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indústrias do turismo

O alerta oficial para o turismo e todas as futuras indústrias relacionadas com o mesmo ficou a dever-se ao Gov. José Silvestre Ribeiro (1807-1891), que, a partir de 1847, desenvolveu uma intensa pressão sobre toda a sociedade insular nesse sentido. O governador implantou, inclusivamente, a iluminação pública no centro da cidade, no que envolveu a Câmara Municipal e os comerciantes, tentou criar normas de relação cívica “com os inúmeros estrangeiros que nos visitam”, propôs a edição de “memórias históricas” (MENESES, 1849, I, 607-608), no âmbito dos anais municipais e chegou mesmo a propor a sua publicação em várias línguas, e, no palácio de S. Lourenço, em 1850, realizou uma exposição industrial que foi a base da representação madeirense na célebre Exposição Universal de Londres do ano seguinte. Datam dessa época o desenvolvimento dos serviços de instalação e transporte dos forasteiros, que deixam de alugar prioritariamente as antigas quintas madeirenses para optarem por instalações hoteleiras, e dos transportes locais, como os carros de cesto do Monte e os carros de bois, e o lançamento das indústrias de artesanato, como bordados, vimes e embutidos, que atingiram depois padrões de certa qualidade na Madeira, dada a sua ligação à indústria geral do turismo. Com profundas raízes na cultura e nas tradições locais, o seu aproveitamento económico, com o aumento dos índices de turismo na Ilha, apresentou aspetos totalmente novos e até inesperados, como é o caso dos bordados, cujo peso económico chegou, pontualmente, a ultrapassar o dos vinhos. A indústria dos bordados na Madeira, enquanto indústria, foi introduzida pelos Ingleses; não que não houvesse já trabalhos de bordado, mas foi com os comerciantes ingleses que este trabalho se adaptou progressivamente aos vários mercados internacionais. As primeiras referências que temos na Ilha à sua existência datam de 1849, quando o futuro conselheiro José Silvestre Ribeiro os refere como “produtos e artefactos de algum merecimento”, numa nota exarada do Governo Civil do Funchal em 23 de novembro desse ano, depois transcrita num periódico continental (Revista Univesal Lisbonense, 1849, 133-134). Com a crise de 1847, o célebre “ano da fome”, o Gov. José Silvestre Ribeiro reativara a anterior “Comissão Central de Auxílio”, que funcionara entre 1843 e 1844. A ideia foi lançada na “Assembleia-geral” realizada a 4 de fevereiro desse ano de 1847, no palácio de S. Lourenço, reunindo os elementos do Conselho do Distrito, e então alargada a outras autoridades. Foi nessa assembleia que se propôs a reativação da antiga “Comissão de Auxílio”, o que se efetivou no dia 6 seguinte, com o título de “Comissão de Socorros Públicos”, e que se constituiu ainda comissões concelhias. A comissão central foi constituída pelo prelado D. José Xavier Cerveira e Sousa (1810-1862), como presidente, Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcelos, John H. Holloway, William Grant e João Francisco Florença, como vogais, e, como secretário, Joseph Selby, então vice-cônsul inglês no Funchal e depois também cônsul da Dinamarca (VIEIRA e RIBEIRO, 1989, 39). Os fundos recolhidos por esta comissão haveriam de ser investidos em obras públicas e, também, no artesanato dos bordados, reconhecendo o trabalho já efetuado por algumas mulheres madeirenses e que as mesmas, através do seu trabalho, poderiam contribuir para o sustento dos seus agregados familiares. Em 1850, na exposição industrial de S. Lourenço, já há referências à presença de panos e de bordados e, para a célebre Exposição Universal de Londres, na representação madeirense dos objetos manufaturados, seguiram igualmente panos de linho, guardanapos, rendas de linho, xaile de meia e obras de croché, demonstrando a visibilidade dessa nova atividade. No entanto, na exposição seguinte, de 1853, descrita, embora sumariamente, por Isabella de França, que a visitou a 29 de abril, a atenta escritora não refere a presença de bordados, limitando-se à descrição das giestas em flor que decoravam os currais, de fetos muito bonitos, etc. A sua apresentação como produto para venda aparece na exposição industrial do Funchal de 1850, e, no ano seguinte, alguns bordados eram expostos em Londres, na Exposição Universal, embora a sua divulgação só ocorra a partir de 1854 e 1856, com as “meninas” Phelps, filhas de Joseph Phelps (1791-1876), antigo presidente da Associação de Comerciantes do Funchal, e de Elisabeth Dickinson (1796-1876). Na correspondência e nos diários das irmãs Mary Phelps (1822-1893) e Bella Phelps (1820-1893) não existe, no entanto, qualquer referência a esse respeito, nem ao ensino de bordados, nem à sua comercialização, como a tradição inglesa tem transmitido. O comércio de bordados seria seguido pelos irmãos Robert e Franck Wilkinson, também Ingleses, estabelecidos na Madeira a partir de 1862 – nesse ano, segundo a “Estatística Industrial do Distrito do Funchal”, de Francisco de Paula de Campos e Oliveira, existiriam mais de 1000 bordadeiras na Madeira, rendendo a venda anual de bordados cerca de 100 contos de réis (SILVA e MENESES, 1998, I, 162). Ao mesmo tempo, diariamente consumiam-se em bordados cerca de 15 kg de linhas. No entanto, a exportação registada pela Alfândega era somente de 6 a 7 contos de réis, pelo que a sua saída se dava, essencialmente, por meio dos turistas, que os transportavam na bagagem, o que justifica que este assunto se torne, depois, um cavalo de batalha da Associação Comercial do Funchal. Elizabeth e Joseph Phepls. 1875. Arquivo Rui Carita. Na Madeira, o bordado para exportação começou por ser executado em tiras de pano, e estimava-se que uma bordadeira trabalhava um dia inteiro para produzir 0,5 m de bordado. Estas tiras destinavam-se a ser aplicadas em roupa branca, confecionadas nos sítios de destino, quer nas casas da cidade do Funchal, quer no estrangeiro. Esta época representou na Europa um novo interesse pela indumentária, especialmente feminina, mesmo íntima, que dominou os hábitos de vestir das classes mais favorecidas e que se estendeu à restante roupa, como a de cama, com lençóis e almofadas, cortinados, etc. Esta fase correspondeu a criações ingénuas e rudimentares, da responsabilidade da própria bordadeira, que, inspirada em temas antigos e tradicionais, utilizava riscos próprios. Mais tarde, as bordadeiras passaram a criar outros modelos a partir de pequenos carimbos ou rodízios feitos em madeira de buxo, muitos fornecidos pelas casas comerciais do Funchal, com os quais imprimiam o desenho sobre o pano, utilizando como material de impressão papel químico ou as antigas almofadas de carimbo embebidas em tinta azul. Vestido de manhã. 1887 O bordado da Madeira sofreu uma certa concorrência na déc. de 80, especialmente do bordado suíço, parcialmente mecanizado e com uma outra qualidade de execução, de acordo com os padrões internacionais. O bordado madeirense, entretanto, mantinha-se perfeitamente artesanal, sem qualquer inovação nos desenhos e nos padrões apresentados. Embora a sua execução continuasse dentro de bons padrões de qualidade, como atesta Helen Taylor, cidadã inglesa que residiu na Madeira durante algum tempo e que, em 1882, referia que “muito bom bordado” era vendido de porta em porta (TAYLOR, 1882, 27), o produto não atingia, ainda, um patamar que lhe permitisse ser internacionalmente apresentado nas grandes lojas de moda. Mesmo assim, os níveis de exportação conseguiram manter-se, somente com alguma quebra, embora não em valores exponenciais, como até então, e nos quais não é possível contabilizar, acrescente-se, nem o bordado vendido de porta em porta, nem o vendido nos navios que estacionavam na baía do Funchal. Datam do final do séc. XIX, por volta de 1890, as primeiras casas alemãs exportadoras de bordados e as principais responsáveis pela divulgação, na Europa Central e na América, deste produto. O mercado inglês, por razões várias, tinha deixado de se mostrar interessado nos bordados da Madeira, mas estes passaram a encontrar uma boa recetividade nos mercados centrais europeus e americanos. Dos finais do séc. XIX data também a fixação no Funchal de uma importante comunidade de sírio-americanos, que igualmente iriam apostar fortemente na exportação dos bordados, principalmente para a América do Norte. Este aumento tem por base as alterações introduzidas no mercado internacional pela Alemanha, que passa a apoiar, sob o ponto de vista fiscal, num sistema aduaneiro denominado drawback, os tecidos que, exportados da Alemanha, eram reimportados estando valorizados com elementos vários, como seja o bordado, sendo então novamente reexportados, preferencialmente para o mercado americano. Nesse quadro, entre 1893 e 1910, e.g., as casas de exportação de bordados no Funchal quase triplicaram, alterando profundamente o seu esquema de distribuição e produção anteriores. As casas de bordados passaram a elaborar os desenhos que pretendiam, distribuindo assim às bordadeiras do campo o tecido já estampado através de maquinaria própria, que era depois recolhido semanalmente pelos seus agentes. As casas de bordados passaram ainda a possuir serviços especiais para executarem os desenhos e a estampagem, assim como depois para alguns acabamentos finais, que incluíam as lavagens que apagavam os vestígios dos desenhos, o engomar e o empacotar do produto final. De um global de exportação de pouco mais de 200 contos de réis, nos inícios do séc. XX, passava-se, em 1919, para mais de 600 contos. Por esta altura, no Funchal, existiriam cerca de 34 casas exportadoras de bordados, parte das quais na mão de firmas norte-americanas, orientadas no Funchal por elementos de origem síria. A questão da sobrevivência do bordado da Madeira apaixonou alguns historiadores, não sendo fácil explicar a sua capacidade de sobrevivência perante a crescente industrialização de outros centros de produção. A defesa da sua qualidade com base no pressuposto de que, por ser manual, era superior ao mecânico, não resiste à mínima análise, pois os bordados mecânicos revelavam-se idênticos, não sendo facilmente destrinçáveis dos manuais, salvo um ponto mais encorpado no “bordado Madeira”, o que não deixa de ser um pormenor. Acresce ainda que muito do bordado manual apresenta imperfeições de execução. Também o mito da sua originalidade não resiste à análise, pois a maior parte dos desenhos eram enviados pelos importadores e os pontos utilizados são comuns a muitos outros bordados, como o “Richelieu”, “garanitos”, “estrelas abertas” ou “fechadas”, “caseado”, “pesponto”, “cavacas”, “ilhós”, etc., pouco ou nada se tendo inovado nesse campo, com base na alardeada “tradição do bordado Madeira”. A questão assenta assim, essencialmente, no preço da mão de obra, excecionalmente barata (CÂMARA, 2002, 203-221). Bomboto de vimes e bordado. 1936. Arquivo Rui Carita No mesmo caminho se encontram os trabalhos de vime, essencialmente efetuados na área da freguesia da Camacha, mas cujos valores económicos nunca se aproximaram dos do bordado, até porque este se chegou a estender por quase toda a Ilha, enquanto o vime foi pouco mais longe que a Camacha. Estes trabalhos eram construídos a partir dos ramos do vimeiro, salis fragilis, arbusto que se cultiva até uma altitude de cerca de 800 m, em locais húmidos e com abundância de água, quase sempre perto de ribeiras. As tarefas de preparação da planta, embora complexas e utilizando alguma mão de obra, eram compensadas pelo baixo preço da mesma nas freguesias rurais, como era a da Camacha. O tratamento exigia mergulhar as pontas das hastes do vimeiro nas ribeiras, ou em tanques, onde ficava cerca de três meses, para rebentar ou refilar o caule, após o que podia ser descascado. Esta operação era da responsabilidade dos produtores, muitos dos quais estavam na costa norte da Ilha, que assim o vendiam quase sempre já descascado. Após esta operação, o vime era seco ao sol durante cerca de dois meses, após o que era novamente humedecido para poder ser trabalhado. O trabalho de verga é comum em toda a Europa e noutros locais do mundo, como no Oriente, já sendo mencionado na Madeira, nos meados do séc. XVI, por Gaspar Frutuoso. Refere assim o cronista, por interposta pessoa, pois nunca foi à Madeira, que, “nas faldas da serra da banda do Sul”, existia muita giesta, “que é mato baixo, como urzes”, e que dá flor amarela. Era gasto nos fornos e dele se colhia “a verga que esbulham como vime”, de que se fazem “os cestos brancos muito galantes e frescos para servir de mesa, e oferta de batismo, e outras coisas, por serem muito alvos, e limpos”. Por isso se vendiam então para fora da Ilha e do reino de Portugal, porque se faziam “muitas invenções de cestos muito polidos e custosos, armando-se às vezes sobre um dez, e doze diversos, ficando todos” como uma “peça só”. Acrescenta ainda que “para se fazerem mais alvos do que a verga é de sua natureza, ainda que é muito branca, os defumam com enxofre” (FRUTUOSO, 1968, 138). Seriam obras deste género as enviadas para a já mencionada Exposição Universal de Londres de 1852 por José Silvestre Ribeiro, citando-se então “cestos de verga de giestas”. Bomboto de vimes. 1950. Arquivo Rui Carita.   Bomboto de vimes. 1936. Arquivo Rui Carita Refere o Elucidário Madeirense, por certo Carlos Azevedo de Meneses, que se debruçou mais especialmente sobre esta área, que o desenvolvimento e a industrialização deste tipo de trabalhos se ficou a dever a William Hinton (1817-1904), que incentivou alguns trabalhadores a executá-lo, aproveitando as especiais e húmidas condições climáticas do local. Um dos primeiros artífices teria sido António Caldeira, o qual, desmanchando uma cesta importada pela família Hinton, a utilizou como modelo para fazer outra idêntica em vime. No entanto, parece que na freguesia da Camacha já se executavam trabalhos semelhantes em vime por volta de 1812, por certo mais rudes e sem o vime descascado, como a cestaria que se utiliza ainda hoje nas vindimas e para obras várias de construção civil, sobretudo para transporte de pedras e madeiras. As obras de vime tiveram larga utilização na Madeira, fornecendo um género de mobiliário adaptado ao clima um tanto húmido da Madeira, vulgarizando-se nos lugares ao ar livre. Foram ainda o mobiliário de eleição para os visitantes temporários do Funchal, especialmente no inverno, que deste modo mobilavam as suas casas por preços módicos e em conformidade com um certo exotismo apreciado em meados e finais do séc. XIX. O seu fabrico disparou na déc. de 80, com o exponencial aumento da navegação atlântica, sendo vendido por bomboto e acumulando-se nos decks dos grandes paquetes, como é patente em inúmeros registos fotográficos da época, servindo, inclusivamente, de mobiliário de bordo, leve e facilmente transportável. Miss Henriette Wilhelmina Montgomery Cadogan na Quinta da Saudade. 1888. Arquivo Rui Carita. A procura motivada pelo fluxo turístico fez crescer a produção, assim como a população da freguesia da Camacha que se dedicava a este artesanato, mas não criou novas relações de produção, como nos bordados, que melhorassem e favorecessem a atividade com algumas inovações mecânicas. O aparecimento, em 1902, no Funchal, de uma oficina da firma britânica Raleigh C. Payne & C.ª, que chegou a mecanizar alguns segmentos da produção, não teve grande seguimento, sendo o grosso da produção efetuado na Camacha e de modo totalmente manual. A produção envolvia quase toda a população daquela freguesia, incluindo mulheres e crianças, cabendo mesmo a algumas mulheres, as cesteiras, transportar parte da produção à cabeça para o Funchal. Salvo a já referida Raleigh C. Payne & C.ª, as restantes firmas eram essencialmente constituídas por capitais locais, com as oficinas na Camacha e um ou outro escritório no Funchal. A produção ficou assim entregue, até aos meados do séc. XX, aos camponeses camachenses, não tendo havido qualquer intervenção mais especializada que lhes melhorasse a qualidade visual e lhes organizasse a produção. Consultando um catálogo dos inícios do século, dos poucos que foram produzidos nesta área, da firma A. F. Nóbrega & Filho, com escritório no Funchal e “com fábrica na origem, na pitoresca freguesia da Camacha”, constata-se que, embora apresentando uma espantosa coleção de mais de 420 obras de vimes (RODRIGUES, 2000, 3-4), não passam os seus modelos do pitoresco e do engenhoso. As obras de marcenaria na Madeira foram quase contemporâneas do povoamento, tendo tido por base o excecional parque arbóreo encontrado na Ilha. Em 1506, e.g., Valentim Fernandes descrevia a utilização das madeiras da Ilha, fazendo uso, por certo, de informações referentes ao século anterior. Assim, refere que se explorava a madeira de cedro, sendo então possível obter tabuado de sete palmos de largo, ou seja, cerca de 1,5 m, referindo que quase parecia madeira para mastros de navios (Arsenal de S. Tiago). Desta madeira fabricavam-se caixas para casa, mesas e cadeiras, conforme também acrescenta. Os trabalhos de preparação das madeiras são igualmente descritos por Gaspar Frutuoso mais de 70 anos depois, com um muito interessante apontamento sobre o trabalho da serra de água do Faial, também referindo que se exportavam móveis e bufetes. Nos meados do séc. XVII, existem inclusivamente cartas de examinação do mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), de 28 de setembro de 1656, registada na Câmara do Funchal, certificando que Filipe Correia fora examinado como mestre de ofício de “marceneiro e ensamblador”, e que o mestre das obras “o achara muito destro e hábil em fazer escrivaninhas e bufetes ao mosaico, guarda-roupas marchetados de ébano”, tal como mosquetes (PEREIRA, 1968, II, 788). Estes trabalhos tiveram assim continuidade nos sécs. XVII e XVIII, então utilizando-se madeiras de outras proveniências, como do Brasil, de que os mais importantes exemplos deverão ser o para-vento e os púlpitos, assim como os vários móveis de parede da sacristia da igreja do Colégio dos Jesuítas do Funchal, trabalho efetuado pela mesma data, como consta no para-vento: 1725. Na continuidade desse trabalho, na listagem dos produtos enviados para a Exposição Universal de Londres por José Silvestre Ribeiro, nas “Obras de marcenaria”, figuram mesas, caixas, tabuleiros de xadrez, estantes e facas para cortar papel (FREITAS, 1852, 404-407), não sendo fácil identificar os trabalhos e os artesãos. É provável que uma das peças enviadas a Londres tenha sido a garrafeira de José António de Sousa, que assinava também como “artista madeirense”, a qual se encontra na coleção do Museu Quinta das Cruzes, e que esteve na exposição de 1850 realizada no palácio de S. Lourenço, onde o ensamblador premiado foi António José de Abreu. Outros nomes de embutidores ou ensambladores madeirenses aparecem mais tarde, já perto dos finais do século, com a integração destes mestres no ensino profissional, oficialmente por volta de 1893, na então Escola de Desenho Industrial, na R. de Santa Maria, cujo edifício subsiste, com a sua alta torre. O primeiro elemento de certa notoriedade teria sido Manuel Rodrigues Gaspar, com oficina própria junto ao eremitério da Penha de França, mestre da oficina daquela escola. Já então se distinguiam outros mestres embutidores, entre os quais João de Sousa, José Gregório de Sousa e Eduardo Pereira (c. 1860-1940), que se tornaram notórios a partir dessa data. O último criou uma mesa decorada com os monogramas reais, que foi oferecida ao casal real D. Carlos e D. Amélia na visita que fizeram às ilhas em 1901, e depois depositada na Fundação D. Manuel II, em Lisboa. Os temas dos trabalhos de embutidos, tal como acontecia nos bordados, eram essencialmente vocacionados para os visitantes estrangeiros, repetindo até à exaustão pares de vilões a dançar, carrinhos de bois e cestos do Monte, mais ou menos envolvidos por flores e monótonas cercaduras, como refere, por volta de 1906, Vitorino José dos Santos. Refere o mesmo que havia então na Madeira alguns operários e embutidores “por ensino técnico”, dispondo de “talento para a composição artística, que produzem trabalhos de reconhecido merecimento, procurados e apreciados por pessoas entendidas”. Não deixa, no entanto, de mencionar que, em geral, aos “operários madeirenses falta cultura intelectual e gosto artístico”, o que os desinteressa da ideia de “progredir, variando e melhorando a composição dos seus trabalhos”, e, por isso, a maioria dos embutidos continua “rotineiramente a apresentar-se segundo os mesmos modelos”, quase sempre figurando os tradicionais “vilões madeirenses”, os carros de bois, redes e “carrinhos do Monte”, guarnecidos de “cercaduras de desenhos simétricos e pouco variados” (SANTOS, 1907). Mesa com cabeças de vilºoes. 