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quintas românticas: arquitetura e turismo

Ao longo do séc. XIX, a desagregação do regime de morgadio, que as reformas liberais realizaram em Portugal, libertou a propriedade rural e suburbana dos seus vínculos (Vínculos e capelas), pondo-a ao alcance de uma nova burguesia comercial. Vendidas ou alugadas a terceiros, i.e., transformadas em bens transacionáveis, as quintas madeirenses (Quintas madeirenses), incluindo as de origem mais antiga, foram-se adaptando ao novo regime e ao novo estilo de vida – o estilo de vida burguês. O mesmo aconteceu com os seus proprietários, que se “inglesaram” – termo que, quando aplicado à Madeira oitocentista, se pode traduzir por “aburguesaram”. A quinta romântica madeirense não deve, pois, ser associada à lavoura, ao regime de morgadio (Morgadios) ou à aristocracia terratenente, mas sim à residência burguesa oitocentista: a unidade unifamiliar rodeada por jardim ocasionalmente, por mata, etc. As pequenas quintas que, a partir de finais do séc. XVIII, mas sobretudo no séc. XIX, povoaram os arrabaldes do Funchal, constituíram, pois, uma tipologia semelhante à villa burguesa, a qual, a partir de meados de Oitocentos, proliferou também na Europa e na América do Norte. Em ambos os continentes, esta tipologia apareceu não só na periferia das urbes industriais, como também nas estâncias terapêuticas – elas próprias satélites dessas urbes, lugares de cura e de refúgio das suas atmosferas poluídas e irrespiráveis. Na Europa, era possível encontrá-la com frequência nas rivieras francesa ou italiana. No séc. XIX, a maior parte das quintas madeirenses constituíram proveitosas fontes de receita para os seus proprietários. Estas receitas não resultavam da exploração agrícola dos seus terrenos, que eram escassos ou mesmo inexistentes, mas do aluguer à estação, i.e., do chamado turismo terapêutico. Com efeito, os seus principais inquilinos foram os enfermos, que, desde inícios do séc. XIX, se deslocavam para as ilhas em cura de ares e que, ao contrário do turista posterior, aí permaneciam por longas temporadas (normalmente durante a estação de Inverno). A quinta romântica madeirense foi, pois, uma tipologia “proto-turística” ou, utilizando uma terminologia mais precisa: uma tipologia do turismo terapêutico. É essa a razão pela qual se deveria preferencialmente designá-la como “quinta de aluguer”. Na periferia do Funchal – do início do séc. XIX ao eclodir da Primeira Guerra Mundial – a quinta de aluguer foi, aliás, a mais importante tipologia do turismo terapêutico na Madeira. No quadro das ilhas atlânticas, o fenómeno pode considerar-se uma verdadeira especificidade do arquipélago português. Nas Canárias , o aluguer de quintas não só foi mais tardio, como nunca chegou a ter a mesma expressão. A manifesta superioridade económica e militar de Inglaterra, que chegou a ocupar a Madeira no início de Oitocentos (Ocupações inglesas), teve uma pesada influência sobre o modo de vida das elites locais. No séc. XVIII, os negociantes de vinho britânicos (Vinho da Madeira) que fixaram residência na Ilha começaram por se instalar em casas que já existiam, adaptando-as, em muitos casos, ao seu modo de vida. No primeiro terço do século seguinte, porém, surgiram os primeiros exemplares construídos por eles de raiz. Estes traduziam a nova mentalidade vigente em Inglaterra: o Romantismo, uma relação contemplativa com a paisagem, a inserção da casa em contextos que convidavam a meditar sobre a alma da natureza e a natureza da alma. Tudo isto era novidade absoluta na Ilha. Com efeito, a residência deixou de ser a sede de uma exploração agrícola, para passar a ser, fundamentalmente, um lugar de habitação, de lazer e de desfrute da paisagem – um novo tipo, muito distinto da casa rural insular anterior ao séc. XIX. A antiga loja destinada à lavoura, que fazia da antiga casa rural não só uma residência da família, como também uma unidade de produção, já não estava presente neste novo tipo. A relação de salas e quartos com o exterior, cuidadosamente ajardinado, era assegurada pela janela à francesa, que proporcionava aos moradores um contacto direto com o jardim. As escadas eram interiores, sendo uma delas de aparato e outra de serviço. A entrada conduzia às zonas sociais da habitação e os percursos que se estabeleciam entre os diversos compartimentos eram concebidos para responder aos rituais do receber da polite society, ao qual, a casa, independentemente da sua dimensão, tinha de responder. As funções dos compartimentos interiores especializaram-se, surgindo as salas de jantar, de estar e de jogos, a biblioteca e as áreas de serviço, reservadas aos empregados. Os compartimentos destinados a receber exploravam as formas contrastantes, as plantas elípticas ou retangulares, com absides salientes nas fachadas – as chamadas bow e bay windows. Para além da inovadora relação que teciam com a paisagem, estas villas introduziram no arquipélago um novo repertório formal: os vãos com lintel curvo; o uso frequente do motivo serliano – os vãos tripartidos em que a abertura central era maior e rematada em arco; a presença de cornijas e platibandas em vez do tradicional beirado; os cunhais com aparelho rusticado; e, finalmente, as referidas bow e bay windows que, muitas vezes, assumiam a forma de volumes cilíndricos a toda a altura das fachadas. Os padrões de conforto ao gosto inglês constituíram também uma novidade. Os chamados rotulados ou mucharabis em madeira que, ainda no séc. XVIII, preenchiam os vãos de muitas das casas do Funchal, foram substituídos pela janela de guilhotina com gelosia e lamberquim exteriores –justamente atribuída à influência inglesa. Se bem que a introdução da janela de guilhotina possa ter constituído uma melhoria nas condições de conforto da casa, é discutível que os tetos em estuque, que vieram substituir os altos tetos em masseira, tenham contribuído para melhorar o conforto interior da casa, revelando um progresso. O mesmo se pode dizer da platibanda, que foi utilizada em algumas das villas construídas por estes mercadores de vinho, a qual, ao contrário do beirado com sub-beira (duplo ou triplo) de utilização comum na Ilha, lidava mal com o escoamento de águas do telhado, dando origem a infiltrações e à consequente degradação de paredes e de revestimentos. Dir-se-ia, portanto, que o complexo processo de miscigenação, em que a arquitetura local se viria a cruzar com modelos oriundos de outras paragens, não resultou apenas em progressos para a primeira, devendo antes falar-se de um processo com perdas e ganhos. O jardim foi outra das componentes da quinta de aluguer que mais marcada influência receberam da cultura britânica. Todos eles, mesmo os mais pequenos, mesmo aqueles moldados na tradição mediterrânica dos socalcos, foram herdeiros da mentalidade romântica que, no início do séc. XIX, esteve intimamente ligada ao jardim inglês, destacando-se: os bosques e as clareiras relvadas, os lagos, os fontanários, os tanques, os percursos sinuosos povoados de pequenos templos, os pormenores arquitetónicos recuperados de outros edifícios e de outros acontecimentos, e a moldagem da natureza, que constituía o esplendoroso pano de fundo da arquitetura. No território escasso e acidentado da Ilha, o que estes jardins perderam em extensão ganharam em dramatismo, ao abrirem-se aos panoramas abissais, aos cumes das montanhas ou ao horizonte longínquo do oceano. A influência de Loudon (1783-1843), o grande divulgador desta arte junto da classe média oitocentista, chegou à Madeira por via dos ingleses. Naquela influência se refletia com nitidez o ideal da casa burguesa, que encontrava no jardim – a natureza criteriosamente domesticada – o enquadramento ideal para o florescimento da vida privada. Este estava relacionado, simultaneamente, com a proteção da intimidade da casa e com o espaço de encontro e de lazer dos seus habitantes. À Madeira coube, ainda, outra função: a terapêutica, pois era ao ar livre que os doentes pulmonares faziam o tratamento. Mas a cura de ares era também uma cura de paixões. Por isso, na relação que a casa tecia com o jardim – e, num sentido mais lato, com a paisagem – ressoava um quadro difuso em que sintomas e sentimentos se confundiam. Na quinta de aluguer oitocentista, o jardim foi tanto a manifestação da alma romântica, quanto o dispositivo de tratamento. No que respeita à arquitetura da casa, não eram, todavia, as villas construídas pelos mercadores de vinho o tipo mais característico da quinta oitocentista da Madeira. Houve, na Ilha, um conjunto de circunstâncias de ordem social e económica que fez com que quase todas estas casas tivessem sido concebidas por construtores anónimos. A sua construção fez-se de acordo com saberes e tecnologias que, durante séculos, mantiveram um elevado grau de imutabilidade: o modo de lavrar e de assentar as cantarias, de erguer as paredes, de caiar as fachadas, de escolher a madeira para os sobrados, de armar os telhados e de revesti-los a telha de meia cana, bem como de calçar, a seixo basáltico, os passeios dos jardins. A grande maioria destas quintas, independentemente do seu grau de erudição, alicerçou-se no sistema de medidas e proporções que caracterizava a “casa da Macaronésia” (FERNANDES, 1992, 233) – um sistema que não foi exclusivamente de invenção local, mas que se inscrevia no património comum da cultura mediterrânica, transportada para a Ilha pelos primeiros povoadores. É por essa razão que a maioria das quintas de aluguer, sejam elas originárias do séc. XIX, do séc. XVIII ou mesmo do séc. XVII, se apresentava como um conjunto de grande coerência morfológica. Com efeito, foi a persistência de determinadas constantes de natureza construtiva, estrutural, espacial e decorativa que tornou reconhecível a arquitetura destas casas, conferindo-lhes um carácter singular que as distinguiu das que foram construídas durante a mesma época noutras regiões do país – um facto que levou alguns autores do século passado a falar da existência de uma “casa madeirense” (MATOS, 2008, 130). Na verdade, tratava-se mais de uma “maneira madeirense” de adaptar a um novo meio um modelo forâneo (MARTÍN RODRÍGUEZ, 1978, 40) – a casa mediterrânica e da Europa ocidental. Essa adaptação deu origem a uma síntese entre as componentes nacional e regional que, na Ilha, a partir de finais do séc. XVIII, se cruzou com a arquitetura inglesa de inspiração romântica. Não é difícil descrever a aparência da maioria destas casas: um volume paralelepipédico com dois pisos; uma planta retangular ou quadrada; uma predominância dos cheios sobre os vãos, cuja proporção tendia a repetir-se; o recurso à simetria como regra compositiva elementar das fachadas, quase sempre planas, onde os vãos, com as suas persianas instaladas à face, pareciam reduzir-se a um desenho sem espessura; o telhado de quatro águas, com o característico “sanqueado” e remate em duplo ou triplo beirado; um alpendre adossado à fachada do piso em contacto com o solo ou no patamar da escada exterior, nos exemplares de origem setecentista. Dir-se-ia, portanto, que, em todas elas, a arreigada devoção do construtor a um determinado tipo de soluções, mil vezes testadas pelas gerações que o precederam, acabava por vingar. A exceção a esta regra residia, pois, nas villas dos mercadores de vinho, cuja arquitetura – sobretudo a dos exemplares mais puros – deixava claramente transparecer a sua conceção erudita de origem exógena. Não querendo deliberadamente pactuar com as tradições locais, os britânicos introduziram, na cadeia evolutiva da casa insular, uma verdadeira rutura morfológica e tipológica. Desde cedo, porém, alguns dos seus novos repertórios formais, bem como os padrões de conforto que exigiam das suas casas, foram sendo apropriados pelos construtores locais. Num lento processo de miscigenação, estes souberam afeiçoá-los à sua austera e frugal arquitetura, cujas raízes mergulhavam profundamente no solo da Ilha e na memória coletiva da sua gente. Por obra destes construtores, populares ou eruditos, as tradições locais e os contributos alheios enlaçaram-se, dando lugar a uma expressão original, onde por detrás de uma aparência chã e frugal, se ocultavam interiores sofisticados. Tendo em atenção, fundamentalmente, a sua estrutura espacial e funcional, as quintas românticas madeirenses podem ser classificadas em três tipos. O tipo 1, que poderia designar-se como a casa rural sobrada e anterior ao séc. XIX, resultou da adaptação de casas rurais de origem setecentista, ou mesmo seiscentista, ao aluguer à estação. Construídas na sua origem como residências de agricultores abastados ou como sedes de morgadio, todas elas eram casas complexas, que se desenvolviam em dois pisos, com cozinha, quartos e loja, integrando um corpo único e formalmente coerente. Uma característica comum a todos os exemplares que integravam este tipo era a presença do piso nobre, que coincidia sempre com o andar, e a presença da escada exterior, normalmente com alpendre. O piso térreo – a loja – originalmente reservado às alfaias, ao lagar ou à arrecadação de produtos agrícolas, passava a piso habitável depois das obras de adaptação que usualmente introduziam também a escada interior e o corredor. A cozinha tanto podia ocupar o rés-do-chão, como o piso nobre, sobrevivendo em algumas o sistema de forno-lareira-chaminé, uma das características morfotipológicas da casa da Macaronésia. Este tipo era, portanto, o que mais se aproximava do fundo comum e original da casa insular, e revelava, apesar da adaptação ao novo meio, uma arreigada ligação à casa mediterrânica. A existência de capela em algumas delas era outra das características que ocorriam apenas neste tipo. A casa e a capela datavam, quase sempre, de épocas diferentes e, quando juntas, nem sempre apresentavam fachadas complanares, deixando transparecer um processo de construção ao longo do tempo que testemunhava a sucessão de ciclos de fartura e de escassez. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas das Angústias (núcleo original) (Quinta Vigia), de S. João (demolida), e da Achada. O tipo 2, que poderia designar-se como as villas dos mercadores de vinho, cujos exemplos mais notáveis surgiram no primeiro terço do séc. XIX, foi acima caracterizado e teve como exemplares mais significativos as quintas do Monte (Quinta do Monte), Palmeira, e Deão (demolida). Quinta do Monte. Foto: Museu Vicentes Finalmente, o tipo 3, que poderia designar-se como a casa compacta de origem oitocentista, era o mais comum na quinta de aluguer. Na segunda metade do séc. XIX, assistiu-se a uma síntese em que a casa enraizada na tradição local se adaptou às exigências funcionais e aos padrões de conforto da sua clientela vitoriana. Quer na disposição dos compartimentos interiores, quer na forma como se relacionava com a sua envolvente, ela era o reflexo da nova moral burguesa, de um ideal higiénico e antiurbano, irrealizável no denso tecido da cidade tradicional. Concebida para a vida familiar – ocupando, por regra, o miolo de um lote murado –, a casa precisava do jardim não só como espaço de lazer e de proteção da intimidade dos seus habitantes, mas também como garantia de salubridade. Tratava-se de uma casa compacta, com dois ou mais pisos, com cobertura em telhado de quatro águas, e com planta quadrada ou retangular. No interior, apareciam um corredor e escadas – uma principal, geralmente centralizada, e uma secundária destinada ao serviço. A cozinha e as zonas de serviço anexas ocupavam, quase sempre, o piso em contacto com o solo, sendo o tradicional sistema de lareira-forno-chaminé a exceção. No sótão, usualmente reservado aos quartos dos empregados, apareciam por vezes as trapeiras; no piso de contacto com o jardim, localizavam-se as áreas comuns da habitação – as salas de estar ou de jantar –, estando os pisos superiores reservados aos quartos. A simetria era, quase sempre, a regra compositiva das fachadas onde, à semelhança das antigas casas da Macaronésia, imperava a regularidade de proporções e predominavam os cheios sobre os vãos, rasgados a espaços iguais. Esta austera frugalidade podia ser, porém, enganosa. Com efeito, o interior beneficiava de um sofisticado grau de conforto, a que não eram alheias as exigências da clientela vitoriana que as alugava: janelas de guilhotina com sistema de contrapeso, tetos em estuque ornamentado, soalhos em madeira, requintados trabalhos de carpintaria pintada, lareiras ou salamandras inglesas em vários compartimentos, e um quarto de banhos. No exterior, debruçada sobre o arruamento, surgia com frequência a casinha-de-prazer – termo que designava, na Madeira, os pequenos pavilhões de jardim de onde era possível observar o exterior ou contemplar a paisagem sem ser observado de fora. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas da Vista Alegre, Perestrelo, Faria, Favilla (demolida), Lyra, e dos Ilhéus.   Rui Campos Matos (atualizado a 16.12.2017)

