vêem-se alli cumpridos oraculos e prophecias”, a profecia que é a concretização do que tinha sido anunciado no passado para o futuro, e assim se fundem a lembrança do passado e a espera do futuro, numa espécie de plenitude do ser, situado naquilo a que Derrida designa por “logocentrismo”, na media em que essa plenitude se situa na realidade ontológica do ser, para além da circunstância do ente no tempo divido da realidade, a dimensão temporal da existência humana. Nessa realidade logocêntrica, o homem ultrapassaria a sua dimensão socio-político-religioso-cultural, situando-se no plano ontológico, em que se dissolvem as diferentes visões do mundo. Isso não significa que essa realidade ontológica seria conseguida à culta do fim das civilizações, mas que todas elas saberiam situar-se e compreender-se como uma das várias manifestações do ser na sua plenitude, como condição de unidade da humanidade na sua pluralidade. Assim, a boa imprensa, não deixaria de ser entendida como uma das faces da realidade, na afirmação dos seus valores, como um dos contributos inalienáveis na afirmação da unidade do ser. Mesmo que ela e os que definiam contra ela se considerassem, reciproca e simultaneamente, como representantes únicos da verdade, excluindo cada o outro de o ser, esse antagonismo só reforçaria o vitalismo de cada um, o que é dizer que os faz andar mais depressa, na senda de uma visão teleológica da realidade. Todas as manifestações religiosas, culturais, civilizacionais participam, numa perspetiva hegeliana, da caminhada do Espírito sobre a Terra até a realização da consciência plena da Razão na sua plenitude final, mas é normal que nenhuma delas ou nem todas elas tenham a noção do seu papel insubstituível e único, mas não exclusivo, na consecução da plenitude da humanidade. Se a História, na visão kantiana, corresponde à realização dos planos secretos da natureza, é natural que os seus autores, muitos deles, não tenham a noção exata do seu papel no grande drama humano. Não se pode, desse modo, pedir a todos, que, para além de saber de cor o seu papel, tenham a ciência exata do sentido da grande narrativa da Humanidade. Assim, as ideologias, as religiões, as culturas, as civilizações são manifestações parcelares da Humanidade na medida em que não a representam no seu todo, mas nenhuma delas deve ser extinta violentamente porque isso seria decepar cada uma das formas em que o espírito humano se manifesta. O mesmo não acontece quando uma determinada civilização se transforma ou se deixa absorver, paulatinamente, por outra, porque, na verdade, ela não desaparece, a não ser superficialmente, pois que passa a estar incluída no âmago da cultura em que foi absorvida que deixa de ser, na medida em que, ao absorve-la se deixou também absorver. Os factos não têm sentido quando considerados individualmente, apenas ganham sentido quando integrados no percurso dos acontecimentos. Na sua dupla dimensão, a história atende à realidade dos factos que se vão inscrevendo na linha do tempo – a res gastae – ao passo que é o relato desses - a narrativo rerum gestarum – que lhe confere sentido e racionalidade. Esse é o papel da boa imprensa: atribuir uma dimensão transcendente àquilo que, no quotidiano, não tem significado que o ultrapasse. Se a um facto não for conferida dimensão transcendente, ele esgota-se por si mesmo. Se, porém, ele for compreendido numa dimensão mais vasta que o ultrapassa, tal circunstância dá-lhe uma dimensão simbólica. O nascimento de uma menino, numa gruta, é uma facto da natureza humana. Mas se a interpretação desse acontecimento for determinante na marca da humanidade, então ele sobreleva o quotidiano da sua realização. Quando o articulista do editorial do «Brado d’Oeste» no já citado artigo sobre o Natal, afirma que se completam “ali os multiplicados votos de milhares de gerações, sonhos dourados de homens e promessas infalliveis de um Deus” e que “Um passado calamitoso e sombrio termina alli” e “um futuro de venturas brilhantes d’alli se desenrola” e acrescenta que a partir “Do recinto tenebroso de uma gruta raia uma aurora de duração eterna” está não só a proceder à inscrição de facto localizado no “recinto tenebroso de uma gruta” numa leitura providencial da História, mas, igualmente, a proceder à interpretação do facto de acordo com a característica linear e judaico-cristã do tempo. A “duração eterna” de que fala não funciona apenas para o futuro, a partir do momento em que a esperança se realiza, mas absorve, igualmente, o passado em que essa esperança nasceu e sobreviveu no coração de “milhares de gerações”. Dá-se, assim, a unidade do ser e o “cahos do passado recua”. A igualdade dá-se ali pelo “effeito (…) edificante, admirável e prodigioso do […] do Natal do Homem-Deus” porque “O escravo sacode e despedaça as algemas; o senhor (…) curva a cerviz; a mulher proclama os seus direitos; o pobre, o desgraçado, reconhecem alfim que são creaturas de Deus; a religião transforma e humaniza o homem.” O efeito miraculoso da igualdade do escravo e do senhor, da mulher e do pobre, que se reconhecem como criaturas de Deus, é alcançado por esse Homem-Deus. Ao proceder a essa leitura, a boa imprensa, na sua ânsia de absorver a realidade da vida, supera-se a si mesma e eleva à ontologia do ser aquilo que, em princípio, é um facto da vida quotidiana dos entes. Mesmo aqueles que não concordam com a leitura transcendente daquele facto não podem negar que essa leitura é uma leitura universal e não facciosa da realidade. Ao proceder assim, qualquer religião tem um movimento ascendente em relação a si mesma e em relação à realidade concreta, que, é por natureza, fragmentada e caótica, logrando a unidade. Essa consecução da unidade não é, portanto, incompatível, com a diversidade religiosa, embora não seja esse, muito provavelmente, o pensamento do articulista. Augusto Comte pensou a unidade da espécie humana através da constância da sua natureza essencial, que podia observar, contudo, através da diversidade das instituições históricas no plano social. Na sua conceção “a afirmação da unidade humana (…) implica uma certa conceção do homem, da sua natureza, da sua vocação e da relação entre o indivíduo e a coletividade”. (ARON, 114). Mas há, desde logo, uma diferença radical, ou seja, de raiz: enquanto o articulista concebe a unidade do homem pela intervenção do transcendente, a unidade preconizada pelo positivismo é uma unidade imanente. Se é certo que todas as doutrinas sociológicas desde o século XIX proponham que se passasse do pensamento à ação, ou da ciência à política, enquanto fundador de uma nova religião, a religião da humanidade, o positivismo desvaloriza o económico e o político em favor da ciência e da moral e não acredita que seja através da mudança do regime ou de Constituição que o homem ponha termo às convulsões da sociedade. Comte inscreve-se na linha de Kant, que acreditava no papel da natureza na marcha inexorável do tempo e de Hegel, na espiral ascensional do espírito. Para Kant, Hegel e Comte, o tempo é o grande senhor da História. Comte admite que apenas o tempo fará passar das sociedades fragmentadas e injustas de hoje às sociedades reconciliadas do futuro, mas acredita que o esforço dos homens de boa vontade aliado ao sentido inexorável da evolução, que pode ser mais ou menos longa: “Na duração e nas modalidades da evolução, em si própria inevitável, exprime-se a parte de liberdade reservada aos homens” (idem) . Comte não é o profeta da violência revolucionária, como Marx, mas acredita que os seres humanos têm uma «margem de modificabilidade da fatalidade» (idem, 115). Tal como o cristianismo, o positivismo e o marxismo têm subjacente uma estrutura teleológica e acreditam num grau crescente de aperfeiçoamento da humanidade. Ou entra a revolução ou a reforma, que são ou da sociedade ou do indivíduo. O positivismo partilha com o cristianismo o repúdio ao recurso à violência como forma de atingir uma sociedade justa e partilha; com o marxismo, a ideia de que a única transformação social possível é aquela que implicasse o fim do pensamento teológico, com a diferença que Comte é apologista do pensamento reformador pela ciência e Marx pela revolução. A relação entre as conceções religiosas e os comportamentos económicos é visto por Max Weber como uma das causas das transformações económicas das sociedades, na medida em que uma determinada interpretação do protestantismo vai favorecer a criação do sistema capitalista, fundamentada na conformidade, intelectual ou espiritual, entre o espírito da ética protestante – ou de uma certa ética protestante – e o espírito do capitalismo. A tese de Max Weber é a da adequação significativa entre o espírito do capitalismo e o espírito do protestantismo: “A ética protestante a que Max Weber se refere é essencialmente a conceção calvinista” (idem, ibidem), segundo o qual Deus predestinou cada ser humana para a salvação ou para a condenação, não sendo, portanto, pelas suas obras que o homem pode alterar a decisão divina tomada à anterior. sem que, através das nossas obras, possamos modificar esse decreto divino de antemão fixado. Mas é, pelo menos, concebível uma outra interpretação. É através do trabalho que, segundo Max Weber, “certas seitas calvinistas acabam por descobrir no êxito temporal, eventualmente no sucesso económico, a prova da escolha de Deus”. Assim, o trabalho seria a melhor forma para ultrapassar a dúvida da salvação e obter a certeza da graça, sendo a melhor forma de ultrapassar a angústia religiosa. A boa imprensa reconhece ao trabalho o seu papel transformador do mundo e fator do progresso. No editorial do periódico «Brado d’Oeste» de 15 de Dezembro de 1909, o articulista afirma, convictamente, o seu “relevante e grandioso papel […] no seio das sociedades de todos os tempos. […] O que seria , sem elle, finalmente, do desenvolvimento, do progresso? […]” Elle é a mola propulsora de todo o progresso, de toda a civilisação, de toda a felicidade”. O trabalho é uma visto como um combate ao ócio e afirmação de um valor moral. De um modo ou de outro, católicos e protestantes são levados a agir, embora uns para se salvar, outros para ter o sinal da salvação. A nossa conceção de tempo linear provém da cultura judaico-cristã, que veio substitui a ideia do «eterno retorno» herdada das antigas civilizações euroasiáticas, nomeadamente da antiga Babilónia, ou ameríndias, maia e hindu. Essa cosmologia do tempo que nos é dada pelos movimentos de translação ou de rotação da Terra ou do retorno das estações, em que tuto recomeça, deu-nos uma ideia de renovação que se foi inscrevendo na nossa cultura ocidental e que o próprio folclore absorveu – “a primavera vai e volta sempre”, diz uma canção do folclore madeirense – como se o tempo estivesse a renovar-se ciclicamente. Na conceção do tempo ciclo, não só o passado não tem o peso que terá nas futuras civilizações, como não estava inscrita a ideia de futuro, porque aí o tempo se renovava incessantemente. O judaísmo, ao anunciar a vinda de um Messias, vem instituir, pela primeira vez, uma ideia de futuro, um futuro de luz e esperança, que o cristianismo há de confirmar mais tarde, com o nascimento de Cristo, mas, sobretudo, com a sua ressurreição, provando que o futuro messiânico e salvífico tinha sentido. Essa ideia de futuro mantém-se com a parúsia, a segunda vinda de Cristo. Essa esperança no futuro inicia a ideia de tempo linear, porque incute nos povos o sentimento de caminhada em direção a algo, a um tempo em que a realização plena do homem acontecerá. Essa conceção de caminhada para um fim imbuiu ainda as ideologias de matriz materialista, como o marxismo, o que significa que o futuro se transformou em tempo de utopia, fosse qual fosse a doutrina, religiosa, política, ou filosófica, nomeadamente o judaísmo, sempre à espera de um messias, o cristianismo, em que a promessa de uma recompensa no céu anula a própria ideia de morte definitiva do homem enquanto ser espiritual, o positivismo, com a sua Religião da Humanidade, ou o materialismo marxista, com a sua promessa de uma sociedade sem classes e igualitária, em que a luta contra a exploração ganha um sentido de futuro. Quer o cristianismo, quer o marxismo criam no homem o desejo de futuro, porque é lá que se situa ou a salvação ou a utopia de uma sociedade em que, em qualquer caso, haverá o reconhecimento de que todos os homens são iguais, que o cristianismo reconhece à partida, mas que só será possível quando todos se inserirem no projeto de salvação, e que o marxismo garante, desde que todos os cidadãos desencadeiem um processo de luta contra as desigualdades. O cristianismo implica uma consciência moral e o reconhecimento do outro, ao passo que o marxismo exige uma ética de entrega a uma luta contra a exploração, em nome desse futuro. Ambas as doutrinas, a cristã e a marxista, são imbuídas de coesão ideológica sólida porque conduzem os seus sequazes em nome desse futuro. Essa coesão, todavia, só é possível com a convicção e adesão profunda a essa ideia de porvir, por uma lado, o que é uma condição, para o segundo aspeto que só essa convicção garante, que a longa espera, quiçá, espera sem fim, da realização dessa expetativa, sob pena da fragmentação da própria doutrina e deserção dos próprios prosélitos. Talvez isso explique o desmoronamento dos regimes políticos que se ergueram com base nessa expetativa utópica, porque o socialismo nunca foi atingido, ao fim de longas décadas, e isso foi observável ainda neste mundo, ao passo que as religiões permaneceram coesas, apesar das vicissitudes, porque a esperança no paraíso ultraterreno nunca foi desmentida. Essas utopias, nomeadamente as de cariz ideológico e filosófico, iniciaram-se com o iluminismo, prosseguiram com o racionalismo positivismo e e tiveram uma versão iminentemente ideológica com o materialismo marxista - construído, note-se, a partir do idealismo hegeliano e da sua dialética -, ao longo dos séculos XVIII e XIX, com o marxismo a fazer prova da sua eficácia ao longo de quase todo o século XX. Mas essas ainda eram épocas em que o tempo se projetava à la longue, o tempo das longas viagens de barco e de comboio e a própria vida amorosa tinha o seu tempo de espera e de consumação. Ao invés, os tempos que correm não se compadecem com tão longa espera. De repente, todos fomos tomadas pela carácter imediato das realizações humanas. Todas as atividades humanas, mesmo as de caráter pessoal, foram atingidas pela fugacidade do tempo, em que tudo se deve realizar já. O afeto e o amor precisam, normalmente, de tempo, para serem profundos; se olharmos para os transportes e os meios de comunicação, vemos que foram tomadas pela urgência, a carta, o diário, até o telefonema e o telégrafo, foram ultrapassados pela ligação em tempo real da internet. A crise financeira tem como um dos seus principais fatores a questão do tempo, com resultados catastróficas a nível social, económica e humano: “a urgência desorganiza a estrutura do tempo e retira a legitimidade à utopia”. (BINDÉ, 421). Enquanto no passado, era costume os homem sacrificar o presente em nome do futuro dos seus descendentes, o homem de hoje parece estar a sacrificar o futuro das novas gerações em nome do presente, como se o tempo, de repente, houvesse sido abolido, como se o presente fizesse um saque sobre o futuro, gastando hoje todos os recursos de várias gerações e ameaçando não só o bem-estar das futuras gerações, mas o próprio equilíbrio do planeta e, por via disso, o futuro da vida humano. Cansado de se projetar no futuro, lugar da promessa não cumprida, o ser humano, como se sentisse que tinha caído num logro, quisesse o futuro já e com urgência. É frequente, aliás, frases publicitárias que anunciam que “o futuro é já hoje!”. Com a chegada do cristianismo, a noção de um tempo linear, baseado no facto único da morte e da ressurreição do Cristo, fez a sua aparição. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, afirma que «O Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados e, depois de ressuscitado, nunca mais morrerá”. Para que a atual geração não faça um saque sem fundo sobre o futuro dos vindouros e estes não nos cobrem o tempo que é nosso, e que é sempre irreversível, terá de haver um contrato geracional, uma espécie de “pacto do tempo”, em que pudesse haver um investimento no presente com efeitos imediatos, mas com consequências positivas para as gerações futuras. Só com base nesse equilíbrio na gestão criteriosa do tempo é possível recolocar o tempo nos carris da história e retomar o comboio da viagem com todas as carruagens, do passado, do presente e do futuro, no seu lugar certo, que os passageiros dos diferentes tempos não se sintam desconfortáveis, porque os passageiros das outras carruagens invadiram o seu espaço. Nessa perspetiva, poderemos pedir uma concessão de tempo ao futuro, para que não fiquemos sufocados pela ditadura da urgência. Esse contrato geracional deve abranger todos aqueles que, crentes ou ateus, católicos ou protestantes, cristãos ou muçulmanos, entendem que é preciso, para usar a expressão de Jérôme Bindé «alargar a comunidade ética» que acha que é necessário estabelecer compromisso com o futuro, tendo a noção que as decisões que tomarmos hoje não podem ser apenas na expetativa do bem-estar individual de cada um, dos resultados financeiros a apresentar ao fim do trimestre, dos resultados eleitorais de uma nova eleição, mas terão consequências a longa prazo: “O reforço das capacidades de antecipação e de prospetiva é portanto uma prioridade para os governos, as organizações internacionais, as instituições científicas, o setor privado, os intervenientes da sociedade e para cada um de nós”. (idem, 422) Este é o tempo em que à cultura do instantâneo temos de responder com a cultura do compromisso, para que os decisões que foram tomadas no passado possam ser salvas desde que integradas num projeto de futuro, e não haverá futuro se todos nos deixarmos envolver por interesses que deixam consumir pelo recompensa imediata. A cultura de compromisso dos melhores será a melhor forma de envolver a todos. Temos todos de nos empenhar no futuro a partir das lições do passado. Se nos detivermos todos a olhar, deque forma for, contemplativamente o passado, ficaremos divididos criaremos uma crispação ideológica. Se, porem, estivermos cientes do nosso passado comum, empenhar-nos-emos coletivamente, seremos capazes de construir o futuro de que necessitamos, para que o horizonte não se afaste de nós, porque não o pensamos bem. Como dizia Pascal: «esforcemo-nos para pensar bem: é este o princípio da moral» (Bindé, 424). Um programa que implique uma nova moral implica uma ligação entre a doutrina e a prática. Desse ponto de vista, o cristianismo vem representar uma verdadeira revolução, não só porque modificou a nossa ideia de Deus, como também da sua relação com o homem. Aos deuses antigos imanentes à natureza, vem substituir-se um Deus transcendente mas que, mistério da Encarnação, e não obstante a sua natureza transcendente, se faz homem: “Cristo, o Homem-Deus, aliança de Carne e de Luz, estabelece uma ponte entre o homem e o Absoluto: ele garante uma mediação entre as duas ordens e, pelo seu sacrifício, resgata a humanidade. É a Boa Nova que se anuncia” (RUSS, ). E é, paradoxalmente através do seu corpo, o corpo que no homem é sede do pecado, que Cristo vai salvar a humanidade em queda e reerguê-la, como se o homem recuperasse, de novo, o ser - “o homem só é homem na media em que desperta para o ser” (DURAND, 295) - ao homem é-lhe, de novo, devolvida, a dignidade de se ver como um ser livre. É essa condição de homem livre, que a boa imprensa destaca, ilibando Deus da existência do mal, visto que o Deus do catolicismo, ao contrário do Deus do calvinismo, não decide de antemão a sorte do homem, antes lhe confere a responsabilidade e a liberdade de começar de novo. Camus compara o homem a Sísifo, que empurra o rochedo, suportando o seu fardo desde sempre, mas com a grandeza e a dignidade de quem nunca cessa de o fazer. Camus, contudo, fala de um mundo agora sem Deus e sem a eternidade. A boa imprensa, por sua vez, transmite a esperança de um luz que oferece a eternidade da salvação. Será feliz um ser, como o homem, que procura dar sentido a um mundo que parece estar submerso no absurdo e no sem sentido? – “«A própria luta na direção do cume basta para encher o coração de um homem. Temos de imaginar que Sísifo era feliz». (idem, 297). O humanismo que impregnou várias correntes de pensamento do século XX, incluindo o humanismo marxista, desde Mounier a Gide e a Sartre não deixou de (re)colocar o homem no centro da história, onde, ele, aliás, já estava desde o momento em que foi chamado a construir o seu destino, “assim na Terra como no Céu”, onde, ainda assim, se cumpre a vontade de Deus. E não é assim, desde o suspiro do Calvário, em que Cristo pede o afastamento do cálix do sofrimento do Homem: contudo, “faça-se a Sua vontade”. A de Deus. A Cristo, colocou-se, por um breve instante, o instante eterno, a escolha entre beber o cálix até ao fim e a vontade de Deus. Afinal, que vontade prevaleceu, a de Cristo Homem ou a de [Cristo] Deus? O que houve foi uma coincidência de vontades de Deus Pai e de