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lira, antónio veloso de

Autor de Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Tres, Cuja Vista em Summa, Representa Este Reyno em Tres Estados, uma obra publicada no contexto da Restauração da independência do reino de Portugal, António Veloso de Lira nasceu na freguesia da Calheta, a 16 de junho de 1616. Segundo uma informação veiculada por Diogo Barbosa Machado, no vol. I da Bibliotheca Luzitana, António Veloso de Lira descendia de uma família nobre e era filho de Manuel Dias de Lira e de Mécia Rodrigues do Couto. Entre os eventos relevantes da sua biografia, além da composição da obra referida, em 1643, destaca-se a sua nomeação, em 1671, para cónego da Sé do Funchal. A sua passagem por Salamanca, onde cursou Teologia e Filosofia, documentada em Espelho de Lusitanos, proporcionou a Camilo Castelo Branco matéria para a escrita de um artigo intitulado “Estudantes Portugueses em Salamanca”, publicado em Cousas Leves e Pesadas. Seguindo o modelo genealógico da História de Portugal (c. 1580) de Fernão de Oliveira, no que concerne a uma mitificação das origens lusas com base na narrativa fundacional de Tubal, neto do patriarca bíblico Noé, Veloso de Lira estabeleceu, em Espelho de Lusitanos, um paralelismo entre o povo lusitano e o povo de Deus. Através da exposição ilustrativa do salmo n.º 43 (Deus auribus nostris audiuimos…), o autor pretendeu representar, como se indica em frontispício, o reino de Portugal em três estados: o estado desde as origens do país, com todas as felicidades e grandezas, até à morte de D. João III; o estado das calamidades e dos infortúnios começados em D. Sebastião e continuados pelo governo castelhano; e, por fim, o terceiro estado, ou as maravilhas obradas por Deus na feliz aclamação e restauração de D. João IV. Exaltando as qualidades das terras, dos recursos, do clima e das gentes, e acentuando a passagem de um tempo de conquistas e de glória a um tempo de usurpação, onde imperariam sobre a monarquia portuguesa “as calamidades infaustas” trazidas pela morte do “sempre lamentado Sebastião” e o subsequente consórcio com Castela (LIRA, 1753, I, 88-91), este texto insere-se na corrente da história providencialista portuguesa que tem na Monarquia Lusitana (1597-1632), uma obra composta por Bernardo de Brito e por António Brandão, os seus exemplos paradigmáticos. Assim, à narrativa dos tormentos que assolavam o país durante o domínio filipino, qual Israel no meio dos horrores babilónicos – um tempo em que “Ardia a má, e corrupta vontade castelhana […], procurando a ruína total de todos nós” (Id., Ibid., 165), e em que, refere o autor, “Muito é de sentir um Rei, e um ministro estranho; e o que mais eficaz é, que ignorando os estatutos, e leis donde governa, dá lugar a que seja industriado por ânimos, e ministros, a quem o interesse traz desencadernados: sendo estes os que como feros verdugos vendem suas pátrias” (Id., Ibid., 164) –, Veloso de Lira acrescentou a enumeração dos milagres e profecias pelos quais Deus sempre aliviou e confortou o reino de Portugal, da mesma maneira que, por intermédio de Isaías, Deus prometera ao seu povo o fim de todos os tormentos e todas as angústias. Entre esses vaticínios são trazidos à colação a narrativa do milagre de Ourique, a profecia do Sepulcro de S. Tomé, a profecia de S. Metódio e ainda as trovas de Bandarra. O documento forjado das Cortes de Lamego, usado como justificação da legitimidade da Coroa portuguesa, também foi convocado neste contexto. Revestindo-se, pois, de um forte teor de exaltação nacionalista, com base no texto bíblico, a que se juntam, em comentário paratextual, referências a autores como Virgílio, Plutarco, Políbio, Lucano, Orósio e António Brandão, Espelho de Lusitanos termina com uma apoteose do destino lusitano, na aclamação de D. João IV, conferindo um sentido histórico às tribulações que haviam assolado o reino e o império de Portugal. A Restauração do trono português testemunhou, desta maneira, o esplendor do poder e da misericórdia divinos, que sempre acompanhou este povo, como nação “da honra de JESU[S] Cristo mais zelosa, […] que por seu nome maiores cousas obrasse” (Id., Ibid., 55). De notar, na parte final do texto, a inserção de um capítulo em que Veloso de Lira revela o seu testemunho pessoal relativamente às contendas entre Portugueses e Espanhóis no momento da aclamação de D. João IV, vistas a partir de Salamanca, onde estudava e residia em 1640. Barbosa Machado atribui ainda a este autor a composição dos seguintes títulos: Politica Christiana (dirigido a Filipe IV), Zodiaccus Ecclesia, Stella Matutina in Medio Nebula, Domus Sapientiae, Philosofia Muta, Glossa Sobre os Evangelhos, e Antiguidades da Ilha da Madeira, uma obra também intitulada Ubi Troya Fuit e pronta para a impressão no ano de 1658. Veloso de Lira morreu no Funchal, no ano de 1691. Obras de António Veloso de Lira: Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Tres, Cuja Vista em Summa Representa Este Reino em Tres Estados (1643).     Marta Marecos Duarte (atualizado a 14.12.2017)

Literatura

júnior, daniel josé de frança

Daniel José de França Júnior (1906-1973) foi um poeta popular, natural de São Vicente, onde era conhecido como o “Poeta do Lanço” ou o “Poeta”. Era agricultor e escrevia, à noite, as suas histórias em verso; contudo, perderam-se muitos dos seus registos literários. Os versos que foram possíveis recuperar foram compilados em 2011, no opúsculo História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945, de edição póstuma, pela Câmara Municipal de São Vicente, em colaboração com a família do poeta. Palavras-chave: “Poeta do Lanço”; Poesia Popular; São Vicente; Cultura e Tradições populares.   Daniel José de França Júnior foi um poeta popular madeirense. Nasceu a 27 de novembro de 1906, no Sítio do Passo, freguesia e concelho de São Vicente, situado na costa norte da ilha da Madeira, e faleceu a 17 de julho de 1973, na sua residência, no Sítio do Lanço, vítima de uma queda. Era filho de Daniel José de França, lavrador de condição, e de Teresa Joaquina Rosa, doméstica. Casou-se com Maria de Jesus, também natural de São Vicente, a 16 de junho de 1932, de quem teve 10 ou 12 filhos, dos quais sobreviveram apenas 3 (Teresa de Jesus de França, Belmiro José de França e António José de França). Aos 17 anos, foi com o pai e o irmão para o Brasil, designadamente para a cidade de Santos, onde esteve emigrado. Regressou algum tempo depois à Madeira e dedicou-se à agricultura, atividade que ocupava o seu quotidiano. À noite escrevia poemas e as suas histórias em verso, que aos domingos declamava no adro da igreja. Por vezes também improvisava alguns versos, quando encontrava alguém no seu caminho. Em São Vicente era conhecido como o “Poeta do Lanço” ou o “Poeta”. Num poema autobiográfico, o poeta dá-se a conhecer desta forma: “Eu sou um pequeno poeta do Sítio do Lanço / chamo-me Daniel José de França / moro acima da levada / como batatas graúdas /e feijão de grafada” (JÚNIOR, 2011, 4). Enquadrando-se na “literatura popular escrita tradicionalista”, segundo a nomenclatura proposta por João David Pinto-Correia (PINTO-CORREIA, 1985, 391), a ação destruidora do tempo fez desaparecer boa parte dos seus registos literários em folhas volantes. Ainda assim, o interesse do poder local por esse património literário permitiu resgatar alguns textos. Daniel José de França Júnior descreveu em verso vários acontecimentos relacionados com a Segunda Guerra Mundial, com o título de “História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945”. Neste longo poema, narra de modo original factos históricos, expostos de forma simples e fáceis de entender pelo povo. O poema é composto por 104 quadras e segue o esquema de rima alternada (abcb). Começa por pedir licença para contar a história, declarando que tem pouca habilidade. Considera a data de setembro de 1939, para falar do início da Guerra, e evocar as grandes lutas travadas por mar, ar e terra, bem como os sofrimentos causados à humanidade. É uma história de dor, de miséria e de fome, passada nas várias nações que estavam envolvidas no conflito. Fala dos milhares de mortos ocorridos, menciona o choro dos órfãos e das mulheres que ficaram viúvas e salienta a dor causada pela separação de filhos ou maridos, que partiam para a guerra com a convicção de que iriam morrer. Indica os meios usados nos combates, como os transportes (aviões, barcos) e as armas (granadas, bombas, canhões), referindo ainda os recursos que iam faltando, como o petróleo e a gasolina. Anuncia um cenário de destruição nos campos de batalha, mas também no mar, com navios afundados, muitos carregados de comida, e marinheiros que morriam nas águas. Refere alguns episódios, nomeadamente ataques da Alemanha à Polónia e outros bombardeamentos e ofensivas alemãs a diversas cidades, causando destruição e milhares de mortos. Além de considerar a Alemanha causadora da Guerra Mundial, o poeta menciona também as mulheres germânicas que ingressaram no exército, para combater ao lado dos homens, e lembra a figura de Hitler como responsável pelo sofrimento de muitos pais e filhos. Nas quadras finais, o vate popular avança com a data de 5 de maio de 1945 como o dia em que chegou a paz a muitas nações. Este poema foi publicado em 2011, no livro História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945, pela Câmara Municipal de São Vicente, em colaboração com a família do “poeta do Lanço”. O opúsculo, lançado no dia 24 de agosto de 2011, no âmbito do programa das Festas de São Vicente, reúne ainda algumas quadras soltas de Daniel José de França Júnior, resultado da compilação que foi possível resgatar. Destes poemas, destaque-se os versos que escreveu sobre o Funchal, onde salienta alguns locais e detalhes relacionados com aqueles pontos da cidade, provavelmente resultantes das suas impressões pessoais: “No meio das pedras brancas, / p’ra não acontecer mal, / são umas passagens livres / lá nas ruas do Funchal. // Da Pontinha para o Cais / e do Cais para a Cidade, / é um grande brilho / que faz, a sua eletricidade. // Da Pontinha para o Cais / e do Cais para a Pontinha, / onde descarregam o milho / e de lá sai a farinha. // Ao chegar à cidade / uma estátua é a primeira / é João Gonçalves Zarco / o descobridor da Madeira” (JÚNIOR, 2011, 13). Obras de Daniel José de França Júnior: História da Guerra de 1939 e a Paz de 1945 (2011).   Sílvia Gomes (atualizado a 18.12.2017)