Arquitetura História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

quinta do monte

Quinta do Monte. 1920. Arquivo Rui Carita. Nos meados e nos finais do séc. XVIII assistiu-se à expansão da cidade do Funchal pelas encostas e à fixação esporádica das famílias dos principais comerciantes e proprietários madeirenses na área da freguesia do Monte, durante a época de verão (Urbanismo). Com o confisco dos bens do Colégio dos Jesuítas pela Fazenda Régia, em 1768, o património da Companhia foi colocado em hasta pública e arrematado, em 1770; entre ele, contavam-se duas propriedades situadas abaixo da igreja do Monte que vieram a ser adquiridas pelo cônsul britânico Charles Murray. Este cônsul construiu ali uma residência e, especialmente, um parque e jardim importantes, que acabaram por se tornar lendários, mas que, poucos anos depois do investimento, colocou à venda, por se retirar para Inglaterra. O governador Diogo Pereira Forjaz Coutinho (c. 1735-1798), em carta de 1788, informava para Lisboa que o comerciante Carlos Murray se propunha vender a “Quinta do Bello Monte, para os governadores passarem o verão” (ABM, Governo Civil, liv. 519, fl. 4v.). Declarava ainda que aquela zona era habitada, entre os meses de junho e novembro, por causa dos “calores muito intensos na cidade” e que, algumas vezes, o próprio se vira obrigado a pedir emprestada uma dessas residências, “visto que todos têm o capricho de não querer dar de arrendamento casa no campo” (Id., Ibid., fls. 4v.-6). Acrescentava igualmente que, dada a qualidade do conjunto em causa, com os seus jardins, cascatas e árvores de fruto, seria a “hipótese ideal” (Id., Ibid.) para se estabelecer uma residência de verão. Porém, a quinta veio a ser adquirida por privados. Também na área do Pico, em 1784, foi negociada uma propriedade pertencente ao comerciante João Crisóstomo Costa e Silva para saldar uma dívida de 4:250$000 réis ao padre Simão Lúcio de Nóbrega, sendo esse mesmo património adquirido pelo comerciante inglês Carlos Alder. A propriedade confrontava com terrenos aforados aos morgados Pedro Agostinho Pereira de Agrella e Câmara, João José de Ornelas Cabral e José Joaquim de Bettencourt e Freitas, dono da Quinta do Faial, em Santa Maria Maior, pelo que as negociações levaram algum tempo, vindo Carlos Alder a ceder os seus direitos a outro comerciante inglês. As primeiras obras da futura Quinta do Monte, ou Quinta do Pico, como também era referida, datam de 1802. Foram mandadas fazer pelo jovem escocês James David Webster Gordon (1783-1850), que, por esses anos, se encontrava no Funchal a trabalhar para a firma Newton, Gordon, Cossart & Co., fundada por volta de 1745, por Francis Newton e William Gordon, seu parente (Cossart Gordon). James David, por vezes referido como James Dempster, era o filho mais novo de Thomas Gordon (1737-1804) e de sua mulher Agnes, filha de John Dempster de Dunnichen (1732-1818), jurista e deputado natural de Dundee, na Escócia. Um irmão mais velho, Thomas William Gordon, veio a ser coronel da Guarda Real e a morrer em Verdun, em 1814; um outro irmão, James Murray Gordon (1782-1850), casaria com Sarah Almeria, filha de John Caulfield, arquidiácono de Kilmore e chegaria a vice-almirante da Marinha Real Britânica. James Gordon fixou-se na ilha da Madeira, casando mais tarde, em 1826, com Theodosia Arabella Pollock, sobrinha do general George Pollock (1786-1872) da Companhia das Índias Orientais; a aproximação entre ambos deve ter sido propiciada pelo irmão James Murray Gordon, da Marinha Britânica. Data dessa época a construção da residência da Quinta do Monte, depois descrita como tendo sido levantada a partir do projeto de um arquiteto inglês, o que é muito provável, dadas as relações formais da construção com o chamado estilo regency. Embora com muitas alterações e desenvolvimentos nos anos seguintes, a ampla relação do piso térreo com o espaço do jardim; as janelas com bandeiras envidraçadas, inseridas em arcos de volta perfeita; a utilização contínua de paredes curvas, ao gosto do rococó internacional; as cornijas decoradas com medalhões, entre outros aspectos, fazem da edificação em apreço uma das mais próximas da arquitetura inglesa da época na Madeira. A boa relação de James Gordon com esse seu irmão parece estar patente numa pintura a óleo que foi recentemente vendida em Inglaterra, na Christies’Art People, pelos herdeiros dos mesmos Gordon, figurando o comerciante da Madeira com a mulher e os dois filhos, em Balmaghie, juntamente com as sobrinhas Ameria e Geraldine Gordon, no que parece ser uma pintura celebrativa da visita dos primos madeirenses. Dada a idade aparente dos jovens Webster Thomas e Russell Manners Gordon (1829-1906), a pintura deve datar de entre 1832 a 1835. James Gordon e Theodosia Arabella manteriam, assim, os seus contatos na Grã-Bretanha, tanto na Escócia como em Londres. Neste sentido, por volta de 1837 ou pouco depois, receberam na Quinta do Monte o pintor e litógrafo Andrew Picken (1815-1845). Em 1840, Andrew Picken editou uma litografia da Quinta do Monte com a seguinte dedicatória: “To J. D. Webster Gordon, Esqre. This print of Mount House, Madeira, is respectfully dedicated, by his very obediente servant, The Artist” (COL. FREDERICO DE FREITAS, 1840). A grande aguarela que por certo lhe serviu de modelo, que veio a ser adquirida aos herdeiros dos Gordon Torre Bela pela Câmara Municipal do Funchal, terá sido pintada antes, entre 1837 e 1839. No primeiro plano da imagem aparece um pequeno grupo, onde uma jovem parece estar a desenhar ou a escrever, com um rapaz mais velho a ajudar. Em frente, de pé, um outro rapaz e uma senhora, acompanhados por dois cães, seguem o desenrolar dos trabalhos. Tudo indica que se tratam dos irmãos Webster e Russel, da sua irmã mais nova, Bárbara Gordon e da mãe. Cerca de dois anos mais tarde, a 1 de agosto de 1842, Andrew Picken era perceptor dos filhos de James Gordon na quinta do Monte, conforme relata o príncipe Adalberto da Prússia (1811-1873), que o acompanhou e aos seus educandos em alguns momentos, nomeadamente, numa visita aos jardins, que afirmou serem paradisíacos, repletos de flores esplêndidas, muitas exóticas, e árvores de todos os cantos do mundo. A proprietária da quinta, Theodosia Arabella Gordon, mostrara-lhe com orgulho o álbum de Picken, também editado com a data de 1840 e a ela dedicado. Os irmãos Webster e Russel acabariam por ir para Londres, sendo educados no colégio de Eton, seguindo Webster a carreira militar e regressando Russel a Portugal. Ainda em Londres, este último conheceu Filomena Gabriela Correia Brandão Henriques de Noronha (1829-1925), filha de João Correia Brandão de Bettencourt Henriques de Noronha (1794-1875), 2.º visconde de Torre Bela (Torre Bela, visconde e conde de), vindo a contrair matrimónio a 15 de setembro de 1857, em St. John’s Wood Westminster e regressando depois à Madeira. No final de 1859, aportou na Madeira a arquiduquesa Carlota de Saxe-Coburgo (1840-1927), futura imperatriz do México, que, com a partida do marido para a América Latina, passou a residir na Quinta Bianchi, hoje desparecida, por motivo da construção do complexo do casino (Quinta Vigia). Nas memórias que a mesma deixou, Un Hiver à Madère, 1859-1860, publicadas em Viena no ano de 1863, explica que uma das primeiras deslocações que efetuou foi à Quinta do Monte, onde a recebeu Mrs. Gordon, “velha inglesa muito simpática, cujo filho casou há pouco tempo com uma portuguesa, filha do visconde de Torre Bela” (NASCIMENTO, 1951, 88-101), parecendo assim que terá conhecido o visconde em Viena, quando este era aí diplomata. Theodosia Arabella Pollock Gordon terá falecido no final de 1859. A quinta foi herdada pelo seu filho mais velho, o major Webster Thomas Gordon e, em 1860, este legou-a ao seu irmão Russel Manners Gordon, que introduziu vários melhoramentos na propriedade, mandando-a murar. Parece datar do mesmo ano, sensivelmente, a construção do jardim denominado Jardim Malakoff, em homenagem aos heróis da vitória de Sebastopol e ao castelo capturado pelas tropas anglo-francesas em 1855. Incluía um miradouro e uma aparatosa torre, adaptada a mirante, alguns anos depois, ao gosto das casinhas de prazer das quintas madeirenses (Casinha de prazer, Quintas madeirenses). A homenagem dos viscondes de Torre Bela à batalha de Sebastopol indicia também um certo tributo ao irmão Webster Gordon, oficial do exército inglês, e aponta ainda a vocação de diplomata internacional que, pouco depois, o visconde assumiria. Data, assim, desses anos de 1860, a restruturação da área a sul da casa de residência com um amplo terraço suportado por um paredão monumental e envolvido por um grande relvado, hoje delimitado por exemplares de notável porte arbóreo. Um curso de água atravessa a propriedade, facilitando a existência de uma cascata que desagua num lago onde a casa é refletida, desenvolvendo-se o jardim até a um amplo miradouro, gradeado e com vista sobre o Funchal. Nos meados da déc. de 60, a quinta foi vendida a Peter Cossart (1807-1870), na sequência da fusão das casas de exportação de vinhos Cossart, Gordon & Co., embora alguns descendentes da família remetam a compra da propriedade aos fundadores daquela empresa. Em 1871, vivia na casa Leland Crosthwait Cossart (1843-1898), filho de Peter Cossart e de Jane Edwards, filha do também comerciante Thomas Edwards, datando dessa déc. de 70 e ainda da de 80 a reforma dos estuques, com a colocação do brasão da família Cossart, bem como a encomenda de uma vasta coleção de vasos, dispostos sobre plintos em cerâmica, igualmente decorados com os unicórnios das armas dos Cossart. Os desmandos ocorridos na déc. de 90 do séc. XX, período em que a quinta esteve encerrada, fizeram com que nenhum desses elementos chegasse até nós senão por fotografia. A importante propriedade foi vendida, a 23 de junho de 1890, ao banqueiro Luís Rocha Machado (1848-1912), que a decorou de novo. Foi palco de inúmeras receções, destacando-se a de 23 de junho de 1901, uma garden party oferecida aos Reis de Portugal, D. Carlos e Dona Amélia. Nesta ocasião, a propriedade aparece referida como Quinta do Pico, existindo abundante documentação fotográfica da altura, aliás, de toda a visita régia, nomeadamente imagens captadas pelo próprio rei D. Carlos, que se dedicava à fotografia. A Quinta do Monte conheceu fama internacional também por ter servido de residência aos ex-Imperadores da Áustria, Carlos de Áustria (1887-1922) e Zita de Bourbon-Parma (1892-1989), descendente da Casa de Bragança. O casal fora enviado para a Madeira pelo Governo inglês, aportando na Ilha a 10 de novembro de 1921, no cruzador Cardiff, fixando residência na Vila Vitória, dependência do Reid’s Palace Hotel. Com a chegada dos seus sete filhos e encontrando-se a família numa situação económica muito difícil, instalaram-se na Quinta do Monte, a convite de Luís Rocha Machado, a 2 de fevereiro de 1922. O ex-imperador sofreria já de problemas de saúde e o clima do Monte, naquele inverno, ter-lhe-á sido fatal, acabando Carlos por falecer com uma pneumonia dupla, inopinadamente, a 2 de abril daquele ano. No dia 5, de acordo com a sua última vontade, foi sepultado na igreja do Monte, onde ainda jaz; a família acabaria por sair da Madeira a 19 de maio do mesmo ano de 1922. O funeral do ex-imperador foi acompanhado de enorme comoção popular e a sua capela funerária, logo nos meses seguintes e nos anos subsequentes, foi alvo de especial devoção. Com efeito, Carlos veio a ser beatificado a 3 de outubro de 2004 pelo Papa João Paulo II (1920-2005), que visitara a Madeira a 12 de maio de 1991, encontrando-se então com os descendentes do ex-Imperador, que lhe entregaram documentação concernente ao falecido; reza a tradição que havia sido batizado Karol Józef Wojtyła, na Polónia, justamente em homenagem a esse imperador austro-húngaro católico. Ainda nos finais de 1922, a quinta foi visitada pelos aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral, no regresso da sua triunfal viagem aérea ao Brasil. Entre 1930 e 1940, em memória de Carlos de Áustria, a quem se atribui o incentivo da devoção do Sagrado Coração de Jesus na Madeira, o herdeiro da quinta, Luís da Rocha Machado (1890-1973), mandou construir uma capela dessa evocação em uma das dependências da casa, incorporando no seu interior um teto pintado com as armas da família Cossart. Nas décs. de 60 e 70, a quinta viveu um novo apogeu, sendo então residência de uma das filhas de Luís da Rocha Machado, Helena do Carmo Rocha Machado, que se casara com Fernando José Martins de Almeida Couto (1924-2006). Nesta época, volta a haver abundante documentação fotográfica dos interiores e exteriores da propriedade. A 11 de janeiro de 1968, em visita à Madeira, Zita da Áustria e sua filha mais velha, a arquiduquesa Adelaide de Habsburgo (1914-1971), acompanhadas por seus primos, D. Duarte Nuno (1907-1976), duque de Bragança (1907-1976) e a infanta D. Filipa de Bragança (1905-1990), estiveram pela última vez na quinta, sendo recebidas por Fernando de Almeida Couto. Deslocaram-se, depois, à igreja do Monte, para rezar na capela mortuária do ex-Imperador, na presença do governador civil, comandante Inocêncio Camacho de Freitas (1899- 1969) e do bispo do Funchal, D. João António da Silva Saraiva (1923-1976), que dirigiu as orações. A família Almeida Couto deixou de viver na quinta nos meados da déc. de 70, tendo ali residido pontualmente os pintores Lourdes Castro (1930-) e Manuel Zimbro (1944-2003), que acabaram por se fixar no Caniço. Nos finais da déc. de 70 e nos inícios da de 80, a venda da quinta foi alvo de anúncios na comunicação social continental, tendo havido pressão dos herdeiros para que fosse adquirida pelo Governo Regional da Madeira (GRM). Com o projeto de instalação do campus universitário da Universidade da Madeira (UMa) (Universidade da Madeira), o GRM veio a acordar comprar a quinta, cuja tutela foi confiada à Secretaria Regional da Educação, vindo o recheio a ser adquirido à parte, por um valor adicional de 10 mil contos. Em 1989, a comissão instaladora da UMa e a secretaria regional da tutela solicitaram uma peritagem do inventário do recheio, na ordem de cerca de 50 peças, sendo o valor então estimado em 15 mil contos e a posterior aquisição dos bens feita pela futura UMa. Em maio de 1990, o primeiro-ministro Prof. Aníbal Cavaco Silva visitou a quinta e percorreu demoradamente o parque na companhia das autoridades superiores da Região. Desta viagem resultou o aval do governo central para ali instalar a reitoria da UMa. Assim, a quinta foi comprada pelo GRM, em 1991, visando a futura instalação da UMa, que adquiriu o mobiliário da propriedade. Contudo, nos anos seguintes, o projeto de acomodação da reitoria da UMa na quinta foi abandonado, optando-se por uma instalação mais central, no antigo colégio dos Jesuítas e por estabelecer os vários departamentos, que entretanto tinham aumentado bastante em relação ao inicialmente equacionado, no complexo tecnológico da Penteada. Com essa alteração e encontrando-se devoluta, a propriedade entrou em acelerada degradação, passando para a tutela da Secretaria do Equipamento Social, para que fossem realizadas obras urgentes de consolidação da residência. Mas tanto o parque como a quinta chegaram a ser vandalizados: p. ex., uma pequena boca-de-fogo inglesa, do tipo caronada, datável dos primeiros anos do séc. XIX, que se encontrava junto ao miradouro, foi lançada do alto do paredão, e a capela foi alvo de fogo posto, perdendo-se todo o recheio e uma parte dos tetos de estuque. Nos anos seguintes, a quinta foi igualmente alvo do confronto político no quadro da sua tutela e utilização, encontrando-se a comunicação social repleta de acusações sobre o desaparecimento de boa parte do espólio e até da própria lista do mesmo. Por sua vez, algum do mobiliário da quinta equipa hoje a reitoria da UMa. Em 1996, o conjunto foi classificado pelo seu valor regional e, em agosto de 2000, foi aberto um concurso público para a concessão de obra pública, visando a recuperação, ampliação, restauro, conservação, valorização e divulgação da Quinta do Monte, incluindo a reabilitação do seu espólio botânico, a instalação de um parque temático e de um núcleo museológico. No entanto, a opção a curto prazo foi no sentido de proceder à concessão dos jardins, que passaram a ter exploração privada, encontrando-se abertos ao público como Jardins do Imperador.   Rui Carita (atualizado a 16.12.2017)