Deus Filho, et bien sûr: Cristo escolheu, voluntariamente, a liberdade de não cair, e com ele o homem, no abismo do nada. Parecia, assim, estar a dar uma resposta, com vinte séculos de antecedência, ao humanismo ateu, que para os proponentes do existencialismo cristão, como Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, entre outros, era fundamentalmente niilista, que também, à sua maneira procuravam a síntese das várias dialéticas do século vinte, entre o ateísmo e o sagrado, a liberdade da renúncia humana e a transcendência divina. Superando essas angústias existenciais da morte a boa imprensa apresentava a imagem da sobrevivência contra a ideia de morte. Era necessário reconstruir o compromisso entre os desafios que se colocam ao cristão no dia a dia e o horizonte de que a vinda de Cristo representou para nós. A boa imprensa tem no seu sintagma um adjetivo, boa, que a demarca da restante imprensa, mas isso não significa, necessariamente, que ela não tenha como objetivo último a divulgação de uma mensagem e de uma doutrina que se considera universal – “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”, Marcos, 16: 15) – e que a si mesma se atribua uma missão cujos limites é atingir o pleno da divulgação dos valores da mensagem, que é a do amor ao outro, que é o próximo. Esta dimensão universal da mensagem, que é uma decorrência das palavras do próprio Cristo, teria condições de futuro? Estabelecendo uma distinção entre mundialização e universalidade, nos dias de hoje, Jean Baudrillard clarifica as diferenças: “Entre os termos mundial e universal existe uma analogia enganadora. A universalidade é a dos direitos do homem, das liberdades, da cultura, da democracia. A mundialização é a das técnicas, do mercado, do turismo, da informação” (BINDÉ, 49). E depois chama a atenção para as dinâmicas de ambas, defendendo a tese de que a mundialização ganhou uma dinâmica irreversível, ao passo que a universalidade estaria em recuo ou até em vias de desaparecer. Assim, verificamos que, num momento em que os avanços tecnológicos poderiam ser uma meio de divulgar valores como os direitos do homem, a liberdade, a cultura, a democracia, o amor ao próximo, valores inseparáveis da modernidade ocidental, os mesmos podem recuar em função do predomínio, em potência, das técnicas do mercado, que, afinal, mesmo nesse campo, podem falhar, por falta de uma ética que as sustente, como a crise atual, neste início da segunda década do século XXI, veio confirmar. Será possível afirmar, a esta distância, que, ainda no dealbar do século XIX, a boa imprensa já teria a noção de que a secularização da sociedade, já em curso, não teria, afinal, força suficiente para se impor em termos definitivos? Afinal, como acabou a Nova Religião da Humanidade, com os seus templos, os seus sábios e filósofos, como representantes da nova espiritualidade? Tiveram sucesso os anunciadores de uma nova ética capaz de substituir a moral cristã que era propagada pela boa imprensa? Com efeito, haveríamos de assistir, desde início do século XIX até aos nossos dias, a um movimento de secularização dupla ou com duas fases. Numa primeira fase, Auguste Comte enuncia a lei dos três estados, que correspondem ao longo percurso da história humana. Numa primeira fase, Comte afirma que a humanidade viveu o estado teológico, em que Deus está presente em tudo, seguido do estado metafísico, em que a ignorância da realidade ou a falta de crença num Deus todo poderoso leva a pensar que há relações misteriosas entre todas as coisas e entre estas e os espíritos. Em face disso, para inaugurar uma segunda fase, Comte estabelece o estado positivo em que a humanidade, finalmente liberta da presença de qualquer crença e guiada pelo espírito científico, busca o conhecimento absoluto e substitui toda a influência teológica pela observação dos factos científicos. Comte, porém, não advoga o fim do culto, apenas a substituição do culto de Deus, que substitui pelo culto do Grande Ser, hipostasiado por ser “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para o aperfeiçoamento da ordem universal» (COMTE, «Curso de Filosofia Positiva», tomo IV), p. 30. Comte não só substitui o culto de Deus pelo do Grande Ser, como defende que “O culto dos homens verdadeiramente superiores forma uma parte essencial do culto da Humanidade. Mesmo durante a vida objetiva, cada um deles constitui uma personificação do Grande Ser. Todavia esta representação exige que sejam idealmente afastadas as graves imperfeições que, muitas vezes, alteram as melhores naturezas.” (Ibid., tomo II, p. 63). Em rigor, o positivismo de Comte deixa de crer em Deus para passar a crer na ciência e na Humanidade. Se o Grande Ser é tão abstrato como o Deus da religião, o Deus que a boa imprensa defende, esse Deus que se fez homem, pelo Mistério da Encarnação para os católicos, e, depois de morto e sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, o positivismo de Comte faz desaparecer esse Deus do estado teológico para logo o reencarnar no Grande Ser, o Ser de toda a humanidade, e tal como Deus encarnou em Cristo, também o Grande Ser, alem de se concretizar em “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes”, pode ser personificado, durante a vida, por cada um desses homens superiores e sábios que passam a ser a nova autoridade moral na nova sociedade. Hoje, como se sabe, os positivistas nunca conseguiram que a superioridade ética desses seres prevalecesse sobre o poder temporal. E este é o segundo momento da ausência da morte das crenças em entidades superiores, sejam elas Deus, o Grande Ser, as grandes Utopias do século XX, todas elas teleologicamente dirigidas para um tempo de plena afirmação da Humanidade. Fosse qual fosse a natureza e o percurso da participação do singular no universal, por transcendência ou imanência, a perda desse caráter universal levou “ao exterminação de todos os nossos valores, o que é uma «morte má»” no dizer de Jean Baudrillard (BINDÉ, 49), que afirma ainda: “O universal era uma cultura da transcendência, da reflexão do tema e do conceito, uma cultura com três dimensões, a do espaço, do real e da representação. O espaço virtual é o do ecrã, da rede, da imanência, do numérico”. Ou seja, a transcendência era comum a todas as doutrinas, fossem elas a da utopia marxista, do Espírito de Hegel, do Positivismo de Comte, ou a doutrina propagada pela boa imprensa, porque todas eram detentoras de valores. Desde o século XVIII procuravam-se sucedâneos ou sucessores para o Deus dos cristãos: Razão, Natureza, História, Progresso, Homem, Iluminismo e a própria Europa, como utopia, que nós vamos vendo soçobrar como distopia, essa Europa onde nasce o humanismo que lhe dá a base cultural: “O humanismo está ligado a uma Europa que tem a vocação do Universal e que encarna «uma grande república divida em vários Estados» (Voltaire)” (RUSS, 180). O cristianismo no seu todo era colocado em causa, “tanto o Deus dos católicos como o de Calvino, processo global e não singular que, inflamava os espíritos” (idem, 181). A boa imprensa nasce, assim, num contexto em que nem sequer era o catolicismo que se contestava, era a própria ideia de Deus, um Deus cuja existência não se podia (não se pode) provar. É certo que a boa imprensa, de tendência proselitista, e tantas vezes de natureza local, poderia, muitas vezes, julgar que se tratava de uma guerra inter-religiosa, mas o questão era muito mais fundo e muito mais vasta: era a própria ideia da morte de Deus que se prenunciava desde o Iluminismo e que é posto em julgamento, com a natureza a se constituir como os fundamentos de uma «religião natural», desde os inícios do século XVIII. Jean Meslier, eclesiástico e ateu, afirma, em testamento publicado por Voltaire, que o cristianismo não era uma instituição divina e contrariava as leis da natureza. Seguem-se, na sua esteira, “Voltaire, Montesquieu, Helvétius e, de um modo geral, os Filósofos que, sem realizar estudos de exegese, censuram ao cristianismo o facto de exigir demasiado à razão, que não admite nem milagres, nem revelação, nem sobrenatural […] Apenas no seio da Natureza e da Razão, paradigmas fundamentais do pensamento da Aufklarüng, existe uma crença válida” (idem, 182). Contra os livros sagrados e a Revelação, ergue-se, em pleno, a Ratio, o dinamismo religioso da Aufklarüng, “uma força universal que não pode reduzir-se às representações singulares da fé. Pois o século XVIII, embora critique a lei revelada, também faz o alargamento da ideia de Deus […] Confúcio situa-se ao lado de Cristo” (idem, 184) . Está posição filosófica de conceber um [novo] Deus como Ser Supremo, através da razão e não por revelação divina dos textos sagrados, o Talmude, a Bíblia ou o Alcorão, e a que se convencionou chamar deísmo, alastrou por toda a Europa. Ter-se-ia esta religião deísta, baseada na natureza e na razão e não na revelação, libertado da “tirania” da crença e da fé, de que era acusada a velha Igreja? «Ao mesmo tempo que o respeito pelos homens pela Igreja se desmorona, o deísmo impõe-se e o culto do Ser Supremo, caro a Robespierre e à Revolução Francesa, não está longe. Como esquecer esse culto deísta, instituído pelo decreto de 7 de maio de 1974? Robespierre, influenciado por Rousseau, rejeita as tendências ateístas dos seguidores de Herbert e contrapõe-lhes a religião natural e o reconhecimento do Ser Supremo”, isto por um lado. Por outro, ao Grande Ser da religião positivista, Comte advoga o culto, mas não via como boas a dúvidas sobre a sua existência. Ou seja, os apóstolos das novas correntes deístas eram tão dogmáticos quanto os das religiões reveladas e os ateus que não criam nem numas nem noutras sentiam o fenómeno da rejeição. Os sacerdotes dos novos credos, tal como os fautores da boa imprensa, estavam imbuídos de proselitismo em toda a semântica da palavra, procurando fazer o apostolado das suas ideias, como qualquer prosélito, que, além de convertido, se porta de forma sectária, isto é, como membro de uma seita. Por sua vez, os partidários das novas utopias materialistas dos séculos XIX e XX não se mostrariam menos intransigentes contra aqueles que não aceitavam o novo projetos de sociedade que eles propunham, sobretudo quando se tratou de as levar ou tentar levar à prática. Como reconstruir, então, a universalidade dos valores a partir das crenças monoteístas, deístas ou utópicas, num tempo da relativização de todos os valores ou já sem valores, de que estavam imbuídos todas aqueles doutrinas, que, crentes ou ateias, tinham sentido teleológico e de caminhada para uma sociedade humana perfeita, algures devir, histórico ou teológico? Fará sentido colocar essa questão aqui no âmbito deste artigo da boa imprensa? Esse é o desafio que se nos coloca como forma de volver ao universal onde todas a formas de expressão se podem encontrar, não um universal por abstração, situado acima do mundo real, mas obtido com a inclusão de cada um, ou seja, de todos. Quando o Deus dos cristãos nos manda amar o próximo, ele exemplifica pela ação. Jesus come com os publicanos e pecadores: “E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publicanos e pecadores  vieram e tomaram lugar com Jesus e seus discípulos” (Mateus 9, 10). Quando criticado, Jesus redarguiu: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que isto significa: misericórdia e não holocaustos; (idem, 12, 13). Note-se que “holocaustos” aparece, às vezes, nesta passagem do evangelho de Mateus, em vez de “sacrifício”, o que, em termos práticos, dá o mesmo, visto que o sacrifício implicava a imolação pelo fogo e o significado de “holocausto” é, etimologicamente, todo (holo) e queimado (kausto), palavra historicamente sugestiva, sabendo que o holocausto que está historicamente próxima de nós significou a recusa completa da alteridade. . Ora, uma cultura de liberdade admite o outro como essencial ao todo. Só podemos chegar ao universal pela inclusão de todos, o que significa incluir um a um, até atingir essa universalidade. Não se pode amar o universal nem ele existe se excluir uma parte de si. Repare-se o que diz Hannah Arendt, citada por Helé Béji, ao ser acusada de não gostar o bastante dos judeus, a propósito do processo de Eichmann: «Esse povo já só acredita em si mesmo? Que espera ganhar com isso?» Não tenho qualquer amor ao povo judeu, nem aos povos alemão, francês, ou americano, nem à classe operária. A única espécie de amor em que acredito é no amor das pessoas. Esse amor pelos judeus, uma vez que eu própria sou judia é suspeito” (BINDÉ, 60). O que Arendt nos explica é que amar um povo é amar um universal abstrato, tal como amar a classe operária e que só acredita no amor das pessoas, de cada pessoa, seja ela do proletariado ou de outra classe social, ou de que nacionalidade for, como o bom samaritano, que era estrangeiro: “o pertencer a uma mesma cultura ou a uma mesma religião não é uma garantia de tolerância ou de felicidade política. Porque não é a ligação cultural que faz a ligação política, mas antes a ligação civil” como afirma Hélé Béji (BINDÉ, 59). Tomando a diferença concetual entre «religioso» e «espiritual» a propósito do diálogo de culturas, Béji afirma que a reivindicação da identidade, quando é feita à custa da universalidade, está eivada de uma violência de natureza religiosa no sentido de tirania da crença e não da espiritualidade e da liberdade de pensamento. O que é que sobreleva na boa imprensa: a espiritualidade ou a tirania da crença religiosa? O que ali estava, à superfície, nesse conceito, era, de facto, a “tirania da crença”. Contra essa “tirania”, e em nome da liberdade, vão revoltar-se a Civilização e Razão, ) mas logo estabelecem novas “tiranias”, usando a a mesma nomenclatura, o que é natural, como filhas dessa primeira crença. Só que nessa aparente “tirania” da crença propaganda pela boa imprensa germinava também a liberdade da sua contestação o que era, perfeitamente, plausível, numa doutrina provinda de quem, como Jesus, não escolhia as companhias para comer. Quando se perfilham a Ciência, a Razão, o Progresso, a República, «entidades com maiúscula em estado de prostração», segundo a expressão de Marcel Gaucher» lembramo-nos que todas elas se ergueram em nome da Liberdade contra o obscurantismo da crença religiosa. Mas, quando verificamos que o homem se perdeu num “individualismo que é uma ideologia de massas e já não uma singularidade criadora”, perguntamo-nos qual dos dois é mais livre: o homem individualista subsumido nas massas anónimas ou o homem a quem era dado o dom de dialogar, intimamente, com o seu Deus, esse Deus que se sacrificara por ele, segundo a doutrina cristã divulgada pela boa imprensa? Béji afirma que “um dos sinais mais desumanos da cultura é a separação do religioso e do espiritual”. Afinal, não era esse o caminho, o da liberdade, que se iniciara desde o Iluminismo? O homem hoje está só perante a multidão e, nas redes sociais tem milhares de amigos virtuais, às vezes, mas sem a convivialidade de outrora. No jornal «A Verdade» de 5 de Fevereiro de 1916, num artigo intitulado “Miasmas d’alma”, com o subtítulo “Estudo Psycologico”, o articulista escreve que “a vida é uma tragedia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo… N’ella se identificam em biliões de actores os generos de caracter disfarçadas pela acção da peça ou pelas exigencias do enredo. […] Subiu o pano. […] Principia a representar-se a Vida, peça d’um só acto […] Que grandes actores tem a tragedia escripta por Deus. … Que genios! Com que arte alguns representam o papel de honestos! […] Ao entrarem, porém, no camarim que é o seu lar, passam a esponja pela face, e ficam o que eram: hypocritas, falsos, aventureiros do destino. Outros abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos, se levam uma bofetada na face direita entregam como Christo a face esquerda, aconselham a essencia do bem, guiam os fracos, choram a desdita dos seus irmãos, mas finda a scena, recolhem a bastidores, passam a esponja e lá ficam, no que são: covardes, intriguistas de escada, especuladores e párias! Que exhuberante é o Theatro do Universo!”. Que questão se poderá colocar quanto ao sentido do artigo, através da leitura deste trecho escrito por quem acredita em Deus, o Deus que é o autor da vida, “tragédia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo”? Como pode esse Deus, origem do Bem, encher o mundo destas personagens que “representam o papel de honestos”, “hypocritas, falsos, aventureiros do destino”, ou que “abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos”, “aconselham a essencia do bem” para depois, tendo recolhido aos bastidores, se revelarem “intriguistas de escada, especuladores e párias!”: pode Deus ser o autor do “Theatro do Universo” com este tipo de personagens? Ou o autor entrou em contradição com a doutrina que divulga ou coloca-se aqui a questão da teodiceia, o da justificação racional de Deus e a sua coexistência com o mal, aporia da cultura ocidental e da cultura oriental. “O teólogo contemporâneo Maurice Zundel, dizia, com alguma ironia, que se o mal existisse realmente, Deus seria a sua primeira vítima, quase fazendo suas as célebres palavras de Stendhal, segundo as quais a única desculpa de Deus em face do mal e do sofrimento só poderia ser a Sua inexistência”. (CORREIA, 1). Contudo, o editorialista, católico, não poderia ter subentendido essa ideia de que Deus, autor do teatro da vida, seria o responsável do mal provocadas pelas personagens da vida no palco do mundo, numa paráfrase vicentina. O que ele critica é justamente que o mal exista não por vontade de Deus, mas por ação das personagens que são, na realidade, a humanidade. Trata-se da questão essencial do homem, colocado perante a responsabilidade de construir o seu destino, segundo o seu livre arbítrio e uma ética da responsabilidade que não deixa ficar a teodiceia desarmada perante esta questão: “a teodiceia não ficou sem recursos. Com efeito, é possível surpreender vários modelos teóricos que visam mostrar que não existe qualquer incompatibilidade lógica entre a existência de Deus e o problema do mal” . tendo como base “o paradigma que é invocado por vários filósofos teístas contemporâneos e que se funda, a meu ver, no postulado ético da responsabilidade” (idem, 40). Essa ética da responsabilidade deve ser exercido na busca e no exercício de valores absolutos como a Verdade, o Bem, o Sagrado, a Beleza, valores intemporais e independentes da história, englobados numa ética cuja consumação tornaria o mundo esteticamente harmonioso, o que contribuiria para a ressurreição do Deus ou Bem Absoluto como ideais a atingir em cada circunstância, sabendo habitar o tempo e o lugar. Existe, a um tempo, a marca do efémero e do eterno. Quando a boa imprensa se concede o direito de divulgar os valores em que acredita e exclui o próximo por divergências confessionais, ela comporta-se como qualquer poder temporal em que o que mais conta é a autoridade e menos a revelação de que a doutrina cristã é filha. Mas, quando, e apesar disso, ela é, genuinamente, crente nos valores que propaga, então torna-se num espaço de diálogo e supera os muros do poder profano, literalmente, o poder que está para além e acima das barreiras que dividem. Qualquer corrente ideológica, religiosa ou filosófica que se coloca nas margens do universal e recusa o diálogo, adquire características que a confundem com qualquer corrente fundamentalista e, a breve trecho, perde a possibilidade de construção do espaço em que todos se devem encontrar. Essa recusa torna conflito inevitável. Um cenário que não tem de ser imaginado, seja quando se pensa nas fogueiras da inquisição, nos campos de concentração de todos os lugares e azimutes ou no apogeu da recusa da alteridade que foi a II Guerra Mundial, onde, em nome de ideologias absolutas que se consideravam prenhes de razão, não cederam lugar ao espaço de diálogo e cederam o passo à loucura do desumano, de onde a justiça se afastou ou foi afastada violentamente. Emmanuel Levinas exprime a exigência do nosso tempo ao afirma que a justiça só é justiça numa sociedade onde não exista distinção entre próximos e afastados, mas também onde exista a impossibilidade de passar ao largo do mais próximo. No caso da boa imprensa, ela revela a sua visão do mundo, mas, na sua visão singular, não deixa de especular, quer dizer, espelhar o universal, visto que o singular não deixa de ser uma face do poliedro que é universal. E descendo até ao mais local, a imprensa católica madeirense teceu as linhas do universal na nossa diocese até a mais humilde capela do mais recôndito lugarejo, no esconso do mais remoto cabeço. Afinal, aquilo que hoje consideramos universal é o que se divulgou em todo o globo a partir de um determinado local. Aquilo que é local em cada momento está apenas à espera de uma oportunidade de ascensão a partir de um monte das Oliveiras. Não dizemos nós que as Sagradas Escrituras não podem ser tomadas à letra? Afinal, todo o texto religioso é metafórico e todo o texto literário carece de uma exegese como se fora religioso, e só assim ele pode atravessar a passagem do tempo e ser atual em todas as épocas. Nenhum universal, que deve ser o objetivo de toda a manifestação humana, se pode construir quando não vemos em cada instante o sinal do eterno. A espiritualidade é saber ver o universal no singular. Para o dizer na linguagem desta espiritualidade, “o amante vê o ser que ama em todo o lado. Se não vimos a verdade naquilo que é diferente, é porque não estamos suficientemente apaixonados e que não temos para Leyla os mesmos olhos de Majnun”. (Nota: Leyla e Majnun são personagens clássicas da arte islâmica, imortalizadas, num poema de Fuzuli (século XVI). Leyla representa a beleza divina; Majnun o espírito humano). A verdade é pura, branca e una, mas não é única, pois o branco é a síntese das sete cores do arco-íris. Ou seja, a exclusão de qualquer das sete cores tornaria impossível a unidade traduzida pelo branco. Assim, o universalismo só o pode ser se integrar todas as matizes em que se realiza e que o realizam. Ou, por outros palavras, é possível ver o rosto de Cristo em cada ser humano, situando-se a frase na semântica do religioso ou da metáfora, conforme a queira entender o leitor, senhor último da palavra.   Miguel Luís da Fonseca

