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Os estudos sobre a música na Madeira parecem manifestar a forte ligação da Ilha à cultura europeia, com especial ênfase numa identidade marcadamente portuguesa, com traços de outras culturas, tais como a holandesa, a italiana, a espanhola, a inglesa, a alemã, a francesa, a brasileira e de outras nações que tiveram fortes relacionamentos económicos e culturais com Portugal e com a Madeira. Na verdade, a procura de uma identidade própria não se tem mostrado profícua, sendo consensual que muitos dos seus elementos considerados diferenciadores estão igualmente presentes noutros espaços portugueses ou europeus. É possível encontrar exemplos de elementos considerados até há pouco tempo como característicos de uma cultura própria da Madeira – instrumentos tradicionais, trajes, géneros musicais, entre outros –, que, de acordo com os conhecimentos posteriores, se conclui terem ido de outras regiões para a Madeira (ou terem sido inventados há menos de 100 anos, com o propósito de criar uma identidade regional). Entre o início do povoamento, no séc. XV, e o séc. XVIII, é pouco conhecida a história da música na Madeira, embora os escassos dados existentes pareçam indiciar que, tal como em Lisboa, a música foi principalmente relevante em atividades religiosas e palacianas. Foi o período do cantochão do Rito de Salisbury (e, posteriormente, do Rito Romano), da polifonia vocal renascentista e da música barroca de influência italiana. A criação de um teatro público terá acontecido no final do séc. XVIII e a sua atividade foi aparentemente muito intermitente. O início do séc. XIX foi marcado pela revolução liberal e pelo consequente declínio da música sacra. O ideário liberal incentivou o espírito associativista, consubstanciado na fundação de dezenas de clubes e de sociedades que organizavam concertos, executados por virtuosos, e bailes com as novas danças de salão influenciadas pelas modas dos salões dos centros europeus (valsas, quadrilhas, cotilhões, polcas e mazurcas, entre outras). Na transição do séc. XIX para o séc. XX, dá-se um novo movimento de difusão musical, tendo surgido um significativo número de grupos musicais amadores, tais como bandas filarmónicas, tunas e orfeões, que tornaram a prática musical uma atividade comum, inclusivamente nas classes sociais mais desfavorecidas. Esta fase de popularização da prática musical começou a decair na déc. de 1930, embora muitos dos grupos fundados neste período ainda existissem no séc. XXI. Nesta época, também se assistiu a uma importante reforma na música sacra, com o Motu Proprio de Pio X (1903), o qual deixou vestígios durante mais de 60 anos. O período do Estado Novo foi marcado pelas consequências da introdução dos fonogramas, da telefonia e do cinema, que vieram difundir a cultura americana. Foi a era das jazz bands e dos conjuntos, que passaram a constituir as novas formas de modernidade musical. Uma reação a este fenómeno foi a fundação de várias instituições que procuraram promover música “de qualidade”, tais como a Sociedade de Concertos da Madeira, a Academia de Música da Madeira, o Posto Emissor do Funchal e a Orquestra de Câmara da Madeira – antecessora da Orquestra Clássica da Madeira. Foi igualmente o tempo da fundação dos grupos de folclore e da promoção da cultura popular com propósitos turísticos e identitários. No período pós-revolução de abril de 1974, assistiu-se à reforma de várias estruturas culturais e educativas ligadas à música, sendo de destacar a adoção de importantes medidas que vieram facilitar a fundação de associações culturais de índole musical, bem como o rejuvenescimento de antigas coletividades, tais como bandas filarmónicas, coros, grupos de folclore e grupos de bandolins. Instituições como o Conservatório–Escola Profissional das Artes da Madeira e o então Gabinete Coordenador de Educação Artística funcionaram como os dois pilares educativos que permitiram o aumento do número de praticantes, bem como o desenvolvimento das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Do início do povoamento ao fim do Antigo Regime A música fez parte de várias atividades religiosas e palacianas desde o início do povoamento da Madeira. No domínio religioso, é plausível que, no seio de algumas festas litúrgicas – como as festividades respeitantes aos ciclos do nascimento e da morte de Cristo ou dedicadas à Virgem Maria –, se realizassem manifestações musicais ligadas a representações teatrais. Como refere o historiador Rui Carita, permaneceram reminiscências desses antigos autos, nomeadamente das “representações de Natal, com as recitações do Pensar o Menino e as entradas e cantares dos pastores com as ofertas” (CARITA, 2008, 13). Além de menções de atuações teatrais com música, existem igualmente referências documentais a missas cantadas na Madeira. Nos testamentos de Gil Eanes (1479) e de Rodrigo Anes (1486), e.g., alude-se à obrigação de celebração de missas cantadas. No testamento de Gil Eanes fala-se de uma missa cantada na igreja de Machico e no de Rodrigo Anes diz-se que no “dia do enterro lhe dirão oito missas, uma cantada com todo o ofício de ladainhas” (NASCIMENTO, 1933, III, 154-155). Embora não tenha sobrevivido repertório religioso desta época, o aristocrata russo Platon de Waxel, a primeira personalidade a escrever um esboço de uma história da música na Madeira, salienta que o rito seguido nas primeiras igrejas e conventos da Madeira deveria ser o mesmo que em Lisboa: o Rito de Salisbury. Este rito ter-se-á mantido na Madeira até ao início do séc. XVII, não tendo a Madeira acompanhado o sucedido em Lisboa, onde o rito havia sido abandonado em 1536 (WAXEL, 1948, 33). A música religiosa era também executada fora das igrejas, durante procissões religiosas, as quais foram regulamentadas por D. João II em 1483. Nas festas do Corpus Christi, nomeadamente, as confrarias de ofícios desfilavam em carros alegóricos onde se bailavam danças como a “mourisca”, levando o historiador Rui Carita a concluir que estes eventos deviam assemelhar-se mais a cortejos carnavalescos do que a procissões religiosas; entre os exemplos que sobreviveram ao tempo, encontra-se a “dança das espadas” da confraria dos ferreiros (CARITA, 2008, 13). No domínio da música palaciana, apesar da inexistência de partituras e de provas documentais com referência à prática musical, há indícios de que existiria no Funchal uma atividade musical deste género desde os primeiros povoadores. De facto, conhece-se poesia trovadoresca de personalidades madeirenses do séc. XV. Além disso, no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende (1516), é possível encontrar poemas de personalidades como João Gomes (?-1495), pajem e escudeiro do infante D. Henrique, que se fixou no Funchal e que viria a dar nome a uma das ribeiras da cidade; a sua produção poética foi de tal modo apreciada que lhe valeu a inclusão de poemas no cancioneiro de Resende e o cognome de “O Trovador”. Outros poetas madeirenses que constam do cancioneiro são Tristão Vaz Teixeira, identificado como filho do 1.º capitão de Machico, e João Gonçalves da Câmara, que terá sido o 2.º capitão donatário do Funchal. Segundo Rui Carita, o trovador mais importante da época viria a ser, no entanto, Duarte Pestana de Brito, quer pela quantidade, quer pela qualidade da sua produção poética. No início do séc. XVI, a música palaciana continuou a ter um papel preponderante no Funchal, principalmente pela ação de Simão Gonçalves de Câmara (?-1530), 3.º capitão donatário do Funchal, que governou a partir de 1508. Sendo músico e detentor de uma fortuna considerável à época, promoveu uma capela com cantores e tangedores, da qual Gaspar Frutuoso diz fazer “grandes partidos” (FRUTUOSO, 2008, II, 106). A qualidade da capela deveria ser de tal ordem que “competia com a de el-rei”, tendo como “mestre da capela Diogo de Cabreira, castelhano, mui destro na arte de canto de órgão e tal, que o próprio rei lho pediu para cantor para sua capela” (Id., Ibid., 103). Acompanhando o crescimento económico da Ilha, a situação musical religiosa melhorou no início do séc. XVI. O facto de o Funchal ter sido elevado à qualidade de diocese, em 1514, levou a que a atividade musical tivesse acompanhado esse novo estatuto. Assim, em 1518, os cantores da capela da Sé do Funchal, que seriam, até então, apenas quatro, passaram a oito por ordem do rei D. Manuel I, que mandou “criar mais quatro moços do coro”. Dois anos depois, D. Manuel I escreve uma carta, ordenando agora ao deão da Sé do Funchal, o mestre Nuno Cão, “que os cónegos e moços do coro saibam canto do organo [canto do órgão] para os domingos e festas se oficiar as missas com canto de organo [canto de órgão]” (WAXEL, Ibid.). Tendo em consideração esta fonte, é plausível concluir, tal como fez Platon de Waxel, que, no Funchal, a música religiosa era até então composta do mais simples cantochão, passando a partir dessa data a ser, numa base regular, de cariz polifónico. Em data incerta, talvez ainda durante a déc. de 1520, foi criado o cargo de organista na Ilha. A substituição do Cón. Gaspar Coelho (possivelmente o primeiro a ocupar esta função na Madeira) por Luís Mendes (?-1598), em 1554, é prova da existência desse cargo. O ordenado seria de 10.000 réis anuais, tendo o organista sido aumentado posteriormente com mais “dois mil réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho” (Id., Ibid.). Entretanto, as normas, mais rígidas, advindas do Concílio de Trento (1543-1554) não foram totalmente aplicadas: de facto, as interpretações teatrais dentro e junto das igrejas madeirenses não foram erradicadas. Em 1565, a chancelaria régia difundiu um alvará para todo o país, onde se proibia a utilização de máscaras na procissão do Corpus Christi e nas igrejas, parecendo corroborar as determinações do Concílio. Apesar disso, sabe-se que no último quartel do séc. XVI ainda se realizavam, “de dia e de noite”, atuações nas igrejas e ermidas, as quais causavam “muitos inconvenientes e escândalos”, segundo a opinião expressa nas Constituições do bispado do Funchal, aprovadas em 1578 pelo Bispo D. Jerónimo Barreto. No mesmo documento, exigia-se que as representações só fossem organizadas com “especial licença do prelado” (CARITA, 2008, 14). Este tipo de atuações seria frequente e estaria relacionado com atividades religiosas de cariz popular, tais como romarias. Gaspar Frutuoso descreve, por exemplo, a romaria de Nossa Senhora do Faial, na qual participavam cerca de “oito mil almas” e onde os peregrinos, vindos de outras zonas da Ilha, descansavam durante dois ou três dias. Neste período, os romeiros faziam “muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 2008, II, 52). Sendo estas manifestações religiosas de cariz mais popular, é plausível deduzir que se terá gerado algum conflito entre o bispado, que procurava seguir as orientações do Concílio de Trento, e as tradições religiosas já enraizadas na vida do povo. Em meados do séc. XVI, a fixação do bispo Jorge de Lemos, 4.º bispo do Funchal, na Madeira, onde foi o primeiro bispo a residir, coincidiu com um dos momentos mais marcantes da vida musical do séc. XVI. D. Jorge de Lemos era músico e, por isso, terá favorecido a prática musical, tendo inclusivamente levado para o Funchal um mestre de capela; este cargo foi oficialmente criado a 20 de setembro de 1556 por carta régia, tendo o mestre de capela a “obrigação de ensinar canto aos 12 colegiais do seminário, com o ordenado de 25 mil rs”. Na mesma data, também por carta régia, foi criado o seminário do Funchal, estando previsto o pagamento anual de 345 mil réis, sendo “45 mil réis para os mestres de gramática e do canto da cidade do Funchal” (WAXEL, Ibid., 34). Foi durante este período que se criou a primeira instituição dedicada ao ensino de música sacra na Madeira. No séc. XVII, houve alterações importantes no domínio religioso. A principal delas foi a introdução do Rito Romano na Madeira, por alvará datado de 1 de junho de 1629, substituindo-se, assim, o Rito de Salisbury. D. Filipe III de Portugal ordenou que se praticasse “o Ritual Romano no que toca no governo do coro, dignidades, cónegos e capitulares, e nos particulares que não for possível se deve conformar com o que se pratica na Sé de Lisboa” (WAXEL, Ibid., 33). Nesta altura, a Sé do Funchal recebeu dois órgãos: em 1613, Filipe II ofereceu um órgão à Sé do Funchal e, poucos anos depois, um “grande órgão”, que terá sido construído em Córdova, foi dado à mesma Sé (WAXEL, Ibid., 34; SILVA E MENESES, 1978, II, 416). Entre os organistas que sucederam, no séc. XVII, aos músicos Gaspar Coelho e Luís Mendes, conhecem-se o P.e Francisco da Cruz – que em 1664 tinha um ordenado de valor igual ao de Mendes (2000 réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho) – e o P.e Pascoal Ferreira que, em 1681, recebia 7000 réis em dinheiro, um moio e 20 alqueires de trigo e duas pipas de vinho. O repertório executado na Sé do Funchal incluía música polifónica de qualidade, referindo Platon de Waxel que “devia ser a melhor que então havia no reino”. Como prova da sua afirmação, o aristocrata russo argumenta que na Sé existia um livro de missas de um dos mais relevantes compositores portugueses da primeira metade do séc. XVII, Duarte Lobo, impresso em Antuérpia em 1639 (WAXEL, Ibid., 36) – trata-se, provavelmente, do Liber Missarum II. São também do séc. XVII as duas primeiras fontes musicais de obras polifónicas da Madeira de que se tem conhecimento. A primeira é pertença do Convento de S.ta Clara: trata-se de uma peça polifónica a quatro vozes (tiple, alta, tenor e baxa) que se encontra transcrita na frente de uma folha em branco de um livro de cantochão, provavelmente escrito na primeira metade do séc. XVII; a composição é anónima e tem como título Jesu Redemtor, sendo a obra polifónica mais antiga de que há registo na ilha da Madeira. A segunda fonte é propriedade da Sé do Funchal e contém partes de missas, salmos e hinos; é um fragmento de um livro de coro (ofícios e missas) copiado no séc. XVIII, cujo repertório é constituído, sobretudo, por polifonia seiscentista, ainda que algumas obras possam ser do final do séc. XVI. Os autores também não estão identificados; Manuel Morais comparou as composições da coleção com obras congéneres de autores portugueses não madeirenses, ativos entre a segunda metade do séc. XVI e finais do XVII, e não encontrou qualquer correspondência (MORAIS, 1998, 50-51). Pouco se sabe sobre os músicos ativos no Funchal neste período, para além do seu nome e cargo. Entre os mestres de capela da Sé do Funchal, conhecem-se os nomes do P.e Manuel de Almeida (em funções a partir de 1618) e do P.e Miguel Pereira (falecido em 1682); sabe-se, ainda, do Cón. Manuel Fernandes, professor de música no Funchal, e de Francisco de Valhadolid, músico madeirense que chegou a ser mestre no seminário arquiepiscopal em Lisboa, citado na Bibliotheca Lusitana e em Os Musicos Portuguezes de Joaquim de Vasconcelos. Francisco de Valhadolid foi o primeiro músico natural da Madeira que se sabe ter ocupado um lugar de destaque a nível nacional. Natural do Funchal, onde nasceu em 1640, foi discípulo do Cón. Manuel Fernandes em composição e, posteriormente, de João Alvares Frovo, em contraponto, em Lisboa. Aquando da sua morte, a 16 de julho de 1700, estaria a trabalhar na publicação de um livro sobre os Mysterios da Musica, assim Pratica como Especulativa, o qual ficou incompleto. Valhadolid deixou uma vasta obra, principalmente composta de missas polifónicas (a 6, 8, 14 e 16 vozes), salmos, responsórios, lamentações, um Miserere, uma ladainha e vários motetes a 3, 4, 7 e 8 vozes. No séc. XVII, as festividades religiosas madeirenses assumiram grande relevância artística. Em 1622, nomeadamente, realizaram-se importantes festas em honra de S.to Inácio de Loiola, de S. Francisco Xavier e do B.º Luís Gonzaga, as quais envolveram as principais formas de arte na Madeira à época: poesia, teatro, dança, música e artes figurativas. No documento, de autor anónimo, denominado Relaçam Geral da Festas que fez a Companhia de Jesús na Provincia de Portugal, na Canonização dos Gloriosos Sancto Ignacio, & S. Francisco Xavier Apostolo da India Oriental no Anno de 1622, existe um capítulo dedicado às cerimónias da Madeira, onde são narrados os acontecimentos festivos ocorridos entre 20 de junho e 31 de julho de 1622. Estes eventos, segundo Manuel Morais, não eram indignos, em fausto e diversidade, das “cerimónias que se representaram na capital do nosso largo Império seiscentista” (MORAIS, 2008, 29). Pela descrição das festas, é possível ter noção da grande diversidade de instrumentos e de danças que então existia – no que concerne a estas, o cronista refere danças com “oito salvagens, vestidos à inteiriça, todos cobertos de musgo”, “danças de marinheiros de barretes, e coletes vermelhos, e ceroulas até baixo”, uma “grave, e aparatosa dança, que em parte alguma do reino pudera sair melhor”, dança da mourisca, “dança de segadores”, “dança de moços pequenos feitos soldados”, danças de “ciganas”, de romeiros e de “meninos à mourisca” e “dança dos rios ou ribeiras de mais nome nesta ilha”. No que diz respeito aos instrumentos musicais, é de ressaltar a sua variedade, salientando o autor a realização de eventos musicais ao som de “frauta, e tamboril”, “trombeta bastarda”, “violas e rabequinha ao som dos quais cantavam algumas letras com muita melodia”, “pandeiro” e “alaúdes”, “castanholas” e “charamelas de cana”, “concertada música”, em que “13 moços […] tangiam todos instrumentos, violas, rabequinhas, pandeiros, cestos, e ginebra, e em quanto se ocupavam os de uma parte em cantar, dançavam os da outra ao redor do tambor, que no meio fazia com ele mil voltas”. Nestas festas participaram os melhores músicos sacros da altura, mencionando o cronista que se organizaram “solenes vésperas com o melhor da capela, e música da Sé, que também ao domingo cantaram a missa” (Id., Ibid., 25-29). O compositor António Pereira da Costa (1697?-1770), cónego e mestre de capela da Sé do Funchal, é o primeiro residente na Madeira a publicar peças musicais; fê-lo em Londres, em 1741, publicando Concertos Grossos, cujo título imita o da coleção de Arcangelo Corelli (1653-1713), 12 Concerti Grossi. O nome completo da obra do compositor português é Concertos Grossos com Doys Violins, e Violão de Concertinho Obrigados, e Outros Doys Violins, Viola e Orgão, e constitui um conjunto análogo ao de Corelli. Por volta de 1755, é impressa em Londres uma nova coletânea de composições de Pereira da Costa para guitarra, desta vez com o título em inglês: XII Serenatas for the Guitar. Estas serenatas parecem trair também a influência de Corelli, que agrupou as suas composições em conjuntos de 12 obras: 12 Sonatas a Tre, 12 Sonatas da Camera a Tre, 12 Concerti Grossi, etc. Segundo Rui Carita, ambas as composições são dedicadas ao morgado João José de Vasconcelos Bettencourt (1703-1766), irmão mais velho da mercadora D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789). As composições de António Pereira da Costa são, na Madeira, os primeiros exemplos conhecidos de um novo período marcado por modelos musicais italianos, à semelhança do que aconteceu em Lisboa na primeira metade do séc. XVIII, por intervenção de D. João V. Neste reinado, por volta de 1720, contratou-se o mestre da Cappella Giulia do Vaticano, Domenico Scarlatti, para mestre da Capela Real, bem como um conjunto de outros músicos italianos, que contribuíram para uma progressiva italianização da música portuguesa. De facto, em 1728, a orquestra da Capela Real era constituída principalmente por estrangeiros, sendo quase metade deles italianos: entre os 13 músicos que constituíam a orquestra – sete violinistas, dois violetistas de arco, dois violoncelistas e um contrabaixista – havia seis italianos (um genovês, dois florentinos e três romanos), um francês, dois boémios, três catalães e um português. Para garantir o ensino adequado dos jovens músicos portugueses, D. João V criou, em 1713, um seminário especificamente destinado a esse efeito, o qual viria a ser o seminário patriarcal, instituição que formaria a maior parte dos músicos de Setecentos e que seria decisiva para a replicação dos modelos italianos em Portugal. Além das serenatas e dos Concertos Grossos, Pereira da Costa dedicou-se a cantatas e sonatas, sendo esse facto indício da existência de um repertório marcadamente barroco, de carácter instrumental, em contraste com a polifonia vocal renascentista, de cariz contrapontístico. A Gazeta de Lisboa de 2 de junho de 1750 faz menção do cultivo de cantatas e de sonatas, referindo a participação do compositor nas festividades de N.a S.ra do Monte no Funchal. Existem registos dos vencimentos dos músicos participantes nas festividades de N.a S.ra do Monte. Num livro de receitas e despesas do Convento da Encarnação dos anos de 1767 e 1768 faz-se referência ao salário dos “pretos das xaramelas” por tocarem nas festas de domingo do Senhor, de N.a S.ra do Monte e de S.ta Clara (PEREIRA, 1989, II, 590). No Convento de S.ta Clara, existem também assentamentos de pagamentos, respeitantes ao mesmo período, “aos moleques que tocaram caixa e charamela”, ou simplesmente a “moleques da charamela” (CARITA, 2008, 16). Os gastos com os músicos de capela da Sé do Funchal encontram-se assinalados em documentos de despesa da Provedoria e da Junta da Real Fazenda do Funchal. Tal como acontecia noutras catedrais católicas, a Sé do Funchal tinha uma capela em que os cargos eram os de subchantre, de capelão cantor ou de moço do coro, de mestre de capela e de organista, e os pagamentos realizavam-se em função dos cargos musicais ocupados, como o comprova a folha de pagamentos referente à despesa de 1775 (ver Quadro 1). [table id=107 /] O subchantre dirigiria, provavelmente, o coro de cantochão dos moços de coro, sendo acompanhado pelo organista. O mestre de capela deveria ser responsável pela música polifónica, com vozes e instrumentos. Com base nas despesas registadas no Livro de Assentamento da Capitania, supõe-se que o número de moços de coro, em 1775, seria menor do que em 1518, quando D. Manuel aumentou o número de moços de coro de quatro para oito; de qualquer modo, este número chegaria para cumprir com as funções musicais. Segundo o musicólogo Manuel Morais, na Sé do Funchal encontravam-se 11 livros de cantochão do séc. XVIII e de inícios do séc. XIX, manuscritos e impressos. No âmbito das festividades religiosas, é de mencionar que no séc. XVIII se mantiveram as representações teatrais junto das igrejas. Segundo Rui Carita, existem referências a que estas atuações terão continuado a decorrer até meados do séc. XVIII, inclusivamente dentro de igrejas e de conventos. Em 1751, uma edição no campo dos estudos sobre a tísica viria a influenciar os tempos posteriores na Madeira, tendo consequências também no domínio da música. Neste ano, é publicado um artigo de Thomas Heberden (1703-1769), em Philosophical Transactions, que descreve o clima da Madeira como propício à cura de doenças infectorrespiratórias (a saber, a tuberculose). Influenciados por esta “descoberta” da medicina, centenas de indivíduos da aristocracia europeia começam a passar longas temporadas na Madeira, de modo a procurarem uma cura para si ou para algum familiar próximo. Surge, assim, o turismo terapêutico e são construídas unidades hospitalares e estabelecimentos hoteleiros. Por conseguinte, a influência da alta aristocracia europeia começará a sentir-se na Madeira de forma mais intensa ao longo de mais de um século, estendendo-se ao plano musical, o que virá a contribuir para o estabelecimento de um Funchal de cariz mais cosmopolita do ponto de vista cultural. A literatura estrangeira, principalmente os relatos de viagens, fica muito em voga a partir de meados do séc. XVIII. Grande parte do conhecimento que existe sobre a atividade musical madeirense, tanto erudita como popular, advém das descrições de estrangeiros, sobretudo inglesas. A título de exemplo, em 1777 é publicado em Londres um livro de George Foster – um alemão educado em Inglaterra que acompanhou o capitão James Cook na sua segunda viagem aos “mares do sul”, tendo passado no Funchal em 1772 –, onde se refere que, na Madeira, “o camponês […] é geralmente aliviado com canções, e ao serão reúnem-se vindos de várias cabanas para dançarem ao som da música sonolenta de uma viola”. Em 1792, a visitante Maria Riddel publica, em Edimburgo, um texto referente ao ano de 1788, no qual menciona que os madeirenses “são muito musicais e extremamente galantes. Raramente se passa uma noite na Madeira sem se ouvir serenatas de violas e bandolins em qualquer parte da rua” (MORAIS, 2008, 32). Ainda assim, as narrações de estrangeiros sobre a Madeira são raras no séc. XVIII, começando a ser mais frequentes no séc. XIX. O maior acontecimento musical da segunda metade do séc. XVIII foi a fundação do Teatro Grande ou Casa da Ópera. Como refere o historiador Valdemar Guerra, “Casa da Ópera”, “Casa da Comédia”, “Teatro Grande” ou “Teatro Funchalense” são diferentes designações para o mesmo edifício. Este foi o primeiro espaço de atuações públicas de relevo do Funchal; construído em 1777, foi considerado alguns anos mais tarde como a maior casa de espetáculos de Portugal depois do teatro nacional de São Carlos, tendo sido demolido em 1833 por razões militares, sob as ordens do governador Álvaro de Sousa Macedo. As atividades deste teatro contam principalmente óperas, representações cómicas, danças e entremezes. (salas de teatro) A Casa da Ópera surgiu por iniciativa de dois negociantes, José Rodrigues Pereira e Miguel dos Santos Coimbra. Ambos haviam tido uma pequena “Casa da Ópera”, a qual sofreu um violento incêndio. Devido à necessidade de divertimento da população funchalense e à falta de tradição teatral “digna de relevo”, os empresários iniciaram este novo projeto na expectativa de lucros imediatos. Apesar de a sua construção ter sido concluída no início de 1777, a Casa da Ópera só esteve em atividade até maio, altura em que foi noticiada a morte de D. José e se entrou num período de luto de um ano. Este espaço de tempo acabou por ter uma história conturbada, com vários problemas financeiros que afetaram o cumprimento de temporadas operáticas com uma periodicidade normal. Por ter sido o primeiro espaço cultural de grande dimensão da Madeira, o Teatro Grande dispôs-se a ser um local de fortes confrontos, nomeadamente no plano dos costumes. Por exemplo, encontram-se várias notícias do primeiro quartel do séc. XIX que discutem a moralidade das récitas ali realizadas, chegando a considerar que a Casa da Ópera era um espaço pouco próprio para levar senhoras; ao longo do séc. XIX, a situação repete-se em outros teatros, havendo designadamente notícias de que o Teatro Concordia era “foco da imoralidade e das ofensas vilãs” (CARITA e MELLO, 1988, 41). Supõe-se que, na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, as bandas militares terão começado a ganhar importância na Madeira, à semelhança do que aconteceu em Lisboa. No entanto, as primeiras referências a esse facto datam de 1807, desconhecendo-se qualquer alusão à presença das bandas na região no séc. XVIII. Entre os anos de 1807 e 1824, há menções de pagamentos de pão com o objetivo de municiar os “pífanos e tambores de milícias”, o que indicia existirem músicos nas tropas milicianas da Madeira, pelo menos desde esta época; a referência mais antiga que se conhece é de 6 de junho de 1807 e a despesa paga foi no valor de 430$320 réis. Os salários não eram anuais, podendo ser recebidos várias vezes ao ano, em alturas diversas: sabe-se de ordenados pagos em março, no “dia de Corpo de Deus”, “nos meses de julho e agosto”, não havendo, aparentemente, datas predefinidas e regulares. Entre 1815 e 1819, começa a especificar-se o pagamento dos regimentos de milícias da Calheta e do Funchal, e já não da “Ilha” apenas. A qualidade da banda regimental do Funchal de então não é fácil de aferir. O britânico Robert Steele, tenente da Marinha Real inglesa, resumia, no seu diário de viagem, redigido no verão de 1809, o que considerava ser a fraca qualidade daquele contingente musical: “A parada militar é geralmente frequentada pelos oficiais mais graduados, e a banda, tendo muitos encantos, envergonha as tropas portuguesas, que são más em todas as suas atividades” (MORAIS, 2008, 33). O declínio da música sacra e a era dos clubes, das sociedades e da música doméstica A prolongada série de revoluções e de contrarrevoluções ocorridas no período de 1820 a 1851, no contexto da implantação do regime liberal, teve graves efeitos no domínio musical de cariz religioso. A extinção das ordens religiosas, em 1834, e o confisco dos seus bens provocaram o declínio da estrutura religiosa madeirense, algo que se repercutiu na música sacra. Apesar da situação conturbada, houve neste período um conjunto de músicos sacros, muito influenciado por músicos formados na escola de música do seminário patriarcal de Lisboa (extinta em 1834), que deixou um legado musical relevante. Uma das personalidades influentes deste período foi D. Fr. José Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) que, ainda antes da instauração do regime liberal, por volta de 1812, foi para a Madeira acompanhado de alguns músicos, entre os quais se destacam José Joaquim de Oliveira Paixão (?-1833) e João Fradesso Belo (1791-1862), discípulo de Fr. José Marques e Silva no seminário patriarcal. Além de ser músico e de proteger a música sacra, José Ataíde compôs algumas obras que foram cantadas em igrejas madeirenses, tais como uma missa de Requiem e o motete Sub Tuum Praesidium, ambas a quatro vozes mistas. José Joaquim de Oliveira Paixão era compositor, organista e violinista. Fez parte da orquestra do Teatro Grande como violetista e foi professor de música no seminário. Segundo o investigador João Rufino da Silva, apesar de ter falecido em 1833, as obras musicais de José de Oliveira Paixão ainda eram cantadas nas igrejas madeirenses quase 150 anos depois da sua morte – ou, pelo menos, até aos anos 70 do séc. XX –, principalmente os responsórios de matinas na Semana Santa. Estas obras eram cantadas a duas e a três vozes masculinas e acompanhadas a órgão, orquestra de cordas – 1.º e 2.º violinos, violoncelo e contrabaixo –, flauta e clarinete em si bemol. João Fradesso Belo foi professor no seminário do Funchal e é apontado como tendo ocupado o cargo de mestre de capela da Sé, apesar de se ignorar os moldes em que esta dignidade era neste período exercida. Sabe-se igualmente pouco sobre a sua produção musical, embora se tenha conhecimento de que compôs uma Ave-Maria “muito cantada na Madeira” (SILVA, 2006, 191). Segundo Platon de Waxel, Fradesso Belo teve um papel importante no plano educativo, visto que deixou dois discípulos de grande valor: Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858) e António de Melo, este último considerado pelo aristocrata russo, em 1869, como “o único compositor de música sacra hoje existente do Funchal” (WAXEL, 1949, 205). Um músico sacro muito importante deste período foi António Maria Frutuoso da Silva, que terá chegado ao Funchal no início de 1837. Num anúncio no periódico A Flor do Oceano, de 8 de janeiro de 1837, Frutuoso da Silva apresenta-se como “professor de música, vindo recentemente da cidade e corte de Lisboa”, propondo-se ensinar “piano, rabeca, e cantoria”. Era antigo cantor na Sé patriarcal de Lisboa, tendo fundado e dirigido no Funchal, entre 1840 a 1848, uma sociedade de concertos (Id., 1948, 36). Entre as suas composições sacras estão uma Missa a Grande Instrumental, um Asperges Me (1848) e um Ò Salutaris (1848). Waxel menciona ainda a existência de outros músicos “que escreveram algumas pequenas composições sacras”: Fr. Manuel Gaspar, o Cón. Libório José Furtado, o P.e Barros, José Justiniano da Silveira (?-1864), o P.e António Francisco Drumond e Vasconcelos (?-1864), o P.e José Maria de Faria e Eduardo Maria Frutuoso da Silva (Id., 1948, 35). Se o ideário liberal oitocentista conduziu, por um lado, ao declínio da música sacra, incentivou, por outro, o espírito associativista, tendo sido criadas várias coletividades em Portugal neste período, entre as quais algumas sociedades de concertos de amadores. Em 1822, um dos músicos mais próximos dos ideais liberais, João Domingos Bomtempo (1775-1842), fundou em Lisboa a Sociedade Philarmonica, seguindo o modelo da sociedade congénere londrina fundada em 1813, tendo a instituição portuguesa sobrevivido até 1828. O novo modelo de sociedades de concertos começado em Inglaterra e copiado por Bomtempo em Lisboa foi igualmente seguido no Funchal: parte da elite madeirense foi influenciada pelo novo ideário, tendo surgido no séc. XIX um significativo conjunto de sociedades e instituições privadas com o propósito de promover a organização de concertos ou de entretenimentos com a participação de músicos (e.g., bailes). Desta forma, após um período de alguma instabilidade política, vivida na déc. de 1820, são constituídos, nos anos 30, pelo menos três clubes e uma sociedade. Tem-se conhecimento da fundação do Clube União – o qual terá tido curta duração, havendo poucos dados sobre a sua atividade –, em 1836, e do Clube Inglês, que existiu durante mais tempo, estando ainda em atividade e organizando bailes na déc. de 1850. Em 1838, surge a Sociedade Harmonia, destinada à prática e à fruição musicais (realiza, nesse ano, uma récita no Teatro do Bom Gosto). No ano seguinte, é fundado um dos clubes madeirenses mais importantes do séc. XIX e o de maior longevidade, o Club Funchalense; esta associação era financiada por algumas das principais famílias nacionais e estrangeiras a residir na Madeira e tinha como um dos seus propósitos principais a promoção de concertos de música vocal e instrumental, embora organizasse sobretudo bailes; de origem anglo-saxónica, o nome desta coletividade acusa a influência de estrangeiros residentes na Madeira, principalmente ingleses. O Club Funchalense e a Sociedade Philarmonica – cujo nome indicia a influência da sociedade homónima de Bomtempo – são as instituições que, durante a déc. de 1840, mais frequentemente publicitam concertos ou bailes nos periódicos madeirenses. Não se encontram referências à organização de concertos musicais por parte do Club Funchalense; de qualquer modo, é provável que neste clube houvesse momentos musicais informais, principalmente em redor do piano, visto que um dos seus primeiros presidentes, Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), era pianista (as suas composições para piano chegaram a ser editadas em Nova Iorque, em 1830). Por sua vez, a Sociedade Philarmonica era uma autêntica sociedade de concertos de amadores. Esta associação foi fundada por António Maria Frutuoso da Silva em 1840; a sua atividade ter-se-á prolongado até 1848. A criação da Sociedade Philarmonica tinha como objetivos formar novos músicos, por um lado, e promover espetáculos musicais em “serões benefecientes, festejos patrióticos e a acompanhar músicos distintos como o violinista Agostinho Robbio, o machetista Candido Drummond de Vasconcellos, o clarinetista Caetano Domingos Drolha e o pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca”, por outro (CARITA e MELLO, 1988, 39). Na segunda metade do séc. XIX, proliferam as sociedades de concertos e os clubes que incentivam a prática musical. Sabe-se da existência, em 1850, da Sociedade Aglaia, que fomentaria a realização de bailes, o que se depreende do facto de o pianista e compositor Duarte Joaquim dos Santos ter produzido uma polca para piano dedicada a esta sociedade, cujo título era o próprio nome da coletividade: Aglaia. Em 1855, há referências à fundação do Clube Recreativo, embora nada se saiba sobre o seu funcionamento. A 30 de março de 1871 é fundada a Sociedade Recreio Literário dos Artistas Funchalenses; esta associação dispunha de uma orquestra que começou a funcionar em finais de abril, princípios de maio, “com instrumentos de fôlego e cordas” (FREITAS, 2008, 413). Um dos músicos mais empreendedores na organização de coletividades deste período foi o violinista e maestro Agostinho Martins (1841-1909). Ao longo da sua carreira musical, este artista funchalense fundou várias instituições, entre as quais a Academia Marcos Portugal, a Sociedade de Concertos Funchalenses e a Filarmónica Restauração de Portugal. A par da criação de sociedades e clubes, desenvolve-se no Funchal um novo modo de sociabilidade: os convívios musicais em salões privados. Este tipo de prática musical doméstica, uma moda importada de França, começa a surgir em Portugal pelo menos na segunda metade do séc. XVIII. A emergência de um grande repertório de modinhas neste período é resultado desta nova forma de convivência urbana; neste âmbito, cabia principalmente à mulher a função de entretenimento doméstico através do canto, do piano e de instrumentos de corda dedilhada. Algumas famílias e personalidades madeirenses ficaram conhecidas pelos serões requintados que organizavam nos seus salões, onde entre “contradances, polcas e as valsas se chegava às tantas da manhã” – exemplo disso são a “ilustre família Gordon” e D. António da Câmara Leme, com um teatro no seu palácio (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Nos saraus, a música para canto e piano – principalmente árias de ópera – ocuparia um lugar especial, sendo uma das formas de entretenimento mais habitual. Apesar de a cidade do Funchal ter ficado, na déc. de 1830, sem um teatro lírico de grandes dimensões, a prática do repertório de influência operática ter-se-á mantido ao longo de todo o séc. XIX, sendo vários os testemunhos que comprovam esta afirmação – e.g., em 1835, numa receção ao futuro governador civil das “possessões inglesas na Índia”, faz-se referência à execução de “árias, duetos, e romances” acompanhados ao piano por Duarte dos Santos (A Flor do Oceano, Funchal, 18 out. 1835, 4). Juntamente com a prática da música vocal, verificou-se um aumento da importância do piano, da viola e do machete, existindo diversos documentos que confirmam a presença destes instrumentos no quotidiano doméstico e a sua boa execução por madeirenses. Um dos maiores músicos madeirenses deste período foi o compositor e intérprete de machete Cândido Drummond de Vasconcelos. São escassas as informações sobre este músico, pelo que se torna difícil traçar a sua biografia. Como instrumentista de machete, há notícias da sua atividade no Funchal a partir de 1841; foi autor de uma coleção de música manuscrita, de 1846, editada pelo musicólogo Manuel Morais, a qual é constituída por um repertório de elevada qualidade, composto principalmente por valsas, temas e variações, quadrilhas e polcas. Conhecem-se ainda outros intérpretes de machete e de viola, entre os quais se destacam António José Barbosa (1822-1899) e Manuel Joaquim Monteiro Cabral. Entre os pianistas mais relevantes deste período são de vincar os nomes de João Fradesso Belo (1792-1861), Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), Duarte Joaquim dos Santos (1801-1855) e António José Bernes (?