Literatura

jogos florais

Os jogos florais, conhecidos como “floralia”, eram festividades religiosas consagradas à deusa grega Flora, divindade que reinava sobre as flores dos jardins e dos campos, no mês que corresponde a abril do calendário romano. Segundo alguns estudiosos, nestes jogos, as cortesãs participavam dançando, sendo a vencedora coroada com um ramo de flores. Ao longo dos tempos, a forma de celebração dos jogos florais mudou. Na Baixa Idade Média, deu-se a instituição dos jogos florais como se tornaram posteriormente conhecidos, ou seja, como competições literárias. No ano de 1323, em Toulouse, França, segundo a tradição, um grupo de jovens poetas, com o desejo fazer renascer o brilhantismo da língua d’Oc e mantê-la em uso (mais tarde conhecidos pelos “mantenedores”), decidiram organizar uma competição das suas composições nessa mesma língua. No séc. XVIII, Luís XIV institui a Academia dos Jogos Florais com o objetivo de manter as tradições culturais da região e promover a criação literária. O aparecimento dos jogos florais em Portugal data de fevereiro de 1936. A Emissora Nacional, com o propósito de comemorar os 10 anos da revolução nacional que levou ao poder a ditadura do Estado Novo, lança ao público os primeiros jogos florais. Os autores podiam concorrer nas áreas da prosa e poesia, cada uma nas suas mais variadas formas, sendo dada maior importância à poesia e prosa que exaltasse nos versos o orgulho da pátria e o ser português. Os jogos florais em Portugal gozaram de grande vitalidade e visibilidade na época como grande evento público, em cuja comissão de honra apareciam as mais importantes figuras do Estado, sendo as obras vencedoras lidas nas emissões radiofónicas da Emissora Nacional. Na ilha da Madeira, a iniciativa dos jogos florais foi lançada pelo periódico Eco do Funchal, no dia 21 de setembro de 1941. O principal impulsionador e organizador dos primeiros jogos florais da Madeira foi o jornalista e poeta César Pestana (Pausania) que, conjuntamente com o diretor do Eco do Funchal, José da Silva, organizou o concurso literário tendo como modelo os primeiros jogos florais realizados pela Emissora Nacional e o Secretariado de Propaganda. Segundo o regulamento do concurso, os jogos florais da Madeira constituíam uma competição que tinha como objetivos valorizar a poesia madeirense e fomentar o cultivo das letras entre os poetas da Ilha. Os poetas podiam participar com as suas composições em quatro modalidades poéticas: soneto, quadra, poemeto e glosa. Na criação da glosa, eram obrigados a escrever composições com a seguinte mote: “Não canto por bem cantar/Nem por bem cantar o digo:/Canto só para espalhar/Mágoas que trago comigo”. Foram atribuídos três prémios para cada modalidade poética. O primeiro e o segundo prémio equivalia a uma flor e o terceiro a uma menção honrosa. O soneto vencedor do 1.º prémio receberia um Lys de Oiro e o do 2.º prémio um Lys de Prata. A quadra vencedora do 1.º prémio receberia um Cravo de Oiro e a do 2.º prémio um Cravo de Prata. O poemeto ao qual fosse atribuído o 1.º prémio receberia uma Túlipa de Oiro e o do 2.º prémio uma Túlipa de Prata. A glosa teria como 1.º prémio um Malmequer de Oiro e como 2.º prémio um Malmequer de prata. Nos números seguintes do Eco do Funchal foram sendo publicadas regularmente as poesias que em grande número afluíam à redação do jornal, gerando enorme entusiasmo entre a intelectualidade madeirense da época. Um entusiasmo que teve eco nos jornais do continente e dos Açores, sendo largamente transcrito um artigo escrito no Comercio do Porto a louvar a iniciativa, mas criticando a falta de empenho da Câmara Municipal e da presidência de Fernão de Ornelas em reunir as poesias num volume. O mesmo entusiasmo não chegou aos dois jornais diários madeirenses, que se manterão em silêncio relativamente à iniciativa do Eco do Funchal. No dia 18 de janeiro de 1942, o Eco do Funchal dá por encerrado a receção e publicação dos trabalhos, com um total de 75 poetas e poetisas, que concorreram com 30 sonetos, 37 quadras, 35 poemetos e 36 glosas, num total de 138 poesias inéditas. O júri que procedeu à leitura e avaliação dos primeiros jogos florais da Madeira foi constituído por cinco personalidades da sociedade madeirense, Eugénia Rego Pereira, Cón. António Homem de Gouveia, Jaime Vieira Santos, João Velez Caroço e Manuel Higino Vieira. A declamação dos poemas vencedores ficou a cargo da poetisa Idalina Salvador (Inah). A sessão solene para a entrega dos prémios dos jogos florais realizou-se no Ateneu Comercial do Funchal, no dia 12 de novembro de 1942. No sarau literário, reuniram-se as mais altas individualidades, contando com a presença, entre outros, de A. Branco Camacho, chefe do gabinete do governador do distrito, de Alberto Araújo e de Eduardo Homem de Gouveia e Sousa. Na sessão solene, celebraram-se várias iniciativas de cariz artístico antes da entrega de prémios aos concorrentes e da recitação dos poemas vencedores. Nas várias categorias poéticas, os grandes vencedores dos primeiros jogos florais foram: no soneto, Humberto Nunes da Silva com o poema “Filha”; na quadra, um poeta que permaneceu anónimo; no poemeto, Viterbo Dias, com o poema “Ilha da Madeira”; e na glosa, Abel Nunes com “Glosa n.º 9”. Deste primeiro concurso ressalva-se a promessa, por parte dos organizadores, da edição de um volume das melhores composições poéticas dos primeiros jogos florais da Madeira. No entanto, apesar do sucesso dos primeiros jogos florais do Eco do Funchal, a organização do concurso literário não voltaria a ter o apoio desta empresa, passando assim a ser organizados pelo Ateneu Comercial do Funchal. A 27 de agosto de 1945, o Diário de Notícias da Madeira anuncia a realização dos jogos florais pelo Ateneu do Funchal, presididos por Luiz de Sousa, com o objetivo de movimentar e tornar conhecidas as obras dos escritores madeirenses. No quadro organizativo da prova literária, encontravam-se como colaboradores Horácio Bento Gouveia e Manuel Silvério Pereira. As modalidades literárias em que os autores podiam participar eram o conto, o conto infantil, o soneto, a poesia alegórica à Madeira, a quadra popular, o poema filosófico e o poema lírico. O júri dos jogos florais do Ateneu Comercial do Funchal era constituído pelo presidente da instituição, Alberto Jardim, e por Ernesto Gonçalves, Horácio Bento de Gouveia, Jaime Vieira Santos e Marmelo e Silva. Os prémios atribuídos aos vencedores eram de valor monetário e, conforme a modalidade literária, iam dos 1.000$00 aos 300$00. A cerimónia solene de encerramento dos primeiros jogos florais do Ateneu Comercial realizou-se no dia 23 de maio de 1946, no edifício da associação recreativa e cultural, à semelhança do encerramento dos primeiros jogos florais do Eco do Funchal. Na cerimónia, discursaram o presidente do Ateneu Comercial do Funchal, Luiz de Sousa, Alberto Jardim e Jaime Vieira Santos; seguiu-se a entrega dos prémios aos vencedores nas várias categorias. Os primeiros classificados nas diversas modalidades literárias foram: no conto, “A última luz da candeia tem três bicos”, por Manuel dos Canhas, pseudónimo de Elmano Vieira; no conto infantil, o prémio foi para “Viagem ao Polo”, por Maria de Roma, pseudónimo de Lisetta Zarone D’Arco Vieira; na poesia alegórica à Madeira, o vencedor foi Silvado Prado, pseudónimo de Manuel Silvério Pereira, com o poema “Madeira”; na categoria do soneto, o vencedor foi Florival dos Passos, que assinou como Emanuel Jorge; no poema filosófico, o prémio foi para Humberto Nunes da Silva, Plauto, com o poema “Carta”; na poesia lírica, o vencedor foi António Jorge Gonçalves Canha, com o poema “Voltar à Escola”. Por fim, na categoria da quadra popular, foi A. Cílio, pseudónimo de Aurélio Nelson Pestana, o vencedor. Nos jogos florais do Ateneu Comercial do Funchal destacou-se a presença feminina entre os laureados do torneiro literário: o primeiro prémio para a modalidade de conto infantil foi ganho por Lisetta Zarone D’Arco Vieira e, na modalidade de poesia alegórica à Madeira, J. Crus Baptista Santos, com o nome de Ana Rosa, ganhou uma menção honrosa com o poema “Poesia à Madeira”. A tradição dos jogos florais na Madeira conta com dois momentos importantes, ou dois inícios por assim dizer, o Eco do Funchal inaugura a novidade da competição literária na Ilha e o Ateneu Comercial do Funchal continua com a competição dando-lhe um novo e renovado impulso até ao último quartel do séc. XX.     Carlos Barradas (atualizado a 18.12.2017)