1930 Miguéis e Franco. Arquivo Rui Carita. O diploma de 4 de setembro de 1916 determinou a oficialização da marcenaria na então Escola Industrial e Comercial do Funchal, através da constituição de uma oficina de “incrustação e embutidos”, que só viria a funcionar em outubro de 1919, sendo seu primeiro regente o ensamblador Manuel dos Passos Aguiar, depois medalha de ouro da grande Exposição Industrial Portuguesa de 1939 (PEREIRA, 1968, II, 789). Com este regente, aparecem a trabalhar o já citado Eduardo Pereira, o marceneiro Francisco Franco (pai), cujo diploma se encontra no espólio do Museu Henrique e Francisco Franco, os pintores Henrique Franco (1883-1961) e Alfredo Miguéis (1883-1943), assim como, provavelmente, também o escultor Francisco Franco (1888-1955). Devem datar dessa época os desenhos “arte nova” com cabeças de menino com barrete de vilão, bem ao gosto de Henrique Franco, ou algumas mesas com cabeças de senhoras, indubitavelmente da autoria de Alfredo Miguéis. A saída dos irmãos Franco para Lisboa nos anos 30 e o falecimento de Alfredo Miguéis em 1943 levaram à estagnação criativa desta atividade. A indústria dos embutidos manter-se-ia nas primeiras décadas do séc. XX, mas acusaria algum cansaço nos meados do século. Apesar da introdução do pintor Américo Tavares de Oliveira e Silva, a lecionar na Escola Industrial entre 1945 e 1950, a situação de impasse manteve-se, como é patente pela tentativa de revitalização da então Delegação de Turismo, de 20 de abril de 1948, no sentido de “difundir o gosto pelas artes, ofícios e curiosidades de produção local, reintegrando-os no seu pitoresco e na pureza das suas características” (Id., Ibid., 170), cujos termos enunciados são já de perfeita morte anunciada. Passeio de rede. Pico dos Barcelos. Fotografia sem data. Os meados do séc. XIX assistiram ao nascimento da fotografia, inicialmente tímido, a qual, porém, a partir dos inícios da segunda metade desse século, iniciou a sua progressiva internacionalização e democratização, o que, de certa forma, alteraria e condicionaria, a partir de então, toda a forma de estar das sociedades urbanas. O séc. XIX foi um século ávido da fixação da imagem, primeiro através da litografia, mais ou menos animada a aguarela (Andrew Picken, Frank Dillon, Pitt Springet e Lady Susan Vernon Harcourt), e, depois, da fotografia, também essa muitas vezes igualmente animada, e que fornecia o que se entendia ser a inteira verdade da realidade captada, tão cara ao positivismo. Se, numa primeira fase, os viajantes internacionais adquiriram nos fotógrafos locais as principais imagens da Ilha, como fez o médico Carl Passavant (1854-1887), em 1883, muito provavelmente no estúdio de Augusto Maria Camacho (1838-1927), e, em 1887, o marquês de Albizzi, para depois as passar a gravura e ilustrar os seus “Six mois à Madère”, publicados em Paris em 1888, em breve muitos chegavam à Ilha como fotógrafos amadores, tirando as suas próprias fotografias, como, inclusivamente, o Rei D. Carlos, na visita régia de junho de 1901. Nessa altura, já se encontravam estabelecidos no Funchal os fotógrafos Vicente Gomes da Silva (1827-1906) e já saíra para Lisboa João Francisco Camacho (1833-1898), que passara o atelier ao irmão Augusto Maria Camacho, estúdio onde se viria a instalar, depois, Joaquim Augusto de Sousa (1853-1905), embora sempre se dando como amador, e, ainda, Manuel de Olim Perestrelo (1854-1929), a que se seguiram os filhos, netos, bisnetos e trisnetos. Sé do Funchal. Georges Balat. 1901. Arquivo Rui Carita. A fotografia desempenhou e desempenha um muito especial papel num destino turístico como a Madeira. Primeiro, com a possibilidade de registar a passagem pela Ilha dos inúmeros doentes, dos quais, por vezes, só regressavam a casa as fotografias, mas também as paisagens, de que avidamente os muitos visitantes levavam fotografias, quer como prova de ali terem estado quer como recordação do que ali tinham visto, ou que gostariam de ter visto. A instalação dos estúdios fotográficos e a posterior divulgação das máquinas fotográficas, assim como da indústria das reproduções, associada ainda à divulgação dos correios, criará igualmente uma outra indústria totalmente nova, a do bilhete-postal, que se tornará uma novidade que promoverá a imagem da Madeira um pouco por todo o mundo e dará origem a uma moda de colecionismo romântico excecionalmente importante, que entrará pelos meados do séc. XX; e, no séc. XXI, pela divulgação do digital, aparecem quase todos os dias nos diversos fóruns destas áreas novas fotografias tiradas na ilha da Madeira.   Rui Carita (atualizado a 18.12.2017)

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paço episcopal

Os primeiros bispos do Funchal, ligados à administração régia, não se deslocaram à Madeira, tendo sido D. frei Jorge de Lemos (c. 1510-1574) o primeiro a fazê-lo. Desembarcou na Ilha dois anos após a sua nomeação, em 1558, tendo-se instalado em casas particulares, pertencentes a Tristão Gomes de Castro (1539-1611), neto de Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1475-1544), que fora vedor das obras da sé do Funchal e depois alferes-mor da Ilha (Sargento-mor), casas na então Rua Direita, atual Rua dos Ferreiros, onde se levantou depois o palácio Torre Bela (Palácios). Após uma breve estadia de apenas cinco anos, num episcopado que durou na totalidade treze, D. frei Jorge de Lemos retirou-se para Lisboa, em 1563, e nas mesmas casas veio a residir depois D. Jerónimo Barreto (1543- 1589). Este bispo começou por se instalar após a sua chegada, a 31 de outubro de 1574, na inicial residência da Companhia de Jesus, na albergaria da capela de São Sebastião, e só após o conselho dos jesuítas escolheu residência, nas casas um pouco acima, onde residira D. frei Jorge de Lemos, dado que o proprietário nunca ali residiu. D. Jerónimo Barreto ainda permaneceria 10 anos na sua diocese, mas em 1584 foi colocado na do Algarve, para onde saiu, a 3 de junho de 1585. A substituição foi rápida para a época e, a 4 de agosto de 1586, desembarcava no Funchal D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608). Após as complexas cerimónias da tomada de posse da diocese, primeiro na praia do Funchal e depois na sé, o novo bispo retirou-se “às suas pousadas, que tomadas estavam na Rua das Pretas” (FRUTUOSO, 1968, 316-317). A referência à residência na Rua das Pretas parece ser um lapso do cronista açoriano, pois que D. Jerónimo Barreto residiu na Rua Direita, hoje Rua dos Ferreiros, e todas as informações seguintes dão as mesmas casas como também residência de D. Luís Figueiredo de Lemos. Em carta de Lisboa, o prelado tinha solicitado “umas casas acomodadas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 9, doc. 9), onde se pudesse instalar aquando da sua chegada, pelo que se pode ter optado, de imediato, pelas casas da Rua das Pretas, mas depois voltou-se às da Rua Direita, anteriormente ocupadas por D. Jerónimo Barreto. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos deixou estas casas em meados de 1594, ocupando, em princípio, as casas negociadas pelo seu antecessor para instalação do seminário, na atual Rua do Bispo. Escreve depois o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que nas referidas casas da Rua Direita se iniciou um enorme incêndio, no dia 26 de julho de 1594, “em dia da gloriosa Santa Ana”, dizendo que havia pouco tempo desde que foram despejadas pelo prelado, incêndio que queimou 104 casas de morada, “das melhores e mais principais de toda a cidade” no centro do Funchal. Refere ainda o cronista a estranheza do ocorrido, tanto porque nessas casas tinham residido os anteriores prelados, “por cuja causa as devíamos supor santificadas”, como pela razão de terem sido hospício dos “gloriosos mártires”, do padre Inácio de Azevedo e seus companheiros (NORONHA, 1996, 367). Esta referência, contudo, não é verdadeira, uma vez que esses jesuítas pernoitaram muito pontualmente no Funchal, e mais abaixo, na albergaria de São Sebastião, dado que quase todos pernoitaram a bordo da nau em que pensavam chegar ao Brasil. Desse incêndio ficaram os topónimos das Ruas da Queimada de Baixo e de Cima. Foi o prelado D. Luís Figueiredo de Lemos que mandou construir os primeiros paços episcopais. O paço foi levantado segundo desenho executado pelo mestre das obras reais Jerónimo Jorge (c. 1570-1618) e à custa do erário régio, como ainda hoje se pode constatar pelas armas reais existentes no edifício. Desse paço primitivo ficou a loja maneirista e a capela de São Luís de Tolosa, datada, na fachada, de 1600, ano que corresponde possivelmente à data de intenção e não de construção, pois o pagamento feito ao mestre das obras reais Jerónimo Jorge, por umas traças e diligências que fez no sítio do “Seminário, tocantes às casa episcopais”, tem a data de janeiro de 1604 (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fls. 279-279v.). Do edifício maneirista dos inícios do séc. XVII resta a fachada simples virada para a Rua do Bispo, com o brasão real de Portugal com coroa aberta, que os Filipes usaram em todas as obras no país e a interessante loggia de sabor renascentista, virada a Norte, onde funciona hoje o Café do Museu. Compõe-se de uma galeria aberta e alpendrada, com balcão cego e pilastras muito elegantes, assente em arcos de volta perfeita, que se articula com a pequena capela de São Luís de Tolosa, onde o prelado se fez sepultar e cuja lápide se encontra hoje na entrada da sé do Funchal. A lápide, em mármore branco continental, com as suas armas e cartela maneirista, lembra, decididamente, a de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego, que se fez sepultar como arcebispo, mas existem no continente e na Ilha outras lápides semelhantes. O portal da capela é de muito bom desenho, com entablamento decorado com pontas-de-diamante, a inscrição “Ludovicus Epus Funchalensis 1600” e as armas do prelado, ladeadas e encimadas pelo que parecem ser esferas armilares simplificadas, conjunto ainda rematado pela cruz da Ordem de Cristo. A fachada da capela é encimada por óculo simples e rematada a norte por campanário de gosto tardo-gótico. O prelado mandou representar nas suas armas as dos Figueiredo, mas não as dos Lemos, com rosetas de quarto crescente. Nas armas da capela aparece uma merleta, pequena ave semelhante à andorinha, mas sem patas aparentes, que foi atribuída aos Leme, família que se fixou na Madeira ainda no séc. XV, cujos elementos heráldicos o bispo carregou nas suas armas, bem como as cinco folhas de figueira, utilizadas pela família Figueiredo. Para norte, a capela articula-se com uma escadaria de acesso à antiga entrada do paço, com arco de volta perfeita e acesso ao alpendre da loggia, numa composição que terá sido reposta pelas obras de 1940/50. Estas casas ainda tiveram obras ao longo do séc. XVII, pelo menos na vigência do prelado D. frei António Teles da Silva (1675-1682), homem de gosto refinado, que deixou um importante espólio de que faziam parte móveis orientais, entre outras peças, e, muito provavelmente, também duas grandes talhas chinesas, adquiridas após a morte de D. Luís Rodrigues Villares (c. 1740-1810) para a capela do Santíssimo da sé. Da vigência de D. António Teles da Silva no Funchal sobrevive a Relação do Sínodo Diocesano de 9 de junho de 1680, com a descrição das decorações feitas no paço episcopal (BNP, Arquivo da Casa de Tarouca, doc. 150), das mais interessantes descrições do que foi a época barroca na Madeira. Nos inícios do séc. XVIII, na vigência de D. José de Sousa Castelo Branco, de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira, o paço conheceu nova ampliação (ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 273). Incorporou então as instalações do seminário, ao tempo denominado como “colégio de São Luís”, e os estudantes foram realojados no chamado “mosteiro novo”, onde hoje existe o laboratório regional de análises, na rua ainda desta evocação: Seminário. O “mosteiro novo”, que nunca o chegou a ser, era até então “recolhimento de mulheres honestas” e dos descendentes da família do fundador, o cónego António Spranger (SILVA e MENESES, II, 1998, 398-399). A oportunidade de ampliar francamente as instalações ocorreu com o tremor de terra de 1748. O paço episcopal teria sido bastante abalado e o bispo podia ocupar a residência da fortaleza de São Lourenço, pois desde maio do ano anterior desempenhava as funções de governador, dada a saída para o Brasil, diretamente da Madeira, de Francisco Pedro de Meneses Gorjão, nomeado para o governo do Maranhão. Assim, após o tremor de terra, o bispo e a família transferiram-se para São Lourenço. O pedido para aumentar o “palácio episcopal”, que “já antes era muito pequeno, pelo que se tinha ocupado o Colégio de S. Luís, [até então] seminário da Diocese” (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 973, fls. 155v-156), seguiu logo no mesmo ano de 1748, havendo diligências em 1749, altura em que o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1779), efetuou o projeto e se orçamentaram as obras. A autorização do conselho da fazenda chegou com data de 24 de janeiro de 1750, foi registada a 18 do mês seguinte e logo no dia 24 próximo se procedeu à arrematação, feita pelo mestre carpinteiro Francisco Gomes, morador aos Arrifes, no Funchal, por mais de cinco contos de réis. O auto de arrematação foi lavrado com data de 19 de março, figurando como fiadores do mestre carpinteiro Bernardo Fernandes de Freitas, que também tinha feito um lanço sobre as obras, no valor de sete contos de réis, António Gonçalves e Francisco Fernandes Antunes e Silva. O bispo D. frei João do Nascimento, no entanto, percebeu de imediato que o lanço efetuado pelo mestre Francisco Gomes não cobria as obras que pretendia, pelo que conseguiu, por mandado do conselho da fazenda de agosto de 1751, que se revertessem os ordenados de governador, que se encontrava a acumular desde quase os inícios de 1747, para a reedificação do paço. Com base nesse dinheiro e no seu próprio, o bispo assumiu a direção final das obras. O prelado tinha acumulado até então uma série de ordenados para além do seu, como sejam os de provisor e de vigário-geral, cargos que, entretanto providos, tinham sido comutados para o prelado por mais 200.000 réis anuais, passando tudo os 10.000 cruzados de renda. Por novo mandado do conselho da fazenda, do final desse ano de 1751, as obras foram pagas no estado em que se encontravam ao mestre carpinteiro Francisco Gomes, assumindo o prelado a direção e os encargos do restante. O paço já devia estar, no entanto, minimamente habitável nos meados de 1751, pois em agosto desse ano, o prelado entregou o governo e o palácio de São Lourenço ao novo governador, D. Álvaro José Xavier Botelho e Távora (1708-1789), conde de São Miguel. Contudo, as obras do paço devem-se ter arrastado ainda por algum tempo, pois o magnífico painel de azulejos das fábricas de Lisboa, que decora a enorme varanda superior da torre de ver o mar, deve ser um pouco posterior a 1760. Todo o acompanhamento dos trabalhos, entretanto, foi efetuado pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins. A direção deste, aliada à austeridade franciscana de D. frei João do Nascimento, explica o total despojamento da arquitetura exterior do paço episcopal assim como, por outro lado, a sua escala verdadeiramente monumental para a cidade do Funchal dos meados séc. XVIII. O enorme bloco quadrangular do paço episcopal, rematado por ampla varanda superior, em torre e ao gosto funchalense, aberta para o mar, articulava-se (como ainda se articula) com o corpo construído por Jerónimo Jorge em 1604/1609, rematado pela pequena capela de São Luís de Tolosa. A nascente é muito possível que possuísse mais alguma construção, de serviços, e de que teria ficado o prédio contíguo, com fachada para a Rua do Bispo. Trata-se de um prédio de grande dignidade e anterior à construção do monobloco de 1748/1751, que possui no primeiro piso e no piso térreo vestígios vários de arcos e nichos, ainda mais antigos, assim como cantarias boleadas nos pisos superiores. Todo este conjunto possuía uma cerca ampla para Norte com jardim, ainda utilizada pelo então Liceu do Funchal, que ali funcionou a partir de janeiro de 1914, e que foi depois parcialmente atulhada para nivelamento e utilizada para a construção do largo do Município. Paço Episcopal A fachada para a rua do Bispo apresenta portal central de moldura de remate relevado em cantaria, datado no lintel do início da construção (1750), encimado por cornija relevada e ligeiramente ondulada, ladeado por grandes janelões gradeados de idêntica moldura. As entradas laterais de serviço, de molduras mais simples, são ladeadas por óculos quadrilobados e gradeados. O andar intermédio, correspondendo ao andar de serviços, apresenta oito janelas, que usam como cornija de balanço as sacadas das varandas do andar nobre, aí com grade de ferro com bolachas. As molduras das janelas das varandas do andar nobre são rematadas por frontão curvo e a fachada rematada superiormente por cornija de cantaria relevada com duas gárgulas em forma de meia cana. A fachada norte, dantes virada para os jardins do bispo e depois para o campo de jogos do Liceu do Funchal, apresenta a marcação dos três pisos da fachada com um bloco central de mais dois pisos correspondentes à torre monumental, não visível da Rua do Bispo, sendo o andar inferior, correspondente às antigas arrecadações do paço, dotado de gradeamento à face. O andar nobre é excecionalmente alto, com varandas de sacada a servirem de balanço às janelas do andar de serviços, criando as molduras de cantaria espelhos superiores vazados e possuindo estas janelas grades de ferro, ditas “de barriga”, que permitiam a quem se debruçasse continuar protegido por detrás das mesmas. A fachada poente deste enorme bloco apresenta uma janela decorada com as chaves de São Pedro esculpidas no lintel e uma porta inferior com lintel com cartela maneirista esculpida com a emblemática dos jesuítas. O trigrama cristológico IHS é a abreviatura do nome de Jesus em grego ou em latim medieval: Ihesus. Ora, embora propagado no séc. XIV pelo pregador São Bernardino de Sena e utilizado pelos franciscanos a partir do séc. XVI, foi retomado por Santo Inácio de Loyola com a significação de “Jesum habemus socium”, em português “Temos Jesus como companheiro”, e passou a ser o emblema da Companhia, pelo que o lintel desta porta do paço episcopal deve ter vindo do edifício do Colégio ou de uma das suas quintas. O paço episcopal é rematado superiormente por larga torre de ver o mar, de mais dois pisos, colocada na parte central do conjunto, ligeiramente recuada em relação à fachada, com uma elegante balaustrada de pedra com grade de ferro, que é das poucas que ainda se mantêm abertas no centro da cidade. O alpendre assenta em seis barras de ferro que partem dos balaústres de cantaria, tenda duas portas de moldura de cantaria com lintel de balanço, definindo três panos totalmente ocupados por um painel contínuo de azulejos com as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade, de uma das oficinas dos grandes mestres de Lisboa, datáveis de 1760 a 1765 e de uma grande qualidade de execução. O átrio de entrada do antigo paço episcopal encontra-se empedrado ao gosto madeirense dos sécs. XVIII/XIX, mas num desenho conjetural das grandes obras de reabilitação de 1950 a 1954 para instalação do Museu Diocesano de Arte Sacra. Mantém ainda as argolas de parede para prisão das cavalgaduras, que sobreviveram, assim, a inúmeras campanhas de obras. Apresenta ao centro uma escadaria de grande impacto visual, com corrimão de cantaria e de planta em voluta, terminado nas pilastras com enrolamento das guardas e remate por pelouro, o que lhe dá uma sensação especial de profundidade. A porta superior é rematada por arco abatido e ladeada por dois enormes óculos ovais com moldura de cantaria, de eixo ligeiramente inclinado para iluminação das escadas, ao gosto das encenações barrocas. Assim, os óculos parecem iluminar uma grande escadaria interior, mas esta, interiormente, só corresponde a um lanço de escadas. Armas do Paço Episcopal Nem sempre os prelados funchalenses ocuparam este edifício, optando alguns por se recolherem em outros locais mais recatados, embora ali se mantivessem os seus serviços e os órgãos da diocese. D. José da Costa Torres (1741-1813), 18.º bispo do Funchal, por exemplo, vivia habitualmente na residência da quinta da Penha de França, de onde, aliás, foi embarcado à força em julho de 1796, na escuna Andorinha, do futuro conde de Carvalhal (1778-1837), dado já ter sido eleito bispo de Elvas, e o bispo seguinte, D. Luís Rodrigues Vilares (c. 1740-1810), faleceu na quinta da Nazaré. Os prelados administradores apostólicos, como D. Francisco Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828), bispo de Meliapor, depois eleito bispo de Elvas, também ali não viviam, mas, ao contrário, o cardeal D. Lorenzo Caleppi (1741-1813), arcebispo de Nibisi e núncio apostólico em Portugal, passando pelo Funchal a caminho do Rio de Janeiro em julho de 1808, ficou a residir no paço episcopal.     Arcadas do Paço Episcopal O paço episcopal do Funchal seria confiscado pela fazenda da República em 1910, por ter sido construído com verbas da anterior fazenda régia e aí foi instalado o Liceu do Funchal, em janeiro de 1914. Com a nova consciencialização patrimonial do Estado Novo e a campanha desenvolvida por várias entidades locais em prol da criação de um Museu de Arte Sacra, assim como com a construção de um novo edifício para o Liceu, veio a ser ali instalado esse Museu, após a saída dos alunos em 1942 e as obras de reabilitação, cuja inauguração decorreu em 1 de junho de 1955, cerimónia que contou com a presença do general Francisco Higino Craveiro Lopes, presidente da República, então em visita ao arquipélago, do bispo do Funchal D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957) e das demais entidades regionais.   Arcadas do Paço Episcopal Em 1915, com a tomada de posse de D. António Manuel Pereira Ribeiro, depois de ter sido sagrado em Viana do Castelo, o cabido e um grupo de católicos alugaram uma residência na Rua dos Netos, na esquina da Rua dos Ferreiros, em frente ao antigo Ateneu do Funchal. No entanto, ainda nesse ano, por aquisição da diocese e com apoio de uma doação e uma herança, o prelado passou a residir na quinta senhorial do Largo do Ribeiro Real, que passou a paço episcopal, onde ainda se encontra. O atual paço episcopal foi objeto de obras de reabilitação na época em que assumiu o lugar de bispo auxiliar do Funchal D. Manuel de Jesus Pereira (1911-1978) e que os serviços gerais da diocese conheceram um novo dinamismo, entre 1948 e 1953. Data dessa época a reforma do portal de acesso aos jardins e do alinhamento do muro, ficando o portal encimado pelas armas do bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro e a data de 1951. No início da década de 90, construiu-se o novo bloco da Câmara Eclesiástica, sob projeto do arquiteto João Francisco Caires.   Rui Carita (atualizado a 19.12.2017)