-1880). João Fradesso Belo foi o primeiro compositor para piano na Madeira, tendo produzido música de salão, da qual se conhece uma valsa. Este músico terá ido para a Madeira em 1812, em conjunto com outros músicos, por intermédio do bispo José Joaquim de Meneses e Ataíde, tendo residido no Funchal até ao final da sua vida. Fradesso Belo foi discípulo de Frei José Marques, em Lisboa; Ernesto Vieira refere que o músico terá estudado no seminário patriarcal. Ao longo da sua vida na capital madeirense, João Fradesso Belo tornou-se um músico célebre, sendo mestre de capela da Sé e professor no seminário da cidade. Duarte Joaquim dos Santos foi, igualmente, um dos pianistas mais importantes do Funchal no segundo quartel do séc. XIX, tendo residido nesta cidade desde a déc. de 1840, provavelmente, até à data da sua morte a 24 de maio de 1855. Segundo Rui Magno Pinto, Santos afirmou-se em Londres como compositor prolífico, tendo publicado em editoras como a Payne & Hopkins, a R. Cocks & Co., a Jeffreys & Co.; nos catálogos, estão registadas cerca de 60 peças suas. Entre as suas obras publicadas encontram-se, na British Library, peças para piano a duas e a quatro mãos – quadrilhas, valsas, divertimentos –, transcrições de árias de ópera para piano e uma peça sacra – Alma [Redemptoris Mater] – para coro e órgão. A Biblioteca Nacional dispõe também de algumas quadrilhas da sua autoria, as quais foram publicadas em Portugal na Lithografia Armazem de Musica da Casa Real. O pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca é exemplo de um compositor pivô que acompanhou o crescimento da importância das danças de salão no quotidiano madeirense. Assim, se ainda cultivava, no início do séc. XIX, o género sonata, passa progressivamente a dedicar-se a danças de salão, tendo sido um músico pioneiro na composição de valsas e de cotilhões para piano. Finalmente, o pianista António José Bernes foi um conceituado compositor, professor de piano e maestro. Existem poucas referências à sua formação, mas é provável que tenha estudado primeiramente no Funchal, com Ricardo Porfírio d’Afonseca, e mais tarde em Viena e em Nápoles, como nota Platon de Waxel, que o considerava “o único compositor que merecia, até certo ponto, este nome na Madeira” à época (WAXEL, 1948, 35). No Funchal, Bernes foi influente como professor de piano: entre as suas alunas, realce-se Maria Paula K. Rego, uma das pianistas funchalenses mais ativas em saraus de beneficência na segunda metade do séc. XIX. Do seu repertório, chegaram aos nossos dias uma valsa incompleta (Le Diamond) e Il Sogno Amoroso a Nice, com um poema sobre os enganos do amor. Os três instrumentistas compuseram música de salão, seja para piano, seja para viola ou para machete; é possível identificar um repertório destes músicos destinado a saraus musicais privados e constituído tanto por valsas, quadrilhas e polcas, como por temas e variações. Nos saraus musicais no Funchal não atuavam apenas portugueses, mas também visitantes estrangeiros. Em 1853, e.g., a visitante Isabella de França descreve, no seu livro Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, um convívio organizado por uma família alemã, em que foi “um verdadeiro regalo ouvir” a anfitriã cantar uma ária “com o marido a acompanhá-la ao piano” (FRANÇA, 1970, 170-171). Nesse sarau participaram pessoas de várias nacionalidades, o que demonstra a importância destes encontros para os estrangeiros que ficavam longas temporadas na Madeira. Ao longo do séc. XIX, a disposição do interior das casas acompanhou a mudança de costumes causada por este novo tipo de sociabilidade urbana, e começaram a surgir novas divisões, como salões de música, as quais eram destinadas a festas e saraus dançantes; nestes compartimentos, os tetos em estuque eram decorados com motivos musicais. Alguns dos salões madeirenses tinham excelentes condições para convívios musicais domésticos, estando ao nível das melhores salas privadas europeias, como o testemunham os relatos de visitantes estrangeiros da época: nomeadamente, em meados do séc. XIX, uma das aristocratas que visitou a Madeira, ao descrever um salão de uma casa onde decorria um baile, referia que este “rivalizava com os de Paris e Londres, tendo mesmo uma galeria para a orquestra” (NASCIMENTO, 1933, III, 98). Na Madeira, assiste-se a um ganho de importância da mulher como dinamizadora de salões nobres, sendo costume as senhoras organizarem festas nos seus salões privados, em que, quer as anfitriãs, quer as convidadas demonstravam os seus dotes, cantando ou tocando piano. Apesar de não serem públicos, alguns desses eventos são divulgados na imprensa periódica do Funchal. Enquanto, no plano privado, os saraus domésticos constituíram o tipo de atividade mais comum, no plano público os eventos de cariz musical mais representativos foram, provavelmente, os bailes e saraus de beneficência, os quais eram frequentemente organizados por clubes ou sociedades. No caso dos bailes, é importante referir que se tratava de iniciativas de convívio social de requinte na sociedade funchalense, em que os participantes vestiam a rigor e em que os anfitriões preparavam luxuosamente as salas de dança. Assim, é natural que a música também acompanhasse o primor exigido pelo acontecimento, pelo que os bailes seriam as ocasiões da vida social em que se tocaria a música mais elegante da época, com o maior número e a maior variedade de instrumentos, seguindo a moda então em vigor nos principais centros europeus. Entre as orquestras que tocavam nos bailes no terceiro quartel do séc. XIX, conhecem-se a Orquestra de Augusto Miguéis, da qual existe repertório respeitante ao período compreendido entre 1865 e 1884, e a de Anselmo Serrão (1846-1922), que tocou na Orquestra do Teatro Esperança. As orquestras eram de pequena dimensão. Os arranjos do repertório documentado estavam destinados à seguinte disposição instrumental: cordas (violino 1, violino 2, baixo), sopros de madeira (flauta ou outavino e clarinete) e sopros de metal (cornetim, trompas e barítono). A iniciativa dos saraus de beneficência partia, muitas vezes, de comissões de senhoras que aproveitavam o tempo livre para se dedicarem à caridade. Numa época em que, na Madeira, entretenimentos como o teatro eram considerados moralmente impróprios para mulheres, os saraus de beneficência constituíam uma das poucas oportunidades para aquelas exibirem os seus talentos musicais em público. Encontram-se relatos de espetáculos de beneficência no primeiro periódico madeirense, O Patriota Funchalense. Os motivos de beneficência eram variados: enquanto os primeiros eventos deste tipo da déc. de 1820 são realizados em prol de artistas, a partir da déc. de 1830 há atuações cujas receitas são arrecadadas em proveito do hospital e dos enfermos. Além de exibições musicais para apoio de artistas e de doentes, encontram-se também concertos cujos lucros revertem em favor dos “atormentados pela fome” (CARITA e MELLO, 1988, 40). A importância destes eventos era tal que os estatutos da Sociedade Philarmonica referiam, aquando da sua criação, em 1840, que um dos principais objetivos era o de atuar em serões beneficentes. Deste modo, é normal que, na déc. de 1840, existam diversas notícias, em variados periódicos da época (), a concertos de beneficência no Funchal. Na déc. de 1850, há notícia de vários saraus de beneficência, cujas descrições pormenorizadas permitem saber como decorria um evento deste género. Os saraus organizados no Funchal pela ilustre cantora madeirense Júlia de Atouguia de França Neto, entre 1854 e 1861, foram postos em evidência pela imprensa. Neste período, Júlia de França Neto realizou 10 concertos de beneficência, os quais se destinavam a suprir as necessidades dos pobres e desfavorecidos. Estas iniciativas de maternidade social intensificam-se na déc. de 1860, altura em que uma das principais promotoras destes convívios musicais passa a ser Maria Paula Rego. A participação de estrangeiros nestes saraus deveria ser muito habitual, encontrando-se na imprensa periódica algumas notícias de saraus organizados conjuntamente por senhoras inglesas e portuguesas. Como impulsionadora destes saraus, merece ainda destaque Amélia Augusta de Azevedo. Nascida em 1840, foi uma das mulheres pioneiras no domínio da composição musical na Madeira. Estudou no Conservatório de Música de Lisboa e, segundo Rui Magno Pinto, “possivelmente no Conservatoire National de Musique et de Declamation [Conservatório Nacional de Música e de Declamação] em Paris (ou alguma das suas sucursais)”. Entre as suas composições, contam-se Alma Minha (sobre a poesia de Camões), Le Regret, Paris Russophile e a polca-mazurca Recordações de Cintra (PINTO, 2008, 9). As sociedades, os clubes e as comissões de senhoras tinham salões próprios para o desenvolvimento das suas atividades, os quais se adaptavam a espetáculos de pequenas dimensões e de cariz amador. No entanto, para eventos de maior projeção e com artistas profissionais, foram construídos vários teatros no período pós-revolução liberal, os quais foram os locais privilegiados dos concertos públicos. Entre os muitos espaços existentes no Funchal destacam-se – antes da construção do Teatro D. Maria Pia, que passou a ser a referência no final do séc. XIX – o Teatro do Bom Gosto, a sala da Escola Lancasteriana, o Teatro Prazer Regenerado, o Teatro da Concórdia, o Teatro Tália e Marte e o Teatro Esperança. Entre estas salas de concerto, a sala da Escola Lancasteriana ocupa um lugar de relevo, tendo sido um dos mais importantes pontos de atuação dos virtuosos que visitaram a Madeira. A título de exemplo, mencione-se que o violoncelista César Augusto Cazella, que se apresentava como “violoncelista particular do rei da Sardenha”, atuou na sala da Escola Lancasteriana entre dezembro de 1850 e janeiro de 1851, quase sempre acompanhado ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. O violinista Agostinho Robbio – que surgia como “discípulo distinto do imortal Paganini, por quem foi premiado com a sua própria rabeca e medalha de honra” – também atuou neste espaço entre fevereiro e maio de 1850 (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Foi igualmente na Escola Lancasteriana que a conceituada intérprete madeirense Júlia de Atouguia de França Neto realizou, a 28 de dezembro de 1854, um concerto em favor dos pobres, o primeiro de uma série de espetáculos de beneficência que decorreram ao longo desta década; a intérprete foi acompanhada ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. Até 1873, ano em que deixa de haver notícias sobre a atividade musical nesta sala, vai havendo sempre virtuosos a atuar neste espaço: o flautista Daniel Imbert, o violinista Charles Elliot, o contrabaixista Arthur F. Reimhardt, o pianista brasileiro Hermenegildo Liguori, que tocou como solista, a cantora Nelida Martinon, o violinista Ernesto Mascheck, os irmãos Croner. Todos estes músicos apresentaram repertórios virtuosísticos constituídos por fantasias sobre motivos de óperas, variações, árias com variações, temas e variações, concertos ou duetos brilhantes. Em 1859 é fundado o Teatro Esperança, que passou a ser o local de concertos mais importante do Funchal até ao aparecimento do Teatro D. Maria Pia, em 1888. Este espaço recebeu músicos virtuosos de projeção internacional como a cantora Anna Bishop, que ali realizou alguns concertos acompanhada pelo pianista e vocalista Charles Lescelles, e companhias operáticas como a Companhia Dramática Italiana, que trouxe à Madeira as cantoras Dejean e Sauzin e o tenor Verdini. O diretor de orquestra da Companhia Dramática Italiana era Francisco Vila y Dalmau, que viria mais tarde a instalar-se permanentemente na Madeira e a ser o maestro mais importante do Funchal no último quartel do séc. XIX; esta companhia de cantores terá produzido, na íntegra, várias óperas italianas famosas. Finalmente, é imprescindível salientar a enorme influência das bandas regimentares neste período. Como refere o musicólogo Rui Magno Pinto, a atividade das bandas regimentais incluía atuações em dias festivos régios e exibições em concertos públicos em praças e jardins funchalenses, em festividades e procissões religiosas, no teatro e em bailes. Contudo, o seu trabalho ia para além do exercício de funções próprio a uma banda – na realidade, os regentes e músicos ocuparam também lugares de relevo enquanto solistas, compositores, regentes de agrupamentos musicais diversos e professores. A qualidade das diversas bandas regimentares presentes no Funchal neste período (tais como o Regimento de Infantaria n.º 7, o Batalhão de Infantaria n.º 11 e a Banda de Caçadores n.º 12, a primeira a estar sediada na Madeira, a partir de 1862) levou certamente ao surgimento de filarmónicas civis. A constituição destes grupos musicais foi realizada à imagem das bandas regimentares, normalmente formadas por iniciativa popular, mediante o mecenato de um nobre ou burguês ou como resultado da associação de profissionais de uma mesma atividade. Segundo Rui Magno Pinto, a primeira coletividade deste tipo surgiu na Madeira em 1844, embora se desconheça o seu nome, sendo descrita como uma “banda de curiosos”. A 18 de fevereiro de 1850 foi fundada a Filarmónica Artístico Funchalense, conhecida como Banda Municipal do Funchal. Entre 1859 e 1860 surge a Filarmónica Recreio Artístico Funchalense, ativa até finais do primeiro quartel do séc. XX (PINTO, 2011, 134). A importância das filarmónicas civis crescerá nas décadas seguintes. Até ao primeiro quartel do séc. XX irá surgir um número elevado destes agrupamentos em quase todos os municípios da Madeira, num fenómeno de popularização da música que atingirá o seu cume na déc. de 1930. A popularização da prática musical na transição do século XIX para o século XX Entre 1870 e 1930 assiste-se à emergência de dezenas de grupos musicais amadores de grande dimensão um pouco por toda a Ilha. Este foi um fenómeno incomum, que revolucionou por completo a prática musical na Madeira. A partir da déc. de 1870, com especial impacto a partir de 1880, surgiram na Madeira muitas bandas filarmónicas, tunas de cordofones, grupos corais e orquestras sinfónicas, constituídos maioritariamente por músicos amadores. Alguns agrupamentos teriam perto de 100 elementos, segundo notícias da época. Em poucas décadas, desenvolveu-se na Madeira um extraordinário movimento de democratização musical, em que parte apreciável da população passou a integrar grupos musicais. As causas que estão na origem de uma mudança desta magnitude são várias. No caso das bandas filarmónicas, a sua proliferação deve ter ocorrido principalmente como “fruto do discurso que favorecia a capacidade educacional da música enquanto promotora de progresso e civilização e atribuía mérito e reconhecimento aos detentores de capacidade artística” (PINTO, Ibid., 133). O crescimento do número de bandas também deve ter sido facilitado pelo aumento da produção e a consequente redução dos preços dos instrumentos de sopro ocorridos ao longo do séc. XIX. No que diz respeito às tunas, a influência para a sua fundação terá vindo do meio académico, tendo surgido muitas tunas na Madeira sob inspiração da Tuna Compostellana em Portugal continental, no final do séc. XIX (principalmente a partir de 1888). O facto de haver na Madeira vários construtores de instrumentos de cordas habituais nas tunas – violinos, bandolins, violas, entre outros – facilitou a criação deste tipo de agrupamento musical do ponto de vista económico. Outra causa central para a replicação destes grupos está relacionada com a inexistência ou com a pouca difusão dos meios técnicos que viriam a revolucionar a música na Madeira, principalmente a partir da déc. de 1930: a telefonia, o gramofone e o cinema (a partir desta década, com a emigração e com a diminuição dos preços destes expedientes técnicos, a prática musical amadora reduz-se bastante na Madeira). Finalmente, a valorização do convívio masculino, juntamente com a facilidade de execução das partes instrumentais individuais em grupos grandes, terão contribuído de igual modo para a multiplicação deste tipo de agrupamentos amadores. A grande difusão das bandas filarmónicas na Madeira neste período pode ser atestada na seguinte lista, não exaustiva, na qual se enumera os agrupamentos surgidos na déc. de 1880: em 1881, estava a organizar-se, na vila da Ponta do Sol, uma filarmónica para a elite ponta-solense e uma banda para os operários; em 1883, é fundada a Banda União Fraternal de Santa Cruz; a 18 de fevereiro de 1884, a Filarmónica Recreio dos Lavradores atuou pela primeira vez; em 1886, é fundada a Orquestra Recreio e União; em 1887, é provavelmente criada a Sociedade União e Lealdade na freguesia de São Roque; em 1887, é instituída a Sociedade Recreio Musical, com sede na rua dos Ferreiros; em 1887, funda-se a Filarmónica União Santacruzense; em 1889, cria-se a Banda dos Bombeiros Voluntários Madeirenses; em 1889, estabelece-se a Filarmónica da Ribeira Brava. As tunas de cordofones são outro género de grupo muito na moda neste período. As tunas começam por ter como instrumento melódico principal o violino, mas, progressivamente, o bandolim vai ocupando o lugar de destaque nestes agrupamentos amadores, sendo comum na Madeira designar estes grupos como tunas de bandolins ou orquestras de palheta (esta última denominação é de clara influência italiana – “orquestra de plectro”). Entre 1889 e 1935, são fundadas várias tunas na Madeira, primeiramente com ligações ao meio académico e, posteriormente, de cariz mais popular. Segue-se uma lista, não completa, das tunas: 1889, Tuna Compostellana; 1905, Tuna Académica (Liceu do Funchal); 1906, Grupo de Amadores de Música Passos Freitas; 1913, Grupo Reunião Musical da Mocidade (a ulterior Orquestra de Bandolins da Madeira); 1913, Grupo 6 de Janeiro de 1915 (o posterior Círculo Bandolinístico da Madeira); 1920, Grémio Musical 10 de Junho; 1920, Septeto Dr. Passos Freitas (versão reduzida do grupo original); 1920, Quarteto do Sr. Arsénio (Santa Cruz); 1923, Grupo Musical Faialense; 1930, Núcleo Bandolinístico de Câmara de Lobos; 1934, Grupo Bandolinístico de Santo António; 1935, Grupo Bandolinístico União de Santo António (BUSA); 1935, Grupo Musical Colares Mendes. Apesar de a maioria dos grupos amadores madeirenses ser constituída por bandas e por tunas, são frequentes neste período outros tipos de agrupamento. Entre eles, são de salientar os grupos corais e as orquestras sinfónicas. No caso dos grupos corais, apesar de haver referência à criação de uma escola de canto coral no Funchal em 1885, é principalmente na déc. de 1920 que se encontram grupos corais de grande dimensão. Os três protagonistas deste movimento terão sido o cantor Júlio Câmara (1876-1950), o músico-advogado Manuel dos Passos Freitas (1872-1952) e o capitão Gustavo Coelho (1890-1965). Júlio Câmara dirigia, em 1920, o Orfeon Académico, o qual chegou a ser composto de 85 elementos; Manuel dos Passos Freitas fundou e dirigiu o Orfeão Madeirense, que se apresentou por diversas vezes no teatro e realizou digressões às Canárias; finalmente, o capitão Gustavo Coelho criou um Orfeão Académico, constituído por alunos do Liceu do Funchal e sobre o qual há notícias de estar em atividade em 1925. Gustavo Coelho merece ser posto em evidência, uma vez que foi um dos mais relevantes e conceituados regentes de bandas filarmónicas, orquestras e grupos corais, assim como um prolífico compositor e transcritor de música. Foi chefe da Banda de Música do Comando Militar da Madeira e integrou o corpo docente da Academia de Música, Belas-Artes e Línguas da Madeira. Entre os principais regentes de bandas e orquestras deste período salientam-se ainda os nomes de Nuno Graceliano Lino (1859-1929), “organizador de quase todas as orquestras que se faziam ouvir nos salões aristocráticos e nas grandes solenidades da Diocese” (DN, Funchal, 16 nov. 1929, 3), e de César Rodrigues de Nascimento (1879-1925), compositor, violinista e regente de duas das principais bandas madeirenses, Artistas Funchalenses e Artístico Madeirenses (Guerrilhas). No plano nacional, a transição do séc. XIX para o séc. XX é marcada pela tentativa de criação de uma identidade com a qual os portugueses se identificassem como com algo de próprio e de distinto das outras nações. No caso da Madeira, houve várias ações no âmbito das artes que tiveram nitidamente esse propósito, mas também se deram algumas iniciativas mais específicas, onde, mais do que uma identidade nacional, os autores procuraram criar uma identidade regional madeirense. Uma das primeiras medidas levadas a cabo com este intuito está relacionada com o estudo das tradições do povo rural; em 1880, designadamente, Álvaro Rodrigues de Azevedo faz as primeiras observações e recolhas sobre o folclore regional. Outra das providências estava relacionada com a utilização dos instrumentos considerados típicos da Madeira; nomeadamente, em 1890 há referências à atividade musical da Orquestra Característica Madeirense, dirigida por Agostinho Martins, a qual era constituída por vários tipos de instrumentos, entre os quais se destacam os típicos da Madeira, tais como o machete (vulgo braguinha) – a utilização, em orquestra, deste género de instrumentos parece não deixar dúvidas quanto ao objetivo de criar, ou de executar, música com traços marcadamente regionais. Para além disso, em 1905, o compositor madeirense Filipe Fernandes Madeira (1864-1912) cria uma obra musical intitulada Souvenir de Madere – Rapsodia de Canções Populaire, formada de canções consideradas pelo autor como tradicionais da Madeira, o que constitui outro exemplo da tentativa de reprodução de uma música marcadamente madeirense. À semelhança de Filipe Fernandes Madeira, também o compositor Manuel Ribeiro procura inspiração nas canções populares da Madeira. Provavelmente na déc. de 1910, o então regente da Banda Militar compõe uma rapsódia baseada em alguns cantos típicos madeirenses – charamba, bailinho do Porto Santo, mourisca, etc. –, a qual orquestra para um dispositivo sinfónico. A procura de regionalismos encontra-se também nas produções teatrais com música, nomeadamente na revista musical madeirense, então muito em uso. Neste sentido, Dário Florez (1879-1951), um músico espanhol radicado na Madeira, cria várias peças de teatro de revista com inspiração em elementos regionais, como o exemplifica o título de uma obra sua, Semilha e Alface, de 1917. Além da busca de inspiração na música regional, assistiu-se ao cultivo de géneros nacionalistas. Assim, no primeiro quartel do séc. XX multiplicam-se a composição e a interpretação de fados no Funchal. Uma das referências mais antigas à prática de fados concerne à banda regimental de infantaria n.º 27, que incluía no seu programa de concerto, em 1902, uma versão de um fado de Rey Colaço. Prova da grande difusão do fado, neste período, é o facto de todas as principais salas de espetáculos da Madeira terem artistas que tocam este género musical. No Pavilhão Paris, e.g., é possível ouvir o ator Horácio Campos cantar fados, antes de interpretar um dueto da Viúva Alegre, enquanto no Teatro-Circo Duarte Valério apresenta “canções e fados” (DN, Funchal, 9 fev. 1914, 3); por sua vez, um anúncio do Casino Vitória refere a estreia de Silva Sanches, um “artista distinto” português, que oferece um “repertório fino, de que fazem parte, além de vários números de operetas, lindos fados e canções internacionais” (DN, Funchal, 30 dez. 1919, 1); finalmente, no teatro municipal produz-se uma opereta, da qual se diz ter “imensa graça”, intitulada Tiro ao Alvo, “com as suas canções e fados”(JM, Funchal, 10 jan. 1929, 3). Existem indícios da inclusão do fado em contexto erudito, algo que se verifica no trabalho de vários cantores líricos, que passaram a incluir fados no seu repertório de concerto, juntamente com obras clássicas, de modo regular. Assim, o tenor lírico Ernesto Silva anunciava que iria cantar “novos fados”, a par de uma canção napolitana (Diário da Madeira, Funchal, 9 fev. 1916, 2); a cantora Helena Robini sabia “com mestria interpretar os melhores clássicos” e cantava também “grande número de fados e canções” (DN, Funchal, 27 abr. 1917, 2); Júlio Câmara, tenor lírico que esteve radicado na Madeira durante alguns anos, incluía no seu repertório um “lindo fado sentimental” (DN, Funchal, 5 fev. 1918, 2). No que diz respeito à faixa etária dos fadistas, há notícia de que as crianças eram protagonistas no canto do fado. Assim, no Salão Ideal anunciava-se que, para além da “habitual presença do Quartetto Nascimento, a atriz Luiza Durão de 11 anos, cantará um lindo fado […], com letra e música, original do Sr. Machado Bonança, distinto professor do liceu d’esta cidade” (DN, Funchal, 4 jun. 1911, 1). Esta pequena atriz não foi caso único, encontrando-se uma criança ainda mais jovem, “o menino Fernando Barreto, de 9 anos”, a atuar na Qt. das Cruzes, onde cantou fados e canções portuguesas e do qual se dizia “ser possuidor de uma grande voz” (DN, Funchal, 17 set. 1931, 1). Eng. Luiz Peter Clode.1940 Naturalmente, a intensa atividade relacionada com o fado nos principais locais de espetáculo funchalenses influenciou os músicos madeirenses. Assim, ao longo da primeira metade do séc. XX, sabe-se de vários fados para canto e piano de autores madeirenses ou a residir na Madeira. Entre os autores identificados, além de Dário Florez, com o fado Saudades de Coimbra, conhecem-se, em versões para piano: um fado de Gustavo Coelho (1890-1965), intitulado Oh! Quem Me Dera; o Fado do Desespero, do músico amador Fernando Clairouin (1897-1962); Fado da Feira, Fado “Maria das Dores”, Fado dos Olivais, Fado do Vale e Fado dos Laranjais, da autoria de Luiz Peter Clode (1904-1990); e o “fado slow” Adeus Funchal, do pianista Tony Amaral (1910-1975). Um músico e poeta madeirense que viria a evidenciar-se na história do fado português, mais especificamente do fado de Coimbra, foi Edmundo Bettencourt (1899-1973). Da sua obra ressaltam as gravações de discos pela Columbia, em 1928, com a participação do guitarrista Artur Paredes (pai de Carlos Paredes), que fariam dele um cantor de referência para muitas gerações de músicos do fado e da canção de Coimbra, entre os quais Zeca Afonso. A nível religioso, a execução de música sacra em contexto popular foi muito frequente nesta época. As celebrações religiosas solenizadas com música estavam normalmente associadas “ao calendário litúrgico, destacando-se a Semana Santa, o ‘Mês de Maria’ e o Natal, assim como as cerimónias dos santos populares e dos oragos das freguesias” (CAMACHO, 2010, 19). Um outro aspeto central da música religiosa deste período está relacionado com orientações vindas do papa Pio X. Em 1903, o Papa lança o Motu Proprio, que bane da Igreja a música teatral de estilo florido, “com recitativos, floreados no canto e no acompanhamento […], e melodia das óperas mais conhecidas” (SILVA, 2006, 11). Tendo em consideração que parte significativa da música tocada nas igrejas madeirenses era inspirada em modelos operáticos, esta orientação papal exigiu uma profunda mudança na música religiosa da época. Com certeza, a diretriz vinda de Roma não resultou numa reforma completa e imediata da música na Madeira. Prova disso é o facto de o bispo D. António Pereira Ribeiro ter necessidade de criar, por decreto, uma Comissão Diocesana de Música Sacra, em 1918, com o objetivo de promover “ ‘a escrupulosa observância em toda a Diocese das leis eclesiásticas acerca da música sacra’ ” (SILVA, 2006, 10-11). Considerando que, em 1908, foi publicada na Madeira uma segunda edição de uma coleção de melodias sacras, de acordo com as orientações do Motu Proprio, fica claro que terá havido alguma resistência a retirar, dos templos madeirenses, a música de influência teatral. Apesar disso, existem casos de compositores que criaram um elevado número de obras em consonância com as novas normas emanadas do papa. Um dos casos mais notórios é o do Cón. Fernando Vaz (1884-1954), de quem se conhecem 78 composições, sobretudo cânticos em honra de N.ª Sr.ª e do Sagrado Coração de Jesus. A aludida coleção de melodias sacras compostas para o culto religioso, como alternativa às músicas de inspiração operática, não foi a única solução encontrada para pôr em prática as diretrizes de Roma. De facto, tal como um pouco por todas as dioceses portuguesas, encontram-se nesta época várias referências à tentativa de instituir o canto gregoriano na Madeira. A 15 de outubro de 1909 é anunciado na Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira que “todos os alunos do seminário têm aula diária de cantochão ou de música” (SILVA, 2008, 217); entre 1912 e 1915, há notícia de um padre beneditino que realiza um curso de canto gregoriano no Funchal; finalmente, a 1 de março de 1915 são apresentados os princípios elementares do canto gregoriano e da música sacra no Boletim Eclesiástico da Madeira. Neste âmbito, é relevante nomear José Sarmento (1842-1905), que foi convidado pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto para organista da Sé, tendo sido depois mestre de capela e professor do seminário. Sarmento criou e imprimiu vários folhetos intitulados Rudimentos de Música, onde explicou os fundamentos teóricos da música tonal e gregoriana. Promoveu ainda vários concertos de beneficência e audições reservadas na sua Qt. de Santa Luzia, para os quais convidava os músicos que passavam pela Madeira, acompanhando-os ao piano ou ao harmónio. Outro músico que merece relevo na área da música sacra deste período é o compositor Luiz de Freitas Branco (1890-1955). Figura maior da cultura musical portuguesa da primeira metade do séc. XX e considerado o introdutor do modernismo musical em Portugal, foi para a Madeira com a família em 1912, tendo ficado até cerca de 1915. Apesar de ser bastante jovem, aquando da sua estadia na Madeira o compositor já tinha realizado estudos de composição em Berlim (1910) e tido contacto com a estética do Impressionismo em Paris (1911), onde havia conhecido Claude Debussy. No Funchal, compôs três obras de música sacra a pedido do bispo D. António Pereira Ribeiro, as quais se encontram no Arquivo do Seminário Maior: Responsórios de Matinas da Imaculada Conceição; Te Deum, a duas vozes masculinas; Te Deum, a três vozes masculinas. Outra importante mudança ocorrida na transição do séc. XIX para o séc. XX está relacionada com o desenvolvimento de um mercado para os músicos, derivado da criação de um conjunto de espaços de entretenimento que contratava os seus serviços. Enquanto no período de 1820-1880 não há dados sobre a contratação de músicos para atuações regulares em espaços públicos, a partir do final do séc. XIX começam a surgir cafés, teatros, cinemas, casinos, hotéis e outras entidades que necessitam de músicos para entretenimento habitual de madeirenses e de turistas. Passa-se de uma situação em que os músicos eram maioritariamente solicitados para dinamizar bailes esporádicos em clubes ou para atuações pontuais em teatros a uma situação em que existem vários espaços em simultâneo com necessidade, por vezes diária, de atividades musicais. A mudança em questão, aliada à necessidade de regentes para os grupos musicais de amadores então surgidos – bandas, tunas e orfeões –, bem como ao aumento de solicitações de professores de música, alterou profundamente o estatuto dos músicos, criando mais oportunidades de profissionalização para esta classe. Este novo contexto trouxe grandes alterações ao tipo de agrupamentos musicais existentes: enquanto os grupos musicais de amadores eram constituídos por dezenas de elementos, os grupos profissionais eram mais reduzidos. Em poucos anos, surgem vários grupos profissionais de pequena dimensão, normalmente sextetos, quintetos ou quartetos. Assim, principalmente a partir da déc. de 1890, são criados muitos grupos de músicos profissionais, acentuando-se o fenómeno a partir do início do séc. XX: 1895, Café “Águia D’Ouro”; 1905, Quinta Santana; 1906, Monte Stranger Club; 1907, Club dos Estrangeiros; 1909, Casino da Quinta Pavão e Hotel Belo-Monte; 1911, Salão Ideal, Salão Central Cinematographo Gaumont e Pavilhão Paris; 1916, Ateneu Comercial; 1919, Casino “Vitoria” e Teatro Circo; 1920, Novo Club Restauração; 1922, Hotel Savoy. A proliferação de grupos profissionais virá a acentuar-se a partir da déc. de 1940, devido sobretudo ao significativo aumento no número de hotéis e da oferta turística madeirenses. No período de 1890 a 1930 assiste-se a uma primeira fase de profissionalização da classe dos músicos, como está patente na seguinte lista (não exaustiva): 1897, Sexteto de Evaristo Guedes; 1900, Sexteto dos Srs. Nunos; 1905, Sexteto Espanhol da Quinta Santana; 1906, Sexteto Agostinho Martins; 1906, Sexteto António de Aguiar; 1909, Sexteto Espanhol da Quinta Pavão; 1909, Sexteto de Nuno Graciliano Lino (mais tarde, Quarteto); 1909, O Sexteto Nascimento (mais tarde, Quarteto e Quinteto); 1909, Orquestra Belo-Monte; 1911, Quarteto João de Deus; 1916, Sexteto Joaquim Casimiro; 1919, Sexteto Cesar Magliano; 1920, Sexteto Passos Freitas (mais tarde, Septeto, Octeto e Quinteto); 1920, Quarteto Accacio Santos; 1922, Quarteto do Hotel Savoy. O momento mais importante do final do séc. XIX, que influenciaria as artes performativas profissionais ao longo das primeiras três décadas do séc. XX, foi a fundação do Teatro D. Maria Pia, em 1888 (posteriormente Teatro Funchalense, Teatro Manuel Arriaga, teatro municipal Baltazar Dias). As obras de construção terão sido concluídas em 1887, altura em que a Orquestra da Associação Musical 25 de Janeiro deu um concerto para experimentar as condições acústicas da nova sala. A 11 de março de 1888, o teatro é inaugurado oficialmente por uma companhia espanhola contratada pelo negociante espanhol D. José Zamorano, estabelecido no Funchal; a primeira peça a ser representada foi a zarzuela Las dos Princesas. Na sequência da fundação do teatro, experimentou-se um incremento da produção teatral: ao longo de 1888 são apresentados 69 espetáculos (referentes a 34 zarzuelas). De facto, este foi o espaço privilegiado do Funchal para concertos públicos, tendo nele atuado várias companhias de ópera, de revista, de zarzuela e diversos músicos virtuosos. A partir da inauguração do Teatro D. Maria Pia, as representações de teatro lírico de influência italiana começaram a ser mais frequentes – com forte concorrência da zarzuela espanhola –, e o tipo de espetáculo mais comum terá sido o sarau ou a récita com uma mistura de árias das óperas mais famosas de então. Um exemplo deste género de exibição ocorre em 1904, ano em que um conjunto de cantores líricos com formação italiana atua no teatro municipal: o barítono Maurício Bensaúde (teatro alla Scala de Milão), a mezzo soprano Paola Moretti (La Fenice de Veneza) e o tenor Ivo Zaccari (teatro Carlo Felice de Génova), que apresentam um conjunto de êxitos das óperas mais populares. Contudo, no final do séc. XIX as cançonetas ligeiras começam a ganhar a preferência de alguma elite madeirense, ocupando o espaço deixado livre pelos romances (desaparecidos das notícias de imprensa desde a déc. de 1870) e fazendo concorrência às árias de ópera de influência italiana. O termo “cançoneta” começa a aparecer de forma frequente a partir de 1888, coincidindo com o ano de fundação do Teatro D. Maria Pia. As cançonetas eram cantadas maioritariamente por atores e não por cantores líricos; tinham, com frequência, objetivos cómicos: um articulista referia que a cançoneta “De Pernas Para o Ar”, quando interpretada pelo ator Santos, fazia “a gente morrer de riso” (DN, Funchal, 21 out. 1888, 1); outra cançoneta teria o mesmo efeito, sendo descrita como “a engraçadíssima cançoneta: Sol, Lá, Si, Dó que é d’uma pessoa morrer de riso” (DN, Funchal, 13 nov. 1888, 1). Entre as cantoras e compositoras madeirenses, saliente-se Matilde Sauvayre da Câmara (1871-1957), que teve grande influência na vida musical da Ilha na transição do séc. XIX para o séc. XX. Na visita que os reis D. Carlos e D. Amélia fizeram à Madeira em 1901, Matilde Sauvayre da Câmara foi responsável pela organização de uma récita de gala no teatro municipal do Funchal. Sauvayre da Câmara, enquanto artista que alcançou notoriedade a compor e a cantar cançonetas, exemplifica a mudança que se viria a sentir no início do séc. XX, onde a preferência por um estilo musical teatral mais ligeiro, em detrimento das árias de ópera, se veio a confirmar. A cantora madeirense tem sucesso, desde 1893, ao atuar em saraus domésticos realizados em salões nobres de casas de personalidades do Funchal, tais como as do médico Adriano Augusto Larica ou dos Viscondes de Monte Bello; em 1897, surge como protagonista de números dramáticos no Teatro D. Maria Pia, onde também interpreta algumas cançonetas integradas num espetáculo de beneficência. Na área da música para teatro, uma das novidades de maior relevo deste período é a emergência de um repertório original de criação regional de influência lisboeta e espanhola – a revista. A revista madeirense terá provavelmente sofrido o influxo da congénere de Lisboa, por meio dos militares músicos que chegaram à Madeira partidos do continente – como Manuel Ribeiro –, e da zarzuela espanhola, através da ação das várias companhias que estiveram no Funchal neste período. Parece plausível que entre 1909 e a déc. de 1950 tenham sido produzidas no Funchal dezenas de revistas originais, exibidas em espetáculos criativos que misturavam libretistas, compositores e coreógrafos regionais. Ao longo de cerca de 50 anos foi produzido um extenso repertório de revista, mediante o contributo de músicos como Augusto Graça, Manuel Ribeiro, Dário Florez e, no período do Estado Novo, do Cap. Edmundo Conceição Lomelino. No domínio dos libretos, a variedade de autores é maior, destacando-se, entre outros, os nomes de Alberto Artur Sarmento, de Adão Nunes e, na época do Estado Novo, de Teodoro Silva. Nos anos áureos da revista e da opereta regional madeirenses surgiu o tenor lírico Nuno Lomelino Silva (1893-1967), apelidado de “Caruso português”. Nascido no Funchal, no final do séc. XIX, começa a sua atividade de cantor como amador numa opereta na Madeira. Após realizar estudos em Itália, acaba por enveredar por uma carreira internacional, com digressões pela Europa, pela América do Norte, pelo Brasil, pela Ásia, etc. Atuou no Funchal por diversas vezes, acompanhado de excelentes pianistas; entre estes, conhecem-se os nomes de Jacinto C. Baptista Santos, do maestro Jacobs Pierre, de Pedro Guevara e de Regina Cascais. Na área da relação entre a música e o teatro, é ainda de referir João dos Reis Gomes (1869-1950) que, em 1919, publica um esboço filosófico intitulado A Música e o Teatro, o qual ocupa um importante lugar no panorama musicológico madeirense. As novas tecnologias e a emergência do Novo Mundo Os primeiros anos do regime do Estado Novo foram marcados por um conjunto de mudanças tecnológicas que teve um elevado impacto na cultura madeirense. Entre elas encontram-se a telefonia, o cinema e o gramofone, que vieram alterar o modo de recreação dos madeirenses, quer na vida privada, quer na vida social. A telefonia chega à Madeira no verão de 1927, altura em que surgem os primeiros anúncios para venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. No entanto, será principalmente a partir da déc. de 1930 que a telefonia se começa a generalizar entre a população madeirense. O cinema ganhou progressivamente a adesão do público, supondo-se que fosse, no segundo quartel do séc. XX, a principal forma de passatempo madeirense. A primeira apresentação do animatógrafo ocorreu no Funchal em 1897; em 1907, ocorreu o lançamento do cinema em termos comerciais. O sucesso obtido por esta arte no Funchal foi de tal ordem que, em 1932, o teatro municipal já funcionava quase exclusivamente como sala de cinema. O gramofone foi outra tecnologia que, na déc. de 1930, marcou de forma indelével o quotidiano e os entretenimentos madeirenses. Pelo menos desde o início da déc. de 1910 que se faz menção desta tecnologia nos periódicos, a qual coincide com o início da decadência da prática musical amadora. É nesta altura que começam a surgir os primeiros anúncios publicitários a vendas de fonógrafos, então designados de “Pathéphone – máquinas falantes” (DN, Funchal, 19 jul. 1910, 3). Estes reclames mantinham-se ao longo de várias semanas, o que indicia que o negócio devia ser rentável. A nova tecnologia era apresentada com grande euforia nos jornais: v.g., afirmava-se que “a descoberta das máquinas falantes para discos sem agulha produziu uma revolução no mundo artístico e musical” (DN, Funchal, 21 nov. 1910, 3) – o que, de facto, veio a confirmar-se nas décadas seguintes. Na déc. de 1930, aparece a denominação “gramofone” num anúncio que informa que “gramofones de origem alemã” podiam ser adquiridos na “rua do Comércio, 166 a 168” (DN, Funchal, 31 jan. 1932, 6). Em espaços comerciais destinados a estrangeiros havia casos de proprietários que preferiam colocar gramofones em vez de pôr música ao vivo: e.g., num anúncio em inglês, a Majestic House informava que todos os dias colocava discos a tocar no seu gramophone, dando especial destaque aos melhores “fados portugueses” (DN, Funchal, 26 jan. 1932, 6). A elevada importância destas tecnologias entre os jovens da déc. de 1930 está bem patente num texto de Luiz Peter Clode, escrito em 1949, onde o autor descreve as motivações para a fundação da Sociedade de Concertos da Madeira, em 1943: “de 1930 a 1943, […] aos rapazes e raparigas dos 15 aos 18 anos pouco interessava a política do espírito. A sua máxima preocupação era o aperfeiçoamento dos gramofones, as atrizes e os atores de cinema, radiotelefonia, o ‘jazz’ e o gosto exagerado pelo futebol” (CLODE, 1949, 1). A difusão destas novas tecnologias na déc. de 1930 contribuiu de forma decisiva para um aumento da influência da música americana na Madeira – tal como no resto da Europa –, em especial através do cinema e dos gramofones. Num anúncio do Jornal da Madeira de 10 de maio de 1924 indica-se existir à venda, na rua da Queimada de Cima, um “grande sortimento de DISCOS entre outros: Fox-trots, Shimmy’s, Boston, Jazz-Band”. Assim, é natural que a música americana começasse a disseminar-se nos entretenimentos madeirenses, principalmente nos diferentes tipos de danças. A influência, não só americana, mas também inglesa chegou à Madeira na déc. de 1920, altura em que se dançava o one step e o fox-trot no Funchal. Entre os compositores madeirenses, encontram-se músicos que criam repertório deste género. O pianista Raul de Abreu compõe, em 1936, uma peça intitulada Kit Cat, Fox-trot, na qual o estilo ragtime é bastante notório. Outro músico madeirense pioneiro nestas novas danças foi Edmundo da Conceição Lomelino, que editou um one-step para piano, intitulado A Little Kiss, Intermezzo Americano, em data incerta (entre 1920 e 1940). A americanização da música de dança e da música em geral continuou no Funchal ao longo da primeira metade do séc. XX, havendo vários indícios dessa aculturação, sobretudo ao longo da déc. de 30, com a difusão de jazz bands. A referência ao jazz é pertinente, principalmente porque é significativa de uma mudança cultural relevante. No Funchal, as notícias sobre jazz bands começaram a surgir sensivelmente a partir de 1927, com menção à prática de jazz habitualmente ligada ao cinema e à dança, confirmando-se assim o paralelismo com a situação em Lisboa. Designadamente, num anúncio a um espetáculo de cinema no Teatro-Circo avisava-se que se estreava “um jazz band, que doravante passa a tocar em todos os espetáculos deste cinema”, acrescentando-se que seria “mais um atrativo para o público” e que esta música estava “muito em uso em todas as partes da Europa” (DN, Funchal, 30 jul. 1927, 2). Poucos meses depois, no Strangers Clube do Casino Victor, anunciava-se que às seis horas haveria “dança com acompanhamento do Jazz-Band do Club” (DN, Funchal, 29 dez. 1927, 3). Durante a déc. de 30, estas referências multiplicam-se, surgindo várias orquestras de jazz que tocam em cafés, hotéis, clubes ou no Casino Vitória: Orquestra Jazz de Manuel Freitas (1932), Orquestra Jazz Café Ritz (1932), Orquestra Jazz Oceânia (1933), Orquestra Jazz Amaral (1933), Abreu’s Dancing Orchestra (1933); Jazz Band de Jacinto Baptista Santos (1935), Orquestra Jazz Senhor Silva (1935), Orquestra de Jazz da Academia Musical Instrução e Recreio (1936), Orquestra Jazz Vanize Meireles (1937), entre outras. Estes grupos incluíam instrumentos como a bateria de jazz, a viola (francesa), o piano, o bandoneon e o saxofone, que em alguns casos continuavam a coexistir com o violino, o clarinete e o trompete. Um dos primeiros músicos madeirenses a ser influenciado pela “nova música” americana e a obter enorme sucesso foi Tony Amaral (1910-1976). No início dos anos 40, o pianista e compositor madeirense criou o Conjunto Tony Amaral e a sua Orquestra, com o qual atuava no hotel Bellavista. Em 1946, muda-se para Lisboa, onde alcança um enorme êxito, inclusivamente junto da crítica. Na capital, sob a designação de Tony Amaral and His Boys, o conjunto atuou em nightclubs, restaurantes, teatros e no Casino Estoril. Em Lisboa, o conjunto era, numa primeira fase, constituído pelos músicos Carlos Menezes (guitarra elétrica), José de Freitas (contrabaixo), Barrinhos (bateria), Tony Amaral (piano) e Max (voz). Em 1949, o conjunto grava um disco com a Valentim de Carvalho, incluindo composições de Tony Amaral e de Max e recriações de canções tradicionais madeirenses, entre as quais o célebre Bailinho da Madeira e a música de influência africano-americana Noites da Madeira. O famoso cantor madeirense atuou no grupo até iniciar uma carreira a solo, na qual atingiria o estatuto de uma das mais populares vedetas da rádio, do teatro e da televisão portuguesa. O agrupamento de Tony Amaral é modelo de um novo tipo de grupo de músicos profissionais, normalmente denominado de “conjunto”, que começa a proliferar de forma mais acentuada na déc. de 1940, principalmente em conexão com o aumento dos hotéis e da oferta turística madeirenses. O termo “conjunto” aplicou-se a vários tipos de formações, mas na Madeira foi sobretudo utilizado, nas décs. de 1940 e de 1950, para designar novos agrupamentos de pequena dimensão e com configurações variadas, que se desenvolveram em torno da bateria de ritmo e com um repertório baseado nas danças em voga. Os conjuntos representam, deste modo, uma nova forma de agrupamento de músicos profissionais ligados ao turismo, a qual vem na sequência dos sextetos, dos quintetos ou dos quartetos que proliferaram no Funchal na transição do séc. XIX para o séc. XX. Os conjuntos distinguem-se dos grupos anteriormente referidos por apresentarem programas de influência anglo-americana e por disporem de um efetivo instrumental que inclui bateria, baixo ou contrabaixo, piano, viola amplificada, habitualmente, e, mais tarde, guitarra elétrica. Alguns conjuntos têm também instrumentos de sopro, como trompete, clarinete ou saxofone. Os conjuntos de Tony Amaral foram os primeiros do género em Portugal que alcançaram um elevado sucesso, tocando música swing, danças latino-americanas e composições de inspiração folclórica em instrumentos elétricos. Assim, é natural que um articulista se referisse ao “quinteto Tony Amaral” como tendo “feito a maior propaganda da Madeira no Continente sendo justamente considerado o primeiro conjunto musical português” (DN, Funchal, 1 jan. 1951, 6). O sucesso alcançado pelo conjunto de Tony Amaral, quer em Portugal continental, quer no estrangeiro, contribuiu certamente para o aparecimento de um grande número de grupos que seguiram o seu modelo, tanto a nível de efetivo instrumental, como de repertório. Assim, ao longo da déc. de 1950, surgem dezenas de grupos musicais que se apresentam sob a designação de “conjuntos” ou de “orquestras”, sem diferenciação substancial entre ambas as denominações, que seguem de perto o modelo do conjunto de Tony Amaral. Entre esses conjuntos, é possível destacar os seguintes, que, de acordo com os periódicos funchalenses, estão em atividade na déc. de 50: Conjunto Blue Moon (1951), Trio “Jess and His Boys” (1952), Conjunto Musical Privativo do Savoy (1954), Conjunto Musical “Tino Cubanos”, Conjunto Musical “Os Rapazes do Ritmo” (1954) – os quais atuam em Luanda em 1957 –, Orquestra “Os Reis do Ritmo” (1954), Orquestra privativa Conjunto “Jorge Brandão” (1954), Conjunto “Flamingo” (1954), Conjunto Irmãos Freitas (1955), Conjunto Académico (1955), Orquestra Zeca da Silva e o seu Conjunto (1955), Conjunto Privativo do Casino (1957), Conjunto Musical “Atlântico Jazz” (1957), Conjunto “Virgílio Cardoso”, (1957), Conjunto Alberto Amaral (1957), Conjunto “Os Amigos da Onça” (1958) – no mesmo ano aparece sob o nome de Orquestra privativa “Os Amigos da Onça” –, Conjunto “Novo Ritmo” (1958), Conjunto Tony Amaral Júnior (1958). Um grupo que merece um destaque especial neste período é o Conjunto de Helder Martins. Em meados dos anos 50, Helder Martins (1929-1978) foi o pianista do Quinteto do Hot e foi pioneiro do jazz em Lisboa, conjuntamente com outros dois madeirenses, o guitarrista Carlos Menezes e o vocalista Max. A partir da déc. de 60, surge uma segunda geração de conjuntos, como o Conjunto Académico João Paulo com Sérgio Borges, Dinâmicos, Demónios Negros, Incríveis, Dancers, entre outros projetos que alcançaram projeção nacional, os quais foram influenciados por grupos como os Shadows ou os Beatles. É também nesta altura que muitos conjuntos começam a acrescentar à sua designação a expressão “ritmos modernos”, a qual se torna comum: Conjunto de Ritmos Modernos “Os Dancer’s” (1965), Conjunto de Ritmos Modernos Tonar’s (1965), Conjunto de Ritmos Modernos “Os Baitas” (1969), grupos musicais de ritmos modernos ou de rock Os Rivais de Câmara de Lobos e os Hamong Band (1970). A título de exemplo, num espetáculo de homenagem à cançonetista Ana Maria, o articulista refere-se à “exibição dos conjuntos de ritmos modernos Vulcânicas e os Dinâmicos” (DN, Funchal, 19 mar. 1965, 7). Entre estes agrupamentos, o Conjunto Académico João Paulo viria a ser o de maior êxito, ocupando o lugar cimeiro da música ligeira regional e nacional, outrora pertencente ao Conjunto de Tony Amaral. A banda nasceu no Liceu Jaime Moniz, no início da déc. de 60, e foi influenciada pela nova vaga de grupos musicais e de cantores dos anos 60, cunhada no estilo dos Beatles. Em 1964, o grupo ganhou um dos concursos de música realizados na Madeira – uma promoção da Rivus, no antigo Cine-Parque – e foi premiado com atuações em Portugal continental, na rádio e na televisão. Na televisão, o grupo participou, com grande sucesso, no programa musical “T.V. Clube”, o que fez catapultar a sua música a nível nacional, de tal modo que os músicos madeirenses acabariam por decidir radicar-se em Lisboa, para dar continuidade ao seu trabalho. Os anos de 1965 e 1966 foram de grande sucesso. Em pouco tempo, o conjunto teve a oportunidade de gravar discos e começou a ser presença assídua em emissões de rádio e de televisão, bem como em espetáculos. Entre as exibições de maior sucesso de início de carreira, salientam-se as realizadas no Teatro Politeama e, depois, no Teatro Monumental. No Politeama, o conjunto tocou para casa cheia durante um mês e meio, num ambiente idêntico ao dos concertos dos Beatles, com uma reação do público inovadora em Portugal, a qual marcaria o início de uma nova era musical. O conjunto participou, por duas vezes, no Festival RTP da Canção, tendo alcançado o 2.º lugar em 1966 e o 1.º lugar em 1970. Da sua extensa discografia salientam-se as seguintes edições, entre 1964 e 1968, sob a designação Conjunto Académico João Paulo: Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1964), De Novo Com João Paulo e o Seu Conjunto Académico (EP, Columbia, 1965), + 1 Disco = 4 Sucessos (EP, Columbia, 1965), Diz-lhe (EP, Columbia, 1966), Eurovisão (EP, Columbia, 1966), Poema De Um Homem Só (EP, Columbia, 1967), L’Amour Est Bleu (EP, Columbia, 1967), Kilimandjaro (EP, Columbia, 1967), O Louco (EP, Columbia, 1967), A Shadow Rounds… (EP, Columbia, 1968). A partir de 1970, os discos são publicados sob a nova denominação de Sérgio Borges e o Conjunto João Paulo: Sérgio Borges com o Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1970), Lavrador (EP, Columbia, 1971), Meu Corpo E Minha Seiva (Single, Columbia, 1970), MAR (Single, Columbia, 1972). A expressão “ritmos modernos” teve tal aceitação na Madeira que, em 1970, é organizado um certame de conjuntos de ritmos modernos, organizado pela Comissão de Festas do Fim do Ano e integrado nas Festas da Cidade do Funchal. Segundo um articulista do Jornal da Madeira, não se podia “esquecer que no tempo eufórico dos conjuntos musicais do género alguns artistas madeirenses nasceram para o music-hall português e até para o internacional”, entre os quais Luís Jardim, que dos “Demónios Negros saltou para o conjunto inglês Bossa Cálida, João Paulo com Sérgio Borges, Valério Silva, o próprio Gabriel Cardoso […], Os Dinâmicos e outros conjuntos de agradável presença” (JM, Funchal, 14 out. 1970, 1 e 7). Depois do desfecho do concurso, a comunicação social noticia que “milhares de pessoas assistiram à final”. O laureado foi o grupo Mud Revolution, que “ultrapassou o Habitat de um ponto e o Comuna Singular de dois”, tendo o júri argumentado que os elementos do conjunto vencedor estavam “industriados naquilo que se denomina música de vanguarda” e que “se realizaram compondo aquilo que apresentaram” (JM, Funchal, 31 dez. 1970, 1 e 3). A introdução de novas tecnologias – fonograma, telefonia e cinema –, bem como a influência da cultura estrangeira (que, por meio daquelas, se tornava acessível), foram acompanhadas de uma reação de resistência cultural com contornos políticos, a qual consistiu na procura da definição da identidade da cultura musical regional. Se, na transição do séc. XIX para o séc. XX, já haviam sido levadas a cabo várias ações de valorização do património musical regional, foi a partir da déc. de 1930 que se realizaram estudos sistemáticos e rigorosos sobre a cultura tradicional madeirense, altura em que as entidades políticas passaram a exercer uma maior intervenção, mais organizada, no âmbito das tradições regionais. De facto, no Estado Novo procurou impulsionar-se as relações entre turismo e folclore, para o que foi criado, em 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (posteriormente Secretariado Nacional de Informação), instituição dirigida por António Ferro entre 1933 e 1950. Este organismo procurou incentivar a perpetuação das tradições folclóricas, em proveito da afirmação nacionalista do regime, através de uma atividade extensível a nível nacional, por meio das diversas repartições e casas do povo (PINTO, 2006, 13). No domínio do folclore e dos estudos sobre as tradições musicais madeirenses, são especialmente relevantes os trabalhos elaborados pelo Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) e pelo jornalista e folclorista Carlos Santos (1893-1955). A partir de 1933, aproximadamente, o Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) realizou vários trabalhos etnográficos e apresentou conferências sobre as tradições musicais madeirenses (sobre o traje, passando pelas danças, até às trovas e cantigas da Madeira). Salvo raras exceções, estes estudos, usualmente de pequena dimensão (20 a 30 páginas), foram publicados a expensas próprias, destacando-se, na área das tradições musicais, os seguintes: Trovas e Cantigas Madeirenses (1934), Danças Madeirenses (1946), Trovas e Cantigas do Arquipélago da Madeira (1954), Danças e Músicas do Arquipélago da Madeira (1954), O Folclore Madeirense (1955), O Trajo do Arquipélago da Madeira (1955) e As Danças e as Músicas Madeirenses (1959). Carlos Santos realizou igualmente estudos mais aprofundados, com uma argumentação mais sólida, tendo as suas obras alcançado alguma reputação, designadamente as seguintes: Tocares e Cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e Bailados da Ilha (1942) e O Traje Regional da Madeira (1952). Estas investigações etnográficas foram acompanhadas de uma componente de prática musical, tendo Carlos Santos dirigido diversos grupos musicais folclóricos, como o Grupo Folclórico dos Louros (1938), o Grupo Folclórico e Cultural Carlos Santos (1939), o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (1949), o Grupo Folclórico da Ponta do Pargo, o Grupo Folclórico da Boaventura, o Grupo Folclórico da Ponta do Sol e o Grupo Folclórico do Livramento-Monte. Segundo Rui Magno Pinto, a partir do final da déc. de 1950 assiste-se a um crescimento do turismo e a uma maior procura por espetáculos de folclore em hotéis e em restaurantes. Assim, em plena déc. de 1960, atuavam nos hotéis do Funchal os seguintes grupos: Grupo Folclórico da Camacha (hotel Savoy, Reid’s hotel), Grupo Folclórico do Livramento (hotel Sheraton), Ilhéus (hotel Monte Carlo, Vila Ramos, Casino Park hotel), Grupo Folclórico do Funchal (hotel Madeira Hilton) e Grupo Folclórico do Porto Santo (hotel do Porto Santo). Além disso, a influência do folclore chega ao teatro. Em 1940, um Grupo Folclórico fundado por Carlos Santos, sediado no Patronato de S. Pedro, apresenta Visão Lírica-Coreográfica da Ilha da Madeira, da autoria do próprio Carlos Santos, no teatro municipal. A peça integrava diversos números musicais de cariz tradicional, tais como canções da ceifa, baile corrido, canção da carga, canção dos borracheiros, canção do berço, canção da sementeira, charamba, mourisca, bailes – da Ponta do Sol, dos Canhas, das Camacheiras –, pesado e bailinho de oito. O hábito do teatro de revista mantém-se no período do Estado Novo, pelo menos até à déc. de 1950. Nesta época, um dos compositores de relevo foi Edmundo da Conceição Lomelino (1886-1962), que criou várias peças de teatro de revista inspiradas na realidade madeirense, as quais alcançaram sucesso entre o público do Funchal. Entre as composições teatrais mais importantes ressaltam Água Benta, A Primavera, A Madeira em Festa (1938) – também representada nos Açores –, Carnaval (1939), Bolas de Sabão (1944) e Flores da Madeira (1945). O enredo das peças de teatro estava maioritariamente ligado a acontecimentos sociais e políticos da altura. Exemplo disso é a peça de teatro de revista Carnaval, em que Teotónio da Silva fez uma paródia à conferência de Munique de 1938. O Capitão Lomelino foi autor da música desta peça, com base num texto de Teotónio da Silva (1900-1976), dramaturgo com quem o compositor colaborou mais frequentemente neste âmbito. A introdução das novas tecnologias contribuiu para o declínio da dedicação à música no espaço doméstico e, em menor escala, para a diminuição da prática instrumental e vocal nos grupos de músicos amadores. O piano, nomeadamente, perdeu o seu lugar central nos entretenimentos familiares, papel que passou a ser ocupado pelo gramofone e pela rádio. As lojas que anteriormente incentivavam a compra de pianos para animação defendiam agora ser mais moderna e mais simples a compra de um gramofone. Desta forma, ao longo da déc. de 1930, os jovens começaram a desinteressar-se da prática musical, como refere Luís Peter Clode. De modo a conservar o que tinham por “música de qualidade” e uma “política do espírito”, os irmãos Luiz Peter Clode (1904-1990) e William Clode (1900-1980) reúnem um conjunto de intelectuais e de artistas e formam, em 1943, a Sociedade de Concertos da Madeira (SCMa) e, três anos depois, a Academia de Música da Madeira (AMM). No seguimento destas instituições, os irmãos Clode fundam, conjuntamente com Herculano Ramos e Arlindo Ramos, a rádio Posto Emissor do Funchal, com o propósito de aumentar o nível cultural da população e de lhe incutir o gosto pela música que consideravam de valor. A SCMa tinha o propósito de fomentar a “arte musical” na Madeira, em proveito de “uma sociedade de elite”. Com esse objetivo, a SCMa deveria organizar concertos, conferências e festas de arte que integrassem artistas madeirenses e continentais de mérito reconhecido. Apesar de a SCMa ter uma índole assumidamente elitista, os seus estatutos referiam que poderiam ser promovidos concertos, com artistas contratados para o efeito, para o público em geral. Nomeadamente, o auditório do jardim municipal do Funchal foi inaugurado num espetáculo da Orquestra de Concertos da Emissora Nacional, organizado pela SCMa, o qual contou com a assistência de milhares de pessoas. Inclusivamente, foram realizados concertos populares ao ar livre em vários locais do Funchal; por norma integrados nos Festivais de Música da Madeira, da responsabilidade da SCMa, estes concertos foram realizados em espaços tais como a Qt. Magnólia e o Lg. do Município, tendo a sua difusão atingido o auge principalmente ao longo da déc. de 50. Luiz Peter Clode deixou um vasto legado de obras, na sua maior parte pequenas peças que imitam o estilo dos compositores do barroco, do classicismo e do romantismo. Obras suas foram tocadas por alguns dos eminentes músicos que atuaram no Funchal sob o patrocínio da SCMa. Entre as suas composições mais importantes, contam-se três peças para piano – Canção de Amor, op. 23, Fantasia N.º 1, op. 12 e Fantasia N.º 2, op. 31 – e uma obra sacra, um Tantum Ergo para duas vozes e órgão. A fundação da AMM teve como primeiro intuito o aproveitamento das vocações no domínio da música. No plano curricular, a AMM procurou seguir, desde a sua criação, o modelo educativo do Conservatório Nacional, o que veio a possibilitar aos alunos da AMM o reconhecimento legal, a nível nacional, das suas habilitações. A oferta da AMM permitiu que crianças, jovens e artistas da Madeira pudessem aceder a um ensino baseado no repertório da tradição erudita europeia, de acordo com padrões educativos de conservatórios e de escolas de música erudita então vigentes no mundo ocidental. Desde o pós-25 de Abril ao início do séc. XXI A revolução de 25 de abril de 1974 trouxe mudanças de fundo na cultura musical madeirense. Com a autonomia da Madeira, em 1976, foram regionalizados vários serviços da administração pública, nomeadamente nas áreas da educação e da cultura, em que foram criadas ou semiprofissionalizadas estruturas culturais e educativas ligadas à música. Os primeiros tempos pós-revolução foram conturbados na Madeira, algo que se refletiu no quotidiano de algumas instituições ligadas ao ensino da música: e.g., a 29 de julho de 1974, a Academia de Música e Belas Artes da Madeira foi ocupada por “um grupo representativo de professores, alunos e de mais pessoas interessadas no desenvolvimento do meio cultural madeirense” (DN, Funchal, 30 jul. 1974, 1). A Orquestra e o Coro de Câmara da Madeira tiveram de adequar o seu discurso e o público-alvo aos novos tempos. Assim, menos de um ano após a revolução, noticiava-se que a “Orquestra e Coro de Câmara da Academia, desde outubro, tem vindo a atuar em diversos pontos da Ilha, contribuindo para uma maior difusão da cultura musical” (DN, Funchal, 26 jan. 1975, 1). Poucos meses depois, num anúncio a um concerto no forte de São João Baptista, informava-se que este era destinado “sobretudo aos pescadores, operários e camponeses da freguesia de Machico” (DN, Funchal, 27 abr. 1975, 3). Finalmente, sobre outro concerto, dirigido a associados e familiares do Sindicato Livre dos Operários da Construção Civil e Ofícios Correlativos do Distrito do Funchal, dizia-se ter “como objetivo principal tornar acessível a boa música às camadas da população habitualmente alheia à realização de concertos” (DN, Funchal, 2 jul. 1975, 6). Durante esta época, realizaram-se, no Funchal, eventos musicais de intervenção política, como concertos de “canto livre”, onde se procurava “lançar para o público canções com uma temática de certo significado político-social”, nas palavras do cançonetista Rui Mingas (DN, Funchal, 12 jul. 1974, 4). Neste âmbito, realizou-se, no Funchal, um espetáculo com cançonetistas de intervenção política, em que participaram músicos como Adriano Correia de Oliveira, Rui Mingas, Jorge Letria, Manuel Freire e Carlos Paredes. Alguns destes concertos eram abertos a qualquer pessoa. A título de exemplo, sobre um evento organizado no então Liceu Nacional do Funchal, informava-se que poderiam inscrever-se nele e “participar como intérpretes todos os que se queiram manifestar adentro do contexto de tal género musical” (DN, Funchal, 2 jul. 1974, 8). No entanto, este tipo de exibições musicais foi desaparecendo com o estabelecimento do regime autonómico, mantendo-se apenas, durante algum tempo, em comícios de partidos de esquerda. A forte tradição musical continuou nos hotéis da Madeira no período pós-25 de abril, não tendo os conjuntos sido diretamente afetados pela revolução (no entanto, a partir da déc. de 1990, assistir-se-á a uma forte precarização dos vínculos laborais dos músicos, bem como a uma redução do valor das remunerações por serviço). Entre os músicos e os novos conjuntos que se destacaram nesta altura nos hotéis, mencionam-se, numa listagem não exaustiva, os seguintes: Celso e o seu conjunto (hotel Madeira Palácio); O Pentágono & Zeca da Silva (Sheraton hotel); Conjunto Habitat (Holiday Inn Madeira); Conjunto Musical “Tap Herperi” e Galáxia (hotel Savoy); Roger Sarbib e os conjuntos Octopus e Ària (Casino Park hotel); Conjunto Pégaso (hotel Atlantis); Conjunto Express Band (hotel Vila Ramos); Conjunto Privativo Fire Work (hotel Savoy); Conjunto The Images (Taste Sheraton hotel); Conjunto “Ritmo 5” (hotel Girassol); Conjunto Contacto (hotel São João); Conjunto Musical Zenith (Casino Park hotel); Tony Cruz (hotel Savoy); Conjunto de Tony Amaral Jr. (Casino Park hotel). Tony Amaral Júnior (1938) merece ser posto em evidência, na qualidade de improvisador e de promotor da música jazz (desde o pós-25 de Abril até à sua partida para Cardiff, em 1989). O pianista teve uma carreira semelhante à do seu pai, Tony Amaral, e notabilizou-se pela sua qualidade técnica como intérprete, bem como pelos conhecimentos musicais superiores de que dispunha, derivados de uma formação musical mais completa. Tocou no hotel Miramar (1958), no Casino da Madeira às datas de 1965 e de 1979 e no hotel Savoy (1973). Em 1986, fundou o Madeira Jazz Club, que durante alguns anos foi o ponto de referência do jazz no Funchal. Atuou em festivais de jazz em Portugal, no Reino Unido e na França, tendo atraído muitos alunos particulares em razão do seu prestígio e do seu talento (quer ao piano, quer na improvisação de jazz); alguns dos seus alunos tornaram-se músicos de relevo no panorama artístico funchalense, como Adler Pereira ou Humberto Fournier. A partir de 1976, o Governo da Região Autónoma da Madeira (RAM) implementou um conjunto de políticas na área da educação, o qual teve um impacto significativo na área da música, quer integrada na educação artística em geral, quer no ensino artístico especializado, bem como no regime de ocupação de tempos livres. Instituições como o Conservatório-Escola Profissional das Artes da Madeira (CEPAM) – instituição sucessora da AMM, que se converteu em Conservatório de Música em 1977 – e o Gabinete Coordenador de Educação Artística – depois Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (DSEAM), integrada na Direção Regional de Educação – funcionaram como dois pilares educativos que permitiram o incremento do número de praticantes, bem como das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Estas duas instituições foram responsáveis pela formação de um conjunto considerável de recursos humanos de elevada competência musical. O aumento de músicos qualificados, juntamente com a opção das entidades governamentais em apoiar projetos com identidade jurídica, incentivou a criação de novos empreendimentos e associações culturais específicas do domínio musical, bem como o rejuvenescimento de antigos agrupamentos – no que toca à idade dos executantes e ao tipo repertório –, tais como bandas filarmónicas e grupos de bandolins. Assumiram identidade jurídica e transformaram-se em associações culturais, entre outros, os seguintes agrupamentos, bandas, grupos musicais e coros: Banda Recreio Camponês-Associação Cultural e Recreativa do Concelho de Câmara de Lobos; Associação Cultural Coro de Câmara da Madeira; Associação Grupo Cultural Flores de Maio; Grupo Coral do Estreito; Banda Municipal Paulense; Associação Musical e Cultural Xarabanda; Associação Cultural Encontros da Eira; Associação de Amigos do Conservatório de Música da Madeira; Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística; Associação Tuna Universitária da Madeira. As diferentes coletividades associativas e agrupamentos de bandolins juntaram-se, tendo surgido a Associação de Bandolins da Madeira a 28 de março de 2000; o mesmo aconteceu no caso das bandas filarmónicas e dos grupos de folclore, tendo sido fundadas a Associação de Bandas Filarmónicas da Região Autónoma da Madeira (2000) e a Associação de Folclore e Etnografia da Região Autónoma da Madeira (2005). A AMM e, posteriormente, o CEPAM formaram centenas de profissionais. Muitas das personalidades que vieram a integrar e a liderar a vida musical no último quartel do séc. XX obtiveram formação na AMM e no CEPAM; nos planos musical e do ensino da música, destacam-se personalidades como o tenor e compositor João Victor Costa (autor do hino da RAM, fundador e maestro de vários coros), Tony Amaral Júnior, a violetista Zita Gomes, o violoncelista Agostinho Henriques, o maestro Fernando Eldoro, o pianista e professor João Atanásio, os flautistas Agostinho Bettencourt e Pedro Camacho, os guitarristas João Paulo Henriques e Pedro Abreu, o maestro João Basílio, o tenor Alberto Sousa, o violinista Norberto Gomes, o clarinetista Francisco Loreto, o bandolinista Norberto Cruz, os compositores Nuno Miguel Henriques, Nuno Jacinto e Pedro Camacho, os violoncelistas Luís Bruno Andrade e César Gonçalves, entre outras; no plano dos estudos de cariz musicológico, realcem-se João Rufino Silva – com um trabalho notável ao nível da recuperação das partituras dos cânticos religiosos do Natal madeirense, bem como de quase toda a música religiosa madeirense do séc. XX –, Vítor Sardinha – com estudos relevantes sobre a música nos hotéis e sobre a história mais recente das bandas filarmónicas – e Rui Magno Pinto – com formação académica especializada em musicologia, tendo realizado trabalhos importantes ao nível da história da música na Madeira; finalmente, no plano de altos quadros da administração pública, salientam-se os nomes de Carlos Gonçalves, José Pereira Júnior, Virgílio Caldeira e Natalina Santos. Por sua vez, a DSEAM complementou o trabalho desenvolvido pelo CEPAM no ensino artístico e vocacional, com um trabalho de base no ensino genérico e em atividades de ocupação de tempos livres. Esta ação dupla do CEPAM e da DSEAM permitiu um acesso facilitado e de qualidade à música por parte das crianças e jovens na RAM, nomeadamente devido à existência de extensões do conservatório em vários concelhos, permitindo a aprendizagem em regime supletivo ou a frequência de atividades artísticas extracurriculares a valores muito reduzidos. No início do séc. XXI, devido à intervenção da DSEAM no ensino genérico, os alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico têm aulas com professores especializados de música. Acresce ainda que os alunos estudam instrumentos Orff e flauta de bisel, e, de acordo com as competências dos professores, têm a possibilidade de aprender instrumentos de corda, sopro e teclado em contexto escolar, através do projeto Modalidades Artísticas; neste contexto, existem vários professores que ensinam guitarra clássica e elétrica, instrumentos tradicionais, teclados e instrumentos sopro. Através desta iniciativa foi possível inverter a situação de quase desaparecimento dos instrumentos tradicionais, existindo muitas crianças e jovens a tocar os cordofones madeirenses (braguinha, rajão e viola de arame). No domínio da ocupação de tempos livres, criaram-se dezenas de grupos artísticos, os quais realizaram uma temporada anual com cerca de 240 concertos, disseminados pelos concelhos da RAM. Na sequência da aprendizagem artística (também musical), surgiram projetos de grande impacto turístico, tais como a Semana Regional das Artes, que se associou ao Festival Atlântico. Ainda no âmbito da DSEAM, implementou-se, desde 2004, uma política de apoio à investigação no domínio da educação artística, que teve resultados relevantes ao nível da melhoria do ensino, bem como nos âmbitos da conservação do património musical e do estudo dos artistas madeirenses, os quais são inseridos no currículo escolar da RAM. O incentivo à pesquisa foi acompanhado de atividades de divulgação na comunicação social e na comunidade científica, tendo daí resultado vários programas televisivos, edições com conteúdos originais, comunicações em congressos e artigos em revistas científicas. No âmbito da preservação e da difusão dos instrumentos tradicionais madeirenses, é relevante frisar os seguintes nomes, que contribuíram para o reflorescimento na prática dos cordofones tradicionais (braguinha, rajão e viola de arame): Roberto Moritz e Roberto Moniz, pelo trabalho continuado de ensino dos cordofones tradicionais; Vítor Sardinha, pelo ensino e pela gravação de álbuns discográficos com viola de arame e rajão; Manuel Morais, pelos estudos e pelas edições de repertório do séc. XIX para braguinha; Carlos Gonçalves, por ter possibilitado a aprendizagem dos instrumentos tradicionais nas escolas da RAM; e Rui Camacho, pelas exposições e edições de cariz organológico, as quais visaram a divulgação e defesa daqueles instrumentos – esta proteção foi protagonizada pela Associação Musical e Cultural Xarabanda. O papel da Associação Musical e Cultural Xarabanda foi decisivo na renovação da música do legado madeirense, quer através de trabalhos de recolha, quer por meio dos arranjos musicais efetuados sobre canções tradicionais, os quais levaram novos instrumentos e sonoridades à música tradicional. Neste domínio, é ainda relevante mencionar os grupos de música tradicional Encontros da Eira e Banda D’Além que, a par do grupo Xarabanda, foram os principais dinamizadores da nova música tradicional madeirense. Com a entrada de Portugal na União Europeia, a RAM teve acesso a subsídios que contribuíram para o desenvolvimento regional em vários sectores, nomeadamente na área da cultura e da educação, em que foram construídas e recuperadas diversas infraestruturas um pouco por toda a Ilha (como sedes para coletividades e centros cívicos e culturais com pequenos auditórios), as quais melhoraram as condições do exercício da atividade musical. No que diz respeito às pequenas coletividades culturais, houve pouca capacidade dos agentes desta área em concorrer a fundos europeus, por falta de recursos financeiros próprios e, possivelmente, de apoio técnico dos serviços governamentais na área cultural. Assim, as receitas das associações culturais com maior impacto junto dos turistas, tais como a Associação Recreio Musical e União da Mocidade (Orquestra de Bandolins da Madeira) e o Grupo de Folclore e Etnográfico da Boa Nova, são quase exclusivamente provenientes dos concertos e das animações que realizam. Trata-se de exemplos de sucesso, em termos de sustentabilidade financeira, de agrupamentos que conseguiram aliar o trabalho artístico de qualidade à capacidade de comunicação e ao marketing cultural. Ambos os grupos têm trabalhos discográficos importantes e uma elevada preocupação em conservar o património musical regional. No caso de instituições com capacidade financeira, advinda principalmente de financiamento público regional, os fundos europeus recebidos foram aplicados maioritariamente em formação, através do programa Rumos – como aconteceu no CEPAM –, bem como na criação da marca Festivais Culturais da Madeira – com o programa Intervir+ –, mediante a qual se procurou reunir os quatro festivais organizados pelo Governo Regional da Madeira, através da Direção Regional dos Assuntos Culturais (Encontro Regional de Bandas Filarmónicas da RAM, Festival de Música da Madeira, Festival Raízes do Atlântico e Festival de Órgão da Madeira). Os festivais são o corolário de uma política de animação cultural que visou, desde o início da RAM, a organização de eventos que beneficiassem os madeirenses e os turistas, tendo em consideração a vocação turística da região. Nesse sentido, o Governo Regional teve a preocupação de: organizar concertos e sessões de folclore, concertos de música clássica e espetáculos de música tradicional; produzir concertos com artistas de fora da Ilha; e apoiar acontecimentos culturais com potencial turístico, tais como o Carnaval, a Festa da Flor ou a Festa do Vinho, onde a participação de músicos sempre foi uma constante. Outros festejos musicais de relevo neste período foram: o Festival da Canção do Faial; o Festival Internacional de Música Antiga, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Cine Fórum; o Madeira Bach Festival; o Festival Regional de Folclore (mais tarde Festival Regional de Folclore “24 horas” a Bailar); o Festival da Canção Infantil, (posteriormente Festival da Canção Infanto-Juvenil); o Festival de Coros da Madeira; e o Funchal Jazz Festival. Desde o final da déc. de 1990, havia-se assistido a uma semiprofissionalização da Orquestra Clássica da Madeira (OCM) – instituição que sucedeu à Orquestra de Câmara da Madeira –, mais direcionada para a música instrumental, não se aproveitando o seu potencial para áreas de cariz mais cosmopolita, como a ópera, os musicais ou o bailado. Houve, embora de forma intermitente, alguma articulação entre o ensino artístico especializado e a OCM, o que permitiu o aumento de músicos portugueses, após um período em que os lugares da orquestra eram principalmente preenchidos por músicos estrangeiros, na sua maioria oriundos do Leste Europeu, que tinham ido para a Madeira no período após a queda do muro de Berlim. Os músicos de Leste foram responsáveis pela elevação da qualidade da execução musical, maioritariamente na área das cordas, e contribuíram significativamente para a melhoria da OCM. Nos anos 90, no contexto do jazz, há que realçar o grupo Oficina, que procurou alargar o número de adeptos deste género musical. Uma das cantoras mais relevantes do início do séc. XXI foi Vânia Fernandes, que atuou nos hotéis da Madeira antes de se catapultar para o panorama nacional. A cantora madeirense ganhou renome em 2008, com a participação no programa musical “Operação Triunfo 3”, emitido pela RTP, no qual ficou classificada em 1.º lugar. Em março de 2008, no seguimento desta vitória, participou no Festival RTP da Canção, que venceu com o tema “Senhora do Mar”. Entre finais do séc. XX e inícios do séc. XXI, o turismo madeirense evoluiu significativamente, tendo-se caracterizado tanto pelo constante aumento do fluxo de turistas como pelo consequente aparecimento de novas unidades hoteleiras, as quais empregaram um número elevado de músicos, embora sem qualquer vínculo contratual. As causas desta precariedade laboral são complexas, mas deverão estar relacionadas com o aumento exponencial dos músicos de melhor formação no mercado de trabalho (entre os quais alguns músicos do Leste da Europa, habituados a remunerações mais baixas) e com a concorrência no domínio do entretenimento nos hotéis, designadamente dos disc-jockeys ou DJs (as áreas das danças e da animação eram anteriormente dominadas pelos conjuntos). De facto, encontram-se referências a disc-jockeys no Funchal a partir da déc. de 1990: e.g., no hotel do Mar, em 1992, atua o “popular disc-jockey Britânico Biko Bangs, excelente intérprete de temas anglo-saxónicos” (DN, Funchal, 21 fev. 1992, 13). Juntamente com os disc-jockeys começou a emergir, na déc. de 1990, uma geração de grupos de rock e de subgéneros do rock. Os conjuntos que precederam estes novos grupos tocavam habitualmente na hotelaria madeirense para um público maioritariamente estrangeiro, pertencente a uma faixa etária mais avançada em idade; diferentemente, os novos grupos rock pertencem ao fenómeno das “bandas de garagem” e são influenciados pela música grunge, hard rock, heavy metal, rock alternativo, gothic metal e por outros subgéneros do rock; tocam principalmente para públicos jovens, em bares, em discotecas ou em festivais específicos, como a Festa da Juventude, o Super Rock ou o Antena 3 Rock. Entre os grupos participantes em concursos de rock ou que foram noticiados na comunicação social estão os seguintes: Nostradamus, Requiem, Alma Gesto, Nude, Pilares de Bânger, Cães Abstractos, Quarto Quadrante, Sidewalk, Opium, Insania, Crumbs. Ao contrário do que aconteceu em Portugal continental, na Madeira eram poucas as possibilidades de atuação destes grupos, tal como os próprios agrupamentos por vezes reclamavam. Assim, os vários grupos que surgiram foram quase sempre de curta duração e tiveram pouca ou nenhuma projeção nacional (ao contrário do que havia acontecido na era dos conjuntos); a maioria destes grupos não chegou a gravar qualquer disco. Os empresários promotores do rock reconheciam o problema da falta de oportunidades dos grupos madeirenses, cujo panorama era bastante diferente do lisboeta, onde os orçamentos eram elevados e os promotores privados auferiam lucros. Além disso, a contratação de grupos de referência implicava custos difíceis de suportar, tais como os relacionados com “deslocação, alojamento, alimentação aluguer de sala e de tecnologia”, que, aliados aos cachets altos e fixos dos grupos, estorvaram a produção de concertos com grupos de rock do exterior da Madeira (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). A dificuldade em conseguir apoios de empresas regionais, à semelhança do que aconteceu a nível nacional, tornou complicada a organização de festivais e concertos; a principal causa de afastamento dos patrocinadores deveu-se à concorrência de outros eventos, como ralis e campeonatos de desportos, quer profissionais, quer de modalidades amadoras. Apesar de tudo, os principais e mais famosos grupos de rock portugueses à época atuaram na Madeira, o que foi viável em virtude de estes garantirem mais facilmente “maiores afluências de público” (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). Assim, nos anos 90 atuaram no Funchal grupos como os Peste & Sida, os Resistência, o grupo de música moderna Rádio Macau, os Madredeus, os GNR, acompanhados dos espanhóis La Frontera, e os Xutos e Pontapés. Nos primeiros 15 anos do séc. XXI, os problemas da Madeira no domínio musical estão relacionados com questões estruturais, não tanto com a qualidade dos intervenientes. Todavia, existem casos de boas práticas em várias áreas, desde o jazz, passando pela música clássica, até à música tradicional e ao rock. Além disso, vive-se nestes anos o resultado da aplicação de um tipo de ensino musical que formou milhares de jovens com razoáveis competências musicais.     Paulo Esteireiro (atualizado a 01.02.2018)