Arquitetura Património História Económica e Social

grupo de folclore da casa do povo de gaula

O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula foi fundado a 16 de setembro de 1978 e tem por objetivo principal divulgar e preservar as tradições da sua terra, através das danças, dos cantares, dos trajes, da reconstituição de costumes e de atividades culturais. Conta com uma intensa atividade, com atuações diversas em festas tradicionais, arraiais e vários eventos culturais, e com a participação em festivais e encontros de folclore. Dos seus registos musicais fazem parte a edição de dois CD (2009 e 2015) e a participação, com o tema “Chama-Rita de Gaula”, no DVD O Melhor do Folclore da Madeira (2014). Palavras-chave: folclore; trajes; música; dança; tradições populares.   O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula foi fundado a 16 de setembro de 1978, por alturas da festa de N.ª Sr.ª da Luz, padroeira da freguesia de Gaula. A iniciativa de formar um grupo de folclore partiu de um conjunto de jovens, com o apoio do P.e Alfredo Aires de Freitas. Chamava-se “Grupo de Folclore de Gaula”. Em 1987, passa a denominar-se “Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula”, ao integrar a Casa do Povo de Gaula, recentemente constituída. De 1987 até 2013, o Grupo foi dirigido por M.a de Fátima Vieira Quintal, substituída depois por Manuel Sena, que assume a liderança em 2014. Na sua formação inicial, contava com cerca de 25 elementos, número que foi aumentando ao longo dos anos, até chegar a cerca de 40 elementos em fevereiro de 2016. As suas idades variam entre os 4 e os 64 anos, predominando a faixa etária dos 15 aos 30 anos. O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula tem como principal objetivo divulgar e preservar as tradições locais, através das danças, dos cantares, dos trajes e da reconstituição de costumes. Gaula é uma freguesia pertencente ao concelho de Santa Cruz e foi fundada a 13 de setembro de 1509. Supõe-se que a origem do seu nome possa estar associada às novelas de cavalaria que têm como protagonista a figura de Amadis de Gaula. Gaula é conhecida por ser a freguesia dos adelos e das amoras. Antigamente, existiam muitos homens, conhecidos por “adelos”, que se dedicavam ao comércio ambulante, vendendo a crédito pelas freguesias da Madeira, e que eram provenientes de Gaula. Os adelos vendiam, principalmente, tecidos (a metro), mercadoria que já se comercializava na Ilha nos princípios do séc. XVII. Eram tidos como homens bem-educados, bem-falantes e bem vestidos. O seu traje típico é constituído por camisa branca, casaco e chapéu escuros e botas chãs. Além da figura do adelo, característica da freguesia, o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula procura representar, na sua indumentária, a variedade cultural típica da sua terra, e testemunhar a vivência dos seus antigos habitantes. Assim, apresenta o “traje de trabalho”, o “traje de cote” (quotidiano), o “traje de romaria” e o “traje domingueiro”, em uso desde o séc. XVIII até princípios do séc. XX, algo que resulta de investigações em livros e gravuras e de recolhas orais junto dos residentes mais idosos da localidade. No traje feminino, sobressaem as saias compridas, listadas ou de cor única. As saias listadas apresentam várias cores: fundo vermelho, com listas de cor verde, amarela e azul (o típico padrão madeirense); verde e branca; castanha e laranja; preta e branca; branca e castanha. As saias compridas de cor única apresentam também cores variadas, podendo ser de tonalidade castanha, vermelha, cor de vinho, branca, rosa, amarela ou ainda preta. Algumas saias lisas têm um ornamento de outra cor na roda, como a saia de cor castanha, debruada a vermelho, ou a saia vermelha, com um apontamento branco. As saias compridas, listadas ou de cor única, são acompanhadas por blusas brancas, abotoadas à frente, junto ao pescoço, com botões dourados, e por coletes, vermelhos ou pretos, bordados. Alguns elementos femininos usam uma capa, que pode ser vermelha, preta ou amarela. A indumentária complementa-se com um ornamento para a cabeça, a carapuça feita em lã, de cor azul, forrada a vermelho, ou vermelha, debruada a azul. Algumas mulheres também usam um lenço branco, por baixo da carapuça, designado popularmente por “cobre nuca” ou “toalha de cabeça”, sendo este o acessório que diferenciava as casadas das solteiras. Os trajes femininos mais simples são compostos de saias compridas de cor única, acompanhadas de blusas com motivos florais e um lenço na cabeça. No traje masculino, imperam as cores escuras ou o branco (em fatos de linho ou de seriguilha). Os homens vestem: calças pretas e colete preto; calção e colete preto; calças brancas e colete preto ou casaco preto; e ainda calção branco largo, com franzido sobre o joelho. A indumentária masculina completa-se com camisa branca em todas as variantes do traje. Na cabeça, os homens usam carapuça azul, chapéu preto ou barrete de orelhas feito com lã de ovelha. Homens e mulheres usam a tradicional bota chã, confecionada com pele de cabra e sola em pele de vaca, nos modelos masculino e feminino (com uma tira vermelha à volta do cano, no caso das mulheres). Como adereços, o grupo ostenta um cesto de bordado, uma cesta de almoço, um garrafão de cinco litros, uma banheira da lavadeira, um aguador e uma foice. A atividade do Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula tem sido profícua e variada. Na Madeira, regista-se a sua presença em arraiais e em festas tradicionais e religiosas, como nos cantares dos Reis, nas visitas do Espírito Santo, nas missas do parto, nos cantares de Natal, nas festas de Santo Amaro, em Santa Cruz, e nas festas de Natal e fim de ano, no Funchal. Tem participado em diversos eventos culturais realizados na Ilha, como a Festa da Castanha e o Arraial da Ginja, no Curral das Freiras, a Feira das Sopas do Campo, em Boaventura, a Festa da Cebola, no Caniço, a Expo Madeira, no Funchal, entre muitas outras comemorações e festas populares. O Grupo conta também com atuações em unidades hoteleiras e em restaurantes madeirenses, onde usa, sobretudo, o traje típico madeirense, mais conhecido pelo turista. A participação em festivais e encontros de folclore, regionais e nacionais, tem sido uma constante na dinâmica do Grupo, proporcionando-se intercâmbios culturais com outros agrupamentos de folclore e etnográficos. Na Madeira, além da presença regular no Festival Regional de Folclore, destaca-se, em agosto de 2004, a atuação na IV Gala Internacional de Etnografia e Folclore Manuel Ferreira Pio, realizada no Monte, Funchal, que contou também com a participação de grupos de fora da Ilha, v.g., o Grupo Amigos de Punta Rasca (Canárias) e o Grupo Dr. Gonçalo Sampaio (Braga). No âmbito nacional, destacam-se as suas representações em intercâmbios culturais, com os seguintes grupos: Grupo Folclórico e Etnográfico de Fermentelos, em Aveiro (1995 e 2001); Rancho Folclórico “Podas e Vindimas”, em Arruda dos Vinhos (1996); Rancho Folclórico “Os Rurais”, de Água Derramada, no concelho de Grândola, distrito de Setúbal (1997); Grupo Folclórico e Etnográfico de Corredoura, em Guimarães (1998); Grupo de Folclore da Relva, em São Miguel, Açores (1999); e Grupo Folclórico de Fajarda, em Santarém (2002). O Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula, em colaboração com iniciativas da Junta de Freguesia de Gaula, recriou antigas tradições da freguesia, e.g., em 2011, a representação “Levar Comer aos Hômes”, uma tarefa do quotidiano de Gaula, dos anos 50 e 60 do séc. XX, e, em 2013, a “Reconstituição Histórica de Lavar Roupa nos Lavadouros dos Anos 60 do Século XX”, ambas integradas nas festas da freguesia de Gaula. Do seu repertório musical fazem parte bailados e canções recolhidos na localidade – destacando-se o “Chama-Rita de Gaula”, um dos bailados mais antigos da freguesia, executado em roda, e que apresenta características mouriscas –, bem como temas comuns à ilha da Madeira. Os instrumentos musicais do Grupo incluem os cordofones tradicionais madeirenses (viola de arame, braguinha e rajão), tréculas, ferrinhos, brinquinho, bombo, reco-reco, pandeireta, violino e acordeão. Em 2009, contribuíram para o engrandecimento do acervo musical do folclore madeirense, com a edição do seu primeiro CD, composto de 14 peças musicais, nomeadamente “Brinco de Oito”, “ABC do Amor”, “Chama-Rita”, “Pum-pum, Dá-lhe, Dá-lhe”, “Cantiga dos Reis”, “Bate Viradinho ao Chão”, “Mourisca”, “Os Dez Mandamentos”, “Homenagem ao Sr. Marino Marujo (Mourisca)”, “O Paspalhão”, “Dona Alberta”, “Menina Que Sabe Ler”, “Vamos Saltar ao Pau” e “Minha Terra é a Madeira”. Em setembro de 2015, lançaram o segundo CD (no âmbito das comemorações do seu 37.º aniversário e do arraial de N.ª Sr.ª da Luz), composto de 14 temas, alguns dos quais já editados no primeiro. A título coletivo participam, em 2014, com o tema “Chama-Rita de Gaula”, no DVD O Melhor do Folclore da Madeira, um projeto da Secretaria Regional da Cultura, Turismo e Transportes, que juntou 14 grupos folclóricos madeirenses.   Sílvia Gomes (atualizado a 13.12.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

quinta das cruzes