Literatura Sociedade e Comunicação Social

remates de telhado

Uma das originalidades da arquitetura popular madeirense são os remates de telhado, colocados nos extremos dos beirais, que aparecem, por exemplo, com cabeças de menino e de senhora, pombas, bem como outros animais, folhas de acanto, naturalistas e estilizadas, numa diversidade francamente interessante e quase única no contexto nacional. Não temos referências sobre a sua origem, sendo sempre evasivas as respostas dadas pelos mais antigos proprietários, que se refugiam no costume e pouco mais. Nenhum deles conseguiu, pois, explicar por que se optou por este ou aquele modelo e não por outro, não tendo, em princípio, a mínima ideia de qualquer significado que possam ter estes elementos. Cabeça de menino. Foto: BF As construções urbanas e mais abastadas apresentam remates congéneres da arquitetura portuguesa e internacional divulgada nos finais do séc. XIX, com recurso a platibandas rematadas com urnas, algumas de faiança das fábricas do norte de Portugal, provavelmente de Vila Nova de Gaia. Já muito raras são as figuras alegóricas, igualmente em faiança, que proliferaram também a partir dos finais desse século como remates de fachada, sendo quase todas entretanto apeadas, tal como as decorações de algumas fachadas com azulejos arte nova, que vão igualmente rareando. Se alguns remates centrais de telhado em forma de agulha são semelhantes aos vigentes no continente, os figurativos que rematam os beirais na arquitetura popular madeirense afastam-se, no entanto, totalmente dos congéneres continentais, constituindo uma marca e uma presença profundamente originais que teima em sobreviver. A configuração destes remates de telhado que conhecemos na Madeira não é, em princípio, muito antiga, pois que a cobertura por telha com beiral não deve ser anterior aos meados do séc. XVIII. Na pouca iconografia que conhecemos, quase toda de caráter senhorial ou militar, as coberturas de telha são interiores às empenas, fazendo convergir as águas sempre para caleiras igualmente interiores e saindo as mesmas por gárgulas na divisão dos telhados, quase sempre múltiplos. Acresce que, até meados e finais do séc. XIX, a arquitetura popular e tradicional madeirense manteve-se com coberturas de colmo, sendo raras as coberturas de telha. Nas descrições dos muitos viajantes estrangeiros que passaram pela Madeira, em princípio mais sensíveis às especificidades locais que os naturais, não lhes é feita qualquer referência aos remates, pelo que, a existirem, não teriam, por certo, a exuberância que lhes conhecemos hoje. A atenta inglesa Isabella de França (1795-1880), no Journal da sua visita à Madeira, em 1853, dedica duas linhas à arquitetura popular, dizendo apenas que, nas habitações mais modestas, “as telhas estão seguras com pedras, de forma que o vento as não leve, e rematam-se no topo com uma panela de barro invertido” (FRANÇA, 1970, 65). A utilização destas marcas ou sinais, no entanto, tem de ser muito antiga e de se encontrar profundamente enraizada no sentir e viver populares para ter tido, nos inícios do séc. XX, a espantosa e invulgar popularidade com que chegou até nós. Sendo já pontual nos Açores – em alguns casos, por recente importação da Madeira, como na Caloura, na ilha de S. Miguel –, reduz-se, no território continental, a uma outra estilização mais erudita e cosmopolita do que a existente nas áreas periurbanas e rurais madeirenses. Aliás, também na área periurbana do Funchal e nas habitações mais abastadas, a opção vai para a aplicação de elementos mais estilizados e menos figurativos, como folhas de acanto e concheados. Este costume perdeu-se quase por completo nos Açores, sendo, no entanto, referido por vários investigadores, como Luís Bernardo Leite de Ataíde, Alfredo Bensaúde e Ernesto Ferreira, que associam essas antigas representações às festividades do Espírito Santo, embora admitindo o seu cariz arcaico e fálico. Efetivamente, até o termo “pomba” ou mesmo “pombinha” têm em ambos os arquipélagos fortes ressonâncias sexuais, sendo, tanto nos Açores como na Madeira, fortemente inibitórios. De resto, a pombinha do Espírito Santo, tão celebrada pelos foliões, representa sempre a proteção e é celebrada como símbolo da abundância e da fecundidade, não espantando o seu aparecimento emblemático nas habitações, como elemento zelador da família no campo da saúde, bem-estar e alegria do lar. Pombo. Foto: BF A grande diferença dos remates madeirenses é a sua associação às cabeças de menino, mas também a cabeças femininas, mais requintadas e com elementos específicos de abastança, como brincos e colares. Parece, assim, estar-se na presença, não só de símbolos de virilidade, fertilidade e abundância, como seriam as pombas evocativas do Espírito Santo, que a Igreja Católica reservou como instrumento divino de Encarnação da Virgem, como da felicidade imediata do casal, como seriam as cabeças de menino, alusivas aos filhos que geraram. A generalização do costume dos remates de telhado em forma de pomba levou, no entanto, à sua utilização em outras habitações, como na residência paroquial de S. Pedro do Funchal, um dos poucos exemplares verdadeiramente artesanais localizados em plena cidade e obtidos pela modelação de argamassa e telha recortada. A enorme divulgação dos remates de teto figurativos na Madeira parece estar associada ao surto de construção ocorrido entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, que surgiu na sequência da divulgação da telha Marselha e adveio do poder económico dos emigrantes de “torna-viagem” (Emigração), especialmente de Demerara, daí a designação “demeraristas” dada às suas habitações (Arquitetura). Deve datar dessa época a encomenda massiva às antigas olarias madeirenses dos remates e a sua execução em barro então cozido por moldes, embora também apareçam exemplares em fibrocimento. Existem cerca de meia dúzia de variantes das pombinhas, em repouso ou com asas levantadas, sendo inclusivamente utilizadas como remates e decoração das asnas superiores dos tetos, que parecem já apontar, por vezes, para um gosto orientalizante ou orientalista, dito “chinoiserie”. A utilização destes remates é, aliás, muito comum na arquitetura chinesa, tendo influenciado decidamente alguns exemplares madeirenses mais eruditos, como os dragões chineses que ainda subsistem numa habitação abastada do sítio do Trapiche, na freguesia de Santo António do Funchal, onde as telhas de divisão das águas se apresentam decoradas no dorso com elementos lanceolados, e que também existiram numa outra habitação da freguesia do Monte, junto do cemitério, que foi já demolida. A imaginação popular, entretanto, foi criando outras variantes, como papagaios, muito divulgados, alguns tipos de cabeças de cão, gatos em meia figura – que surgem no centro de Machico ligadas às datas de 1924 e 1932 – e galos, sendo estas duas últimas figuras algo raras. Relativamente às figuras de cão, deve registar-se alguma influência inglesa, uma das matrizes de referência da cultura madeirense dos finais do séc. XIX, pois que o modelo que se tipificou foi o do buldogue, e não o dos normais cães de guarda portugueses. As variantes das folhas de acanto também são várias, podendo aparecer colocadas na vertical ou inclinadas e simplificadas para pequenos elementos lanceolados ou pela aplicação de simples pontas obtidas pelo recorte de telhas. Divulgaram-se igualmente elementos inspirados em concheados, conhecidos como “patas de leão”, que, dada a extinção das olarias na RAM, passaram a ser comercializados por olarias continentais. Os novos modelos da arquitetura e da construção civil já não contemplam a aplicação destas antigas marcas ancestrais e o encerramento das olarias madeirenses, na última década do séc. XX, decretou o fim desta ancestral tradição.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Antropologia e Cultura Material Arquitetura Cultura e Tradições Populares