Artes e Design Sociedade e Comunicação Social

mendonça, maria

Natural dos Açores, Maria Mendonça (1916-1997), de seu nome completo Maria da Trindade Mendonça, passou 35 anos da sua vida na Madeira. Jornalista e empresária, instala-se no Funchal em 1951 para dirigir, ao longo de 19 anos, o Eco do Funchal. Promove os livros insulares, açorianos e madeirenses, nas ilhas e no continente. Cria a Editorial Eco do Funchal e autores da Madeira terão a satisfação de verem livros seus virem a lume ou serem reeditados nas décs. de 50 e 60. A partir de inícios da déc. de 60, organiza no seu próprio café-restaurante, denominado Pátio, tertúlias e conferências. Em 1972, funda a Sociedade Pátio, Livros & Artes. Em 1978, cria a Edições Ilhatur, lançando até 1982, entre outros títulos, a coleção de livros infanto-juvenis “Canoa”. Entre 1979 e 1981, dirige o histórico jornal humorístico Re-nhau-nhau. Palavras-chave: jornalista; Edições Ilhatur; Editorial Eco do Funchal; Maria Mendonça; Pátio, Livros & Artes; promotora cultural. Natural dos Açores, filha de Manuel Franco de Mendonça e de Maria Raposo, Maria da Trindade de Mendonça (16 de fevereiro de 1916-28 de fevereiro de 1997) passou 35 anos da sua vida na Madeira. Perfila-se como uma pioneira no empreendedorismo cultural. Foi promotora do livro insular, administradora de uma casa editorial, articulista polemista, promotora turística, dirigente associativa e gerente de um espaço cultural e comercial. Sob o lema “Querer é poder”, como patenteia a legenda do ex-líbris que mandou executar em 1956, a sua vida é marcada por encontros e iniciativas culturalmente relevantes. Como adianta Alberto Vieira, a “sua ligação à Madeira estabelece-se a partir de Lisboa, por amigos da Madeira e pela situação de penhora do jornal Eco do Funchal, cujas dívidas aceita cobrir para dar continuidade à sua publicação, assumindo a direção a 25 de março de 1951” (VIEIRA, 2015), cargo que desempenhará até 4 de maio de 1970. Sob a sua direção, esse jornal “de carácter regionalista e independente” (OLIVEIRA, 1969, 17), que era de periodicidade semanal, passa a sair mais vezes por semana (ensaiando-se por uns tempos um trissemanário para depois ficar um bissemanário), e Maria Mendonça introduz-lhe várias secções, em especial “Cultura & Recreio”, a primeira série do suplemento literário “Pedra”, em 1965 (sendo que a segunda série viria a ser publicada no Comércio do Funchal nos anos 1967-1969) e, a 3 de março de 1969, um suplemento quinzenal (com quatro páginas) para crianças, “A Canoa”, organizado por Maria do Carmo Rodrigues. Na página literária “Pedra”, hão de contar-se “vários colaboradores: Duarte Sales Caldeira, Vicente Gomes da Silva, Ana Gouveia, Luís Manuel Angélica, Luciano Nunes, José Manuel Coelho, Leopoldo Gonçalves, Vladimiro Rocha, Luísa Silva, Teresa Macedo, António do Canavial, A. [J.] Vieira de Freitas e José de Sainz-Trueva” (Id., Ibid.). No suplemento infanto-juvenil vão colaborar, entre outros nomes, Alice Gomes, Irene Lucília Andrade, Luíza Helena Clode, Madalena Gomes e Matilde Rosa Araújo. No entanto, por razões económicas, esse suplemento será suspenso meses depois. Decidida a não deixar interromper a dinâmica que o projeto gerara, Maria do Carmo Rodrigues funda então o periódico infanto-juvenil independente A Canoa, que teve grande divulgação a nível nacional entre 1969 e 1971. Fig. 1 – Fotografia tirada provavelmente no restaurante do Casino da Madeira, nos anos de 1960. Em primeiro plano, Horácio Bento de Gouveia e esposa; em segundo plano, ao centro, Maria Mendonça, à direita, Adelaide Félix e, à esquerda, Emília Félix, irmã de Adelaide.Fonte: Colç. de Maria Amélia Bento de Gouveia. Mal se instalou no Funchal, Maria Mendonça começou a participar na dinamização de associações de intercâmbio cultural entre os Açores e a Madeira, designadamente o Clube dos Amigos dos Açores e o Círculo de Amizade Madeira-Açores, chegando a ser dirigente associativa. Como refere Alberto Vieira, “ao abrigo destas estruturas, fizeram-se excursões, intercâmbios de grupos folclóricos, de bandas de música, de clubes desportivos” (VIEIRA, 2015). Em 1951, Rogério Correia promove, durante as festas de fim-de-ano, a Semana do Livro Açoriano, na Academia de Música da Madeira, no Funchal, com a colaboração de Maria Mendonça e J. Silva Júnior. Nos anos sequentes, os mesmos promotores hão de organizar outras semanas do livro, dedicadas às publicações açoriana e madeirense. A chefe de redação do Eco do Funchal vai erguer em Lisboa, em 1954, aquando da 24.ª Feira do Livro, o pavilhão do Livro Insular, que ocupou lugar de destaque. Para esse certame mandou imprimir o Catálogo das Obras Apresentadas no Primeiro Stand Insular da Feira do Livro de Lisboa em 1954, que organizou com o conterrâneo J. Silva Júnior. O público nacional fica assim a saber que a literatura insular é uma realidade tangível. Em 1955, monta o stand do livro insular no Funchal. Realiza a Primeira Semana da Madeira, em Lisboa, no Castelo de S. Jorge, em 1982. De tudo isto fica a ideia de que uma consciência cultural das ilhas se perfilava em Portugal. Por sugestão do poeta Jorge de Freitas, Maria Mendonça funda a primeira casa editora na Madeira, a Editorial Eco do Funchal, apostando assim na afirmação cultural do livro insular e ampliando a ação das duas principais entidades regionais públicas que desempenhavam esse importante papel: a Câmara Municipal do Funchal e a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Com a sua chancela, autores da Madeira, tais como Noé Pestana, Baptista Santos, Bernardete Falcão, João Vieira Caetano e Alberto Figueira Jardim, terão a satisfação de verem livros seus vir a lume ou ser reeditados nas décs. de 50 e 60. Sob os mesmos auspícios, os poetas da tertúlia ritziana (assim chamada porque se reuniam no Café-concerto Ritz) publicam em 1952 a coletânea Arquipélago. Meses depois aparece – curioso episódio da história literária madeirense e revelador de um certo espírito irreverente e humorístico – a coletânea Areópago, de tiragem reduzida e destinada aos amigos, uma paródia de Arquipélago, organizada anonimamente por Jorge de Freitas, em colaboração com Alírio Sequeira, Carlos Camacho e Paulo Sá Braz, e impressa nas instalações da referida casa editora. Maria Mendonça vai até correr o risco de editar livros-objeto, de grande porte e requinte. Encomenda a Maria Lamas – uma amiga com quem estreitou laços ao longo da vida – a obra Arquipélago da Madeira – Maravilha Atlântica, publicado em 1956, um volume de quase 400 páginas. O livro apresenta-se como um misto de descrição de lugares do arquipélago da Madeira e de revista ilustrada, sendo enriquecido com fotos a preto e branco, gravuras em extratexto, e capa e vinhetas da autoria de Alírio Sequeira. É também graças a Maria Mendonça que Luís Marino (de seu verdadeiro nome Luís Gomes da Silva) poderá ver concretizada, em 1959, a sua antologia A Musa Insular (Poetas da Madeira). Este monumento-padrão, com capa de Max Römer, reúne os nomes dos poetas insulares desde os tempos do povoamento da Madeira. Com a mesma chancela, saem livros tão importantes para a cultura regional como Falares da Ilha: Pequeno Dicionário Popular Madeirense, de Abel Marques Caldeira e prefácio de Emanuel Paulo Ramos, em 1961, e, em 1968, a sumptuosa reedição a cores de Casas Madeirenses (1.ª ed. de 1937), de João dos Reis Gomes, com colaboração de Edmundo Tavares. Em 1954, Maria Mendonça compila o inquérito “Qual o panorama da Madeira que mais o impressionou?”, levado a cabo junto de personalidades das artes e letras lusas e publicado no Eco do Funchal em 1951-1952, e faz sair do prelo A Ilha da Madeira Vista por Intelectuais e Artistas Portugueses, uma obra que será reeditada em 1969 e em 1985. Não se esquece da terra natal e é com naturalidade que publica Férias nos Açores, em 1955, Os Açores Através da Saudade, em 1957 (reeditado em 1991), e, em 1958, Grupo Folclórico de São Miguel. Lança, também, o guia turístico Isto é a Madeira, em 1960, em português; no ano seguinte, sai uma edição trilingue, que será reeditada em 1963. Coordena outros roteiros: com Luís Jardim, edita Páscoa: Sugestões, em 1965, e, com Osvaldo Pestana, apresenta Natal: Sugestões, em 1966. Editou, ainda, a revista Semana da Madeira, que durou sete anos (1965-1972), em colaboração com António Aragão, Carlos Lélis e Aníbal Trindade, descrita por Américo Lopes de Oliveira como uma “publicação moderna, original, de sentido prático para a utilização do turista nacional e estrangeiro, visto que está redigida nas línguas mais faladas e generalizadas por todo o Mundo”. O mesmo estudioso informa ainda que, da empresa Eco do Funchal, “nasceu [a] agência de publicidade ‘Islena’” (OLIVEIRA, 1969, 17). Em 1957, publica Uma Pequena História (Tema Madeirense), que será reeditada em 1991, e profere palestras sobre os Açores e a Madeira, a convite de agremiações portuguesas, no Rio de Janeiro, em Santos e em São Paulo. A partir dessas experiências, elabora a publicação Presença Madeirense no Brasil, em 1958. Ainda em 1957, Maria Mendonça organiza com confrades da imprensa regional, tais como Manuel Amândio Rodrigues, Manuel G. Abreu, Rui Camacho e Helena Marques, uma confraternização de jornalistas chamada Tertúlia Sem Título, que se reunirá com alguma regularidade. Desses convívios ficará um registo impresso nas oficinas da Editorial Eco do Funchal em 1958: Tertúlia Sem Título. (Jornalistas da Madeira), ilustrado com imagens das reuniões realizadas. A seleção de artigos que publicou no Eco do Funchal, reunida por Ana Isabel de Sousa no livro Eu, Maria, me Confesso (Recordações e Narrativas), de 2001, mostra bem a voz interventiva que Maria Mendonça tinha: o desconhecimento de que os continentais costumavam dar provas relativamente às realidades açoriana e madeirense, a questão dos transportes de bens e pessoas entre as ilhas e o continente, as difíceis condições de vida de muitos insulares e a falta de investimento na educação, o destino das verbas resultantes das taxas e impostos cobrados pelo poder central nas ilhas, a afirmação dos valores culturais insulares eram temas que a articulista não deixava de trazer à liça. Segundo Rui Carita, o assunto da autonomia que Maria Mendonça tocou num seu artigo em 1968 “chegou, mesmo, a ter ampla repercussão no continente, pois foi depois transcrito na Seara Nova, em janeiro do ano seguinte, suscitando várias questões e originando comentários e respostas, depois publicados na mesma revista, no número de maio desse ano de 1969” (CARITA, 2007, 28). Em 1972, retoma com Natália Correia e Vera Lagoa (pseudónimo de Maria Armanda Falcão) o café literário Rés-do-chão: Tertúlia do Livro – Pátio das Artes, à R. da Carreira, estabelecido cerca de 1967-68 por Carlos Lélis, o escultor Anjos Teixeira e o fotógrafo João Pestana; desse café, conta-se que Vera Lagoa terá afirmado que era o primeiro café literário criado no país. Essas três mulheres vão, assim, firmar a Sociedade Pátio, Livros & Artes, cuja atividade incidia na exploração da casa de chá, esplanada, tabacaria, livraria, galeria de arte, e loja de moda e ourivesaria. Essa entidade será, igualmente, “responsável pela aquisição do espólio da antiga Photographia Vicentes” (CARITA, 2007, 28). Dificuldades económicas obrigaram a empreendedora a desfazer-se de algum património da arte fotográfica do acervo. Em 1979, vende ao Governo regional o recheio do estúdio de fotografia: o espaço Photografia-Museu Vicentes será inaugurado em 1982. Nesse “lugar seleto de letras e artes” (HOMEM 1999, 61) chamado Pátio será apresentada, em 1975, pela jornalista Maria Aurora Homem, a coletânea de poemas inéditos Ilha, coordenada por José António Gonçalves. Também não é por acaso que, em 1979, Natália Correia vem a assinar o prefácio da coletânea Ilha 2. Maria Mendonça estreia, em 1978, as edições Ilhatur (1978-1982), com a monografia Vicentes Photographos, de Luís de Sousa Melo. Em 1979, sob os auspícios do Ano Internacional da Criança e ciente do valor dos autores e ilustradores que colaboraram no extinto periódico A Canoa, Maria Mendonça lança a coleção “Canoa”, respondendo assim, mais uma vez, à vontade de constituir organicamente uma projeção literária e artística no meio madeirense. Saem a lume Histórias que o Vento Conta (n.º 1, 1979) de Irene Lucília Andrade; Mimi e os Sapatinhos (n.º 2, 1979) de Luiza Helena (Clode); Camélias Brancas (n.º 3, 1980) e Sebastião, o Índio (n.º 5, 1982), de Maria do Carmo Rodrigues e, finalmente, Os Anjos Descem (n.º 4, 1981), de António Marques da Silva. Tais livros remetem para o mundo das vivências infantis, com narrativas, versos, canções e lengalengas, assentes numa imaginação poética e numa linha de descoberta em liberdade. Entre 1979 e 1981, Maria Mendonça vem a dirigir, após Gonçalves Preto e Gil Gomes, a terceira série do histórico Re-nhau-nhau, criado em dezembro de 1929. Após um interregno, o Re-nhau-nhau renascerá das suas cinzas a 1 de janeiro de 1996, sob os auspícios de António Loja, durante largos meses, até se extinguir. De acordo com familiares e amigos, Maria Mendonça autodefinia-se como “açoriana-madeirense”. Nelson Veríssimo sublinhou “o seu entusiasmo e dinamismo na divulgação dos valores insulares” (VERÍSSIMO, 1995, 13). Num seu ensaio sobre a comunicação social madeirense, Paquete de Oliveira qualificou-a de “batalhadora pelas causas e coisas da Ilha” (OLIVEIRA, 2008, 38). O amigo Luís Marino dedicou-lhe os seguintes versos: “D. Maria Trindade Mendonça/A esta boa amiga da velha guarda./Dona Maria Mendonça/Que não quis ficar pra avó,/Não é amiga da onça/E sabe dar de cipó…/É de meã estatura,/Mas possui uma alma grande/E… de boa catadura,/Com toda a gente se expande…/No Eco e no Re-nhau-nhau,/– Mesmo com riso amarelo –/A tanto e tanto marau,/Vai chegando a roupa ao pelo…/Dona Maria Mendonça,/Muitos amigos conquista,/Por não ser falsa, nem sonsa…/Nem tão pouco vigarista./Deve muito a nossa ilha/A esta ‘grande’ mulher/Que, não sendo dela filha,/Tanto a estima e bem lhe quer!” (SILVA, 1980, 10-11). A título de curiosidade, enquanto empresária, Maria Mendonça introduziu na cafetaria e restauração da Madeira o uso das saquetas de açúcar, chegando a ter o monopólio da sua distribuição no arquipélago, e diz-se que, enquanto figura feminina atípica, disputa com a escultora Manuela Aranha o título de primeira mulher a andar de bicicleta na Ilha. Fig. 2 – Fotografia de uma reunião de O Pátio: um cenáculo de escritores e artistas. Maria da Trindade Mendonça (de costas e de preto, à direita), Maria Aurora Carvalho Homem, Luíza Clode, Margarida Macedo Silva, entre outros.Fonte: Colç. de Ângela Morna. Nos últimos tempos passados na Madeira, Maria Mendonça colaborou com a Direção Regional dos Assuntos Culturais, desempenhando o cargo de responsável pela Inspeção Regional de Espetáculos. Publica nos Açores, em 1984, o livro A Personalidade Multifacetada do Jornalista Manuel Inácio de Melo, que será reeditado em 1990. Há registo de Maria Mendonça ter usado o pseudónimo “Maria Júlia” e “Maria da Ilha” (ANDRADE, 1999, 187). O Governo Regional da Madeira distinguiu-a com o troféu Estrelícia Dourada pelos relevantes serviços prestados à sociedade madeirense. Deixa a Madeira em 1986, mas dela não se desligou, visitando-a regularmente. Os amigos do Funchal recebem-na em casa ou fazem-lhe uma visita quando se deslocam à ilha de São Miguel. Publica em 1988 a entrevista que fez à amiga de longa data, O Concelho de Nordeste Visto por Maria Lamas, reeditada em 1990. Nos últimos anos da sua vida, trabalhou na Direção Regional dos Assuntos Culturais dos Açores. Morre na ilha de São Miguel, aos 81 anos. Obras de Maria Mendonça: Férias nos Açores (1955); Os Açores Através da Saudade (1957); Uma Pequena História Madeirense (1957); Grupo Folclórico de São Miguel (1958); Presença Madeirense no Brasil (1958); Isto é a Madeira (1960); Semana da Madeira (1965-1972); Páscoa: Sugestões (1965); Natal: Sugestões (1966); “Evocação” (1980); A Personalidade Multifacetada do Jornalista Manuel Inácio de Melo (1984); O Concelho de Nordeste Visto por Maria Lamas (1988); Eu, Maria, me Confesso (Recordações e Narrativas) (2001); A Ilha da Madeira Vista por Intelectuais e Artistas Portugueses (s.d.).   Thierry Proença dos Santos (atualizado a 01.02.2018)

Sociedade e Comunicação Social Personalidades

a madeira vista pelos ingleses

Os primórdios Não é possível afirmar com segurança quem foi o primeiro britânico a pisar a Madeira, mas dizem as lendas que Robert Machim, após um naufrágio, deu à costa da Ilha juntamente com a sua companheira, Anne d’Arfet, em 1344. A realidade historicamente documentada é bem mais prosaica: na sequência de uma expedição portuguesa às ilhas atlânticas, então desabitadas, em 1418, o infante D. Henrique reenviou os seus capitães ao território no ano seguinte a fim de o reivindicarem para a Coroa. Em 1425, a Madeira tinha-se tornado uma província de Portugal, sendo a produção de açúcar iniciada em 1452. Na verdade, é bastante provável que a Madeira tenha sido descoberta antes da data oficial do seu descobrimento, mas não teria sido do interesse dos Portugueses ou sequer dos Espanhóis dar crédito a pretensões de outras nações. Existem provas da existência da Madeira em mapas do séc. XIV, embora este conhecimento não fosse necessariamente do domínio público. Gomes Eanes de Zurara refere-se à descoberta da Madeira e de Porto Santo na sua Chronica da Descoberta e Conquista da Guiné 1434-1438, mas esta obra apenas ficou disponível em inglês entre 1896 e 1899, quando Charles Raymond Beazley e Edgar Prestage publicaram uma tradução em dois volumes da mesma. Infelizmente, os capítulos sobre a Madeira são pequenos. As relações anglo-madeirenses remontam ao mesmo século, de acordo com os dados citados em estudos sobre as viagens inglesas para fins de comércio e de exploração, e.g.: “A partir da documentação, é difícil saber que contactos tiveram os navios de Bristol, antes de 1480, com a Madeira, os Açores, Cabo Verde e as ilhas atlânticas, que os Portugueses descobriram e onde se instalaram no século XV” (HART, 2003, 56-57). Carus-Wilson, a organizadora de The Overseas Trade of Bristol in the Later Middle Ages, observa, com base numa série de fontes documentais, que Portugal era um dos “clientes mais assíduos” de Bristol (CARUS-WILSON, 1937, 14). Por exemplo, a 17 de março de 1463, foi concedida a John Jay, de Bristol, uma licença para “enviar 300 quartos de trigo de Bristol para Portugal, em qualquer navio” (Id., Ibid., 130); os registos alfandegários também evidenciam que, a 18 de maio de 1480, William Weston enviou um carregamento de têxteis na embarcação Mawdeleyn (de Quimperlé) de Bristol para a Madeira. Por outro lado, a primeira viagem da Madeira para Bristol de que há registo ocorreu em setembro de 1486, numa altura em que vários mercadores portugueses enviaram açúcar e peças de barris diretamente para Bristol (WILLIAMSON, 1962, 187). Os começos da modernidade O contacto entre os Ingleses e a ilha da Madeira nem sempre foi amigável ou reciprocamente benéfico. No final do séc. XVI, mais especificamente em 1595, durante o período de união das Coroas ibéricas, Amyas Preston, um dos principais lobos do mar de Isabel I, pilhou o Porto Santo enquanto se encontrava a caminho das Américas, onde depois saqueou Caracas (HARRISON, 1999, 46). Outros britânicos, comerciantes respeitáveis e cumpridores da lei, utilizavam regularmente a Madeira como porto de escala das longas viagens transatlânticas, reabastecendo ora aí, ora nas ilhas Canárias; alguns deles acabaram mesmo por se estabelecer na Madeira, contribuindo para o comércio de vinho, para o artesanato e para as plantações da Ilha. A mais significativa fonte de informação sobre a Madeira e outros territórios ultramarinos foi a literatura de viagens, entendida em sentido amplo e não raras vezes em traduções. Na verdade, como salienta Alison Yarrington, “a estreita relação entre as traduções e a promoção da expansão territorial está bem patente na carreira de Hakluyt” (YARRINGTON et al., 2013, 29-30). Apesar de tudo, havia alguma reserva em relação aos textos, devido ao intervalo entre a data original de publicação e a sua tradução para inglês, e porque nem todas as traduções eram fiáveis, conforme explica o próprio Hakluyt na sua Epistle Dedicatorie a Robert Cecil (HAKLUYT, 1862, VI-VII). Assim aconteceu com uma tradução inglesa anónima do Tratado dos Descobrimentos de António Galvão, concluída em 1550 e publicada em 1563, que foi corrigida e publicada por Hakluyt em 1601. Esta obra contém bastante mais informação do que a publicação anterior de Hakluyt, datada de 1599, que só dedicava quatro páginas à descoberta da Madeira, às características físicas da Ilha e à sua produção agrícola, incluindo o dragoeiro. A Madeira é mencionada por Camões em Os Lusíadas, cuja primeira tradução inglesa, de Fanshawe, foi publicada em 1655. No cômputo geral, o séc. XVII representou um período de consolidação das relações anglo-lusas, incluindo naturalmente as ilhas atlânticas e o comércio de vinho da Madeira. Nas palavras de David Hancock, “A exportação de vinho da Madeira para a América era diretamente moldada pela geografia e pela diplomacia” (HANCOCK, 2000, 109). Com efeito, as relações comerciais entre a Grã-Bretanha e a Madeira foram reguladas por vários tratados e diversas leis, que geralmente serviam os interesses britânicos: o Tratado de Paz de Cromwell e a Aliança entre Inglaterra e Portugal (1654), e a Lei da Navegação (1660). Todavia, uma grande parte das proibições impostas pelos Ingleses às importações e exportações foi simplesmente ignorada, pelo que os bens eram enviados da Europa diretamente para as colónias inglesas da América sem passarem pelos portos ingleses, onde seriam taxados. Na sequência do casamento de Charles II com Catarina de Bragança, e graças às disposições de uma Lei de Navegação de 1663, também conhecida como Lei para a Promoção do Comércio, a Madeira e os Açores foram isentados das proibições constantes na legislação anterior, tornando-se um dos principais fornecedores de vinho das colónias britânicas. O Tratado de Methuen, de 1703, não só reforçou a exportação de vinhos da Madeira para Inglaterra e para as colónias inglesas, como posicionou a Ilha na rede comercial britânica, conforme atestado em The Bolton Letters, que fornece informações preciosas sobre o comércio britânico com a Madeira. O período abrangido pelo primeiro volume desta obra coincide com a visita de Edmund Halley à Madeira a bordo do Paramore, de caminho para o Atlântico Sul no quadro de uma expedição científica que decorreu entre 1698 e 1701. O porto do Funchal, com a sua Feitoria Britânica, assumiu-se como peça de relevo da estratégia colonial de Inglaterra, de tal modo que as embarcações militares inglesas patrulhavam regularmente o perímetro marítimo das ilhas – que eram consideradas quase como um posto avançado do Império Britânico –, protegendo os seus interesses. “Durante as Guerras Napoleónicas, a Grã-Bretanha ocupou duas vezes a ilha da Madeira” (NEWITT, 1999, 70), que chegou a ter o estatuto de colónia da Coroa britânica entre 24 de dezembro de 1807 e 24 de abril de 1808, com o pretexto de a proteger dos iminentes ataques franceses. Se, por um lado, encontramos homens de negócio astutos que tiraram partido da posição geográfica estratégica da Madeira e do seu potencial agrícola, por outro, também havia autores que, talvez com objetivos específicos, promoveram intencionalmente os mitos fundacionais da Ilha. O Descobrimento da Ilha da Madeira Anno 1420, de Francisco Manuel de Melo, obra escrita com base na Relação de Francisco Alcoforado, foi publicado em inglês em 1750, com o título as An Historical Relation of the Discovery of the Island of Madeira, Abridged from the Portugueze Original. To Which Is Added, an Account of the Present State of the Island ... etc. No mesmo volume encontram-se outras duas obras. A primeira é An Account of the Present State of the Island, in a Letter to a Friend, com data de 7 de abril de 1748; independentemente de o título ser genuíno ou mera convenção, esta interessante descrição da sociedade e dos costumes madeirenses fornece abundante material aos investigadores de história social e económica. A segunda obra consiste numa série de excertos de A Voyage to Surat, de J. Ovington, nomeadamente o seu Account of Madeira, de 1689, onde o autor descreve a sua partida de Inglaterra, narra a descoberta das ilhas — novamente o mito de Machim —, e faz observações sobre o clima, a produção de vinho, a escassez de cereais e as plantações de frutas da Ilha. Aparentemente, já havia mercadores ingleses a viver na Ilha, que plantavam groselha; a terra era menos fértil do que já tinha sido, e o clero era permeável à indolência que atingia os homens mais corpulentos, custando-lhes levantar-se às 04.00 h para a leitura do ofício divino. Como Tony Claydon salienta em Europe and the Making of England, 1660-1760, a literatura de viagens era “um empreendimento coletivo no qual os autores contribuíam conscientemente para um conjunto partilhado de factos e de opiniões. Os exemplos mais evidentes de cooperação entre escritores são as frequentes referências a comentadores anteriores” (CLAYDON, 2007, 20). Assim, A New General Collection of Voyages and Travels (1745-1747) inclui uma breve história e justificação da literatura de viagens, reportando-se explicitamente a Galvão e a Alcoforado para os capítulos sobre os Descobrimentos portugueses; o “compilador”, como se autointitula o autor desta obra, repete os habituais lugares-comuns, incluindo a informação sobre a praga de coelhos no Porto Santo. Esta prática será retomada vezes sem conta ao longo dos registos de viagens do séc. XIX, nos quais os autores se referem habitualmente aos seus antecessores e pares. An Historical Account também aparece num livro publicado em Londres por R. Griffiths, em 1756, com o título The Affecting Story of Lionel and Arabella, Who, by a most Unhappy Accident, first Discover'd the Island of Madeira, and Perish'd there. To Which Is Added, the Dangerous Voyage of Juan Gonsalvo Zarco, a Portuguese Commander, Who Compleated the Discovery. Não há dúvida de que o apetite por estas leituras continuava voraz. Do Iluminismo ao século XIX Por volta deste período, parece surgir uma nova geração de britânicos com um interesse um tanto diferente pela Madeira, nem exclusivamente comercial nem certamente literário, mas antes inclinado para o saber científico, botânico ou médico – por outras palavras, homens (e mulheres) do Iluminismo. Por exemplo, Thomas Heberden (1703-1769), um cirurgião, médico e botânico residente na Ilha, remeteu a seu irmão vários artigos científicos decorrentes das suas observações na Madeira, para que este os lesse na Real Sociedade de Londres. Em 1768, o Endeavour partiu de Plymouth com destino à Madeira numa expedição científica patrocinada pela Real Sociedade de Londres, a fim de observar o trânsito de Vénus no hemisfério sul no ano seguinte, conforme previsto por Edmund Halley; a outra missão da expedição, esta secreta, era tomar posse da Austrália. O Endeavour esteve atracado na Madeira entre 13 e 18 de setembro. Para além do Cap. Cook, o navio transportava Joseph Banks, da Real Sociedade de Geografia, Daniel Solander, um estudante sueco, e Sydney Parkinson, o artista responsável pelos desenhos das descobertas botânicas. O Endeavour Journal de Banks, escrito entre 25 de agosto de 1768 e 12 de julho de 1771, descreve novas espécies de peixes, a flora e os microclimas da Ilha, a produção vinícola, bem como os hospitaleiros residentes britânicos e os Portugueses, que caracteriza como indolentes: “Durante a nossa estadia neste local, muito devemos ao Dr. Heberden, o principal médico da ilha, e irmão do médico com o mesmo nome de Londres, que viveu longos anos nas Canárias e nesta Ilha, e fez várias observações, predominantemente filosóficas, embora algumas fossem de natureza botânica, descrevendo as árvores da Ilha: destas, facultou-nos de imediato uma cópia, juntamente com alguns espécimes que tinha em sua posse, não poupando esforços para nos arranjar espécimes vivos em flor. [...] Os habitantes locais são, no geral, ociosos, ou antes, incultos como eu nunca vi; todos os seus instrumentos, mesmo aqueles com que produzem o vinho, o único artigo de comércio da ilha, são perfeitamente simples e básicos. [...] Estivesse [a Ilha] nas mãos de qualquer outro povo do mundo e o seu valor facilmente duplicaria, graças à excelência do seu clima, capaz de amadurecer qualquer tipo de produto, uma circunstância da qual os Portugueses não tiram o mínimo proveito.” Por seu turno, as freiras de S.ta Clara eram excessivamente faladoras: “durante a nossa visita, de cerca de meia hora, não deve ter havido uma fração de segundo durante a qual as suas línguas não se movessem a um ritmo extraordinário” (BANKS, The Endeavour Journal of Sir Joseph Banks …). Era frequente os exploradores e os cientistas registarem e publicarem as suas experiências e observações. A Madeira oferecia uma infinidade de possibilidades de estudo para botânicos, entomologistas, meteorologistas, conquiliologistas e especialistas de todo o género de disciplinas. Também se podem encontrar memórias marítimas e militares com informação cientificamente relevante, escritas por marinheiros de passagem ou em serviço militar. Com efeito, estas duas esferas de interesse convergem em “An Account of a Barometrical Measurement of the Height of the Pico Ruivo, in the Island of Madeira”, de Edward Sabine; o grupo do Cap. Sabine incluía outros oficiais da marinha, o cirurgião do navio, George Don, o primeiro coletor profissional de plantas para a Sociedade de Horticultura de Londres, e ainda um prestável residente inglês, de nome Veitch, que ocupava o cargo de cônsul-geral, e que lhes serviu o pequeno-almoço na sua residência. Não é inverosímil supor que os botânicos e naturalistas aproveitariam todas as oportunidades que se lhes oferecessem para viajar, em tempo de paz e presumivelmente sem grandes custos, até à Madeira e outros laboratórios naturais. Não era incomum encontrar médicos britânicos, como Thomas Heberden, a exercer medicina na Madeira, já que a Ilha se afirmava como um apetecível destino para o turismo de saúde. “Para os finais do século XVIII, a Madeira assumia-se cada vez mais como um local propício ao tratamento da tuberculose. Começaram a circular brochuras elogiando o clima da ilha, registando-se um conjunto de médicos britânicos que ali se fixaram” (NEWITT, 1999, 73). A título de exemplo, Joseph Adams publicou The Superiority of the Climate of Madeira e Guide to the Island of Madeira; with An Account of Funchal, and Instructions to Those Who Resort thither for Their Health. Foram publicados artigos de especialistas nas revistas médicas da época, incluindo The Lancet, e os guias de saúde para a Madeira constituíam uma subcategoria da literatura de viagens. William Gourlay, médico da Feitoria Britânica, escreveu as suas Observations on the Natural History, Climate, and Diseases of Madeira, during a Period of Eighteen Years. Em An Historical Sketch of the Island of Madeira, o mesmo autor aborda os benefícios do clima para o tratamento da tísica e da asma, referindo ainda que três dos quatro médicos portugueses da Ilha se tinham formado na Universidade de Edimburgo. Na sequência da morte de T. E. Bowdich em África, devido à malária, a viúva publicou o seu Excursions in Madeira and Porto Santo. Com exceção de uns breves comentários sobre a situação política, esta obra é um verdadeiro reflexo do interesse do autor por diferentes aspetos da história natural – peixes, pássaros, plantas, formações geológicas, conchas. Apesar de ser feita uma breve referência a Machim, Bowdich interessa-se muito mais pela flora e pela fauna das ilhas, com destaque para o dragoeiro de Porto Santo, conforme descrito pelas fontes portuguesas. Por entre as suas observações científicas, descreve a vida social da Ilha, comparando os habitantes de Porto Santo com os camponeses do País de Gales, admira o sentido português de beleza, e menciona os cálculos de Gourlay e do Dr. Heineken. Alfred Lyall, autor de Rambles in Madeira, and in Portugal, in the Early Part of MDCCCXXV, dedicado ao cônsul George Stoddard, destaca a escassez de livros com informação sobre a Madeira, que é um local de interesse especial para os britânicos, sobretudo os inválidos. Lyall faz referência às Excursions de Bowdich apenas para as descartar porque “se dedica quase exclusivamente a questões científicas” (LYALL, 1827, ix). Os capítulos do texto de Lyall descrevem a paisagem e a população da Ilha; no que às mulheres diz respeito, “a superioridade das mulheres francesas […] é incontestável” (Id., Ibid., 26-27). Lyall não acredita na lenda de Machim, mas não vê proveito em a contestar, dado que os locais a acolhem com grande estima. James Clark, doutor em medicina, recordado pela história como médico da corte e autor de um tratado de tísica, também escreveu uma obra sobre The Influence of Climate in the Prevention and Cure of Chronic Diseases, que incluía “indicações para inválidos em viagem ou que vivam no estrangeiro”. Clark considerava Lisboa “um local de residência inadequado para tísicos” (CLARK, 1830, XII), opondo-se fortemente à prática de enviar os doentes terminais para o estrangeiro (Id., Ibid., 196). Também discute os benefícios do clima da Madeira, citando Gourlay e as Rambles de Lyall. John Driver visitou a Madeira em 1834, por indicação médica, tendo depois publicado as cartas que escreveu aos amigos em 1838, dando resposta aos muitos pedidos que lhe eram endereçados de informações sobre a Ilha: “Obtive informações atualizadas sobre a melhor forma de viajar, a escolha de residência, o custo de vida, etc.” (DRIVER, 1838, VI). Os capítulos principais descrevem a Ilha e a sua população, incluindo Henry Veitch (1782-1857), que também é mencionado noutros livros de viagem do mesmo período. A Carta V refere a capela de Machim, mas sobretudo a presença das forças miguelistas na Ilha; e faz uma descrição das corridas no Funchal, e de uma exposição floral e hortícola organizada por Webster Gordon. A Carta VIII descreve as melhoras que sentiu desde que se encontra na Ilha. As informações práticas (navios que viajam para a Madeira, hotéis, médicos, o preço da alimentação, estatísticas sobre exportações, etc.) estão contidas no apêndice, juntamente com a obrigatória repetição da história de Machim, narrada por Alcoforado. Muitos dos detalhes coincidem com os que autores anteriores já haviam fornecido, sendo Bowdich e Lyall explicitamente citados. Driver contribuiu ainda com “An Historical Account of the Island”, que dedicou a James Clark, para um volume editado por James Sheridan Knowles, onde é identificado como cônsul da Grécia na Madeira; este texto baseia-se na sua publicação anterior. Fig. 1 – Reprodução da gravura “O Funchal visto de São Lázaro”.Fonte: PICKEN, 1840. Entre os Ingleses que ajudaram a promover a Madeira como estância terapêutica, encontra-se o artista Andrew Picken, autor de Madeira Illustrated. Picken especializou-se na ilustração de livros de viagens e passou algum tempo na Madeira porque tinha uma saúde precária, acabando por perecer com uma doença pulmonar após regressar em definitivo a Inglaterra, em 1845. O livro é dedicado à Sr.ª Webster Gordon e nele são mencionados Alcoforado, Barros, Galvão e Frutuoso. Picken descreve as Rambles de Lyall como “uma das melhores e mais completas descrições da ilha publicadas em Inglaterra”. O esboço histórico transporta os leitores para o séc. XIX, e a descrição que faz da Ilha oscila entre o geográfico e o pitoresco, com uma série de observações sobre os nativos: “os Portugueses da Madeira são um povo excelente”; “a aparência e o carácter dos camponeses são universalmente elogiados” (PICKEN, 1840, 4); e considera que a distância entre os Ingleses e os Portugueses, em termos sociais, está a tornar-se cada vez mais curta. Picken faculta informações sobre os navios e os respetivos preços, desaconselha o uso de letras de crédito e recomenda o ouro espanhol em vez dos soberanos ingleses, entre outras sugestões úteis. Nesse mesmo ano de 1840, William White Cooper, cirurgião da Honourable Artillery Company, publicou The Invalid's Guide to Madeira, with a Description of Teneriffe, Lisbon, Cintra, Mafra, etc and a Vocabulary of the Portuguese and English Languages. Aparentemente, a obra baseia-se na sua própria experiência, enquanto recuperava de um ferimento. Curiosamente, Cooper afirma que não encontrou qualquer informação sobre a Madeira pelo que, adotando o registo de diário, embarca numa jornada “tanto para descrever as paisagens das ilhas da Madeira e de Tenerife, como para fornecer uma panóplia de informações para orientação daqueles que as procuram, seja para uma curta visita ou para uma estadia mais prolongada” (COOPER, 1840, III). Este autor não difere grandemente de outros escritos de viagens ingleses, na medida em que também refere detalhes sobre a logística da viagem e das acomodações, os nomes dos médicos locais e a separação entre residentes portugueses e ingleses. À semelhança de vários registos de viagens do mesmo período sobre Portugal continental, os comentários sobre as mulheres portuguesas e os seus hábitos de higiene pessoal são muito pouco lisonjeiros. O autor anota tudo o que considera ser de interesse para os viajantes britânicos, mencionando também o reverendo R. T. Lowe, “um cavalheiro altamente distinto enquanto naturalista, e que está prestes a publicar uma elaborada obra sobre os peixes da Madeira” (Id., Ibid., 40), obra que viria à luz entre 1843 e 1860. Cooper descreve Maria Clementina, “a linda freira do Convento de Santa Clara” (Id., Ibid., 41), lista os vinhos que se podem encontrar na Ilha, e descreve o Clube do Funchal, bem como o baile que o cônsul George Stoddard organizou em honra do casamento da Rainha Victória. Não se mostra impressionado com a aparência e o comportamento dos soldados britânicos estacionados na Ilha, embora considere – o que não é surpreendente, dada a sua filiação – que “a artilharia constitui um corpo mais viril e militar” (Id., Ibid., 57), ainda que não treinem o suficiente. Os inválidos devem levar consigo os seus medicamentos e cadeiras confortáveis, bem como uma sineta. O facto de o conselho de Cooper sobre a melhor moeda para levar para a Madeira coincidir com o de Picken, a par de outras observações, leva-nos questionar se alguma vez se terão cruzado. Pouco tempo depois, William Samuel Pitt Springett (1818-1860) dedicou as suas Recollections of Madeira à Sr.ª George Stoddard, que era irmã da sua esposa. Um ano mais tarde, Edward Vernon Harcourt escreveu A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitorı, publicado por J. Murray, que também publicou The Diary of an Invalid, de Henry Matthew, e a versão definitiva do Handbook for Portugal (1855). Harcourt pretendia que o seu livro fosse útil, pelo que dá uma série de conselhos práticos, desde informações sobre os transportes (a liteira de rede) e os locais a visitar (refere que passou pela casa de campo da Sr.