João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471) e a família começaram por se instalar, precariamente, nos arrifes de Santa Catarina, entre cerca de 1421 e 1425; alguns anos depois, também de forma precária, fixaram-se na área do futuro convento de Santa Clara, mandado levantar pelo filho e segundo capitão-donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Tendo o primeiro capitão, Zarco, começado a registar, por escrituras públicas, na déc. de 50 do séc. XV, as propriedades dos seus descendentes e outras, nomeadamente a doação dos terrenos junto da capela de S. Paulo, a 25 de maio de 1454, para a edificação do primeiro hospital do Funchal, deverá datar da década seguinte a sua instalação na área da capela da Conceição de Cima, templo que mandara erguer para acolher a sua sepultura. As habitações dessa época eram, no entanto, ainda precárias, como nos informa o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593), indicando que a primeira casa de pedra que se fez, depois de acabadas as igrejas, fora a de Constança Rodrigues, filha de Diogo Afonso de Aguiar e neta de Zarco, junto à atual capela de S. Paulo. Constança Rodrigues não casara e ficara a viver com os avós, pelo que a construção da dita casa deve datar de pouco depois de 1471, ano provável da morte de Zarco (Arquitetura). O segundo capitão terá ocupado a residência precária do pai, mas, ao assumir a construção do convento de Santa Clara, para o que cedeu terreno e outros meios, terá iniciado uma outra edificação, mais acima, para norte, que veio a dar origem às casas das Cruzes. O futuro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530), casou-se por volta de 1488. Pelo menos desde 1 de julho de 1495, data em que compareceu na Câmara do Funchal como alcaide-mor, tinha residência no chamado altinho das fontes, onde depois se levantou a fortaleza (Palácio e fortaleza de S. Lourenço). Nesse quadro, o codicilo do testamento do pai, de 1501, determina que o filho “Pedro Gonçalves da Câmara, haja as casas em que eu moro com todo o seu assentamento” (ARM, Juízo..., cx. 82, n.º 1). Não existe aqui informação específica quanto às habitações em questão, mas, como mais tarde as mesmas foram vendidas pelo neto e homónimo Pedro Gonçalves da Câmara ao seu tio-avô Francisco Gonçalves da Câmara, sabemos que se tratam das casas das Cruzes. As casas das Cruzes aparecem representadas na planta de Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), realizada entre 1567 a 1570, na sequência do ataque dos corsários franceses ao Funchal, ocorrido no ano anterior, e com a indicação “casas de Luís de Noronha” (BNB, cart., 1090203), indivíduo que pensamos ser sobrinho de Pedro Gonçalves da Câmara. Essas casas, no entanto, não eram propriedade sua, pois uns anos mais tarde, a 16 de setembro de 1575, o sobrinho ou sobrinho-neto Pedro Gonçalves da Câmara, no Arco da Calheta, para resolver uma série de problemas pendentes do tempo do pai, António Gonçalves da Câmara (c. 1510-1567), teve de vender as casas das Cruzes. Com efeito, António Gonçalves da Câmara, que fora nomeado caçador-mor de D. João III, dissipara grande parte da fortuna. Assim, em 1575, o jovem Pedro Gonçalves de Abreu declarava que, “por ser já emancipado e ter licença do juiz para poder vender as terras baldias e as casas das Cruzes para suprimento das mais fazendas que tinha no Arco da Calheta, sem o que não podia fazer”, vendia ao tio-avô Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586) as mesmas. De facto, este veio a tomar posse das terras a 22 de setembro. Poucos anos depois, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) relatava a residência de Francisco Gonçalves da Câmara como “uns paços mui grandes e sumptuosos” (FRUTUOSO, 1873, 115); note-se, contudo, que não se tratava ainda do edifício que chegou aos nossos dias, sucessivamente reconstruído. A avaliar pelo referido traçado de Mateus Fernandes, a residência possuía planta em L, com um corpo virado a sul não muito diferente, em planta, daquele que ainda possui, e um outro para poente, também como hoje se vê. É possível que, do edifício dos primeiros anos do séc. XVI, tenham ficado duas portas rematadas por lintel esculpido ao gosto manuelino, transformadas em janelas nas obras de reabilitação dos anos 50 do séc. XX (Arquitetura senhorial). As casas das Cruzes passaram depois a Joana de Noronha (c. 1550-1613), filha de Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586) e, em seguida, ao sobrinho António do Carvalhal Esmeraldo, falecido em 1648, sucedendo-o o morgado Francisco Esmeraldo Correia Henriques na casa das Cruzes. Provavelmente na posse deste último, por volta de 1660, o edifício foi dotado de um corpo novo, adossado à fachada para servir de entrada de aparato, constituindo-o um terraço, hoje coberto, assente sobre arcaria em cantaria vermelha do Cabo Girão e com acesso por poente. Nos finais de Seiscentos, aquele morgado mandou também levantar no local a capela de N.ª S.ª da Piedade, com acesso público pelo Lg. das Cruzes ou Lg. da Bela Vista, obra realizada na altura em que a propriedade foi ampliada para sul. Na fachada da capela foi mandada gravar a data de 1692, embora a dotação da mesma seja de 25 de maio de 1695 e a vistoria eclesiástica para efeitos de autorização de culto date de 14 de junho seguinte. O morgado subsequente, António Correia Henriques Lomelino, casou com D. Guiomar Jacinta de Moura Acciauoli, a 21 de novembro de 1718; alguns anos depois, com a morte da sua mãe, Catarina Lomelino de Vasconcelos, o morgado ficou herdeiro dos vínculos dos Lomelino, onde estava incluído o convento da Piedade de Santa Cruz. Daquele casamento nasceu Ana Guiomar Acciauoli Lomelino, conhecida como morgada das Cruzes, que desposou, em 1745, Nuno de Freitas da Silva, sétimo administrador do vínculo dos Freitas da Madalena do Mar e que se dizia ser o homem mais rico da Madeira. Educado em Londres, a ele se devem, muito provavelmente, alguns dos melhoramentos realizados nas casas das Cruzes após o terramoto de 1748, período em que o edifício central adquiriu a forma que hoje conhecemos. Nos meados e finais do séc. XVIII, o jardim foi dotado de cascatas e fontes, parte em embrechados de tufo vulcânico e, inclusivamente, pinturas a fresco, como depois outras com aplicações de restos de porcelanas e faianças, sucessivamente melhoradas e ampliadas ao longo da centúria seguinte. A fonte e cascata com os frescos onde parecem figurar Vénus e Apolo, e.g., deve datar de cerca de 1770, podendo essas pinturas terem sido executadas pela oficina de António Vila Vicêncio (c. 1730-1796). Data dessa campanha de obras dos finais do séc. XVIII o conjunto representativo de quinta madeirense que chegou até nós, composto por um amplo parque demarcado por muros e rematado nos extremos por “casinhas de prazer” (Casinha de prazer), contendo ainda uma capela, neste caso, com acesso exterior e com o percurso interior percorrido por caminhos empedrados com elaborados desenhos, formados pela disposição de pequenos seixos; este parque tem espaços ajardinados e encontra-se dotado de vários tanques de água, além das fontes e cascatas mencionadas. Nos finais desse século, a planta de Agostinho José Marques Rosa que data de cerca de 1800 menciona, entre uns poucos palácios, o “de Nuno de Freitas” (BPMP, cota PP190/CE), ou seja, a quinta das Cruzes. Era então propriedade do herdeiro Nuno Martiniano de Freitas, passando depois ao seu filho, o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), que casou com uma prima direita, D. Ana Welsh de Freitas Lomelino, figura notável da sociedade do seu tempo. A planta do Funchal do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), levantada na sequência da aluvião de 9 de outubro de 1803, tal como a planta seguinte, de 1805, do Ten. Paulo Dias de Almeida, registam o amplo parque, as casinhas de prazer, a capela e um corpo, que foi demolido perto dos finais do século seguinte, situado na área do atual roseiral da entrada do museu Quinta das Cruzes. Quinta das Cruzes. Foto: BF O conjunto que conhecemos hoje foi ainda alterado e melhorado ao longo dos meados do séc. XIX, quando os Lomelino conseguiram, e.g., reivindicar a propriedade do convento da Piedade de Santa Cruz. Com efeito, alguns morgados contestaram a lei de extinção das ordens religiosas de 30 de maio de 1834 e a posterior incorporação dos seus bens no Estado, nomeadamente Nuno de Freitas Lomelino (1813-1880), último padroeiro e morgado das Cruzes, em 1836, que veio a requerer os bens do antigo convento. A sentença do Tribunal da Relação de Lisboa, a favor de Nuno de Freitas Lomelino, tem a data de 1844; a 13 de julho de 1852, tomou posse das ruínas do antigo convento, transferindo algum desse património para as Cruzes, designadamente o túmulo do fundador, trasladado para a capela da Piedade; existem outros elementos arquitetónicos, pelo menos numa das casinhas de prazer, que parecem ser também provenientes desse convento. A quinta foi vendida, em 1863, a Tristão Vaz Teixeira de Bettencourt e Câmara (1848-1903), barão do Jardim do Mar. Com o seu falecimento, passou a outros proprietários e foi arrendada. Em 1916, a residência foi adaptada para servir de sede à casa bordados A. J. Froes & C.ª Suc.. Entre 1927 e 1931, funcionou ali o Quinta das Cruzes Hotel, cujos chás dançantes eram afamados, recolhendo nele o Gen. Adalberto de Sousa Dias (1865-1934) como deportado político, em fevereiro de 1931; envolvera-se na revolta do Porto, em 1927 e, em breve, interviria na Revolta da Madeira. Já desde 1929 que uma parte da quinta funcionava como sede da banda municipal Artistas Funchalenses, que organizava sessões de cinema ao ar livre no parque do hotel. Durante a Segunda Guerra Mundial, a propriedade serviu de residência a refugiados vindos de Gibraltar. Depois da guerra, residia numa parte do edifício o ourives e antiquário César Filipe Gomes (1875-c. 1949), que, em 1946, propôs doar a sua coleção de antiguidades ao governo da ilha da Madeira. Em sequência, em 1948, a Junta Geral adquiriu a quinta para instalar aí a dita coleção. A intervenção para a adaptação às novas funções iniciou-se em 1950, sendo o museu inaugurado a 28 de maio de 1953.   Rui Carita (atualizado a 16.12.2017)