Religiões

universidade da madeira

Universidade da Madeira, Campus da Penteada. Foto BF Na Madeira, ao longo do Antigo Regime, o ensino esteve entregue, quase exclusivamente, à igreja, nomeadamente, através das paróquias ou, na sede da diocese, do mestre-escola da sé, e depois, do Colégio dos Jesuítas e do seminário, fundados nos finais do séc. XVI. Para o acesso ao ensino superior, os madeirenses tinham que deslocar-se ao continente, como aconteceu a muitos, formando-se nas universidades de Coimbra, Salamanca, Paris e Roma, entre outras, com todos os custos daí advindos e nem sempre regressando à Ilha. Com a fundação do Colégio dos Jesuítas, por carta régia de D. Sebastião, a 20 de agosto de 1569, nasceu a primeira instituição de ensino nacional na Madeira. As aulas tiveram início a 9 de maio de 1570, na então albergaria de S. Sebastião; sendo o dia dedicado ao martírio de S. João Evangelista, este passou a ser o orago da igreja e do colégio do Funchal. Em 1599, iniciou-se a construção do grande edifício do colégio, no centro da cidade, onde se encontra hoje instalada a reitoria da Universidade da Madeira (UMa), que também veio a escolher o dia 9 de maio para data festiva. Ao mesmo tempo, foi instituído o seminário diocesano, cujas aulas vieram a funcionar sempre em certa articulação com as do colégio. Após a extinção da Companhia de Jesus, em 1768, no edifício do antigo colégio, ainda funcionou a aula de geometria e desenho, essencialmente dedicada ao ensino militar. A atividade desta Aula foi mais ou menos efémera, mas o ensino militar manteve-se, depois, nas dependências do quartel do colégio e no quadro de formação dos vários regimentos ali aquartelados. A primeira instituição de ensino superior na Madeira foi a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal. Por dec. de 29 de dezembro de 1836, determinava-se a abertura de uma escola médico-cirúrgica no hospital da Santa Casa da Misericórdia (SCM) de cada uma das capitais dos distritos administrativos do ultramar. A do Funchal, criada em 1837, mas correspondendo a uma aspiração com mais de 20 anos da SCM, foi encerrada nos primeiros meses da República, por dec. de 11 de novembro de 1910, tendo, ao longo de 73 anos, formado 250 médicos, que exerceram clínica em Portugal e no estrangeiro, incluindo, em 1902, duas médicas. O ensino das artes plásticas na Ilha remonta, pelo menos, aos meados do séc. XVIII, com o ateliê ou escola de pintura de Nicolau Ferreira Duarte. Entre os finais da centúria e os inícios de Oitocentos, esse mestre e os seus alunos executaram uma quantidade excecional de trabalhos, embora de qualidade muito irregular, obras que ainda se encontram na Madeira, dispersos por quase todas as igrejas e capelas do arquipélago. Nos inícios do séc. XIX, com a carta régia de 7 de julho de 1809, foi criada uma aula de desenho e pintura na Madeira que começou a funcionar em março do ano seguinte. A regência foi confiada ao pintor Joaquim Leonardo da Rocha, cujo pai lecionara no estabelecimento congénere de Lisboa, decorrendo as aulas até à sua morte, em 1824. Cândido Pereira – autorretrato a carvão, assinado, datado de 1930 e com dedicatóriaFonte: acervo da Escola Secundária Francisco Franco. O ensino das belas-artes, sob perspetiva diversa, seria reinstalado na Madeira em setembro de 1889, quando foi fundada, no Funchal, uma escola de desenho industrial (Escola Industrial do Funchal), então dirigida pelo professor Cândido Pereira (1872-c. 1935), que regressaria ao continente em 1903. A ideia que motivou a fundação desse estabelecimento, designado Escola de Desenho Industrial Josefa de Óbidos, nome que veio a ser mudado para António Augusto de Aguiar, foi a de “ministrar o ensino do desenho com aplicação à indústria ou indústrias predominantes na localidade” (SILVA e MENESES, I, 1998, 399). A instituição instalou-se num bom prédio da família Acciauoli, ainda existente e hoje devoluto, na R. de Santa Maria Maior. Nos anos cinquenta do século passado, em 1955, a Sociedade de Concertos da Madeira criou uma secção de belas-artes no âmbito da Academia de Música, instituição que teve alvará definitivo em 1947 e cujos cursos seguiam os programas oficiais do conservatório nacional. Assim, os cursos complementares de belas-artes que eram lecionados em Lisboa e no Porto passaram a ser igualmente lecionados na Madeira, deslocando-se os professores daquelas escolas continentais até ao Funchal para que fossem realizados os exames finais na Ilha. Esta situação verificou-se até 1974, quando a Academia de Música e Belas-Artes da Madeira passou a gozar de total autonomia científica e pedagógica e a ministrar integralmente os referidos cursos. Pelo dec.-lei n.º 450/77, de 27 de outubro de 1977, foi criado, enquanto estabelecimento de ensino superior público, o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM), até então, privado; era dotado de personalidade jurídica e autonomia próprias, sucedendo assim à antiga secção de belas-artes da Academia de Música. Nos inícios de 1975, as aulas e as atividades relacionadas com os trabalhos práticos do ISAPM passaram a ocupar a antiga Quinta das Angústias, hoje Quinta Vigia, mudando, no final do ano, para um prédio na R. da Carreira onde vivera o pintor Alfredo Miguéis (1883-1943). Pouco depois, foi adquirido o prédio anexo, a poente, para ampliar as instalações, procedendo-se também à integração daquele instituto na UMa, a que ainda hoje pertence. O ISAPM esteve em regime de instalação até outubro de 1985, com quadros e regime de pessoal definidos pelo dec.-lei n.º 55/84, de 16 de fevereiro, sendo a sua estrutura orgânica, os serviços e o regime de funcionamento determinados pelo dec.-lei n.º 423/85, de 22 de outubro, completando-se assim a constituição do estatuto específico dessa instituição, em inteira paridade com o das suas congéneres no continente, as escolas superiores de Lisboa e Porto. O assunto da instalação de uma universidade na Madeira era ventilado desde os meados do séc. XX, chegando a ser objeto de uma intervenção na Assembleia Nacional, a 2 de abril de 1965, pelo deputado Dr. Agostinho Cardoso (1908-1979), que aborda a questão dos “estudos universitários na Madeira” (Diário das Sessões..., n.º 203, 4853). Foi necessário esperar pela época da autonomia política e administrativa para o assunto voltar a ser equacionado, estabelecendo-se, em 1975, a extensão de alguns cursos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa à Madeira e, depois, em 1982, da Faculdade de Ciências da mesma universidade e da Universidade Católica. A 19 de dezembro de 1975, na Assembleia Constituinte, o deputado Dr. Emanuel Rodrigues tinha já apresentado um requerimento ao ministro da Educação e Investigação Científica a solicitar a constituição de um instituto universitário na Madeira, à semelhança do que havia disso feito nos Açores. Assim, sucessivos diplomas alargaram o campo do ensino na Ilha: o dec.-lei n.º 664/76, de 4 de agosto, criou o Instituto Universitário da Madeira; o n.º 322/77, de 6 de agosto, o Conservatório de Música da Madeira; o n.º 450/77, de 27 de outubro, o Instituto de Artes Plásticas da Madeira; e o n.º 205/81, de 10 de junho, instituiu oficialmente na Região Autónoma da Madeira (RAM) os centros de apoio dos estabelecimentos de ensino superior universitário. O dec.-lei n.º 332/83, de 13 de julho, por sua vez, veio estabelecer as normas gerais sobre o ensino superior na RAM, levando a um despacho conjunto, com a data de 4 de novembro de 1983, da Secretaria de Estado do Ensino Superior e da Secretaria Regional da Educação, então tutelada por Eduardo Brazão de Castro, no sentido de se criar “uma comissão com vista ao estudo da viabilidade de criação e funcionamento de uma universidade na Região Autónoma da Madeira e/ou outras alternativas institucionais” (VERÍSSIMO e SANTOS, 2015, 26). A comissão tinha um mandato de seis meses e seria constituída por cinco membros, sendo nomeados, de imediato, como presidente, Fernando Alves Cristóvão, e, como vogais, José Freitas Ferreira e Victor Hugo Lecoq Forjaz. Alguma instabilidade governativa em Lisboa e a nomeação do presidente para outras funções levaram a um certo atraso nos trabalhos desse grupo. A comissão veio a agregar àqueles dois vogais o Eng. Rui Manuel da Silva Vieira (1926-2009), antigo presidente da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal e membro da primeira Junta Governativa da Madeira, de 1974. O trabalho do grupo veio a ser apresentado em 1985 como estudo sobre a viabilidade da Universidade da Madeira, contrapondo ao modelo napoleónico de universidade um outro, supostamente mais adaptado à realidade da Madeira, mas que levaria alguns anos a ser aprovado, verificando-se que acabaria por não se afastar especialmente dos modelos implementados no continente. Três anos mais tarde, através do dec.-lei n.º 319-A/88, de 13 de setembro de 1988, nasceu a UMa. Por despacho conjunto do ministro da República para a RAM e do ministro da Educação, de 15 de dezembro desse ano e publicado a 29 seguinte, fizeram parte da primeira comissão instaladora, como presidente, o Prof. Doutor Raul de Albuquerque Sardinha, como vogais, os Profs. Doutores Fernando Santos Henriques e José Luís Morais Ferreira Mendes, e, como administradora, a Dr.ª Ana Isabel de Portugal Almada Cardoso. A partir de então, foram sendo integrados os cursos de letras e de ciências que, desde 1978, tinham funcionado nos centros da extensão universitária, embora nesses primeiros documentos se considerasse que a UMa, pelo menos no que dizia respeito aos cursos de letras, e dada a diversidade de variantes, não poderia assumir a finalização dos cursos, tendo os seus alunos de se deslocar ao continente para obter o diploma. Em 1989-1990, começou a funcionar o 1.º ano do curso de educação física e desporto, o primeiro curso de licenciatura da UMa, criado pela portaria n.º 861-A/89, de 4 de outubro, do ministério da Educação, então sob a orientação do Prof. Fernando Ferreira. Com a extinção da Escola Superior de Educação da Madeira e a subsequente criação do Centro Integrado de Formação de Professores, através do Dec.-lei n.º 391/89, de 9 de novembro, a formação inicial dos educadores de infância e dos professores do 1.º ciclo do ensino básico passou para o âmbito da UMa. Foram aprovados, ainda durante o período de vigência da primeira comissão instaladora, a primeira versão dos estatutos da UMa. Dado o peso institucional da educação física e desporto na UMa e na RAM, e a necessidade de se encontrarem espaços com determinada liberdade e independência, adequados àquela realidade, foi equacionada, durante esses anos, a instalação da reitoria da universidade na célebre Quinta do Monte, passando as várias reuniões de trabalho a decorrerem nesse espaço emblemático madeirense. Iniciaram-se, assim, contatos vários e equacionou-se o projeto de instalar nos limites do bom parque daquela quinta as instalações de educação física, reservando-se a antiga residência para a reitoria. Em maio de 1990, todo o espaço do parque da Quinta do Monte foi demoradamente visitado por Aníbal Cavaco Silva, então primeiro-ministro do Governo central, acompanhado pelo ministro da República para a RAM e por Alberto João Jardim e Eduardo Brasão de Castro, respetivamente presidente do Governo Regional da Madeira (GRM) e secretário regional da Educação, entre outras individualidades. A quinta veio a ser adquirida pelo GRM e o seu recheio pela UMa, numa complexa negociação com os inúmeros herdeiros daquela propriedade. Porém, num curto espaço de tempo, foram tomadas outras opções, passando a comissão instaladora seguinte para o antigo Colégio dos Jesuítas. Na sequência de um período conturbado, que levou a que o vogal presidente pedisse a sua exoneração, foi indigitada uma nova comissão instaladora. Esta segunda comissão, nomeada por despacho conjunto de 25 de julho de 1991, era constituída pelo Prof. Doutor Fernando Santos Henriques, vogal da anterior que assumia agora a presidência, pelos vogais Prof. Doutor Jorge Manuel Morais Barbosa, Prof. Doutor Carlos Alberto Nieto de Castro e Prof. Doutor Joaquim José Borges Gouveia, e pela administradora Mestre Elizabete Maria Azevedo Olim Marote Oliveira. O regime de instalação foi prorrogado por mais um ano e com esta comissão a UMa comprometia-se a garantir a totalidade das licenciaturas. No entanto, os estatutos aprovados durante o mandato da primeira comissão ainda não tinham sido homologados, prolongando-se, assim, uma vez mais, a fase de instalação da universidade. O ano letivo de 1990-1991 assistiu aos primeiros passos de grande parte dos cursos da UMa, nomeadamente, biologia; física; matemática; química; línguas e literaturas modernas; variantes de estudos portugueses; estudos portugueses e franceses; estudos portugueses e ingleses; estudos portugueses e alemães; estudos portugueses e espanhóis; estudos ingleses e alemães; e estudos franceses e ingleses; todos com o ramo científico e de ensino. Em 1992-1993, começaram a funcionar os cursos de gestão e de engenharia de sistemas e computadores. Através do protocolo de integração de 30 de setembro de 1992, publicado no Diário da República, n.º 280, II série, de 4 de dezembro de 1992, o ISAPM passou a estar integrado na UMa sob a denominação de Instituto Superior de Arte e Design, da Universidade da Madeira (ISAD/UMa), devendo adotar uma organização semelhante à dos restantes departamentos e secções autónomas da instituição. Em 1991, criou-se a Associação Académica da Universidade da Madeira (AAUMa), com o intuito de responder às necessidades dos estudantes. As eleições para os corpos sociais foram marcadas para 10 de dezembro desse ano, dia em que se comemorava o aniversário da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos por parte da Organização das Nações Unidas. Participaram no sufrágio 416 estudantes, tendo sido eleito presidente da direção Jorge Carvalho, da mesa da assembleia geral, Deodato Rodrigues e, do conselho fiscal, António Cunha; tomaram posse a 2 de janeiro seguinte. A partir de então, a AAUMa seria uma parceira privilegiada de toda a vida universitária, colaborando na elaboração da sigla, na criação do trajo académico, de várias tunas e de um grupo de fados, entre outros. Assumiu um protagonismo excecional, no plano interno e externo, lançando mesmo uma revista e criando uma imprensa académica, e mantendo exposições regulares, na área do edifício do colégio, onde montou uma das suas lojas Gaudeamus; também organizou visitas guiadas e outras atividades. O aumento exponencial dos cursos lecionados pela UMa e do número de alunos obrigou a procurar novas instalações, chegando-se, inclusivamente, a arrendar dois complexos: um no edifício Oudinot, onde passaram a funcionar alguns dos cursos das áreas das ciências exatas e naturais, e o piso térreo do edifício José Maria Branco, à R. Bela de Santiago, que fora equacionado para servir de centro comercial, para os cursos de Línguas e Literaturas Modernas e Clássicas. Entretanto, as Ciências da Educação, a Matemática e outras instalaram-se no antigo quartel do Colégio, onde vieram a ser realizados os primeiros exames, além de outras provas académicas, e.g., em 1993, a de aptidão pedagógica e capacidade científica de Mário Dionísio Cunha, e a de agregação de António Manuel Esteves dos Santos Casimiro. A primeira prova de doutoramento ocorreu a 15 de dezembro de 1994, sendo candidata Rita Maria César e Sá Fernandes de Vasconcelos, com a tese Contribuição à Análise de Dados Categorizados, inscrita em estatística matemática. A primeira prova de mestrado foi em 1999, quatro anos após a abertura o primeiro curso de mestrado da UMa, com o candidato João José Abreu de Sousa e a tese A Revolução Liberal na Madeira. Em 1993, entretanto, fora nomeada uma terceira comissão instaladora, constituída pelo vogal presidente Prof. Doutor João David Pinto Correia, pelos vogais Profs. Doutores José Manuel Castanheira da Costa e Ruben Antunes Capela, e pelo administrador Prof. Doutor António Augusto Marques de Almeida. Da sua unidade de planeamento e informação surgiu o documento Plano de Desenvolvimento: 1994-1998. Delineado em termos de proposta, este plano partiu do diagnóstico da situação então vigente (dezembro de 1994), respeitante a alunos, pessoal docente e não docente, para apresentar, a partir dessa análise, uma estratégia, tendo em vista dois grandes objetivos: o equilíbrio, em termos de rácios, em 1999 e o melhoramento da qualidade científica e pedagógica dos cursos da UMa. Datam da fase inicial da terceira comissão instaladora as primeiras obras de reabilitação do velho edifício do colégio, procedendo-se à adaptação das salas do piso superior da ala sobre a R. do Castanheiro para gabinetes e salas de reunião, e à construção de uma entrada independente desta ala para o Lrg. do Município. A área foi partilhada com a diocese do Funchal, que tinha conseguido a cedência da ala sobre aquele largo e o chamado Pátio dos Padres para instalar a Universidade Católica, havendo assim que isolar algumas paredes, construir escadas interiores e balaustradas, equipar a entrada (onde foi recuperado um antigo oratório, para o qual se adquiriu uma imagem do orago) e fechar parte do corredor grande em cima, que deixou assim de percorrer visualmente todo o edifício, desde a antiga cerca ao Lrg. do Município. Foi durante a vigência desta terceira comissão instaladora que começaram a funcionar os cursos de línguas e literaturas clássicas (ramo científico e de ensino) e que se realizaram eleições para a nova Assembleia Constituinte, tendo-se em vista a elaboração e a aprovação dos estatutos. Os seus trabalhos foram iniciados a 5 de setembro de 1995 e prolongaram-se até 25 do mesmo mês, dia em que os estatutos da UMa foram aprovados. Reenviados de novo àquela instituição de ensino e depois de analisados pela comissão de apreciação dos estatutos (a chamada Comissão Ferrer), a fim de se proceder a algumas alterações, reiniciaram-se os trabalhos, a 9 de fevereiro de 1996, até estar completa a versão final, lida e aprovada a 14 de março seguinte. Com a homologação dos estatutos da UMa pelo ministro da Educação, o Prof. Doutor Marçal Grilo, no anfiteatro do edifício do colégio, a 13 de maio de 1996, e com a consequente eleição do responsável da instituição para os dois anos seguintes, o reitor José Manuel Castanheira da Costa, que tomou posse a 28 de julho de 1996, a UMa entrou numa nova e crucial fase da sua existência. Uma fase que pressupunha a sua afirmação no contexto nacional como universidade de pleno direito, e o atingir, a nível interno, as variações mínimas nos seus balanços e números, para que pudesse enfrentar os grandes desafios que se apresentavam a qualquer instituição de ensino superior no limiar do séc. XXI. A partir de 1992/1993, a RAM assumiu a alteração da articulação do novo Complexo Tecnológico da Penteada ou Madeira Tecnopolo. Este complexo foi projetado pelo ateliê João Francisco Caires, entre 1985 e 1991, para acomodar a UMa, transitando para ali vários departamentos, no ano letivo de 1998-1999. Entre eles, o de arte e design, que, por deliberação do senado universitário, em reunião de 11 de junho de 1997, definiu a sua organização à imagem da das restantes secções autónomas. Assim, em reunião do mesmo senado, a 29 de abril de 1998, foi aprovado o novo regulamento desta unidade, com a denominação institucional de Arte e Design. Com a passagem dos departamentos para o edifício da Penteada, iniciaram-se as obras de reabilitação do outro velho edifício, nos primeiros meses de 2000, para acolher a reitoria. Esta era então liderada pelo Prof. Doutor José Manuel Castanheira da Costa, ainda no exercício do seu primeiro mandato, ficando a intervenção a cargo dos arquitetos Rui Campos Matos e Vasco Cardoso Marques (ateliê CM Arquitectos). O projeto destes assentou na abertura da antiga cantina militar à R. dos Ferreiros, como havia sido no séc. XVIII, libertando as enormes portas entaipadas, provavelmente, desde o terramoto no Funchal, em 1748. A abertura deste espaço permitiu o acesso imediato ao antigo Pátio dos Estudantes, então ajardinado, e a reabilitação do antigo ginásio militar para servir como sala de atos da UMa. Os gabinetes da reitoria passaram para o antigo Corredor do Eirado, sobre a R. dos Ferreiros. As principais cerimónias universitárias, que até então haviam decorrido, primeiro, no salão nobre da antiga Junta Geral e, depois, no congénere salão da Assembleia Legislativa, passaram a ser feitas na sala de atos da reitoria. De igual forma, todo o piso térreo à volta do Pátio dos Estudantes, quer a sala de atos, quer o conjunto de salas da antiga cooperativa militar, reabilitadas em 2005, e as salas de simulação empresarial e empreendedorismo, onde era o antigo refeitório militar, que foram reabilitadas em 2011, passaram a ter um muito especial protagonismo na vida regional, ali decorrendo encontros e congressos, mesmo organizados por outras instituições, que por vezes utilizam o espaço para receções oficiais. Não deixou de ser paradigmático que as primeiras obras de reabilitação tivessem sido inauguradas na visita do Presidente Jorge Sampaio e as segundas na do Presidente Cavaco Silva, e que, inclusivamente, fosse feita uma grande exposição alusiva aos trabalhos de reabilitação da igreja do colégio, efetuados sob a coordenação da Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC). As eleições de 2000 foram ganhas por uma equipa liderada pelo Prof. Doutor Ruben Antunes Capela, que tomou posse a 19 de julho. Findo o seu mandato, assumiu a reitoria o decano da UMa, Prof. Doutor José Manuel Cunha Leal Molarinho do Carmo, exercendo funções entre 1 de junho e 19 de julho de 2004. Realizadas novas eleições, tomou posse como reitor, nesse dia 19 de julho, o Prof. Doutor Pedro Telhado Pereira, tendo sido durante a sua vigência no cargo que ocorreu a adequação dos cursos ao denominado Processo de Bolonha e que foram criados novos ciclos de estudo, de acordo com esse paradigma; em 2006 e no ano seguinte, a UMa foi objeto de avaliação externa pela European University Association. Em 2009, o serviço de ação social da UMa abriu a residência universitária N.