ª Penfold), até esclarecimento sobre rotas de navegação, bagagem, acomodações e moeda. Talvez numa tentativa de sossegar os mais doentes, explica que a desagradável cena retratada por Ovington em Voyage to Surat, de recusa de um funeral cristão a um protestante inglês, não se repetiria, uma vez que havia mais tolerância religiosa e que os visitantes estrangeiros tinham agora o seu próprio cemitério, onde aqueles “que procuravam saúde numa terra estrangeira encontraram o repouso eterno. O cipreste debruça-se sobre a campa do estrangeiro, e o seu túmulo solitário está adornado de flores” (HARCOURT, 1851, 33). Na verdade, Susan Vernon Harcourt também fez um retrato dos cemitérios ingleses. À semelhança de outros escritores, Edward Harcourt informa os seus leitores sobre a vida social na Madeira; aconselhando os inválidos a não saírem à noite – algo que os seus antecessores também recomendam –, deixa escapar um comentário bastante elucidativo: “Os ingleses e os portugueses não se costumam misturar, de modo que o leitor não terá a sensação de viver entre estrangeiros” (Id., Ibid., 35); não lhe ocorreu que os estrangeiros eram os Ingleses. Harcourt preenche muitas páginas do seu livro com tabelas de dados sobre as condições meteorológicas, a demografia, a história da Madeira (o mito de Machim), as instituições judiciárias e religiosas, o sistema educativo, a agricultura, as plantas, a produção vinícola, a ornitologia – por outras palavras, tudo o que pudesse interessar ao cavalheiro inglês no estrangeiro. Narrative of a Voyage to Madeira, Teneriffe and along the Shores of the Mediterranean, da autoria de William Wilde, inclui o material habitual, e menciona Picken, Macaulay, Clark, Bowdich, Combe e o cônsul Henry Veitch. À imagem de muitos outros visitantes da Ilha, o autor adquire nos conventos “bens de luxo” como flores artificiais e confeitaria; e, tal como outros turistas ingleses, recorda a triste história da irmã Maria Clementina, “a bela reclusa”, que compara a Cinderela, embora à primeira não tenha sido destinado o final feliz do conto de fadas (WILDE, 1844, 92-93). Caption   Outro escritor frequentemente citado é Robert White, autor de Madeira, Its Climate and Scenery Containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a Tour of the Island, etc. O autor viveu 15 anos na Ilha, pelo que o livro se tornou uma obra de referência, que contou com mais duas edições, atualizadas com a inclusão de novo material. O conteúdo não é original, sendo na sua maior parte derivado de anteriores publicações; mas, apesar de os autores anteriores fornecerem informações sobre as paisagens, a variedade de castas, os vinhos e o comércio, bem como dados estatísticos, White salienta que “há uma grande confusão sobre estes tópicos nas obras publicadas até agora” (WHITE, 1851, v). Robert White principia com a lenda da descoberta, os factos históricos da mesma, e uma breve história da Ilha até ao séc. XIX; onde diverge dos seus antecessores é na acutilância da sua crítica aos governos portugueses, que saquearam e negligenciaram a Madeira: “A situação melhorou muito durante o breve período em que foi governada pelos Britânicos, sob a competente administração do General Beresford, em 1808” (Id., Ibid., 10). Os detalhes não são novos; mas o tempo passou e a bela Ir. Maria Clementina “está avançada em anos e restam-lhe poucos, ou nenhuns, traços daquela beleza que o nosso poeta tão calorosamente descreveu” (Id., Ibid., 21). Com efeito, a fama desta mulher alastrara para além da Madeira e das ilhas Britânicas, chegando aos Estados Unidos da América. Maria Clementina também fora descrita em termos extraordinariamente românticos pelo Rev. Walter Colton, capelão naval e autor de Ship and Shore, primeiramente publicado sob anonimato em 1835 e reeditado em 1851, com um desenho da freira nas páginas preliminares. Publicado entre a segunda e a terceira edições do guia de White, The Climate and Resources of Madeira, as regarding chiefly the Necessities of Consumption and the Welfare of Invalids, de Michael Comport Grabham, foi presumivelmente ao encontro de uma necessidade sentida neste nicho de mercado; com efeito, uma vez que ainda não existia um tratamento eficaz para a tuberculose, os pacientes deslocavam-se à Madeira em busca de repouso. Para além da sua competência de médico, Grabham também publicou artigos no The Lancet, partilhando as suas experiências, e escreveu sobre botânica, sobre a vida animal e sobre geografia; o seu tratado de medicina foi considerado relevante já bem entrado o séc. XX. Michael Grabham não se demora em detalhes descritivos nem nos temas sociais, uma vez que esses já tinham sido abordados “em muitos tratados existentes e […] no excelente e exaustivo ‘Guide-Book’ do Sr. R. White” (GRABHAM, 1870, X); ao invés, foca-se em assuntos meteorológicos e médicos. Apesar disto, não consegue escapar inteiramente ao tipo de conteúdos que mais interessam aos leitores: os pormenores científicos e técnicos, apresentados sem mais, poderiam afastar os espíritos menos graves, pelo que o autor introduz o mito de Machim, aborda a história dos princípios da Ilha, e descreve os edifícios, as instalações e os passatempos locais ou, pelo menos, os passatempos praticados pelos residentes ingleses. Tal como os seus antecessores, informa os leitores sobre a paisagem e os meios de locomoção; e dedica um longo capítulo às condições meteorológicas, assim como às questões médicas e aos tratamentos. Conforme seria de esperar numa obra desta natureza, explica como chegar à Madeira, qual a melhor moeda a usar, e como enviar cartas para a Ilha. Grabham é extremamente preciso – cirúrgico, até –, sendo a sua obra isenta de alguns dos preconceitos presentes noutras publicações, talvez porque se casou com um membro da aristocracia da Ilha e valorizava o que a Madeira tinha de bom. J. M. Rendell seguiu as pisadas de White e de Grabham em A Concise Handbook of Madeira, embora sem a pretensão de ter conhecimentos sobre medicina. Como seria de esperar nesta altura, tece comentários sobre o tempo e a geografia da Ilha, cita especialistas, refere viagens, navios e hotéis. Está presente o capítulo obrigatório sobre a história da Ilha, informações sobre a botânica, a comida, as aves, os peixes, a música, os costumes, as superstições da população (outro tema favorito dos escritores de viagens que se focam em Portugal continental), as excursões e viagens à volta da Ilha, os salários das empregadas domésticas, o preço do tratamento de roupas, os pesos e as medidas, algumas palavras úteis e outros aspetos da língua portuguesa. Por outras palavras, nada de inesperado ou original. Os guias para a Madeira continuaram a aparecer no século sucedâneo. Assim, e.g., Oswald Crawfurd, cônsul no Porto, crítico literário e escritor prolífico, produziu, em janeiro de 1874, um artigo de 18 páginas para o The New Quarterly Magazine intitulado “A winter holiday in Madeira”, que pretende ser um compêndio de toda a informação sobre a Ilha. Tal como grande parte da literatura deste género, o artigo elucida-nos mais sobre os preconceitos do seu autor do que sobre as pessoas que ele descreve: “Os madeirenses são uma estranha raça de homens. Maioritariamente de origem portuguesa, são claramente uma nação de mestiços, e a presença da negritude é notória nas suas caras feias e bondosas, na sua estatura – têm mais dois a cinco centímetros que os continentais –, no seu andar estranho, e na sua compleição algo doentia. A sua atitude moral também é, de certa forma, influenciada pelo laxismo dos negros. No entanto, não são de modo algum grandes criminosos, praticando apenas vícios menores como pequenos roubos e grandes narrativas, combinando, por assim dizer, a sua complacência com os pequenos furtos e as mentiras inofensivas com uma rigorosa economia de crimes maiores” (CRAWFURD, 1874, 410). Nem toda a gente discorria sobre a Madeira do ponto de vista dos inválidos ou dos médicos; havia pessoas que tinham outros interesses ou visavam outros públicos. Assim, a família e os amigos que acompanhavam os inválidos aproveitavam o seu tempo para desenhar ou pintar o que iam observando, publicando depois os seus álbuns. Afinal de contas, a Madeira era um paraíso botânico e, dado o relativo sossego da vida na Ilha (em comparação com Londres e outras cidades inglesas), as pessoas tinham muito tempo para escrever um diário, relatos da viagem e cartas, um fenómeno que se tornou muito comum nos visitantes de Portugal continental.   O século XX No séc. XX, assistiu-se a um declínio no número de livros sobre a Madeira, talvez como reflexo de uma mudança nos interesses e gostos dos leitores. No entanto, de entre os que escreveram sobre a Ilha na primeira década deste século, ressaltamos S. Samler Brown, W. H. Koebel, que se centra na história e se baseia em Grabham, e Charles Thomas-Stanford, com um livro intitulado Leaves from a Madeira Garden. O prefácio desta obra constituiu uma versão mal disfarçada do topos da humildade: “Pergunto-me se será necessário arranjar desculpa para esta história trivial de um inverno banal numa ilha insignificante” (THOMAS-STANDFORD, 1909, VII), salientando o autor que “muito se tem escrito sobre a Madeira”, pelo que não pretende “afirmar ou dizer coisas novas, nem revelar aspetos relevantes” (Id., Ibid., IX); na verdade, afirma, “limitei-me a enunciar apontamentos algo inconsequentes – e temo que, por vezes, irrelevantes – sobre diversas matérias” (Id., Ibid., VIII). Devido ao gosto dos Britânicos pela jardinagem, a Madeira tinha para eles um interesse considerável, em virtude da sua vegetação rica e exótica. Conforme prometera no prefácio, Stanford critica certas atitudes do governo português, mas está manifestamente convencido de que tem legitimidade para o fazer por força da sua relação de longa duração com a Ilha, sua residência de inverno. O autor desdenha “o número cada vez maior de turistas, americanos, ingleses e alemães” que são despejados pelos navios (Id., Ibid., 4), não conhecendo nada da “verdadeira Madeira”, e esforça-se por demonstrar o seu conhecimento da história e das tradições da Ilha. Apesar de tudo, a sua própria relação com a Madeira e os seus habitantes é ambivalente: há alguns aspetos da vida na Ilha que o irritam nitidamente, nomeadamente a falta de telefones, mas a sua relação com a população portuguesa parece não diferir substancialmente da dos seus predecessores. Quando se convence de que os empregados tentam extorquir-lhe salários excessivamente elevados, não hesita em “os despedir”; e declara que os madeirenses nada sabem de jardins nem de jardinagem, o que consitui “uma grande prova, especialmente quando a pessoa só está presente um terço do ano, e as operações mais importantes, a poda das roseiras etc., têm de ser feitas na nossa ausência” (Id., Ibid., 68). Fundando os seus pontos de vista em estereótipos e em amostras bastante reduzidas da população, demarca claramente os Portugueses como “os outros” (Id., Ibid., 73-74), embora se identifique como “nós, os madeirenses” (Id., Ibid., 189); de facto, conheceu a sua mulher na Ilha, onde ela era proprietária rural. Ainda assim, o livro redime-se em alguns momentos de honestidade: “Se os criados são para nós um estranho e interessante objeto de estudo, o que seremos nós para eles?” (Id., Ibid., 74). Thomas-Stanford também escreveu um romance de aventuras que decorre na Madeira, The Ace of Hearts. Os Ingleses continuaram a escrever sobre a Madeira. É o caso, e.g., de Lethbridge, com o seu Madeira – Impressions and Associations; de Stuart Mais, que publicou ininterruptamente entre 1915 e 1966, juntamente com a mulher, incluindo o relato de viagens Madeira Holiday; e de Sacherevell Sitwell, extravagante mas empobrecido diletante que, segundo consta, persuadiu vários governos a subsidiarem-lhe o turismo de luxo escrevendo livros de viagem; há indubitavelmente abundantes exemplos de marketing indireto – nomeadamente referências a empresas de transportes e a hotéis – no seu Portugal and Madeira. O leitor também poderá perguntar até que ponto a filiação ideológica e de classe orientam as suas perceções; com efeito, ou Sacherevell Sitwell acreditava genuinamente nas virtudes do Estado Novo, à imagem de outros escritores de viagens ingleses do seu tempo (como John Gibbons, lady Marie-Noële Kelly), ou a sua escrita está temperada com uma não pequena dose de ironia: “[Portugal] esteve a dormir durante a época de industrialização que enegreceu grande parte da Europa. Se acordou, imaculado, para um presente mais feliz, foi graças à influência de mãos benevolentes e sábias” (SITWELL, 1954, 39). O capítulo sobre a Madeira extravasa em descrições líricas de plantas exóticas e vegetação tropical: “É uma ilha que se visita pelas suas flores e pelo seu clima” (Id., Ibid., 43). Diz muito pouco sobre os ilhéus, até porque “uma das belezas da Madeira é que não tem propriamente passado. [...] Era uma ilha virgem. Não havia habitantes aborígenes para exterminar” (Id., Ibid., 43). E, quando faz algum comentário sobre as populações locais, é para dizer que “é uma população imaculada, talvez o menos corrompido e contaminado de todos os povos europeus. Os madeirenses estão ainda na idade da inocência” (Id., Ibid., 49). Com o tempo, os livros de viagens tornaram-se mais breves, por causa dos custos de edição, das restrições de bagagem, das mudanças nos hábitos de leitura – as razões que explicam esta tendência são múltiplas. As edições online e a digitalização também tiveram impacto no consumo de livros. Todavia, independentemente do seu formato, os livros de viagens do séc. XXI centram-se mais nas necessidades dos turistas e dos aventureiros do que nas experiências pretensamente autênticas vividas pelo viajante entendido.   A questão da autoria feminina e da voz feminina na literatura de viagens Não foram unicamente os homens a visitar a Madeira e a publicar as suas memórias ou impressões. Apesar de o número de mulheres viajantes nunca ter constituído mais do que uma minoria, por razões óbvias de índole social e histórica – as mulheres não fizeram o Grand Tour e, mesmo que o tivessem feito, a Madeira não seria uma etapa do itinerário –, os seus contributos para o corpus da literatura de viagens inglesa não deve ser negligenciado. A literatura de viagens, no sentido que aqui é dado à expressão, compreende memórias, autobiografias, diários, cartas, registos de viagens e guias. Clare Bloome Saunders sugeriu que foi a ligação entre a literatura de viagens e os “textos associados com a esfera doméstica e privada” que permitiu às mulheres entrar neste género literário (SAUNDERS, 2014, 3). Não há dúvida de que assim é, embora haja um grande número de autores do sexo masculino que optou por essa via, possivelmente por a considerarem mais adequada à temática, ou um meio eficaz de chegar aos leitores. Saunders também salienta que “as primeiras obras de viagem escritas por mulheres começavam geralmente com um pedido de desculpas, uma passagem pelo topos da humildade e uma declaração de autenticidade” (Id., Ibid.). Mais uma vez, são abundantes os exemplos de autores masculinos de livros de viagens que principiam as suas obras da mesma forma. Sarah Mills refere que “os autores viajavam por motivos diferentes e para países diferentes, escrevendo sobre as suas viagens no quadro de uma multiplicidade de condicionamentos – de género, de classe, de finalidade da viagem, de convenções textuais, de audiência, etc. – que influenciavam e estruturavam a sua escrita” (MILLS, 1991, 21). Para Mills, uma diferença evidente entre os homens e as mulheres que escrevem livros de viagens encontra-se “na ênfase que colocam no envolvimento pessoal e nas relações com pessoas de outras culturas, e na atitude menos autoritária que assumem perante a voz narrativa” (Id., Ibid.). Embora tal possa ser verdade nalguns contextos, esta análise dos escritos britânicos sobre a Madeira não revela um maior grau de rapprochement entre as escritoras e os habitantes portugueses da ilha, em comparação com os escritores. No contexto português, as viajantes poderão ter tido de lidar com os locais para resolverem questões domésticas, mas isso não significa que tivessem um relacionamento pessoal com eles. A atitude autoritária talvez seja mais visível nos escritos sobre os campos da medicina e da ciência, à época dominados pelo sexo masculino. A autoridade poderia derivar, em parte, das qualificações académicas, dos títulos profissionais e dos graus militares que uma série de autores incluía na página de rosto das suas obras. Em contrapartida, a não ser que fossem membros da aristocracia, as escritoras limitavam-se a referir o seu estatuto de mulheres casadas. Mary Louise Pratt analisou o impacto da história natural e da ciência em geral na literatura de viagens, argumentando que “a história natural era um meio para narrar as viagens de exploração do interior, já não com a finalidade de descobrir rotas de comércio, mas de vigiar o território, explorar os recursos e exercer um controlo administrativo sobre o mesmo” (PRATT, 1992, 39), o que dá azo ao aparecimento de um discurso bastante próprio; no caso específico da Madeira, os botânicos e os meteorologistas parecem, de facto, reivindicar a Ilha para si. Em paralelo, há uma série de obras sobre a Madeira que corroboram a afirmação de que “a história natural estabeleceu uma autoridade urbana, literata, masculina sobre todo o planeta; elaborou uma compreensão racionalizante, extrativa e dissociativa, que se sobrepôs às relações funcionais e experienciais entre pessoas, plantas e animais” (Id., Ibid., 38). Por fim, em termos de considerações teóricas, para Saunders, “a ‘verdade’ na literatura de viagens aparece, paradoxalmente, quer como asserção da retórica objetiva ‘masculina’, quer como uma aparentemente ‘autêntica’ proclamação da literatura ‘feminina’, doméstica, privada” (SAUNDERS, 2014, 3). À exceção das obras assentes em dados científicos – sobre a precipitação, a temperatura e as espécies de plantas e insetos –, não há garantias de objetividade ou autenticidade. Além disso, quanto mais íntimo é o registo de escrita, mais tendência têm os autores para a subjetividade, ou para distorções de memória e perceção.   Mulheres viajantes As mulheres estiveram na Madeira por várias razões, quer para fazer uma pausa neste porto de escala tão bem situado, usualmente sob a proteção de membros da sua família, quer para visitar Ingleses nela residentes, quer para acompanhar os maridos, empenhados em investigações científicas, na escrita de um livro ou noutras atividades profissionais. Em todo o caso, nem sempre se limitaram a ilustrar as produções científicas e intelectuais dos cônjuges, tendo-se afirmado como autoras e artistas independentes. Ao contrário da jovem “ultramarina” de que se falará adiante, uma mulher da classe alta raramente sentia a necessidade de pedir desculpa por trabalhar; os dados sugerem que a idade e a classe social são condicionantes tão importantes como o sexo. Uma das primeiras mulheres a escrever sobre a Madeira foi Maria Riddell (1772-1808), autora das Voyages to the Madeira and Leeward Caribbean Islands, que tinha relações próximas com a Escócia devido ao seu casamento com Walter Riddell. Poetisa, embora menor, Maria Riddell é lembrada sobretudo pela sua amizade com o poeta nacional da Escócia, Robert Burns; mas não deixa de ser notável que tenha escrito um registo de viagens aos 20 anos. Na opinião de Corey Andrew, ela “faz juízos claros e raramente produz afirmações distanciadas. […] Considera que os habitantes da ilha possuem qualidades que os redimem, embora os seus elogios sejam muito parcos: ‘Os nativos são […] notavelmente engenhosos, e famosos pela sua capacidade de fazer perfumes, pastas, etc. Os Portugueses têm feições extremamente escuras, mas têm belos olhos e dentes; a classe baixa deste povo é indolente, suja, e muito viciada no roubo; têm muito talento musical, e são extremamente delicados’” (ANDREWS, 2013, 181). O nome que figura a seguir nesta cronologia é o de Elizabeth Macquarie (1778-1835), uma escocesa que viajou para a Austrália em 1809, juntamente com o marido, Lachlan, que havia sido nomeado governador da Nova Gales do Sul. Fez a viagem a bordo do navio de carga Dromedary, na companhia do Hindostan, um navio de guerra de Sua Majestade, tendo feito uma paragem na Madeira. Ao chegarem à Ilha, a 12 de junho, os Macquaries foram convidados a residir na casa de Henry Veitch, o cônsul britânico, que estava aparentemente muito ambientado à Madeira, e que, tendo sobrevivido a todos os amigos, não fazia tenções de regressar à Grã-Bretanha, uma atitude que muito desagradou à Sr.ª Macquarie. Um dos militares que os escoltou parecia “conhecer intimamente os habitantes locais, incluindo as freiras de diferentes conventos”. Tendo adoecido, a Sr.ª Macquarie não pôde fazer grandes passeios durante a semana que passou na Madeira, mas ficou chocada ao ver uma jovem tomar o hábito religioso, o que talvez não seja uma reação completamente inesperada numa protestante escocesa daquela época. Quanto à Ilha, o brilho inicial desapareceu rapidamente: “A ilha da Madeira é sem dúvida um dos lugares mais bonitos e românticos que já vi. Para uma pessoa que passou muito tempo em alto mar e que padeceu de alguma doença ou sofreu com o mau tempo, a visão do Funchal é do mais gratificante que se pode imaginar; mas, depois de se terem passado alguns dias em terra, a falta de ar e o imenso calor, a total ausência de qualquer tipo de exercício físico, dada a dureza das estradas, que são muito inclinadas, e pavimentadas com pequenas pedras, e, acima de tudo, a imundice dos ilhéus é tão desagradável, que creio que nunca chegaria a contemplá-la com indiferença – e tudo isto serve para ilustrar os confortos que são necessários para tornar a vida aprazível a uma pessoa acostumado a viver em Inglaterra” (MACQUARIE, 1809). [caption id="attachment_15563" align="alignleft" width="380"] Fig. 3 – Reprodução de “The Belladona Lily”Fonte: PENFOLD, 1845.[/caption] Houve duas Inglesas residentes na Madeira que foram responsáveis por promover a imagem da Ilha como paraíso tropical. Jane Wallas Penfold era filha de William Penfold, que era sócio de Henry Veitch; William Wordsworth compôs versos em sua homenagem, e Jane Penfold publicou os seus desenhos de plantas em Madeira Flowers, Fruits, and Ferns. Sua irmã, Augusta Jane (Penfold) Robley, também publicou as suas ilustrações em Selections of Madeira Flowers, Drawn and Coloured from Nature. Estas duas obras devem ter estimulado o interesse pela Madeira como destino adequado para o estudo da botânica e a produção artística. Emmeline Stuart Wortley, descrita por Jane Robinson como uma viajante obsessiva (ROBINSON, 1990, 121), escreve longamente tanto sobre Portugal continental como sobre a Ilha em A Visit to Portugal and Madeira. Confiante no seu estatuto social e nas suas capacidades literárias, Wortley narra a sua viagem a Portugal sem perder tempo com desculpas ou com falsas humildades. Por vezes, a sua obra lê-se como um romance, com retratos detalhados e extravagantes que roçam a caricatura; mas, a par das conversas e anedotas sobre a realeza europeia, figuram alguns comentários inteligentemente satíricos sobre a escravatura e o racismo, bem como críticas abertas ao deficiente sistema agrícola, que provoca a malnutrição infantil da população local. Apesar do estilo intenso, a autora fornece informações exatas sobre a Ilha, repetindo detalhes encontrados em livros anteriores. Também faz a obrigatória visita a S.ta Clara para ver a lendária Maria Clementina, imortalizada por Coleridge: “Esta freira foi uma criatura deslumbrante, que em tenra idade foi metida num convento por um pai austero, penso que por instigação da madrasta, e foi durante algum tempo muito infeliz. Já não é nova (e espero que já não seja infeliz), mas ainda se detetam traços da sua beleza outrora resplandescente” (WORTLEY, 1854, 302). [caption id="attachment_15566" align="aligncenter" width="332"] Fig. 4 – Reprodução de “Bird of Paradise”Fonte: ROBLEY, 1845[/caption] A autora explica então que houve um relaxamento da regra monástica no período do Governo Constitucional, e conclui a história de Clementina, que regressou à tranquilidade do convento, descrevendo de seguida a personagem, que se assemelha mais à marquesa de Alorna na sua grade do que a Mariana Alcoforado, discutindo os méritos relativos de madame de Staël e de lady Morgan (mencionada por Almeida Garrett no Diário de Minha Viagem a Inglaterra (1823-1824)). Tal como outros viajantes, Emmeline Wortley conhece Stoddard e o cônsul Veitch, nesta altura presumivelmente a gozar a reforma ou a tratar de negócios; e, à semelhança de outros escritores, não consegue deixar de referir a lenda de Machim. O leitor fica com a impressão de que lady Wortley tem um grande talento para ocultar os seus profundos conhecimentos em matérias como a agricultura, os negócios, a economia e a política por detrás de aparentes mexericos e meandros narrativos. A ironia é enganadora, até porque esta autora visitou a Madeira com um espírito aberto, e não com o simples fito de confirmar os seus preconceitos. Em 1882, Ellen M. Taylor publicou Madeira: Its Scenery and how to See It. With Letters of a Year's Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, um guia de viagem extremamente detalhado. Tendo-se deslocado à Madeira com uma amiga enferma, presume-se que tivesse bastante tempo disponível, e percebeu que tipo de informação era necessário dar para tornar mais fáceis a viagem e a estadia na Ilha; fez, pois, o seu trabalho de casa, consultando as autoridades na matéria. Não refere os aspetos já tratados por Grabham, e pede autorização à Sr.ª White, viúva de Robert White, e a James Yate Johnson, para se referir a Madeira. Its Climarw and Scenery. Regista o apoio que lhe foi dado por Charles Cossart e cita um artigo da Fraser’s Magazine, de agosto de 1875. O seu guia de viagens não se destina apenas a inválidos, informando também os leitores sobre hotéis, navios a vapor, restrições de bagagem, atividades recreativas e excursões, compras, a história e os hábitos, para além de ter uma lista de vocabulário útil. Para os que têm interesses culturais, cita John Mason Neale sobre a arquitetura de igrejas. Nas palavras de Jane Robinson, “tanto a ilha como o seu guia eram dedicados à busca passiva da saúde” (ROBINSON, 1990, 197). A Voyage in the “Sunbeam”. Our Home on the Ocean for Eleven Months difere em alguns aspetos de outros registos de damas inglesas: Annie Brassey descreve a viagem de circum-navegação que a sua família empreendeu à volta do mundo a bordo do iate a vapor do marido (1876-1877), a primeira do género. O iate atracou na Madeira (cap. 2) para uma breve visita, a que se seguiu o ritual de os visitantes de relevo serem recebidos pelos residentes ingleses. O livro foi um enorme êxito, tendo chegado às 19 edições e sido traduzido em 5 línguas. A família regressou à Madeira 7 anos depois, conforme é narrado em In the Trades, the Tropics, and the Roaring Forties: 14,000 Miles in the “Sunbeam” in 1883. A autora começa por pedir desculpa pelo seu trabalho, e depois conta os labores da viagem de ida para a Madeira para se encontrar com o marido e se juntar a ele no Sunbeam, após ter perdido a maior parte da bagagem porque o navio onde seguia meteu água; felizmente, os filhos e o cão, Sir Roger, tinham saído ilesos desta experiência. A narrativa inclui uma descrição de um navio escocês de emigrantes com destino à Austrália, e do hotel de S.ta Clara, onde foram atendidos pelo Sr. Reed, o proprietário, e pelo Sr. Cardwell, o gerente, que se encarregou da bagagem. A Ilha é povoada por uma série de figuras conhecidas, nomeadamente “o nosso velho amigo, o Dr. Grabham, o único médico inglês desta terra, um homem de enorme sucesso, repleto de informação sobre todas as matérias” (BRASSEY, 1878, 29); tal como muitos outros, visitam a quinta dos Blandy. Brassey sente-se obrigada a esboçar os momentos chave da história da Madeira, incluindo o mito de Machim, a visita do Cap. Cook no Endeavour, em 1768, e as ocupações britânicas em 1801 e 1807. O foco anglocêntrico é evidente. A família visita os locais habituais, é transportada em liteiras de rede, lancha com a Sr.ª Taylor, “uma antiga residente na Madeira, que generosamente partilhou connosco muitas informações úteis” (Id., Ibid., 56), e admira a paisagem e a vegetação. Há muito pouca informação sobre a população local e a cultura portuguesa, à exceção de aspetos pitorescos ou etnográficos; o leitor fica com a impressão de que a Ilha é praticamente uma colónia britânica, cuja principal função é dar conforto e entreter as classes privilegiadas das ilhas Britânicas. Helena Beatrice Richenda Saunders (1862-1947), a “ultramarina”, que mais tarde se casou com Charles Parham, escreveu The Contents of a Madeira Mail-bag, or, Island Etchings quando estava ainda na casa dos 20 anos; trata-se de um conjunto de cartas dirigidas a sua mãe, que se encontrava em Inglaterra, e que não se destinavam a ser publicadas, onde descreve a sua vida na Qt. das Flores com a tia. Algumas das suas experiências coincidem com as de Brassey, como o facto de o mesmo Sr. Cardwell lhes tratar da bagagem, apesar de nem ela nem a tia estarem hospedadas no hotel. Helena Parnham observa os homens que conduzem os carros de bois e transportam as liteiras, as mulheres nos seus trajes, as crianças semi-nuas, descreve a costureira, que treme de frio, comenta a meteorologia e a gastronomia (não aprecia a cozinha portuguesa) e os eventos sociais (não há referência a convidados portugueses), e conta à mãe que fica muito cansada depois dos banhos de mar, apesar de não haver indicações de que seja inválida. Receber uma carta de casa é para ela um evento importante, tal como é escrever à família a partilhar os conhecimentos recém-adquiridos, e.g., a lenda de Machim e o facto de Beresford ter vivido na Achada durante a ocupação. Mais tarde, Helena Parnham será uma conhecida botânica, sendo bastante provável que as suas experiências na Madeira tenham despertado o seu interesse pela flora e o mundo natural. O que é invulgar nela é a preocupação com a literatura: todas as suas cartas têm como epígrafe um verso, na sua maioria retirados de poemas de poetas ingleses eminentemente românticos – Southey, Hemans, Longfellow, entre outras figuras literárias a que se refere frequentemente. Além disso, ao contrário de outros escritores de viagens que temos vindo a mencionar, esforça-se por aprender português, tendo até ouvido falar de Camões; numa das suas cartas, refere-se mesmo à tradução de Mickle: “Leste ‘Os Lusíadas’ de Camões? Não me refiro ao original, visto que a obra é conhecida há um século em Inglaterra, graças à tradução em verso de Mickle. Tenho de a ler assim que tiver a oportunidade, visto que se trata do grande chef d’œuvre português, e descreve a descoberta do cabo da Boa Esperança, e de toda a costa de África” (PARHAM, 1885, 87). As flores da Madeira continuaram a exercer o seu fascínio sobre os visitantes ao longo do séc. XX. Ella Du Cane, que caiu nas graças da Rainha Vitoria, pintou aguarelas delicadas enquanto sua irmã Florence Du Cane escrevia o texto que preenche as páginas de The Flowers and Gardens of Madeira (1909). Florence cita Bowdich, Lyall, Yate Johnson e outros, refere-se a The Discovery of Madeira, escrito em 1750, menciona o dragoeiro, debate a origem de algumas plantas, discute design de jardins e fornece várias sugestões práticas de jardinagem. O livro também contém uma descrição histórica, com as habituais lendas e os costumeiros factos. Entre as mulheres que escreveram sobre a Ilha, contam-se ainda Jessie Edith Hutcheon e Elizabeth Nicholas. Há também, esporadicamente, publicações de especialstas, e.g. The Quintas of Madeira: Windows into the Past, uma obra de Marjorie Hoare sobre arquitetura, horticultura e história social.   Cultura literária A literatura nunca foi o foco da atenção dos visitantes britânicos da Madeira, que, na melhor das hipóteses, tinham um conhecimento rudimentar da língua portuguesa e aceitavam sem a questionar a tese estabelecida de que Portugal não possuía grandes escritores. Helena Parnham é a exceção à regra. Terence Macmahon Hughes – que compôs um poema à Madeira e sobre a Madeira, The Ocean Flower – comentou a poesia portuguesa apenas para a criticar. Os visitantes, quer por motivos de saúde, quer para fazer escala em viagens mais longas, mostravam-se bastante mais interessados na paisagem e na flora. Desde os finais do séc. XV que os Britânicos visitam a Madeira ou se instalam na Ilha, por uma multiplicidade de razões. A Ilha atraiu mercadores e comerciantes, indivíduos com olho para as possibilidades comerciais, primeiro do açúcar, depois do vinho, exportando o Madeira para Inglaterra e as suas colónias, e importando bens para vender aos ilhéus. Estes homens, por sua vez, precisavam de funcionários, e as mulheres deles de criados e de amas para os filhos; as famílias careciam de médicos e de padres, os inválidos e os visitantes de instalações médicas e hotéis, e foi assim que a elite expatriada e abastada se expandiu. Vale a pena perguntar se os Britânicos trataram a Madeira como trataram Portugal continental. Quando a Ilha se tornou estrategicamente importante para os Britânicos, estes não hesitaram em a ocupar, formalizando uma organização colonial que data do reinado de Carlos II. Este comportamento não será surpreendente quando recordamos a ocupação britânica de Portugal durante a Guerra Peninsular e o Ultimatum de 1890. Somos por isso tentados a questionar se as constantes alusões dos escritores de viagens a Robert Machim não serão uma forma subconsciente de legitimar as pretensões britânicas à Ilha. Com o tempo, a Madeira adquiriu o estatuto de “colecionável”. A “pérola do Atlântico” veio a ser estimada pelos Ingleses pelo seu calor benigno e pela beleza da sua flora e das suas paisagens. Era um objeto para admirar e tentar capturar, em texto e em imagem, através de desenhos, de aguarelas ou de fotografias. Tal como outros colecionáveis, podia ser transacionada, sucessivamente “vendida” às gerações de leitores que consumiam livros de viagens, para lhes satisfazer a curiosidade sobre terras distantes e exóticas e a forma de lá chegar. O atrativo da Madeira para os Britânicos talvez resultasse, em parte, da sensação de constituírem uma ilha dentro da Ilha, uma sociedade fechada dentro da qual não tinham de interagir grandemente com o outro – os católicos de pele escura –, num lugar onde os valores centrais da britanicidade podiam permanecer salvaguardados e intactos, mas num clima temperado. Ironicamente, além de divulgarem informações sobre o passado e o presente da Ilha, as obras discutidas tiveram o resultado acidental de construírem a história social dos ingleses na Madeira. Bibliog.: impressa: ADAMS, Joseph, The Superiority of the Climate of Madeira, Etc. An Account of Arrangements Made for the Treatment of Invalids on the Island, s.l., s.n., 1800; Id., Guide to the Island of Madeira. With An Account of Funchal, and Instructions to Those Who Resort thither for Their Health, London, T. N. Longman and O. 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prostituição

Define-se como troca de favores sexuais por dinheiro. Sendo o Funchal uma cidade portuária, cedo se tornou visível a prática desta atividade na ilha da Madeira. “Junto ao mar” se alimentava o negócio, sobretudo à conta das embarcações de passagem que aportavam à baía, havendo registos de “molheres”, “mancebas” e “meretrizes” desde o séc. XV. Por outro lado, documentos oficiais permitem-nos verificar a importância desta atividade para o entorno do porto. Apenas alguns exemplos: a propósito das estimativas das receitas para a construção da cerca do Funchal, em 1493, foi determinado que “toda a molher de partido que for achada na ylha paguara trecentos reaes e pode valer por anno seys mil rs” (SILVA, 1995, 705). Por esse tempo, estariam contabilizadas cerca de 20 meretrizes no Funchal e, em 1495, numa representação à Câmara, pedia-se que a mancebia “fosse tirada junto do mar, porque os de fora saltavam com as mancebas, faziam arruído e se acolhiam aos batéis e a justiça não os prendia” (ABM, Vereações, n.º 1301, fl. 78). As vereações da Câmara Municipal do Funchal referem ainda o facto de “ali terem acontecido mortes de homens”, o que indicia alguma violência naquele meio. Das outras referências a “mancebia”, destaca-se o facto de os homens bons terem dedicado algum tempo, nestas reuniões, a procurar o melhor lugar para a instalação de uma mancebia, mercê feita por El-Rei a Martim Mendes. É então decidido, na vereação de 12 setembro de 1496, que “Martim Mendez de Vasconcelos ffaça mancebia em Valverde, na rua Direita”, e “que a dicta rrua sse tape da banda da rua e lhe faça as portas contra a rribeira e que ffaça as casas na dicta mancebia” (COSTA, 1995, 540). Por outro lado, há referência a algumas casas que agasalhavam os escravos e que também funcionavam como antros de prostituição, ou lugares de jogo, ou de “desonestidades”. Aliás, roubos, furtos, jogos ilícitos e prostituição faziam parte do quotidiano dos escravos forros. No foral da capitania do Funchal, datado de 6 de agosto de 1515, o Rei D. Manuel estabeleceu, com clareza, que todo aquele que fosse apanhado na “mancebia com armas, assim de dia como de noite, perdesse as armas e pegasse de pena 500 reis, e que todo o homem casado que se provasse ter mancebia ‘theuda e mantheuda’ pagasse a quarentena de metade da fazenda que tivesse” (SILVA e MENESES, 1984, III, 158). Giulio Landi, na sua Descritione de l’Isola di Madera (1530), associou-lhe três pragas – ratos, pulgas e meretrizes. A Ilha parece, então, por este tempo, estar conotada com falta de higiene e desregramento de costumes: Giulio Landi conta de uma velha cortesã ali existente e de relações escandalosas entre uma mulher branca e um escravo negro. Nas posturas da Câmara, aprovadas em meados do séc. XVI (por volta de 1550), fica estabelecido que “nenhuma mulher solteira que ganhar dinheiro por seu corpo publicamente não viva entre as casadas sob pena de quinhentos reis viverão nos lugares limitados convém a saber Beco detrás da cadeia a Rua que vai ao longo da Ribeira da ponte da cadeia até à travessa de Pero Gonçalves cavaleiro e no cabo do calhau na Rua do Monteiro e Rua adiante e nos becos de Joham Seraiva e de dom Joam”, o que indicia alguma preocupação em preservar as famílias do contacto com esta prática, delimitando os locais das “mancebias”, muitas vezes designando o lugar de residência ou de serviço das prostitutas (ABM, Posturas, liv. 1685, fls. 10-14). As mulheres que se dedicassem à prostituição incorriam num pecado de tal modo grave que o sacramento da confissão não o absolvia. A devassidão conduzia à excomunhão, conforme o texto das Constituições Synodaes do bispado do Funchal: “ainda que as mulheres públicas por seus maus costumes, e impenitentes corações se não hajam de absolver, são todavia obrigadas pelo dito tempo da Quaresma a confessar inteiramente todos seus pecados, dos quais os confessores as ouvirão, declarando-lhes que não vão absoltas, e admoestando-as que se apartem do estado de condenação em que estão, e se convertam ao Senhor e não cumprindo assim, incorrerão nas ditas penas postas aos não confessados” (BARRETO, 1585). A questão da luxúria voltará a colocar-se, ao longo dos séculos, de forma mais ou menos evidente. Rui Carita cita uma ordem do prelado diocesano, datada de 1725, segundo a qual todo aquele que se “entregava ao vício”, muitas vezes pela miséria – e incluem-se aqui outros grupos para além das “meretrizes” da cidade, i.e., os escravos e escravas (“pretos e pretas cativos”), assim como as amas dos expostos –, estava obrigado a pagar 1050$000 réis “de condenação, cada uma [cada mulher] pelo seu trato”. A queixa da Câmara contra esta ordem de D. Fr. Manuel Coutinho, também citada pelo já referido autor, acrescenta que, para poderem pagar tal condenação, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus, como muitas declararam no palácio episcopal ao escrivão da câmara” (CARITA, 1999, 250). Um alvará de setembro de 1726 mostra a preocupação do bispo relativamente à entrada de “mulheres suspeitas” na Ilha, ordenando ao meirinho geral, escrivão de armas ou qualquer outro oficial que notificasse da resolução todos os capitães e proprietários de embarcações, sob pena de excomunhão e 50 cruzados. As Constituições Synodaes do Bispado do Funchal preconizavam três admoestações para as mulheres que publicamente viviam mal. Se não se emendassem, a pena podia ir até ao desterro. Sabe-se que, ao longo do séc. XVIII, com a cidade do Funchal cada vez mais aberta ao mundo, a prostituição aumentou. Houve, então, algum cuidado na delimitação das ruas públicas, sempre muito concorridas, numa cidade muito frequentada por marinheiros. Não sendo a prostituição exclusiva da cidade, era, porém, na baixa que mais prostitutas se encontravam, sobretudo nas ruas “da área do calhau”. Nas vereações de novembro de 1725, era “determinado a todas as mulheres mundanas e públicas, que se achassem a morar no centro da cidade, pelo muito escândalo que dão a esta República”, que se deslocassem para “o Valverde”, um quarteirão acima da R. do Bom Jesus. Sabe-se, ainda, de “furtos e desonestidades” num “bequinho” entre o beco do Forno e a ribeira, denunciado pelo P.e Manuel Rodrigues Faleiro, cura da Sé, em 1707. Sabe-se, ainda, que no beco da Malta “assistem as mulheres públicas” e se praticam “atos torpes” (CARITA, 1999, 250). Rui Carita refere, ainda, situações de ações que, nomeadamente ao longo do séc. XVIII, nos indicam uma das formas de angariação de clientes. Afirma o autor que uma das formas de se intrometerem com os passantes era cuspirem-lhes em cima, sobretudo quando aqueles não lhes prestavam a atenção desejada. Apresenta, como exemplo, o caso de Domingos Caetano Pereira de Melo (1776), que, à custa do processo que resultou do facto de ter ferido algumas mulheres com a sua espada, teve de “se passar” para Lisboa e daí para Espanha. Para que pudesse regressar à Ilha, duas das queixosas, cujos nomes são omitidos, de forma a que “pelo nome não percam”, comprometeram-se a perdoar-lhe as ofensas corporais, mediante determinada quantia (Id., Ibid., 250). De registar a expressão “que pelo nome não percam”, usada para que os nomes não figurassem nos documentos oficiais, o que nos leva a colocar duas hipóteses: a vergonha e/ou a mancha de quem os escrevesse ou o facto de as ditas queixosas não serem identificadas como “meretrizes”, sendo elementos da sociedade. Está ainda documentada a atitude paternalista do Gov. João António de Sá Pereira (1767-1777): em abril de 1770, pede ao vigário Bentos Gomes de Jardim “a diligência de reduzir ao matrimónio” Isabel de Melim, natural do Porto Santo, mas a levar uma vida dissoluta no Funchal, adiantando, para o efeito, 40$000 réis. Igual procedimento tem relativamente a Josefa Joaquina Rosa de Almeida, que “levava uma escandalosa vida e depravado procedimento”, presa na cadeia do Funchal e transferida para Santana, “para sossego daqueles que lhe frequentam a comunicação”, dadas as “muitas visitas” que recebia. Ainda relativamente ao séc. XVIII, um documento de um processo decorrido no Tribunal Eclesiástico fornece uma das muito poucas informações sobre os preços praticados: assim, quando se acusa um frade foragido das Canárias de procurar prostitutas, menciona-se o montante de um tostão atirado à prostituta em pagamento dos serviços, enquanto, um pouco mais adiante, se refere o valor de cinco tostões prometidos a uma escrava, caso ela aceitasse manter relações com o dito frade. Estes dados permitem verificar que as quantias atribuídas ao pagamento do ato variavam substancialmente de acordo com o estatuto da destinatária (TRINDADE, 2012, 106). Mais para o fim do século, a atitude da Igreja madeirense parece alterar-se: D. José da Costa Torres, num documento avulso de 1796, propõe a angariação de fundos para construção de um recolhimento de prostitutas, um lugar “em que possam viver cristãmente fazendo penitência de seus pecados, e ocupando-se em trabalho honesto. […] uma boa obra, muito meritória e agradável a Deus” (Id., 1999, 203). Este bispo do Funchal (1784-1796) apela à Rainha, no sentido de mandar retirar da Madeira o Corr. António Rodrigues Veloso de Oliveira, sob vários pretextos, entre os quais a sua falta de esforços para reprimir a prática da prostituição na cidade do Funchal. Nas devassas de 1794, 1795 e 1813 são acusados 18 crimes de prostituição, todos cometidos por mulheres, sendo um outro pecado contra o 6.