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figueiredo, estêvão brioso de

D. Estêvão Brioso de Figueiredo nasceu em Évora, em 1630, filho de Manuel Martins e Catarina de Figueiredo, gente sem vestígio de fidalguia nas origens, e foi ordenado padre em 1658. Para que pudesse ser alcandorado ao título de bispo, precisou da conjugação de alguns fatores que, ao tempo, ajudassem à promoção a um lugar cimeiro na hierarquia eclesiástica e que, no seu caso concreto, se materializaram num percurso académico, em protetores bem colocados e em alterações produzidas nos critérios de provimento episcopal. Em termos de habilitações, era D. Estêvão possuidor de um bacharelato em Cânones pela Universidade de Coimbra, o qual lhe possibilitara o início de carreira na Relação de Évora, sua terra natal. Daí se viu promovido para Lisboa, onde veio a tornar-se vigário geral e procurador do arcebispo, D. António de Mendonça, e terá sido esta relação que lhe valeu a proteção do irmão do referido arcebispo, o 2.º conde de Vale de Reis. Esta circunstância, somada a um novo critério de escolha episcopal surgido no reinado de D. Pedro, que se caracterizou pela atribuição de um maior peso das cúpulas da Igreja na designação dos titulares de mitras, e que privilegiava carreiras feitas ao serviço de instâncias eclesiásticas, será o suficiente para explicar a opção por D. Estêvão Brioso de Figueiredo para primeiro bispo da recém-criada Diocese de Olinda-Pernambuco. Assim, e depois de confirmado, em 1676, por Inocêncio X, chegou D. Estevão a Olinda a 11 de abril de 1678, para dar início a um episcopado onde pontificaram a reforma do auditório eclesiástico do bispado e um programa visitacional que incluiu as igrejas da cidade e das povoações vizinhas. A distância do reino e a insegurança que experimentou – foi mesmo alvo de um disparo contra a janela do paço episcopal – fizeram com que o bispo, “pouco satisfeito com o lugar”, pedisse e obtivesse a promoção para a Diocese do Funchal, entretanto vaga (MELO, 2003, 106). Outro elemento que poderá ser tido em linha de conta na vontade de transferência de D. Estêvão Brioso de Figueiredo diz respeito ao vencimento episcopal que, em Olinda, era de 800.000 réis, e que no Funchal já atingia, desde o tempo de D. Fr. Gabriel de Almeida, o montante de 266.600 réis, 49 moios e 26 alqueires de trigo, 2,5 moios de cevada e 101 pipas e 2 almudes de vinho, por comutação dos 1800 réis que anteriormente recebiam os prelados funchalenses. Menor distância, maior vencimento, melhor clima: este terá sido o conjunto de fatores que esteve na origem da primeira transferência de um bispo de outra diocese para a do Funchal, a qual, neste contexto, surge verdadeiramente como uma promoção, na medida em que se apresentava como muito mais apetecível, apesar de sempre longe dos muito mais rendosos e proeminentes bispados de primeira linha no reino. Em 1683, foi, então, D. Estêvão nomeado para o bispado da ilha da Madeira, para o qual se deslocou em 1685, com tomada de posse a 18 de abril desse mesmo ano. Teve um episcopado curto, de apenas três anos, pois logo em 1688 se retirou para Lisboa, para procurar alívio para males trazidos dos trópicos, acabando por falecer a 20 de maio de 1689. Do escasso período em que permaneceu na mitra do Funchal, sobraram poucos vestígios, mas um deles ficou a dever-se ao cura da Sé, Francisco de Bettencourt Sá, o qual, em 1688, num livro de defuntos da freguesia, e descrevendo uma epidemia de febres malignas que varreu a cidade, salientava as diligências do prelado, que, de tarde e de noite, levava o Santíssimo aos moribundos. Ao bispo também se ficou a dever a decisão de trasladar a miraculosa imagem de Nossa Senhora do Monte da sua igreja para a catedral, como forma de aplacar a doença, tendo esta estratégia resultado em pleno, pois “nem de novo deu mais a doença em pessoa alguma” (Arquivo Histórico da Madeira, vol. V fasc. i, 35). Apesar dos seus achaques, o prelado não deixou de cumprir os seus deveres visitacionais, e pode ser pessoalmente encontrado, em 1685, no Porto Moniz, de onde procedia à visita da igreja de S.to Antão do Seixal, “como fizeram nossos antepassados obrigados da dificuldade dos caminhos”. Ainda que não estivesse fisicamente presente na freguesia do Seixal, pelos impedimentos que indicava, o bispo encontrava-se informado o suficiente para determinar que se tinha de combater a tendência para a revelia à doutrina que era evidenciada pelos fregueses, os quais deviam ser condenados “se necessário for” (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos do Seixal, fl. 67v.), na quantia que se adequasse às possibilidades de cada um. A mesma brandura não se aplicava aos que se tinham comprometido com esmolas para a obra do pé da custódia, que, não cumprindo, se deviam excomungar, o mesmo acontecendo aos devedores às confrarias.   Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

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irmãos de s. joão de deus

Os Irmãos de S. João de Deus, fundados por volta de 1538-40, com a primeira aprovação papal em 1572 e a segunda em 1585, instituíram em Portugal e nas suas colónias, de 1606 a 1834, cerca de três dezenas de casas, a maior parte na área da saúde militar. Após 56 anos de ausência, regressaram a Portugal, em 1890, com duas fundações de curta duração, a par da casa de saúde do Telhal, referente à área da psiquiatria, fundada em 1893 por iniciativa de S. Bento Menni. D. Manuel Agostinho Barreto (bispo do Funchal entre 1876 e 1911) fez diligências, no início do séc. XX, para que os irmãos concedessem assistência aos alienados da Madeira, porquanto não havia resposta adequada nessa área. Com efeito, desde o início do séc. XVI até a meados do séc. XIX, não consta nenhum registo acerca de qualquer recurso assistencial para alienados. Só em 1848 o hospital da Misericórdia dispôs de alguns quartos seguros para loucos os quais devem ser separados das outras enfermarias, porém, sem as mínimas condições assistenciais. As diligências deste bispo continuaram mesmo após a criação do manicómio Câmara Pestana (1906), tendo ido ao Funchal, em 1908, os Irs. Cosme Millan, superior do Telhal, e o P.e Augusto Carreto, mestre de noviços, com esperança de receber a doação da Qt. do Trapiche para esse fim. Perante as dificuldades levantadas pelo clima político maçónico, a proprietária desistiu da doação e a fundação desejada por D. Manuel Agostinho Barreto ficou adiada. Em 1920, o presidente da Junta Geral do Funchal, Vasco Gonçalves Marques, visitou, por incumbência da própria Junta, as casas de saúde do Telhal e da Idanha e diligenciou a vinda dos irmãos para administrarem o manicómio Câmara Pestana e remediarem as suas grandes deficiências. No entanto, a fação maçónica, na reunião tumultuosa de 28 de maio de 1920 da Junta Geral, não o permitiu. D. António Manuel Pereira Ribeiro providenciou, então, a vinda dos irmãos propondo que se estabelecessem na Qt. do Trapiche, agora entregue pela proprietária à Diocese. O Ir. Elias de Almeida escreve, a 31 de maio de 1921, do Telhal a sugerir ao bispo que escreva ao provincial em Madrid a manifestar esse desejo, dizendo, igualmente, que a quinta estará à disposição para a fundação de um manicómio. Assim, os superiores maiores teriam conhecimento do pedido do bispo da Diocese. No Arquivo Histórico da Diocese do Funchal (Arquivo dos Bispos, Religiosos de S. João de Deus, D. António Manuel Pereira Ribeiro), existe a minuta da resposta de D. António, datada de 11 de agosto de 1921, relatando a doença e a confusão da dona da Qt. do Trapiche e o seu testamento indefinido em favor de três herdeiros. Por só haver nomeado oralmente um procurador, deixava a quinta à mercê das criadas que já nem a chave de uma das casas quiseram entregar ao bispo, como antes acontecera. Assim, concluía que, logo que as casas do Trapiche estivessem em poder da Diocese, as poria à disposição dos irmãos, dotando-a, desta forma, de tão excelente obra de caridade: o manicómio. A 7 de fevereiro de 1922, o Ir. Manuel Maria Gonçalves e o Ir. António Maria Rodrigues, madeirense, chegaram ao Funchal no vapor português África, para iniciar a obra, vindo sob o pretexto de fazer um peditório para a casa de saúde do Telhal e, assim, não exacerbar as oposições hostis. Esses dois irmãos escrevem e assinam uma longa carta, a segunda datada do dia 26, como dizem no início, com o ponto da situação. Foram cumprimentar o Dr. João de Almada, um dos obreiros da vinda dos irmãos, e este lamentou não perceber por que razão não tinha recebido resposta “às suas cartas” que iam no mesmo sentido. Contam a seguir que a proprietária da Qt. do Trapiche se encontrava muito doente, mas que o Cón. Homem de Gouveia teria a sua procuração oral, e o advogado sugeriu que podiam fazer imediatamente o arrendamento da quinta e tomar conta dela, antes que a proprietária falecesse, sendo preciso fazer outras diligências legais. Tendo-se chegado a um acordo, o arrendamento foi feito no mesmo dia em que escrevem, dia 26. No dia 1 de julho de 1922, já o provincial Fr. Juan de Jesus Adradas pedia, na sua carta, licença ao bispo para o estabelecimento da comunidade canónica na quinta da Diocese. No arquivo da OHSJD da Província (Lisboa) encontra-se a provisão de D. António, datada de 11 de agosto de 1922, concedendo a licença para a edificação canónica da comunidade: “E agradecemos à Providência Divina o grande benefício que por esta forma concede à nossa Diocese, do Céu impetramos sobre a nova Comunidade toda a sorte bençãos” (AOHSJD, Lisboa, mç. Funchal, carta de 11 ago. 1922 de D. António Manuel Pereira Ribeiro). Como remate deste processo, a Santa Sé envia, a 10 de outubro de 1922, o rescrito da edificação canónica. A casa compreendia o estatuto canónico de comunidade, enquanto obra apostólica da Igreja Católica, e inseria-se no país como instituição de beneficência sujeita às leis civis da época. Assim sendo, os Irmãos Hospitaleiros de S. João de Deus surgem como uma comunidade canónica da Província com sede em Ciempozuelos (Madrid), aprovada pelo bispo diocesano, pela Santa Sé e pelo superior geral. Esta iniciativa teve origem na Província da Ordem de Espanha, Portugal e México. Neste período eram ilegais os institutos religiosos, pelo que os irmãos, para cobertura jurídica das atividades de assistência, procederam à criação de duas entidades civis: a associação dos Irmãos de S. João de Deus, com estatutos aprovados pelo Governo Civil a 4 de agosto de 1923, para gerir as atividades, e a sociedade de responsabilidade limitada União Familiar como proprietária da casa. Com efeito, a casa de saúde do Trapiche ia funcionar como instituição legal de beneficência, administrada pela associação dos Irmãos S. João de Deus. A partir de 5 de junho de 1924, inscrevem-se como membros 12 irmãos e 14 leigos, entre os quais o Cón. António Homem de Gouveia e o Dr. João Francisco de Almada. Os estatutos da associação definiam, no art. 2.º, a sua finalidade: “destina-se a prestar a sua caritativa assistência a pessoas do sexo masculino, pobres e pensionistas, atacados de alienação mental ou de qualquer outra enfermidade, sem excluir as contagiosas, assim como a meninos raquíticos, escrofulosos, aleijados, etc. Esta [Qt. do Trapiche] é a única que a associação atualmente administra” (AOHSJD, Lisboa, mç. Funchal, art. 2.º, 30 maio 1928, ou art. 4.º, 9 jun. 1929). O art. 2.º desta revisão diz: “A sua sede é na Quinta que atualmente se denomina do ‘Trapiche’ [...] onde terá em propriedade alheia uma Casa de Saúde cujos fins vão indicados no art. 4”. Esta revisão de novos estatutos consta de nove capítulos e 61 artigos. A aprovação do Governo Civil, datada de 4 setembro de 1929, estabelece que tem de submeter à aprovação os orçamentos e contas. A criação da sociedade União Familiar de responsabilidade limitada como proprietária explica a expressão acima “em propriedade alheia”, a qual corresponde à realidade. Só no capítulo conventual, de 14 de julho de 1929, se decidiu fazer o contrato com o bispo para comprar à Diocese a Qt. da Capela (das Rosas), a pagar no prazo de 15 anos e, posteriormente, com a aplicação de juros de 6 %. Só nessa data a propriedade foi posta no nome da União Familiar, constituída em 26 de agosto de 1924, sendo, na reunião de 6 de novembro de 1924, em assembleia geral, decidida a sua existência por 10 anos, prolongáveis por períodos sucessivos de 10 anos. A União Familiar tornou-se, então, proprietária da casa do Trapiche e da casa de saúde de S. Rafael, em Angra de Heroísmo, sendo as ações da sociedade vendidas a pessoas de confiança para poder funcionar. Em 1940, realizou-se mais uma assembleia geral da União Familiar, com ata de 9 de agosto de 1940, para deliberar sobre a transferência dos bens (S. Rafael em Angra do Heroísmo e Trapiche) para a Província Portuguesa da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus (OHSJD), agora reconhecida civilmente em virtude da concordata entre Portugal e a Santa Sé. A escritura de transferência no notário data de 18 de agosto de 1941. Os n.os 1, 2 e 3 elencam os bens de S. Rafael, de Vinha Brava e de Santa Luzia, em Angra do Heroísmo; os n.os 4 e 5 descrevem as propriedades do Trapiche. Completado o processo de transferência da propriedade da casa para a Província, aquela começou a funcionar num novo regime jurídico, que assume, ainda, uma nova configuração a partir do momento em que a Província foi reconhecida como corporação missionária e enviou os primeiros irmãos para as missões de Moçambique, em 1943 e em 1944, para prestar assistência a doentes mentais e leprosos. A casa do Trapiche figurava, então, como casa de repouso dos irmãos missionários quando viessem a Portugal. A Província ficaria agora proprietária das casas de saúde que constituíam o seu património, bem como gestora das que lhe eram confiadas, situação que só viria a ser alterada em 16 de novembro de 1977, com a criação do Instituto S. João de Deus para gerir as casas de saúde situadas no território nacional. Voltava-se, assim, a separar juridicamente a propriedade da sua gestão da ação assistencial. O Ir. Manuel Maria Gonçalves relata, em meados de abril de 1924, o sucesso do tratamento de um passageiro da carreira Lisboa-Funchal-África do Sul, internado na casa, sendo que o utente, antes de seguir viagem, agradeceu a sua cura de um mês num jornal local. Este facto terá facilitado a colaboração entre a casa e as autoridades. Com efeito, apesar da agitação ocorrida na Junta Geral, em maio de 1924, sobre a proposta da transferência dos doentes para o Trapiche, como diz Fernando Augusto da Silva (SILVA, 1929, 203-204), aquela realizou um contrato para a transferência e para a assistência dos alienados do sexo masculino do manicómio Câmara Pestana para a casa de saúde do Trapiche no dia 20 e, no dia 21, já contavam com 38 entradas. As razões ventiladas na Junta Geral eram, diz aquele autor, “a insuficiência da enfermagem, o acanhado das instalações e o tratamento brutal e desumano prestado aos doentes, e ainda os escândalos de toda a ordem que se davam dentro daquela Bastilha” (Ibid.). Segundo Fernando Augusto da Silva, esta decisão foi conseguida por Domingos Reis Costa, apoiado por Vasco Gonçalves Marques, presidente da Junta Geral. O contrato, assinado no dia 20, estipulava como mensalidade a ser paga pela Junta o valor de 200$00. A inauguração oficial da casa realizou-se no dia 10 de agosto de 1924, por ocasião da segunda visita do provincial, Ir. Juan Jesus Adradas, que celebrou a missa festiva, tendo a pregação do evangelho ficado a cargo do bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro. A celebração contou ainda com a presença de numerosos sacerdotes, religiosos, amigos, bem como de toda a comunidade dos irmãos. Da inauguração solene da casa, lavrou-se e assinou-se uma ata. Entre os presentes, estava o maior entusiasta da vinda dos irmãos para a Madeira, o Dr. João Francisco de Almada. Os primeiros tempos foram muito difíceis e só suplantados graças à generosa intervenção da população local, que foi incansável e não poupou esforços para que o serviço de assistência aos doentes mais necessitados da Madeira se tornasse um sucesso, lento, mas continuado. Exemplificando: basta dizer que à quinta não chegava caminho que permitisse transporte de materiais, pelo que foi preciso transportar tudo às costas nos primeiros tempos e até alguns doentes incapazes de andar. Os vizinhos foram generosos em géneros e serviços, ajudando a transportar diversos materiais e a abrir estradas. Os madeirenses desdobraram-se e multiplicaram-se em dons de amor e de dedicação ao ponto de iniciarem as frequentes “romagens” de cortejos de ofertas e donativos e, mais tarde, as visitas aos presépios da casa e as romagens do dia de reis (epifania). Em 1926, a casa, em conjunto com o Telhal, começou a fazer parte da Delegação Geral da Ordem de Portugal, deixando de depender da Província da Ordem de Espanha, Portugal e México. Ao começarem as novas construções nesta casa, a Delegação Geral de Portugal passou a ser Província, integrando as casas de Angra do Heroísmo, de Barcelos e de Ponta Delgada. Em junho de 1928, o Capítulo Provincial elege o Ir. Júlio dos Santos como primeiro provincial. Pelo Livro de Família (AOHSJD, Funchal), em que são registados, entre outros dados, o nome, a filiação, os dias de chegada e de saída da casa, bem como as assinaturas das atas dos capítulos conventuais, podemos seguir as chegadas, as partidas e o aumento dos Irmãos. Os doentes aumentavam rapidamente, sendo, em março de 1927, já 82. Neste mesmo ano, integraram a comunidade os Irs. Salvador Marques, António Francisco P. Gouveia e Francisco Camacho (Diamantino Esteves), e, em 17 de julho, o Ir. José da Natividade (José Gameiro). Tal como noutras casas da Província, observaram-se três factos paralelos também nesta fundação: o acolhimento e a assistência a doentes pobres, na sua maioria; a existência de irmãos que, à maneira de S. João de Deus, se tornaram esmoleiros, entre as populações das cidades e do campo, para recolherem ofertas e promoverem uma assistência de qualidade; por fim, a divulgação, pelas comunidades paroquiais e pelas famílias cristãs, da obra apostólica a favor dos pobres que suscitava candidatos desejosos de se tornarem irmãos. Com efeito, a comunidade do Funchal tornou-se um viveiro de vocações, teve aspirantado para acolhimento, discernimento e formação dos candidatos admitidos, pelo qual passaram numerosos jovens madeirenses até darem entrada no postulantado e no noviciado do Telhal. Registe-se que, em 1907, por ocasião dos primeiros contactos de irmãos esmoleiros na Madeira, o jovem António Maria Rodrigues do Nascimento (Machico, 1881-1947) pediu para ser Irmão de S. João de Deus, tendo, em 1922, participado no arrendamento da Qt. do Trapiche já nessa condição. Nos 90 primeiros anos da casa, contam-se 52 rapazes madeirenses que se iniciariam no discernimento vocacional e na vida consagrada na Qt. do Trapiche. Destes, 20 são do Funchal, 12 de Câmara de Lobos, nove de Santana, quatro de S. Vicente e um de cada um dos concelhos restantes: 38 foram noviços, 31 fizeram a profissão temporária e 16 a solene. Deixamos algumas notas sobre estes 17 membros. Em 1925, entraram na OHSJD Leonardo Ferreira, de Câmara de Lobos, e David Freitas Capelo (1912-1965), de Santo António. Este último foi sacerdote na Ordem e missionário entre os leprosos em Moçambique. Em 1926, entrou o Ir. António Gonçalves de Jesus (1910-1939) de Câmara de Lobos. O Ir. António de Freitas Bárbara do Faial (Santana) entrou em 1927 e foi, durante muitos anos, esmoleiro por Portugal inteiro para que o hospital de S. João de Deus, Montemor-o-Novo, pudesse tratar crianças pobres, oriundas de todo o país, incluindo da Madeira e dos Açores. De Santo António, lembramos ainda: o Ir. José Gonçalves Lucas, que veio a falecer de acidente, em 1985, no hospital de S. João de Deus em Divinópolis (Brasil), com fama de santidade, e Augusto Arnaldo Neves, que entrou em 1935 e foi superior em várias casas. Na déc. de 40, entraram os madeirenses Manuel Joaquim Matos, António Arlindo Fernandes Figueira e Vasco Thiago Nunes Quental. Este