ª S.ª das Vitórias, na R. de Santa Maria, obra que se arrastou alguns anos e, a 15 de abril desse ano, voltou a tomar posse como reitor o Prof. Doutor José Manuel Castanheira da Costa. Sucedeu-o, a 18 de abril de 2013, o Prof. Doutor José Manuel Cunha Leal Molarinho do Carmo. O Processo de Bolonha e a progressiva capacidade de mobilidade dos estudantes, especialmente europeus, aliados à fama da Madeira como destino turístico, graças à benignidade do clima, mas não só, levou à presença exponencial de estudantes estrangeiros na UMa, quer em estágios pontuais e na frequência de determinadas cadeiras, como até em cursos. Já anteriormente, as qualidades gerais do destino Madeira haviam captado um importante lote de professores e investigadores de outras nacionalidades, chegando os departamentos a contar, somente nos quatros docentes, 30 nacionalidades diferentes. O número de estudantes da UMa, entretanto, subiu para cerca de 3000 alunos e o corpo docente para cerca de 250 professores, dos quais, apenas cerca de 15 não se encontram ainda doutorados em 2014/2015, embora quase todos perto disso. A UMa cobria áreas do conhecimento que iam das ciências exatas, às engenharias, às artes e humanidades, oferecendo 18 cursos de 1.º ciclo, 18 de 2.º ciclo e 6 de doutoramento no ano letivo 2014/2015. Neste mesmo período, forneceu ainda 2 diplomas de estudos avançados, 3 pós-graduações, 9 de especialização tecnológica, e também cursos livres. Tinha, então, em funcionamento 10 unidades de investigação com 25 projetos em curso, mantendo os seus docentes e investigadores presença em inúmeras redes nacionais e internacionais de investigação científica. O trabalho de internacionalização foi especialmente iniciado e cimentado pelo Prof. Doutor Ludwing Streit, fundador do Centro de Ciências Matemáticas que soube atrair para a Madeira uma série de investigadores internacionais notáveis. Culminou com a criação, em 2009, de um instituto de investigação, o M-ITI, Madeira Interactive Technologies Institute, criado em parceria com o Tecnopolo Madeira e a Carnegie Mellon University, consolidando a internacionalização necessária e almejada por qualquer universidade. Universidade da Madeira, Campus da Penteada. Foto BF   Universidade da Madeira, Campus da Penteada. Foto BF A ideia veio a ser apresentada na abertura das aulas do ano letivo 2010/2011, comemorada no Funchal a 13 de setembro, que serviu para o ministro da Ciência e Tecnologia, o Prof. Doutor Mariano Gago (1948-2015), assinar o Contrato de Confiança no Ensino Superior com as universidades portuguesas. Na ocasião, o ministro revelou ainda a ideia trazer para a RAM uma escola de categoria internacional, na área da medicina, em rede com instituições de prestígio mundial, uma ideia que contou com o apoio do GRM. Na cerimónia esteve igualmente presente o primeiro-ministro José Sócrates, que traçou rasgados elogios ao trabalho desenvolvido na UMa, afirmando: “Estou aqui na Madeira para dizer à Universidade da Madeira e ao senhor reitor que temos orgulho no vosso trabalho e que […] sendo a mais pequena e mais jovem [das universidades portuguesas] esse trabalho foi mais custoso” (DN, Funchal, 13 set. 2010). Em 2014/2015, passados mais de 25 anos sobre o dia 13 de setembro de 1988, data do decreto que criou a UMa, esta instituição corporizava o espaço e o ponto de encontro político oficial da República e da Região, com uma progressiva afirmação nacional e internacional, tal como a conquista de uma determinada afirmação de universalidade a que todas as universidades aspiram. Nesse panorama de crescente consolidação, foi-se assistindo à colocação de elementos dos quadros docentes da UMa à frente de secretarias regionais do GRM e dos seus antigos alunos nos mais diversos postos de chefia, confirmando assim o trabalho desenvolvido nos últimos tempos.   Rui Carita (atualizado a 08.12.2017)

Educação História da Educação

boa imprensa, a

A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, durante todo o século XIX e até o primeiro quartel do século XX, permite-nos analisar o discurso normativo segundos os cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. O conceito de boa imprensa, que se veio a tornar operativo no plano das orientações doutrinais e pastorais de Igreja na sua relação com o Mundo, é expressão de uma época marcada por uma cultura de combate, em que a imprensa foi usado como instrumento privilegiado de doutrinação ideológica e de ataque aos campos que pensavam e defendiam modelos de sociedade diferentes. Palavras-Chave: Comunicação Social, Igreja, Ideologia, Iluminismo, Cultura Laica, Doutrina, Teologia.     A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, publicada durante o séc. XIX e até ao primeiro quartel do séc. XX, permite analisar o discurso normativo dos cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. Se é um facto histórico que a autoridade da Igreja Católica e do papa já haviam sido contestadas pela Reforma protestante de Lutero e Calvino, no início do séc. XVI, mas no interior do cristianismo, cuja essência não se era questionada, o período em análise da boa imprensa é o tempo em que a autoridade das religiões reveladas, não apenas o cristianismo, mas igualmente o judaísmo e o islamismo, começava a ser equacionada e até refutada. A análise da imprensa católica madeirense, desde o século XIX até ao primeiro quartel do século XX, é feita no contexto de uma sociedade hoje munida da utensilagem mental que nos confere o Concílio Vaticano II e todas as correntes de pensamento que atravessaram todo os séculos XIX e XX e já mesmo do século do atual século XXI. Na verdade, se tivermos em conta que a boa imprensa formula como objetivo a doutrinação da sociedade, através de uma normatização, que inclui uma determinada conceção de família e do seu papel na sociedade, este trabalho é feito justamente no momento em que o Sínodo dos Bispos, patamar eclesiástico anterior a um concílio, acaba de realizar em Roma, sob o múnus do Papa Francisco, sob o tema da família, cujos cânones clássicos de família monogâmica, de casamento para uma vida inteira, sem a existência do divórcio, que continua a ser vedado no direito canónico, mas constantemente efetivado após uma vida conjugal, que, ab initio, se quis até a que a morte separasse os membros do casal. Essa realidade levanta novos desafios à Igreja Católica, nomeadamente a da confissão e absolvição bem como a da comunhão dos divorciados pela igreja e de novo casados à face das leis civis. Outro desafio não menos atual é o da união conjugal de indivíduos do mesmo sexo, questão que o sínodo episcopal não se absteve de debater, tal como a questão do batismo de crianças de pais solteiros. A Igreja Católica sempre foi apontada como uma instituição a quem fogem os tempos hodiernos de cada época, na medida em que a sua visão do tempo nem sempre coincide, segundo os seus críticos, com aquela que é a visão atualíssima, mas sempre efémera, visto que cada moda é sempre sufocada pela vaga sucessiva e ininterrupta que cada época tem para oferecer. A essa ideia, a igreja sempre contrapôs a dos valores eternos. Essa mutação constante dos tempos, geradora de insegurança, teria como alternativa, numa visão conservadora ou clássica, conforme a perspetiva, a segurança ontológica do lar, com os papéis bem definidos do modelo do homem, como pai e chefe de família, da mulher, como esposa e mãe, no quadro completo de uma relação tendencialmente procriadora, em que os filhos encontravam o tal universo seguro face à insegurança do mundo exterior. A este mundo interior da família, a Igreja oferecia, no espaço exterior, uma simbologia religiosa em que se incluía a devoção mariana, o culto dos santos, com o seu lado sacro e profano, as procissões e romarias, e uma exigência na penitência para o sacramento essencial da transubstanciação eucarística. É assim, neste cenário, que a barca de Pedro atravessa as vagas dos tempos, dos séculos XIX e XX: a família e o lar, a comunidade católica, com as suas datas simbólicas, do calendário litúrgico, consagradas como dias santos, a par dos feriados públicos, que mudam ao sabor dos regimes. Assim, a manutenção do universo católico tinha de ombrear com a chamada má imprensa, cujos valores não só divergiam dos valores pregados pela Igreja Católica, como, por vezes, os combatiam sistematicamente, num combate recíproco de exclusão mútua de legitimidade, ambos os lados convencidos de que eram detentores de uma crença que, metafísica e/ou religiosa, se propunha salvar a humanidade. A boa imprensa pretendia ser e declarava-se como o baluarte dos valores da doutrina, face a um mundo que se dissolvia nas correntes que queriam substituir a crença em Deus pela crença na ciência ou em ideologias que tinham a mesma estrutura teleológica, como o marxismo, mas que, em vez de situar a salvação na outra vida queriam uma sociedade perfeita neste mundo. A boa imprensa tinha uma missão e pretendia abarcar todos os aspetos da vida, não apenas a religião, mas igualmente a arte, a literatura e a própria ciência, criando, assim, uma cosmovisão que dispensava a imprensa má e pretendia assim conduzir o rebanho para os caminhos de Deus. A boa imprensa não se limitava à esfera estrita do religioso, dos sacramentos, das verdades da fé, como primeira instância do catolicismo, antes ambicionava oferecer uma identidade de vida cujas bases eram o catolicismo. A normatização da vida terrena e a relação do homem com o alto pela Igreja tem marcos ao longo dos séculos. Com efeito, podemos destacar três momentos marcantes na construção da identidade católica como norma desde os fins da Idade Média, com o Concílio de Trento (1545-1563), o Concílio Vaticano I (1869-1870) e o Concílio Vaticano II. Tudo isso levanta a questão dos novos desafios e valores com que a Igreja se vê confrontada, sobretudo desde o século XVIII. É nessa encruzilhada da História que é convocado o Concílio Vaticano II, no ano de 1961, pela bula papal Humanae Salutis, de João XXIII, concluído já no pontificado de Paulo VI. Este concílio, em contraste com os anteriores da história da Igreja, que, muitas vezes, significaram um maior enclausuramento da Igreja Católica face ao mundo, tem uma natureza de abertura ao mundo e representou, segundo algumas leituras, o fim do complexo de fortaleza em que a Igreja tendeu a fechar-se depois da Idade Média. No tempo medieval, a Igreja confundia-se com o próprio mundo conhecido, o mundo europeu. Mas se os três concílios referidos são marcos na história do catolicismo, a doutrina de normatização da vida dos católicos pela Igreja, mesmo no plano secular, sempre existiu, desde os seus primórdios e isso traduz-se em 21 concílios ao longo destes mais de 2000 anos. A questão é saber se essa normatização coincide com a mensagem de Cristo, que aceitava o mundo na sua diversidade, como se vê quando conta a parábola do samaritano, ou quando convive com a mulher adúltera ou com o cobrador de impostos, porque a todos quer imbuir do seu amor, ou seja, Cristo inclui na sua mensagem a alteridade, o outro, que é constantemente recusado por sectores fundamentalistas das diversas culturas, atitude, a da recusa, que se torna um obstáculo à comunhão universal. Que a interpretação pelas Igrejas cristãs da doutrina de Cristo é suscetível de ser alterada ao longo dos séculos, provam-no vários factos. Basta ver que, ainda hoje, algumas Igrejas cristãs consideram autênticos e, portanto, de inspiração divina livros que as outras principais Igrejas cristãs não aceitam. A  Igreja Ortodoxa da Etiópia reconhece o Pastor de Hermas e os Atos de Paulo;  a Igreja Apostólica Arménia ora aceita a terceira Epístola aos Coríntios, ora não a inclui entre os livros canónicos do Novo Testamento; a mesma Igreja Arménia não incluía na sua Bíblia o Apocalipse até 1200. Já a Bíblia copta, adotado pela Igreja do Egito, continua a incluir as duas Epístolas de Clemente. Poder-se-á arguir que estas Igrejas não comungam com a Igreja de Roma da mesma perspetiva doutrinal. Bem, por um lado, todas estas Igrejas cristãs, e que não incluem as Igrejas protestantes, se consideram lídimas intérpretes da doutrina de Cristo; por outro, temos o exemplo livro do Apocalipse, que, durante muito tempo, não foi considerado autêntico pela própria Igreja Católica e que hoje o é. Isto alerta-nos, desde logo, para duas coisas: que a Igreja não é a instituição estática e imune ao espírito do tempo, como alguns, dentro e fora dos muros eclesiais, julgam, e que é sempre preciso saber ler na doutrina oficial o que ela contém de marca do eterno, divino ou humano. Qual a importância destes factos? Revelar que a análise das opções culturais, ideológicas e culturais deve passar pelo conhecimento de que mesmo o sagrado da mesma confissão, neste caso, o cristianismo, nem sequer chega ao estatuto de universal nas suas diferentes Igrejas, o que deve precaver os fiéis para uma aceitação cega das crenças e convicções. A busca da síntese de um corpo por natureza plural como é o corpo da Igreja será permanente. A pluralidade sociológica da Igreja é origem da tensão permanente no seu seio, o que, aliás, se verifica desde os primórdios da sua existência e inclui não apenas a questão ideológica e política dos seus membros, mas a polémica da masculinização da doutrina, que, nos primeiros séculos, teria levado à ascendência de uma perspetiva esvaziada do papel da mulher. Nesse processo, incluir-se-ia a postergação de um hipotético evangelho apócrifo atribuído a Maria Madalena, cuja liderança incomodaria os apóstolos. Se o documento é real, a sua autoria fica por confirmar. Contudo, do ponto de vista simbólico, significa a existência de um modelo de Igreja quase estático e outro modelo de Igreja dinâmico, capaz de atribuir um estatuto a mulher idêntico ao do homem. O Concílio Vaticano II vai questionar esse desfasamento temporal e vai trazer, naturalmente, para o seio da Igreja, melhor, vai revelar no seio da igreja aquilo que tinha vindo a ser oculto, pelo menos desde o século XIX: a multipolaridade de identidades sociais e políticas que faziam a sua própria leitura da doutrina até então oficializada numa versão essencialmente conservadora e normalmente veiculada pela boa imprensa, que, sob a capa da normatização, oferecia e impunha uma certa visão do mundo, de natureza conservadora. Ao abrir-se à sua pluralidade interna, a Igreja abria-se ao mundo como um todo, mas na sua variedade. É óbvio que essa abertura expunha a Igreja aos ventos da mudança e a confrontava com a sua própria unidade. A dialética social, que sempre existira no interior da Igreja, tornava-a agora vulnerável e suscetível de ver a essa unidade abalada, uma unidade que, tantas vezes, sufocara o processo dinâmico inerente a qualquer instituição humana, ainda que reivindicando-se de natureza divina. Era agora a vez de as forças progressistas quererem impor a sua visão da doutrina. Revelava-se, portanto, muito complexo o equilíbrio entre os diferentes sectores no seio da igreja, que tinham ligações ao exterior. Afinal, não é a isso que se assiste, às várias tentativas de se apropriação sectorial do carisma do Papa Francisco na sua ligação com o mundo? Desde aquele instante em que o universo emergiu da incubação em que sempre se mantivera que a natureza inicia o seu processo infindável de se auto-organizar, ainda antes que o ser pensante quisesse começar a ter a veleidade de ele mesmo repetir o gesto inicial do fiat lux, tenho ele aqui o sentido literal ou literário da passagem do caos à ordem natural das coisas, porque é disso mesmo que se trata: em cada momento e em todos os tempos há que reorganizar, refundar, ordenar os elementos que se dispersam, caoticamente, se não forem absorvidos e submetidos a um sistema que lhes dê a ordem necessária. Todas essas tentativas que, ao longo dos séculos, se propuseram e nos propuseram a construção de uma sociedade perfeita têm em si duas ideias propulsoras: o mundo está uma desordem; é preciso ordená-lo. E uma estrutura imanente: a do momento do fiat lux, faça-se a luz que supere as trevas. Ao querer repetir esse momento inaudito e irrepetível, os homens sempre reservaram para si o papel dos deuses. E, concomitantemente, sempre tenderam do politeísmo para o monoteísmo, isto é, não só quiseram repetir o instante da criação como sempre quiseram ser únicos no sistema que propunham, porque esta é a natureza das coisas: se o modelo de sociedade que se propõe é aquele que melhor a serve, por que razão se haveria, sequer, de discutir outro modelo que concorra com ele? E partir daí, entendem que esse outro modelo está para o primeiro, no tempo ou na avaliação que é proposto, como as trevas estão para a luz. E é nesse instante que começa a recusa do outro. Qualquer modelo filosófico, cultural ou religioso traz no seu ADN a ideia de proposta e a ideia de recusa. Se essa tensão não for superada através de um processo dialógico, essa recusa mútua trará a rutura em qualquer sociedade, exatamente o oposto do que propõe cada um dos vários modelos. Mas não haverá legitimidade em cada um dos modelos? Enquanto proposta, opção e direito à recusa do outro, sim; enquanto recusa do conhecimento, do direito à existência do outro e do diálogo com o outro, não. E não, porque o homem não é Deus, mesmo que aceitando o princípio teológico de que tenha sido feito à sua imagem e semelhança, o que não quer dizer igualdade absoluta, o que não significa que não tenha o direito de querer caminhar em direção ao absoluto, num processo hegeliano do espírito em busca de si mesmo. A República de Platão, a Cidade de Deus de Santo Agostinho, a Cidade do Sol de Campanela, a Utopia de Thomas More, todas essas obras foram sempre proposições de arquétipos de sociedades perfeitas a construir na Terra, tal como a proposta marxista de uma sociedade sem classes, onde não haveria mais exploração do homem pelo homem, ao contrário da sociedade capitalista, em que o homem seria lobo do próprio homem, e onde a igualdade seria perfeita. Todos estes modelos defendem, contudo, a harmonia entre os homens e todos eles são compatíveis com o “amai-vos uns aos outros” de Cristo, só que Ele, que era filho de Deus, segundo os cristãos, ainda assim, não teve a veleidade de propor um sistema, político ou mesmo teológico perfeito – “o meu Reino não é deste mundo” –, mas ninguém o levou a sério, foi, então, crucificado, e note-se que não é metáfora, como pode parecer neste (con)texto, mas facto histórico que todos aceitam. Já aqueles modelos eram e são todos deste mundo e pronunciavam-se sobre todos os aspetos da vida humana. A propósito do chocolate, proveniente da América Central, e que aparece na Europa no final do século XVI, o Padre José Tolentino de Mendonça lembra uma questão teológica religiosa sobre se o uso do chocolate quebrava ou não a lei do jejum no tempo da quaresma, defendo uns que sim e outros que não, pois se era alimento quando sólido e violava o jejum, diluído em água tornava-se bebida. Afirma o Padre Tolentino de Mendonça: “a questão de fundo não é tanto o chocolate em si quanto o que ele representa: o confronto de modos de interpretar o mundo. De um lado, perfila-se uma posição ascética de rutura; de outro, expressa-se um entendimento do valor do mundo e da criação” MENDONÇA (“Religião e Chocolate”). Portanto, nada fica de fora de qualquer sistema de valores que se outorgue o papel de ordenador de uma sociedade que se pronuncia sobre o que existe ou sobre o que aparece. O Catolicismo é, portanto, um dos vários sistema de valores que se propõem às sociedades,. E afirma-se não apenas no aspeto religioso, mas igualmente na representação cultural e normativa que pretende para a sociedade em que se insere, sem descurar a questão política. Na sociedade madeirense, isso é visível na imprensa católica, a chamada Boa imprensa, boa justamente porque, segunda a própria, ela veiculava esses valores e deles se fazia eco e múnus doutrinário. Esse modelo de sociedade manteve-se em todo o século XIX até o Concílio Vaticano II, em que o diálogo ecuménico veio instituir uma nova relação com as outras confissões religiosas e, assim, alterar o conceito de alteridade desde sempre presente na cultura ocidental. Que a imprensa católica ou denominada neste artigo boa imprensa não se confinava nem se pretendia confinar ao caráter religioso, di-lo logo, inclusive, a denominação de alguns periódicos. Em 1879, circulava na imprensa regional um jornal que se intitulava “Religião e Progresso”, que já no nome traz implícita várias mensagens: que a religião não era