º mandamento, “não cometerás adultério”, a mancebia, praticado por 143 mulheres e 152 homens. Em 1813, duas devassas são claras quanto ao “grandíssimo número de públicas e escandalosas prostitutas” (Id., Ibid., 139). Uma outra questão surge ligada à prostituição: a colonização do Brasil. No princípio do séc. XVII, eram organizados embarques de pequenos grupos de jovens órfãs para casarem no Brasil e, deste modo, povoarem o espaço. Não sabemos, contudo, se havia jovens madeirenses nestas condições. Sabemos, apenas, que a Coroa terá apoiado um recolhimento para apoiar estas donzelas à chegada, evitando que a incerteza do futuro que as esperava as fizesse cair na indigência e na prostituição. O assunto “Brasil” volta a ser tratado no séc. XIX, num momento difícil, “uma crise medonha”, numa reunião da Junta Geral do Distrito, no dia 4 de maio de 1854, pela voz de António Gil Gomes. Nesta “malfadada terra sem governo que lhe dê vida”, onde se verificam “cenas dolorosas e de amarguras por que têm passado os Madeirenses, que desconsolados gemem no seu drama de agonia desde a fatal época de 1852”, apresenta algumas propostas no sentido da “salvação comum […] a salvação desta bela porção do território português, à qual estamos presos pelos vínculos mais sagrados”. A primeira proposta é de carácter moral e reporta-se ao tráfico da escravatura branca, “esse tráfico de sangue”. O deputado acusa a “vergonha das vergonhas” da emigração ilegal e refere-se especificamente a mulheres e ao Brasil, assim: “que trafica escandalosamente com as mulheres, convertidas em objetos comerciáveis, fazendo das cidades uns lupanares de abominável devassidão, como nós temos presenciado no nosso Funchal que deve ser limpo desta praga, e como temos notícia de estar acontecendo no Brasil onde a beleza da mulher imigrante é posta em hasta pública, para fins de brutal sensualidade!” (ABM, Governo Civil, liv. 269, fls. 98-101v.). Na verdade, e mesmo durante o séc. XX, sobretudo no princípio, a emigração clandestina foi um dos motores da prostituição de madeirenses no Brasil. Uma monografia sobre gentes de Gaula que embarcaram para a terra prometida indica-nos casos de moças que, para pagarem a passagem, se fizeram criadas de servir, e que sobreviveram graças à prostituição exercida nas baiucas e pensões da cidade de Santos (FREITAS, 2000, 248). Outros documentos, assim como notícias de jornal, dão conta de casos de prostituição em terras de acolhimento de emigração. É o caso de uma nota publicada no Diário de Notícias de 30 de julho de 1889, referente à colónia portuguesa das ilhas Sandwich, em que se transcreve o Luso Hawaiano, jornal que se publicava em Honolulu, que apresentava a “decadência moral” da comunidade, a perda de todas as noções de moralidade e o lançamento na prostituição das filhas pelos pais. Na Ilha, ao longo do tempo, continuou a ser à volta do porto que a prostituição se operava com maior relevância, sobretudo nas alturas de crise económica. Dizia-se que, na Madeira, havia gente a morrer de fome. Em 1847, muitos mendigos da cidade foram recolhidos, à força, num armazém da Fazenda Nacional, sito à R. dos Medinas, para onde também tinham sido afastadas as prostitutas por ordem da Câmara, de 1838. Sabe-se, porém, dos poucos resultados deste afastamento, na medida em que há registos de que elas continuaram a escandalizar as boas famílias, nomeadamente no teatro, que estavam proibidas de frequentar. Vários autores, efetivamente, relacionam o aumento do número de meretrizes com os momentos mais dramáticos da história do arquipélago: as primeiras décadas do séc. XVIII, quase todo o séc. XIX e os primeiros decénios do séc. XX. Por outro lado, e para além da necessidade de sobrevivência – um dos grandes móbiles da prostituição –, às crises económicas costumam juntar-se outras, nomeadamente de ordem moral e social, bem patentes na quantidade de expostos nas misericórdias e conventos e no engrossar das fileiras de mendigos e prostitutas. De acordo com António Loja, citado por Rui Nepomuceno, “as instituições ruem”, referindo-se ao momento da crise vitivinícola, o mesmo acontecendo em outros momentos. Essa é também a interpretação de Rui Nepomuceno, que associa falências, despedimentos, assaltos, furtos, violência ao aumento do número de prostitutas na Ilha (NEPOMUCENO, 1994, 209). Nas Pastorais do bispo Manuel Agostinho Barreto, prelado do Funchal entre 1877 e 1911, é clara a preocupação com este problema. Aí se critica o “vício que emurchece a flor da vida, arrancando a pudicícia da alma e o verniz das faces” e se afirma serem poucos aqueles que “estigmatizam a escandalosa e pública prostituição, os fundos golpes dados na moral dos esposos e dos filhos, a purulenta relaxação dos costumes” (BARRETO, 558). Depois da aluvião de 1856, as meretrizes começaram a estabelecer-se em ruas que, dantes, pertenciam a famílias ilustres da cidade, ou, mesmo, à Escola Lancastriana – as ruas do Ribeirinho de Baixo e dos Medinas. As crianças são, neste tempo, uma preocupação: “Acossados pela necessidade e dificuldade da existência, os proletários impelem os filhos para a rua muito antes que estes estejam preparados para o conflito da vida; e o resultado é a vagabundagem, a mendicidade e a prostituição em uma proporção assombrosa e deplorável” – pode ler-se no Diário de Notícias de 17 de agosto de 1889, sob o título “Protecção e educação ás creanças”, tema desenvolvido na rubrica “Assuntos gerais” (“Protecção e educação ás creanças”, DN, 17 ago. 1889, 1). O mesmo diário, datado de 5 de janeiro de 1896, num artigo sobre “Hygiene publica”, dirigido ao visconde de Cacongo, e a propósito da necessidade de melhorar as ruas da cidade, refere alguns dos “vícios sociais e físicos” da “população infeliz” do Funchal: “o crime da embriaguez, a prostituição, a escrófula e o raquitismo” (“Hygiene publica”, DN, 5 jan. 1896, 1). A questão sanitária é um dos aspetos que, desde o séc. XVI, preocupa as autoridades civis e religiosas. O contágio e a propagação de doenças como a sífilis tornam-se, desta forma, um problema de saúde pública. Parece, assim, que esta preocupação é a verdadeira razão pela qual surge, pela mão de Pina Manique, em Lisboa, a 27 de abril de 1781, a obrigatoriedade da inspeção das meretrizes. Na Madeira, porém, apesar das recomendações de Mouzinho de Albuquerque, em 1843, e do Cons. José Silvestre Ribeiro, em 1846, só em 1854 estas mulheres estão obrigadas a vigilância médica. A preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis foi, deste modo, uma constante, conforme se pode inferir das informações seguintes: a 5 de novembro de 1834, a Câmara terá recebido da parte do prefeito da província a decisão de pagar ao Hospital da Misericórdia o tratamento das mulheres públicas entre 21 de outubro e 4 de novembro daquele ano; em 1836, no dia 8 de março, o Governo mandou entregar 1:000$000 réis à Comissão da Misericórdia do Funchal, para ajudar o curativo das meretrizes afetadas por doenças venéreas, assim como os pobres que as tivessem apanhado, sugerindo mesmo que a referida Comissão se socorresse de subscrições para angariar os meios que fossem necessários para evitar a propagação das doenças (ABM, Governo Civil, liv. 1, 2.ª repartição). Em Lisboa, são produzidos regulamentos, em 1858 e 1865, que servirão de modelo a outras cidades do país. Esta regulamentação parece indiciar uma relativa compreensão pública pelas razões que teriam levado muitas mulheres à prostituição – sempre entendida como uma atividade feminina. O discurso legislativo, “tolerante”, reúne preceitos morais, preocupações sanitárias e um esforço de regular a atividade. É assim que, desde meados do séc. XIX, a prostituição, reconhecida como profissão, é permitida em casas “toleradas” – casas autorizadas pelo Estado, sujeitas a periódicas inspeções sanitárias. No entanto, há vozes que se levantam, não propriamente contra a regulamentação desta atividade, mas contra o imposto do consumo: nesse Estudo Offerecido à Comissão do Protesto Nacional na Reunião Popular Realisada em 9 de Outubro de 1906, fala-se na (falta de) lógica da moral oficial que consente, regula e tributa a prostituição, um “vício, e dos mais perigosos”, explicando o autor que o Estado considera esta prática um mal necessário, impossível de erradicar (LIGA DE DEFESA DOS INTERESSES PÚBLICOS, 1906, 18). Na Madeira, a 13 de fevereiro de 1908, o Diário de Notícias anuncia um crime de morte perpetrado contra M.ª Virgínia dos Passos, “mulher de fáceis costumes”, procurada na sua residência por mais de um homem. O teor da notícia lança algumas pistas sobre um dos motivos pelos quais algumas mulheres enveredavam pelo caminho da prostituição: “Dado o primeiro passo errado, a desgraçada não teve mão em si, deixando-se arrastar no caminho vicioso e desregrado que a levou à prostituição e à morte”. Consta que terá tido um filho, “fruto dos amores ilícitos da mísera, e que ela enjeitou para a freguesia da Ribeira Brava” (DN, 13 fev. 1908, 2). Vivia na mais completa miséria. Em 1900, o Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade de Lisboa segue o Regulamento de 1865 e inicia uma série de outros regulamentos para outras cidades do país. Conhece-se a referência a um para a cidade do Funchal, datado de 22 de março de 1886, que há de ser revogado por um novo, também específico, assinado pelo governador civil, o Cor. José Maria de Freitas, em 1931, e confirmado a 1 de julho de 1944. Este Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal está dividido em 7 capítulos e 76 artigos: “Toleradas”, “Registo”, “Cancelamento”, “Casas de tolerância”, “Inspeções sanitárias”, “Disposições penais” e “Disposições gerais”. O texto começa por definir o que são meretrizes: todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição. De entre estas, havia aquelas que se achavam inscritas no registo policial, denominadas toleradas, podendo viver em domicílio próprio ou em comum com outras, sob direção de uma “dona da casa”. Estas “casas” não poderiam ficar situadas nas proximidades das igrejas, das escolas, dos jardins públicos, das residências das “pessoas honestas”, nos largos, praças ou ruas de muito trânsito ou, ainda, em rés do chão ou lojas. Entre outras restrições, como ausentar-se de casa por determinados períodos ou mudar de casa sem informar o comissariado de polícia, estavam proibidas de sair à rua vestidas de forma indecente, abrir janelas para a rua, permanecer à porta ou à janela de casa, escandalizar o público com palavras, gestos, ou atos e provocar quem passasse, atentando ao pudor, demorar-se para além do tempo necessário nas tabernas, botequins ou em quaisquer outros estabelecimentos. O artigo 10.º deste regulamento reporta-se à interdição de ter, em casa, filhos ou menores com mais de dois anos, assim como de receber menores de 18 anos. Muitas vezes, quando isto acontecia, havia denúncia e eram instaurados processos às “diretoras das casas”. No arquivo do Tribunal da Comarca do Funchal, um processo de 17 de outubro de 1925 dá conta, ao presidente do Tribunal da Tutoria da Infância da Comarca do Funchal, de um caso destes, em que, nos termos do § 4 do art. 4.º e do art. 12.º do dec. n.º 10.767, de 15 de maio, se prova que a menor de 14 anos, Antonieta Corrêa, filha de Sara Correa, moradora à rua Alferes Veiga Pestana, n.º 49, frequenta a casa de passe de que é diretora Filomena de Freitas, de 65 anos, viúva, sita à rua Latino Coelho, n.º 4 desta cidade, levada por Maria das Neves, mais conhecida por “barbuda”. A participação foi feita por uma concorrente, Amélia Augusta, que acusou Filomena de Freitas de consentir a entrada, na mesma casa, de menores de 16 anos. Um outro processo dá-nos conta de uma denúncia similar. Da análise destes processos se infere o nível socioeconómico destas meretrizes, a avaliar pelo das diretoras. São analfabetas, pelo que são as testemunhas presentes no Tribunal que assinam as declarações e as duas têm, apensos aos processos, atestados dos regedores das suas paróquias de residência, afirmando a sua extrema pobreza, isentando-as de pagar os 200 escudos de multa a que foram condenadas, por se terem provado os factos. As toleradas estavam impedidas de exercer a prostituição em hospedarias, lugares públicos ou em casas clandestinas, não obstante termos encontrado, na Matrícula das Meretrizes, observações como: “Hotel Benfica”, “pensão Moderna” ou “foi viver para casa particular, sob proteção de um indivíduo”. Percebe-se, pois, que a grande preocupação deste controlo apertado era a transmissão de “moléstia sifilítica, ou venérea” (art. 14.º). As meretrizes eram, então, inscritas num livro do comissariado da polícia, voluntária ou coercivamente, depois de realizado um interrogatório acerca da sua identidade – nome, filiação, naturalidade, estado, profissão anterior, instrução, sinais característicos, causas da prática da prostituição, devendo estes dados ser assinados pela própria ou por duas testemunhas, no caso de esta não saber escrever. No entanto, vistos os livros, não encontramos qualquer referência à profissão anterior ou às causas que terão levado estas raparigas para a prostituição. Quanto à instrução, na linha das “Observações”, há, a lápis, a inscrição “analfabeta”. Nenhuma das meretrizes assina a sua matrícula, sendo todos os verbetes assinados pelo comissário da polícia. Fora desta inscrição, deveriam ficar as menores de 18 ou de 21 anos, quando reclamadas pelos pais, maridos ou tutores. Por este regulamento se sabe da existência de casas de regeneração, entendidas como lugares onde são internadas as menores de 21 anos de nacionalidade portuguesa. Um processo judicial datado de 1935 dá conta de um caso destes: uma menor de 17 anos confessou frequentar casas suspeitas “a fim de ter relações com homens para ganhar a sua vida”. Na sentença pode ler-se que, “de acordo com o art. 7.º foi aconselhada a procurar vida honesta e prometendo a mesma deixar de ser prostituta e ir viver para casa de sua mãe e que se voltasse ao exercício da prostituição seria julgada como desobediente e mandou que a mesma fosse posta em liberdade” (ABM, Juízo de Direito da Comarca do Funchal, Autos Crime de Corpo de Delicto, 1935, 1.ª vara, 1.ª secção). No livro das meretrizes, encontramos, entre 1914 e 1924, 21 mulheres com idades inferiores a 18 anos. Não conseguimos apurar a razão pela qual puderam ser matriculadas com idade inferior à que a lei preconizava. Quanto às estrangeiras, deveriam ser repatriadas e, caso regressassem e continuassem a atividade, deviam ser presas e julgadas como desobedientes. A verdade, porém, é que se encontram muitas estrangeiras nas listas de meretrizes que residem nas casas toleradas, sobretudo espanholas e francesas que nos parecem ser “cabeças de cartaz” das casas. São, muitas vezes, governantes e têm, na generalidade, idades superiores às portuguesas. Um olhar sobre as fotografias que alguns livros ainda possuem, apesar de muitos retratos terem desaparecido, sido descolados ou cortados – situação para a qual não encontramos explicação –, permite-nos também perceber que se trata de mulheres com um outro tratamento e com uma forma de vestir mais cuidada e, quiçá, mais arrojada: decotes maiores, plumas e adereços diferentes das portuguesas. Num universo de 792 inscritas, 73 são estrangeiras, sobretudo espanholas, 43, e francesas, 19. Esta inscrição era gratuita, assim como um livrete sanitário atestando o bom estado de saúde da tolerada. Um dado deste regulamento faz-nos acreditar que, em alguns casos, a situação destas mulheres podia ser alterada e os registos cancelados ou suspensos: em caso de casamento, de ausência do país, de reclamação por parte de algum parente, de menoridade, de prova do abandono da prostituição, de mudança de residência ou de passagem a “teúda e manteúda”, quando se tornavam exclusivas de um determinado homem, réplicas das verdadeiras esposas, muitas vezes com o conhecimento das mesmas, a quem era montada casa e de quem tinham filhos. Já há indicações desta situação nas devassas das visitações, nomeadamente a que foi feita à freguesia de Santa Maria Maior, em 1813 (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, Devassa…, 1813). Qualquer destas situações era suscetível de ser alterada e, se a mulher recaísse na prostituição, seria reinscrita, coercivamente, sem mais formalidades. Um outro aspeto destas regras diz respeito às casas de tolerância, divididas, por lei, em três: casas sob a direção de uma dona da casa; casas em que as toleradas viviam em comum; casas de passe, onde as toleradas iam exercer a prostituição. Essas casas podiam ser sujeitas a inspeções frequentes, de forma a verificar as condições higiénicas, “a mobília e os utensílios indispensáveis ao bom regime e asseio” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 22.º). Nessas casas, estava proibida a venda de bebidas alcoólicas. Entre 1888 e 1937, há registo, nos livros da Polícia, de 56 casas toleradas, com alvará, com o número de meretrizes que as dão como residência, fora outras casas, de menor dimensão, que têm o nome da dona da casa. Note-se que as casas mais importantes tinham nomes, sendo assim identificadas nos livros de registo: Casa da Varanda, Casa dos Envergonhados, Casa Nova, Casa Americana, Casa Encarnada, Palácio de Cristal, Casa do Cevada (ABM, Polícia de Segurança Pública, Registo de Alvarás de Casas Toleradas, liv. 47). As infrações eram punidas com multas pecuniárias que iam desde 10$00 a 100$00, podendo mesmo ir até à cassação das licenças e dos alvarás de funcionamento das casas. Para as casas de tolerância abertas sem as respetivas licenças, a multa ascendia aos 300$00. As casas eram dirigidas por uma governante que, em muitos casos, ia mudando de casa, o mesmo acontecendo com a maioria das mulheres que, geralmente, não permaneciam muitos meses no mesmo lugar. As “donas de casa”, ou “diretoras”, como aparece nos processos do tribunal, tinham a obrigação de zelar pela segurança das “suas toleradas”, não podendo explorá-las com empréstimos de dinheiro a juros ou com contratos que, de algum modo, as prejudicassem; não permitindo o acesso a “estranhas” ao serviço da casa ou de indivíduos alcoolizados; e visavam ainda o respeito pelos restantes habitantes da rua. Por isso, ficavam obrigadas a não consentir em jogos, danças, canto, toques de qualquer instrumento ou qualquer divertimento suscetível de produzir ruído, a não permitir o acesso a menores de 18 anos, de ambos os sexos, sob qualquer pretexto. Um dado interessante é relativo ao facto de ter de ser comunicada à polícia a tomada de criadas da parte das “donas” das casas: estas tinham de estar devidamente identificadas e não podiam ter menos de 45 anos de idade (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 61.º). O estabelecimento dos preços era, também, objeto de regulação, quer por parte do aluguer dos quartos das toleradas, quer dos serviços prestados, havendo, para o efeito, “em cada quarto uma tabela bem visível com os preços por visita ou dormida, sobre os quais não poderá ser exigida maior importância” (Ibid., art. 35.º). Todas as toleradas eram sujeitas a inspeções médicas. Uma ficha com fotografia ficava arquivada no dispensário, em dia, sendo nelas anotadas as informações relativas à saúde destas mulheres: baixas ao hospital, tratamentos, análises, etc. Eram obrigatórias e gratuitas, ficando apenas dispensadas as toleradas grávidas de sete ou mais meses, as convalescentes de doenças não contagiosas, as criadas e as donas das casas de tolerância que já tivessem completado 45 anos de idade. Podiam, ainda, ser solicitadas inspeções ao domicílio, custando, em 1944, 50$00 por cada mês de visitas, e 5$00 por cada visita do médico a casa, em caso de doença. Há informação de um dispensário ou posto médico, situado na R. Júlio da Silva Carvalho, que, no mesmo documento – um processo do Tribunal Judicial do Funchal (n.º 638/1935) –, aparece localizado na R. do Carmo. De referir que uma das testemunhas deste processo de agressão de uma tolerada, “pensionista do chamado Palácio de Cristal, à Rua dos Medinas”, a uma outra, tolerada também, era um criado do posto médico onde se deu a agressão, “por ocasião da Inspeção Sanitária feita semanalmente às meretrizes” (Tribunal Judicial do Funchal, proc. n.º 638/1935). Do registo policial, percebemos que a algumas meretrizes era concedida a possibilidade de serem revistadas no seu domicílio, pagando, para isso, 11$25, em selos constantes da respetiva folha. Quando grávidas, ficavam isentas de “revista” e os filhos eram entregues à ama geral dos expostos, que os dava a criar, conforme deliberação da Câmara; e.g., em sessão de 2 de julho de 1896, a filha da meretriz Maria Lasly, nascida a 23 de junho de 1896, “foi dada a uma ama para criação”, sendo este apenas um dos casos referidos (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, n.º 1385). Uma multa de valor semelhante, acrescida de pena de prisão, acontecia quando qualquer mulher “não prostituída” ia para uma casa de tolerância “com falsas promessas de ser empregada noutro mister”. Nestes casos, a mulher era enviada à terra da sua origem e quem a recebera ou, de alguma maneira, tivesse sido responsável por tal facto, pagaria as despesas, a multa e a pena de prisão estabelecida pelo Código Penal, sendo, para esse fim, remetida ao juiz competente. O mesmo acontecia a qualquer indivíduo que procurasse lançar “no caminho da prostituição, qualquer mulher por coisas independentes da sua vontade, ou ainda por outra circunstância” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art.º 61.º). Estas multas eram enviadas ao Governo Civil do Distrito. Por outro lado, os indivíduos – homens ou mulheres – que auferiam lucros da prostituição eram julgados como vadios e entregues ao Governo. As casas de prostituição estariam concentradas na zona urbana – no Funchal, portanto. Por outro lado, os números oficiais das prostitutas registadas não representariam a totalidade do conjunto. Um estudo da época apresentou uma estimativa de 5276 prostitutas e 485 casas situadas sobretudo em Lisboa, no Porto, em Coimbra e em Évora. No caso da Madeira, e tendo apenas os dados constantes da Matrícula das Meretrizes da Polícia de Segurança Pública, sabemos que, entre 1914 e 1931, foram matriculadas cerca de 760 mulheres, provenientes de várias freguesias da ilha da Madeira, mas sobretudo de Portugal continental, faltando, assim, livros respeitantes aos outros anos, não nos permitindo uma contabilização mais apurada. No dito regulamento, há algumas ruas indicadas como “lugares exclusivamente habitados por toleradas”: R. dos Medinas – quase todas as casas –, Trav. da Malta, R. do Monteiro, Trav. João d’Oliveira, R. do Ribeirinho de Baixo, R. do Anadia, R. da Figueira Preta, tendo, de acordo com estudo de Abel Marques Caldeira, algumas dessas artérias desaparecido, por efeito da urbanização (CALDEIRA, 1964, 35). As casas toleradas detinham um alvará, havendo delas registo em alguns livros da Polícia. Dos dados disponíveis, registamos, entre 1918 e 1936, 226 licenças para casas toleradas. Em pleno Estado Novo, houve, então, a necessidade de ordenar, sistematizar e funcionalizar uma atividade com que era necessário conviver, pelo que regressou, ao menos em termos oficiais, o discurso moralista e higienista de Oitocentos. Por outro lado, os pagamentos de licenças, multas e inspeções sanitárias eram mais uma contribuição para o erário público. Isto depois de, nos anos 20, alguns sectores político-sociais se erguerem contra aquilo que consideravam ser a dissolução dos costumes, associando o jogo, a prostituição e o crime. Em 1949, uma lei sobre a propagação das doenças infetocontagiosas (lei n.º 2036, de 9 de agosto) veio impor restrições à prostituição, fechando as casas que podiam ser um perigo para saúde pública e proibindo a abertura de novas casas de prostituição, o que apenas veio contribuir para o aumento da prostituição clandestina. Até 1963, a prostituição era, deste modo, regulamentada, e incluía consultas e exames médicos às prostitutas. Foi a lei n.º 44.579, de 19 de setembro de 1962, que tornou ilegal a prostituição a partir de 1 de janeiro, tendo sido encerrados os bordéis e outros lugares similares. No entanto, a lei teve pouco efeito prático e, no novo Código Penal de 1983, foi parcialmente alterada. O art. 6.º do dec.-lei n.º 400/82, de 29 de agosto, que revogou o art. 1.º do dec.-lei n.º 44.580, fez desaparecer a criminalização das prostitutas. De acordo com a revisão de 2005 da legislação europeia, Portugal foi considerado abolicionista, no sentido em que não apresenta proibição ou regulamentação nesta área, quer para a atividade particular quer para a pública, apesar de existirem restrições alfandegárias controladas pela Polícia: há zonas onde a atividade não pode ser exercida e restrições relativamente aos locais onde a prostituição pode ocorrer, não podendo nenhuma casa ser arrendada para negócio de prostituição, incorrendo os seus proprietários no crime de lenocínio (art. 169.º do Código Penal). A prostituição individual feminina (a masculina só foi reconhecida muito mais tarde) era permitida, apesar de se proibir a sua exploração. Era possível acusar as prostitutas de ofensas à moral e à decência públicas, o que raramente acontecia, e o cumprimento da lei estava na mão das autoridades locais. Geralmente em Portugal, tal como noutros países onde a atividade sexual das mulheres antes do casamento não era bem vista, sobretudo antes dos anos 70, era prática comum os rapazes, muitas vezes acompanhados pelo pai, iniciarem a sua vida sexual com uma prostituta, “evitando que os jovens rapazes caíssem em fantasias e experiências homossexuais entendidas como perversas, viciosas e doentias”, como explicou Isabel Freire (FREIRE, 2013, 57). Nos anos 60, um caso veio abalar a sociedade madeirense. O “caso Sandra”, ainda no resguardo da lei, ficou conhecido como o “ballet rose” do Funchal, envolvendo, segundo testemunhos de indivíduos ligados ao Tribunal Judicial do Funchal, gente da alta sociedade funchalense. Depois de 1974, com a liberalização dos costumes, encontramos referências a prostituição em algumas ruas do Funchal, nomeadamente em prédios abandonados e devolutos: é o caso de uma denúncia na última página do Diário de Notícias do dia 5 de outubro, sob o título “Rua do Sabão: prostituição ao ar livre!”. O que esta notícia nos traz de novo é o facto de (d)escrever o modo de angariar os clientes: “Frente à desembocadura da Rua dos Murças, no esqueleto dum prédio incendiado e seus anexos (sem tapume) recebem os seus clientes, angariados normalmente por menores (rapazitos a quem oferecem uma comissão sobre a receita angariada)”. Por outro lado, descreve a falta de condições e higiene verificada “nos covis imundos de lixo desse prédio derrubado, onde fazem ‘o leito do amor’ com palha e cartões de caixas que antes embalaram mercadorias que não o seu corpo”. Em 1995, 1998 e 2001, a lei foi alterada, de forma a abranger a prostituição infantil e o tráfico humano. O mês de março de 1998 traz a lume uma série de informações sobre pedofilia na Madeira: estudos, denúncias, ligações a redes pedófilas estrangeiras; questões sociais; envolvimentos de personalidades da Ilha. Por entre as páginas de jornais, alguns relatos permitem localizar em Câmara de Lobos a origem de grande parte das crianças que se prostituem no Funchal, muitas com idade inferior a 12 anos e com conhecimento dos pais. As causas apresentadas ligam-se, sobretudo, a fatores de ordem socioeconómica: famílias numerosas, má gestão do orçamento familiar, consumismo excessivo, falta de valores. Dos locais assinalados para a prática ou o aliciamento dos jovens, destacam-se: o Funchal, algumas artérias e jardins da cidade, Câmara de Lobos, o bairro da Nogueira, na Camacha, e o Caniçal. Encontraram-se referências a boîtes ou casas de alterne, que o tempo foi fechando: o Fugitivo, o Campolide, o Royal, o Mambo, o Executive Club. Explica Lília Bernardes, num artigo sobre as noites da Madeira, que a realidade da prostituição tem novos contornos: “Faz-se em apartamentos com contactos por telemóvel. Mas a rede está montada” (BERNARDES, DN, 19 ago. 2009). Faz-se com madeirenses e com gente do mundo inteiro. A atividade é, ainda, exercida em diversos lugares da cidade: em determinadas ruas e praças, em casas de massagens e bares, em discotecas, residenciais e pensões que, de forma mais ou menos discreta, servem de bordéis. Em 2013, a resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 24/2013/M (publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, 1.ª sér., n.º 176, de 17 de dezembro de 2013) vem deliberar sobre a prostituição e a abolição da escravatura do séc. XXI, no seguimento do 63.º aniversário da Convenção das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração de Outrem (1949). Num dos considerandos, afirma-se com clareza que “em Portugal, e, em especial, na Região Autónoma da Madeira, a prostituição é um fenómeno de dimensão nacional e transnacional que vitimiza, por forma dramática, muitas mulheres e crianças, havendo múltiplas redes de tráfico atuando no território nacional”. Sendo manifestamente reconhecido que as principais causas da prostituição são a pobreza e a discriminação social das mulheres e das crianças, mais vulneráveis, deliberou-se a tomada de medidas de apoio às prostitutas e às vítimas de tráfico para efeitos de exploração sexual, nomeadamente linhas de atendimento, criação de redes de apoio e abrigo, adoção de estratégias de integração social das vítimas de prostituição.   Graça Alves (atualizado a 15.02.2018)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

radiodifusão portuguesa / rdp - madeira

A 28 de maio de 1941, o Diário de Notícias da Madeira, citando o Diário dos Açores, com uns dias de atraso, compreensível para a época, anunciava na 1.ª página que “um emissor regional da Emissora Nacional está a ser instalado na cidade de Ponta Delgada”. O matutino da rua da Alfândega acrescentava que “a Madeira também espera igual melhoramento’’. Estava então em marcha um plano do Ministério das Obras Públicas e Comunicações “para remodelar amplamente os serviços de radiodifusão”, que incluía a Madeira entre as terras que vão ser dotadas com um emissor regional. ‘‘Embora ainda nada conste sobre essa instalação” – adianta a notícia –, “é de admitir que ela venha a ser um facto palpável num próximo futuro, tanto mais que a Madeira representa um alto valor no quadro dos domínios da soberania portuguesa” (“Um Emissor…”, DNM, 28 maio 1941, 1). Só que o futuro, que se desejava breve, tardou 26 anos. Na costa norte, com o auxílio de grandes antenas, era possível ouvir a Emissora Nacional e o Rádio Clube Português com alguma qualidade, o que não acontecia no sul e sudoeste. Face à deficiente eletrificação nos concelhos rurais, os poucos aparelhos de rádio (telefonias) aí existentes eram, em muitos casos, alimentados por baterias de automóveis. Mais tarde, com a regionalização da Empresa de Eletricidade da Madeira (EEM), através do dec.-lei n.º 31/79, de 24 de fevereiro, ‘‘são lançadas as grandes obras com vista à completa eletrificação da ilha da Madeira’’ que só se veio a atingir nos anos 80. Sem rádio nem televisão, e com imensas carências de múltipla ordem, nomeadamente ao nível da rede rodoviária, a Madeira sentia-se limitada pela sua secular insularidade. A chamada “pérola do Atlântico” dividia-se de forma vincada em cidade e campo; dê-se como exemplo o aeroporto, inaugurado apenas a 8 de julho de 1964, com uma pista de 1600 metros e sem capacidade para receber voos intercontinentais. A grande porta dos madeirenses era o mar, mas o alargamento do porto só ficou concluído em 1961, 48 anos depois de ter sido criada a Junta Autónoma das Obras do Porto do Funchal, a 13 de agosto de 1913. A Emissora Nacional de Radiodifusão (EN), inaugurada oficialmente a 4 de agosto de 1935, instalou o Emissor Regional da Madeira a 22 de outubro de 1967, quase 26 anos depois do início da radiodifusão nos Açores que ocorreu a 28 de maio de 1941. Um ano antes, fora publicada a primeira Lei Orgânica da EN (dec.-lei n.º 30.572), que consagrou a criação dos emissores regionais do Porto, Coimbra e Faro. O Funchal ficou esquecido durante quase três décadas até que, finalmente entrou em funcionamento um emissor de 1 kW em onda média (OM), na frequência de 1332 quilociclos por segundo, na Escola do Tanque, na freguesia do Monte, para a cobertura da cidade durante um período experimental. Rui Ivo Nunes Pereira foi o primeiro diretor (designado por Intendente), tendo sido empossado, em Lisboa, com mais de dois anos de antecedência, a 28 de maio de 1965. A abertura da primeira emissão coube ao locutor Virgílio Gonçalves. Os estúdios ficavam na rua dos Netos, n.º 27, havendo dois pequenos períodos diários de emissão: de segunda-feira a sábado das 11.30 h às 14.00 h e das 19.00 h às 23.00 h; e aos domingos, entre as 12.00 h e as 23.00 h. Na altura, o país ouviu pela primeira vez a reportagem em direto da passagem do ano na Madeira. A 24 de março de 1968, assistiu-se à transmissão do primeiro relato de um jogo futebol (entre o Marítimo e o Lusitânia dos Açores) por Artur Agostinho e Armindo Abreu, no Estádio dos Barreiros, a contar para a Taça de Portugal. Em 1969, teve lugar a ampliação dos estúdios e entrou em funcionamento uma Central Técnica, procedendo-se ao aumento da potência para 10 kW, na Estação do Monte. Fez-se a primeira emissão em frequência modelada (FM) (na frequência de 96.0) para o Funchal com um emissor de 50 W, instalado nos estúdios. Em 1971, alargou-se ligeiramente o tempo de programação, normalmente preenchido com gravações vindas em bobinas do Serviço de Intercâmbio de Lisboa, passando-se a emitir um espaço regional de produção própria, apresentado por Armindo Abreu, entre as 10.00 h e as 11.30 h, de segunda a sexta-feira. Em 1974 a EN consegue outro estatuto, abrindo-se a antena entre as 07.00 h e as 24.00 h. No dia 25 de abril de 1974 (o dia da Revolução dos Cravos), e igualmente no dia seguinte, o responsável pelo Emissor Regional da Madeira da EN, revelando incerteza ou desconfiança sobre o que se passava na capital, mas que já se refletia bastante nas ruas do Funchal, não aderiu prontamente ao Movimento das Forças Armadas (MFA), para o que lhe bastava transmitir em cadeia com a emissão a nível nacional. Em consequência dessa tomada de posição, e depois de os funcionários terem enviado um telegrama ao MFA, alertando para a situação, verificou-se o afastamento do Intendente, António Vermelho Corral, substituído pelo locutor de 2.ª classe Duarte Manuel da Câmara Brito Gomes (Duarte Canavial), conforme noticiou, na abertura, o Diário Sonoro das 20.00 h do dia 27 de Abril. Tempos depois, no decorrer do chamado Verão Quente de 1975, período de grande tensão política entre a esquerda e a direita, houve um atentado bombista no centro emissor do Monte, a 22 de agosto, que provocou a interrupção da emissão em OM durante dez dias. A 7 de outubro, os estúdios são ocupados durante cerca de quatro horas por um grupo que se intitulou de “retornados” (portugueses regressados das antigas províncias ultramarinas) que exigia uma emissora livre, fora do controlo de fações esquerdistas, e a readmissão dos locutores Armindo Abreu, Duarte Canavial e Juvenal Xavier; horas depois, deu-se uma contrainvasão por um grupo do Sindicato da Construção Civil, que ficava nas traseiras do prédio do Emissor Regional. O Comando Militar da Madeira ordenou a desocupação das instalações, garantindo a sua vigilância durante um mês. A 2 de dezembro de 1975, o governo de Pinheiro de Azevedo nacionalizou a rádio “no território continental” (decreto-lei n.º 674-C/75) e foi constituída uma empresa pública de radiodifusão (EPR), depois denominada Radiodifusão Portuguesa, EP (RDP), com o objetivo de “reconduzir a atividade de radiodifusão às dimensões e características de um serviço público que sirva o povo e a Revolução”. Por não haver qualquer referência às ilhas adjacentes por parte do legislador (era ministro da Comunicação Social Almeida Santos), não são abrangidos pelo diploma o Posto Emissor do Funchal e a Estação Rádio da Madeira. A 24 de maio de 1980, a delegação da Madeira tornou-se um Centro Regional (dec.-lei n.º 155/80), funcionando como representação descentralizada, dotada de autonomia de gestão e financeira. Segundo o artigo 6.º, o diretor era nomeado pelo conselho de gerência da RDP, precedendo acordo do governo regional que, por sua vez, através do departamento competente, poderia propor, também, a sua exoneração. A 1 de julho de 1982, com a inauguração do centro emissor do Arieiro, atingiu-se a cobertura total do arquipélago em OM (10 kW) e em FM (5 kW). Em 1983, principiaram as emissões em estereofonia. Data de 1984 a construção de um estúdio que possibilitou o desdobramento da programação em OM e FM. Em 1986, ocorre a ampliação da rede de FM com a estação do Paul da Serra, estendendo-se o sinal a parte da costa oeste. Com a instalação da estação do Porto Santo, em 1987, reforçou-se a penetração nesta ilha e também na costa norte da Madeira. Com a entrada em atividade de um estúdio auto-operado, em 1988, foi criado o 2.