palácios

O termo “palácio” parece não ter sido utilizado na Madeira durante os primeiros séculos de povoamento, sendo geralmente empregados os vocábulos “aposento”, “casas” ou “paços”, palavra a que recorreu o doutor Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) nos finais do séc. XVI. O termo “paço”, com a mesma raiz latina que “palácio”, apresenta variantes nos séculos seguintes, nomeadamente “solar” ou “moradia”, como era denominada a residência dos Carvalhal, passando a designação para a rua e sendo depois corrompida para “mouraria”. Na planta do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), de outubro de 1804, aquela ainda aparece registada como “Rua da Moradia” (IGP, cota 539). Planta da cidade do Funchal. Agostinho José Marques Rosa. Arquivo Rui Carita. Em rigor, o solar é a casa onde nasceu uma determinada linhagem nobre, passando assim de geração em geração, o que em relação aos novos domínios da expansão portuguesa tem aplicação difícil, pois os elementos fundadores vieram de fora, tornando-se complicado concretizar se, p. ex., os Esmeraldo nasceram na importante residência da rua que ainda hoje tem o seu nome ou no chamado Solar dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol (Arquitetura senhorial). Acresce que as principais famílias terratenentes começaram a fixar-se na cidade logo entre os sécs. XVI e XVII, pelo que a utilização do termo “solar” apresenta limitações, sobretudo quando como que se duplica, como acontece no caso do Solar do Aposento, em Ponta Delgada, ligado à família de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983) e cuja última proprietária foi D. Maria Hilária Dinis Abreu de Freitas (m. 2003). Solar do Aposento. Ponta Delgada. Arquivo Rui Carita. Uma das primeiras utilizações do termo “palácio” deve ter sido a que fez o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), em referência à fortaleza do Funchal, que disse ser um “bom palácio residencial”, apesar de entender que pouco valia como obra de defesa (AGS, Guerra y Marina, leg. 127, docs. 42 e 46) (Palácio e fortaleza de S. Lourenço). Os cronistas insulares, como Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) ou o mencionado Gaspar Frutuoso, não utilizaram o termo “palácio”. Este cronista açoriano, embora com base no texto que Dias Leite lhe enviara do Funchal, acrescenta inúmeras informações recolhidas por pessoas que conheciam a Madeira, dado que o próprio nunca terá estado na Ilha. Faz assim menção ao “aposento antigo, muito rico, com casa de dois sobrados e pilares de mármores nas janelas e em cima seus eirados” de João Esmeraldo (c. 1460-1536); às “ricas casas e aposentos” onde morava Pedro de Valdavesso e Francisco de Salamanca; às “ricas casas de dois sobrados, com poço dentro e portas de serventia”, na “chamada Rua do Sabão”, onde morava o escritor Tristão Gomes de Castro (1539-1611), “que chamam o Perú”, nome que passou a ser o das rua de cima dessas casas, hoje o troço mais baixo da R. dos Ferreiros; bem como aos “ricos aposentos” de uma mulher nobre que não nomeia e às “casas, como paços muito grandes”, onde Martim Vaz de Cairos tinha “uma comprida sala, em que jogam a péla” (FRUTUOSO, 1968, 112-113). As casas mais importantes eram designadas “paços”, palavra utilizada por Frutuoso para se referir à Quinta das Cruzes, onde vivia o governador da capitania, Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586), nos finais do séc. XVI: “uns paços grandes e sumptuosos” (Id., Ibid., 115). As casas dos capitães do Funchal, na fortaleza da cidade, no entanto, são mencionadas somente como “ricos aposentos, onde o capitão pousa, adornados com seu jardim e frescura” (Id., Ibid., 111). Cerca de 100 anos depois, em 1698, tendo o novo governador da Madeira, D. António Jorge de Melo (c. 1640-1704), solicitado “instruções” em Lisboa “de como se deve portar o governador dela para fazer bem a sua obrigação”, S. Lourenço não era de forma alguma um palácio. O informador daquele, que tudo leva a crer ter sido o madeirense doutor António de Freitas Branco (1639-c. 1700), alto funcionário do Conselho de Estado, “no que toca à casa que deve levar” o governador, descrimina não só os funcionários administrativos como também “um secretário e de muito segredo e confiança” (BNP, reservados, Col. Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). Adita que o governador deveria levar igualmente “um homem que lhe governe a casa, dois pajens acrescentados”, “um copeiro, um cozinheiro e dois lacaios, que logo lá se fazem fidalgos, e um negro que leve a alcatifa e a cadeira” (Id.., Ibid.). Indica também a necessidade de levar “móveis de casa, duas dúzias de cadeiras e tamboretes, três bufetes, um grande com gavetas para escrever, outro para a casa do secretário e outro para vestidos na casa de dormir”, tal como uma “mesa grande para comer, porque às vezes pode convidar alguns fidalgos ou capitães, achando-se na sua casa em horas de comer” (Id., Ibid.). António de Freitas Branco, o provável informador, fora criado no Funchal e depois fixara-se em Lisboa, mas estava permanentemente a par do que se passava na Ilha, nomeadamente que as “casas” da fortaleza não possuíam qualquer recheio, tendo o governador de levar quase tudo consigo. O termo “palácio” tinha assim um significado algo diferente daquele que veio a ter depois, indicando especificamente uma residência de aparato exterior e com recheio de certa qualidade. O vocábulo, de início, dizia também respeito à alta personagem residente nesse grande imóvel ou à sua família, passando depois a alargar-se, abarcando determinadas instituições administrativas, camarárias ou de justiça. O termo só deve ter aparecido na Madeira nos finais do séc. XVII ou nos inícios do XVIII, em relação à residência dos governadores e capitães-generais da Ilha e, depois, ao longo desse séc. XVIII, a propósito do paço episcopal; somente nos finais de Setecentos terá sido aplicado às residências tradicionais das principais famílias madeirenses. O uso de “palácio” em menção ao paço episcopal do Funchal surgiu em 1725, numa queixa apresentada pela Câmara contra o prelado diocesano D. frei Manuel Coutinho (1673-1742), referenciando “os pretos e pretas cativos, que andam pelas ruas e as amas dos expostos, que por causa da sua pobreza, se entregam ao seu vício”, ou seja, a prostituição, e que tinham “declarado no palácio episcopal ao escrivão da câmara” eclesiástica, que, face a terem sido condenados “pelo seu trato” a pagarem as respetivas