Arquitetura Património História Económica e Social

indústrias do turismo

O alerta oficial para o turismo e todas as futuras indústrias relacionadas com o mesmo ficou a dever-se ao Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), que, a partir de 1847, desenvolveu uma intensa pressão sobre toda a sociedade insular nesse sentido. O governador implantou, inclusivamente, a iluminação pública no centro da cidade, no que envolveu a Câmara Municipal e os comerciantes, tentou criar normas de relação cívica “com os inúmeros estrangeiros que nos visitam”, propôs a edição de “memórias históricas” (MENESES, 1849, I, 607-608), no âmbito dos anais municipais e chegou mesmo a propor a sua publicação em várias línguas, e, no palácio de S. Lourenço, em 1850, realizou uma exposição industrial que foi a base da representação madeirense na célebre Exposição Universal de Londres do ano seguinte. Datam dessa época o desenvolvimento dos serviços de instalação e transporte dos forasteiros, que deixam de alugar prioritariamente as antigas quintas madeirenses para optarem por instalações hoteleiras, e dos transportes locais, como os carros de cesto do Monte e os carros de bois, e o lançamento das indústrias de artesanato, como bordados, vimes e embutidos, que atingiram depois padrões de certa qualidade na Madeira, dada a sua ligação à indústria geral do turismo. Com profundas raízes na cultura e nas tradições locais, o seu aproveitamento económico, com o aumento dos índices de turismo na Ilha, apresentou aspetos totalmente novos e até inesperados, como é o caso dos bordados, cujo peso económico chegou, pontualmente, a ultrapassar o dos vinhos. A indústria dos bordados na Madeira, enquanto indústria, foi introduzida pelos Ingleses; não que não houvesse já trabalhos de bordado, mas foi com os comerciantes ingleses que este trabalho se adaptou progressivamente aos vários mercados internacionais. As primeiras referências que temos na Ilha à sua existência datam de 1849, quando o futuro conselheiro José Silvestre Ribeiro os refere como “produtos e artefactos de algum merecimento”, numa nota exarada do Governo Civil do Funchal em 23 de novembro desse ano, depois transcrita num periódico continental (Revista Univesal Lisbonense, 1849, 133-134). Com a crise de 1847, o célebre “ano da fome”, o Gov. José Silvestre Ribeiro reativara a anterior “Comissão Central de Auxílio”, que funcionara entre 1843 e 1844. A ideia foi lançada na “Assembleia-geral” realizada a 4 de fevereiro desse ano de 1847, no palácio de S. Lourenço, reunindo os elementos do Conselho do Distrito, e então alargada a outras autoridades. Foi nessa assembleia que se propôs a reativação da antiga “Comissão de Auxílio”, o que se efetivou no dia 6 seguinte, com o título de “Comissão de Socorros Públicos”, e que se constituiu ainda comissões concelhias. A comissão central foi constituída pelo prelado D. José Xavier Cerveira e Sousa (1810-1862), como presidente, Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcelos, John H. Holloway, William Grant e João Francisco Florença, como vogais, e, como secretário, Joseph Selby, então vice-cônsul inglês no Funchal e depois também cônsul da Dinamarca (VIEIRA e RIBEIRO, 1989, 39). Os fundos recolhidos por esta comissão haveriam de ser investidos em obras públicas e, também, no artesanato dos bordados, reconhecendo o trabalho já efetuado por algumas mulheres madeirenses e que as mesmas, através do seu trabalho, poderiam contribuir para o sustento dos seus agregados familiares. Em 1850, na exposição industrial de S. Lourenço, já há referências à presença de panos e de bordados e, para a célebre Exposição Universal de Londres, na representação madeirense dos objetos manufaturados, seguiram igualmente panos de linho, guardanapos, rendas de linho, xaile de meia e obras de croché, demonstrando a visibilidade dessa nova atividade. No entanto, na exposição seguinte, de 1853, descrita, embora sumariamente, por Isabella de França, que a visitou a 29 de abril, a atenta escritora não refere a presença de bordados, limitando-se à descrição das giestas em flor que decoravam os currais, de fetos muito bonitos, etc. A sua apresentação como produto para venda aparece na exposição industrial do Funchal de 1850, e, no ano seguinte, alguns bordados eram expostos em Londres, na Exposição Universal, embora a sua divulgação só ocorra a partir de 1854 e 1856, com as “meninas” Phelps, filhas de Joseph Phelps (1791-1876), antigo presidente da Associação de Comerciantes do Funchal, e de Elisabeth Dickinson (1796-1876). Na correspondência e nos diários das irmãs Mary Phelps (1822-1893) e Bella Phelps (1820-1893) não existe, no entanto, qualquer referência a esse respeito, nem ao ensino de bordados, nem à sua comercialização, como a tradição inglesa tem transmitido. O comércio de bordados seria seguido pelos irmãos Robert e Franck Wilkinson, também Ingleses, estabelecidos na Madeira a partir de 1862 – nesse ano, segundo a “Estatística Industrial do Distrito do Funchal”, de Francisco de Paula de Campos e Oliveira, existiriam mais de 1000 bordadeiras na Madeira, rendendo a venda anual de bordados cerca de 100 contos de réis (SILVA e MENESES, 1998, I, 162). Ao mesmo tempo, diariamente consumiam-se em bordados cerca de 15 kg de linhas. No entanto, a exportação registada pela Alfândega era somente de 6 a 7 contos de réis, pelo que a sua saída se dava, essencialmente, por meio dos turistas, que os transportavam na bagagem, o que justifica que este assunto se torne, depois, um cavalo de batalha da Associação Comercial do Funchal. Elizabeth e Joseph Phepls. 1875. Arquivo Rui Carita. Na Madeira, o bordado para exportação começou por ser executado em tiras de pano, e estimava-se que uma bordadeira trabalhava um dia inteiro para produzir 0,5 m de bordado. Estas tiras destinavam-se a ser aplicadas em roupa branca, confecionadas nos sítios de destino, quer nas casas da cidade do Funchal, quer no estrangeiro. Esta época representou na Europa um novo interesse pela indumentária, especialmente feminina, mesmo íntima, que dominou os hábitos de vestir das classes mais favorecidas e que se estendeu à restante roupa, como a de cama, com lençóis e almofadas, cortinados, etc. Esta fase correspondeu a criações ingénuas e rudimentares, da responsabilidade da própria bordadeira, que, inspirada em temas antigos e tradicionais, utilizava riscos próprios. Mais tarde, as bordadeiras passaram a criar outros modelos a partir de pequenos carimbos ou rodízios feitos em madeira de buxo, muitos fornecidos pelas casas comerciais do Funchal, com os quais imprimiam o desenho sobre o pano, utilizando como material de impressão papel químico ou as antigas almofadas de carimbo embebidas em tinta azul. Vestido de manhã. 1887 O bordado da Madeira sofreu uma certa concorrência na déc. de 80, especialmente do bordado suíço, parcialmente mecanizado e com uma outra qualidade de execução, de acordo com os padrões internacionais. O bordado madeirense, entretanto, mantinha-se perfeitamente artesanal, sem qualquer inovação nos desenhos e nos padrões apresentados. Embora a sua execução continuasse dentro de bons padrões de qualidade, como atesta Helen Taylor, cidadã inglesa que residiu na Madeira durante algum tempo e que, em 1882, referia que “muito bom bordado” era vendido de porta em porta (TAYLOR, 1882, 27), o produto não atingia, ainda, um patamar que lhe permitisse ser internacionalmente apresentado nas grandes lojas de moda. Mesmo assim, os níveis de exportação conseguiram manter-se, somente com alguma quebra, embora não em valores exponenciais, como até então, e nos quais não é possível contabilizar, acrescente-se, nem o bordado vendido de porta em porta, nem o vendido nos navios que estacionavam na baía do Funchal. Datam do final do séc. XIX, por volta de 1890, as primeiras casas alemãs exportadoras de bordados e as principais responsáveis pela divulgação, na Europa Central e na América, deste produto. O mercado inglês, por razões várias, tinha deixado de se mostrar interessado nos bordados da Madeira, mas estes passaram a encontrar uma boa recetividade nos mercados centrais europeus e americanos. Dos finais do séc. XIX data também a fixação no Funchal de uma importante comunidade de sírio-americanos, que igualmente iriam apostar fortemente na exportação dos bordados, principalmente para a América do Norte. Este aumento tem por base as alterações introduzidas no mercado internacional pela Alemanha, que passa a apoiar, sob o ponto de vista fiscal, num sistema aduaneiro denominado drawback, os tecidos que, exportados da Alemanha, eram reimportados estando valorizados com elementos vários, como seja o bordado, sendo então novamente reexportados, preferencialmente para o mercado americano. Nesse quadro, entre 1893 e 1910, e.g., as casas de exportação de bordados no Funchal quase triplicaram, alterando profundamente o seu esquema de distribuição e produção anteriores. As casas de bordados passaram a elaborar os desenhos que pretendiam, distribuindo assim às bordadeiras do campo o tecido já estampado através de maquinaria própria, que era depois recolhido semanalmente pelos seus agentes. As casas de bordados passaram ainda a possuir serviços especiais para executarem os desenhos e a estampagem, assim como depois para alguns acabamentos finais, que incluíam as lavagens que apagavam os vestígios dos desenhos, o engomar e o empacotar do produto final. De um global de exportação de pouco mais de 200 contos de réis, nos inícios do séc. XX, passava-se, em 1919, para mais de 600 contos. Por esta altura, no Funchal, existiriam cerca de 34 casas exportadoras de bordados, parte das quais na mão de firmas norte-americanas, orientadas no Funchal por elementos de origem síria. A questão da sobrevivência do bordado da Madeira apaixonou alguns historiadores, não sendo fácil explicar a sua capacidade de sobrevivência perante a crescente industrialização de outros centros de produção. A defesa da sua qualidade com base no pressuposto de que, por ser manual, era superior ao mecânico, não resiste à mínima análise, pois os bordados mecânicos revelavam-se idênticos, não sendo facilmente destrinçáveis dos manuais, salvo um ponto mais encorpado no “bordado Madeira”, o que não deixa de ser um pormenor. Acresce ainda que muito do bordado manual apresenta imperfeições de execução. Também o mito da sua originalidade não resiste à análise, pois a maior parte dos desenhos eram enviados pelos importadores e os pontos utilizados são comuns a muitos outros bordados, como o “Richelieu”, “garanitos”, “estrelas abertas” ou “fechadas”, “caseado”, “pesponto”, “cavacas”, “ilhós”, etc., pouco ou nada se tendo inovado nesse campo, com base na alardeada “tradição do bordado Madeira”. A questão assenta assim, essencialmente, no preço da mão de obra, excecionalmente barata (CÂMARA, 2002, 203-221). Bomboto de vimes e bordado. 1936. Arquivo Rui Carita No mesmo caminho se encontram os trabalhos de vime, essencialmente efetuados na área da freguesia da Camacha, mas cujos valores económicos nunca se aproximaram dos do bordado, até porque este se chegou a estender por quase toda a Ilha, enquanto o vime foi pouco mais longe que a Camacha. Estes trabalhos eram construídos a partir dos ramos do vimeiro, salis fragilis, arbusto que se cultiva até uma altitude de cerca de 800 m, em locais húmidos e com abundância de água, quase sempre perto de ribeiras. As tarefas de preparação da planta, embora complexas e utilizando alguma mão de obra, eram compensadas pelo baixo preço da mesma nas freguesias rurais, como era a da Camacha. O tratamento exigia mergulhar as pontas das hastes do vimeiro nas ribeiras, ou em tanques, onde ficava cerca de três meses, para rebentar ou refilar o caule, após o que podia ser descascado. Esta operação era da responsabilidade dos produtores, muitos dos quais estavam na costa norte da Ilha, que assim o vendiam quase sempre já descascado. Após esta operação, o vime era seco ao sol durante cerca de dois meses, após o que era novamente humedecido para poder ser trabalhado. O trabalho de verga é comum em toda a Europa e noutros locais do mundo, como no Oriente, já sendo mencionado na Madeira, nos meados do séc. XVI, por Gaspar Frutuoso. Refere assim o cronista, por interposta pessoa, pois nunca foi à Madeira, que, “nas faldas da serra da banda do Sul”, existia muita giesta, “que é mato baixo, como urzes”, e que dá flor amarela. Era gasto nos fornos e dele se colhia “a verga que esbulham como vime”, de que se fazem “os cestos brancos muito galantes e frescos para servir de mesa, e oferta de batismo, e outras coisas, por serem muito alvos, e limpos”. Por isso se vendiam então para fora da Ilha e do reino de Portugal, porque se faziam “muitas invenções de cestos muito polidos e custosos, armando-se às vezes sobre um dez, e doze diversos, ficando todos” como uma “peça só”. Acrescenta ainda que “para se fazerem mais alvos do que a verga é de sua natureza, ainda que é muito branca, os defumam com enxofre” (FRUTUOSO, 1968, 138). Seriam obras deste género as enviadas para a já mencionada Exposição Universal de Londres de 1852 por José Silvestre Ribeiro, citando-se então “cestos de verga de giestas”. Bomboto de vimes. 