º Canal, com a designação de Super FM, que emitia entre as 10.00 h e as 02.00 h. Em 1989, prossegue a ampliação da rede de FM com a estação de Gaula (300 kW). Em 1990, houve novo aumento da potência do Monte para 500 W e do Paul da Serra para 200 W. Em 1991, arrancaram as obras do novo centro de produção do Funchal, na rua tenente-coronel Sarmento, num terreno com 1 265 m2 que fora adquirido em 1977. Em 1992, leva-se a efeito a ampliação da rede de FM do Canal 2, através das estações do Cabo Girão, Ribeira Brava, Pico do Facho (Machico) e Achadas da Cruz. Em dezembro, o mesmo sucedeu com a rede de FM do Canal 1, com as estações do Cabo Girão e do Monte. Em 1993, coloca-se um novo feixe hertziano em direção ao Pico do Arieiro e amplia-se a rede de FM do Canal 1, a partir do centro emissor do Monte e das estações do Paul da Serra, Achadas da Cruz, Ponta do Pargo, Pico do Facho (Machico), Porto Santo e Ribeira Brava. Em 1994, são montadas as estações de Gaula e da Encumeada. A abertura de um novo centro de produção era uma grande aspiração do Centro Regional da Madeira, sob a direção de Manuel Correia. A rádio pública funcionava num edifício da baixa da cidade, sem qualidade e sem condições, que sofreu uma série de obras de adaptação para se obter uma maior funcionalidade. O processo iniciou-se em maio de 1987, quando a RDP apresentou uma candidatura ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) para a edificação do novo centro. Em dezembro de 1988, a Comissão das Comunidades Europeias aprovou a concessão de um financiamento para o projeto, da autoria dos arquitetos Pedro Santos Costa e José Calheiros, celebrado a 9 de abril de 1990 (a primeira pedra foi lançada a 1 de setembro) e concluído no início de 1991. O edifício compunha-se de dois elementos contíguos de quatro e cinco pisos, interligados por uma galeria e terminando numa torre na zona oposta à entrada, para a colocação de antenas de feixes hertzianos. A área total de construção correspondia a 2985 m2. O centro foi equipado com três estúdios auto-operados, dois convencionais e um de média produção, além de uma central técnica de programas automática, programável e de comutação digital. A inauguração do primeiro centro de produção de rádio em Portugal construído de raiz registou-se a 14 de abril de 1993. A 28 de maio de 2011, e uma vez que se tinha efetivado, em 2004, a incorporação da RTP e da RDP na Rádio e Televisão de Portugal, a rádio transferiu-se para o edifício do Centro Regional da Televisão. A 5 de dezembro de 2012, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, “legítima representante dos cidadãos da Madeira e do Porto Santo, recomenda ao Governo da República que a verba referente à alienação das antigas instalações da RDP-M, à rua Tenente Coronel Sarmento, no Funchal, que se encontram encerradas desde 28 de Maio de 2011, reverta inteiramente em favor do reequipamento da RTP-M e da RDP-M”. A resolução n.º 2/2013/M da Assembleia Legislativa da Madeira foi publicada no Diário da República, I Série, n.º 6, de 9 de janeiro de 2013. A rádio do Estado mudou de residência pela terceira vez, passando a coabitar com a televisão, em Santo António. Com o aparecimento da televisão, a rádio deixou de ser a protagonista dos serões que reuniam a família à sua volta, embora na Madeira, onde as novidades demoravam muito mais tempo a entrar na moda, a sua idade da fama tenha sido mais prolongada, atingindo e porventura ultrapassando os anos 80 do séc. XX ainda com considerável vigor e penetração no tecido social. O transístor das grandes vozes foi perdendo audiências, mas continuou a ser uma força fundamental e indispensável no campo da nova informação, sobretudo pela sua inegável mobilidade e rapidez. Com o mundo novo da internet, a rádio mundializou-se, globalizou-se, deixou a aldeia e ganhou outra gama de ouvintes, que redescobriu a intimidade de um som antigo. No caso tipicamente madeirense, devido à orografia bastante acidentada que dificulta a propagação das ondas, a RDP teve de transformar-se, lançando uma vasta rede de emissores de FM para garantir a cobertura, que é assegurada na sua totalidade por 31 frequências MHz: Antena 1 (13 frequências): 90.2 (Ponta do Pargo), 92.0 (Massapez), 93.1 (Encumeada/Pico do Facho), 95.5 (Pico do Arieiro), 96.7 (Cabo Girão), 98.5 (Gaula), 100.5 (Porto Santo), 101.6 (Caniço), 101.9 (Paul da Serra), 104.3 (Achadas da Cruz), 104.6 (Monte/Santa Clara/Funchal), 105.4 (Calheta), 105.6 (Ribeira Brava); Antena 2 (5 frequências): 99.0 (Caniço), 99.4 (Cabo Girão), 102.4 (Funchal), 103.3 (Porto Santo), 106.3 (Gaula); Antena 3 (13 frequências): 89.3 (Caniço), 89.8 (Monte/Santa Clara/Funchal), 90.8 (Encumeada/Pico do Facho), 91.3 (Gaula), 93.3 (Paul da Serra), 94.1 (Pico do Arieiro), 94.6 (Ponta do Pargo), 94.8 (Cabo Girão), 95.7 (Massapez), 96.5 (Porto Santo), 103.1 (Ribeira Brava), 105.0 (Achadas da Cruz), 107.5 (Calheta). Mesmo com toda esta substantiva rede de emissores por vales e serras, a rádio deparou com uma grande e intransponível “parede” à sua transmissão com a construção, a partir de 1989, de 116 túneis rodoviários, que atingiram uma extensão de quase 80 km. Em setembro de 1997, o Serviço Técnico da RDPM, chefiado por Paulo Brazão, elaborou um estudo técnico-científico para a cobertura radiofónica do túnel da via rápida entre o Funchal e a Ribeira Brava. O projeto contemplava spotes (pequenas antenas de emissão) e traçados de cabos radiantes, capazes de difundir vários programas de FM e comunicações de um ou mais operadores. A administração da RDP autorizou a sua instalação nos túneis de Santa Clara, do Cabo Girão e da Ribeira Brava. Depois de autorizado pela Câmara Municipal do Funchal, em 22 de outubro de 1999, teve início a instalação desse sistema, que começou a funcionar a 5 de maio de 2000, sendo o túnel de Santa Clara o primeiro a possuir este tipo de cobertura no país. Alguns programas da rádio pública, sobretudo das décs. de 80 e 90 do séc. XX, têm um lugar especial no baú das recordações dos madeirenses que os ouviam: “Quotidiano”, “Duche da Manhã”, “Interferências de Verão”, “Quatro Linhas”, “AZERT” e a radionovela “Neto Herói”.   Estação Rádio da Madeira CSB 90 A Estação Rádio da Madeira (ERM), que teve origem no Rádio Clube da Madeira, calou-se definitivamente no dia 6 de agosto de 2000; a sua casa, no Pico dos Barcelos, foi demolida em agosto de 2013, encerrando a história de mais de meio século da chamada “emissora do cambado”. O seu fundador, Mário de Sousa Portela Ribeiro, vivera o aparecimento, em 1930, do Rádio Clube Português (RCP), propriedade de Botelho Moniz, onde exercera o cargo de diretor técnico; a mulher, Isabella Ferreira, fora locutora nas emissões da noite em inglês, em 1936, no início da Guerra Civil em Espanha. Contudo, divergências com Botelho Moniz fizeram-no partir para a Índia em 1940, regressando à Madeira depois da Segunda Guerra Mundial. Influenciado pelo facto de a Emissora Nacional não ser ouvida nas melhores condições, Mário de Sousa Portela Ribeiro pôs em marcha a ERM juntamente com o filho, Manuel Dayrell Marrecas Portela Ribeiro. Começaram pela construção artesanal de um pequeno emissor tecnicamente rudimentar em casa, depois mudaram-se para uma vivenda ali perto. As emissões experimentais dão os primeiros passos no dia 6 de janeiro de 1946, com Portela Ribeiro, Isabella Ferreira e os filhos, Edgar e Manuel. A cabina de locução era forrada com sacas de serapilheira para melhorar as condições de acústica. Mas havia um grave problema – não tinham licença dos Serviços Radioelétricos. Na resolução da situação, empenhou-se o governador do distrito autónomo do Funchal, João Abel de Freitas, que aprovara os estatutos do Rádio Clube da Madeira a 31 de dezembro de 1947, em conformidade com o parecer do Conselho Permanente da Ação Educativa, homologado pelo subsecretário de Estado da Educação Nacional. O Rádio Clube da Madeira tinha como fim “reunir os amadores que se interessam pela radiotécnica, promovendo assim o desenvolvimento da radiodifusão em Portugal”. Segundo a alínea b) do art. 2.º dos Estatutos, um desses fins seria “construir ou adquirir uma estação emissora de amador no Funchal e todas as outras que as circunstâncias aconselharem e permitirem” (ARM, GC, “Estatutos…”, cx. 3, 57, 1947). De início, funcionaria na referida sede do RCM, com 300 W. O alvará foi entregue a 3 de janeiro de 1948 e a tomada de posse sucedeu a 30 de março, na Associação Protetora dos Estudantes Pobres do Funchal. A primeira Assembleia Geral, sob a presidência do capitão Carlos Silva, realizou-se no Ateneu Comercial do Funchal a 14 março de 1948, tendo sido eleita a seguinte direção: Mário Portela Ribeiro, José Rafael Basto Machado, Vasco Paiva Brites, Mário Matos, Carlos Silva, Jaime Albuquerque Gonçalves e Luís Sacadura. Como suplentes, Pedro Pires e Carlos Santos. Em dezembro de 1959, começaram as obras de construção da nova sede, no Pico dos Barcelos. Para financiar o investimento, em grande parte suportado pelas economias da família, surgiu a ideia de transmitir um programa de discos pedidos que ocupava uma grande fatia da programação entre as 10.00 h e as 24.00 h, pagando os ouvintes 2$50 por cada vez que a música tocasse. Chegavam a ser 200 por dia, sendo as mais conhecidas para várias pessoas ao mesmo tempo. O rei dos discos pedidos era o brasileiro Teixeirinha – um gaúcho que não parava de cantar “Coração de Luto” e “Canarinho Cantador”. O auditório pedia cantigas para celebrar aniversários, casamentos e batizados; e muitas vezes os emigrantes dedicavam discos à família. Outra fonte de receita era, sem dúvida, os anúncios publicitários, a 15$00 por cada leitura. A programação procurou ter um papel de relevo na defesa dos interesses locais, com ênfase na divulgação de temas sobre agricultura, a cargo da revista Frutas da Madeira e da Junta Nacional dos Lacticínios. A história da Estação Rádio da Madeira CSB 90, comprimento de onda de 202 m e frequência de 1484 quilociclos por segundo, foi marcada por vários diferendos familiares entre Mário de Sousa Portela Ribeiro e os filhos. Mais tarde, com a legalização das rádios locais e a consequente distribuição de novas licenças, a ERM, que já possuía a frequência 96.0, motivou o interesse de José Paulo Ribeiro Moura e de Pedro Cirílio Freitas Gonçalves, que adquiriram o respetivo alvará e todos os meios técnicos. Porém, a nova empresa não conseguiu encontrar uma sede no Funchal, pelo que a Rádio Madeira – como era conhecida na sua fase final – acabou por desligar o seu emissor a 6 de agosto de 2000. Ficará lembrada como a estação jovem que abriu os seus microfones a estudantes e a produtores particulares. Na memória permanecerão programas como “Funchal-65”, “Quando o Telefone Toca”, “Comboio da Noite” e “Rádio Totobola” – o mais antigo em Portugal (com início em 1974).   Posto Emissor do Funchal C.S.3U.A. Em 1946, Eduardo António Santos Pereira propôs ao Conselho Diretivo da Sociedade de Concertos da Madeira que se criasse no Funchal uma emissora regional, proposta que foi aprovada por unanimidade, tendo-se dado todos os passos para se obter a respetiva autorização. A Direção dos Serviços Radioelétricos, entidade que concedia a licença para o funcionamento dos postos emissores, sugeriu que, uma vez que se encontrava pendente outro pedido feito no mesmo sentido pela firma Ramos & Ramos, se juntassem, criando-se uma só estação de radiodifusão particular no Funchal e evitando-se a dispersão de despesas. A 4 de julho de 1947, o projeto mereceu a aprovação do ministro das Comunicações; seria a primeira estação de rádio devidamente autorizada. Assim – depois de um período experimental –, em 28 de maio de 1948, às 18.00 h, com a presença de autoridades civis e militares da Madeira, eram oficialmente lançadas para o éter as palavras: “Aqui Funchal, Posto Emissor C.S.3U.A. a transmitir na frequência de 1529 quilociclos dos seus estúdios no Teatro Baltazar Dias” (CLODE, 2000, 154). Nascia assim o Posto Emissor do Funchal C.S.3 U.A. (PEF). No entanto, segundo a imprensa do dia 30, a data e a hora desta primeira emissão não foram as referidas. Com efeito, O Jornal (antecessor do Jornal da Madeira) escrevia que “fazendo parte das comemorações da data gloriosa da Revolução Nacional, realizou-se ontem às 12 horas a inauguração solene do Emissor Regional do Funchal, propriedade da Sociedade de Concertos da Madeira e da firma Ramos & Ramos” (O Jornal, 30 maio 1948,). Para o Diário de Notícias, a cerimónia teve lugar no dia 29, “integrada no programa comemorativo da data do 28 de maio, constituindo, sem dúvida, um dos números de maior audiência para o público” (“O acto inaugural…”, DN, 30 maio 1948, 6). Após a cerimónia, houve a transmissão de um concerto por Wera da Cunha Teles (canto), Lizetta Zarone (piano) e Pedro Lamy dos Reis (violino), professores da Academia de Música da Madeira. A insuficiente cobertura da Madeira pela Emissora Nacional, que “a maioria das vezes, transmitia mais ruídos do que novidades” (CLODE, 2000, 153), provocava o descontentamento dos ouvintes. Era preciso fazer alguma coisa para acompanhar a evolução da nova tecnologia da rádio. Impunha-se congregar esforços, conhecimentos e técnicas. Corriam então os primeiros meses de 1947. Um encontro de quem se dedicava à música e à sua divulgação (William Edward Clode e Luís Peter Clode) com quem estava ligado pelo saber e pelo comércio à eletrotecnia (Herculano Ramos e Arlindo Ramos) propiciou o nascimento do Posto Emissor de Radiodifusão do Funchal. Um técnico de rádio e rádio amador de reconhecido mérito nacional e internacional (João Higínio Acciaioly Ferraz) deu uma apreciável colaboração a esta iniciativa, à qual se juntou também, com entusiasmo, um apaixonado homem de teatro (Mário Basílio de Abreu), que foi o primeiro locutor. A primeira locutora do PEF, Maria Guida Gonçalves Câmara, era estudante da Escola Industrial e Comercial António Augusto Aguiar tendo sido “notada pela sua bela dicção” numa festa de alunos no Teatro Municipal. Guida Câmara “achava mais difícil falar ao microfone do que em palco em frente de toda a gente” (ANA MARIA, 1952, 14). Durante três anos, estúdios e emissor (este com a potência de150 W) estiveram localizados num dos camarins do Teatro Baltazar Dias. As emissões eram às terças, quintas e sábados das 20.00 h às 23.00 h, e aos domingos das 16.00 h às 19.30 h. Em 1952, os estúdios foram transferidos para a rua Fernão de Ornelas e a potência aumentou para 500 W. A 27 de abril de 1958, assinalou-se a primeira transmissão direta de um relato de futebol do Continente para a Madeira, por Joaquim Santos: tratou-se do encontro entre o Futebol Clube do Porto e o Club Sport Marítimo, no Estádio das Antas, para a 2.ª mão dos quartos de final da Taça de Portugal. Em 1959, o PEF instalou-se na rua da Ponte São Lázaro, subindo a potência para 1 KW e emitindo do centro instalado no Livramento, na freguesia do Monte. Em Lisboa já tinham começado as emissões regulares da RTP e o PEF tornou-se seu acionista, sendo depois eleito Presidente da Assembleia Geral. Em 1964, foi outorgada a escritura pública da Sociedade. Em 1967, formou-se a primeira estação de FM com 250 W, matrícula CSB 220, na frequência de 91.9 MHz, colocando-se o emissor no mesmo local dos estúdios. Com o aumento da potência para 1 KW (quatro vezes mais), saltou no quadrante para 92.0 MHz Em 1972, abriu novo centro nas Encruzilhadas (Santo António), onde foi montado o emissor de OM, substituído por outro de 10 KW em 30 de abril de 1987. O emissor de FM esteve no sítio da Barreira (Santo António), com a potência alterada para 2 KW. A 23 de abril de 2013, operou-se a concentração destes emissores no Chão da Lagoa. No seu Estatuto Editorial, constante do art. 34.º da lei 54/2010, o PEF, sob a direção de Teresa Clode, John Ramos, Luís Clode e António Ramos, define-se como “uma rádio privada, independente de quaisquer poderes políticos, económicos ou sociais, inspirando a sua atividade no quadro de valores e princípios da doutrina cristã”. Segundo o ponto 4 do mesmo Estatuto, “procura informar de forma isenta, rigorosa e pluralista, com respeito pelos princípios da ética e da deontologia, privilegiando os factos, os temas e as questões próprias da Região Autónoma da Madeira ou os que a ela se referem, sem prejuízo da restante informação de caráter nacional e internacional” (“A Rádio”, Posto Emissor do Funchal). Dezenas de programas enriqueceram a sua existência, como: “A Semana Passada Aconteceu”, “Enciclopédia Sonora”, “Paralelo 32”, “Vamos Todos Cirandar”, “Meia Hora dos Estudantes” e “Ao Cantar do Galo”. Membro da Associação de Rádios de Inspiração Cristã, o PEF passou a ser uma sociedade por quotas, com um capital social de 115.500 euros, distribuído pelo Seminário Maior de Nossa Senhora de Fátima (50.000), a Diocese do Funchal (50.000), Maria Francisca Teresa Clode (15.000) e a Sociedade de Concertos da Madeira (500).   Das rádios piratas às rádios locais A Rádio SOLMAR – Cooperativa de Radiodifusão CRL, fundada por Luís Ornelas Vasconcelos, surgiu como primeira “rádio pirata” da Madeira a 16 de junho de 1987, tendo o seu Conselho de Administração informado o diretor regional dos Serviços de Radiocomunicações, a 14 de outubro desse ano, de que passava a emitir na frequência de 88.8 MHz, todos os dias, com caráter experimental, utilizando um equipamento da marca RVR, modelo PTX 20. A 9 de janeiro de 1988, a SOLMAR solicitou o licenciamento de uma estação de radiodifusão em FM e estereofonia. Com um pequeno emissor de 15 W, emitiu inicialmente entre as 19.00 h e as 24.00 h e depois entre as 08.00 h e as 24.00 h, na freguesia do Imaculado Coração de Maria, no concelho do Funchal. Mas, por imperativos legais, as emissões terminaram a 24 de dezembro, durante o XI Governo Constitucional de Cavaco Silva, que mandou encerrar todas as «piratas» – um movimento que acabara com o monopólio do Estado. Escreveu-se uma breve história somente com 18 meses, porque a SOLMAR foi excluída dos concursos. Com a lei n.º 87/88, de 30 de julho (a lei da rádio), foram legalizadas as rádios locais, cabendo à Região Autónoma da Madeira 13 frequências. A 6 de março de 1989, são atribuídas apenas 8, 3 das quais para o Funchal – Estação de Rádio/Jornal da Madeira (88.8), Clube Desportivo Nacional/Rádio Clube (106.8) e Estação Rádio da Madeira FM (96.0) – e 5 aos concelhos rurais de Câmara de Lobos (Grupo Desportivo do Estreito/Rádio Girão 98.8), Machico (Rádio Zarco 89.6), Ponta do Sol (Rádio Sol 103.7), Ribeira Brava (Rádio Brava 98.4) e Santa Cruz (Rádio Palmeira 96.1). Em 2000, foram legalizadas as 5 restantes: Rádio S. Vicente (89.2), propriedade dos Bombeiros Voluntários de São Vicente e do Porto Moniz; Rádio Porto Moniz (102.9) da Associação de Desenvolvimento da Costa Norte da Madeira-IPSS (ADENORMA); Rádiourbe (91.6/Calheta), da Empresa de Produção e Comércio de Publicidade Lda.; Rádio Santana (92.1), da Empresa de Radiodifusão e Publicidade Lda; e Rádio Praia (91.6/Porto Santo), da Betamar Lda/Grupo Porto Santo Line. A Estação Rádio da Madeira, que já transmitia em OM desde 6 de janeiro de 1947, arrancou com as emissões em FM a 1 de setembro de 1989. Seguiram-se a Girão, no dia seguinte (a primeira fora do Funchal); a 6, a Jornal da Madeira; e a 9 de dezembro, o Rádio Clube. A 30 de maio de 1990, foi a vez da Rádio Zarco e da Rádio Palmeira; e a 15 de janeiro de 1993, da Rádio Brava e da Rádio Sol. A lei “sobre o exercício de atividade de radiodifusão” estabelece, no seu art. n.º 2, que a mesma pode ser exercida, também, por entidades privadas ou cooperativas. No entanto, o art. n.º 3 proíbe essa atividade aos “partidos ou associações políticas, organizações sindicais, patronais e profissionais, bem como autarquias locais, por si ou através de entidades em que detenham participação de capital”. Aprovado em 31 de maio de 1988, o concurso público para a atribuição das frequências foi lançado em janeiro de 1989. Passados 25 anos, observavam-se várias alterações em relação ao panorama inicial. A Girão, do Grupo Desportivo do Estreito, foi adquirida, em setembro de 1997, pelo Diário de Notícias e pela TSF, sendo autorizada a alteração da frequência 98.8 para 101.0. Com o decorrer das emissões, a Rádio Diário/TSF, verificando que a cobertura do Funchal, através de uma frequência de Câmara de Lobos, não tinha a qualidade desejada, vendeu a 101.0 ao Rádio Clube e comprou a 96.0 à Estação Rádio da Madeira, tendo sido alterada para 100.0. A Comunicamadeira-SGPS, SA adquiriu a totalidade do capital social do operador Brum Pacheco e Filhos, Unipessoal, Lda e a SPN-Sociedade Produtora de Notícias, Lda., detentora da Rádio Popular da Madeira (101.0), em Câmara de Lobos. A frequência 98.4 (ex-Rádio Brava) mudou para a Girão, que se tornou a Rádio Festival do Grupo RMV (Ramos, Marques & Vasconcelos, Lda.), dono da Zarco, Palmeira e Sol. Numa nova vaga de concursos, Manuel Pedro da Silva Freitas, utilizando a denominação Rádio Girão, de que foi diretor e um dos seus fundadores, ganhou a Rádio Santana FM (92.5), com o objetivo de colocar estrategicamente a antena no Pico do Arieiro (concelho de Santana) e deste modo chegar ao Funchal e a Câmara de Lobos. A Rádio do Clube Desportivo Nacional (106.8) passou para o Rádio Clube (Madeira), Lda., com a denominação de Rádio Clube, pertencendo a totalidade do capital social à Comunicamadeira que tem uma participação no Grupo RMV e assim atinge o limite das seis licenças. A 11 de maio de 2001, principiam as emissões da Rádio Porto Moniz e a 14 da Rádio S. Vicente, com microcoberturas para Boaventura e Ponta Delgada (99.2). A Rádiurbe, cujo capital social pertencia à SOSOL, passou para o Grupo AFA (AFAVIAS - Engenharia e Construções, SA), que fundou a Rádio Calheta a 10 de agosto de 2001, com três microcoberturas para Ponta do Pargo e Fajã de Ovelha (107.1), Paul do Mar e Jardim do Mar (104.3) e a zona baixa do concelho (102.7). No ano seguinte, este Grupo comprou a Santana FM, fundada por Manuel Pedro da Silva Freitas, que havia formado uma sociedade com Filomena Pereira Pestana Figueira de Freitas e João da Silva de Azevedo Freitas, que era titular do alvará desde 1 de setembro de 2001. A Santana FM, de 4 de maio de 2002, possui uma microcobertura para o Arco de São Jorge, São Jorge e Ilha (105.5 MHz).   Rádio Renascença Por causa da necessidade da ocupação legal de duas frequências na Madeira, propriedade da Rádio Renascença, as suas emissões – RR (88.0) e RFM (93.6) – tiveram início, a 19 de julho de 2010, através do centro emissor do Pico da Silva, na Camacha. Para o presidente do Grupo r/com, Cón. João Aguiar Campos, foi o culminar de um projeto antigo, “que vai permitir servir melhor os madeirenses que querem acompanhar as emissões da Renascença” (“Madeira: Renascença…”, Diário Digital, 21 jul 2010). Acrescente-se que o Posto Emissor do Funchal e a Rádio Jornal da Madeira já transmitiam, em simultâneo, alguns programas da Emissora Católica Portuguesa.   TSF-Madeira 100 FM A Rádio DIÁRIO-TSF, mais tarde TSF-Madeira, abriu os microfones no Funchal, no dia 4 de novembro de 1977, sob a direção do ex-jornalista da RDP-Madeira António Ivo Caldeira. Posteriormente, a Telefonia Sem Fios passou a ser dirigida por Ricardo Miguel Oliveira, também diretor do Diário de Notícias do Funchal, tendo como sócios José Bettencourt da Câmara, membro executivo do Conselho de Gerência da Empresa do Diário de Notícias, Lda., e Carlos Alberto Batalha de Oliveira, que possui a participação total no capital social da Rádio Comercial dos Açores, Lda., em Ponta Delgada. A Notícias 2000 FM – Atividade de Radiodifusão Sonora, Lda. – possui o alvará para a cobertura local desde 6 de março de 1989, estando o serviço de programas registado sob a denominação Rádio Notícias TSF Madeira, frequência 100.00 MHz, no concelho do Funchal. Em 2015, os estúdios estavam integrados nas instalações do Diário de Notícias. A emissão da TSF é preenchida, na segunda década de 2000, com produção regional e simultâneos com a TSF nacional, desenvolvendo um projeto centrado mais no jornalismo do que no entretenimento.   Juvenal Xavier (atualizado a 17.13.2017)

Sociedade e Comunicação Social

quotidiano e sociabilidades

Tudo o que se prende com o quotidiano da sociedade madeirense tem de ser encontrado de forma indireta na documentação, tendo em conta que, no que respeita a épocas recuadas, faltam testemunhos que nos permitam descobrir como as pessoas ocupavam as 24 horas do dia e os escassos anos de vida que as condições sociais e materiais da sociedade do seu tempo lhes propiciavam. Um dos recursos mais comummente usados são os diários pessoais e os retratos do quotidiano traçados por visitantes, alguém que, em busca de um clima ameno capaz de curar as suas doenças ou de passagem fugaz rumo a outros destinos, em missão política ou científica, fica impressionado com a realidade com que se depara, diferente da sua. Mas em que medida estes testemunhos referentes à nossa sociedade são fiéis? Muitos destes testemunhos resumem-se quase só ao espaço urbano, sendo raros os que apontam para um retrato, ainda que fugaz, do mundo rural, pois que a sua observação era feita de passagem e apenas durante os percursos, mais ou menos estabelecidos, pelo interior da Ilha. No Funchal, a presença era mais demorada, mas circunscrevia-se às quintas, depois aos hotéis, às casas, quase sempre mais abastadas, aos clubes, casinos e cafés e, raras vezes, se cruzavam com a maioria da população funchalense; apenas uma parte da sociedade e do quotidiano de alguns que, certamente, não se confundiam com a maioria dos madeirenses. São poucos os testemunhos de madeirenses sobre a sua realidade quotidiana e espelham, quase sempre, uma leitura a partir da sua posição social. Neste quadro, importa refletir sobre o quanto o olhar apresentado por Horácio Bento de Gouveia, considerado o retratista da vivência madeirense, a partir de 1948, com a publicação de Ilhéus, depois renomeado para Canga, em 1975, poderá ser o retrato fiel do mundo rural madeirense ou apenas um olhar enviesado de um filho de senhorio, das bandas de Ponta Delgada. Perguntamos, assim, em que momento esta personagem se alheia da sua posição social e se integra, de forma participante, no quotidiano dos caseiros e demais homens do meio rural madeirense. A Madeira estava longe dos progressos da Revolução Industrial e o analfabetismo dominante conduzia aqueles que atuam no processo produtivo, uma intervenção apenas por força da tradição e nunca fruto de uma sabedoria acumulada e vivenciada. A orografia da Ilha tanto dificultava qualquer tarefa produtiva como condicionava a criação de condições que favorecessem a valorização do magro resultado do trabalho do madeirense, por falta de vias de comunicação e de meios de transporte adequados. A situação não favorecia qualquer mudança, nem tão pouco o progresso técnico e o conhecimento batiam à porta de muitos destes protagonistas. Havia muito pouco para inventar no quotidiano deste ilhéu, que se pautava quase sempre pelo ritmo das estações do ano, do calendário religioso e de um ou outro acontecimento de índole política, cuja repercussão era mais acentuada no meio urbano. Ao madeirense que foi obrigado a construir a sua casa e sustento sobre um penhasco e a viver em permanente sobressalto à beira do abismo, faltaram tempo e meios para que o quotidiano se pudesse dividir entre os momentos de lazer e de trabalho e que, entre ambos, fosse visível uma interação. O descanso e o trabalho são repartidos e definidos pela própria natureza, como o nascer e o pôr do sol, a chuva e o tempo soalheiro. As tarefas são árduas, os meios técnicos reduzidos e pouco eficazes, pelo que não sobrava tempo para além daquele indispensável e imposto com a chegada da noite ou algo de anormal que acontecesse e obrigasse a uma paragem forçada. A Igreja impôs o seu ritmo do tempo através do relógio do campanário dos templos, que ecoava por todos os recantos da Ilha. Definiu a regra para o ócio e para o lazer, impondo-o relativamente ao encontro do ritual de evocação dos santos e dos passos mais significativos da intromissão do ritual religioso na vivência e quotidiano. É o preceito religioso de que o domingo é “o dia do Senhor” que implica esta paragem semanal, mas que impõe a obrigação de longas caminhadas do seu local de assentamento até às igrejas e capelas para que o ritual seja cumprido. Depois, serão as festas dos oragos a definir outras paragens, quase sempre na época estival, após as colheitas, momentos em que o trabalho é menor e a natureza impõe uma pausa para descanso das terras à espera de novo momento de lavra e sementeira. Na cidade, por exemplo, as procissões dos Passos do Senhor, do Corpo de Deus e do Santíssimo Sacramento são consideradas um misto de manifestação de fé, espetáculo e diversão para todos os madeirenses e motivo de espanto para os forasteiros. Fora do controlo da Igreja, estavam os carnavais, tempos de grande folia e liberdade, aos quais apenas a política conseguiu impor regras. Os desfiles de Terça-feira de Carnaval ficaram célebres e transformaram-se num momento de grande animação da cidade. A isto juntam-se os saraus e bailes em diversos clubes e associações que atraíam as classes mais abastadas, na medida em que o Carnaval do povo era na rua. Tudo é uma imposição que amordaça o ilhéu a um quotidiano e a uma forma de vida, deixando pouco ou nenhum espaço para descobrir o ócio e o lazer. Na verdade, nesta sociedade pré-industrial, trabalho e lazer misturavam-se nas atividades de colheita e plantação. O trabalho fazia parte do ritmo e ciclos das estações e dos dias, sendo alterado por pausas para repouso, descanso, jogos, competições, danças e cerimónias, que, em momento algum, constituíram um tempo determinado para o lazer. São muitos os estrangeiros que testemunham esta situação. Quanto nos embrenhamos na Ilha, no sentido de estabelecer os ritmos que pautaram o lazer, a primeira ideia que importa reter é a da necessidade de diferenciar os ritmos que comandam o quotidiano nos espaços urbano e rural. No meio rural, tudo acontece de forma cadenciada e de acordo com os ritmos da própria natureza e da intervenção formal do homem, melhor dizendo da Igreja, através do calendário religioso. As estações do ano, as atividades do campo e as festividades religiosas moldam e expressam o quotidiano do homem rural. Já a cidade estava sujeita a outros fatores que determinavam um compasso distinto para o quotidiano. Para além disso, no caso do Funchal, pelo facto de ser uma cidade portuária, esses ritmos estarão, muitas vezes, alinhados de acordo com o movimento do porto. Em muitos aspetos, o porto comanda a vida do burgo. A cidade vive de olhos postos nele e na linha do horizonte. Qualquer movimento que a retina alcançasse gerava, de imediato, um burburinho desusado nas ruas e no calhau. Em pouco tempo, as ruas da cidade ganhavam outra animação, com a chegada dos forasteiros e os residentes em permanente rodopio. O porto dominava quase por completo as expectativas dos funchalenses e das lojas comerciais que se anichavam nas proximidades da alfândega e do cais. São os barcos de comércio que movimentam o calhau e o cabrestante com a carga e descarga de produtos que se trocam por vinho ou outras riquezas da terra. São os navios das rotas coloniais, que ligam as capitais europeias às principais cidades das colónias respetivas, com passageiros em trânsito e turistas de temporada, que trazem o movimento e animação ao comércio e às ruas da cidade. São as esquadras militares que fazem aumentar as expectativas do negócio, nas lojas ou nas casas de diversão e ainda transportam a animação para as ruas, com demonstração ou desfile das suas fanfarras. São os navios de expedições científicas que fazem desembarcar cientistas sedentos de descobertas no campo da botânica e demais ciências e que por isso se embrenham, no pouco tempo de estadia, pelo interior da Ilha, em cavalgadas de descoberta dos segredos infindáveis que esta natureza, quase virgem, lhes reservava. Parece que todos eles alteram a pacatez do quotidiano do burgo e arredores. Na visão de muitos visitantes, a cidade acorda para um burburinho inusitado. As lojas de comércio, os cafés, os restaurantes, os hotéis abrem as suas portas para os receber e, muitas vezes, venerar. As casas das vilas e quintas arejam os seus quartos para receber os novos hóspedes. Os carreiros e quadrilhas de cavalos andam em permanente rodopio para poder satisfazer a demanda de serviço. É nesta altura que a animação se volta para os espaços interiores das quintas e vilas. Os salões de dança, os clubes e os casinos são os locais mais usuais para quebrar a monotonia e o tédio desta sociedade e daqueles que permanecem por longas temporadas. Desta forma, a presença destes navios e forasteiros trazia a vida ao burgo, dando novo colorido à cidade e aos arredores. Os salões de dança, os clubes e os casinos serão o meio mais usual de quebrar a chamada monotonia e o tédio. Tudo isto até que, na linha do horizonte, se vislumbre um outro navio com novidades, mais gentes e a tão desejada animação para o burgo. Será assim, para estes, o ritmo quotidiano de uma sociedade portuária como o Funchal. Contudo, para quem vivencia este quotidiano desde o momento que vê a luz do dia as impressões são distintas. O quotidiano não para, dia e noite. Apenas diminui o movimento de pessoas e viaturas. É certo que o Funchal se constituiu, desde o séc. XV, como uma cidade portuária. Abriu as portas do calhau às gentes e aos produtos de fora, franqueou as casas do burgo, das quintas e das vilas da encosta e fez construir altaneiras torres avista-navios e mirantes, com o propósito de alcançar o mais distante da linha do horizonte e de reencontrar, de novo, o barco que traz a mercadoria de que necessita, ou os porões vazios e disponíveis para o embarque do seu açúcar, vinho ou outro produto qualquer. Ao longo do processo histórico do espaço atlântico, apercebemo-nos que as ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e laboratórios da ciência. Os cientistas cruzaram-se com mercadores e seguiram as rotas delineadas pelos aventureiros e descobridores desde o séc. XV. Juntaram-se, depois, os turistas, que afluíram desde o séc. XVIII em busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta da sua natureza. A Madeira pode muito bem ser considerada uma das mais destacadas salas de visita do espaço atlântico, pois foi, desde os primórdios da ocupação europeia, um espaço aberto à presença quase assídua de forasteiros. A chamada hospitalidade madeirense, que muitas vezes se confunde com servilismo, é considerada uma constante da História que os aventureiros, marinheiros, mercadores, aristocratas, políticos, artistas, escritores e cientistas nunca se cansam de assinalar. Na verdade, na perspetiva de quem chega, todos os inusitados mimos podem ser considerados como hospitalidade, mas para quem está e tem de oferecer os seus préstimos e serviços é apenas uma questão de oportunidade e de sobrevivência. Os momentos de lazer, diversão ou ócio são definidos pelos acontecimentos, já programados anualmente, por força do calendário litúrgico (as festas do santos populares e dos oragos das freguesias, o Natal, o Carnaval e a Semana Santa), aos quais se juntam as efemérides relacionadas com alguma data significativa, como o nascimento, a morte e a aclamação dos monarcas, e, também, por força destas circunstâncias, algumas eventuais festividades ou acontecimentos que mobilizam toda a cidade e a Ilha. A visita do Rei D. Carlos, em 1901, foi um dos acontecimentos mobilizadores de toda a sociedade madeirense, dando azo a múltiplas manifestações populares com desfiles, espetáculos, bailes e banquetes associados a luminárias e decorações nas principais artérias próximas do cais da cidade. Todos, residentes e forasteiros, participaram a seu modo nestes eventos. Entretanto, entre 29 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923, celebraram-se as Festas do quinto centenário do descobrimento da Madeira, também com espetáculos, recitais, desfiles, desfiles, iluminações e decorações, jogos hípicos e desportivos, no Campo de Almirante Reis. Outro momento de grande interesse foi as Festas das Vindimas, celebradas em 1938 e 1940, no Campo de Almirante Reis, onde as tradições e cantares populares fizeram, pela primeira vez, parte do programa, por iniciativa de Carlos Maria dos Santos. Outros momentos aconteceram na Ilha que implicaram uma grande mobilização popular e, por isso, a quebra da rotina diária. Assim, entre fevereiro e maio de 1931, aconteceram as Revoltas da Farinha e da Madeira que atraíram multidões ao centro do Funchal, facilmente manipuladas para assaltos a moagens ou para “gritar vivas” ao novo Regime. As manifestações públicas, desde desfiles, procissões e fanfarras de música, estavam franqueadas a todos os presentes, na cidade e no meio rural, que, muitas vezes, vinham de propósito para assistir a tais eventos. Já os espetáculos, os bailes, as receções e banquetes estavam limitados a um grupo restrito da sociedade e aos forasteiros. O movimento desusado de passageiros, em trânsito e turistas, obrigou as autoridades a cuidar das ruas e praças da cidade, de forma a criar as condições de conforto adequadas a estes transeuntes. O calcetamento das ruas principais e, depois, a melhoria dos espaços públicos, como as Praças da Rainha (em frente ao Palácio de S. Lourenço), da Constituição (que posteriormente se tornou parte do espaço da Restauração) e da Académica (posteriormente Campo de Almirante Reis), criaram as condições espaciais para inúmeras manifestações de diversão. Alguns estrangeiros queixam-se do tédio permanente das estadias no Funchal, por falta de locais de diversão, pela má qualidade dos músicos e pela pouca variedade dos repositórios musicais. Disso se queixava, em 1853, Isabella de França: “Não posso dizer muito em louvor da música destes bailes, porque só há uma no Funchal e o público não fica mais bem servido do que noutro monopólio qualquer. Outra consequência é que, durante a temporada, se tocam sempre os mesmos números. São eles, como em toda a parte, uma ou outra quadrilha, por mera formalidade, e muitas polcas, valsas, mazurcas, etc. - tantas quanto possível” (FRANÇA, 1969, 173). Outros ainda, como Dennis Embleton, em 1882, apontavam a pouca veia musical dos madeirenses. Talvez por isso a presença de uma banda a bordo de um navio de passagem era motivo de interesse e curiosidade, providenciando-se a sua participação em bailes oficiais ou organizados pelos clubes. Em 1853, a banda de um barco americano foi convidada a atuar num baile no Palácio de S. Lourenço, como conta de novo Isabella de França: “Na mesma sala dos quadros tocava a banda do navio americano surto no porto e cujo comodoro tivera a gentileza de a ceder para aquela ocasião. A música, de que o instrumento mais importante era o bombo, devia soar bem no mar alto mas ensurdecia muito debaixo de um teto” (Id., Ibid., 203). A noite era um momento importante para o convívio e animação nas casas das principais famílias da Ilha e da comunidade britânica. Todos, nos seus solares apalaçados do espaço urbano ou quintas dos arredores da cidade, dispunham de amplos aposentos servidos com sala de jantar e de dança para muitos convidados. Entre estes, contavam-se sempre estrangeiros de diversas nacionalidades, que ocupavam o tempo de estadia na Ilha, pulando de festa em festa. Estes saraus eram marcados por grande animação de música e dança para servir os diversos convidados em que se incluíam sempre muitos forasteiros. Disso nos dá conta de novo Isabella de França: “A reunião não teve muita concorrência, mas incluiu várias nações. Havia uma dama russa, três ou quatro alemães, além de ingleses, franceses e portugueses. Depois do chá, houve música nacional, para nossa distração: machete primorosamente tocado, viola e cavaquinho (machete de seis cordas em vez de quatro, peculiar ao Porto). Estes instrumentos foram todos bem tangidos e harmonizaram-se na perfeição em músicas que lhes são próprias. Gostei bastante” (Id., Ibid., 182). O quadro dos espaços de lazer completava-se com os cafés e restaurantes, lojas comerciais e quiosques. Assim, de acordo com um roteiro de 1910, as ruas do Aljube e praças da Constituição e da Rainha reuniam o maior número de cafés, restaurantes e lojas de venda de artefactos da Ilha. A entrada da cidade era, assim, servida pelos cafés do Rio, Mónaco, Golden Gate e Restaurante Central, que estavam de portas abertas para receber todos os que desembarcavam no cais. Em muitos destes cafés e clubes (Ritz Café, Kit Cat, Theo’s Capitolio, Club Restauração, Club Inglês, Monte Stranger Club), a música ao vivo marcava presença para gáudio de forasteiros e de muitos residentes a quem estavam franqueadas as portas. Muitos dos hotéis da cidade ofereciam, igualmente, aos seus clientes animação musical com a organização de saraus dançantes animados por orquestra própria. Era este ambiente de animação que se oferecia, na déc. de 30, aos hóspedes e a alguns residentes, nos hotéis Savoy, Atlantic, Continental, Miramar e Golden Gate. Para além de toda esta animação de rua que acontecia de forma calendarizada ou eventual e que concentrava as atenções de todos, temos, ainda, que considerar aquela que acontecia em