penas, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus” (ABM, Câmara..., liv. 1436, fls. 62-65v.). A mesma expressão surge novamente a 15 de janeiro do ano seguinte, quando as freiras da Encarnação “romperam” a “clausura desesperadamente” para serem recebidas pelo prelado, explicando-se que foram detidas junto ao largo do colégio dos padres da Companhia, “em distância de um tiro de escopeta do palácio” episcopal, pelo desembargador José de Siqueira, que veio a servir de interlocutor entre as mesmas e o bispo (Id., Ibid.). A designação “palácio episcopal” mantém-se ao longo desses anos, como permite verificar o pedido de aumento do edifício, muito afetado pelo terramoto de 1748, alegando-se aí que ele “já antes era muito pequeno, pelo que se tinha ocupado o colégio de S. Luís, [até então] seminário da diocese” (ANTT, Provedoria..., liv. 973, fl. 57). A ampliação foi solicitada logo no mesmo ano de 1748, havendo diligências em 1749, altura em que efetuou o projeto o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins e se orçamentaram as obras. Vestígios do palácio dos Acciauoli. Arquivo Rui Carita Na planta de Agostinho José Marques Rosa, datável de cerca de 1800 e que foi oferecida ao 2.º visconde de Balsemão, aparecem mencionados vários palácios, nomeadamente o palácio de Nuno de Freitas, ou seja, a quinta das Cruzes, então propriedade de Nuno Martiniano de Freitas e depois do seu filho, o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880); o de João de Carvalhal (1778-1837), isto é, o então palácio de S. Pedro (Carvalhal, 1.º conde de); o de D. Guiomar (1705-1789), já falecida, mas cuja importante construção na R. do Castanheiro ainda se impunha e impõe (Vilhena, D. Guiomar de); o de Francisco António da Câmara, na R. dos Ferreiros, que passou depois aos condes de Torre Bela e veio a ser demolido em 1942 para a construção do tribunal; o do Senhor Fernando José Correia (1768-1821), assim tratado por ter casado em 1792 com D. Emília Henriqueta Pinto de Sousa (1775-l850), filha do secretário de Estado visconde de Balsemão (1735-1804), a quem é dedicada a planta; e o dos Acciauoli, conjunto edificado que já se encontra registado na planta de Mateus Fernandes (c.1520-1597), de 1567/1570, ocupando então essas “casas de Zenóbio Acciauoli” (c. 1530-1598) (BNB, cartografia, 1090203) um quarteirão inteiro, até à Trav. do Forno, mas cuja família já não residia no local no final de Setecentos, vindo-se a levantar depois na área sul o Bazar do Povo, podendo alguns dos elementos edificados que se encontram sobre a atual Farmácia Nacional remeter aos inícios do séc. XVIII. Os palácios dos Carvalhal e dos Correia foram reconstruídos nos finais do séc. XVIII, encontrando-se em obras por volta de 1790. Existe algum paralelismo entre uma e outra edificação, marcadamente neoclássicas, podendo ambas as reconstruções ter decorrido sob a direção de António Vila Vicêncio (c. 1730-1796). As obras das casas do futuro visconde de Torre Bela não devem ter tido o seu acompanhamento muito direto, pois embora se encontrasse no Funchal por volta 1790, quando assumiu o posto de coronel do regimento de milícias da Calheta e quando terão tido início os trabalhos de construção em causa, já estava em Lisboa a 22 de outubro de 1792, vindo a contrair aí matrimónio com a filha do secretário de Estado Luís Pinto de Sousa, visconde Balsemão. Só se deslocou novamente ao Funchal para ver as obras nos inícios de 1803, tendo saído da Madeira em fevereiro de 1804, na fragata “Andorinha”, com o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), seguindo depois para Berlim e não regressando à Ilha. O palácio Torre Bela levantou-se em terrenos desta família, na sua posse, pelo menos, desde os finais do séc. XVI, tendo chegado a residir aí os bispos do Funchal. As primeiras casas foram destruídas por um incêndio, a 26 de julho de 1594, que se propagou ao quarteirão poente, ainda hoje delimitado pelas ruas da Queimada de Baixo e da Queimada de Cima (Urbanismo). Reconstruídas após o fogo, foram residência, nos inícios do séc. XVIII, do genealogista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730). Nos finais de Setecentos, deram lugar ao palácio, cuja construção não reaproveitou quase nada das edificações anteriores. Na fachada voltada para a R. dos Ferreiros, o palácio apresenta um piso nobre de excecional altura, com oito janelas de sacada que se articulam com as do piso inferior, de serviços; tem ainda um segundo piso, também destinado a serviços, na área sul, dado o desnível do terreno. A fachada sobre a Trav. do Forno permite uma leitura idêntica; exibe um fortíssimo cunhal de bases relevadas a marcar especialmente o piso térreo, e apresenta mais dois corpos de serviços, ao nível da mesma fachada, sendo o intermédio torreado e com cinco pisos. Solar dos Leais. Arquivo Rui Carita A fachada à R. dos Ferreiros é rematada por um filete relevado de cantaria aparente e cornija, na qual existem cinco gárgulas de cantaria, indicativas de ter existido um conjunto correspondente de telhados de tesoura, entretanto uniformizados. Esta fachada ostenta um portal de pilastras relevadas, sendo o entablamento encimado pelas armas dos Torre Bela, partidas de Correia e Henriques, assentes em cartela rococó e rematadas por coroa de visconde, logo, posterior a 1812, data da atribuição do título. Interiormente, o palácio apresenta um átrio, reformado nos finais do séc. xix, do qual terão sido retiradas as armas do 3.º visconde de Torre Bela, o diplomata Russel Manners Gordon (1829-1906) (Quinta do Monte), peça talvez de 1857, posteriormente colocada num dos salões do piso nobre. O palácio terá passado por grandes obras interiores nos meados do séc. XIX, época em que foram executados os estuques rococó do piso nobre. Em 1879, o palácio passou a servir de sede ao Clube Funchalense, que aí permaneceu até 1901. Logo nesse ano, o palácio foi solicitado pelo Grémio dos Industriais de Bordado da Madeira, sendo depois ocupado por diversas firmas, nomeadamente a Casa Americana, de que subsistem fotografias. Nessa sequência, acabaram por se instalar ali, pelo menos até à déc. de 70 do séc. XX, outras empresas de bordado. O edifício foi classificado como Imóvel de Interesse Público, a 26 de setembro de 1940, mas o decreto foi suspenso a 1 de novembro seguinte, no quadro das classificações de imóveis de propriedade particular. Mais complexa foi a vida do palácio dos Carvalhal, reformulado por volta de 1790, igualmente