último, antes de entrar na Ordem, foi sócio da União Familiar, criada pelos irmãos como proprietária legal de toda a casa. O Ir. Manuel Fernandes Pimenta (Boliqueime), que entrou no aspirantado do Telhal, onde professou, teve ação notável nesta casa como superior/diretor de 1971 a 1977, tendo ficado muito conhecido pelos seus presépios monumentais. Em 2010, faleceu o Ir. José Cipriano Correia (Jamboto, Santo António, 1912), quase centenário. A sua entrada no Trapiche data de 1931, tendo professado em 1933. Em agosto de 2008, depôs no processo diocesano para a beatificação da Ir. M.a Virgínia Brites da Paixão, clarissa, sua conhecida, já com reputação de santidade e de dons místicos, cuja urna foi transportada pelos irmãos até ao cemitério em 1929. Em 2014, os irmãos vivos eram: José Paulo Simões Pereira da paróquia da Encarnação, Estreito de Câmara de Lobos, provincial de 1901 a 1907 e, posteriormente, superior da Missão de S. João de Deus de Nampula, em Moçambique; Paulo Irineu Cortes de Gouveia da Serra de Água, superior em Lisboa, e José Inácio Pacheco da Silva da paróquia de S. Jorge, que entrou na Ordem em 2010 e professou a 2 de fevereiro de 2013 (S. Paulo, Brasil), continuando a formação em Barcelos a 3 de abril desse mesmo ano. A assistência prestada na casa guiou-se sempre por critérios holísticos que incluem as várias dimensões da pessoa e da sua dignidade. Os valores de transcendência e de fé cristã são respeitados ao lado das melhores técnicas de tratamento conhecidas. Além da existência de proximidade entre os irmãos, a casa dispôs sempre de cuidados pastorais da saúde, coordenados por capelães da Ordem ou por sacerdotes diocesanos. A capela da casa chegou a funcionar como igreja paroquial na déc. de 60 do séc. XX, altura em que foi criada a paróquia da Graça. A casa tem podido contar sempre com clínicos competentes e especializados no tratamento de doentes mentais. O Dr. João Francisco de Almada (Santana, 1874-Funchal, 1942) foi o primeiro diretor clínico, desde o início até ao seu falecimento, em 1942. Foi sócio da associação Irmãos de S. João de Deus e presidente da União Familiar, sendo coadjuvado pelo Dr. William Clode (1932-1942). O segundo diretor clínico, o Dr. Aníbal Augusto de Faria (São Vicente, 1901-Funchal, 2/11/1972), formado na UC e licenciado em psiquiatria na UL, manteve-se no cargo de 1942 a 1969, período em que introduziu novas terapêuticas. O terceiro diretor foi o Dr. Armindo Saturnino Pinto Figueira da Silva, exercendo a função de 1969 a 2004, ano em que lhe sucedeu o Dr. José Vieira Nóbrega Fernandes, que, por sua vez, foi sucedido pelo Dr. José Paulo Abreu em 2010. Ao lado dos diretores clínicos, outros médicos exerceram na casa de saúde. Em 2014, contavam-se quatro psiquiatras, um neurologista, um gastroenterologista e um médico de medicina interna. Dos restantes 146 colaboradores que integram o quadro da instituição, contavam-se 37 técnicos: três psicólogos, 28 enfermeiros, um gestor de empresas, um técnico de serviço social, um técnico de recursos humanos, um educador social, um farmacêutico e um nutricionista. Nos diversos serviços, trabalham duas telefonistas, seis administrativos, cinco cozinheiros, dois técnicos de manutenção e três responsáveis de serviços gerais e um cabeleireiro, sendo os restantes empregados auxiliares. O tratamento dos doentes acompanhou sempre as correntes epocais mais atualizadas. Deste modo, encontramos nos inventários da farmácia de 1928, entre outros equipamentos, referências a balanças de precisão, termocautérios, bisturis, pinças, seringas e instrumentos de dentista. Nos inventários de 1931 e de 1937, temos referenciadas algálias, autoclaves e caixas de esterilizações. Nos inventários de 1940 e de 1946, aparecem os otoscópios, os rinoscópios, as sondas esofágicas, entre outros. Os doentes são separados segundo o seu estado de saúde, existindo uma enfermaria para os tuberculosos. Os tratamentos praticados nos anos 20 e 30 incluíam hidroterapia e calmantes, em larga escala, como a morfina, a escopolamina e os brometos. Na déc. de 40, foram introduzidas as terapêuticas convulsivantes: sistocardil, eletrochoque, eletrocardiozol e choque insulínico. Desde a inauguração da casa, o aumento dos doentes foi muito rápido, porquanto falhava resposta assistencial face a doenças mentais específicas. Havia também um grande número de deficientes mentais com perturbações causadas, por exemplo, pelo consumo de álcool durante a gravidez e a amamentação, bem como doentes mentais adultos vítimas do próprio consumo excessivo de álcool. Muitos dos deficientes são, com efeito, vítimas do álcool consumido pelas mães durante a gravidez e dos maus tratos dos pais alcoólicos durante a infância. Este consumo excessivo foi sempre um fator de grandes dimensões na Ilha, como atestam vários autores no Elucidário Madeirense. Alguns dos factores que influenciam o internamento acima das médias internacionais encontram-se relacionados com a perturbação, mesmo ligeira, associada à pobreza e à miséria, bem como com o regresso e a expulsão dos doentes madeirenses dos países de emigração. Seguidamente, vejamos o número de internados por década. A casa de saúde do Trapiche foi inaugurada com cerca de 40 doentes e, no final de 1924, já somava 58. Em 1930, contava com 122; em 1940, com 194; em 1950, atingiu os 361 e, em 1960, subiu para os 405. Nesta década, e na seguinte, atingir-se-iam os picos mais altos da história da casa: em 1970, contava com 492 doentes e, em 1976, acolheu 506. Após esta data, começa o ciclo de decrescimento, atribuído a vários fatores, principalmente às novas metodologias e terapias usadas na psiquiatria, tais como o sistema da porta aberta, a porta giratória, a desinstitucionalização, a psiquiatria comunitária e, no final do séc. XX, a reabilitação psicossocial, sempre coadjuvadas por sucessivas gerações de psicofármacos. Estas mudanças promoveram tempos mais curtos de internamento, repetidas altas e novas readmissões em caso de crise, a manutenção dos laços familiares e mais saídas definitivas. Tudo concorreu para reduzir os doentes internados. O Dr. Saturnino, no tempo em que exerceu a função de diretor clínico, favoreceu significativamente a desinstitucionalização de muitas dezenas de doentes, a par da consequente reinserção na família, sendo que alguns casos foram mais de índole social do que de psiquiatria. Na déc. de 80, o número de internamento desceu para 374 e, 10 anos depois, em 1990, para 274, continuando a descer até ao ano 2000. Nesta década, iniciou-se a reabilitação psicossocial implementada em cerca de 60 pacientes, em cinco unidades de reabilitação. O número de doentes internados estabilizou, rondando, em 2014, os 270-280 doentes. A casa, além das adaptações realizadas nos velhos edifícios da quinta, teve que planear e executar, ao longo da sua história, sucessivos projetos para responder ao aumento dos internamentos e às qualidades hoteleiras de acordo com as exigências do nível de vida. Atentemos, então, no resumo cronológico das principais construções. Nos primeiros seis anos e até 1930, os doentes ficaram alojados em espaços adaptados nas casas das duas quintas. O primeiro edifício construído de raiz foi o pavilhão de S. José, inaugurado com cerca de uma centena de doentes tranquilos em 1930, ficando ainda cerca de 40 deles nas velhas instalações. Entre 1935 e 1936, os irmãos construíram os edifícios da portaria, da administração, da farmácia, da clausura, da cozinha, da padaria, da despensa e, ainda, uma capela nova para a comunidade e para os doentes. Para acolher em melhores condições os restantes doentes, foi erguido, entre 1934 e 1938, o pavilhão da enfermaria S. João de Deus, do lado poente do caminho do Trapiche. Aqui, foram instalados os doentes agudos, um grupo de tuberculosos e outros mais perturbados ou agitados que ainda se encontravam alojados nas casas da quinta. Em 1940, já estavam alojados 123 doentes. Dado o aumento do número dos pacientes, entre 1950 e 1954, planeou-se e construi-se o pavilhão de S.to António, que apresentava três pisos, sendo mais tarde construído um quarto piso que poderia receber mais 120 pessoas. Construiu-se, entre 1960 e 1965, no alto da quinta do lado poente, uma lavandaria e uma rouparia definitivas. Coincidindo com o pico máximo de doentes, foi programado mais um edifício para doentes agudos, construído em 1978-1979. A diminuição do número de pacientes e os problemas relacionados com a atualização das diárias, conduziram à criação, em dois pisos do edifício, do centro de recuperação de alcoólicos S. Ricardo Pampuri, irmão médico italiano. Este centro foi inaugurado a 5 de novembro de 1979, em regime aberto, oferecendo um programa de tratamento com intervenção biológica, psicossocial e espiritual, cuja duração era um mês. Em 1980-1984, o pavilhão de São José, já obsoleto, foi substituído por um grande edifício que alojou doentes agudos, possuindo uma lavandaria nova, um anfiteatro de cinema e encontros e, ainda, um gimnodesportivo. A construção do bar panorâmico e da biblioteca para usufruto dos doentes datam de 1992-1995. Nos anos 2001-2004, o edifício de Santo António foi reestruturado para receber três unidades: a gerontopsiquiatria, a vocacionada para pacientes estabilizados e, ainda, a concernente a doentes autónomos em reabilitação. Foi instalada a unidade de reabilitação psicossocial denominada “Caminho” no local onde se encontrava a escola de ensino recorrente, que foi posteriormente transferida para o edifício do bar. Foram reestruturados os terceiro e quarto pisos devolutos do centro Ricardo Pampuri para abrigar as unidades de reabilitação psicossocial Elvira e Lucena. O quarto piso do pavilhão S. João de Deus acolheu a unidade Coragem. Em 2006, fez-se a transferência dos doentes de São Lucas que se encontravam no primeiro piso de S. João de Deus sem condições para o primeiro piso de Santo António, entretanto remodelado, tendo sido criada a unidade Estrelícia num bairro de Santo António para seis utentes autónomos. Desde o início e até finais de 2014, a casa contou com cerca de 200 irmãos e 30 mandatos de superior, os quais exerceram, até 2001, simultaneamente a função de superiores e diretores. Em 2014, contam-se quatro irmãos: Horácio Martins Monteiro, superior, Aires Gameiro, sacerdote capelão, Amadeu Costa Cabral e Jorge Dias Coelho, enfermeiros, sendo diretor/gestor o leigo João Eduardo Freitas Lemos. Na linha da tradição da OHJSD, a assistência prestada pautou-se sempre pelos valores e normas presentes nas constituições da Ordem, privilegiando os meios mais atualizados de tratamento para cada período. Desde o final do séc. XX, as linhas programáticas foram atualizadas pela Carta de Identidade da Ordem de S. João de Deus, que declara que “um dos valores é o seu carácter integral [...]. Para S. João de Deus, o doente e o necessitado não eram apenas um corpo e uma alma, pecador ou pecadora, mentirosos ou indigno. Todos eram pessoas, seus irmãos e irmãs, todos dignos de serem ajudados e perdoados por ele e pelos seus colaboradores” (alínea 3.1.5, n.º 21) porque o mesmo faz Deus por cada um. Em suma, podemos considerar que os cuidados integrais apenas atingem o patamar da qualidade técnica e humana quando abrangem todas as dimensões e respeitam a dignidade da pessoa humana. Foi pela contínua atualização deste pressuposto que a casa obteve, em 2012, uma credencial de qualidade técnica pela Equass, referencial europeu de certificação. Neste sentido, a casa sempre procurou merecer o reconhecimento de prestação de cuidados holísticos em todas as dimensões, sem descurar as espirituais e as transcendentes.     Aires Gameiro (atualizado a 04.02.2017)  

Religiões

convento de são francisco do funchal

O mais importante e interventivo Convento na vida geral da Madeira sempre foi o de S. Francisco do Funchal, com profundas raízes locais e, ao mesmo tempo, com um especial sentido de liberdade imediatista, que criou inúmeros problemas às autoridades instituídas. Os Franciscanos acompanharam os primeiros povoadores em 1420, e foi-lhes depois entregue a assistência espiritual nos primeiros anos do povoamento. Dez anos depois, por volta de 1430, estava na Madeira Fr. Rogério, então também acompanhado de frades de origem castelhana, galega e biscainha que, segundo Fr. Manuel da Esperança, bem podiam encher de conventos toda a Ilha, se ela tivesse povoações nas quais se sustentassem. Acrescenta ainda o cronista que tal não teria acontecido de imediato, pois “vinham fugidos do mundo e não podiam (ou não queriam) ver gente”. Assim, “encovados pela serra, conversavam só com Deus, pretendendo imitar o rigor da penitência” (ESPERANÇA, 1666, 670-671). Foi com esse espírito que os Franciscanos se instalaram num eremitério com a invocação de S. João Baptista, cerca de 10 anos depois, por volta de 1440, como viria a escrever, mais tarde, Fr. Nuno Cão (c. 1460-1530/1531), vigário do Funchal, em sentença de 1499: “que haveria ora sessenta anos” que ali se tinham fixado (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 11, n.º 1). O eremitério era na margem direita do ribeiro de S. João, no Funchal, e teria quase uma dezena de irmãos leigos, tendo tido como guardião Fr. Pedro das Covas ou Fr. Pedro Mourão, “homem velho e de muita autoridade” (SILVA, 1946, 163). Os Franciscanos da província de Portugal só em 1450 conseguiram autorização, pela bula Iniunctum Nobis, de 28 de abril desse ano, do Papa Nicolau V para manterem um eremitério na Madeira, que já teriam erguido sem qualquer beneplácito. Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita   Convento de São Francisco. (pormenor) Arquivo Rui Carita   A comunidade madeirense foi entregue ao vigário provincial dos observantes portugueses, mas, como haveria de referir o vigário do Funchal, os Franciscanos que à “ilha iam habitar e morar, iam de passada a ver o mundo, cada um por sua arte e não faziam assento” definitivo, correndo “para as outras ilhas de baixo (as Canárias, em princípio), como caminhantes” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 11, n.º 1). Essa situação e a interferência das outras comunidades provinciais ibéricas acabaram por levar os Franciscanos a sair da Madeira, em 1459, então nove elementos, dois padres e sete leigos, vindo a instalar-se, por ordem real, no futuro Convento de Xabregas, em Lisboa, sob o padroado da condessa da Atouguia. No continente, e depois do falecimento do infante D. Henrique, em 1460, os principais das Ordens de S. Francisco e de Cristo procuraram um entendimento e, por certo, uma delimitação de campos de ação. Encontrado esse acordo, regressaram os Franciscanos à Ilha, embora somente quatro do grupo que havia saído em 1459, voltando a ocupar o pequeno Hospício de S. João, por volta de 1464. Os Franciscanos voltaram sob a direção de Fr. Rodrigo de Arruda, homem de certa influência junto do geral da Ordem, em Roma, e que fora já provincial em Portugal, além de manter relações pessoais de amizade com o segundo capitão donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Referiu o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) e transcreve Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) que, tendo os Franciscanos acompanhado o Cap. João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), este lhes deu agasalho no Funchal, numas casas em lugar ermo, de onde depois se transferiram para o edifício que construíram “em baixo na vila […], nuns chãos e terras defronte de Santa Catarina, além da ribeira” (FRUTUOSO, 1968, 86). Foi, assim, na sua primeira residência, a pequena capela de S. João Batista, ou de S. João da Ribeira, que se vieram a instalar, de novo, em 1464, e que, pouco tempo depois, teria breve de autorização do Papa Sisto IV, de 1476. Entretanto, Fr. Rodrigo de Arruda, logo que chegou ao Funchal, aproveitando as boas disposições dos habitantes e a autorização que já possuía, tratou de levantar um novo convento no centro da povoação. Os Franciscanos achavam o sítio em São João da Ribeira impróprio para a sua instalação, “escondido no meio da ribeira e tão distante do povo para o serviço dele, nas confissões e sermões, e noutros ministérios da alma”, ainda acrescentando as Saudades da Terra que a causa da mudança, para além de que “o lugar era ermo”, era que um frade, “por induzimento do Demónio, que sempre urde semelhantes teias”, se tinha ali enforcado, havendo assim necessidade de encontrar outro sítio (Id., Ibid., 85). O terreno escolhido foi um que pertencera a Clara Esteves, que em testamento o havia vinculado a um seu parente, o então escudeiro João do Porto, cedendo os religiosos, em troca, o Hospício de S. João, menos a capela, tendo tudo sido autorizado pela infanta D. Beatriz, como tutora de seu filho, o duque D. Diogo, grão-mestre da Ordem de Cristo, a quem a Ilha pertencia. A instalação no Funchal deve datar de 1473, como se pode ler na lápide sepulcral dos fundadores, Luís Álvares da Costa e seu filho, Francisco Álvares da Costa, provedor da Fazenda, igualmente o ano do testamento de Clara Esteves, de 1 de janeiro, que já deixava ao Convento, por certo ainda à comunidade de S. João da Ribeira, 2000 réis, uma peça de pardo para vestuário e 30 varas de burel para vestes. Laje sepulcral dos fundadores. 1473. Arquivo Rui Carita As instalações do novo Convento progrediram rapidamente, já tendo guardião em 1476, Fr. Rodrigo Contendas, tendo-se ali registado, em finais de 1482, o célebre milagre com a imagem de um crucifixo. Segundo a tradição, esta imagem, que “falava algumas vezes” com Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, aos pés de cujo altar foi depois sepultada, teria realizado um milagre, a 26 de dezembro de 1482. Nesse dia, pregando então o P.e Fr. Rodrigo, viu D. Helena o “braço direito do dito crucifixo derribado fora da cruz, todo ao lado do corpo”, milagre depois autenticado pelo bispo D. Fr. Loureço de Távora (1566-1629), a 24 de outubro de 1615 (BNP, IGRAPRF, 1775, fls. 85-88). O Convento passou logo a usufruir dos privilégios gerais concedidos por D. Afonso V, em 2 de abril de 1459, em que se isentava os Franciscanos do pagamento de fintas, taxas e tributos, como a sisa e a dízima, a “portagem costumada de peão”, o vinho, a carne e o pescado. O longo documento de isenção refere ainda aquilo que comprassem para seu mantimento, “para seus vestidos e necessidades”, materiais que comprassem para reparação dos mosteiros e casas, tais como pedra, cal, areia, madeira, pregadura, tabuado, cavalgaduras e animais de carga, “com seus aparelhos, que para servidão comprarem”, “posto que os tornem a vender”, etc. O mesmo se passava com as coisas que lhes fossem dadas ou deixadas, “que eles possuir não possam, e quaisquer joias e ornamentos” que comprassem ou lhes vendessem para os serviços divinos, assim como vestimentas, capas, livros, imagens e quaisquer outras coisas “que para isso pertencerem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 1, n.º 4). As obras da primeira fase do Convento foram, assim, iniciadas em 1474, e o Convento já se encontrava habitado por volta de 1487, numa primeira fase das obras. Gaspar Vaz, que fora para a Madeira em 1539, por ordem de D. João III, em carta de 20 de maio de 1542 dá conta ao Rei das obras que, nessa altura, decorriam no Convento de S. Francisco, ordenadas pelo visitador da Ordem, Fr. Nuno, que, “por o mosteiro de S. Francisco estar mal remediado de dormitório, ordenou uma obra mui formosa e honrada, a saber: dormitório novo e debaixo refeitório com seu peio”, ou seja, uma fonte de água (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 72, doc. 9). O visitador que ordenara estas obras era também um pregador de grande fama e fora angariar fundos para as obras necessárias ao Convento do Funchal, e reformar igualmente os restantes Conventos franciscanos locais, que, após terem formado uma província autónoma, por bula de Sisto IV, de 1477, tinham voltado a depender da província de Portugal, por bula de Inocêncio VIII, em 1488. O Convento veio a ser sucessivamente ampliado, logo a partir de 1550, quando beneficiou de um legado de D. Maria de Atouguia, filha do provedor Francisco Álvares da Costa, que, falecendo solteira, a 11 de fevereiro desse ano, deixou uma pensão para missas por sua alma e para aquisição da cerca. Nos anos seguintes, era ampliada a igreja, sendo sagrada a 14 de março de 1554 pelo bispo castelhano D. Sancho Trujillo, que, passando pela Ilha vindo das Canárias, ali passou algum tempo. Este bispo castelhano pretendeu depois, inclusivamente, ser titular do bispado do Funchal, quando era bispo de pleno direito D. Fr. Gaspar do Casal (1510-1584), embora o mesmo nunca se tenha deslocado ao Funchal, tendo sido depois, em 1557, bispo de Leiria e, em 1579, de Coimbra. O Convento já possuía importantes adegas em 1566, conforme consta do saque corsário de outubro desse ano, onde alguns dos huguenotes franceses estiveram alojados e se teriam embebedado. Aliás, alguns dos frades do Convento de S. Francisco teriam sido dos poucos habitantes da cidade que afrontaram as forças francesas, por indicação do comissário, Fr. Baltasar Curado, na rua da Carreira, tendo à frente Fr. Álvaro de Miranda, que em Mazagão se havia notabilizado contra os mouros, mas ali foi morto, tal como cinco dos frades que o acompanhavam. No interior do Convento, ainda seria morto o sacristão, o P.e Fr. Rodrigo de Portalegre, que ali tinha ficado a esconder o tesouro com o vigário Fr. João dos Reis. O vigário, entretanto descoberto na sua cela, veio a escapar à morte por ter revelado o esconderijo das pratas do Convento. A cerca e o claustro de S. Francisco serviram depois para o enterramento das cerca de 300 vítimas do saque dos corsários franceses. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), mais tarde, por volta de 1722, escreve que os 10 Franciscanos mortos durante o saque de 3 de outubro foram sepultados no chamado “capítulo velho”, “debaixo de uma só campa”, seguindo as informações de Fr. Manuel da Esperança (ESPERANÇA, 1666, 684). O cronista acha serem muitos corpos para uma só sepultura, embora entenda que ali foi sepultado, pelo menos, Fr. Álvaro de Miranda, por determinação de seu irmão João Mendes de Miranda, porque da família do instituidor da capela daquele capítulo, ou seja, Simão Acciauoli (c. 1480-1544). Os Franciscanos mortos tinham sido, para além de Fr. Álvaro de Miranda e de Fr. Rodrigo de Portalegre, que refere como Rodrigo de Santiago, já mencionados, ainda Fr. Inácio de Leiria, Fr. Pedro de Eça, Fr. Pantaleão, Fr. Manuel da Cruz, Fr. Custódio Corista, Fr. Simão Corista e Fr. Francisco Cartaxo, assim como Fr. Gaspar “Terceiro”, um irmão donato, ou seja, que ainda não havia professado, embora já de alguma idade, por certo, que “pasmou e de pasmo morreu” (NORONHA, 1996, 240).   Planta da cidade 1570. Arquivo Rui Carita   Planta da cidade e Convento 1567. Arquivo Rui Carita Na armada de socorro de uma semana e pouco depois, provavelmente teria vindo o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1530-1595), que levantou uma planta da cidade, aproximadamente entre 1567 e 1570, onde se percebem as dimensões e a forma geral do Convento de S. Francisco. O edifício ocupava cerca de metade do posterior jardim municipal, dando sobre a rua dessa evocação nos começos do séc. XXI e ocupando a igreja o limite sul do jardim, com o adro lateral a avançar para a Av. Arriaga. A igreja parece já apresentar planta em cruz latina, com o braço sul do transepto saliente, tal como parece ter tido nártex nessa época, indicado com um ponteado para a colunata, como se encontra marcado para os claustros. O dormitório, sob o qual se encontrava o refeitório, deveria ficar para norte, e a cerca envolvia o Convento pelo norte e poente, prolongando-se até ao que é, nos começos do séc. XXI, a R. Conselheiro José Silvestre Ribeiro e ocupando a Av. Arriga quase até à R. das Fontes, tendo o teatro municipal sido levantado no antigo espaço da cerca do Convento. Registam depois as Saudades da Terra, entre 1585 e 1590, que, naquela altura, estava fundado um Mosteiro de S. Francisco da observância, “de boas oficinas, como um dos mais nobres e graves do reino” que os Franciscanos tinham em Portugal, em que sempre estavam perto de 50 frades (FRUTUOSO, 1968, 114). A grande mobilidade social dos Franciscanos é patente depois no recenseamento de 1598, “tirado pelos róis das confissões”, onde se refere o Mosteiro de S. Francisco, “que geralmente tem quarenta religiosos” (BGUC, cód. 210, fl. 30), o que é perfeitamente indicativo de que, mesmo pelos róis de confissões, era impossível assegurar um número concreto. A igreja era “muito grande e lustrosa”, segundo escreveu Frutuoso, especialmente após a ampliação levada a cabo pelo P.e Fr. Diogo Nabo, “guardião dela e comissário de toda a ilha”. Havia então oito capelas “muito ricas” e dois altares, que pensamos serem os colaterais, para além da capela-mor. Diziam missa “uma hora ante manhã”, onde concorria muito povo, dando muitas esmolas na portaria e tendo o púlpito sempre três a quatro pregadores. A cerca era muito grande, com “água de levadas”, com que regavam muita hortaliça “de couves murcianas, beringelas e cardos”, e tinham pomar com “árvores de espinho”, palmeiras, ciprestes, pereiras, romeiras “e toda a frescura que se pode ter de frutas e ervas cheirosas”, sem se ter necessidade das de fora. Na cerca, também tinham muitas uvas e, como a população era “gente de tanta caridade”, no verão juntavam de esmolas trinta pipas de vinho (Id., Ibid., 114).                     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita A cerca do Convento de S. Francisco do Funchal, confrontando para poente com o solar de D. Mécia, como ficou depois conhecido, ficaria no final do século seguinte ligada a uma das mais célebres ocorrências de então. Este solar fora levantado, em princípio, por João de Ornelas de Magalhães, alcaide da fortaleza do Funchal por nomeação de 14 de maio de 1555, pois já figura na planta da cidade, dos anos de 1567 a 1570, e ostenta no portal exterior as armas desta família. O acidente ocorreu a 7 de março de 1695: encontrando-se D. Mécia de Vasconcelos na janela do seu solar, foi atingida por um tiro disparado por um Franciscano na cerca do Convento. Regista o termo de óbito do cura da Sé, o P.e Francisco de Bettencourt e Sá, que certo religioso de S. Francisco, “natural desta ilha”, para matar um francelho que estava pousado em uma árvore, lhe fez um tiro de espingarda e, disparando-a, deu “um perdigoto na testa por cima do olho” de D. Mécia, de tal sorte “que perdeu os sentidos e o juízo”, falecendo pouco depois (ABM, Sé, Óbitos, liv. 9, fl. 24). Certidão do Guardião do Convento de São Francisco. 1619. Arquivo Rui Carita Com a concentração de inúmeras capelas vinculadas às principais famílias insulares, muitas das quais com sepultura no Convento de S. Francisco, a comunidade adquiriu uma notável influência na vida económica e social insular, não deixando o edifício de crescer nos anos seguintes. O primeiro problema foi o dos testamentos e do usufruto dos legados dos mesmos e, depois, o da impossibilidade de, a curto prazo, cumprir muitos desses legados pios, logo nos meados do séc. XVI, especialmente pela enormidade de missas a celebrar “enquanto o mundo for mundo”, como por vezes se registou. A questão do elevado número de missas, estando muitas já em atraso, levou o prelado, nos finais desse século, a ter de solicitar autorização de Roma para o seu perdão (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, t. 3, 608-608v.). Depois, foi a progressiva centralização do poder nos sécs. XVII e XVIII, quer régio quer eclesiástico, aspeto relativamente ao qual os membros desta comunidade, com a sua tradicional liberdade de movimentos e de costumes, e a sua facilidade de palavra, não ofereciam especial vocação de subordinação. Os problemas com os legados testamentários ocorreram logo em meados do séc. XVI, colocando em oposição o cabido da Sé do Funchal e os Franciscanos. Queixaram-se, então, os membros do cabido a D. João III, “por descargo de suas consciências”, em carta de 22 de maio de 1550, das formas fraudulentas dos frades do Convento de S. Francisco “no fazer dos testamentos”. Contam que, tendo falecido um mês antes “um certo doutor físico de uma prosternação”, o mesmo fora visitado e “importunado”, quando acamado, por um padre que então servia de guardião do Convento, de nome Fr. António de Leiria, conseguindo que o mesmo fizesse testamento a favor do Convento. Escrevem os elementos do cabido que o testamento em questão “foi feito de tal maneira, que tendo ele perto de trezentos mil réis de fazenda, sem sua mulher viva e com três filhas para casar, despendeu em legados para o mosteiro, missa e ofícios, sessenta mil réis”. O enfermo ainda recuperou e pediu para ser revisto o testamento, mas tendo perdido a fala (embora acenasse a cabeça), os Franciscanos não aceitaram a alteração. Pedindo para ser enterrado na Sé, dado dali ser freguês, e vindo o corpo, os Franciscanos foram buscar “o defunto com a tumba”, que levaram para S. Francisco, não atendendo a “excomunhões” (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 84, doc. 59), nem ao provisor, deão e cabido que ali estavam. Os elementos do cabido queixam-se ainda de que os Franciscanos “usurpavam a jurisdição do arcebispado”, utilizando inibitórias do Dr. Luís de Alarcão, “como juiz apostólico com comissão do Núncio”, para mudarem o vigário da vila da Calheta, “desta jurisdição, que servia como ouvidor pedâneo pelo cabido”. Remata a missiva: “E porque isto é em grande prejuízo do Seu padroado, lho fazemos saber”, para se tomarem as devidas providências (Id., Ibid.). Assinam todos os membros do cabido, mas não consta que se tivessem tomado especiais providências contra os Franciscanos. No final do episcopado de D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), a 31 de outubro de 1607, reprovava-se o procedimento de alguns oradores franciscanos, que pregavam “paixões e escândalos esquecidos da obrigação do seu ofício”. Determinou assim o bispo que não fossem admitidos ao púlpito da Sé sem a sua expressa comissão e licença, tendo comunicado inclusivamente à hierarquia da Ordem as atitudes inconvenientes de Fr. António de Pádua, enquanto pregador na Catedral (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, n.º 19). Mais tarde, nas Constituições Sinodais do seu sucessor, de 14 de junho de 1615, o assunto voltava a ser recomendado ao comissário do Convento de S. Francisco do Funchal, alertando-o para que recrutasse pregadores experientes e sabedores, que soubessem atrair os fiéis, caso contrário o prelado reservava-se no direito de prover o lugar a pessoas mais competentes. O assunto, no entanto, atravessaria todo o séc. XVII e passaria ao seguinte. As questões com os Franciscanos ocorreram essencialmente por duas ordens de razões. A primeira, ligada à nova custódia de S. Tiago Menor da ilha da Madeira, determinada por patente do geral da Ordem, em 5 de junho de 1683, e confirmada por Inocêncio XI, a 30 de junho de 1683, pela qual os Conventos da Madeira voltaram a ser separados da província de Portugal. A situação foi sancionada por resolução régia de 6 de maio de 1688, ficando a nova custódia sob proteção régia, por alvará de 23 de janeiro de 1689, que colocava o Convento de S.ta Clara na dependência do custódio do Convento de S. Francisco. A situação levou a confrontos entre os frades e as freiras, com interferências dos primeiros nas eleições e na organização interna do Convento das Clarissas, que muito “escandalizavam” a população. O assunto já levara a um alerta do príncipe regente D. Pedro para o Gov. João de Saldanha da Gama, em 1673 (ABM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 1215, fl. 63), mas também tocava ao prelado, que envidou esforços no sentido de serenar os ânimos entre as duas comunidades seráficas. A segunda razão dos problemas com os Franciscanos envolvia, periodicamente, as violentas e inoportunas pregações na Sé, cujo púlpito lhes estava atribuído, pelas quais eram inclusivamente pagos, mas que se afastavam por vezes bastante da contenção a que deviam obedecer. O assunto voltaria a agudizar-se poucos anos depois, sendo objeto de acórdão do cabido, de 16 de janeiro de 1684, onde se refere “que o púlpito não era lugar de despiques”, a propósito da contenda pessoal, e perfeitamente privada, entre dois pregadores franciscanos, os padres Fr. Raul de Santo António e Fr. Manuel de Santo Inácio, que aproveitaram os seus sermões para, do púlpito da Sé, fazerem ataques mútuos (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, fls. 32ss.). O cabido decidiu a suspensão dos Franciscanos, voltando a advertir o padre comissário do Funchal para, no prazo de 15 dias, enviar à Catedral religiosos de “melhor talento” de outros Conventos. Insistia o cabido que, caso contrário, preencheria o lugar de pregador “em sujeitos, que com mais exemplo e aproveitamento dos ouvintes, pregassem a palavra de Deus” (Ibid., fls. 47ss.). Os avançados anos do prelado e, muito especialmente, o desgaste sofrido com os problemas em que se viu envolvido com os Franciscanos, e outros, como a censura régia pela excomunhão lançada sobre o governador, que prendera, sem sua autorização, o deão da Sé, Pedro Moreira (c. 1600-1674), fizeram com que, depois de uma breve enfermidade, D. Fr. Gabriel de Almeida (c. 1600-1674) falecesse no Funchal, a 13 de julho de 1674, com pouco mais de dois anos de episcopado. Mais tarde, também a tradicional mobilidade da comunidade franciscana era alvo de provisões do Desembargo do Paço, de 24 de setembro de 1718 e de 21 de outubro de 1729, determinando-se que se deveria notificar os capitães dos navios e os respetivos cônsules, para que não levassem “religioso algum” sem expressa licença dos seus prelados, ou seja, dos superiores dos conventos, “sob pena pecuniária e de prisão”. O segundo diploma, dirigido ao custódio provincial, especifica inclusivamente que faltar ao cumprimento daquela provisão implicava a pena de cem mil réis “para os cativos” no Norte de África e um mês de cadeia (BNP, IGRAPRF, 1775, 88v.). Mas os Franciscanos eram “uma força da natureza” e, pouco tempo depois, o governador e capitão-general Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, a 21 de junho de 1738, queixava-se para o secretário de Estado, em Lisboa, da fuga da Madeira de Fr. Álvaro de São Luís (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 45). O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ocupou um importante papel na história da Madeira ao longo de todo o Antigo Regime. A igreja do Convento era o verdadeiro panteão de grande parte das mais antigas famílias do arquipélago, e nas suas Confrarias tinham assento não só os principais membros dessas famílias, como os quadros superiores da Ilha, incluindo governador, bispo e provedor da Fazenda, aspeto que persistiu inclusivamente até à extinção do Convento. Em 1722, Henrique Henriques de Noronha descreve o Convento, começando pela cerca e claustro, afirmando que tem um chafariz no meio “e um asseado jardim”, para o qual davam as varandas, sustentadas por colunas “de cantaria fina”. Para o claustro davam a sacristia e as casas da Confraria da Senhora da Soledade e dos Irmãos Terceiros, “ambas custosamente asseadas”, a última, em princípio, dedicada depois a Nossa Senhora da Conceição (NORONHA, 1996, 234). Refere o cronista que o Convento deveria ter, pelos seus estatutos, 50 religiosos, mas tinha então muitos mais. A igreja era de uma só nave, com quatro altares de cada lado da nave, dois colaterais e altar-mor, referindo Noronha que, em tempos, o cadeiral tinha ficado na capela-mor, mas que o removera Fr. Diogo Nabo antes de 1554, ampliando então aquela capela e passando a entrada principal para a fachada sul, devendo o cadeiral do coro ter passado para o fundo da nave, a poente. O altar-mor tinha “nobre retábulo”, já dotado de tribuna, e a mesma estava “coberta por excelente pintura do Santo Patriarca” (Id., Ibid., 236) dos Franciscanos, cuja pintura não sobreviveu. Toda a igreja fora azulejada em 1632, incluindo a capela-mor, onde tinham sepultura os religiosos, como era hábito nas casas franciscanas, tendo as armas dos Costa nas paredes e, ao centro, a sepultura dos fundadores Luís Álvares da Costa e Francisco Álvares da Costa, com a indicação da data de 1473, coberta por laje de brecha calcária da serra da Arrábida, que se encontra no cemitério de S. Martinho. O altar colateral do lado do evangelho era dedicado a St.o António “de Pádua, imagem milagrosa” (Id., Ibid.), como se podia constatar, segundo o cronista, pelos inúmeros votos mandados pintar e colocados na parede junto do mesmo altar. Fora fundado por Rui Gonçalves de Velosa, filho único de Gonçalo Anes Veloso, escudeiro do infante D. Fernando e fundador do Hospital e capela de S. Bartolomeu. O fundador deste altar encontrava-se sepultado aos pés do mesmo, com sua mulher Leonor Dória. No altar colateral do lado da epístola, dedicada às Almas Santas, onde figurava o Senhor do Milagre, “que representando estar morto tem a boca aberta, como quem fala”, encontrava-se sepultada, em frente, D. Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, que fora mulher de Martim Mendes de Vasconcelos, o Velho. Ao seu lado, e numa laje flamenga, com “lâminas de bronze” e uma figura feminina a rezar, estava sepultada Joana Valente, “devota das Chagas de Cristo” (Id., Ibid., 236-237), que fora a primeira mulher do terceiro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). Distribuídas pela nave da igreja, do lado do evangelho, encontrava-se a capela do Espírito Santo, depois também dos mártires de Marrocos, que fora fundada por D. Maria de Bettencourt (c. 1430-1491), mulher de Rui Gonçalves da Câmara (c. 1430-1497), mas cujo marido que não estava ali sepultado, dado ser capitão da ilha de São Miguel, nos Açores. Na parede lateral, estava um brasão com o leão de negro e rampante, armado de vermelho, dos Bettencourt, a “agarrar” uma flor-de-lis, símbolo da ligação desta linhagem à família real de França. Seguia-se a capela de N.a S.ra dos Anjos, mandada edificar por Manuel de Amil (1509-1585), filho do bacharel João Fernandes de Amil (c. 1460-c. 1520), que fora o primeiro provedor da misericórdia do Funchal. A terceira capela do lado do evangelho era dedicada a S. João Batista, tendo sido fundada pela família Mondragão e da qual era então administrador Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt Machado (1644-1717), pai da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1789). A última capela era dedicada a S. Diogo, “que antigamente se chamou de Santiago” e fora instituída por Lourenço da Gama Pereira (c. 1521-1604), que ali se encontrava sepultado com a primeira mulher, Águeda Teixeira, e a segunda, Isabel de Mondragão. O instituidor era irmão do célebre António da Gama Pereira (1520-1595), desembargador do Paço na época de Filipe II de Castela, e que “dispôs as ordenações do reino” (NORONHA, 1996, 238-239) as famosas Ordenações Filipinas, terminadas e aprovadas em 1595, embora só editadas em 1603, elaboradas em colaboração com Damião de Aguiar e Jorge Cabedo de Vasconcelos, que Noronha não cita. Rainha Santa Isabel. 