incompatível com o progresso, ideia muito divulgada desde o Iluminismo, em que a Razão vinha ocupar o lugar de Deus na vida do homem, e que se acentua com as doutrinas filosoficamente materialistas, estávamos então nas vésperas do auge das teorias marxistas que vieram a sustentar a revolução de outubro de 1917, ano em que do céu, desciam as anunciadas aparições de Fátima. O jornal “Religião e Progresso” autodefinia-se como “jornal religioso, litterário, politico e scientifico”, na grafia da época e antes da reforma ortográfico radical de 1911, o que significa que este periódico, embora se declarando logo como religioso e dizia ao que vinha, não deixa de dizer que cobria vários campos do saber, dispensado, assim, outras publicações que se apresentassem como literárias, políticas ou científicas, porque ali tudo podia ser encontrado. O que se percebe muito bem, porque, se o objetivo era o do caráter da normatividade essa normatividade devia abranger todos os aspetos da vida em sociedade e procurava não se deixar ultrapassar nem ser considerado ultrapassado. Essa autocaraterização teria ainda como intenção não dar oportunidade que a leitura de outras publicações, nos vários campos do saber, induzisse outros valores incompatíveis com o modelo de sociedade que a boa imprensa pretendia incutir na sociedade madeirense, portanto, a doutrinação era multidisciplinar, mesmo que partisse do campo religioso. Neste jornal, nessa edição de 6 de Dezembro de 1879, o artigo de fundo era precisamente “A penitencia”. O artigo começa por falar sobre a forma de proceder dos apóstolos. “Se quizermos mais uma prova da maneira de proceder dos Apostolos, abramos mais uma vez a Escriptura” e conta, o artigo, o caso de um homem de nome Simão que havia sido convertido pelo Apóstolo Filipe e a forma como ele reagiu ao ver o poder dos Apóstolos: “Tempos depois do baptismo d’este converso, vendo elle que pela imposição das mãos dos Apostolos sobre a cabeça dos novos convertidos, descia sobre elles o Espirito Sancto, pretendeu comprar este poder. Simão pensava naturalmente que lhe seria de muita vantagem alcançar este poder; porque, exercido, lhe seria bem rendoso”. A questão teológica é saber como é que Simão seria perdoado desta iniquidade. E aqui há a polémica entre o Catolicismo e o Protestantismo: “Se a fé somente é o que justifica o homem, bastar-lhe-ha recordar os artigos que o apostolo S. Philippe lhe havia ensinado antes do baptismo”, diz o articulista e prossegue: “Não foi isso, porém, o que lhe prescreveu São Pedro. Terminantemente lhe dice: - Poenitentiam age ab hac nequitia tua: - faze penitencia d’essa maldade”. E neste ponto, afirma o articulista: “Creio que o Protestantismo não negará a um Apostolo, o conhecimento d’aquillo que é necessario para a remissão dos peccados”. E prossegue lembrando: “Simão era crente: - Tunc et ipse credit: mas, se apesar da fé de Simão, o apóstolo obrigou-o a fazer penitencia (…) que devemos concluir? Que não é somente a fé que justifica o homem, mas sim acompanhada da penintencia, a qual é absolutamente necessaria para a justificação, e que, por consequencia, é erro consideral-a inutil”. Este é um ponto crucial numa órgão da imprensa católica porque a penitência e o perdão do pecado é um dogma essencial ao catolicismo e um poder inalienável sobre os crentes, a quem não bastava ter fé para lhes serem perdoados os pecados, questão que o autor do artigo levanta: “Se isto assim é, se a penitencia é necessaria para a remissão dos peccados, como é possível que Jesus Christo quizesse dizer [ou seja, tivesse dito]: - prégae o Evangello; os peccados serão perdoados àquelles que acreditarem?! Serão perdoados pela fé, sem a penitencia?! Por acaso, pode a Escriptura estar em desacordo com Jesus Christo? Não, por certo”. E finalmente o articulista chega ao pomo da discórdia: “Se ha desacôrdo, é porque a interpretação do Protestantismo é errada; atribue á Escriptura o que ella não diz. Tira d’ella o que lhe appraz e não o que lá se acha”. Portanto, a posição do protestantismo sobre a questão da importância da fé na salvação do homem só pode resultar de uma má interpretação da Escritura. E de falta de senso: “Apellemos para o bom senso. Quem será que ouvindo estas palavras: os pecados serão perdoados áquelles a quem os perdoardes, serão retidos áquelles a quem os retiverdes: entenderá o seguinte: os peccados serão perdoados áquelles que acreditarem, serão retidos áquelles que não acreditarem?! Bem, qual é, então, o ponto essencial para o qual pretende chamar a atenção o articulista, além da discórdia da interpretação e da falta de senso que atribui ao protestantismo ao sustentar que é a fé que nos salva? É o do poder do sacerdote de perdoar os pecados, sem o qual não há salvação. Esse poder desapareceria se bastasse a fé ao crente: “Jesus Christo não subjeita o perdão dos peccados á fé, mas sim ao poder que confere aos Apostolos: mitto vos… quorum remiseritis, quorum retinueritis peccata”. Portanto, o poder de perdoar ou não perdoar, de reter ou não reter “segundo se verificarem ou não certas condições”. O Evangelho e a sua pregação abrange todos, mas o perdão não: “Mandando pregar o Evangelho, ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar peccados, não ordena que seja a todos: quorum retinueritis. (…) Jesus Christo mandando prégar o Evangelho ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar os peccados, deixa ao juízo dos Apostolas [sic] o julgar se os homens teem ou não arrependimento”. Portanto, segundo o articulista C. como ele assina, Cristo “deixa ao juízo dos Apóstolos”, que são homens, não só perdoar, mas decidir se há arrependimento ou não do pecador, o que pode perfeitamente ser subjetivo, um poder discricionário e terrível para um crente. O papel da boa imprensa fica clarificado quando compaginado com escritos que se lhe opõem e denunciavam, do seu ponto de vista, os objetivos dela. É preciso notar que a missão da boa imprensa não tem fronteiras é uma estratégia que conheceu divulgação por todo o mundo católico, inclusive com legislação que não escondia o seu objetivo. Nos finais de 1841, o governo prussiano aprovava um decreto que considerava ofensivo hostil à religião como ofensivo e difamatório. Acontece que no mesmo decreto censório se confundia, deliberadamente ou não, a religião e a política. Diz-se deliberadamente ou não, visto que os autores do decreto poderiam não confundir a religião e a política com a intenção de o fazer, confundir porque em suas próprias conceções ideológicas as duas se confundiam, sendo também ambas obviamente conservadoras, não podendo nenhuma delas, nem a fé nem a política, ser, de modo algum, progressistas, contra isso se levantavam vozes por todo o lado. Karl Marx, a 5 de Maio de 1842, dia do seu 24º aniversário, estreia-se com o seu primeiro trabalho jornalístico justamente com um artigo que era uma verdadeira declaração de guerra a essa nova lei do governo da Prússia e, assim, uma guerra à boa imprensa prussiana. O artigo foi escrito no novel periódico «Rheinische Zeitung», o qual, justamente à luz do decreto referido, veio a ser alvo de censura e finalmente encerrado. Marx procura destruir o absurdo decreto, no seu ver, recorrendo, com eloquência e acutilância, à literatura, mas de uma forma cómica e sarcástica, procurando demonstrar que o decreto acabaria por provocar consequência contrárias aos seus objetivos: “A liberdade faz [de tal modo] parte da essência do homem que até os seus oponentes a implementam quando combatem a sua realidade; querem apropriar par si mesmos, como o ornamento mais precioso, aquilo que rejeitaram como ornamento da natureza humana”. E depois procurava demonstrar que ninguém logra combater a liberdade em si mesma, a não ser a liberdade do outro: “Nenhum homem combate a liberdade; quando muito combate a liberdade de outros. Assim, toda a liberdade existiu sempre num momento como um privilégio especial e noutro como um direito universal. A questão tem agora um significado consistente, pela primeira vez. A questão não é se a liberdade de imprensa deve existir, pois ela existe sempre. A questão é se a liberdade de imprensa é um privilégio de indivíduos particulares ou um privilégio da mente humana”. Essa era a questão essencial: a liberdade de imprensa existe sempre para quem tem toda a liberdade de defender as suas ideias, se elas foram permitidas pelo poder, mas não existe para aqueles que possam defender ideias que o poder, qualquer que ele seja, não consente. Por isso, Marx afirma nesse artigo: “A censura não abole a luta [entre boa imprensa e a má imprensa], fá-la unilateral, converte uma luta aberta numa luta escondia, converte a luta sobre princípios numa luta de princípio sem poder contra um poder sem principio. A verdadeira censura, baseada na própria essência da liberdade de imprensa, é a crítica. (…) A censura é a crítica como monopólio de poder”. A análise de Marx do decreto do governo da Prússia toca no ponto essencial da questão: o decreto não abole a luta entre a boa imprensa e a má imprensa, apenas a oculta. O que é que Marx critica e denuncia? Que as duas imprensas não possam pelejar em campo aberto e que a uma seja dada a luz do dia, a boa imprensa, e que a outra, a má imprensa, tenha de esconder-se para existir e criticar aquela. Esse é o âmago da questão: que as duas não possam ser legítimas e mesmo que se possam considerar, mutuamente, de má imprensa, à outra, e boa imprensa, a si mesma. E sobretudo critica que ambas ambicionem a viver sozinhas, sem concorrência, impondo a sua visão do mundo a toda a sociedade. Marx estava longe de imaginar – ou imagina? – que, em seu nome, a boa imprensa, católica, tenha sido proibida em países e regimes que se reclamaram da sua doutrina. Ou melhor, que a boa imprensa, nesses regimes, passou a ser aquela que veiculava a ou uma nova versão oficial contraposta a antiga versão oficial conservadora que a antiga boa imprensa, católica, veiculava. A boa imprensa, então, passara a ser a imprensa progressista. Este é um ponto que não pode ser torneado neste artigo em todas as suas latitudes e azimutes. Este jornal prussiano, contudo, não terá beneficiado daquela intimidade de que goza a imprensa regional, que têm as característica de proximidade e de familiar, como assinala o padre António Rego, num artigo justamente intitulado «A dignidade da imprensa regional”. A imprensa regional fala aos crentes, quase familiarmente, com a característica, como assinala o mesmo prelado, de, sendo os “jornais regionais uma espécie de reserva ecológica da imprensa” terem “defeitos dos pequenos espaços circulares onde as narrativas da aldeia falam mais de pessoas que de ideias. Ou das ideias de apenas algumas pessoas” (REGO, «A dignidade…). Ora o autor não deixa de assinalar - não obstante relevar o papel da Igreja na criação da imprensa regional e no seu desenvolvimento correspondendo ao apelo da Igreja universal -, por outro lado, que a mesma imprensa regional no “nosso país surgiu, na linha da boa imprensa”, desde diários, semanários e mensários, “que faziam circular as ideias nas dioceses e nas aldeias mais longínquas”. Mas não deixa de se queixar o autor que o poder político tenha olhado com desconfiança para esse “vaivém de informações”, certamente um poder político que, politicamente, não se revia ou até, talvez, era visado como sendo um poder que estava do outro lado dos valores que veiculava a boa imprensa. Em termos atuais e na dicotomia política europeia, esse poder político que olhava de soslaio essa imprensa tenderia a ser identificado com a esquerda, ao passo que a direita política, cultural e sociológica não se sentia visada, antes representada e identificada com essa boa imprensa. Rego, contudo, reconhecido como cidadão do mundo por todos, não procede a essa dicotomia fácil e simplista, limitando-se a assinalar, porém, a propósito do porte pago, uma forma de apoio à imprensa regional, que as flutuações do poder, sob o protesto de apoiar os órgãos de imprensa mais fortes, deixar cair os mais pequenos. A generosidade da ideia, contudo, trazia no bojo o propósito de “favorecer a criação de alternativas a uma imprensa cristã já existente por outra que, com mais apoios oficiais, autárquicos e nacionais refletisse a voz dos donos” (idem). Este artigo de António Rego escrito em 13 de Fevereiro de 2007 não deixa de ser simétrico - e até parecer ser uma resposta, quanto ao lugar donde parte, de defensor da boa imprensa - do de Karl Marx de 5 maio de 1842 contra o decreto prussiano de finais de 1841, já antes referido, em que Karl Marx se insurge contra o decreto, por na prática, defender os valores veiculados pela boa imprensa. E nessa posição simétrica da de artigo de Marx, que se queixava do decerto, Rego, queixa-se da forma como estava a ser usado o apoio à imprensa, nomeadamente através do apoio ao parte pago, para, na prática, criar dificultar a vida da boa imprensa, que, normalmente tinha dimensão local ou regional, em favor de uma imprensa de maior dimensão, mas que, na prática, já não partilhava os valores dessa boa imprensa, ou seja, era já não prosélita como a boa imprensa, mas, pior ainda, mas de um outro proselitismo, porque era laica e, ainda cima, aparentemente neutra, portanto mais difícil de combater. Ambos, porém, eram, em termos absolutos, isto é, quando não enquadrados em setores ditos conservadores ou progressistas, de direita ou de esquerda, rigorosamente equivalentes na defesa de um determinado tipo de empresa em desfavor de outro, posição, a de ambos, cuja legitimidade não pode ser contestada enquanto não propugnar abertamente a extinção e a perseguição ao outro tipo de imprensa. Por outro lado, o esquema cultural com que se encara os dois lados não pode, a não ser em termos epistemológicos, situar à esquerda ou à direita, em termos de progressistas ou conservadores, cada um dos setores, pois bem sabemos que essa utensilagem mental, para usar uma expressão de Fernand Braudel, nem sempre corresponde à realidade política em diferentes épocas e latitudes, pois não é verdade que a implantação da República no Brasil se deveu a um ato culturalmente de esquerda, visto hoje, da Princesa Isabel, de abolir a escravatura? E que os Democratas americanos, de esquerda em termos europeus, eram esclavagistas, no Sul dos Estados Unidos, e os Republicanos, considerados conservadores, eram favoráveis à abolição da escravatura? Em qualquer caso, o que se nota é um proselitismo em função da posição religiosa, política ou ideológica de cada um, que se pode revelar quer pela afirmação dos seus princípios, quer pelo combate aos princípios alheiros. É óbvio que, nos setores e territórios em que uma determinada crença ou ideológica é maioritária ou tem o privilégio da exclusividade, sendo proibidos as outras correntes ideológicas ou religiosas, a corrente predominante não precisa de as combater nem de se afirmar contra elas. No caso em que as correntes minoritárias são consentidas, estas têm a tendência em se afirmar, desde logo, perante a corrente dominante. No caso da Madeira, em que o catolicismo sempre foi maioritário, era normal que alguns órgãos de comunicação se afirmassem contra ele, como é o caso de uma revista, que, existindo no século XIX se intitulava justamente “Revista histórica do proselitismo anti-catholico”, dirigida por Robert Reid Kaylley. Voltando à questão do supra referido, publicado no jornal “Religião e Progresso”, a sua importância não podia ser maior no contexto da boa imprensa, porque ele versava, por um lado a penitência e o poder consequente de perdoar, por outro, a polémica explícita com o protestantismo, que entende que basta a fé e não os atos, segundo o artigo ali publicado, e por outro, pode, subtilmente, dar a entender que, se o perdão está reservado aos apóstolos, conforme lhes foi conferido por Cristo, ou seja, aos sacerdotes, e que, se sem esse perdão ninguém poderia ter salvação, então os não católicos não teriam salvação. Quer-se anátema maior lançado sobre os pecadores que não tivessem acesso livre a esse perdão. Quem: os que não se arrependiam? Desde logo! Os protestantes? Imediatamente a seguir! E mais: os que não partilhassem dos valores veiculados pelo catolicismo? Os que não liam a imprensa que os veiculava? Os que, concretamente, não liam aquele jornal? Estas são as questões que se levantam! Mas, depois, outro artigo do mesmo jornal, que também se intitulava político fala de um ato eleitoral. Penariam, também, eternamente, os que não partilhassem das ideias políticos que o jornal veiculava, porque se há um sistema de valores ele não se esgota na religião, estende-se a todos os campos, inclusive aos da política, ou seja, também os eleitores, por certo, não escapariam a retenção da absolvição. Mera especulação intelectual do leitor, inferência ilegítima do que ali não está? Não estão as deduções no campo da doutrina política, mas estão claramente as posologias da doutrina religiosa católica para os males do mundo. Sem perdão não há remissão. Não sendo este um tratado de teologia, importava aqui saber o conceito de pecado. Pecado é a ausência do bem, é a ausência de Deus, que origina o mal, o diabo. O diabo não é, como às vezes pareceu ser em certas correntes ultramontanas, o outro lado de Deus, o seu oposto equivalente, porque, então, dessa equivalência de duas potências, poderia, numa oposição de contrários, caminhar-se para uma síntese hegeliana de superação dessa dicotomia. Sendo Deus aquele que é, “Eu sou aquele que é”, I am that i am”, o diabo, que existe, neste caso como alegoria do mal, sendo aquele que não é – o bem, tende, numa homologia perigosa e de equipolência, a ser aquele que não é como nós, ou seja, o outro de nós mesmos, problema que subsiste na cultura ocidental desde sempre que ela existiu. Ora, se o diabo, como ausência do bem, deve ser extirpado, então o outro, que é aquele que não é – como eu [sou], tende, primeiro culturalmente, e, depois, em situações de afirmação radical de sistemas absolutos que a si mesmo se consideram perfeitos, fisicamente a ser eliminados, porque perturbam a ordem instituída. Como é que se entende a eliminação física dos não católicos, mesmo sendo crentes do mesmo Deus, pelas fogueiras da Inquisição, senão por se tratar do outro em relação ao conceito de sociedade que se defendia e, nessa sociedade, ao conceito que ela pretende impor da própria ideia de Deus? – “A cultura ocidental, erigida sob a égide da ontologia grega, historicamente relegou o outro em sua alteridade ao esquecimento, numa supremacia do ser que justificou as cruzadas, a colonização, a escravidão, os regimes totalitários como o fascismo e o nazismo, entre outros […]A modernidade fundada no racionalismo de Descartes, voltada para a ideia da perfeição e das verdades inatas (divinas), sem a perspetiva da existência do outro, dará luz o eu gestado no Ocidente desde Platão”. (BIRMAN, “O reconhecimento da alteridade, 275). Essa recusa do outro manifesta-se na religião, não só entre as religiões mas dentro das próprias religiões e as suas diferentes correntes. No Cristianismo, o caso das guerras permanentes entre católicos e protestantes, na Irlanda do Norte. No Islamismo, entre sunitas, xiitas, waabamitas, em que cada seira se considera o verdadeiro intérprete do pensamento do profeta. A designação de boa imprensa traz consigo uma valoração implícita no adjetivo bom. Ao autor de um artigo de dicionário ou de uma enciclopédia põe-se a mesma questão que se coloca ao sociólogo, que é a de saber se deve analisar os factos e as instituições sem emitir juízes de valor sobre os mesmos . No caso da análise da boa imprensa, ou seja, a imprensa católica, deverá o autor do texto limitar-se a observar, abstendo-se de ajuizar, mesmo que veja nela valore morais que possa considerar essenciais numa sociedade, situá-los num determinado tempo e lugar ou admitir que os valores que ela veicula são comuns a outros credos religiosos, cristãos ou não? A reflexão não tem de ter uma resposta explícita, mas não podia deixar e ser feita. Em qualquer circunstância, o enquadramento de um facto no seu tempo e na linha do tempo deve ser a resposta para a sua compreensão, o que, assim, obvia apologia ou condenação que lhe não é exigida. Tem sido essa a linha que este artigo, entender a boa imprensa no interstício de vários tempos e e correntes doutrinárias. O jornal «Pregador Imparcial da verdade, da Justiça e da Lei”, na sua edição de 6 de Dezembro de 1823, em tom grandiloquente, anunciava, num artigo intitulado «Alemanha» que o governo deste país tinha dado ordens severas contra as sociedade secretas, visando a maçonaria, obrigando a que “todo aquelle que aspirar aos Empregos, tanto civis como ecclesiáticos, està obrigado, para ser admitido aos exames, a apresentar certidões de Policia, que façaõ fé, de não ser parte em nenhuma destas associações, e deve ter-se muito em vista que se verifique esta condição, mormente quando se tratar de prover os lugares de ensino público”. O «Pregador Imparcial da Verdade…» não só publica, como incentiva que a medida se propague: “Publiquem-se pois em todas as Nações os quadros de todas as Lojas». Segundo o espírito do articulista, a publicação das litas dos maçónicos resulta da obrigação de servir o bem público. Não podem as instituições serem dominadas por indivíduos que possam contamina-las. Se as instituições resultam de um conjunto de circunstâncias, segundo Montesquieu, podemos concluir que as que existem são as melhores possíveis naquelas circunstâncias, porque resultam de uma determinada influência social. Impor-se-ia, portanto, saber o que será necessário para se atingir os objetivos