1950. Arquivo Rui Carita.   Bomboto de vimes. 1936. Arquivo Rui Carita Refere o Elucidário Madeirense, por certo Carlos Azevedo de Meneses, que se debruçou mais especialmente sobre esta área, que o desenvolvimento e a industrialização deste tipo de trabalhos se ficou a dever a William Hinton (1817-1904), que incentivou alguns trabalhadores a executá-lo, aproveitando as especiais e húmidas condições climáticas do local. Um dos primeiros artífices teria sido António Caldeira, o qual, desmanchando uma cesta importada pela família Hinton, a utilizou como modelo para fazer outra idêntica em vime. No entanto, parece que na freguesia da Camacha já se executavam trabalhos semelhantes em vime por volta de 1812, por certo mais rudes e sem o vime descascado, como a cestaria que se utiliza ainda hoje nas vindimas e para obras várias de construção civil, sobretudo para transporte de pedras e madeiras. As obras de vime tiveram larga utilização na Madeira, fornecendo um género de mobiliário adaptado ao clima um tanto húmido da Madeira, vulgarizando-se nos lugares ao ar livre. Foram ainda o mobiliário de eleição para os visitantes temporários do Funchal, especialmente no inverno, que deste modo mobilavam as suas casas por preços módicos e em conformidade com um certo exotismo apreciado em meados e finais do séc. XIX. O seu fabrico disparou na déc. de 80, com o exponencial aumento da navegação atlântica, sendo vendido por bomboto e acumulando-se nos decks dos grandes paquetes, como é patente em inúmeros registos fotográficos da época, servindo, inclusivamente, de mobiliário de bordo, leve e facilmente transportável. Miss Henriette Wilhelmina Montgomery Cadogan na Quinta da Saudade. 1888. Arquivo Rui Carita. A procura motivada pelo fluxo turístico fez crescer a produção, assim como a população da freguesia da Camacha que se dedicava a este artesanato, mas não criou novas relações de produção, como nos bordados, que melhorassem e favorecessem a atividade com algumas inovações mecânicas. O aparecimento, em 1902, no Funchal, de uma oficina da firma britânica Raleigh C. Payne & C.ª, que chegou a mecanizar alguns segmentos da produção, não teve grande seguimento, sendo o grosso da produção efetuado na Camacha e de modo totalmente manual. A produção envolvia quase toda a população daquela freguesia, incluindo mulheres e crianças, cabendo mesmo a algumas mulheres, as cesteiras, transportar parte da produção à cabeça para o Funchal. Salvo a já referida Raleigh C. Payne & C.ª, as restantes firmas eram essencialmente constituídas por capitais locais, com as oficinas na Camacha e um ou outro escritório no Funchal. A produção ficou assim entregue, até aos meados do séc. XX, aos camponeses camachenses, não tendo havido qualquer intervenção mais especializada que lhes melhorasse a qualidade visual e lhes organizasse a produção. Consultando um catálogo dos inícios do século, dos poucos que foram produzidos nesta área, da firma A. F. Nóbrega & Filho, com escritório no Funchal e “com fábrica na origem, na pitoresca freguesia da Camacha”, constata-se que, embora apresentando uma espantosa coleção de mais de 420 obras de vimes (RODRIGUES, 2000, 3-4), não passam os seus modelos do pitoresco e do engenhoso. As obras de marcenaria na Madeira foram quase contemporâneas do povoamento, tendo tido por base o excecional parque arbóreo encontrado na Ilha. Em 1506, e.g., Valentim Fernandes descrevia a utilização das madeiras da Ilha, fazendo uso, por certo, de informações referentes ao século anterior. Assim, refere que se explorava a madeira de cedro, sendo então possível obter tabuado de sete palmos de largo, ou seja, cerca de 1,5 m, referindo que quase parecia madeira para mastros de navios (Arsenal de S. Tiago). Desta madeira fabricavam-se caixas para casa, mesas e cadeiras, conforme também acrescenta. Os trabalhos de preparação das madeiras são igualmente descritos por Gaspar Frutuoso mais de 70 anos depois, com um muito interessante apontamento sobre o trabalho da serra de água do Faial, também referindo que se exportavam móveis e bufetes. Nos meados do séc. XVII, existem inclusivamente cartas de examinação do mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), de 28 de setembro de 1656, registada na Câmara do Funchal, certificando que Filipe Correia fora examinado como mestre de ofício de “marceneiro e ensamblador”, e que o mestre das obras “o achara muito destro e hábil em fazer escrivaninhas e bufetes ao mosaico, guarda-roupas marchetados de ébano”, tal como mosquetes (PEREIRA, 1968, II, 788). Estes trabalhos tiveram assim continuidade nos sécs. XVII e XVIII, então utilizando-se madeiras de outras proveniências, como do Brasil, de que os mais importantes exemplos deverão ser o para-vento e os púlpitos, assim como os vários móveis de parede da sacristia da igreja do Colégio dos Jesuítas do Funchal, trabalho efetuado pela mesma data, como consta no para-vento: 1725. Na continuidade desse trabalho, na listagem dos produtos enviados para a Exposição Universal de Londres por José Silvestre Ribeiro, nas “Obras de marcenaria”, figuram mesas, caixas, tabuleiros de xadrez, estantes e facas para cortar papel (FREITAS, 1852, 404-407), não sendo fácil identificar os trabalhos e os artesãos. É provável que uma das peças enviadas a Londres tenha sido a garrafeira de José António de Sousa, que assinava também como “artista madeirense”, a qual se encontra na coleção do Museu Quinta das Cruzes, e que esteve na exposição de 1850 realizada no palácio de S. Lourenço, onde o ensamblador premiado foi António José de Abreu. Outros nomes de embutidores ou ensambladores madeirenses aparecem mais tarde, já perto dos finais do século, com a integração destes mestres no ensino profissional, oficialmente por volta de 1893, na então Escola de Desenho Industrial, na R. de Santa Maria, cujo edifício subsiste, com a sua alta torre. O primeiro elemento de certa notoriedade teria sido Manuel Rodrigues Gaspar, com oficina própria junto ao eremitério da Penha de França, mestre da oficina daquela escola. Já então se distinguiam outros mestres embutidores, entre os quais João de Sousa, José Gregório de Sousa e Eduardo Pereira (c. 1860-1940), que se tornaram notórios a partir dessa data. O último criou uma mesa decorada com os monogramas reais, que foi oferecida ao casal real D. Carlos e D. Amélia na visita que fizeram às ilhas em 1901, e depois depositada na Fundação D. Manuel II, em Lisboa. Os temas dos trabalhos de embutidos, tal como acontecia nos bordados, eram essencialmente vocacionados para os visitantes estrangeiros, repetindo até à exaustão pares de vilões a dançar, carrinhos de bois e cestos do Monte, mais ou menos envolvidos por flores e monótonas cercaduras, como refere, por volta de 1906, Vitorino José dos Santos. Refere o mesmo que havia então na Madeira alguns operários e embutidores “por ensino técnico”, dispondo de “talento para a composição artística, que produzem trabalhos de reconhecido merecimento, procurados e apreciados por pessoas entendidas”. Não deixa, no entanto, de mencionar que, em geral, aos “operários madeirenses falta cultura intelectual e gosto artístico”, o que os desinteressa da ideia de “progredir, variando e melhorando a composição dos seus trabalhos”, e, por isso, a maioria dos embutidos continua “rotineiramente a apresentar-se segundo os mesmos modelos”, quase sempre figurando os tradicionais “vilões madeirenses”, os carros de bois, redes e “carrinhos do Monte”, guarnecidos de “cercaduras de desenhos simétricos e pouco variados” (SANTOS, 1907). Mesa com cabeças de vilºoes. 1930 Miguéis e Franco. Arquivo Rui Carita. O diploma de 4 de setembro de 1916 determinou a oficialização da marcenaria na então Escola Industrial e Comercial do Funchal, através da constituição de uma oficina de “incrustação e embutidos”, que só viria a funcionar em outubro de 1919, sendo seu primeiro regente o ensamblador Manuel dos Passos Aguiar, depois medalha de ouro da grande Exposição Industrial Portuguesa de 1939 (PEREIRA, 1968, II, 789). Com este regente, aparecem a trabalhar o já citado Eduardo Pereira, o marceneiro Francisco Franco (pai), cujo diploma se encontra no espólio do Museu Henrique e Francisco Franco, os pintores Henrique Franco (1883-1961) e Alfredo Miguéis (1883-1943), assim como, provavelmente, também o escultor Francisco Franco (1888-1955). Devem datar dessa época os desenhos “arte nova” com cabeças de menino com barrete de vilão, bem ao gosto de Henrique Franco, ou algumas mesas com cabeças de senhoras, indubitavelmente da autoria de Alfredo Miguéis. A saída dos irmãos Franco para Lisboa nos anos 30 e o falecimento de Alfredo Miguéis em 1943 levaram à estagnação criativa desta atividade. A indústria dos embutidos manter-se-ia nas primeiras décadas do séc. XX, mas acusaria algum cansaço nos meados do século. Apesar da introdução do pintor Américo Tavares de Oliveira e Silva, a lecionar na Escola Industrial entre 1945 e 1950, a situação de impasse manteve-se, como é patente pela tentativa de revitalização da então Delegação de Turismo, de 20 de abril de 1948, no sentido de “difundir o gosto pelas artes, ofícios e curiosidades de produção local, reintegrando-os no seu pitoresco e na pureza das suas características” (Id., Ibid., 170), cujos termos enunciados são já de perfeita morte anunciada. Passeio de rede. Pico dos Barcelos. Fotografia sem data. Os meados do séc. XIX assistiram ao nascimento da fotografia, inicialmente tímido, a qual, porém, a partir dos inícios da segunda metade desse século, iniciou a sua progressiva internacionalização e democratização, o que, de certa forma, alteraria e condicionaria, a partir de então, toda a forma de estar das sociedades urbanas. O séc. XIX foi um século ávido da fixação da imagem, primeiro através da litografia, mais ou menos animada a aguarela (Andrew Picken, Frank Dillon, Pitt Springet e Lady Susan Vernon Harcourt), e, depois, da fotografia, também essa muitas vezes igualmente animada, e que fornecia o que se entendia ser a inteira verdade da realidade captada, tão cara ao positivismo. Se, numa primeira fase, os viajantes internacionais adquiriram nos fotógrafos locais as principais imagens da Ilha, como fez o médico Carl Passavant (1854-1887), em 1883, muito provavelmente no estúdio de Augusto Maria Camacho (1838-1927), e, em 1887, o marquês de Albizzi, para depois as passar a gravura e ilustrar os seus “Six mois à Madère”, publicados em Paris em 1888, em breve muitos chegavam à Ilha como fotógrafos amadores, tirando as suas próprias fotografias, como, inclusivamente, o Rei D. Carlos, na visita régia de junho de 1901. Nessa altura, já se encontravam estabelecidos no Funchal os fotógrafos Vicente Gomes da Silva (1827-1906) e já saíra para Lisboa João Francisco Camacho (1833-1898), que passara o atelier ao irmão Augusto Maria Camacho, estúdio onde se viria a instalar, depois, Joaquim Augusto de Sousa (1853-1905), embora sempre se dando como amador, e, ainda, Manuel de Olim Perestrelo (1854-1929), a que se seguiram os filhos, netos, bisnetos e trisnetos. Sé do Funchal. Georges Balat. 1901. Arquivo Rui Carita. A fotografia desempenhou e desempenha um muito especial papel num destino turístico como a Madeira. Primeiro, com a possibilidade de registar a passagem pela Ilha dos inúmeros doentes, dos quais, por vezes, só regressavam a casa as fotografias, mas também as paisagens, de que avidamente os muitos visitantes levavam fotografias, quer como prova de ali terem estado quer como recordação do que ali tinham visto, ou que gostariam de ter visto. A instalação dos estúdios fotográficos e a posterior divulgação das máquinas fotográficas, assim como da indústria das reproduções, associada ainda à divulgação dos correios, criará igualmente uma outra indústria totalmente nova, a do bilhete-postal, que se tornará uma novidade que promoverá a imagem da Madeira um pouco por todo o mundo e dará origem a uma moda de colecionismo romântico excecionalmente importante, que entrará pelos meados do séc. XX; e, no séc. XXI, pela divulgação do digital, aparecem quase todos os dias nos diversos fóruns destas áreas novas fotografias tiradas na ilha da Madeira.   Rui Carita (atualizado a 18.12.2017)