1640. Arquivo Rui Carita A primeira capela do lado da epístola devia corresponder ao inicial braço do transepto, sendo citada como “maior que as demais, custosamente ornada e com porta travessa para o adro”. Era dedicada à Rainha S.ta Isabel e encontrava-se entregue aos Irmãos Terceiros de S. Francisco, “e ali têm enterro os que querem” (Id., Ibid.). Desta capela deve restar a magnífica imagem da Rainha Santa, que a tradição dá como proveniente do Convento da Encarnação, mas que tem muito mais probabilidades de ser desta capela, até porque desde os inícios do séc. XX se encontrava no Museu Municipal, onde podia ter chegado pelos Irmãos Terceiros, antes de ter figurado no antigo Museu da Cidade nos inícios da déc. de 80 do séc. XX. Seguia-se a capela de N.a S.ra da Conceição, “imagem de grande devoção”, onde existiam as sepulturas de António da Silva Madeira e de Jerónimo Pires do Canto, que, por se terem extinguido os herdeiros, ficara devoluta para o Convento. A terceira capela era de N.a S.ra da Encarnação, fora instituída por Diogo de Barcelos e passara depois para Jerónimo Vieira da Costa. A quarta capela era de N.a S.ra da Graça e tinha sido edificada por João Gomes da Ilha (c. 1430-1495), o Trovador, pajem do livro do infante D. Henrique, e que passou depois ao seu filho Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1460-1544), que fora vedor das obras da Sé. Por baixo desta capela ainda havia outra, mais pequena, “a qual edificaram de moderno” (Id., Ibid.) os irmãos da Confraria de S. Benedito, no dizer do cronista, pelo que seria capela levantada já nos inícios do séc. XVIII. Esta devoção era, em Portugal e no Brasil, geralmente dos escravos forros, havendo uma imagem deste frade na capela do Corpo Santo, mas não se conhecendo qualquer documentação a esse respeito para o Funchal. À volta dos claustros ainda existiam mais capelas, a começar pela levantada no chamado “capítulo velho” por Simão Acciauoli, dedicada a Nossa Senhora da Piedade, “que é de excelente pintura”, no dizer do cronista, que só teve idêntica referência para a pintura do retábulo-mor. No “capítulo novo” ficava a capela da Virgem Santíssima e, anteriormente, dos mártires de Marrocos, que, segundo a tradição, teriam passado depois para a capela do Espírito Santo, instituída por Maria de Bettencourt. Nesta capela tinham os religiosos “a sua aula, decentemente ornada”, e igualmente muitas “sepulturas nobres, cujos donos dizem os seus letreiros”. No andar superior ainda existiam mais capelas, como a de N.a S.ra da Estrela e, com especial destaque, “outra que chamam” de N.a S.ra da Escada, ou do Poço, com “imagem de muita devoção” (Id., Ibid., 241), curiosamente uma imagem, muito provavelmente flamenga, em pedra, o que, até por razões de transporte, não é comum. Na passagem dos claustros para a portaria ainda ficava a capela de N.a S.ra da Piedade, acerca da qual havia crentes que afirmaram “que a viram chorar” e, na sua sequência, a capela de S. Caetano. Na portaria havia a capela do Senhor Crucificado e, da parte de fora, outra capela de S. João Batista, “cuja imagem se tirou do mar, misteriosamente”. Igualmente da porta de fora da portaria e pegada com esta estava a capela de N.a S.ra de Jerusalém, “edificada com as próprias medidas do Santo Sepulcro”, seguindo-se logo outra capela da Virgem da Piedade, “onde concorre a todas as horas muita gente”. O mesmo se passava com a capela das Almas, que lhe ficava contígua, sendo “as suas paredes interiores cobertas artificiosamente de ossos e caveiras organizados” (Id., Ibid.). A capela dos Ossos dos Franciscanos do Funchal resistiu à reconstrução dos finais do séc. XVIII, sendo referida na Viagem à Cochinchina do botânico e pintor sir John Barrow (1764-1848), em 1792 e 1793, sendo inclusivamente representada em litografia colorida na edição de 1806 (BARROW, 1806, 37A). Apresenta retábulo ao gosto dos finais do séc. XVII e inícios do séc. XVIII, com pintura de S. Miguel das Almas e duas grandes imagens sobre a mesa do altar, uma das quais parece ser de S. Sebastião. As paredes e o teto encontravam-se totalmente revestidos de caveiras enquadradas por ossos longos, talvez tíbias ou perónios, sobre lambril pintado ou revestido a azulejos. A vida do Convento de S. Francisco foi de alguma forma contida na vigência do bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), freire da Ordem de Cristo, que chegou ao Funchal a 22 de junho de 1725, não se registando nesse episcopado especiais problemas. Dos poucos livros deste Convento que chegaram aos nossos dias consta o Livro das Patentes, iniciado em 1732 por Fr. Jorge dos Serafins, que fora examinador e definidor das custódias açorianas franciscanas e então custódio provincial da de S. Tiago Menor da ilha da Madeira. Das várias provisões lançadas pelo custódio provincial, a primeira aborda o inteiro cumprimento da celebração das missas a que os Franciscanos se encontravam obrigados, incluindo as do dia de finados, no qual deveriam dizer missa “pelas benditas almas do Purgatório”, assunto que os “reverendos prelados locais, respeitando a indigência dos conventos”, descuravam, inclusivamente deixando que alguns clérigos pobres cobrassem dinheiro pelas mesmas, em nome individual da alma encomendada, o que se proibia terminantemente a partir do dia 1 de novembro seguinte, pois essas missas eram em nome “das almas de todos os finados defuntos” (ANTT, Conventos, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 1, fl. 7). A segunda provisão aborda o inveterado costume de muitos Franciscanos divulgarem “fora de portas” o que se passava no Convento, tal como as possíveis culpas de uns e de outros. O assunto já teria ido a capítulo e, em “nome do crédito dos religiosos desta Santa Custódia”, Fr. Jorge dos Serafins ameaçava com “pena de excomunhão maior, ipso facto incurrenda” todo aquele que revelasse a seculares, a religiosos de outra Ordem e a religiosas “defeito algum de seus irmãos” de que se pudesse atribuir culpa grave. Nessa sequência, advertia igualmente os padres pregadores e confessores que deveriam renovar as suas patentes 15 dias antes de as mesmas findarem, ou seja, no final do ano. As patentes deveriam ser entregues ao seu secretário, o P.e Fr. João de Santa Rosa, para serem avaliadas, o mesmo se passando com os novos padres que, no último capítulo, tinham sido instituídos “confessores de seculares”, e que até ao final de dezembro se deveriam pôr “expeditos para fazerem o seu exame”. Tendo tido conhecimento da falta de inúmeros livros nas várias livrarias dos Conventos da custódia, assunto que lembrara aos vários responsáveis e sobre o qual inclusivamente o Santo Padre já se pronunciara, listava vários dos livros em falta e voltava a ameaçar com pena de excomunhão os infratores (Id., Ibid., fol. 8). Com o novo bispo do Funchal, D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), que chegou à Ilha a 5 de setembro de 1741, a situação de início ainda teve outra cobertura, pois o prelado era Franciscano e vinha acompanhado de dois padres pregadores, igualmente “frades menores”, para o ajudarem na sua missão: Fr. Lourenço de Santa Maria e Fr. João do Sacramento. O novo bispo e os padres pregadores recolheram-se durante 12 dias no Convento de S. Francisco do Funchal, pelo que D. Fr. João do Nascimento só tomou posse da Diocese a 17 desse mês. De imediato, fez publicar uma carta pastoral, tal como fizera o seu antecessor, especialmente dedicada à “reforma dos costumes, à extirpação de abusos, restauração, perfeição e esplendor do culto divino”, assim como outra, dirigida ao cabido da Sé, introduzindo algumas modificações nos serviços do culto ali realizados (APEF, cx. 122, doc. 3, fls. 21v.-22v.). Ao longo do seu episcopado, no entanto, reacenderam-se alguns problemas, com situações que já vinham do anterior, como a demência do P.e Fr. João de São José Ferraz, cuja interdição foi solicitada pelo procurador-geral da custódia da ilha da Madeira, o P.e Fr. José da Conceição, em 1748, ou os incidentes relacionados com a expulsão da ilha de dois franciscanos, Fr. João de São José e Fr. José do Rosário, em 1755. Por vezes, era ao contrário, como em 1753, quando o custódio provincial, então Fr. José de Santa Maria, solicitou aos visitadores da mesma custódia no continente que obrigassem três religiosos do Funchal, que se encontravam em Lisboa, a regressar ao Convento, dado já ter expirado há muito o prazo da licença que lhes fora concedida. O controlo das instâncias superiores apertou-se ao longo do séc. XVIII, acusando os visitadores quase sempre os Franciscanos de “relaxados”, quer na forma como se comportavam dentro do Convento, quer em relação às eleições, aos seus deveres, etc., como se queixa em carta do Funchal, de 28 de maio de 1753, o visitador Fr. José da Natividade ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real, enviando, inclusivamente, uma representação do custódio provincial Fr. José de Santa Maria (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 13). Os problemas envolviam mesmo a atividade exterior dos Franciscanos, como se queixa depois o Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804), futuro barão de Alverca, em ofício de 21 de novembro de 1768, a respeito de um caso contrabando de tabaco, envolvendo o guardião do Convento, Fr. António de São Guilherme. O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ultrapassou sempre os pontuais problemas em que se foram envolvendo alguns dos seus membros, pois manteve-se, até à sua extinção, graças à capacidade de intervenção dos Franciscanos e à força das suas Confrarias, como um dos mais importantes centros de decisão políticos e económicos da Madeira. Assim, embora o gabinete pombalino tenha decretado a restrição de entradas nos conventos, com a subida ao trono de D. Maria I, em março de 1777, e o afastamento do marquês de Pombal, logo se envidaram esforços para ultrapassar a situação, sendo autorizada a entrada de 12 noviços por ano no Convento de S. Francisco do Funchal. Em carta datada do Convento do Funchal, de 8 de junho de 1777, o vigário custódio provincial Fr. Manuel de São José acusava a receção da autorização régia e agradecia. O Convento devia ter por essa data cerca de 100 religiosos, entre padres professos, leigos e noviços. A documentação das suas Confrarias, na maior parte, não chegou aos nossos dias, mas mesmo numa altura de franca recessão desse tipo de atividades, como no consulado pombalino, sucederam-se as iniciativas desse género. Por petição de 23 de março de 1765, e.g., o morgado João José de Bettencourt de Vasconcelos (1715-1766), familiar do Santo Ofício e administrador da capela de S. João Batista da igreja de S. Francisco, encabeçava uma lista dos principais proprietários madeirenses para fundarem uma nova Confraria de Nossa Senhora dos Anjos, Mãe dos Homens, e de S. José, Rei dos Homens. A petição era dirigida a Fr. António da Encarnação, vigário custódio da província, e incluía inúmeros eclesiásticos, como os padres doutores António José de Vasconcelos, João Henriques de Aragão e Manuel José da Rosa, Domingos João Alves da Silva Barreto, o Cap. António Vogado Teles de Meneses e os importantes comerciantes Pedro Jorge Monteiro, José João Veríssimo e José Fayan, entre outros. Os estatutos da Confraria seriam aprovados a 15 de fevereiro de 1767, e, tendo já falecido o promotor, era eleito como prefeito da mesma o então governador e capitão-general José Correia de Sá, enviado à Madeira para a extinção da Companhia de Jesus, que assina juntamente com o secretário António João Spínola de Macedo, para além dos outros membros da mesa. O documento é ainda reconhecido a 5 de março seguinte, pelo tabelião de notas Bartolomeu Fernandes e por Domingos Afonso Barroso, provedor da Fazenda. A aprovação do Rei D. José ocorreu a 27 de outubro seguinte e foi registada no Funchal a 23 de abril de 1769, tendo sido eleito para prefeito o então governador e capitão-general João António de Sá Pereira, servindo de secretário o padre genealogista José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, filho do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos e depois fidalgo-capelão, por nomeação de 5 de fevereiro de 1782. Armas de Mouzinho de Albuquerque. Arquivo Rui Carita A importância das Confrarias do Convento de S. Francisco está ainda patente na confraria de N.ª S.ra da Soledade, que, nos finais do séc. XVIII, assumiu a tradição de integrar sempre como irmãos o governador da Madeira e a mulher, quando o acompanhava, elaborando artísticas folhas aguareladas com as armas dos mesmos. A tradição manteve-se até à extinção do Convento, sendo a última folha dedicada ao prefeito liberal e governador militar Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846) – e D. Ana de Mascarenhas de Ataíde –, que, a 14 de março de 1835, entrou como “irmão protetor e presidente da confraria”, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da mesma Confraria” (ARM, Governo Civil, liv. 235, fl. 71). Seria Mouzinho de Albuquerque, no entanto, como prefeito da província, poucos meses depois, em agosto desse ano, a determinar as instruções para a extinção do Convento e, logicamente, da Confraria da Soledade. Os elementos chegados até nós não nos permitem uma avaliação mínima da vida económica dos Franciscanos do Funchal. Os livros das Confrarias são muito escassos e os de “receita e despesa” quase inexistentes. A vida do Convento não se afastava, no entanto, da dos conventos de S. Bernardino de Câmara de Lobos ou da Piedade de Santa Cruz, mas era mais complexa, dado o maior número de frades e, também, dada a sociedade urbana e a classe social que serviam e onde se inseriam. Existem dois livros de sacristia de “Registos de Missa” que dão uma pálida ideia do movimento do Convento, que celebrava semanalmente, nos finais do séc. XVIII, quase 100 missas, enquanto S. Bernardino, na mesma época, e.g., celebrava entre 20 e 30, embora os preços fossem semelhantes: na generalidade, entre $200 e $300 réis a missa. Na primeira semana do mês de agosto de 1797, v.g., celebraram-se 85 missas, sendo 7 pelas obrigações do Convento, 19 pelas obras pias, 34 pelas capelas, 5 pelas Confrarias e 2 pelos frades. Houve ainda uma celebrada na Festa do Ilhéu, provavelmente a festa de Nossa Senhora da Conceição, e que deve ter custado 1$500 réis, dado envolver a deslocação, e 15 missas dos “ofícios de frade e de grade”, que é possível que correspondam às missas em que é dada a comunhão aos fiéis na grade. Somente foram contabilizadas 14 a $200 réis, sendo as restantes das obrigações gerais do Convento, rendendo o conjunto 4$300 réis. Celebraram missa nessa semana 23 religiosos, incluindo o custódio provincial, o guardião, “o mais digno”, etc., tendo o domingo 20 missas, o maior número, rondando as 10 a 12 nos restantes dias da semana (ANTT, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 2, fl. 1). Na semana seguinte, a segunda semana de agosto de 1797, os números foram semelhantes, celebrando-se 95 missas, com um “noturno das Almas”, obrigação do Convento, em princípio, porque não contabilizado, rendendo nove missas a $300 réis e outras seis a $200, num montante de 3$900 réis (Ibid., fl. 1v.). Na terceira semana, celebraram-se 79 missas, uma com “com festa na Fortaleza”, que deve ser a de S. Lourenço e que deve ter rendido $800 réis, embora tenha havido outra, não especificada, que rendeu 450, contabilizando-se, com mais cinco missas a $300, duas a $250 e nove a $200, 5$050 réis (Ibid., fl. 2). Nos inícios do séc. XIX, os preços subiram em relação ao século anterior, passando as missas a render entre $300 e $500 réis, pelo que, embora não havendo um significativo decréscimo no número geral das mesmas, deu-se um franco aumento do montante global cobrado. Na quarta semana de julho de 1809, e.g., celebraram-se 87 missas, entre as quais umas de obrigação do Convento e 52 de grade, 1 a 1$000 réis e 51 a $400 réis, somando 21$400 réis, montante muito acima do cobrado semanalmente nos finais do século anterior. Para os anos seguintes, existem informações gerais da vida económica do Convento, entre 1809 e 1832, correspondendo, assim, sensivelmente à fase final da vida do Convento. A descrição do tipo de missas é mais sucinta, deixando de se referir as missas das Confrarias, provavelmente incluídas nas capelas, e aumentando o preço das mesmas, cobrando-se no mínimo 400 réis por missa. Os totais semanais passaram a rondar os 20$000 réis e, por mês, as missas renderam à sacristia quantias acima dos 80$000 réis. Para estes anos, as despesas gerais do Convento não se afastam especialmente, e.g., das do de S. Bernardino de Câmara de Lobos. No mês de julho de 1809, o Convento teve uma receita de 360$800 e uma despesa de 287$720. O Convento já vinha com um saldo positivo do ano anterior, “de alsas”, como se dizia, de 1808$236, ficando então com 1881$316, como certificam o guardião, Fr. Matias de S. Boaventura, o síndico, Pedro de Santa Ana, os discretos Fr. Manuel da Piedade, Fr. Januário das Chagas de São Francisco, Fr. António de São Joaquim e Fr. António de N.ª S.ª das Dores (Ibid., liv. 5, fl. 2). Tal como nos restantes conventos franciscanos masculinos, as principais receitas vinham das missas e cerimónias realizadas fora do Convento e da venda de hábitos de burel e hábitos de saial, com o pormenor de tanto se terem vendido os de saial para enterro de homens, como os de burel para enterro de mulheres, o que até então não se tinha verificado. Os preços também são muito mais altos que os praticados em S. Bernardino nos finais do século anterior: entre 3$000 a 6$000 réis, em S. Francisco, não incluindo, em princípio, acompanhamento. Por “um hábito de burel e três religiosos, a seiscentos réis cada, para Sabina, da freguesia de São Martinho”, e.g., só cobraram 4$800 réis, e por um hábito de saial para João Paulo Medina, sem referir acompanhamento, cobraram 6$000. Os Franciscanos cobraram 9$400 réis “por merecido” dos religiosos que tinham ido à festa da Visitação na misericórdia do Funchal, 18$000 pela novena e procissão do Carmo e mais 10$000 pelas matinas da dita festa. Nas despesas desse mês entrou essencialmente a aquisição de carne de vaca, que custou mais de 100$000 réis, tal como peixe, bacalhau, azeite, manteiga, queijos, toucinho, presunto, azeitonas, sal, milho, semilhas, couves, feijão, chá, açúcar, etc. Algumas aquisições vinham de fora, como as cebolas, compradas no Caniço, que tiveram um acréscimo de 2$000 réis, “pelo frete, carreto e pagamento do moço que tirou as cebolas do Caniço”. Nesse mês também se adquiriu cerveja e sabão, tal como se pagou $400 réis para amolar as navalhas de barba do irmão leigo Fr. José das Mercês. Também se adquiriram umas rodas para o relógio, que custaram 1$000 réis, tal como se pagou $400 pela montagem das mesmas e ao moço António de Aguiar seis meses e 20 dias, a 3$000 réis por mês, o que somou 20$000 (Ibid., liv. 5, fls. 1v.-2). A partir dos inícios do séc. XVIII, com a oficialização da custódia, tinha passado a Fazenda Real a tomar a seu cargo a manutenção destes edifícios e a assumir a reconstrução do Convento de S. Francisco do Funchal, dado o templo primitivo ser considerado acanhado e modesto. As obras do Convento tiveram início por volta de 1750, data do reenvio para o Funchal da planta efetuada pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), já devidamente corrigida, para o que D. João V tinha atribuído a valiosa esmola de 20.000 cruzados (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 973, fl. 112v.). O edifício teria então passado por várias ampliações, até para suportar a população de 100 religiosos, com admissão de 12 noviços em cada ano, autorizada a partir de junho de 1777. Em julho de 1780, deve-se ter inaugurado uma parte da construção, dado ter-se exumado, em 1880, uma inscrição alusiva a D. Maria I, ao Papa Pio VI e ao P.e Fr. Bernardo. A inscrição teria sido depositada no arquivo municipal, mas, segundo os autores do Elucidário, algumas décadas depois tinha desaparecido. No entanto, entre agosto e setembro já não havia dinheiro para continuar as obras, pedindo o principal do Convento a deslocação ao Brasil de dois irmãos leigos, para ali recolherem esmolas, certificando o velho mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins, a 19 de outubro desse ano, para a corte de Lisboa, que as obras ainda continuavam. No ano seguinte, voltou a haver pedidos de subsídios para as obras, requerendo os Franciscanos inclusivamente o edifício do extinto Colégio dos Jesuítas, dadas as obras e os vários cursos que lecionavam então em S. Francisco, motivando a troca de cartas entre o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro e o bispo do Funchal D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1710-1784), em 9 de agosto e 6 de novembro de 1781. Nesta sequência, igualmente requereu Fr. Manuel de São Boaventura “as sobras do subsídio literário e do almoxarifado” do Funchal, para se continuar a construção do novo Convento (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, docs. 588 e 599). A 10 de fevereiro de 1782, as obras passaram por novas alterações; o mestre das obras reais José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) refere alterações de custo. Face às dificuldades de obtenção de pedra, as obras e correriam o risco de parar, pois o pedreiro de Câmara de Lobos encarregado de a fornecer faltara ao ajuste. Alvitra-se, então, o trabalho das companhias de ordenança no retirar da pedra da pedreira, entendido como uma esmola das mesmas para os Franciscanos, o que foi autorizado pelo governador a 30 de agosto desse ano (ABM, Governo Civil, liv. 520, fl. 104). O Convento esteve assim em obras durante todo o final do séc. XVIII, possivelmente sob uma desastrosa administração, pelo que nunca chegou a ser acabada a enorme igreja, até à extinção dos conventos nos meados do séc. XIX, o que levou à sua demolição. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido como “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A extinção do Convento de S. Francisco do Funchal foi acionada pelo prefeito Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, em agosto de 1835, em articulação com Diogo Teles de Meneses (1788-1872), provedor da Alfândega (ABM, Alfândega do Funchal, liv. 675), tendo decorrido sem especiais dificuldades e quase sem qualquer interferência da autoridade religiosa. O Convento de S. Francisco do Funchal foi desocupado por forças militares a 9 de agosto de 1834 e, pouco mais de 15 dias depois, a 27 de agosto, o prefeito mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Dado não terem ocorrido problemas, nesse mesmo dia 27 de agosto, o prefeito enviava para o provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851), instruções precisas sobre a execução do decreto de 30 de maio sobre a extinção dos conventos, para que tal se efetuasse nos restantes conventos do concelho do Funchal. As instruções determinavam que se deveria fazer o inventário dos bens do Convento em causa, entregando-se ao representante do cabido da Sé do Funchal as alfaias religiosas, os paramentos, “ornatos dos templos e utensílios de culto”. As imagens e as cruzes, porém, deveriam permanecer onde estivessem. As igrejas deveriam ser fechadas, ficando as chaves à disposição do prefeito, mas na posse do provedor do concelho, que elaboraria, entretanto, uma relação dos religiosos de cada convento. No espaço de um mês, os religiosos deveriam apresentar-se na prefeitura, com uma relação testemunhável, para que se verificasse se teriam direito à pensão anual para a sua sustentação, prevista no artigo 4.