que se pretendem alcançar o melhor possível. Ora, segundo o articulista, atingir o melhor possível os interesses sociais de uma instituição é varrer dela os indivíduos que, pertencendo a uma associação secreta como a maçonaria, supõe-se que não poderiam ter direito a ser titulares das mesmas instituições que, obviamente, para o articulista, deviam ser portadores dos valores que eram veiculados pela boa imprensa. Poderia, abusivamente ou por extensão ilegítima, segundo a máxima de Montesquieu de que se “a legislação resultou do espírito de uma nação” , seria lógico adaptar as leis-comando ao espírito da nação. Mas essa seria uma adaptação ilegítima porque o articulista transmite o sentimento de uma parte da nação que não pode ser tomado como o espírito nacional, que é o todo e não a parte. Assim é, quer viva a nação em monarquia ou em república, sendo que a igualdade que, em teoria, a república implica deveria ser ainda mais impeditivo que isto acontecesse num sistema de governo republicano, privar os cidadãos de pertencer às instituições públicas por não professarem uma ou outra religião e professando esta pertencessem a uma ala progressista ou conservadora desse credo religioso. Nem mesmo a natureza do regime, ao tempo monárquico, poderia ser respaldo para defender tal iniquidade. Não é natureza do regime, monárquico ou republicano, que vai determinar a justeza das leis que devem consagrar o sentido da justiça que é anterior às leis positivas universalmente aceites: “Dizer que não há nada justo e a não ser o que ordenam ou proíbem as leis positivas é [o mesmo que] dizer que antes de ser traçado o círculo nem todos os seus raios eram iguais” (ARON, 57). De facto, não se pode considerar válidos critérios cujos efeitos sejam a exclusão de uma parte da sociedade, mas sim aqueles critérios ou leis que, anotando as diferenças de uma determinada realidade social ou política, ou religiosa, sejam capazes de garantir essas diferenças. Ora o que diz o articulista é que a lei a aplicar deve ser aquela que considera válidas para integrar as instituições os cidadãos que não tenham pertença a instituições de caráter secreto. Essa recusa do outro enquanto indivíduo que não partilha dos mesmos valores é um fenómeno resultante da vida em sociedade, porque o homem, no seu estado natural, isto é, anterior ao estado de vida em sociedade, vive “uma verdadeira paz, pelo menos um estado alheio à distinção paz-guerra” (idem, 58). Esta atitude resulta, segundo Montesquieu, da vida em sociedade, ao contrário do que pensa Hobbes, para quem o homem vive, naturalmente, em estado de guerra permanente contra o seu semelhante. Esta diferença de conceitos, em que, segundo um, Hobbes, o homem é um ser por natureza inimigo do homem, como sua característica intrínseca, ao passo que para Montesquieu, essa não é a sua natureza, sendo conflito um fenómeno social, não sendo possível regressar ao estado de pureza do homem imaginável antes de viver em coletividade, como o concebeu Jean-Jacques Rosseau, conduz à necessidade de superar o conflito em sociedade através da aceitação do outro, a questão da alteridade na cultura ocidental. Esse equilíbrio social só pode ser conseguido através da constatação de que a ordem social é, por regra, heterógena e a liberdade de todos não pode senão resultar da inclusão social de todos os membros de uma sociedade. Hobbes defende um poder absoluto em resultado desse conflito social permanente em guerra com os seus semelhantes. Observa assim, que, neste ponto, o articulista coincide na com Hobbes e não com Cristo, ao defender que não devem ter acesso a certos empregos, nomeadamente ao ensino público , em virtude de serem maçónicos, os pedreiros-livres, defendo que todas as polícias, sabendo as lojas maçónicas há muito, deveriam imprimir as listas dos seus membros e se não as fazem é “porque appareceriaõ talvez marcados com este ferrete o Duque, o Marquez, o Conde, o Cavalheiro, o Magistrado, o Frade, o Clerigo” (in «Pregador Imparcial da Verdade») e acrescenta que não poderia haver mal de tal coisa porque sabiam da existência da lei. Se o autor de um artigo se deve dispensar o papel de julgar as instituições, não deve eximir-se ao dever de fornecer todos os dados a quem o deve fazer, o leitor. A equação dos dados num artigo deve permitir ao leitor o papel de julgar, de que se deve dispensar o autor. Se aqui a atitude do articulista do texto «Alemanha” deriva da sua ideia de organização da sociedade e dos valores que defendia, essa atitude deve ser confrontada com o que pensam sobre a questão da organização social os grandes pensadores de correntes diversas. Assim será possível verificar a finalidade imanente das atitudes humanas com as do autor daquele artigo e sobretudo o momento histórico em que aquele é escrito. Há, com efeito, dois aspetos atitudes culturais claramente identificáveis no jornal. Por um lado, esta atitude da boa imprensa de recusar de tudo o que saia dos cânones da doutrina católica tem um contexto histórico-cultural. Antes de mais, convém esclarecer que a própria existência da boa imprensa é um si mesma uma prova de que os tempos da afirmação inquestionável da autoridade teológica já passara. O aparecimento da boa imprensa coincide com uma necessidade de reafirmar e manter a unidade da mensagem católica num tempo em que outro tipo de autoridade começava a surgir e que abalava a autoridade teológica. Passara o tempo em que a autoridade política e religiosa coincidiam e juntas formavam a autoridade universal. Os tempos agora eram outros e o tempo histórico da sociedade europeia nos princípios do século XIX haveriam de conhecer profundas alterações. Se o poder político era afirmado pela força das armas, o poder religioso era firmado pela poder teológico sustentado na infalibilidade papal. É nesse contexto que o Concílio Vaticano I proclama a infalibilidade papal, dogma da teologia católica que confere ao papa o dom de definir a interpretação e clarificação em matéria de fé e moral, na medida em que ele, em comunhão com o Sagrado Magistério, o faz no gozo da assistência sobrenatural do Espirito Santo, e, desse modo, fica imune a todo o erro. A função de Magistério da Igreja é do múnus do Papa  e pelos bispos em comunhão com ele. Auguste Comte assevera que o início do século XIX assiste ao fim de uma tipo de sociedade, que tem origem na Idade Média, em que o poder se caracteriza pelos dois adjetivos: teológico e militar. Esses poderes, teológico e militar, partilhavam a supremacia numa sociedade claramente marcada pela hierarquia eclesiástica e militar. A supremacia desses poderes está em vias de ceder o lugar a um outro tipo de sociedade científica e militar: “A sociedade que nasce é científica no mesmo sentido em que a sociedade que morre era teológica” (Comte in ARON, 59). Segundo Comte, a forma de pensar dos tempos passados, a dos teólogos estava a ser substituída pela forma de pensa dos sábios. A sociedade do início do século tinha agora uma nova categoria social que lhe fornecia a base intelectual e moral, que era a dos sábios, que herdavam o poder espiritual dos padres e passavam a ser o novo modelo de pensar, a nova fonte das ideias que serviam a nova ordem social, ao mesmo tempo que os industriais haviam de substituir os militares. Nesta nova ordem, a força militar desapareceria porque era uma sociedade em que os novos detentores do poder exerciam-no pelo pensamento científico e não pela força. Analisando este nova sociedade que despontava, Auguste Comte conclui que a reforma social a que se assistia implica um reforma intelectual e isso só se faria entre a síntese da ciência e de uma política positiva. Neste cenário, em que o poder teológico cede o passo aos sábios, a nova classe intelectual proposta por Comte, é natural que a boa imprensa sinta a necessidade de reafirmar o modelo de sociedade e de família proposto pela doutrina católica, que se confronta, ainda por cima, com perturbações sociais derivadas das contradições de uma sociedade em crise de mudança. Vários modelos confrontam-se então: o modelo proposto por Comte é aquele que visa superar as contradições sociais resultante do confronto entre a ordem antiga, teológica e militar, pela nova ordem, científica e social. Ao lado destes dois modelos, surge o grande doutrinador da Revolução, Karl Marx. Montesquieu, por sua vez, defende a doutrina das instituições livres. Em confronto com estes três modelos, o modelo proposto pela boa imprensa, em que as verdades são eternas, imutáveis e indiscutíveis, e, desde o Vaticano I, reforçadas com a infalibilidade papal, que, obviamente é uma resposta a esse novo tipo de autoridade científica que surge: como contestar o que existe por inspiração divina, através do Espírito Santo? Além de querer divulgar esse modelo à sociedade, a missão da boa imprensa visa reforçar a unidade interna da Igreja. A sociedade tinha de ser visto no seu todo para ser compreendida e esse era agora – então - o objetivo da sociologia. Nenhum facto devia ser entendido isoladamente, sobretudo a partir de uma ciência como a biologia. Já não bastava analisar os fenómenos de per si, mas integrados epistemologicamente. As ciências já não podem ser puramente analíticas, mas devem ter caráter sintético. Isto origina a conceção sociológica da unidade histórica. Ora não se pode entender a sociologia como se ela fosse uma ciência de natureza inorgânica , que tem um caráter analítico ao estabelecerem leis entre fenómenos isolados. Tal como a biologia, que não pode explicar um órgão ou uma função sem integrá-lo anatomicamente, não se pode compreender um acontecimento, por mais relevante, sem o situar na sincronia, isto é, no seu tempo, e na corrente diacrónica, ou seja, conhecer os seus antecedentes e, eventualmente, estabelecer, prospectivamente, eventuais desenvolvimentos futuros. Um cientista não pode cortar uma parte do organismo para saber como ele funciona. Pode deter-se, epistemologicamente, sobre ele mas só o pode explicar no todo, porque estamos a falar da vida e não da morte. Essa inserção do elemento no todo da biologia transfere-se para a sociologia, em que o todo tem primazia sobre o elemento. Segundo o pensamento de Comte, “Não compreendemos a situação da religião […] numa sociedade particular, se não considerarmos o todo dessa sociedade”. (ARON, 86). Não é possível compreender o papel da boa imprensa, por um lado, sem conhecer a evolução histórica da sociedade no seu todo e, por outro, a própria evolução e reinterpretação da doutrina da Igreja à luz do Evangelho, é certo, mas também à luz da sua adaptação constante à sociedade do seu tempo, o que contradiz a ideia comum de a Igreja Católica não ser capaz de introduzir no seu seio dinâmicas vivas capazes de a reatualizarem, à luz dos tempos, o que o estudo dos vinte e um consílios da sua história milenar certamente elucida. Poderá sempre ser acusada de estar mais preocupada de manter o statu quo ante, de manter a autoridade incontestável do seu Magistério na pessoa do papa, mas nunca de ignorar a passagem do tempo, elemento fundamental do seu porvir, porque a Igreja olha os tempos que passam com a sabedoria do Tempo eterno de que é detentora, não apenas enquanto instituição, mas o do Verbo de que se proclama representante. Enquanto a boa imprensa propõe a prática da doutrina cristã na Terra para ganhar o paraíso; o positivismo advoga o progresso humano com base nos avanços da ciência – etimologicamente scientia, note-se, porque é aqui importante -, como meio para a transformação da humanidade; já o marxismo propõe-se construir uma sociedade de justiça através da dialética que afirma estar imanente a uma sociedade dividia em classes. Assim, as três correntes de pensamento convergem em dois aspetos: a scientia, a ciência e o seu caráter teleológico. Pela ciência, o conhecimento, da Verdade, a boa imprensa promete ao crente o alcance do céu; com o progresso da ciência, podemos alcançar o progresso ilimitado da Humanidade, defendem os positivistas; com a ciência da sua circunstância e conhecendo os limites da sua vontade no momento da sua escolha – “Os homens fazem sua própria história, mas não as fazem segundo sua livre vontade; em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado”, (Karl Marx in «O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 2008, p. 207, citado em FRANKLIM, 204), o homem construirá a grande síntese final que é a sociedade sem classes. Assim, as três correntes, caminham para um fim previsível, o paraíso, sendo que a boa imprensa, isto é, a religião católica nos propõe vencer as agruras deste mundo com o paraíso no outro; o positivismo e o marxismo propõem-se construir um outro mundo ainda neste mundo. Perante isto, é de concluir – con[s]ciência certa – que, se não desistirem da sua caminhada, ainda que po percursos diversos e até divergentes – hão de encontrar-se todos às portas de uma Nova Jerusalém, e também nesse caso, serão vencidas as fronteiras entre este mundo e hoje: “Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar já não existia. Vi a cidade santa, a Nova Jerusalém, que descia do céu de junto de Deus”. (Apocalipse, 21: 1,2). Tanto Comte como Marx pretendem uma nova forma de organização do poder temporal, isto é, do poder político, mas enquanto Marx proponha a revolução, os positivistas de Augusto Comte acreditavam que o poder temporal podia ser reformado pelo poder espiritual que caberia aos sábios e filósofos, que teriam o mesmo papel que caberia aos padres na idade teológica, segundo a sua conceção: “O poder espiritual deve regrar os sentimentos dos homens, uni-los em vista de um trabalho comum” (ARON, 97). Para os marxistas, não só todas as estruturas do velho poder devem ruir pela força da revolução, como o papel de construir uma sociedade nova competia às vanguardas revolucionárias, quais sacerdotes de uma nova metafísica revolucionária. A boa imprensa segue a linha de que o poder de transformar o coração dos homens deve continuar a ser da Igreja e do seu magistério - sacerdotes, bispos e o papa -, cuja autoridade advém da Verdade que lhe(s) inspira o Espírito Santo, fonte da renovação constante da Igreja, cabendo a esta espalhar, desde o tempo de Cristo, a conversão interior dos homens e da humanidade. Para a boa imprensa, o Catolicismo era a verdadeira Religião da Humidade e a Igreja, Católica por natureza, isto é, universal, tinha o direito e o dever de divulgar a sua mensagem através dos meios de comunicação ao seu dispor. Os positivistas, por seu lado, proponham-se instituir a sua Religião da Humanidade, um nova religião, de que as religiões do passado eram apenas formas provisórias, que procuravam no sobrenatural e nos deuses aquilo que devia ser procurado no cerne da própria humanidade, cuja unidade moral e humana era o Ser Supremo de si mesma. À escolástica de Tomás de Aquino e dos Padres da Igreja, que tanto tinham influenciado e fundamentado o catolicismo, Comte contraponha a filosofia positivista como o fundamento da sua nova religião. Embora positivista, esta nova religião não dispensava, todavia, os seus templos e capelas e até um novo calendário, o calendário positivista composto por treze meses de vinte e oito dias, com base no calendário lunar e tinha como ideal o altruísmo, palavra criada por Comte. Em síntese espontânea: em que é que diverge o espírito semântico d’ o amor ao próximo de Cristo, o altruísmo de Comte e a igualdade de Karl Marx? O que sabemos, porque observamos a passagem do tempo e do que ele deixa prevalecer, é que o poder espiritual que subsiste é exercido pelas igrejas do passado ou pelo poder de ideólogos, e não pelos verdadeiros sábios ou filósofos, como idealizava Comte na sua nova religião. Se Comte pretendia uma desvalorização dos conflitos ideológicos e do poder temporal, isto é, do poder político, ambição comum aos doutrinadores da boa imprensa, a verdade é que a Europa e o Mundo sucumbiram, por duas vezes, no século XX a esses conflitos que tiveram por base a questão ideológica e que fizeram perecer milhões de seres humanos. Comte preferia a desvalorização do conflito ideológico e do poder da hierarquia temporal e um ascendência do poder espiritual dos sábios sobre a organização social, mas isso está longe de ser uma realidade: “Provavelmente os homens preferem sempre o que os divide ao que os une. Provavelmente cada sociedade é obrigada a insistir no que tem de particular e não nos traços comuns que compartilha com todas as sociedades” . (ARON, 98) Há ideias e os valores que numa sociedade são subtilmente insinuados, aliás, muitas vezes com uma eficácia muito maior, por uma determinado doutrina religiosa ou corrente ideológica ou cultural do que aqueles explicitamente expostos. Quando os revolucionários franceses mudaram o calendário gregoriano por uma calendário próprio ou quando os positivistas pretendiam impor o seu calendário sabiam que isso era uma forma de incutir os valores simbólicos que esse calendário implicava. Hoje é frequente determinadas confissões religiosas minoritárias nos países maioritariamente católicos, como o nosso, reivindicar a legitimidade de lhes ser concedido o dia de guarda da sua religião, o caso de judeus e adventistas, para descanso, tal como os católicos têm o domingo, ou os momentos diários de oração e meditação, caso dos muçulmanos. Os rituais e implicações culturais de um calendário religioso não deixam de ser reivindicados pela boa imprensa, num reafirmação dos valores católicos face ao movimento de secularização da sociedade, que vinha já dos séculos passados: “a rivalidade medieval entre o papado e o império, a Reforma protestante, o século das Luzes, para citar apenas as etapas principais da secularização das sociedades europeias” (Gianni Vattimo in BINDÉ, 35/36). Essa secularização tem ainda outros momento importante na crescente secularização, como a revolução tecnológica, sobretudo no século XIX e a crescente urbanização da sociedade, o que leva “à «perda do centro», isto é, a dissolução das tradições comuns e das crenças nos mesmos valores, seja do ponto de vista religioso seja do ponto de vista ideológico” (idem, 37). Esse movimento de secularização, tem, assim, um largo rastro, e, para os alguns, nomeadamente para os arautos da boa imprensa, que o queriam impedir, ou para outros que o observavam e ou até senão o desejavam, nada lamentavam, como Nietzsche ou Spengler, significava o crepúsculo do Ocidente, esquecendo, como lembra Vattimo, que o crepúsculo, ou alpardinho, no dizer madeirense, “não é apenas o declínio do Sol no poente, mas aquela luz lenta e insegura que anuncia uma nova aurora”. A boa imprensa não deixava de estar atenta a esse movimento da secularização. Num artigo de 11 de dezembro de 1909, no jornal «Brado d’Oeste», defendia-se o descanso semanal e insurgia-se contra o seu incumprimento: . “um abuso que não deve continuar”. Se a questão era a do trabalho e a do direito ao descanso semanal, a questão das datas importantes do calendário litúrgico e o valores da família eram uma constante neste bissemanário da imprensa católica. No próprio dia 25 de Dezembro, dia de natal, no editorial do «Brado d’Oeste» o editorialista escreve: “Vêem-se alli cumpridos oraculos e prophecias”, a profecia que é a concretização do que tinha sido anunciado no passado para o futuro, e assim se fundem a lembrança do passado e a espera do futuro, numa espécie de plenitude do ser, situado naquilo a que Derrida designa por “logocentrismo”, na media em que essa plenitude se situa na realidade ontológica do ser, para além da circunstância do ente no tempo divido da realidade, a dimensão temporal da existência humana. Nessa realidade logocêntrica, o homem ultrapassaria a sua dimensão socio-político-religioso-cultural, situando-se no plano ontológico, em que se dissolvem as diferentes visões do mundo. Isso não significa que essa realidade ontológica seria conseguida à culta do fim das civilizações, mas que todas elas saberiam situar-se e compreender-se como uma das várias manifestações do ser na sua plenitude, como condição de unidade da humanidade na sua pluralidade. Assim, a boa imprensa, não deixaria de ser entendida como uma das faces da realidade, na afirmação dos seus valores, como um dos contributos inalienáveis na afirmação da unidade do ser. Mesmo que ela e os que definiam contra ela se considerassem, reciproca e simultaneamente, como representantes únicos da verdade, excluindo cada o outro de o ser, esse antagonismo só reforçaria o vitalismo de cada um, o que é dizer que os faz andar mais depressa, na senda de uma visão teleológica da realidade. Todas as manifestações religiosas, culturais, civilizacionais participam, numa perspetiva hegeliana, da caminhada do Espírito sobre a Terra até a realização da consciência plena da Razão na sua plenitude final, mas é normal que nenhuma delas ou nem todas elas tenham a noção do seu papel insubstituível e único, mas não exclusivo, na consecução da plenitude da humanidade. Se a História, na visão kantiana, corresponde à realização dos planos secretos da natureza, é natural que os seus autores, muitos deles, não tenham a noção exata do seu papel no grande drama humano. Não se pode, desse modo, pedir a todos, que, para além de saber de cor o seu papel, tenham a ciência exata do sentido da grande narrativa da Humanidade. Assim, as ideologias, as religiões, as culturas, as civilizações são manifestações parcelares da Humanidade na medida em que não a representam no seu todo, mas nenhuma delas deve ser extinta violentamente porque isso seria decepar cada uma das formas em que o espírito humano se manifesta. O mesmo não acontece quando uma determinada civilização