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áustria, carlota de

Maximiliano e Carlota da Áustria. 1857. Coleções Imperiais Austríacas A princesa Maria Carlota (1840-1927) era a filha mais nova do Rei Leopoldo de Saxe-Coburgo (1790-1865), que a revolução de 1831 fizera eleger Rei da Bélgica, e de Luísa Maria de Orleães (1812-1850), princesa de França, tendo nascido no castelo de Laeken, nos arredores de Bruxelas, a 7 de junho de 1840. Dentro da política de casamentos e alianças entre as casas reinantes europeias, chegou a colocar-se a hipótese do príncipe e futuro Rei D. Pedro V de Portugal (1837-1861), mas a opção foi para o seu casamento, em 27 de julho de 1857, com o arquiduque Ferdinando Maximiliano de Habsburgo-Lorena (1832-1867), futuro e malogrado Imperador do México (Áustria, Ferdinando Maximiliano de), tornando-se, assim, arquiduquesa de Áustria e depois, Imperatriz do México. O arquiduque fora nomeado vice-rei da Lombardia e de Veneza, reino dependente do Império Austríaco, por pressão ou sugestão do Rei Leopoldo da Bélgica, fixando-se o casal em Milão. A evolução da guerra de independência de Itália, entretanto, levou à ampliação do antigo reino da Sardenha com a Lombardia, em meados de 1859, e ao afastamento do arquiduque Maximiliano de Milão, passando para Trieste e voltando à armada austríaca, onde anteriormente prestara serviço. A frustrada viagem ao Brasil Carlota, Imperatri do México. Foto aguarelada. 1867 A 6 de dezembro de 1859, Maximiliano e Carlota, no vapor de guerra austríaco Elisabeth – em homenagem à Imperatriz Sissi, Isabel de Áustria (1837-1898) (Áustria, Isabel de) –, entravam no porto do Funchal, dando depois vários passeios pelos arredores da cidade, que o arquiduque já conhecia. Os arquiduques, desembarcando, passaram a residir na Qt. Bianchi – designada, na altura, como Qt. da Pontinha –, colocada à sua disposição pelo cônsul da Áustria, Carlo de Bianchi (1834-1910), espaço depois incorporado no complexo do Casino (Casino Parque Hotel). Uma das primeiras deslocações foi à Qt. do Monte, onde foram recebidos por Teodósia Arabela Pollock Gordon, referida por Carlota como uma “velha inglesa muito simpática, cujo filho casou há pouco tempo com uma portuguesa, filha do visconde de Torre Bela”. Nessa sequência, tinham descido para o Funchal em carro de cesto do Monte a “uma velocidade estonteante”, chegando à cidade “como por encanto”. Tendo ido ao Hotel Milles (Arquitetura do turismo de lazer), deram-lhe a provar “todas as espécies de compotas da região” e frutas tropicais da Madeira, que não lhe agradaram. Carlota escreveu, inclusivamente, nada existir, na sua opinião, “de tão desagradável ao gosto e ao olfato”, salvaguardando os ananases. Achava serem “detestáveis, como as bananas, ou então espalham, como as goiabas, um odor infeto, e possuem um gosto tão horrível, que tive de engolir muitas tangerinas antes de me livrar dele” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 92).   Quinta Bianchi. An Hiver. 1860. Na Qt. Bianchi também já lhe tinham dado a provar outro “fruto aquoso e detestável duma passiflora a que os portugueses chamam maracujá” (Id., Ibid., 89), mas que agradou bastante ao marido. Mais tarde, mostrou interesse em provar cana-de-açúcar, cujo sabor achou muito agradável, assim como refere então “um encantador costume da Ilha que consiste em lavar as mãos após o jantar em taças cheias de rosas vermelhas desfolhadas” (Id., Ibid., 96). Toda a paisagem natural da Madeira, no entanto, encantou-a profundamente, considerando-a “um espetáculo tão grandioso como imponente” (Id., Ibid., 98), como se refere à vista do pico Grande sobre o Curral das Freiras. As descrições das quintas e dos jardins visitados são igualmente quase sempre encomiásticas. Os arquiduques saíram do Funchal a 15 de dezembro, com destino a Cabo Verde e ao Brasil, em viagem de estudo, chegando às Canárias, ao porto de Orotava, na ilha de Tenerife, a 17 seguinte, mas não lançando âncora, dadas as condições do mar. O mau tempo alterou totalmente o plano de viagem, assim como a autonomia do Elisabeth, que não estava preparado para as grandes viagens atlânticas. O navio levou Carlota e a sua comitiva de volta para o Funchal, ficando a arquiduquesa na Madeira nesse inverno de 1859-1860, aguardando o regresso do marido do Brasil, que ocorreu a 5 de março de 1860. Os arquiduques saíram da Ilha a 12 desse mesmo mês, com destino ao Adriático e à costa da antiga Dalmácia, que incorporava o então Império Austro-Húngaro (Áustria). O diário de Carlota Vilão da Madeira. An Hiver. A arquiduquesa Carlota, tal como fez Maximiliano, veio a publicar as suas impressões da viagem na Madeira e, tal como as do marido, anónimas e com um sentido muito crítico para com os habitantes da Ilha. O trabalho, editado em Viena em 1863, é um diário que se inicia a 10 de novembro de 1859, quando o casal embarca num porto do Adriático no navio Fantaisie, escalando depois em Pola, onde passam para o vapor Elisabeth, e acaba a 25 de março de 1860, quando chegam ao porto de Gravosa, na cidade croata de Ragusa, que também se denomina Dubrovnik. O texto, em francês, é acompanhado por 15 litografias referentes à Madeira, algumas das quais a cores e fora do texto. A autoria destas parece ser de um dos membros da comitiva de Carlota, que menciona algumas vezes no texto “o pintor” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 105); uma delas aparece depois assinada pelo reverendo Waldheim X. A. Wien (NASCIMENTO, 1951, 89). O historiador italiano Cesare Cantu (1804-1895), mais tarde, ao descrever romanticamente a vida deste casal, referirá taxativamente que Carlota ilustrou este trabalho “com estampas de sua mão” (Id., Ibid., 101). O investigador Eberhard Axel Wilhelm alvitra que o pintor em questão seria o austríaco Joseph Selleny (1824-1875) (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 105), citado em outras viagens financiadas por Maximiliano, e que se encontrava no Funchal, pelo menos, em abril de 1857, a bordo da fragata Novara; regressara à Europa em agosto de 1859 (Litografias e litógrafos), pelo que terá acompanhado os arquiduques nesta viagem, não tendo ficado, porém, com Carlota, no Funchal. De qualquer forma, havendo um pintor na comitiva e, muito provavelmente, também um reverendo pintor – embora a arquiduquesa tivesse por certo tido lições de pintura, quase obrigatórias à época na educação de uma princesa –, na elaboração das estampas houve vários autores, tal como depois um gravador e litógrafo, que as deram à estampa. [caption i     Sé do Funchal. An Hiver.1860   O inverno de 1859-1860 A arquiduquesa, então com apenas 19 anos, era uma pessoa cultivada, entendendo de botânica, e.g., e enumerando a maior parte das espécies encontradas pelos seus nomes científicos, embora na comitiva seguissem naturalistas, que forneceram também esses dados. A geografia, a história e a política também lhe eram familiares, inclusivamente com algum sentido crítico, como quando refere que os letreiros das lojas tinham quase sempre tradução inglesa à vista. Acrescenta então que, “se bem que tenha voltado a ficar oficialmente, em 1815, sob o domínio português, a Madeira nunca deixou de ser, de facto, uma espécie de colónia inglesa” (Id., Ibid.,, 90). A autora começa logo por se queixar da não existência de portos a partir de Lisboa e de Cádis, tecendo depois opiniões gerais sobre política e eleições, tendo consultado, inclusivamente, alguns periódicos locais, embora não os tendo podido ler completamente, dado não dominar a língua portuguesa, e emitindo opiniões que não correspondem taxativamente ao que lá se encontrava escrito. Mais tarde, também refere as “tendências miguelistas dos madeirenses” (Id., Ibid., 110) e que o Governo de Lisboa mandara à Ilha o visconde de Atouguia (Atouguia, Aloísio Jervis de) para atalhar a situação nas seguintes eleições. O visconde, no entanto, não seria eleito e Luís Vicente de Afonseca (1803-1878), membro do Partido Reformista, conhecido por Popular, que não era propriamente miguelista, manteria o seu lugar de deputado. As fontes de informação de Carlota de Áustria não teriam, assim, sido as melhores. Ao regressar das Canárias, onde nem conseguiu desembarcar, Carlota trouxe do Elisabeth – que voltou àquele arquipélago para retomar a viagem para o Brasil – tudo o que entendeu necessário para uma longa estadia na Qt. Bianchi. Acrescenta, entretanto, que “nos países quentes, quanto menos mobilados são os quartos, mais estamos à vontade”. Tinha, assim, encontrado na residência “algumas boas poltronas, paredes caiadas, uma grande esteira das Índias”, entendendo “tudo muito adaptado ao clima” e que o “embelezamento das quintas torna-se, na Madeira, inteiramente supérfluo” (Id., Ibid.,, 108), face à adaptação ao meio ambiente e à relação estabelecida com a exuberância dos jardins envolventes, que nunca deixa de enaltecer. A comitiva da princesa organizou uma festa de Natal, na noite de 24 para 25 de dezembro, com uma christbaum, escrevendo a mesma que teria sido a primeira árvore de Natal que se ergueu na Madeira, o que não era verdade, pois há descrições anteriores (FRANÇA, 1970, 169-170) e, por certo, dada a antiga presença alemã, muitas teriam sido já montadas. No final do mês, o cônsul da Áustria organizava um baile pela passagem do ano, tendo os convites sido enviados com bastante antecedência. Escreve então a princesa, que “os madeirenses, que são muito lentos, não gostam de imprevistos” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 117) e daí a antecedência do envio dos convites. As críticas da princesa Carlota a este baile foram essencialmente para a obesidade das madeirenses. No intervalo das danças, o cônsul Bianchi trazia duas senhoras de cada vez para as apresentar à arquiduquesa, começando pelas suas irmãs, a primogénita das quais, Isabel Leopoldina, casada com o advogado Gregório Perestrelo da Câmara, por lapso citado como Francisco, tinha “sido a mais bonita das três, mas há algum tempo já, embora ainda conserve vestígios disso”. A princesa refere-se ainda à mulher do cônsul, Ana de Velosa Castelo Branco, afirmando que, apesar de ser da sua idade, “porém, ultrapassa-me em volume”, o mesmo se passando com a irmã, “duas vezes mais gorda do que ela”. Ao aproximar-se a meia-noite, o cônsul serviu vinho velho da Madeira, para ser bebido “pelo ano novo e pelos ausentes”, o que constitui uma das poucas, vagas e prováveis referências da arquiduquesa ao marido, a quem quase nunca alude, tal como também acontece com ele. A descrição encerra com a informação de que foi no meio de uma quadrilha, dançada com o comandante militar, o Cor. José Herculano Ferreira Horta, “que se abriu para mim o 1.