º do decreto de 30 de maio anterior. Luís Mouzinho de Albuquerque recomendava que a diligência deveria ser feita com “a mais escrupulosa atenção”, em que tudo fosse praticado com a maior “circunspeção, prudência e urbanidade”, para que de maneira alguma houvesse lugar a “escândalos dos povos ou pretexto à maledicência” (VERÍSSIMO, 2002, 69-77). As imagens e muitas das pinturas, entretanto, foram transferidas para outros locais, como a imagem do Senhor do Milagre do Convento de S. Francisco, que teria falado algumas vezes com Helena Gonçalves da Câmara – razão pela qual recebeu essa designação –, e que foi transferida para a Sé, inclusivamente com o diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, assim como outras alfaias, pelo menos entre 1848 e 1850, na vigência do governador civil José Silvestre Ribeiro (1807-1891), para a igreja do Colégio do Funchal, que nesses anos foi reabilitada e entregue à Diocese. A transferência das pinturas e imagens que ainda restavam nas instalações do Convento para a igreja do antigo Colégio dos Jesuítas deve datar de fevereiro de 1847, tendo sido acordada entre o governador e o bispo D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1797-1862), quando se preparou a instalação, em S. Francisco, do Asilo de Mendicidade do Funchal, com cerca de 400 indigentes, cuja administração foi entregue ao prelado e cuja inauguração se fez a 27 de março desse ano (MENESES, 1848, 25-30 e 50-54). Algumas das telas existentes nesta igreja, como parte da coleção mariana da sacristia, senão mesmo toda, a tela dos mártires de Marrocos, a de Nossa Senhora do Pópulo, etc., pertenceram, por certo, ao Convento de S. Francisco, pois não fazem parte dos sucessivos inventários do Colégio, podendo a tela de N.ª S.ra da Porciúncula ter vindo da capela do Hospício da Ribeira Brava ou também de S. Francisco. O mesmo deve ter acontecido com algumas imagens, como a de S. Luís, Rei de França, em barro, aparentemente de produção regional, que se encontra na sacristia do Colégio, e o conjunto de imagens de roca, que se encontram no Museu de Arte Sacra do Funchal. O mesmo se teria passado com o conjunto de bustos relicários dos mártires de Marrocos, que foram descobertos quase emparedados na torre do Colégio e que igualmente transitaram para aquele Museu. Outra parte do espólio do Convento de S. Francisco transitou para o Convento de S.ta Clara, como foi o caso dos dois grandes painéis de azulejos de S. Francisco e de S.ta Clara, de oficinas de Lisboa (1740-1760), posteriormente remontados na portaria daquele Convento. No coro de baixo de S.ta Clara, algumas das pinturas que decoram as paredes laterais, segundo a tradição, terão vindo também de S. Francisco. A maioria das pratas, entretanto, fora arrecadada na Alfândega, e, em 28 de maio de 1836, elas seguiram para a Casa da Moeda de Lisboa, onde o antigo prefeito da Madeira fora provedor. Sem especial explicação, somente em virtude da portaria de 9 de junho de 1886, os livros do Convento de S. Francisco foram entregues à repartição da Fazenda do Funchal, sendo posteriormente incorporados na Torre do Tombo, juntamente com os da Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, mas não os que estavam no Governo Civil, que passaram, depois, ao Arquivo Regional da Madeira, nem a biblioteca, que deve ter recolhido ao paço episcopal e ao Seminário, peregrinando e perdendo-se pelos vários locais por que quer o paço, quer o seminário foram passando, assim se explicando que quase nada da importante documentação bibliográfica ali guardada tenha chegado até nós. O edifício foi logo disputado pelos novos poderes liberais instituídos, como a Câmara Municipal do Funchal, que o requereu e o recebeu por decreto de 7 de novembro de 1844, para construção, nesse espaço, de um amplo edifício destinado à instalação da nova Câmara Municipal e dos tribunais judiciais, mas a situação de instabilidade política retardou o projeto. O concurso público para apresentação de um projeto só se veio a realizar em 1864 e, a 11 de março de 1866, saía da Sé do Funchal “um luzido cortejo” presidido pelo bispo do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que fora bispo de Cabo Verde, cortejo onde se incorporaram as autoridades superiores do distrito, procedendo ao lançamento da primeira pedra do novo conjunto de edifícios, que não passou da primeira pedra (SILVA e MENESES, 1998, I, 313). [caption id="attachment_14397" align="alignleft" width="199"] Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita.[/caption] [caption id="attachment_14394" align="alignleft" width="226"] Demolição do Convento de São Francisco[/caption] Nos anos seguintes, os edifícios do velho Convento arruinavam-se progressivamente, mas só devem ter sido demolidos nos inícios da déc. de 70, pois restam algumas fotografias do conjunto, ainda parcialmente de pé. Nos anos seguintes, parte da cerca foi dando origem aos novos arruamentos, depois as ruas Hermenegildo Capelo, Serpa Pinto e Conselheiro José Silvestre Ribeiro, e, por volta de 1880, ao jardim municipal e ao teatro municipal. Do conjunto edificado parecem só restar o brasão de armas nacionais e franciscanas, no canto sudeste do jardim, e o chafariz da cerca do Convento, que nos inícios do séc. XIX já estava na vizinha praça da Constituição, então passeio público, servindo de base ao conjunto do largo do Chafariz, cuja pilastra superior parece ter sido encomendada para o monumento à Constituição de 1820 – chegando ao Funchal depois da abolição da mesma, nunca chegou a ser montada no monumento, cuja base também já havia sido demolida.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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convento das mercês

Com a prosperidade de algumas famílias madeirenses na segunda metade do séc. XVII, um certo fervor religioso e as necessidades da época de concentração de propriedades nos morgadios, que colocava a maior parte dos elementos femininos numa situação de resguardo social, também a família Berenguer de Leminhana, herdeira de um importante morgado na Calheta, fundou um pequeno recolhimento, em terreno quase anexo ao Convento de S.ta Clara. Este convento, tal como o da Encarnação destinava-se a “donzelas nobres”, havendo assim necessidade de outro, a que, em princípio, tivessem acesso as filhas das restantes famílias. Acrescia ainda que, com o tempo, a não obediência a algumas regras conventuais nesses conventos levantara algumas críticas e apontava também para a necessidade da fundação de um mosteiro de regras mais rígidas. No entanto, muito provavelmente para além de tudo isso teriam estado questões de prestígio social e de afirmação económica por parte da família dos fundadores. Neste quadro nasceu a fundação do que foi inicialmente recolhimento de N.ª Sr.ª das Mercês, em 1654, por Gaspar Berenguer de Andrada (1603-1691) e sua mulher Isabel de França Andrade (c. 1610-1659), senhores do morgado do Lombo do Doutor, fundado por Pedro Berenguer de Leminhana e ao qual se juntara a terça de Rodrigues Annes, “o coxo”, na Ponta do Sol. A ideia inicial era fundar uma capela e só depois se associou a ideia de um recolhimento religioso, dentro de uma regra mais rígida que a regra urbanista de S.ta Clara, e conseguindo-se, nessa sequência, alvará régio a 25 de agosto de 1661, confirmado em 17 de agosto de 1665 pelo Papa Alexandre VII, que elevou assim esta casa a mosteiro da primeira ordem de S.ta Clara, ou da Regra da Terceira Ordem de S. Francisco, de severa e estrita observância, as Capuchinhas, que deste modo se manteve através dos tempos até ao momento da sua extinção, mas prolongando-se depois nos novos mosteiros da mesma regra: o de S.to António do Lombo dos Aguiares e o da Piedade, na Caldeira de Câmara de Lobos, e inclusivamente para os Açores e para o Brasil. A família Berenguer distinguira-se francamente nas terras do Brasil, onde o fundador do Convento estivera na luta contra os Holandeses, encontrando-se esta família ligada, e.g., a João Fernandes Vieira (c. 1613-1681), que se casara com Maria César, filha de Francisco Berenguer de Andrade, tio do fundador do Convento e distinguindo-se igualmente naquelas terras outros membros, como o P.e Agostinho César e os seus irmãos Francisco Berenguer de Andrade e Luísa Berenguer, que se casou com o capitão-mor de Paraíba Manuel Pires Correia. Os instituidores encontravam-se ligados à família Lira e França e esta, por seu lado, também à família de Diogo Fernandes Branco (1583-1644), um dos mais destacados comerciantes da sua época e que se associou a João Fernandes Vieira. Não teriam sido, em princípio, os interesses económicos a presidirem decididamente à ideia de fundação do Convento das Mercês, pois que face à regra por que se optara, não podia possuir bens de raiz, pautando-se toda a sua vida económica por uma enorme austeridade. No entanto, também teriam pesado outros fatores de prestígio e afirmação social, patentes, e.g., nas dificuldades experimentadas logo nos primeiros tempos, inclusivamente, na legalização, pela autoridade eclesiástica, da capela inicial de N.ª Sr.ª das Mercês. As duas filhas de Gaspar de Berenguer e de Isabel de França, Maria e Margarida, e.g., haviam entrado para o Convento de S.ta Clara, onde haviam de professar e, se houvesse um recolhimento de que os Berenguer fossem patronos e instituidores, tal não só não acarretaria especiais encargos económicos, como configuraria outro protagonismo social. A doação do terreno para a capela teve a data de 4 de setembro de 1655 e, perante o projeto e o espaço da propriedade onde se deveria levantar, teria sido o P.e João Ribeiro da companhia de Jesus, primeiro confessor das freiras da Encarnação, a insistir com a doadora para o levantamento também, anexo à capela, de um recolhimento para “donzelas nobres” (NORONHA, 1996, 283). Os alicerces foram abertos a 12 de outubro de 1655, e a 20 do mesmo mês, com a assistência do governador general, Pedro da Silva da Cunha, do reitor do Colégio do Funchal, P.e Manuel Fernandes e demais nobreza local, foi celebrada missa, na qual pregou o cónego e escritor António Veloso de Lira (1616-1691), parente próximo de Gaspar Berenguer, altura em que se benzeu a primeira pedra e que foi colocada pelo governador, o qual mandou depois festejar o ato com salvas de artilharia da fortaleza de São João do Pico. Num curto espaço de tempo as obras iniciais encontravam-se em condições de receber as primeiras recolhidas, o que ocorreu no dia de Corpus Christi, a 15 de junho de 1656. Entraram “sete donzelas de exemplar virtude” (Id., Ibid.), entre as quais a irmã mais nova do fundador, sob o nome de Inês de Jesus, com Isabel da Cruz, Isabel de Jesus, Madalena do Sacramento, Catarina da Paixão, Maria da Encarnação e Isabel de São Francisco, que depois passou para o recolhimento do Bom Jesus da Ribeira. Nos meses seguintes ainda entrariam outras, perfazendo em pouco tempo o número de dezassete recolhidas. O recolhimento, entretanto, mesmo com o apoio, por certo, do Cón. Veloso de Lira, não tendo solicitado autorização ao vigário e provisor do bispado, o cónego e deão Pedro Moreira (c. 1600-1674), que aliás não havia estado no lançamento da primeira pedra, tal como parece não ter estado nenhum membro da comunidade franciscana, embora tenha estado presente o reitor do Colégio dos Jesuítas do Funchal, o que configurava, em princípio uma situação anómala, pelo que conheceu dificuldades de institucionalização pela autoridade eclesiástica. Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898) descreve, nos seus comentários à obra de Gaspar Frutuoso, as dificuldades de autorização levantadas pelo deão do Funchal na instituição do recolhimento da Mercês e na autorização da igreja ter sacrário, que só teriam sido ultrapassadas após um acidente ocorrido com o deão no Mar da Travessa, a caminho do Porto Santo. Segundo a lenda recolhida, provavelmente, nos escritos de um dos confessores do futuro Convento das Mercês, provavelmente o P.e Neto, a embarcação que transportava o Cón. Pedro Moreira ter-se-ia virado e, temendo o pior, o cónego teria evocado N.ª Sr.ª das Mercês, só então percebendo a reserva que estava a colocar à autorização canónica da capela e do recolhimento dos Berenguer. Regressado ao Funchal e aproveitando uma visita que efetuou à igreja matriz de S. Pedro, onde fora beneficiado, resolveu fazer uma visitação às Mercês, a 12 de fevereiro de 1658, autorizando a existência de sacrário na igreja. O deão e vigário geral Pedro Moreira teria ficado muito bem impressionado com o recolhimento, já organizado internamente com uma regente, auxiliada por uma vigária e uma escrivã, prometendo, inclusivamente, tomar as recolhidas “por filhas e súbditas em seu próprio nome e dos futuros bispos da diocese do Funchal” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, 268, 5v.), o que, em princípio era prometer demais, desde que se alcançasse licença do rei para se erigirem em mosteiro e com a regra depois determinada pela Santa Sé. Foi pedida licença a Lisboa para a instituição do mosteiro com o apoio do poderoso deão, o qual parece ter passado a uma grande proximidade da família Berenguer, vindo depois um dos irmãos do Cap. Berenguer a ser integrado no cabido da sé do Funchal, o futuro Cón. Bartolomeu César Berenguer. O pedido dos Berenguer, regente e recolhidas foi acompanhado de idêntico pedido do cabido, da câmara do Funchal, como “câmara da Ilha”, do governador e do provedor da fazenda. A partir de 1660, as recolhidas organizavam-se, inclusivamente, como instituídas em convento de capuchas e respeitando a mais rígida clausura, à semelhança do mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, dentro das normas da primeira regra reformada de S.ta Clara, embora sem terem ainda compromisso canónico. O nome de capuchinhas, quase de imediato, tornou-se uma referência e ficou como topónimo na travessa que passava a norte do futuro convento. O alvará régio emitido a 25 de agosto de 1661, embora só enviado de Lisboa a 20 de dezembro de 1663, fazendo referência ao pedido da Madeira, “por ser obra tão do serviço de Deus, Nosso Senhor e pia devoção dos moradores da Ilha”, ficando o mosteiro como professo na primeira regra de S.ta Clara, “assim como é o mosteiro da Madre de Deus desta cidade de Lisboa”, que também patrocinara a instituição (NORONHA, 1996, 284). Fica por padroeiro e fundador o Cap. Gaspar Berenguer de Andrade, pois, entretanto, já havia falecido Isabel de França. Ao mesmo padroeiro, para si e seus sucessores no padroado, ficavam “dois lugares de freiras para sempre”, estabelecendo-se um quantitativo de vinte e um membros para a comunidade capuchinha, que seria governada pelos prelados do Funchal e, na sua ausência, pelo deão “que ora é” e pelos vigários gerais que se seguirem e, faltando esses, pelas dignidades que se seguirem (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Em face da chegada do mesmo alvará, a 5 de julho de 1664, o Cap. Berenguer, a regente e as recolhidas solicitavam ao deão Pedro Moreira nova visita ao futuro mosteiro para autorização canónica. A visitação ocorreu a 21 de julho de 1664, depois de consultado o comissário do Convento de S. Francisco, indo o deão acompanhado pelo vigário de S. Pedro, freguesia de quem o futuro convento dependia, e pelo escrivão eclesiástico e de visitações, P.e Francisco da Fonseca. Entraram na igreja de N.ª Sr.ª das Mercês, “a qual achou muito ornada e decente”, por haver nela sacrário “como há, por sua licença”, onde se encerrava o Santíssimo, e no interior do recolhimento, referindo os dormitórios, o coro superior, o parlatório, o refeitório, a cozinha e a cerca, e “as mais partes altas e concernes à clausura das religiosas”. O experiente deão percebeu de imediato as limitações do local para um futuro convento de estrita observância, assunto que atravessará toda a história da instituição, determinando levantar o muro que corria até ao Convento de S.ta Clara, “seis a oito palmos” (cerca de 1,30 m a 1,75 m) e o que ia até às casas do Cap. Cristóvão de Atouguia da Costa, “oito a dez palmos” (entre 2,00 m 2,20 m), “por razão da rocha que está fronteira à cerca” donde se devassava “o serrado” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Na altura da visitação de junho de 1664, eram superioras do recolhimento a regente M.e Maria dos Prazeres, a vigária da casa, M.e Isabel da Cruz, e a escrivã, M.e Madalena do Sacramento. Nessa altura, assentou-se na necessidade de um confessor, um capelão, um feitor e um servente de fora. Os bens do convento foram determinados concretamente para a manutenção do futuro mosteiro, dotando-o o fundador e seus filhos, o ainda P.e Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer (1638-1719), futuro patrono e o P.e Gaspar Berenguer de Andrade, dado o falecimento dos três filhos mais velhos, a 1 de julho de 1665, feita na nota do tabelião Manuel Fernandes Silva, perante o deão e as recolhidas, com 14 moios de trigo das suas propriedades na Ponta do Sol, Calheta, Estreito da Calheta e Porto do Moniz. Avaliando-se cada moio em 18$000 réis, dava um total de 252$000 réis, o que correspondia a 630 cruzados anuais, soma bastante avultada para a época. Igualmente se assentou que a sustentação de cada freira seria anualmente de 25 cruzados; do sacerdote-confessor, 40; o capelão e feitor, 40 cada; e o servente de fora, 25. A dotação inicial de instituição da capela havia sido de três moios de trigo anuais, no morgado da Ponta do Sol, a que se somaram depois mais onze para o mosteiro em outras propriedades de várias freguesias, importância bastante significativa para a época e o que viria a criar inúmeros problemas aos descendentes. No testamento do herdeiro, José de França Berenguer, aprovado a 29 de março de 1719, refere-se que o dote feito “a que se obrigava todos os nossos bens quanto bastassem para renderem cento e trinta mil réis” (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 85), pelo que se deduz ter havido posterior alteração à inicial dotação de 250$000 réis, do que se haveriam de queixar depois as freiras. Tal não deixou, no entanto, de motivar futuras disputas entre os herdeiros, tal como entre o deão e o cabido pela superintendência sobre o Convento. Com a chegada do breve apostólico de 17 de agosto de 1665 ao Funchal, a 20 de dezembro do seguinte ano de 1666, comunicado às religiosas o seu conteúdo pelo deão, novamente se procedeu a auto de vistoria, então a 6 de junho de 1667, tendo comparecido a madre regente, Inês de Jesus; a vigária do coro, Catarina da Paixão; as M.es Maria do Sacramento e Isabel de Jesus, porteiras; a M.e Isabel da Cruz, vigária da casa; e a M.e Francisca do Espírito Santo, sacristã. O recolhimento tinha na altura 18 freiras e as preocupações dos visitadores foram para a segurança da clausura: se todas as portas tinham “bons ferrolhos e boas fechaduras”, se as várias grades eram de ferro e “bem fortes para a segurança da clausura interior”, etc. Foram vistos os dois dormitórios, com um total de vinte celas e mais três, da enfermaria, consideradas bastantes (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 14). Face à vistoria positiva do deão Pedro Moreira e do escrivão da câmara eclesiástica Francisco da Fonseca, foi dada autorização para a passagem à fundação do convento, tendo sido escolhida pelo deão em S.ta Clara a nova madre do Convento de N.ª Sr.ª das Mercês, a Ir. Branca de Jesus, filha de João Bettencourt de Freitas e de Isabel Moniz, que ali professara em 1636. Para a fundação foi escolhido o dia de S.to António, 13 de julho de 1666. Estando nesse dia a M.e Ana do Evangelista à porta do Convento de S.ta Clara, da parte de dentro inúmeras freiras e, na de fora, o deão e vigário geral, acompanhado de Fr. Domingos da Assunção, comissário do Convento de S. Francisco e do de S.ta Clara, libertada dos seus votos de obediência à abadessa, “fechada numa cadeira (que são as carroças desta Ilha)”, a mesma frase utilizada anteriormente na fundação do Convento da Encarnação, deslocou-se a nova madre “acompanhada de muito povo” para o Convento das Mercês (Ibid., liv. 14). A nova prelada era esperada à porta do mosteiro, na parte de dentro, pela regente M.e Inês de Jesus e demais irmãs, e entrando o deão na clausura, apresentou-lhes a nova madre “eleita e confirmada por ele”. Após algumas exortações retirou-se, sendo fechada a clausura e levando as irmãs a sua prelada para dentro do Convento, entoando o hino Te Deum Laudamus e “dando graças a Nosso Senhor pela grande mercê que lhes fez”, deu-se início à canónica fundação do mosteiro (APE, cx. 26, doc. 1). A fundação e a construção do Convento das Mercês encontram-se ligadas a várias lendas piedosas. A primeira refere o aparecimento de N.ª Sr.