se transforma ou se deixa absorver, paulatinamente, por outra, porque, na verdade, ela não desaparece, a não ser superficialmente, pois que passa a estar incluída no âmago da cultura em que foi absorvida que deixa de ser, na medida em que, ao absorve-la se deixou também absorver. Os factos não têm sentido quando considerados individualmente, apenas ganham sentido quando integrados no percurso dos acontecimentos. Na sua dupla dimensão, a história atende à realidade dos factos que se vão inscrevendo na linha do tempo – a res gastae – ao passo que é o relato desses - a narrativo rerum gestarum – que lhe confere sentido e racionalidade. Esse é o papel da boa imprensa: atribuir uma dimensão transcendente àquilo que, no quotidiano, não tem significado que o ultrapasse. Se a um facto não for conferida dimensão transcendente, ele esgota-se por si mesmo. Se, porém, ele for compreendido numa dimensão mais vasta que o ultrapassa, tal circunstância dá-lhe uma dimensão simbólica. O nascimento de uma menino, numa gruta, é uma facto da natureza humana. Mas se a interpretação desse acontecimento for determinante na marca da humanidade, então ele sobreleva o quotidiano da sua realização. Quando o articulista do editorial do «Brado d’Oeste» no já citado artigo sobre o Natal, afirma que se completam “ali os multiplicados votos de milhares de gerações, sonhos dourados de homens e promessas infalliveis de um Deus” e que “Um passado calamitoso e sombrio termina alli” e “um futuro de venturas brilhantes d’alli se desenrola” e acrescenta que a partir “Do recinto tenebroso de uma gruta raia uma aurora de duração eterna” está não só a proceder à inscrição de facto localizado no “recinto tenebroso de uma gruta” numa leitura providencial da História, mas, igualmente, a proceder à interpretação do facto de acordo com a característica linear e judaico-cristã do tempo. A “duração eterna” de que fala não funciona apenas para o futuro, a partir do momento em que a esperança se realiza, mas absorve, igualmente, o passado em que essa esperança nasceu e sobreviveu no coração de “milhares de gerações”. Dá-se, assim, a unidade do ser e o “cahos do passado recua”. A igualdade dá-se ali pelo “effeito (…) edificante, admirável e prodigioso do […] do Natal do Homem-Deus” porque “O escravo sacode e despedaça as algemas; o senhor (…) curva a cerviz; a mulher proclama os seus direitos; o pobre, o desgraçado, reconhecem alfim que são creaturas de Deus; a religião transforma e humaniza o homem.” O efeito miraculoso da igualdade do escravo e do senhor, da mulher e do pobre, que se reconhecem como criaturas de Deus, é alcançado por esse Homem-Deus. Ao proceder a essa leitura, a boa imprensa, na sua ânsia de absorver a realidade da vida, supera-se a si mesma e eleva à ontologia do ser aquilo que, em princípio, é um facto da vida quotidiana dos entes. Mesmo aqueles que não concordam com a leitura transcendente daquele facto não podem negar que essa leitura é uma leitura universal e não facciosa da realidade. Ao proceder assim, qualquer religião tem um movimento ascendente em relação a si mesma e em relação à realidade concreta, que, é por natureza, fragmentada e caótica, logrando a unidade. Essa consecução da unidade não é, portanto, incompatível, com a diversidade religiosa, embora não seja esse, muito provavelmente, o pensamento do articulista. Augusto Comte pensou a unidade da espécie humana através da constância da sua natureza essencial, que podia observar, contudo, através da diversidade das instituições históricas no plano social. Na sua conceção “a afirmação da unidade humana (…) implica uma certa conceção do homem, da sua natureza, da sua vocação e da relação entre o indivíduo e a coletividade”. (ARON, 114). Mas há, desde logo, uma diferença radical, ou seja, de raiz: enquanto o articulista concebe a unidade do homem pela intervenção do transcendente, a unidade preconizada pelo positivismo é uma unidade imanente. Se é certo que todas as doutrinas sociológicas desde o século XIX proponham que se passasse do pensamento à ação, ou da ciência à política, enquanto fundador de uma nova religião, a religião da humanidade, o positivismo desvaloriza o económico e o político em favor da ciência e da moral e não acredita que seja através da mudança do regime ou de Constituição que o homem ponha termo às convulsões da sociedade. Comte inscreve-se na linha de Kant, que acreditava no papel da natureza na marcha inexorável do tempo e de Hegel, na espiral ascensional do espírito. Para Kant, Hegel e Comte, o tempo é o grande senhor da História. Comte admite que apenas o tempo fará passar das sociedades fragmentadas e injustas de hoje às sociedades reconciliadas do futuro, mas acredita que o esforço dos homens de boa vontade aliado ao sentido inexorável da evolução, que pode ser mais ou menos longa: “Na duração e nas modalidades da evolução, em si própria inevitável, exprime-se a parte de liberdade reservada aos homens” (idem) . Comte não é o profeta da violência revolucionária, como Marx, mas acredita que os seres humanos têm uma «margem de modificabilidade da fatalidade» (idem, 115). Tal como o cristianismo, o positivismo e o marxismo têm subjacente uma estrutura teleológica e acreditam num grau crescente de aperfeiçoamento da humanidade. Ou entra a revolução ou a reforma, que são ou da sociedade ou do indivíduo. O positivismo partilha com o cristianismo o repúdio ao recurso à violência como forma de atingir uma sociedade justa e partilha; com o marxismo, a ideia de que a única transformação social possível é aquela que implicasse o fim do pensamento teológico, com a diferença que Comte é apologista do pensamento reformador pela ciência e Marx pela revolução. A relação entre as conceções religiosas e os comportamentos económicos é visto por Max Weber como uma das causas das transformações económicas das sociedades, na medida em que uma determinada interpretação do protestantismo vai favorecer a criação do sistema capitalista, fundamentada na conformidade, intelectual ou espiritual, entre o espírito da ética protestante – ou de uma certa ética protestante – e o espírito do capitalismo. A tese de Max Weber é a da adequação significativa entre o espírito do capitalismo e o espírito do protestantismo: “A ética protestante a que Max Weber se refere é essencialmente a conceção calvinista” (idem, ibidem), segundo o qual Deus predestinou cada ser humana para a salvação ou para a condenação, não sendo, portanto, pelas suas obras que o homem pode alterar a decisão divina tomada à anterior. sem que, através das nossas obras, possamos modificar esse decreto divino de antemão fixado. Mas é, pelo menos, concebível uma outra interpretação. É através do trabalho que, segundo Max Weber, “certas seitas calvinistas acabam por descobrir no êxito temporal, eventualmente no sucesso económico, a prova da escolha de Deus”. Assim, o trabalho seria a melhor forma para ultrapassar a dúvida da salvação e obter a certeza da graça, sendo a melhor forma de ultrapassar a angústia religiosa. A boa imprensa reconhece ao trabalho o seu papel transformador do mundo e fator do progresso. No editorial do periódico «Brado d’Oeste» de 15 de Dezembro de 1909, o articulista afirma, convictamente, o seu “relevante e grandioso papel […] no seio das sociedades de todos os tempos. […] O que seria , sem elle, finalmente, do desenvolvimento, do progresso? […]” Elle é a mola propulsora de todo o progresso, de toda a civilisação, de toda a felicidade”. O trabalho é uma visto como um combate ao ócio e afirmação de um valor moral. De um modo ou de outro, católicos e protestantes são levados a agir, embora uns para se salvar, outros para ter o sinal da salvação. A nossa conceção de tempo linear provém da cultura judaico-cristã, que veio substitui a ideia do «eterno retorno» herdada das antigas civilizações euroasiáticas, nomeadamente da antiga Babilónia, ou ameríndias, maia e hindu. Essa cosmologia do tempo que nos é dada pelos movimentos de translação ou de rotação da Terra ou do retorno das estações, em que tuto recomeça, deu-nos uma ideia de renovação que se foi inscrevendo na nossa cultura ocidental e que o próprio folclore absorveu – “a primavera vai e volta sempre”, diz uma canção do folclore madeirense – como se o tempo estivesse a renovar-se ciclicamente. Na conceção do tempo ciclo, não só o passado não tem o peso que terá nas futuras civilizações, como não estava inscrita a ideia de futuro, porque aí o tempo se renovava incessantemente. O judaísmo, ao anunciar a vinda de um Messias, vem instituir, pela primeira vez, uma ideia de futuro, um futuro de luz e esperança, que o cristianismo há de confirmar mais tarde, com o nascimento de Cristo, mas, sobretudo, com a sua ressurreição, provando que o futuro messiânico e salvífico tinha sentido. Essa ideia de futuro mantém-se com a parúsia, a segunda vinda de Cristo. Essa esperança no futuro inicia a ideia de tempo linear, porque incute nos povos o sentimento de caminhada em direção a algo, a um tempo em que a realização plena do homem acontecerá. Essa conceção de caminhada para um fim imbuiu ainda as ideologias de matriz materialista, como o marxismo, o que significa que o futuro se transformou em tempo de utopia, fosse qual fosse a doutrina, religiosa, política, ou filosófica, nomeadamente o judaísmo, sempre à espera de um messias, o cristianismo, em que a promessa de uma recompensa no céu anula a própria ideia de morte definitiva do homem enquanto ser espiritual, o positivismo, com a sua Religião da Humanidade, ou o materialismo marxista, com a sua promessa de uma sociedade sem classes e igualitária, em que a luta contra a exploração ganha um sentido de futuro. Quer o cristianismo, quer o marxismo criam no homem o desejo de futuro, porque é lá que se situa ou a salvação ou a utopia de uma sociedade em que, em qualquer caso, haverá o reconhecimento de que todos os homens são iguais, que o cristianismo reconhece à partida, mas que só será possível quando todos se inserirem no projeto de salvação, e que o marxismo garante, desde que todos os cidadãos desencadeiem um processo de luta contra as desigualdades. O cristianismo implica uma consciência moral e o reconhecimento do outro, ao passo que o marxismo exige uma ética de entrega a uma luta contra a exploração, em nome desse futuro. Ambas as doutrinas, a cristã e a marxista, são imbuídas de coesão ideológica sólida porque conduzem os seus sequazes em nome desse futuro. Essa coesão, todavia, só é possível com a convicção e adesão profunda a essa ideia de porvir, por uma lado, o que é uma condição, para o segundo aspeto que só essa convicção garante, que a longa espera, quiçá, espera sem fim, da realização dessa expetativa, sob pena da fragmentação da própria doutrina e deserção dos próprios prosélitos. Talvez isso explique o desmoronamento dos regimes políticos que se ergueram com base nessa expetativa utópica, porque o socialismo nunca foi atingido, ao fim de longas décadas, e isso foi observável ainda neste mundo, ao passo que as religiões permaneceram coesas, apesar das vicissitudes, porque a esperança no paraíso ultraterreno nunca foi desmentida. Essas utopias, nomeadamente as de cariz ideológico e filosófico, iniciaram-se com o iluminismo, prosseguiram com o racionalismo positivismo e e tiveram uma versão iminentemente ideológica com o materialismo marxista - construído, note-se, a partir do idealismo hegeliano e da sua dialética -, ao longo dos séculos XVIII e XIX, com o marxismo a fazer prova da sua eficácia ao longo de quase todo o século XX. Mas essas ainda eram épocas em que o tempo se projetava à la longue, o tempo das longas viagens de barco e de comboio e a própria vida amorosa tinha o seu tempo de espera e de consumação. Ao invés, os tempos que correm não se compadecem com tão longa espera. De repente, todos fomos tomadas pela carácter imediato das realizações humanas. Todas as atividades humanas, mesmo as de caráter pessoal, foram atingidas pela fugacidade do tempo, em que tudo se deve realizar já. O afeto e o amor precisam, normalmente, de tempo, para serem profundos; se olharmos para os transportes e os meios de comunicação, vemos que foram tomadas pela urgência, a carta, o diário, até o telefonema e o telégrafo, foram ultrapassados pela ligação em tempo real da internet. A crise financeira tem como um dos seus principais fatores a questão do tempo, com resultados catastróficas a nível social, económica e humano: “a urgência desorganiza a estrutura do tempo e retira a legitimidade à utopia”. (BINDÉ, 421). Enquanto no passado, era costume os homem sacrificar o presente em nome do futuro dos seus descendentes, o homem de hoje parece estar a sacrificar o futuro das novas gerações em nome do presente, como se o tempo, de repente, houvesse sido abolido, como se o presente fizesse um saque sobre o futuro, gastando hoje todos os recursos de várias gerações e ameaçando não só o bem-estar das futuras gerações, mas o próprio equilíbrio do planeta e, por via disso, o futuro da vida humano. Cansado de se projetar no futuro, lugar da promessa não cumprida, o ser humano, como se sentisse que tinha caído num logro, quisesse o futuro já e com urgência. É frequente, aliás, frases publicitárias que anunciam que “o futuro é já hoje!”. Com a chegada do cristianismo, a noção de um tempo linear, baseado no facto único da morte e da ressurreição do Cristo, fez a sua aparição. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, afirma que «O Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados e, depois de ressuscitado, nunca mais morrerá”. Para que a atual geração não faça um saque sem fundo sobre o futuro dos vindouros e estes não nos cobrem o tempo que é nosso, e que é sempre irreversível, terá de haver um contrato geracional, uma espécie de “pacto do tempo”, em que pudesse haver um investimento no presente com efeitos imediatos, mas com consequências positivas para as gerações futuras. Só com base nesse equilíbrio na gestão criteriosa do tempo é possível recolocar o tempo nos carris da história e retomar o comboio da viagem com todas as carruagens, do passado, do presente e do futuro, no seu lugar certo, que os passageiros dos diferentes tempos não se sintam desconfortáveis, porque os passageiros das outras carruagens invadiram o seu espaço. Nessa perspetiva, poderemos pedir uma concessão de tempo ao futuro, para que não fiquemos sufocados pela ditadura da urgência. Esse contrato geracional deve abranger todos aqueles que, crentes ou ateus, católicos ou protestantes, cristãos ou muçulmanos, entendem que é preciso, para usar a expressão de Jérôme Bindé «alargar a comunidade ética» que acha que é necessário estabelecer compromisso com o futuro, tendo a noção que as decisões que tomarmos hoje não podem ser apenas na expetativa do bem-estar individual de cada um, dos resultados financeiros a apresentar ao fim do trimestre, dos resultados eleitorais de uma nova eleição, mas terão consequências a longa prazo: “O reforço das capacidades de antecipação e de prospetiva é portanto uma prioridade para os governos, as organizações internacionais, as instituições científicas, o setor privado, os intervenientes da sociedade e para cada um de nós”. (idem, 422) Este é o tempo em que à cultura do instantâneo temos de responder com a cultura do compromisso, para que os decisões que foram tomadas no passado possam ser salvas desde que integradas num projeto de futuro, e não haverá futuro se todos nos deixarmos envolver por interesses que deixam consumir pelo recompensa imediata. A cultura de compromisso dos melhores será a melhor forma de envolver a todos. Temos todos de nos empenhar no futuro a partir das lições do passado. Se nos detivermos todos a olhar, deque forma for, contemplativamente o passado, ficaremos divididos criaremos uma crispação ideológica. Se, porem, estivermos cientes do nosso passado comum, empenhar-nos-emos coletivamente, seremos capazes de construir o futuro de que necessitamos, para que o horizonte não se afaste de nós, porque não o pensamos bem. Como dizia Pascal: «esforcemo-nos para pensar bem: é este o princípio da moral» (Bindé, 424). Um programa que implique uma nova moral implica uma ligação entre a doutrina e a prática. Desse ponto de vista, o cristianismo vem representar uma verdadeira revolução, não só porque modificou a nossa ideia de Deus, como também da sua relação com o homem. Aos deuses antigos imanentes à natureza, vem substituir-se um Deus transcendente mas que, mistério da Encarnação, e não obstante a sua natureza transcendente, se faz homem: “Cristo, o Homem-Deus, aliança de Carne e de Luz, estabelece uma ponte entre o homem e o Absoluto: ele garante uma mediação entre as duas ordens e, pelo seu sacrifício, resgata a humanidade. É a Boa Nova que se anuncia” (RUSS, ). E é, paradoxalmente através do seu corpo, o corpo que no homem é sede do pecado, que Cristo vai salvar a humanidade em queda e reerguê-la, como se o homem recuperasse, de novo, o ser - “o homem só é homem na media em que desperta para o ser” (DURAND, 295) - ao homem é-lhe, de novo, devolvida, a dignidade de se ver como um ser livre. É essa condição de homem livre, que a boa imprensa destaca, ilibando Deus da existência do mal, visto que o Deus do catolicismo, ao contrário do Deus do calvinismo, não decide de antemão a sorte do homem, antes lhe confere a responsabilidade e a liberdade de começar de novo. Camus compara o homem a Sísifo, que empurra o rochedo, suportando o seu fardo desde sempre, mas com a grandeza e a dignidade de quem nunca cessa de o fazer. Camus, contudo, fala de um mundo agora sem Deus e sem a eternidade. A boa imprensa, por sua vez, transmite a esperança de um luz que oferece a eternidade da salvação. Será feliz um ser, como o homem, que procura dar sentido a um mundo que parece estar submerso no absurdo e no sem sentido? – “«A própria luta na direção do cume basta para encher o coração de um homem. Temos de imaginar que Sísifo era feliz». (idem, 297). O humanismo que impregnou várias correntes de pensamento do século XX, incluindo o humanismo marxista, desde Mounier a Gide e a Sartre não deixou de (re)colocar o homem no centro da história, onde, ele, aliás, já estava desde o momento em que foi chamado a construir o seu destino, “assim na Terra como no Céu”, onde, ainda assim, se cumpre a vontade de Deus. E não é assim, desde o suspiro do Calvário, em que Cristo pede o afastamento do cálix do sofrimento do Homem: contudo, “faça-se a Sua vontade”. A de Deus. A Cristo, colocou-se, por um breve instante, o instante eterno, a escolha entre beber o cálix até ao fim e a vontade de Deus. Afinal, que vontade prevaleceu, a de Cristo Homem ou a de [Cristo] Deus? O que houve foi uma coincidência de vontades de Deus Pai e de Deus Filho, et bien sûr: Cristo escolheu, voluntariamente, a liberdade de não cair, e com ele o homem, no abismo do nada. Parecia, assim, estar a dar uma resposta, com vinte séculos de antecedência, ao humanismo ateu, que para os proponentes do existencialismo cristão, como Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, entre outros, era fundamentalmente niilista, que também, à sua maneira procuravam a síntese das várias dialéticas do século vinte, entre o ateísmo e o sagrado, a liberdade da renúncia humana e a transcendência divina. Superando essas angústias existenciais da morte a boa imprensa apresentava a imagem da sobrevivência contra a ideia de morte. Era necessário reconstruir o compromisso entre os desafios que se colocam ao cristão no dia a dia e o horizonte de que a vinda de Cristo representou para nós. A boa imprensa tem no seu sintagma um adjetivo, boa, que a demarca da restante imprensa, mas isso não significa, necessariamente, que ela não tenha como objetivo último a divulgação de uma mensagem e de uma doutrina que se considera universal – “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”, Marcos, 16: 15) – e que a si mesma se atribua uma missão cujos limites é atingir o pleno da divulgação dos valores da mensagem, que é a do amor ao outro, que é o próximo. Esta dimensão universal da mensagem, que é uma decorrência das palavras do próprio Cristo, teria condições de futuro? Estabelecendo uma distinção entre mundialização e universalidade, nos dias de hoje, Jean Baudrillard clarifica as diferenças: “Entre os termos mundial e universal existe uma analogia enganadora. A universalidade é a dos direitos do homem, das liberdades, da cultura, da democracia. A mundialização é a das técnicas, do mercado, do turismo, da informação” (BINDÉ, 49). E depois chama a atenção para as dinâmicas de ambas, defendendo a tese de que a mundialização ganhou uma dinâmica irreversível, ao passo que a universalidade estaria em recuo ou até em vias de desaparecer. Assim, verificamos que, num momento em que os avanços tecnológicos poderiam ser uma meio de divulgar valores como os direitos do homem, a liberdade, a cultura, a democracia, o amor ao próximo, valores inseparáveis da modernidade ocidental, os mesmos podem recuar em função do predomínio, em potência, das técnicas do mercado, que, afinal, mesmo nesse campo, podem falhar, por falta de uma ética que as sustente, como a crise atual, neste início da segunda década do século XXI, veio confirmar. Será possível afirmar, a esta distância, que, ainda no dealbar do século XIX, a boa imprensa já teria a noção de que a secularização da sociedade, já em curso, não teria, afinal, força suficiente para se impor em termos definitivos? Afinal, como acabou a Nova Religião da Humanidade, com os seus templos, os seus sábios e filósofos, como representantes da nova espiritualidade? Tiveram sucesso os anunciadores de uma