com enorme impacto volumétrico no tecido urbano. A campanha de obras, no entanto, abordou essencialmente o corpo principal, quase quadrado, reintegrando a torre central, bastante alterada nos meados do séc. XX, a que se justapõe um corpo longitudinal, a norte e a avançar para oeste, que mantém inúmeras preexistências, p. ex., os arcos, pavimentos e fornos dos sécs. XVII e XVIII. O conjunto integra, para oeste, uma área calcetada e exibe a data de 1929 sob a sua entrada; posteriormente, veio a incluir também um pequeno parque, hoje ocupado por um jardim de plantas aromáticas, onde teria sido o jardim interior do palácio. Portal do palácio de S. Pedro   Palácio de S. Pedro A fachada principal, à R. da Mouraria, apresenta três pisos, tendo nos cunhais importantes pilastras de cantaria aparente com bases relevadas e embasamento de cantaria rematado por friso relevado onde assentam as janelas gradeadas do piso térreo. Ao centro, a fachada é rasgada centro por um imponente portal com pilastras triplas, entablamento, lintel de balanço e frontão curvo, interrompido pelas armas dos Carvalhal, esculpidas em mármore, com escudo ondulado e ladeado por palmas, com coronel de nobreza e timbre – tratam-se já das armas do 2.º conde, logo, o elemento remonta aos meados do séc. XIX. O andar de serviços apresenta janelas de guilhotina com molduras boleadas, de cantaria, filete exterior relevado, entablamento e a articularem-se com o piso superior pelo prolongamento das ilhargas. O piso nobre é separado do inferior por um friso relevado, onde assentam as janelas de sacada, com grades elaboradas que pensamos serem mais recentes, prolongadas e corridas sobre os cunhais, tendo essas janelas molduras de cantaria idênticas às do andar inferior, mas com lintel de balanço. O conjunto é rematado por uma cornija de balanço, assente sobre um friso de cantaria que possui três gárgulas em forma de canhão e nascendo de enrolamentos vegetalistas, no ritmo dos telhados de tesoura, de águas múltiplas, pelos vários corpos. Na Calç. de Santa Clara, aparece recuada a fachada do corpo posterior e mais antigo, com a porta da primitiva capela encimada por largo arco de cantaria gradeado e janelão superior, igualmente gradeado. A capela encontra-se ainda dotada de um retábulo dos finais do séc. XVIII ou inícios do XIX, embora já sem qualquer imaginária ou outro equipamento religioso. Estuque Palácio de S. Pedro. Arquivo Rui Carita Sala do palácio de S. Pedro. 1900. Arquivo Rui Carita O 1.º conde de Carvalhal da Lombada pouco usufruiu do palácio, pois privilegiou a quinta do Palheiro Ferreiro como residência após a turbulenta “ocupação” absolutista, vindo a falecer nela, a 11 de novembro de 1837. O mesmo não se passou com o 2.º conde, o seu sobrinho António Leandro (1831-1888), que ali ofereceu uma receção ao infante D. Luís de Portugal, em 1858, e à futura imperatriz do México, Carlota da Bélgica, em dezembro de 1859, entre outras, conseguindo esbanjar totalmente a sua importante fortuna, num curto espaço de tempo. Embora ainda vivesse no palácio, em 1882, viu-se obrigado a arrendar parte do edifício para a instalação do Hotel Sheffield, dirigido por Varolina Sheffield; um ano depois, arrendou outra parte ao colégio de S. Jorge, dirigido pela futura madre Mary Jane Wilson (1840-1916). António Leandro Carvalhal Esmeraldo, 2.º conde de Carvalhal, veio a falecer no palácio a 4 de fevereiro de 1888 e, em 1897, foi ali instalado o Clube Internacional. Uma das filhas do falecido conde, D. Teresa Câmara, viscondessa do Ribeiro Real (1836-c. 1925), em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, então por 535 contos, tendo a Câmara do Funchal oferecido 400 contos através do seu advogado, Dr. Nuno Ferreira Jardim (1850-1941). A venda, entretanto, foi contestada pelos coproprietários, condes de Resende e família de Eça de Queiroz, herdeiros da outra irmã, D. Maria das Dores. A viscondessa do Ribeiro Real, a 20 de janeiro de 1923, mandou proceder à venda em leilão do que restava do recheio do palácio e, a 19 de setembro de 1929, a Câmara conseguiu a confirmação da expropriação do imóvel, passando o palácio à sua posse e sendo o pagamento efetuado mediante um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos. Por essa data, que figura na entrada para o pátio, procedeu-se à instalação das coleções do Museu de História Natural no andar nobre; no ano seguinte, a Biblioteca Municipal acomodou-se também no primeiro piso do palácio. Em 1933, o Arquivo Regional da Madeira alojou-se provisoriamente no piso térreo do edifício, onde permaneceu até à déc. de 90. Ainda em 1935, o Dr. Fernão de Ornelas Gonçalves (1908-1978), presidente da Câmara Municipal do Funchal, fixou residência no palácio, continuando a habitá-lo até à sua saída da presidência, em 1946. No ano seguinte, em janeiro, deflagrou um incêndio na torre do palácio, levando à destruição da coleção de pintura doada por Alfredo Miguéis (1883-1943). Nos meados de 1947, efetuou-se o restauro do imóvel, tendo o pintor Max Römer (1878-1960) procedido ao retoque do teto armoriado. A 9 de setembro de 1964, inaugurou-se o busto do naturalista Adolfo César de Noronha (1873-1963), um dos principais impulsionadores do museu municipal ali instalado, uma peça da autoria do mestre Pedro Anjos Teixeira (1908-1997). Ao longo do séc. XX, outros edifícios passaram a ser designados como palácios, nomeadamente as casas senhoriais dos Ornelas, na R. do Bispo; as casas do morgado Nicolau de Freitas Barreto, na R. João Esmeraldo e hoje Pç. Colombo, onde se encontra o Tribunal de Contas; e as antigas casas dos cônsules, na R. da Conceição, hoje em parte no Lg. do Carmo, onde se encontra o Tribunal de Menores. Idêntica designação recebeu o novo edifício da Junta Geral, refeito sobre o anterior seminário diocesano da Encarnação e notavelmente ampliado e decorado ao longo da Primeira República, sendo então designado Palácio da Junta Geral; o novo edifício deste órgão administrativo, que se transferiu para as antigas instalações da Misericórdia do Funchal, adaptadas segundo o projeto do arquiteto Januário Godinho de Almeida (1910-1990), de 1952, voltou a ter essa denominação. Pontualmente, a designação de palácio foi também atribuída ao edifício reformulado da Câmara Municipal do Funchal e, depois, ao novo tribunal do Funchal, igualmente da autoria de Januário Godinho, e conhecido como Palácio da Justiça (Cidade modernista). Palácio da Justiça. Foto BF   Rui Carita (atualizado a 19.12.2017)