º de janeiro de 1860” (Id., Ibid.,, 118). Um dos destaques deste quase diário, para além dos inúmeros passeios, vai para a festa organizada no palácio de S. Pedro (Palácios e Arquitetura senhorial) pelo 2.º conde do Carvalhal (1831-1888). A arquiduquesa achou que fora “um belíssimo baile, que teria feito as honras a um salão de Londres ou de Paris. Nunca se suspeitaria de que, no meio de uma pequena ilha do oceano, privada de comunicação com o mundo civilizado, se pudesse ostentar tanta elegância e tão bom gosto” (Id., Ibid., 127). Acrescenta ainda que a “festa foi muito animada e não faltaram os lindos trajes de gala, que faziam lembrar os de Milão”. Ao soar da meia-noite abriu-se de repente, como por encanto, uma sala até aí fechada, surgindo um toldo branco e vermelho decorado aos quatro cantos com bandeiras austríacas, belgas e portuguesas. Sob esse toldo aguardava-os uma ceia sumptuosa, servida em pratos armoriados, de porcelana inglesa, alguns dos quais sobreviveram. “A sala, que se prestava a este esplêndido uso, era um teatro, utilizado normalmente quando das representações de sociedade às quais a aristocracia portuguesa se entrega com paixão”. No entanto, não deixa de voltar a referir que “entre as frutas que guarneciam o bufete, encontravam-se ananases da Ilha, que são muito coriáceos e não se comparam, na minha opinião, com os que amadurecem nas estufas da Europa” (Id., Ibid., 128). A arquiduquesa foi também a uma récita no Teatro Esperança, a 11 de fevereiro, espantando-se com o facto de haver um teatro público no Funchal (Teatros), embora colocasse algumas reservas. Era, “de muita boa-fé, uma miniatura bem proporcionada, deveras bonita no seu género. Não tem nenhum camarote, mas à volta da sala encontravam-se duas filas de senhoras muito bem arranjadas”, não resistindo, porém, a acrescentar: “algumas de pronunciada nutrição” (Id., Ibid., 129). Também não deixa de referir que o público se fartou de rir com uma série gracejos vulgares, como se se tratasse de qualquer coisa superior. A 21 de fevereiro, ainda refere o célebre jantar de gala dado pelo conde de Farrobo (1801-1869) e pela mulher, em São Lourenço, destinado a comemorar a sua elevação ao cargo de governador civil do Funchal. O jantar tinha sido especialmente preparado, tendo-lhe os condes de Farrobo apresentado as principais individualidades insulares e reservando-lhe, na mesa, um lugar entre o bispo do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (c. 1800-1872), e o conde governador civil. A arquiduquesa mostrou-se maravilhada, escrevendo que “o jantar foi magnífico. Tudo quanto se encontrava sobre a mesa, candelabros, requintados suportes guarnecidos de confeitaria, etc., estava coberto por uma profusão de flores, ocultando graciosamente a riqueza metálica dos objetos, complementados por pães de açúcar com diversas bandeirinhas” (Id., Ibid., 132). Descreve ainda que na sala se viam “três retratos de corpo inteiro” de D. João VI (1767-1826), da mãe, D. Maria I (1734-1816), “que morreu louca”, e do avô, D. José (1714-1777), “em cujo tempo reinou Pombal” (1699-1782) (Id., Ibid., 132). Os retratos em questão, salvo o de D. João VI, que permaneceu em São Lourenço, deveriam ser propriedade dos Farrobo, regressando com os mesmos a Lisboa. A última opinião da arquiduquesa, embora abusiva, reflete algum conhecimento da situação política portuguesa e a informação sobre D. Maria I também, embora desconhecesse a autora que o mesmo lhe iria acontecer a ela e dentro de poucos anos. Após o jantar, descreve Carlota que cantou “uma pessoa jovem” – que Cabral do Nascimento (1897-1978) e Duarte Mendonça, que publicou e anotou a mais recente tradução deste texto identificam como a cantora Júlia de França Neto (1825-1903) – e que o governador, “que pertence a uma família muito musical” (Id., Ibid., 129), a acompanhou ao piano. Parece pouco provável que se tratasse da cantora Júlia de França Neto, que teve aulas de canto em Génova e atuou em vários salões aristocráticos franceses, regressando à Madeira em 1854. Embora a cantora tenha dado depois vários recitais para fins de caridade, inclusivamente em São Lourenço, tinha então já 35 anos e, tendo a atenta Carlota 19, crítica como se mostrou com quase todas as mulheres na Madeira, dificilmente poderia tê-la descrito como uma jovem. O arquiduque Maximiliano entrou no porto do Funchal a 5 de março, mas como vinha do Brasil e na Baía grassava uma epidemia de febre-amarela, o navio teve de aguardar 5 dias de quarentena e só então os passageiros puderam desembarcar, tendo o arquiduque recebido uma salva de 21 tiros. Carlota já fizera parte das suas despedidas e, juntos, os arquiduques ainda assistiram, das janelas do escritório do cônsul, a uma procissão. Descreve a autora que tomaram parte na solenidade as autoridades locais, como de costume, entre as quais o administrador do concelho, a quem, embora tivesse como nome de batismo Tarquínio Torcato da Câmara Lomelino (1818-1888), a folha local O Direito apelidava sempre de “o paxá de três caudas” (Id., Ibid., 113-114, 142). Descreve a arquiduquesa que, na manhã desse dia 11 de março de 1860, ela e o marido ainda participariam, na capela montada na Qt. Bianchi , no batizado do filho do cônsul Carlos Bianchi, de que foram padrinhos; o rapaz nascera a 15 de abril do ano anterior e receberia então o nome de Ferdinando Maximiliano Bianchi (1859-1930).   Registo de batismo de Ferdinando Bianchi. ABMad. Os arquiduques saíram, no dia 12, da Qt. Bianchi, mas antes de embarcarem ainda assistiram a um concerto de caridade no palácio do governador, na mesma sala onde fora oferecido o banquete, e nesse concerto participou Júlia de França Neto (“Notícias locais”, A Ordem, Funchal, 10 mar. 1860, 3), embora Carlota não a mencione, até por só terem assistido a metade do concerto. Acrescenta ainda a arquiduquesa que o vapor estava ornamentado a preceito para os receber e se viam na coberta móveis de verga da Madeira (Indústrias do Turismo e Vimes), “leves e cómodos” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 142), que o marido havia adquirido a 9 de dezembro do ano anterior, quando pensavam que iriam ambos para o Brasil. Nas suas memórias, Maximiliano de Habsburgo refere ter-se deslocado no seu “trenó de quatro lugares à cidade para fazer várias compras: os famosos embutidos, os pontiagudos barretes madeirenses com para-raios e cadeiras de braços feitas de vime para as nossas varandas” (Id., Ibid., 63), numa provável alusão ao palácio de Miramar, em Trieste, onde residiam. A aventura mexicana Imperatriz Carlota. Gravura em Santa Bérbara, México. 1870. ABM Em abril de 1864, os então Imperadores do México voltavam a passar na Madeira. A 10 de abril de 1864, o príncipe Maximiliano de Áustria aceitara, por indicação ou pressão de Napoleão III (1808-1873), o referido cargo de Imperador, sendo logo aclamado como tal e passando, a 28 desse mês, pelo porto do Funchal, na companhia da Imperatriz Carlota, a caminho do México, onde voltariam a ser aclamados. Deslocaram-se a bordo da fragata austríaca Novara, acompanhada pela fragata francesa Thémis, sendo-lhes sido prestadas as devidas honras. Os Imperadores convidaram depois para jantar a bordo o governador civil, jurisconsulto Jacinto António Perdigão, o bispo da diocese, D. Patrício Xavier de Moura, o 2.º conde de Carvalhal, o cônsul Carlos de Bianchi, António da Luz Pita (1802-1870), que a Imperatriz nas suas memórias refere como “o médico de maior renome na Madeira” (Id., Ibid., 119) e outras personalidades. O Elucidário Madeirense refere também a presença do conde de Farrobo, que tinha saído da Madeira, em outubro 1861, para assistir ao casamento de D. Pedro V e entregara o governo ao seu secretário, 3.º Visconde do Andaluz (1833-c. 1900) (Melo, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e), e que, sabendo da passagem dos Imperadores do México pela Madeira, ali se deslocou para os cumprimentar. O casamento dos Imperadores do México não terá sido perfeito, não havendo descendência. Acresce que Carlota gozou de muito pouco apoio na corte de Viena e sofreu uma franca e agressiva oposição da Imperatriz Isabel de Áustria, a romântica Sissi, que a teria acusado nas páginas do seu diário, inclusivamente, de ambiciosa e de ser, em parte, responsável por Maximiliano se ter metido “no vespeiro mexicano” (HABSBURGO, 2008, 91-92). É muito provável que assim tivesse sido, tendo a Imperatriz Carlota participado na organização do governo do marido e serem de sua mão várias das minutas do Gabinete imperial, como as versões da proposta Carta Constitucional, etc. Com o progressivo isolamento de Maximiliano do México, e quando Napoleão III retirou suas tropas do país, em 1867, o regime ficou numa situação insustentável. Temendo o pior, a Imperatriz Carlota, que já escrevera a Eugênia de Montijo (1826-1920), mulher de Napoleão III, parte para a Europa com o intuito de angariar apoio para o Império mexicano junto da França, da Áustria e da Santa Sé. A França e a Áustria, no entanto, não estavam já em condições políticas para os ajudar e foi numa audiência com o Papa Pio XI (1792-1878) que a Imperatriz subitamente começou a ter diversos colapsos nervosos. A situação piorou decisivamente ao tomar notícia do fuzilamento do marido no México, tendo sido necessário interná-la. Carlota passou então 60 anos confinada no castelo de Bouchout, em Meise, Bélgica, onde faleceu, a 18 de janeiro de 1927, com 86 anos. Encontra-se sepultada na igreja de N.ª Sr.ª de Laeken, perto da cidade de Bruxelas, Bélgica, onde se encontram os pais.   Rui Carita (atualizado a 09.10.2017)

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