recintos fechados e que não permitia a entrada de todos. Neste caso, temos as representações dramáticas, os espetáculos, saraus dançantes e concertos de música. Durante muito tempo, as representações dramáticas foram públicas e abertas a todos, pois faziam-se nas igrejas e durante as procissões religiosas. A Misericórdia do Funchal celebrava o seu dia, a 1 de julho, com representações de comédias e autos retirados da Bíblia. O mesmo sucedia em muitas das igrejas e conventos da Ilha. Já o séc. XIX pode ser considerado o grande momento do teatro, do circo e da ópera. Surgiram novas casas de espetáculo que mantiveram uma atividade permanente, trazendo à Ilha personalidades de destaque do belo canto, concertos, récitas, festas de beneficência, circo e teatro. A aposta das autoridades foi sendo, no entanto, adiada e mantinha-se a insistente reclamação da imprensa e dos forasteiros pela falta de uma casa de espetáculos. O Funchal era uma cidade cosmopolita que fervilhava com forasteiros de passagem ou doentes em busca da cura para a tísica, como referimos anteriormente. Alguns lamentavam-se, mesmo assim, mencionando que as diversões eram poucas; a falta de teatro, de ópera ou de outras diversões europeias eram substituídas pelos passeios a pé ou de barco e pelos piqueniques. Perante isto, foi preocupação de vários governadores, desde José Silvestre Ribeiro, avançar com este projeto. Todavia, só na déc. de 80, a pertinácia de João da Câmara Leme venceu a inércia das autoridades centrais. Assim, em 25 de fevereiro de 1880, constituiu-se a Companhia Edificadora do Teatro Funchalense, mas a decisão da sua construção, por parte da Câmara, só ocorreu em 9 de fevereiro de 1882, tendo este aberto as suas portas ao espetáculo cinco anos depois com o nome de Teatro D. Maria Pia. Com a República, passou a ser chamado, em 1911, “Manuel de Arriaga”, mas, face à recusa do mesmo, ficou como “Teatro Funchalense” até à sua morte, em 1917. Já na déc. de 30, com Fernão Ornelas, presidente da Câmara do Funchal, passou para “Baltasar Dias”, como forma de homenagear o maior dramaturgo madeirense do séc. XVI. Os momentos mais destacados de representações teatrais, no Funchal, aconteceram nas décs. de 20 e de 30, tendo sido nesta última década que começaram as chamadas “Revistas” que deram muita animação à cidade. A partir dos anos 30, o Teatro passa a funcionar como uma sala regular de projeção de cinema. A arte cinematográfica havia vencido as artes dramáticas. Tudo aconteceu, em 1863, com o cosmorama universal, o antecedente do animatógrafo. Note-se que a primeira apresentação do animatógrafo ocorreu, na Madeira, em 1897. A partir dessa, outras experiências se seguiram com o cinema mudo, que foi ganhando a adesão do público. Os filmes eram exibidos a par de outros espetáculos musicais. Só a partir de 1907 ocorre o lançamento do cinema em termos comerciais. A sua popularidade levou à construção de pavilhões e novas salas de projeção que vieram juntar-se ao Teatro Municipal e ao Teatro Circo. No primeiro quartel do séc. XX, as sessões de cinema intercalam com os espetáculos de variedades, mas, paulatinamente, o fascínio do cinema acaba por conquistar o público. No primeiro quartel do séc. XX, o Funchal estava servido por diversos espaços para o cinema (Cine Jardim, Almirante Reis, Victoria, Pavilhão Paris, Sallão Central, Salão Ideal, Salão Teatro Variedades, Teatro Águia de Ouro, Teatro Canavial, Teatro Circo) que atraíam a atenção dos entusiastas da sétima arte, certamente um público urbano. Aos poucos, esta animação chegou ao meio rural, com a criação de casas de espetáculos: Teatro Gil Vicente em S. Vicente (1931), Salão Cultural de Câmara de Lobos (1931) e Cinema da Ponta de Sol (1932). A animação e o lazer encontraram novas formas de expressão para as elites locais. Os clubes de diversão e de recreio são uma realidade a partir da déc. de 30 do século XIX. Entre estes, destacaram-se o Clube União (1836-1879) e o Clube Funchalense (1839-1899). Este último ficou célebre pelos bailes e soirées, afirmando-se, ainda, como um dos principais espaços de receção aos visitantes. Algumas das homenagens prestadas a personalidades de passagem tinham lugar aí. Assim, em 1885, a Câmara do Funchal homenageou Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que estavam de visita à cidade, com um baile neste clube. Outros clubes animaram a cidade, como o Clube Recreio Musical (1900), Turt Club (1900), Sports Club (1910), Clube Republicano da Madeira (1911), Club Naval Madeirense (1917), Clube Recreio e Restauração, Novo Clube Renascença, Clube Funchalense, Commercial Rooms. Em todos, a animação e a diversão eram constantes. Mas quem afluía a estes espaços, muitas vezes, reservados? Quem teria condições materiais e tempo disponível, nesta época, para o ócio? Aos clubes e aos hotéis, juntam-se os casinos como locais privilegiados de diversão e de jogo. O Casino da Quinta Vigia (1895), sobranceiro ao porto, era um dos mais visitados e conhecidos pelos saraus dançantes que se faziam todos os dias. A música tinha uma expressão elitista, nos concertos à porta fechada, nos bailes dos casinos e nas quintas, e uma outra, popular, através de filarmónicas que desfilavam ou tocavam em espaços públicos para todos. A primeira banda de música surgiu, no Funchal, em 1850 e ficou conhecida como a Filarmónica dos Artistas Funchalenses. A segunda de que temos conhecimento foi a Filarmónica Recreio União Faialense, que surgiu, no Faial, em 1855. A déc. de 70 marca o incremento de novas bandas em toda a Ilha: Câmara de Lobos (1872), Calheta (1874), S. Jorge (1877), Camacha (1873) e Ribeira Brava (1875). O interesse por este tipo de música ganhou a adesão da população madeirense. Na cidade, os desfiles e os assaltos de Carnaval não dispensavam a sua presença, os domingos e os dias festivos contavam com exibições no passeio público e as tradicionais romarias ganharam mais animação. Deste modo, o período de finais do séc. XIX e princípios do seguinte é definido por um aumento do número de bandas em toda a Ilha. Neste período, assinalam-se mais no Funchal (1898, 1913, 1920, 1923, 1933), em Câmara de Lobos (1910), Calheta (1923), na Ponta do Pargo (1911), em Santana (1926), no Arco de São Jorge (1933), na Camacha (1887, 1922), na Ribeira Brava (1912) e no Campanário (1923). Desta forma, estamos perante uma significativa divulgação da cultura musical no espaço rural, fazendo com que o colorido sonoro das notas não se fique apenas pelo rajão, braguinha ou machete. As festas dos oragos das freguesias tornaram-se os principais palcos de atuação, não havendo festa sem um ou mais coretos que, à sua volta, acolhiam inúmeros populares de ouvido bem atento às novas marchas populares que o reportório das bandas ia revelando. Ao visitante de passagem ou de estadia temporária restavam, ainda, outras diversões. As atividades desportivas são assinaladas no decurso do séc. XIX e afirmam-se, de forma clara, na primeira metade do séc. XX, como a corrida de cavalos, o futebol, o ténis, o criquet e o bilhar. Este último foi o mais popular de todos e transformou-se numa das principais atrações dos clubes de receio da cidade. Por fim, para os mais destemidos, restava, ainda, a caça à codorniz, ao coelho, à galinhola e à perdiz, que tanto poderia ter lugar no Santo da Serra, no Caniçal, no Paul da Serra, ou no Porto Santo e nas Desertas. A prática de diversas modalidades desportivas começa por ser uma criação dos ingleses, para seu usufruto e dos seus hóspedes. Desta forma, em 1875, Harry Hinton está ligado à prática de futebol, na Camacha. O cricket foi, igualmente, uma modalidade de grande impacto, com dois grupos, The Madeira Cricket Club e Excelsior Madeira Cricket Club, de renome, onde se destacavam os ingleses. Outra modalidade de elite foi a esgrima, que atraia muitos praticantes e público à Quinta Pavão, Casino Victoria e Reid’s Hotel. Outra forma de prática desportiva, também de elite, prende-se com o automobilismo, no quadro das festas do fim do ano, entre 1935 e 1937. O Campo de Almirante Reis foi palco de diversos festivais desportivos: em 24 de fevereiro de 1911, teve lugar um para comemorar o fim da cholera morbus; entre os dias 7 e 8 de dezembro desse mesmo ano, realizaram-se os Jogos Olímpicos; a 27 de julho de 1924, conta-se um jogo de futebol entre os banqueiros e os doutores para angariar fundos para o Asilo de Mendicidade e os Órfãos do Funchal. A popularização da atividade desportiva acontece com a República. O futebol acabou por tornar-se na modalidade mais popular e naquela que cativava maior número de adeptos. Talvez tenha sido, de entre todas as modalidades, a mais democrática, por acolher, nas suas fileiras, gentes de diversos estratos sociais. O primeiro clube surgiu a 5 de novembro de 1909, sob a designação de Club Sport Madeira. Nas vésperas da República, foi criado o Clube Sport Marítimo (18 de setembro de 1910) e, depois, o Club Desportivo Nacional (8 de dezembro de 1910), União Futebol Club (1 de novembro de 1913) e o Sports Club Madeira (9 de junho de 1934). Desta forma, em 1925, desaparece o cricket como modalidade por falta de praticantes, mas o futebol havia já conquistado um lugar cimeiro na prática desportiva, fazendo do Campo de Almirante Reis o centro desta modalidade na Ilha. Não sabemos, porque não há estudos sobre a composição social dos dirigentes e dos atletas destes clubes, qual o grau de participação dos diversos estratos sociais, sendo, no entanto, certo que, aos poucos, tal desporto se transformou naquele que abrangeu um leque maior da sociedade de então. Na Madeira, a segunda metade do séc. XIX foi marcada por uma conjuntura difícil para as diversas classes socioprofissionais, mas foi o momento do despoletar de uma consciência das mesmas para o associativismo ou da busca de soluções que propiciassem a assistência e a proteção aos trabalhadores nos acidentes, na doença e na velhice. A tudo isto acresce o filantropismo social de ajuda aos mendigos, crianças e viúvas. Deste modo, a partir de meados da centúria, o mutualismo, o cooperativismo e o associativismo socioprofissional foram a solução capaz de minorar as dificuldades com que se debatia a população. Às associações de classe, juntaram-se as filantrópicas e as de diversão. Foi, então, nessa altura que se generalizou a criação de clubes destinados ao recreio e à distração dos sócios. Constituíam uma forma de quebrar a monotonia do quotidiano e enquadravam-se no espírito de associativismo que marcou o século. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber, nas suas instalações, as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses, entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Novo Clube Restauração (1908), Clube Washington (1882), Clube dos Estrangeiros (1897), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Turf Club (1900), Clube Internacional do Funchal (1896), Stranger's Club-Casino Pavão (1906), The Sports Club (1901), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). De entre todas as atividades de animação do burgo, aquela que podemos considerar mais elitista surge a partir de 1880 com as esquadras de navegação terrestre, uma novidade na diversão que veio animar as ruas da cidade e as amplas quintas dos arredores do Funchal. Estas esquadras acabaram por monopolizar o lazer dos proprietários das principais quintas. Organizaram-se esquadras militares, fardadas a rigor, que, em momentos determinados, realizavam assaltos entre si. Mas estas eram formas de entretenimento das chamadas gentes da sociedade, os boémios de dominó dos subúrbios do Funchal, que viviam em quintas. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois, desde a déc. de 40 da referida centúria, sucediam este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base as disputas entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, sobranceiras ou não, ao mar ergueram-se os mastros engalanados com “bandeirinhas” e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados, em atos públicos, fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé, por vezes ao longo da costa, e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos, em 1901, aquando da visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra conduziram ao refrear da iniciativa das esquadras até ao seu desaparecimento. Acabou o aparato de rua e o movimento, em torno dos mastros e miradouros, transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este caráter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e os jogos de fortuna e azar que ajudavam a passar os fins de tarde e a noite. A Nau sem Rumo, cuja data de aparecimento não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo a mesa como palco e o bacalhau como o inseparável amigo. Não dispomos de documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau Sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a Associação existia há muito tempo. Note-se que era costume que a data dos estatutos oficiais não coincidisse com o início de funcionamento. Senão vejamos: o Clube União foi fundado em 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral em 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil em 7 de fevereiro de 1879. O Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876 e só foram aprovados pelo Governador Civil em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a Nau Sem Rumo. A História testemunha que o grupo inicial de boémios que, sem rumo, deambulavam pelos bancos da avenida Arriaga rapidamente encontrou a Nau. Durante muito tempo, esta não teve poiso certo, nem a adequada posição de relevo na vida boémia madeirense. Em 1945, parece ter-se encontrado o rumo. A uma sede, juntou-se um novo fulgor para a Nau que a projetaria para uma posição de relevo na sociedade funchalense dos anos 50 e 60, tendo os momentos áureos da tertúlia gastronómica ficado como a única memória herdeira das esquadras de navegação terrestre. Oficialmente, a data de fundação foi atribuída à data do primeiro registo da associação, a 27 de maio de 1935, tal como poderá constatar-se pelo regulamento de 1950, ficando o dia 27 de maio como o «Dia do Aniversário da Nau Sem Rumo». Contudo, a Nau continuou a manter o espírito errante que esteve na sua origem. A primeira sede foi no edifício do posterior Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com “os Artistas”, passando, depois, em 1928, com o Almirante Dr. Agostinho de Freitas, para a Rua da Carreira. A partir daqui “vagueou” por algumas ruas da cidade: Rua dos Murças, Travessa do Nascimento e, finalmente, a Rua 31 de Janeiro, onde “varou”, definitivamente, em 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede à Rua 31 de Janeiro, onde permaneceu, em prédio construído por Raul Câmara em 1940. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão de Ornelas, Presidente da Câmara do Funchal, Dr. Félix Barreira, Secretário-geral do Governo Civil, Comandante João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do Porto, Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, Vice-presidente da Junta Geral, Dr. Humberto Pereira da Costa, Diretor da Alfândega e Fernando Rebelo Andrade, Diretor da PIDE. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Sendo esta uma associação de boémia masculina, só eram admitidos candidatos do sexo masculino. As mulheres tinham entrada apenas como convidadas ou na condição de sócios honorários. Esta categoria estava reservada a individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à Nau Sem Rumo, adquiriam esta possibilidade, mediante proposta do Almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa.   Festas e arraiais Os arraiais são a componente mais evidente das festas e romarias madeirenses: Nossa Senhora do Monte, Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, Nossa Senhora do Loreto, Nossa Senhora do Rosário, Senhor dos Milagres, entre muitos outros. A devoção popularizou-se ao longo dos últimos cinco séculos, de modo que estas romarias são momentos de grande movimentação das gentes, primeiro a pé, pelos caminhos íngremes que ligavam a Ilha de norte a sul. Para apoio destes romeiros, abriram-se caminhos e construíram-se casas de romeiros junto dos templos de devoção. Havia, entre todos, um espírito de solidariedade para com estes. O bispo, nas suas visitações, recomendava ao município a recuperação dos caminhos e proibia os pastores de manter o gado na serra sobranceira. Esta é, pelo menos, a ideia que retemos da romaria da Ponta Delgada. Os moradores acolhiam os romeiros, dando-lhes, por vezes, guarida. Depois, com o avanço da rede de estradas, a partir da déc. de 40, estes deram lugar aos excursionistas e às filas intermináveis de “horários” e “abelhinhas”, como eram designados alguns transportes públicos. A abertura de estradas facilitou o contacto e acabou com o isolamento, mas, em contrapartida, veio retirar o bucolismo aos romeiros, que calcorreavam a Ilha de norte a sul para honrar o santo de sua devoção ou para retribuir a graça concedida. Não mais se ouviu ecoar as cantorias dos romeiros. O rajão, o machete e as castanholas emudecerem e, nas serras da Encumeada e do Paul, apenas se ouvirá o murmúrio do vento. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros, como é o caso do folclore, que preservou muitos dos seus despiques e cantorias. O folguedo ou arraial no espaço vizinho da igreja/capela do orago é efémero. Dura 48 horas. Mas, para que isso aconteça, há todo um trabalho engenhoso e arte na criação das flores ou dos tapetes para a procissão. Os enfeites, de alegra-campo e loureiro, contrastam com o garrido das flores e o vermelho da Cruz da Ordem de Cristo que flutua nas bandeiras. O progresso trouxe a ambiência feérica da luz e da cor, fazendo-os prolongar pela noite fora. A luz elétrica, a partir da déc. de 40, veio revolucionar o arraial. Para além da oferta de um variado conjunto de barracas de comes e bebes, onde se destaca a espetada, encontramos aí a feira para venda dos produtos da terra ou de fora. Este é um momento de encontro, devoção e partilha da riqueza arrancada à terra. A festa do orago era um momento importante na vida das gentes da localidade. Ao divertimento e devoção juntam-se os contratos, negócios e, mesmo, as aventuras. Afinal, o arraial era um momento único em que todos se encontravam irmanados pela devoção ao santo padroeiro. A romaria de Ponta Delgada assume especial significado. Primeiro, porque o lugar se situa lá longe, na encosta norte, obrigando o madeirense ao grande esforço de calcorrear a Ilha para expressão da sua devoção. Depois, pela dimensão que assumiu em toda a Ilha, uma vez que, no princípio de setembro, todos estavam virados para o norte, por serem aí as terras das vindimas e onde estas movimentavam mais pessoas. As longas caminhadas por entre as montanhas reforçam o caráter lúdico destas manifestações e apresentavam-se como momentos de grande animação, de encontro de gentes, de troca de amizades. A devoção ao senhor Bom Jesus começou por ser particular e resultou da origem de um dos principais povoadores do lugar de Ponta Delgada. Foi Manuel Afonso Sanha, oriundo de Braga, quem para ali levou o culto ao Senhor Bom Jesus, ao construir, em 1470, nas suas terras, uma capela da mesma invocação. O culto ao senhor Bom Jesus espalhou-se rapidamente por toda a Ilha. A sua invocação em momentos de dificuldade e a necessidade de agradecer a benesse alcançada através do "pagamento da promessa" conduziram paulatinamente à sua afirmação. Assim, nos sécs. XVI e XVII, é manifesta a importância desta romaria no calendário religioso da Ilha, levando o bispo a recomendar medidas no sentido de reparar os caminhos que de toda a Ilha davam acesso ao local de Ponta Delgada. Na Madeira, o calendário das festas é estabelecido de acordo com o ano litúrgico e agrícola, sendo no primeiro que esta realidade tem a sua máxima expressão. Enquanto as primeiras celebram os principais momentos da vida da igreja e dos santos, as segundas demarcam o período das colheitas de um determinado produto, que cativava a vinda das gentes da Ilha ou da localidade em que têm lugar. As últimas são de criação recente, tendo algumas surgido nas duas últimas décadas do séc. XX, como as festas da cereja, vindimas, do pero e da maçã, enquanto as primeiras remontam aos primórdios da ocupação da zona. Os iniciais povoadores da Madeira, maioritariamente do Norte de Portugal, trouxeram impregnadas no corpo as tradições religiosas e festividades do calendário litúrgico. Foi desta forma que se delinearam os arraiais e romarias, que preenchem o tempo de lazer ao madeirense, expressos na afirmação dos santos populares (S.to António, S. João, S. Pedro) e importantes romarias (Bom Jesus, Braga/Ponta Delgada; Nossa Senhora do Loreto, Itália/Arco da Calheta; Nossa Senhora dos Remédios, Lamego/Quinta Grande), a que se vieram juntar as festividades genuinamente madeirenses (Nossa Senhora do Monte, Senhor dos Milagres, Nossa Senhora do Rosário). Estas últimas emergiram, de um modo geral, envoltas num misto de lenda e fervor religioso, o que contribuiu para a sua perpetuação e transmissão às gerações vindouras. Para o madeirense, o momento festivo mais importante e de maior significado é sem dúvida o Natal, que se demarca como o ponto de chegada e partida do calendário litúrgico. A prova disso está patente na afirmação de que o Natal madeirense é a Festa. Num lugar secundário, surgem as restantes festividades que têm lugar ao longo do ano, com particular incidência na época estival; note-se que a sua maioria tem lugar nos meses de junho a setembro. O clima favorece essa concentração na época estival e era preocupação da Igreja concretizá-las antes das primeiras chuvas, de modo a que fosse numeroso o grupo de romeiros. Assim sucedia, em meados do séc. XIX, com a romaria do Santo da Serra, deslocada da data habitual por causa do medo das primeiras chuvas de setembro. Mas aqui é necessário distinguir as romarias das demais festas aos oragos. Enquanto estas últimas assumem uma dimensão vivencial restrita à localidade, as demais são vividas por toda a população. Há um misto de devoção na igreja e os folguedos ou arraial, no espaço circunvizinho. As promessas, com todo o seu ritual martirológico, a ação intercessora junto do santo são os elementos devedores desta manifestação. A romaria, para além do tradicional pagamento da promessa ao patrono, expressa em valor pecuniário ou numa homenagem fervorosa, é um momento decisivo para o encontro das gentes da Ilha, aproveitado por muitos para o estabelecimento de contratos, troca e venda de produtos e, por vezes, uma fugaz aventura amorosa. Deste modo, as principais romarias da Ilha demarcavam o ritmo de vida dos nossos avoengos e atuaram como mecanismo unificador da vivência religiosa e do quotidiano, dada a dispersão populacional, resultante da orografia da Ilha. Em face disto, para além da sua importância na expressão da religiosidade do madeirense, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade que conduzira a definição uniformizadora deste modo de ser que carateriza o madeirense. Estas romarias tinham lugar na época estival, após as colheitas da cana-de-açúcar, do cereal ou do vinho, o que permitia essa ventura, por terra e por mar, ao encontro do orago protetor. Estas festividades estavam devidamente calendarizadas: em agosto era a festa de Nossa Senhora do Monte; em setembro, Nossa Senhora do Loreto, no Arco da Calheta, e o Bom Jesus da Ponta Delgada; e, em outubro, encerravam-se as romarias, com o Senhor dos Milagres, em Machico. Para além das casas de acolhimento, conhecidas como as casas dos romeiros, estas manifestações deixaram marcas na toponímia da Ilha, estando os caminhos dos romeiros, o curral dos romeiros, a atestar essa frequência. As dificuldades de comunicação, nomeadamente na vertente Norte da Ilha, não impediram que os romeiros afluíssem em grande número às festividades do Senhor Bom Jesus. Desde o séc. XVII que este santuário ao norte ficou a marcar a nova aposta da reforma tridentina, ganhando uma dimensão particular na religiosidade do madeirense. Deste modo, no primeiro domingo de setembro, a pequena povoação de Ponta Delgada recebia inúmeros romeiros do sul e do norte, que para ai se dirigiam a cumprir as suas promessas. A sua passagem era anunciada pelos cantares e músicas apropriadas que davam ao Norte da Ilha uma animação inaudita. A própria igreja tomou algumas medidas no sentido de facilitar esse movimento, aconselhando as autoridades municipais sobre os necessários cuidados na manutenção dos caminhos ou punindo os proprietários de gado com excomunhão, pois, conforme refere o bispo, em 1706, sucediam-se, por vezes, desastres mortais, devido à queda de pedras provocadas pelas cabras que pastavam nos precipícios sobranceiros aos caminhos do lado de São Vicente e Boaventura. A partir da segunda metade do séc. XIX, o emigrante regressado do Havaí, Demerara, Brasil, Venezuela, África do Sul e Austrália reforça a animação destas festividades, dando-lhe uma nova dimensão; este era o festeiro que, reconhecendo a proteção do santo, lhe prestava a sua farta homenagem. Estas passaram a ser o momento para a visita aos familiares ou o regresso dessa promissora aventura; a animação festiva passou para o exclusivo controlo do emigrante, dependendo o seu brilhantismo da disponibilidade financeira: é o emigrante quem paga as despesas dessa realização, assumindo, aqui, este ato uma forma de devoção ao santo patrono do sucesso alcançado. A ostentação da riqueza amealhada manifesta-se, por vezes, no número de lâmpadas acesas, no fogo queimado, nas bandas de música e, mais recentemente, nos conjuntos de ritmos modernos. Na verdade, a realidade passou a ser outra e ao madeirense são oferecidas inúmeras formas de diversão que colocam em plano secundário as festas e romarias: primeiro, a rádio (1948), depois a televisão (1972) e as hodiernas formas de diversão urbana com as discotecas (1973). Uma breve incursão ao processo histórico da Ilha revela-nos que os nossos avós não reservavam a sua alegria apenas para as festividades religiosas. O madeirense, na sua labuta diária, soube manter-se em perfeita harmonia com o meio que o rodeava, expressando uma natural alegria, patente nas danças e cantares que animaram o seu quotidiano. Todos os momentos eram aproveitados, sendo o árduo trabalho amenizando com os diversos cantares – canção da erva, da ceifa, dos borracheiros, entre outras – repetidos nas romarias. O ritmo desses cantares foi trazido pelo batuque dos escravos africanos que vieram para a Ilha, desde meados do séc. XV, para o trabalho na safra do açúcar. Muitas destas manifestações surgem na Ilha com os primeiros colonos, resultando a sua variedade da sua múltipla origem. Dominante é, porém, a presença das manifestações rituais do norte de Portugal, local de origem do maior grupo de povoadores: as danças e os nomes das principais romarias têm aí a sua origem. Assim sucedeu com a devoção do Senhor Bom Jesus e com a Nossa Senhora dos Remédios que se implantou na Quinta Grande. A par disso, os santos populares mantêm a tradição lusíada, o mesmo acontecendo com as demais festividades que demarcam o calendário litúrgico: Corpus Christi e Natal. Não é fácil definir a data precisa em que as principais romarias madeirenses tiveram o seu início, pois faltam-nos comprovativos. As romarias que chegaram ao séc. XXI – Monte, Loreto, Ponta Delgada, Rosário e Machico – são muito antigas, ligando-se aos principais povoadores. Os venerados são os seus principais intercessores. Marcadamente rurais, as romarias desviavam os romeiros do burburinho urbano e conduziam-nos ao encontro da natureza. Eram elas que estabeleciam o ritmo de vida e quotidiano das gentes, atuando como elos de ligação e convergência das diversas freguesias. Neste contexto, alguns dos contratos tinham como prazo a data dos santos populares ou as mais destacadas romarias. Note-se que o S. João foi, durante o séc. XV, a data de início dos mandatos no município funchalense, mantendo-se a tradição nos Açores até época tardia. Gaspar Frutuoso refere, a este propósito, que em São Roque do Faial se realizava, a 8 de setembro, uma das mais importantes romarias da Ilha, na qual, para além da imprescindível devoção e folgares, se aproveitava o momento para a troca de produtos numa feira improvisada. Aliás, esta tradição de associar as feiras e mercados às romarias não é novidade, tendo sido trazida pelos colonos oriundos do norte de Portugal, onde eram frequentes. Em 1853, Isabella de França descreve-nos, de forma sucinta, a romaria de Santo António da Serra através da animação e devoção do arraial e da presença dos romeiros, que descreve como uma "palhaçada". Deste modo, as romarias, para além da dimensão religiosa, destacam-se como momentos de afirmação de uma excessiva sociabilidade, definidora do modo de ser que define o madeirense. Com o tempo, algumas das romarias, como esta de São Roque do Faial, ficaram esquecidas e outras apareceram a disputar a sua posição, pois apenas as do Monte, Ponta Delgada, Loreto e Machico continuaram a pautar o ritmo das festividades e devoção madeirenses. A romaria de Nossa Senhora do Monte, a 15 de agosto, foi, sem sombra de dúvida, a maior festividade da Ilha, atraindo a devoção de todos os madeirenses, mercê da eficaz proteção que lhes deu quando estes a solicitaram. Ao longo do séc. XVII, o madeirense colocou-se sob a sua proteção, implorando a sua intercessão para fazer cessar a seca (1627 a 1695) ou a peste (1686). Em 1803, em face da aluvião que assolou a cidade, recorreu-se mais uma vez à sua proteção, passando, a partir de então, à condição de padroeira menor da cidade. Tais condições favoreceram a perpetuação e afirmação do seu culto e a sua passagem à diáspora madeirense: desde o planalto de Cubango, em Angola (1885), às ilhas do Havaí (1902), passando, mais tarde, pelos EUA, África do Sul e Austrália, esta festa manteve-se como um dos poucos elos à terra de origem. Em síntese, o madeirense fez transbordar a sua alegria nessas manifestações festivas, distribuídas ao longo do ano. O período estival era definido como o momento de maior atividade no campo e na cidade; era a época das colheitas que ocupava todos sem exceção e que quase paralisava o burgo. Esta situação é muito antiga e tem origem no período de interrupção das atividades administrativas e judiciais, para que as gentes se pudessem dedicar inteiramente às colheitas. Já nas Sete Partidas de Afonso X de Castela e, depois, nas Ordenações Régias, ficou estabelecida a paragem por um período de dois meses. Os vereadores abandonavam a vereação e iam para o campo fazer as suas colheitas; na realidade, toda a animação estava aí, onde se concluía a safra do açúcar e se iniciavam as ceifas que depois davam lugar às vindimas. O verão era sinónimo de redobradas canseiras, para uns, e mudança de atividade, para outros. Todavia, este movimento apresentava ocasiões propícias ao lazer; era nessa época que se realizavam as tradicionais romarias, cujo roteiro coincidia, amiudadas vezes, com o processo de transmigração da mão de obra braçal para as colheitas. Essas atividades agrícolas eram sempre acompanhadas de folias, com ativa participação dos senhores, escravos e jornaleiros. Lembremo-nos que inúmeras manifestações do nosso folclore têm aí as suas origens. Era também no período estival que tinham lugar as festividades mais representativas que se realizavam na Ilha: primeiro, a procissão do Corpus Christi no Funchal, com participação das gentes de toda a Ilha, e, depois, as romarias das freguesias rurais. Estas últimas eram, segundo Isabella de França “o único divertimento da gente do campo” (FRANÇA, 1969, 132). A sua realização estava ordenada de acordo com o calendário religioso e agrícola, estabelecendo um roteiro em toda a Ilha; primeiro as da vertente sul a culminar a safra do açúcar e o período da ceifa, depois as do norte a concluir as vindimas. A dança e o canto eram os aspetos mais fulgurantes destas manifestações lúdicas dos dias santificados e dos oragos, únicos momentos de repouso para as gentes da Ilha. Era a Igreja quem estabelecia os momentos de lazer e de trabalho, sendo os primeiros definidos como os domingos e dias santificados. Nestes dias, livres e escravos estavam libertos do trabalho e disponíveis para orar a Deus. Apenas havia permissão para se fazer um conjunto limitado de ofícios e de tarefas. Ao madeirense, restavam ainda as festas civis, consideradas no segundo caso, estabelecidas pelo capitão e demais autoridades da Ilha. Comemorava-se o nascimento de um príncipe, a coroação de um rei ou o regresso à Ilha do capitão. Estas eram as festividades profanas, de raiz urbana sem data estabelecida, que consistiam em jogos de canas, touradas e lutas corpo a corpo em que participavam gentes de toda a Ilha. Mas, aos poucos, essa tradição foi-se perdendo e essas manifestações deram lugar a outras, como o teatro e a ópera. Apenas o clero tinha a possibilidade de passar um período de férias. Tal como o referem as constituições sinodais do Funchal de 1578, o beneficiado ou ecónomo tinha direito a quarenta dias de ausência aos ofícios para sua "recreação", enquanto o bispo poderia ausentar-se por dois meses do seu episcopado. Esta situação foi estabelecida nos primórdios do catolicismo, tendo sido confirmada pela sessão XXIV do Concílio de Trento.   Férias e descanso Um outro aspeto a ter em conta na diferença entre as férias desses tempos e aquelas que hoje conhecemos tem a ver com a exposição do corpo desnudo que não era admitida nesta sociedade; a indumentária não serve apenas pela moda, mas também pela necessidade de cobrir o mais possível o corpo. Às interdições estabelecidas pela Igreja relativamente à exposição e higiene do corpo vieram juntar-se as posturas camarárias proibitivas dos banhos na praia e ribeiras do Funchal, Machico e Porto Santo; de acordo com a postura da Câmara do Funchal de 26 de julho de 1839, estava proibido aos funchalenses o banho de mar nus, só se permitindo em calças ou camisa até abaixo do joelho. Os seus infratores sujeitavam-se a uma pesada coima de mil réis. Mais tarde, ao invés, tornou-se moda o topless e as praias de nudismo. Diz-se que os primeiros que se banharam nas águas límpidas da Ilha foram João Gonçalves Zarco e seus companheiros quando, em 1420, se refugiaram nas águas refrescantes do mar, para fugir ao calor infernal do incêndio que se ateou na floresta da Ilha. Mas o banho foi a preceito, com todas as vestes que traziam no corpo. Já em 1850 se referia, nos anais do município da Ilha do Porto Santo, que as suas praias eram propícias aos banhos de mar, mas que não atraiam forasteiros por falta de condições, estando os naturais limitados pelas posturas. Na realidade, a sua revelação como uma estância balnear é do nosso século. Num texto de Giulio Landi, de cerca de 1530, pode ler-se que os naturais do Norte da Ilha da Madeira tinham por hábito “ir à praia” (ARAGÃO, 1981, 84). Não sabemos se com isso o autor se referia ao ir a banhos ou a um mero passeio para desfrutar da aragem marinha e contemplar o imenso mar.   Assistência e saúde Uma das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de serviços de assistência aos cristãos e cativos. Para isso, existia um conjunto variado de instituições que foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos populacionais. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem. Por outro lado, os problemas resultantes da fome, mendicidade e peste levaram à criação de inúmeras instituições de beneficência por iniciativa de particulares, que depois passaram para a alçada da igreja. Na Madeira, é de referir o empenho de Zargo em fazer construir, em 1454, um hospital junto à capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A isto, juntam-se referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo um na Rua de Boa Viagem. A partir de 1485, com a bula de Inocêncio VIII Iniunctum Nobis, a estrutura assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito, a coroa criou, em 1498, o hospital de Lisboa, que veio a congregar todos os menores aí existentes. O mesmo espírito foi seguido em todas as vilas do reino, por autorização papal de 23 de outubro de 1501, expresso na carta régia de 4 de maio de 1507. De acordo com as ordenações régias, cabia aos bispos a sua superintendência. É neste contexto que surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira, existiu, primeiro no Funchal (1507) e depois em Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo, o hospital da Misericórdia. A função assistencial completa-se com as confrarias, autênticas associações de solidariedade social e espiritual, sendo os irmãos recrutados pela sua situação socioprofissional ou pela sua devoção ao santo patrono. É de salientar o caso da dos pescadores, que, na Ilha, não tiveram o mesmo patrono, e a dos mesteres, como a de S. Jorge (1562) e de S. Miguel, de S. Crispim e de S. Crispiniano (1572). Realçamos, ainda, as confrarias ligadas às misericórdias, onde os irmãos tinham assegurado a sua assistência hospitalar e espiritual. O Funchal, cidade portuária, estava aberta ao contágio das doenças. Deste modo, para precaver a urbe desta infeção estabeleceram-se espaços onde as mercadorias e passageiros suspeitos eram mantidos em quarentena. Este espaço situava-se, primeiro, em Santa Catarina, tendo sido depois transferido para a outra ponta da cidade, no chamado Lazareto. A vereação da cidade estava atenta aos anúncios de peste nas principais áreas de ligação à Ilha. Porém, isto era considerado pouco numa terra onde a importação de géneros é fundamental, sendo, ao mesmo tempo, a principal via de transmissão de doenças contagiosas e dermatológicas. Deste modo, em 1787, o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho avançou com a casa da saúde, com o objetivo de vistoriar os navios entrados e os produtos alimentares de importação à venda no mercado local. As condições de vida no Norte da Ilha não eram diferentes das do resto do seu território, sendo a sua evolução igualmente pautada por um significativo progresso. Uma das medidas mais importantes a ter em conta nesta época prendia-se com a prevenção. As condições sanitárias das habitações e, acima de tudo, dos aglomerados como a Vila não eram as melhores. Neste último caso, a época invernosa tornava as ruas da Vila num palco de imundice, sendo constante o apelo à limpeza das regadeiras e ao seu calcetamento. As melhorias significativas nas condições de vida dos munícipes são apenas visíveis a partir da déc. de 30. A cobertura de palha cede lugar ao barro e adiciona-se, nas proximidades, um novo compartimento, que depois passará a fazer parte dos planos da casa. Note-se que, quer na construção da retrete quer do palheiro para gado, o médico municipal deveria informar da sua conveniência e localização. A Câmara assumiu o compromisso de pagar todas as despesas com os doentes pobres, que incluíam os medicamentos, o transporte ao hospital da misericórdia no Funchal e a diária do período de internamento. Para que isso acontecesse, o doente deveria ser acompanhado de um atestado de pobreza passado pela Câmara. A vereação sentia-se obrigada a apoiar as famílias pobres através de subsídios fixos ou eventuais. Noutras circunstâncias, as famílias pobres eram acudidas com milho ou então géneros alimentícios de mercearia. Às crianças reservava o município dedicados apoios. Primeiro, com o apoio e acolhimento indispensáveis à sobrevivência das crianças expostas. Depois, no apoio às mães solteiras ou àquelas que não tinham posses para alimentação dos filhos recém-nascidos. As crianças expostas surgem neste período nas mais diversas circunstâncias. Ao município, mediante verba concedida pelo governo civil, estava atribuído o encargo de assegurar a sobrevivência destas crianças. Após o batismo, eram entregues a uma ama, sendo conhecidas pelo número de registo no livro de expostos. Nem todas as crianças que nasciam no seio de famílias constituídas tinha assegurada a sua sobrevivência. Ameaçada pelo estado de miséria, tal sobrevivência só poderia ser assegurada mediante um apoio do município para a lactação. Este subsídio poderia ir até dois anos e contemplava os filhos de mães solteiras ou outras que viviam em estado de pobreza ou a quem tinha secado o leite. Este subsídio era atribuído caso a caso mediante requerimento dos interessados à vereação. A Vereação estava responsável pela gerência deste apoio, podendo retirá-lo a quem não oferecesse as condições exigidas.     Alberto Vieira (atualizado a 15.12.2017)

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