Arquitetura

quintas românticas: arquitetura e turismo

Ao longo do séc. XIX, a desagregação do regime de morgadio, que as reformas liberais realizaram em Portugal, libertou a propriedade rural e suburbana dos seus vínculos (Vínculos e capelas), pondo-a ao alcance de uma nova burguesia comercial. Vendidas ou alugadas a terceiros, i.e., transformadas em bens transacionáveis, as quintas madeirenses (Quintas madeirenses), incluindo as de origem mais antiga, foram-se adaptando ao novo regime e ao novo estilo de vida – o estilo de vida burguês. O mesmo aconteceu com os seus proprietários, que se “inglesaram” – termo que, quando aplicado à Madeira oitocentista, se pode traduzir por “aburguesaram”. A quinta romântica madeirense não deve, pois, ser associada à lavoura, ao regime de morgadio (Morgadios) ou à aristocracia terratenente, mas sim à residência burguesa oitocentista: a unidade unifamiliar rodeada por jardim ocasionalmente, por mata, etc. As pequenas quintas que, a partir de finais do séc. XVIII, mas sobretudo no séc. XIX, povoaram os arrabaldes do Funchal, constituíram, pois, uma tipologia semelhante à villa burguesa, a qual, a partir de meados de Oitocentos, proliferou também na Europa e na América do Norte. Em ambos os continentes, esta tipologia apareceu não só na periferia das urbes industriais, como também nas estâncias terapêuticas – elas próprias satélites dessas urbes, lugares de cura e de refúgio das suas atmosferas poluídas e irrespiráveis. Na Europa, era possível encontrá-la com frequência nas rivieras francesa ou italiana. No séc. XIX, a maior parte das quintas madeirenses constituíram proveitosas fontes de receita para os seus proprietários. Estas receitas não resultavam da exploração agrícola dos seus terrenos, que eram escassos ou mesmo inexistentes, mas do aluguer à estação, i.e., do chamado turismo terapêutico. Com efeito, os seus principais inquilinos foram os enfermos, que, desde inícios do séc. XIX, se deslocavam para as ilhas em cura de ares e que, ao contrário do turista posterior, aí permaneciam por longas temporadas (normalmente durante a estação de Inverno). A quinta romântica madeirense foi, pois, uma tipologia “proto-turística” ou, utilizando uma terminologia mais precisa: uma tipologia do turismo terapêutico. É essa a razão pela qual se deveria preferencialmente designá-la como “quinta de aluguer”. Na periferia do Funchal – do início do séc. XIX ao eclodir da Primeira Guerra Mundial – a quinta de aluguer foi, aliás, a mais importante tipologia do turismo terapêutico na Madeira. No quadro das ilhas atlânticas, o fenómeno pode considerar-se uma verdadeira especificidade do arquipélago português. Nas Canárias , o aluguer de quintas não só foi mais tardio, como nunca chegou a ter a mesma expressão. A manifesta superioridade económica e militar de Inglaterra, que chegou a ocupar a Madeira no início de Oitocentos (Ocupações inglesas), teve uma pesada influência sobre o modo de vida das elites locais. No séc. XVIII, os negociantes de vinho britânicos (Vinho da Madeira) que fixaram residência na Ilha começaram por se instalar em casas que já existiam, adaptando-as, em muitos casos, ao seu modo de vida. No primeiro terço do século seguinte, porém, surgiram os primeiros exemplares construídos por eles de raiz. Estes traduziam a nova mentalidade vigente em Inglaterra: o Romantismo, uma relação contemplativa com a paisagem, a inserção da casa em contextos que convidavam a meditar sobre a alma da natureza e a natureza da alma. Tudo isto era novidade absoluta na Ilha. Com efeito, a residência deixou de ser a sede de uma exploração agrícola, para passar a ser, fundamentalmente, um lugar de habitação, de lazer e de desfrute da paisagem – um novo tipo, muito distinto da casa rural insular anterior ao séc. XIX. A antiga loja destinada à lavoura, que fazia da antiga casa rural não só uma residência da família, como também uma unidade de produção, já não estava presente neste novo tipo. A relação de salas e quartos com o exterior, cuidadosamente ajardinado, era assegurada pela janela à francesa, que proporcionava aos moradores um contacto direto com o jardim. As escadas eram interiores, sendo uma delas de aparato e outra de serviço. A entrada conduzia às zonas sociais da habitação e os percursos que se estabeleciam entre os diversos compartimentos eram concebidos para responder aos rituais do receber da polite society, ao qual, a casa, independentemente da sua dimensão, tinha de responder. As funções dos compartimentos interiores especializaram-se, surgindo as salas de jantar, de estar e de jogos, a biblioteca e as áreas de serviço, reservadas aos empregados. Os compartimentos destinados a receber exploravam as formas contrastantes, as plantas elípticas ou retangulares, com absides salientes nas fachadas – as chamadas bow e bay windows. Para além da inovadora relação que teciam com a paisagem, estas villas introduziram no arquipélago um novo repertório formal: os vãos com lintel curvo; o uso frequente do motivo serliano – os vãos tripartidos em que a abertura central era maior e rematada em arco; a presença de cornijas e platibandas em vez do tradicional beirado; os cunhais com aparelho rusticado; e, finalmente, as referidas bow e bay windows que, muitas vezes, assumiam a forma de volumes cilíndricos a toda a altura das fachadas. Os padrões de conforto ao gosto inglês constituíram também uma novidade. Os chamados rotulados ou mucharabis em madeira que, ainda no séc. XVIII, preenchiam os vãos de muitas das casas do Funchal, foram substituídos pela janela de guilhotina com gelosia e lamberquim exteriores –justamente atribuída à influência inglesa. Se bem que a introdução da janela de guilhotina possa ter constituído uma melhoria nas condições de conforto da casa, é discutível que os tetos em estuque, que vieram substituir os altos tetos em masseira, tenham contribuído para melhorar o conforto interior da casa, revelando um progresso. O mesmo se pode dizer da platibanda, que foi utilizada em algumas das villas construídas por estes mercadores de vinho, a qual, ao contrário do beirado com sub-beira (duplo ou triplo) de utilização comum na Ilha, lidava mal com o escoamento de águas do telhado, dando origem a infiltrações e à consequente degradação de paredes e de revestimentos. Dir-se-ia, portanto, que o complexo processo de miscigenação, em que a arquitetura local se viria a cruzar com modelos oriundos de outras paragens, não resultou apenas em progressos para a primeira, devendo antes falar-se de um processo com perdas e ganhos. O jardim foi outra das componentes da quinta de aluguer que mais marcada influência receberam da cultura britânica. Todos eles, mesmo os mais pequenos, mesmo aqueles moldados na tradição mediterrânica dos socalcos, foram herdeiros da mentalidade romântica que, no início do séc. XIX, esteve intimamente ligada ao jardim inglês, destacando-se: os bosques e as clareiras relvadas, os lagos, os fontanários, os tanques, os percursos sinuosos povoados de pequenos templos, os pormenores arquitetónicos recuperados de outros edifícios e de outros acontecimentos, e a moldagem da natureza, que constituía o esplendoroso pano de fundo da arquitetura. No território escasso e acidentado da Ilha, o que estes jardins perderam em extensão ganharam em dramatismo, ao abrirem-se aos panoramas abissais, aos cumes das montanhas ou ao horizonte longínquo do oceano. A influência de Loudon (1783-1843), o grande divulgador desta arte junto da classe média oitocentista, chegou à Madeira por via dos ingleses. Naquela influência se refletia com nitidez o ideal da casa burguesa, que encontrava no jardim – a natureza criteriosamente domesticada – o enquadramento ideal para o florescimento da vida privada. Este estava relacionado, simultaneamente, com a proteção da intimidade da casa e com o espaço de encontro e de lazer dos seus habitantes. À Madeira coube, ainda, outra função: a terapêutica, pois era ao ar livre que os doentes pulmonares faziam o tratamento. Mas a cura de ares era também uma cura de paixões. Por isso, na relação que a casa tecia com o jardim – e, num sentido mais lato, com a paisagem – ressoava um quadro difuso em que sintomas e sentimentos se confundiam. Na quinta de aluguer oitocentista, o jardim foi tanto a manifestação da alma romântica, quanto o dispositivo de tratamento. No que respeita à arquitetura da casa, não eram, todavia, as villas construídas pelos mercadores de vinho o tipo mais característico da quinta