ª das Mercês a Isabel de França ou a “certo religioso, grande servo de Deus” (NORONHA, 1996, 283), a ser assediada por um “esquadrão de demónios, disparando flechas contra ela”, prodígio depois representado num medalhão pintado no teto da igreja (FRUTUOSO, 1873, 592-593) e que estaria na base da fundação da primeira capela. A segunda refere as dificuldades económicas da construção do recolhimento, tendo aparecido a Virgem em sonhos a Isabel de França, dizendo-lhe que fosse ao seu jardim, onde estava uma “pedra de moinho e, junto da mesma outra pedra branca” debaixo da qual tiraria o dinheiro, quanto bastasse para acabar a obra. Assim, teria acontecido e voltando segunda vez, foi pressentida pelo marido, que quando chegou junto da mesma, querendo também continuar a retirar dinheiro “achou carvão” (Id., Ibid.). Outra lenda vinculada ao Mosteiro e propagada pelos cronistas religiosos tenta colar as questões que opuseram o Gov. Francisco de Mascarenhas (c. 1632-c. 1695) a vários nobres e religiosos, e que levaram à grave sedição que depôs o governador, ao facto de – entre outras razões - o mesmo ter tentado parar as obras do Convento das Mercês (Sedição de 1668). A sedição ocorreu a 18 de setembro de 1668 e foi planeada, em princípio, pelo deão Pedro Moreira, envolvendo de início os dois padres Agostinho César Berenguer e Bartolomeu César Berenguer, tio e sobrinho, aos quais aderiu de imediato o Cap. Gaspar César Berenguer, que aproveitou o levantamento e a colaboração do padre para libertar o filho José de França Berenguer, que estava preso em São Lourenço. À sedição associaram-se os frades de S. Francisco, mas não os padres do Colégio do Funchal, até porque a prisão do governador ocorrera quando o mesmo ia visitar a quinta do Pico, contando depois para Roma que teriam ficado incomunicáveis vários meses, por não quererem assinar a representação contra o governador. O Cap. Gaspar Berenguer seria o elemento eleito no Funchal para ir a Lisboa apresentar as razões dos revoltosos e, regressado, informou que as mesmas tinham sido aceites, o que não era verdade. Algum tempo depois apresentava-se no Funchal um novo governador e um juiz desembargador para averiguação do sucedido, arrastando-se o processo por anos, mas não havendo qualquer referência às obras do Convento das Mercês e, ao que parece, praticamente ninguém cumpriu as penas por que foi condenado. A situação económica do Convento nunca foi folgada, embora logo em 1661, tenham as freiras conseguido a isenção da contribuição para as despesas de guerra, constituída por uma maquia de cada alqueire de trigo. Nos anos seguintes queixavam-se ao príncipe regente D. Pedro, da grande pobreza em que viviam pela falta de esmolas dos moradores e dado serem os donativos o seu único património. Com essa exposição obtiveram, em 1676, uma esmola anual de dezasseis mil réis, paga pelos sobejos da alfândega do Funchal, tal como alguns anos depois, em 1715, recebiam nova mercê anual de quarenta mil réis para pagamento do confessor “que lhe ministre o pasto espiritual” (BNP, Reservados, fl. 75v.). A Coroa e os devotos financiavam a manutenção da sacristia, tal como os “hábitos e túnicas”, acrescentando o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que, para além do confessor, a Fazenda real também pagava o capelão “que apresenta o ordinário” (NORONHA, 1996, 284), verba que, contudo, não foi possível detetar nos registos da Alfândega. A coroa concedia: em janeiro de 1752, a mercê anual de uma arroba de cera para a festa de S. José, com vencimento de 3 de novembro do ano anterior ano de 1751 e, em de janeiro de 1784, a de mais duas arrobas de cera, com o mesmo vencimento de 3 de novembro, para a festa do Santíssimo e “outras da dita igreja” (BNP, Reservados, fls. 75v.-76). Nos inícios do séc. xix a coroa continuou a apoiar o serviço da sacristia com donativos, instituídos em 1803 e 1819. A sucessão da administração e padroado do Convento foi regulada pelo fundador, pela anterior escritura de 1 de julho de 1665 e por testamento feito em 21 de dezembro de 1686. No entanto, nos finais do séc. XVII, nos inícios de fevereiro de 1697, com mais uma situação de sé vacante, o cabido extrapolava os seus direitos e apoderava-se do controlo e superintendência sobre o Convento, que taxativamente e, segundo se encontrava estabelecido, era do bispo e, na sua ausência, do vigário geral, ou de quem o substituía, citando-se mesmo, que “não ao dito cabido”, mas ao “vigário geral dariam obediência e aceitariam de suas mãos as leis de seu governo”. O pleito subiu à coroa e, enquanto não havia resposta, o cabido acordou em resolução de 5 de fevereiro desse ano de 1697, que as capuchas reconhecessem “a ele Reverendo Cabido por seu prelado” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, 61v.-62). Nos anos seguintes foi a vez de se desentender a família dos padroeiros. O neto do padroeiro José de França Berenguer (1638-1720) casara-se com Maria de Castelo Branco, da qual tivera seis filhos. Ao falecer, já o seu filho mais velho, João de Andrade Berenguer (1671-1716), havia falecido, pelo que o pai deixou em testamento o segundo filho, Agostinho César Berenguer e Atouguia, como seu herdeiro, acrescentando: “e a quem nomeio na administração do padroado do Convento de Nossa Senhora das Mercês” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fl. 84). Acontece que o irmão mais velho, João de Andrade Berenguer havia casado com Tomásia de França e Andrade, com a qual teve dois filhos, João de Andrade Berenguer, entretanto falecido em 1716 e Antónia Josefa (1697-1743), casada com Jorge Correia Bettencourt, filho do Ten.-Gen. Inácio de Bettencourt de Vasconcelos (c. 1700-1720) (Tenente-general). Antónia Josefa e Jorge Correia Bettencourt disputaram o padroado do Convento das Mercês com o tio e, tomando posse da Diocese o bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), a 22 de julho de 1725, ao ter conhecimento da disputa, dentro do seu estilo pessoal mandou recolher toda a documentação do Convento no paço episcopal, afastando do padroado os vários herdeiros do Cap. Gaspar Berenguer e assumindo o controlo de toda a administração. Todos os herdeiros se queixaram do bispo em Lisboa e em Roma, mas o bispo mostrou-se inflexível. Não foi por acaso que um dos grandes opositores ao episcopado de D. Manuel Coutinho tenha sido o Cón. Bartolomeu César de Andrade, que pagou por isso longos períodos de prisão na torre da sé do Funchal. O assunto percorreu todo o séc. XVIII e ainda em 1788, o bispo D. José da Costa Torres (1741-1813) dava conhecimento ao ministro Martinho de Melo e Castro da situação, que muito afetava a vida das religiosas. O assunto só veio a ter desfecho já nos inícios do séc. XIX, por sentença de 19 de abril de 1807, a favor dos descendentes de Antónia Josefa Correia Bettencourt, então Ana Cândida Berenguer de Atouguia Neto casada com Henrique Correia de Vilhena (1769-c. 1830), representante da casa Torre Bela. Quase 100 anos depois, seriam igualmente os Torre Bela a apoiarem os núcleos das freiras do Convento das Mercês, quando em 1910 tiveram de abandonar o edifício e fixarem-se no Sítio da Palmeira e da Torre em Câmara de Lobos. Nos inícios do séc. XVIII, o cronista Henrique Henriques de Noronha descrevia o Convento, começando por elogiar a primeira madre abadessa, M.e Branca de Jesus, que, tendo professado em S.ta Clara na segunda regra, “instruiu na primeira as novas religiosas, de sorte que parecia a aprendera por muitos anos”, numa “destreza e agilidade” que era de admirar. A primeira abadessa recebera “as instruções do seu governo” do mosteiro da Madre de Deus, “daquela observância”, tendo-se tornado uma insigne prelada e nas suas mãos haviam professado 26 noviças, retirando-se no fim da vida para S.ta Clara “para lograr no fim das ações da sua vida a que merecia eterna pelas suas virtudes” (NORONHA, 1996, 284). O edifício do mosteiro tinha então suficientes “cómodos para capuchas”, com todas as oficinas necessárias e alguma extensão de cerca interior, com uma levada de água. A igreja era bem proporcionada e a capela-mor tinha “comungatório” e era dotada com um “vistoso retábulo” de N.ª Sr.ª das Mercês, “obra de Martim Conrado, insigne pintor estrangeiro”, única informação documental que se possui na Ilha sobre este pintor que executou perto de uma dezena de retábulos para a Madeira. O corpo da igreja tinha ainda dois altares colaterais, dedicados a S.ta Maria Madalena e S.ta Catarina de Alexandria, que o cronista apelida de “Santa Catarina Maior”, pinturas hoje na sacristia da matriz de S. Pedro do Funchal, atribuíveis, provavelmente a última, à oficina de António de Oliveira Bernardes (c. 1650-c. 1732). Havia ainda um altar de N.ª Sr.ª da Conceição, com uma “nobre” confraria de sacerdotes, o que era uma originalidade, pois que se encontravam proibidas as confrarias masculinas em conventos femininos. No pavimento da capela-mor estavam sepultados os padroeiros, referindo o cronista Henrique Henriques de Noronha que Isabel de França “cuja vida foi exemplar de virtudes”, acrescentando que “se afirma que apareceu resplandecente” à madre soror Isabel de Jesus, uma das primeiras recolhidas do futuro Convento, “certificando-a que por essa fundação, a aliviara Deus das penas do Purgatório, reduzindo-as a cinco anos somente”. Refere o cronista que se venerava na igreja uma relíquia do mártir S. Faustino, “uma canobla de um braço” (pedaço oco de osso), que fora enviada em 1725 pelo marquês Otaviano Acciauoli, que pertencera à marquesa sua mulher e que lhe foi dada pelo papa Inocêncio XIII, seu tio. Noronha ocupa ainda vários capítulos do seu trabalho com “as virtudes de algumas religiosas deste mosteiro” (Id., Ibid., 285-299), mas que serão eclipsadas posteriormente com as figuras das madres Brites da Paixão (c. 1632-1733) e Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), a última, inclusivamente, foi obreira da resistência, manutenção e renascimento desta instituição religiosa na Madeira, de onde viria a irradiar para os Açores e para o Brasil. A vida interna espiritual do Convento das Mercês era muito rígida e não poucas vezes as candidatas não “passavam” no noviciado. Se alguma candidata entrasse sem vocação, as abadessas não descansavam enquanto a mesma não regressasse à família. Conta Henriques de Noronha que logo nos primeiros anos, sendo abadessa a M.e Inês de Jesus, irmã do fundador, sucedeu que entraram sem vocação “certas moças a quem seus parentes quiseram dar aquele estado” (Id., Ibid., 287). A madre, mesmo incorrendo no desagrado do prelado que facilitara a entrada das jovens, procurou convencê-las a sair do mosteiro, tendo conseguido que o deixassem “por sua vontade”. O bispo, segundo o cronista, acabou por pedir desculpa à abadessa. O cronista, no entanto, escrevia de acordo com o pensamento da sua época e foram muitos, com certeza, os casos de vocação perfeitamente forçada. O caso da M.e Isabel Filipa de Santo António, registado no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa de onde dependia o bispado é digno de registo. A freira em questão era filha de uma das mais nobres famílias do Funchal, os Câmara Leme, tendo-se chamado Isabel Filipa Telo de Meneses e Sá e, antes de entrar para o Convento das Mercês, segundo depois declarou ao Cón. Hugo Maguiére, de origem irlandesa, ter-se-ia apaixonado, ainda adolescente, por um indivíduo de condição inferior. Falecidos os pais, a tutela da jovem passou ao irmão mais velho, Jacinto da Câmara Leme que, perante a hipótese de um casamento desigual, negociou com o Convento a sua entrada nas Mercês, onde viria a professar, em princípio obrigada. A M.e Isabel Filipa de Santo António com a revolta que experimentava, praticou os mais desvairados desacatos no Convento, blasfémias, gritos, e até a uma tentativa de homicídio a todas as irmãs em religião, esmagando vidros num almofariz para misturar com a comida, uma sopa de favas, como veio a especificar. Chegadas as coisas a este ponto, entendeu a madre superiora não poder manter a situação nas paredes da instituição, denunciando o caso ao comissário do Santo Oficio, o Cón. Hugo Maguiere, que ouviu a madre em questão que, sem especiais remorsos, se assumiu como responsável pela morte de dois dos seus irmãos, que envenenara. Como, entretanto, na realização do processo tinham disponibilizado à madre os serviços de um advogado, ela decidiu usá-lo para o que verdadeiramente pretendia, e que mais não era que sair do Convento. Nas diligências para satisfazer os desejos da sua cliente, o causídico apelou para o Papa a pedir a dispensa dos votos da M.e Isabel Filipa, alegando que, apesar de já terem decorrido os cinco anos que a lei permitia para a revogação dos votos, a infeliz religiosa nunca dispusera, dentro desse tempo, dos recursos necessários à realização dos trâmites, pelo que tentava, agora, atingir aquele desígnio. Após endosso do papa, o bispo da Diocese, na altura D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), viu-se encarregado de encontrar uma solução para o caso e, apesar de já muito doente, ainda decidiu que a anulação dos votos não seria possível, condenando a freira a pedir à comunidade perdão de joelhos e a ser transferida para outra casa religiosa. Consultando os arquivos do Convento das Mercês, a M.e Isabel Filipa não consta. No entanto, consta a entrada de uma sobrinha sua, Vicência Juliana Câmara Leme Meneses Sá e Acciauoli, em 1760, com 13 anos de idade, poucos anos depois deste processo, filha de Francisco Aurélio da Câmara Leme e de Antónia Maria de Meneses Sá e Acciauoli. O mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês sofreu importantes obras de reconstrução nos meados do séc. XVIII, essencialmente a cargo da fazenda régia, dadas as complexas disputas entre os descendentes dos iniciais padroeiros. Por mandado do conselho da fazenda de 20 de julho de 1746 foi feita mercê de oitocentos mil réis, a favor do dito Convento, “por uma só vez” e pelas sobras das dívidas dos almoxarifes, para se efetuar o conserto dos muros da cerca, do dormitório, casa do noviciado e do coro da igreja (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 19, fl. 177 v.), ainda havendo, com data de 9 de agosto de 1752, novo mandado do conselho da fazenda de mais quatrocentos mil réis para se acabarem as obras. No final do séc. XVIII e quando as instituições anteriores se tornavam menos rígidas, continuavam as freiras capuchinhas a lutar pelo seu completo isolamento, tendo sempre como principal preocupação, o muro que cercava o Convento. No início de 1782, e.g., o governador determinou uma rigorosa vistoria à cerca do Convento, “a pedido da madre abadessa e demais religiosas”, pois que as grades e a cerca eram devassadas em vários sítios e, o que era pior, “muitas pessoas têm a temerária ousadia de abrir buracos e encostarem escadas e outros instrumentos aos muros da dita casa; para assim poderem ver as procissões e outros atos religiosos em que as mesmas clausuradas se entretêm”. Ora tudo isso era “diametralmente oposto à modéstia e recolhimento daquela clausura” (ABM, Governo Civil, 535, liv. 11), pelo que o Cap. Eng.º José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) procedeu a uma completa inspeção a toda a cerca do Convento, de que elaborou relatório, procedendo-se, de novo a obras pontuais nos muros. O exemplo mais notável de profundo recolhimento e da total entrega a uma vida interior e espiritual foi, muito provavelmente, o da vida da M.e Brites da Paixão (c. 1632-1733). Filha natural do 6.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1620-1689), foi o pai que lhe ofereceu a célebre imagem do Senhor da Paciência com quem a irmã falava como se fosse viva – segundo a tradição dos mosteiros das Mercês, depois de S.to António do Lombo dos Aguiares, para onde a imagem foi transferida –, que levou consigo para a casa paterna, no Lombo dos Aguiares, ao ser expulsa do mosteiro com as suas irmãs, em 1910. Foram-lhe atribuídas inúmeras graças, quer em vida, quer depois da morte, ocorrida em 1929, dedicando-lhe o povo um certo e especial culto, que levou o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949) a iniciar o seu processo de beatificação, que abriu oficialmente em 2006 e em 2016 ainda corria. Foi com naturalidade que, algumas décadas depois, entrou para o Convento uma humilde rapariga de 17 anos, natural do Lombo dos Aguiares, que haveria de assumir o nome de Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), devido ao facto de ser uma grande admiradora das virtudes da madre que ostentara aquele nome, existindo entre ambas muitos factos em comum. Foi com base na sua devoção e na da sua orientadora espiritual que surgiu depois o Convento de S.to António do Lombo dos Aguiares. Em 1834, com a implantação das diretivas do novo governo liberal e no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecida por “mata frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respetivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Se para os conventos urbanistas o controlo das entradas e, inclusivamente, de saídas, fora mais ou menos fácil, para os conventos de capuchinhas, no entanto, tal não era fácil, dada a completa clausura ali praticada. Pelo que, embora proibidas de admitir noviças e, igualmente, de efetuarem profissões de fé pela lei de 5 de agosto de 1833, com a complacência, senão aquiescência das autoridades religiosas, continuaram a fazê-lo. As instruções de 31 de janeiro de 1862 determinaram a altura em que oficialmente o Convento passou à posse do Estado, já vindo a ser feitos inventários desde 1858. As autoridades civis, no entanto, ao longo do liberalismo foram mudando a sua posição inicial e perante o respeito popular de que gozava o Convento das Mercês, o mesmo manteve-se ao longo do séc. XIX. A M.e Ana Joaquina das Mercês morre em 26 de março de 1895 e, com a morte da última religiosa professa à data dos decretos de 28 e 30 de maio de 1834, o Convento foi oficialmente extinto. Os bens foram incorporados nos próprios da Fazenda Nacional, procedendo-se de novo à inventariação do Convento da Mercês, em setembro e outubro 1895, data da única planta do extinto convento que se conhece, levantada e desenhada por Joaquim António de Carvalho (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, cx. 2076). Em 2010, Nélson Veríssimo localizou uma aguarela do Convento das Mercês, feita no Funchal, a 18 de setembro de 1877, pelo pintor Edward John Poynter (1836-1919), muito provavelmente da varanda do Reid’s Santa Clara Hotel (Arquitetura do Turismo de Lazer), cujo paradeiro se desconhece. Na data da extinção do Convento, não havia arquivo e somente foi localizada uma pequena caixa de madeira com documentos por classificar. Os arquivos do Convento teriam sido assim já retirados pela Fazenda do Funchal, entre 1858 e 1862, integrando depois o acervo do governo civil e tendo sido, posteriormente, incorporados no arquivo regional. Só depois, a citada caixa, seguiu para Lisboa, para a Torre do Tombo. Dos vários inventários também não consta a célebre imagem do Senhor da Paciência, provavelmente já retirada do Convento pelas irmãs, pois acompanhou a M.e Virgínia da Paixão para o Lombo dos Aguiares e foi entregue ao Convento de S.to António ali instituído. Restavam no Convento da Mercês, à data da morte da M.e Joaquina, 19 professas, todas entradas posteriormente à legislação do primeiro liberalismo, que progressivamente foram requerendo autorização para continuar no Convento, pedido para o qual foram contando com o apoio das autoridades religiosas e civis insulares. A forma mais ou menos legal para a situação foi dada pela lei de 11 de abril de 1901, que autorizou as religiosas a organizarem-se numa Associação de N.ª Sr.ª das Mercês e, embora o Convento se encontrasse extinto, podiam as “associadas” permanecer no antigo edifício. A extinção efetiva do Convento veio a ocorrer com a implantação da República. De forma irrevogável, as pobres freiras foram, na noite de 13 de outubro de 1910, recolhidas em carro fechado e levadas para o andar térreo do Palácio de S. Lourenço, onde “aguardavam ser reclamadas pelas respetivas famílias” como noticiou o Diário de Notícias do dia seguinte (FONTOURA, 2000, 284). A Câmara Municipal do Funchal, logo em novembro desse ano, solicitava a cedência do imóvel para instalação da cadeia civil, sendo elaborado um termo de entrega do mobiliário e da igreja do Convento, algumas alfaias, livros, e outros objetos, ao Mons. João Luís Monteiro (1850-1923), mas os objetos mais valiosos, como eram as pratas da igreja, não fizeram parte da entrega. Parte do espólio de caráter religioso do suprimido Convento foi transferido para o Convento de S.ta Clara, e daí para a igreja matriz de S. Pedro. A transferência da cadeia civil da comarca não se chegou a efetuar e, em 1911, a câmara solicitou a demolição da igreja, sacristia e adro para ampliação da Trav. das Capuchinhas e da R. das Mercês. Em 1915, por pedido do presidente do Instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, Henrique Augusto Rodrigues (1856-1934), coproprietário e fundador do Bazar do Povo e membro destacado do partido republicano, e com a concordância do governador civil, José Vicente de Freitas (1892-1952), foi entregue a este Instituto o que restava do velho e arruinado edifício, pouco depois totalmente demolido. No final do séc. XX, mais precisamente a 8 de setembro de 1998, no seguimento de uma sugestão das irmãs clarissas ao Governo Regional, foi descerrada junto àquela artéria uma pequena peça escultórica, da autoria de Ricardo Velosa, que pretendia evocar o antigo mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês que ali existiu entre 1667 e 1910, com dois baixos-relevos em bronze. Se o edifício do velho Convento das Mercês desapareceu totalmente, o espírito corporizado pelas irmãs manteve-se, mais ou menos recatadamente, como era timbre nestas freiras, que mantiveram, inclusivamente, o hábito nas suas residências de família. Serviu de elo de ligação entre as irmãs a M.e Virgínia Brites da Paixão que, embora residente no Lombo dos Aguiares, passava longos períodos nos vários núcleos residenciais. A madre faleceria em 1929, na residência de família do Lombo dos Aguiares e já não veria renascer o seu convento, desta feita junto da antiga capela de N.ª Sr.ª da Piedade, em Câmara de Lobos, instituído oficialmente em 13 de abril de 1931.     Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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