oitocentista da Madeira. Houve, na Ilha, um conjunto de circunstâncias de ordem social e económica que fez com que quase todas estas casas tivessem sido concebidas por construtores anónimos. A sua construção fez-se de acordo com saberes e tecnologias que, durante séculos, mantiveram um elevado grau de imutabilidade: o modo de lavrar e de assentar as cantarias, de erguer as paredes, de caiar as fachadas, de escolher a madeira para os sobrados, de armar os telhados e de revesti-los a telha de meia cana, bem como de calçar, a seixo basáltico, os passeios dos jardins. A grande maioria destas quintas, independentemente do seu grau de erudição, alicerçou-se no sistema de medidas e proporções que caracterizava a “casa da Macaronésia” (FERNANDES, 1992, 233) – um sistema que não foi exclusivamente de invenção local, mas que se inscrevia no património comum da cultura mediterrânica, transportada para a Ilha pelos primeiros povoadores. É por essa razão que a maioria das quintas de aluguer, sejam elas originárias do séc. XIX, do séc. XVIII ou mesmo do séc. XVII, se apresentava como um conjunto de grande coerência morfológica. Com efeito, foi a persistência de determinadas constantes de natureza construtiva, estrutural, espacial e decorativa que tornou reconhecível a arquitetura destas casas, conferindo-lhes um carácter singular que as distinguiu das que foram construídas durante a mesma época noutras regiões do país – um facto que levou alguns autores do século passado a falar da existência de uma “casa madeirense” (MATOS, 2008, 130). Na verdade, tratava-se mais de uma “maneira madeirense” de adaptar a um novo meio um modelo forâneo (MARTÍN RODRÍGUEZ, 1978, 40) – a casa mediterrânica e da Europa ocidental. Essa adaptação deu origem a uma síntese entre as componentes nacional e regional que, na Ilha, a partir de finais do séc. XVIII, se cruzou com a arquitetura inglesa de inspiração romântica. Não é difícil descrever a aparência da maioria destas casas: um volume paralelepipédico com dois pisos; uma planta retangular ou quadrada; uma predominância dos cheios sobre os vãos, cuja proporção tendia a repetir-se; o recurso à simetria como regra compositiva elementar das fachadas, quase sempre planas, onde os vãos, com as suas persianas instaladas à face, pareciam reduzir-se a um desenho sem espessura; o telhado de quatro águas, com o característico “sanqueado” e remate em duplo ou triplo beirado; um alpendre adossado à fachada do piso em contacto com o solo ou no patamar da escada exterior, nos exemplares de origem setecentista. Dir-se-ia, portanto, que, em todas elas, a arreigada devoção do construtor a um determinado tipo de soluções, mil vezes testadas pelas gerações que o precederam, acabava por vingar. A exceção a esta regra residia, pois, nas villas dos mercadores de vinho, cuja arquitetura – sobretudo a dos exemplares mais puros – deixava claramente transparecer a sua conceção erudita de origem exógena. Não querendo deliberadamente pactuar com as tradições locais, os britânicos introduziram, na cadeia evolutiva da casa insular, uma verdadeira rutura morfológica e tipológica. Desde cedo, porém, alguns dos seus novos repertórios formais, bem como os padrões de conforto que exigiam das suas casas, foram sendo apropriados pelos construtores locais. Num lento processo de miscigenação, estes souberam afeiçoá-los à sua austera e frugal arquitetura, cujas raízes mergulhavam profundamente no solo da Ilha e na memória coletiva da sua gente. Por obra destes construtores, populares ou eruditos, as tradições locais e os contributos alheios enlaçaram-se, dando lugar a uma expressão original, onde por detrás de uma aparência chã e frugal, se ocultavam interiores sofisticados. Tendo em atenção, fundamentalmente, a sua estrutura espacial e funcional, as quintas românticas madeirenses podem ser classificadas em três tipos. O tipo 1, que poderia designar-se como a casa rural sobrada e anterior ao séc. XIX, resultou da adaptação de casas rurais de origem setecentista, ou mesmo seiscentista, ao aluguer à estação. Construídas na sua origem como residências de agricultores abastados ou como sedes de morgadio, todas elas eram casas complexas, que se desenvolviam em dois pisos, com cozinha, quartos e loja, integrando um corpo único e formalmente coerente. Uma característica comum a todos os exemplares que integravam este tipo era a presença do piso nobre, que coincidia sempre com o andar, e a presença da escada exterior, normalmente com alpendre. O piso térreo – a loja – originalmente reservado às alfaias, ao lagar ou à arrecadação de produtos agrícolas, passava a piso habitável depois das obras de adaptação que usualmente introduziam também a escada interior e o corredor. A cozinha tanto podia ocupar o rés-do-chão, como o piso nobre, sobrevivendo em algumas o sistema de forno-lareira-chaminé, uma das características morfotipológicas da casa da Macaronésia. Este tipo era, portanto, o que mais se aproximava do fundo comum e original da casa insular, e revelava, apesar da adaptação ao novo meio, uma arreigada ligação à casa mediterrânica. A existência de capela em algumas delas era outra das características que ocorriam apenas neste tipo. A casa e a capela datavam, quase sempre, de épocas diferentes e, quando juntas, nem sempre apresentavam fachadas complanares, deixando transparecer um processo de construção ao longo do tempo que testemunhava a sucessão de ciclos de fartura e de escassez. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas das Angústias (núcleo original) (Quinta Vigia), de S. João (demolida), e da Achada. O tipo 2, que poderia designar-se como as villas dos mercadores de vinho, cujos exemplos mais notáveis surgiram no primeiro terço do séc. XIX, foi acima caracterizado e teve como exemplares mais significativos as quintas do Monte (Quinta do Monte), Palmeira, e Deão (demolida). Quinta do Monte. Foto: Museu Vicentes Finalmente, o tipo 3, que poderia designar-se como a casa compacta de origem oitocentista, era o mais comum na quinta de aluguer. Na segunda metade do séc. XIX, assistiu-se a uma síntese em que a casa enraizada na tradição local se adaptou às exigências funcionais e aos padrões de conforto da sua clientela vitoriana. Quer na disposição dos compartimentos interiores, quer na forma como se relacionava com a sua envolvente, ela era o reflexo da nova moral burguesa, de um ideal higiénico e antiurbano, irrealizável no denso tecido da cidade tradicional. Concebida para a vida familiar – ocupando, por regra, o miolo de um lote murado –, a casa precisava do jardim não só como espaço de lazer e de proteção da intimidade dos seus habitantes, mas também como garantia de salubridade. Tratava-se de uma casa compacta, com dois ou mais pisos, com cobertura em telhado de quatro águas, e com planta quadrada ou retangular. No interior, apareciam um corredor e escadas – uma principal, geralmente centralizada, e uma secundária destinada ao serviço. A cozinha e as zonas de serviço anexas ocupavam, quase sempre, o piso em contacto com o solo, sendo o tradicional sistema de lareira-forno-chaminé a exceção. No sótão, usualmente reservado aos quartos dos empregados, apareciam por vezes as trapeiras; no piso de contacto com o jardim, localizavam-se as áreas comuns da habitação – as salas de estar ou de jantar –, estando os pisos superiores reservados aos quartos. A simetria era, quase sempre, a regra compositiva das fachadas onde, à semelhança das antigas casas da Macaronésia, imperava a regularidade de proporções e predominavam os cheios sobre os vãos, rasgados a espaços iguais. Esta austera frugalidade podia ser, porém, enganosa. Com efeito, o interior beneficiava de um sofisticado grau de conforto, a que não eram alheias as exigências da clientela vitoriana que as alugava: janelas de guilhotina com sistema de contrapeso, tetos em estuque ornamentado, soalhos em madeira, requintados trabalhos de carpintaria pintada, lareiras ou salamandras inglesas em vários compartimentos, e um quarto de banhos. No exterior, debruçada sobre o arruamento, surgia com frequência a casinha-de-prazer – termo que designava, na Madeira, os pequenos pavilhões de jardim de onde era possível observar o exterior ou contemplar a paisagem sem ser observado de fora. Este tipo teve como exemplares mais significativos as quintas da Vista Alegre, Perestrelo, Faria, Favilla (demolida), Lyra, e dos Ilhéus.   Rui Campos Matos (atualizado a 16.12.2017)

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