nova ética capaz de substituir a moral cristã que era propagada pela boa imprensa? Com efeito, haveríamos de assistir, desde início do século XIX até aos nossos dias, a um movimento de secularização dupla ou com duas fases. Numa primeira fase, Auguste Comte enuncia a lei dos três estados, que correspondem ao longo percurso da história humana. Numa primeira fase, Comte afirma que a humanidade viveu o estado teológico, em que Deus está presente em tudo, seguido do estado metafísico, em que a ignorância da realidade ou a falta de crença num Deus todo poderoso leva a pensar que há relações misteriosas entre todas as coisas e entre estas e os espíritos. Em face disso, para inaugurar uma segunda fase, Comte estabelece o estado positivo em que a humanidade, finalmente liberta da presença de qualquer crença e guiada pelo espírito científico, busca o conhecimento absoluto e substitui toda a influência teológica pela observação dos factos científicos. Comte, porém, não advoga o fim do culto, apenas a substituição do culto de Deus, que substitui pelo culto do Grande Ser, hipostasiado por ser “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para o aperfeiçoamento da ordem universal» (COMTE, «Curso de Filosofia Positiva», tomo IV), p. 30. Comte não só substitui o culto de Deus pelo do Grande Ser, como defende que “O culto dos homens verdadeiramente superiores forma uma parte essencial do culto da Humanidade. Mesmo durante a vida objetiva, cada um deles constitui uma personificação do Grande Ser. Todavia esta representação exige que sejam idealmente afastadas as graves imperfeições que, muitas vezes, alteram as melhores naturezas.” (Ibid., tomo II, p. 63). Em rigor, o positivismo de Comte deixa de crer em Deus para passar a crer na ciência e na Humanidade. Se o Grande Ser é tão abstrato como o Deus da religião, o Deus que a boa imprensa defende, esse Deus que se fez homem, pelo Mistério da Encarnação para os católicos, e, depois de morto e sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, o positivismo de Comte faz desaparecer esse Deus do estado teológico para logo o reencarnar no Grande Ser, o Ser de toda a humanidade, e tal como Deus encarnou em Cristo, também o Grande Ser, alem de se concretizar em “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes”, pode ser personificado, durante a vida, por cada um desses homens superiores e sábios que passam a ser a nova autoridade moral na nova sociedade. Hoje, como se sabe, os positivistas nunca conseguiram que a superioridade ética desses seres prevalecesse sobre o poder temporal. E este é o segundo momento da ausência da morte das crenças em entidades superiores, sejam elas Deus, o Grande Ser, as grandes Utopias do século XX, todas elas teleologicamente dirigidas para um tempo de plena afirmação da Humanidade. Fosse qual fosse a natureza e o percurso da participação do singular no universal, por transcendência ou imanência, a perda desse caráter universal levou “ao exterminação de todos os nossos valores, o que é uma «morte má»” no dizer de Jean Baudrillard (BINDÉ, 49), que afirma ainda: “O universal era uma cultura da transcendência, da reflexão do tema e do conceito, uma cultura com três dimensões, a do espaço, do real e da representação. O espaço virtual é o do ecrã, da rede, da imanência, do numérico”. Ou seja, a transcendência era comum a todas as doutrinas, fossem elas a da utopia marxista, do Espírito de Hegel, do Positivismo de Comte, ou a doutrina propagada pela boa imprensa, porque todas eram detentoras de valores. Desde o século XVIII procuravam-se sucedâneos ou sucessores para o Deus dos cristãos: Razão, Natureza, História, Progresso, Homem, Iluminismo e a própria Europa, como utopia, que nós vamos vendo soçobrar como distopia, essa Europa onde nasce o humanismo que lhe dá a base cultural: “O humanismo está ligado a uma Europa que tem a vocação do Universal e que encarna «uma grande república divida em vários Estados» (Voltaire)” (RUSS, 180). O cristianismo no seu todo era colocado em causa, “tanto o Deus dos católicos como o de Calvino, processo global e não singular que, inflamava os espíritos” (idem, 181). A boa imprensa nasce, assim, num contexto em que nem sequer era o catolicismo que se contestava, era a própria ideia de Deus, um Deus cuja existência não se podia (não se pode) provar. É certo que a boa imprensa, de tendência proselitista, e tantas vezes de natureza local, poderia, muitas vezes, julgar que se tratava de uma guerra inter-religiosa, mas o questão era muito mais fundo e muito mais vasta: era a própria ideia da morte de Deus que se prenunciava desde o Iluminismo e que é posto em julgamento, com a natureza a se constituir como os fundamentos de uma «religião natural», desde os inícios do século XVIII. Jean Meslier, eclesiástico e ateu, afirma, em testamento publicado por Voltaire, que o cristianismo não era uma instituição divina e contrariava as leis da natureza. Seguem-se, na sua esteira, “Voltaire, Montesquieu, Helvétius e, de um modo geral, os Filósofos que, sem realizar estudos de exegese, censuram ao cristianismo o facto de exigir demasiado à razão, que não admite nem milagres, nem revelação, nem sobrenatural […] Apenas no seio da Natureza e da Razão, paradigmas fundamentais do pensamento da Aufklarüng, existe uma crença válida” (idem, 182). Contra os livros sagrados e a Revelação, ergue-se, em pleno, a Ratio, o dinamismo religioso da Aufklarüng, “uma força universal que não pode reduzir-se às representações singulares da fé. Pois o século XVIII, embora critique a lei revelada, também faz o alargamento da ideia de Deus […] Confúcio situa-se ao lado de Cristo” (idem, 184) . Está posição filosófica de conceber um [novo] Deus como Ser Supremo, através da razão e não por revelação divina dos textos sagrados, o Talmude, a Bíblia ou o Alcorão, e a que se convencionou chamar deísmo, alastrou por toda a Europa. Ter-se-ia esta religião deísta, baseada na natureza e na razão e não na revelação, libertado da “tirania” da crença e da fé, de que era acusada a velha Igreja? «Ao mesmo tempo que o respeito pelos homens pela Igreja se desmorona, o deísmo impõe-se e o culto do Ser Supremo, caro a Robespierre e à Revolução Francesa, não está longe. Como esquecer esse culto deísta, instituído pelo decreto de 7 de maio de 1974? Robespierre, influenciado por Rousseau, rejeita as tendências ateístas dos seguidores de Herbert e contrapõe-lhes a religião natural e o reconhecimento do Ser Supremo”, isto por um lado. Por outro, ao Grande Ser da religião positivista, Comte advoga o culto, mas não via como boas a dúvidas sobre a sua existência. Ou seja, os apóstolos das novas correntes deístas eram tão dogmáticos quanto os das religiões reveladas e os ateus que não criam nem numas nem noutras sentiam o fenómeno da rejeição. Os sacerdotes dos novos credos, tal como os fautores da boa imprensa, estavam imbuídos de proselitismo em toda a semântica da palavra, procurando fazer o apostolado das suas ideias, como qualquer prosélito, que, além de convertido, se porta de forma sectária, isto é, como membro de uma seita. Por sua vez, os partidários das novas utopias materialistas dos séculos XIX e XX não se mostrariam menos intransigentes contra aqueles que não aceitavam o novo projetos de sociedade que eles propunham, sobretudo quando se tratou de as levar ou tentar levar à prática. Como reconstruir, então, a universalidade dos valores a partir das crenças monoteístas, deístas ou utópicas, num tempo da relativização de todos os valores ou já sem valores, de que estavam imbuídos todas aqueles doutrinas, que, crentes ou ateias, tinham sentido teleológico e de caminhada para uma sociedade humana perfeita, algures devir, histórico ou teológico? Fará sentido colocar essa questão aqui no âmbito deste artigo da boa imprensa? Esse é o desafio que se nos coloca como forma de volver ao universal onde todas a formas de expressão se podem encontrar, não um universal por abstração, situado acima do mundo real, mas obtido com a inclusão de cada um, ou seja, de todos. Quando o Deus dos cristãos nos manda amar o próximo, ele exemplifica pela ação. Jesus come com os publicanos e pecadores: “E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publicanos e pecadores  vieram e tomaram lugar com Jesus e seus discípulos” (Mateus 9, 10). Quando criticado, Jesus redarguiu: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que isto significa: misericórdia e não holocaustos; (idem, 12, 13). Note-se que “holocaustos” aparece, às vezes, nesta passagem do evangelho de Mateus, em vez de “sacrifício”, o que, em termos práticos, dá o mesmo, visto que o sacrifício implicava a imolação pelo fogo e o significado de “holocausto” é, etimologicamente, todo (holo) e queimado (kausto), palavra historicamente sugestiva, sabendo que o holocausto que está historicamente próxima de nós significou a recusa completa da alteridade. . Ora, uma cultura de liberdade admite o outro como essencial ao todo. Só podemos chegar ao universal pela inclusão de todos, o que significa incluir um a um, até atingir essa universalidade. Não se pode amar o universal nem ele existe se excluir uma parte de si. Repare-se o que diz Hannah Arendt, citada por Helé Béji, ao ser acusada de não gostar o bastante dos judeus, a propósito do processo de Eichmann: «Esse povo já só acredita em si mesmo? Que espera ganhar com isso?» Não tenho qualquer amor ao povo judeu, nem aos povos alemão, francês, ou americano, nem à classe operária. A única espécie de amor em que acredito é no amor das pessoas. Esse amor pelos judeus, uma vez que eu própria sou judia é suspeito” (BINDÉ, 60). O que Arendt nos explica é que amar um povo é amar um universal abstrato, tal como amar a classe operária e que só acredita no amor das pessoas, de cada pessoa, seja ela do proletariado ou de outra classe social, ou de que nacionalidade for, como o bom samaritano, que era estrangeiro: “o pertencer a uma mesma cultura ou a uma mesma religião não é uma garantia de tolerância ou de felicidade política. Porque não é a ligação cultural que faz a ligação política, mas antes a ligação civil” como afirma Hélé Béji (BINDÉ, 59). Tomando a diferença concetual entre «religioso» e «espiritual» a propósito do diálogo de culturas, Béji afirma que a reivindicação da identidade, quando é feita à custa da universalidade, está eivada de uma violência de natureza religiosa no sentido de tirania da crença e não da espiritualidade e da liberdade de pensamento. O que é que sobreleva na boa imprensa: a espiritualidade ou a tirania da crença religiosa? O que ali estava, à superfície, nesse conceito, era, de facto, a “tirania da crença”. Contra essa “tirania”, e em nome da liberdade, vão revoltar-se a Civilização e Razão, ) mas logo estabelecem novas “tiranias”, usando a a mesma nomenclatura, o que é natural, como filhas dessa primeira crença. Só que nessa aparente “tirania” da crença propaganda pela boa imprensa germinava também a liberdade da sua contestação o que era, perfeitamente, plausível, numa doutrina provinda de quem, como Jesus, não escolhia as companhias para comer. Quando se perfilham a Ciência, a Razão, o Progresso, a República, «entidades com maiúscula em estado de prostração», segundo a expressão de Marcel Gaucher» lembramo-nos que todas elas se ergueram em nome da Liberdade contra o obscurantismo da crença religiosa. Mas, quando verificamos que o homem se perdeu num “individualismo que é uma ideologia de massas e já não uma singularidade criadora”, perguntamo-nos qual dos dois é mais livre: o homem individualista subsumido nas massas anónimas ou o homem a quem era dado o dom de dialogar, intimamente, com o seu Deus, esse Deus que se sacrificara por ele, segundo a doutrina cristã divulgada pela boa imprensa? Béji afirma que “um dos sinais mais desumanos da cultura é a separação do religioso e do espiritual”. Afinal, não era esse o caminho, o da liberdade, que se iniciara desde o Iluminismo? O homem hoje está só perante a multidão e, nas redes sociais tem milhares de amigos virtuais, às vezes, mas sem a convivialidade de outrora. No jornal «A Verdade» de 5 de Fevereiro de 1916, num artigo intitulado “Miasmas d’alma”, com o subtítulo “Estudo Psycologico”, o articulista escreve que “a vida é uma tragedia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo… N’ella se identificam em biliões de actores os generos de caracter disfarçadas pela acção da peça ou pelas exigencias do enredo. […] Subiu o pano. […] Principia a representar-se a Vida, peça d’um só acto […] Que grandes actores tem a tragedia escripta por Deus. … Que genios! Com que arte alguns representam o papel de honestos! […] Ao entrarem, porém, no camarim que é o seu lar, passam a esponja pela face, e ficam o que eram: hypocritas, falsos, aventureiros do destino. Outros abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos, se levam uma bofetada na face direita entregam como Christo a face esquerda, aconselham a essencia do bem, guiam os fracos, choram a desdita dos seus irmãos, mas finda a scena, recolhem a bastidores, passam a esponja e lá ficam, no que são: covardes, intriguistas de escada, especuladores e párias! Que exhuberante é o Theatro do Universo!”. Que questão se poderá colocar quanto ao sentido do artigo, através da leitura deste trecho escrito por quem acredita em Deus, o Deus que é o autor da vida, “tragédia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo”? Como pode esse Deus, origem do Bem, encher o mundo destas personagens que “representam o papel de honestos”, “hypocritas, falsos, aventureiros do destino”, ou que “abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos”, “aconselham a essencia do bem” para depois, tendo recolhido aos bastidores, se revelarem “intriguistas de escada, especuladores e párias!”: pode Deus ser o autor do “Theatro do Universo” com este tipo de personagens? Ou o autor entrou em contradição com a doutrina que divulga ou coloca-se aqui a questão da teodiceia, o da justificação racional de Deus e a sua coexistência com o mal, aporia da cultura ocidental e da cultura oriental. “O teólogo contemporâneo Maurice Zundel, dizia, com alguma ironia, que se o mal existisse realmente, Deus seria a sua primeira vítima, quase fazendo suas as célebres palavras de Stendhal, segundo as quais a única desculpa de Deus em face do mal e do sofrimento só poderia ser a Sua inexistência”. (CORREIA, 1). Contudo, o editorialista, católico, não poderia ter subentendido essa ideia de que Deus, autor do teatro da vida, seria o responsável do mal provocadas pelas personagens da vida no palco do mundo, numa paráfrase vicentina. O que ele critica é justamente que o mal exista não por vontade de Deus, mas por ação das personagens que são, na realidade, a humanidade. Trata-se da questão essencial do homem, colocado perante a responsabilidade de construir o seu destino, segundo o seu livre arbítrio e uma ética da responsabilidade que não deixa ficar a teodiceia desarmada perante esta questão: “a teodiceia não ficou sem recursos. Com efeito, é possível surpreender vários modelos teóricos que visam mostrar que não existe qualquer incompatibilidade lógica entre a existência de Deus e o problema do mal” . tendo como base “o paradigma que é invocado por vários filósofos teístas contemporâneos e que se funda, a meu ver, no postulado ético da responsabilidade” (idem, 40). Essa ética da responsabilidade deve ser exercido na busca e no exercício de valores absolutos como a Verdade, o Bem, o Sagrado, a Beleza, valores intemporais e independentes da história, englobados numa ética cuja consumação tornaria o mundo esteticamente harmonioso, o que contribuiria para a ressurreição do Deus ou Bem Absoluto como ideais a atingir em cada circunstância, sabendo habitar o tempo e o lugar. Existe, a um tempo, a marca do efémero e do eterno. Quando a boa imprensa se concede o direito de divulgar os valores em que acredita e exclui o próximo por divergências confessionais, ela comporta-se como qualquer poder temporal em que o que mais conta é a autoridade e menos a revelação de que a doutrina cristã é filha. Mas, quando, e apesar disso, ela é, genuinamente, crente nos valores que propaga, então torna-se num espaço de diálogo e supera os muros do poder profano, literalmente, o poder que está para além e acima das barreiras que dividem. Qualquer corrente ideológica, religiosa ou filosófica que se coloca nas margens do universal e recusa o diálogo, adquire características que a confundem com qualquer corrente fundamentalista e, a breve trecho, perde a possibilidade de construção do espaço em que todos se devem encontrar. Essa recusa torna conflito inevitável. Um cenário que não tem de ser imaginado, seja quando se pensa nas fogueiras da inquisição, nos campos de concentração de todos os lugares e azimutes ou no apogeu da recusa da alteridade que foi a II Guerra Mundial, onde, em nome de ideologias absolutas que se consideravam prenhes de razão, não cederam lugar ao espaço de diálogo e cederam o passo à loucura do desumano, de onde a justiça se afastou ou foi afastada violentamente. Emmanuel Levinas exprime a exigência do nosso tempo ao afirma que a justiça só é justiça numa sociedade onde não exista distinção entre próximos e afastados, mas também onde exista a impossibilidade de passar ao largo do mais próximo. No caso da boa imprensa, ela revela a sua visão do mundo, mas, na sua visão singular, não deixa de especular, quer dizer, espelhar o universal, visto que o singular não deixa de ser uma face do poliedro que é universal. E descendo até ao mais local, a imprensa católica madeirense teceu as linhas do universal na nossa diocese até a mais humilde capela do mais recôndito lugarejo, no esconso do mais remoto cabeço. Afinal, aquilo que hoje consideramos universal é o que se divulgou em todo o globo a partir de um determinado local. Aquilo que é local em cada momento está apenas à espera de uma oportunidade de ascensão a partir de um monte das Oliveiras. Não dizemos nós que as Sagradas Escrituras não podem ser tomadas à letra? Afinal, todo o texto religioso é metafórico e todo o texto literário carece de uma exegese como se fora religioso, e só assim ele pode atravessar a passagem do tempo e ser atual em todas as épocas. Nenhum universal, que deve ser o objetivo de toda a manifestação humana, se pode construir quando não vemos em cada instante o sinal do eterno. A espiritualidade é saber ver o universal no singular. Para o dizer na linguagem desta espiritualidade, “o amante vê o ser que ama em todo o lado. Se não vimos a verdade naquilo que é diferente, é porque não estamos suficientemente apaixonados e que não temos para Leyla os mesmos olhos de Majnun”. (Nota: Leyla e Majnun são personagens clássicas da arte islâmica, imortalizadas, num poema de Fuzuli (século XVI). Leyla representa a beleza divina; Majnun o espírito humano). A verdade é pura, branca e una, mas não é única, pois o branco é a síntese das sete cores do arco-íris. Ou seja, a exclusão de qualquer das sete cores tornaria impossível a unidade traduzida pelo branco. Assim, o universalismo só o pode ser se integrar todas as matizes em que se realiza e que o realizam. Ou, por outros palavras, é possível ver o rosto de Cristo em cada ser humano, situando-se a frase na semântica do religioso ou da metáfora, conforme a queira entender o leitor, senhor último da palavra.   Miguel Luís da Fonseca

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figueiredo, estêvão brioso de

D. Estêvão Brioso de Figueiredo nasceu em Évora, em 1630, filho de Manuel Martins e Catarina de Figueiredo, gente sem vestígio de fidalguia nas origens, e foi ordenado padre em 1658. Para que pudesse ser alcandorado ao título de bispo, precisou da conjugação de alguns fatores que, ao tempo, ajudassem à promoção a um lugar cimeiro na hierarquia eclesiástica e que, no seu caso concreto, se materializaram num percurso académico, em protetores bem colocados e em alterações produzidas nos critérios de provimento episcopal. Em termos de habilitações, era D. Estêvão possuidor de um bacharelato em Cânones pela Universidade de Coimbra, o qual lhe possibilitara o início de carreira na Relação de Évora, sua terra natal. Daí se viu promovido para Lisboa, onde veio a tornar-se vigário geral e procurador do arcebispo, D. António de Mendonça, e terá sido esta relação que lhe valeu a proteção do irmão do referido arcebispo, o 2.º conde de Vale de Reis. Esta circunstância, somada a um novo critério de escolha episcopal surgido no reinado de D. Pedro, que se caracterizou pela atribuição de um maior peso das cúpulas da Igreja na designação dos titulares de mitras, e que privilegiava carreiras feitas ao serviço de instâncias eclesiásticas, será o suficiente para explicar a opção por D. Estêvão Brioso de Figueiredo para primeiro bispo da recém-criada Diocese de Olinda-Pernambuco. Assim, e depois de confirmado, em 1676, por Inocêncio X, chegou D. Estevão a Olinda a 11 de abril de 1678, para dar início a um episcopado onde pontificaram a reforma do auditório eclesiástico do bispado e um programa visitacional que incluiu as igrejas da cidade e das povoações vizinhas. A distância do reino e a insegurança que experimentou – foi mesmo alvo de um disparo contra a janela do paço episcopal – fizeram com que o bispo, “pouco satisfeito com o lugar”, pedisse e obtivesse a promoção para a Diocese do Funchal, entretanto vaga (MELO, 2003, 106). Outro elemento que poderá ser tido em linha de conta na vontade de transferência de D. Estêvão Brioso de Figueiredo diz respeito ao vencimento episcopal que, em Olinda, era de 800.000 réis, e que no Funchal já atingia, desde o tempo de D. Fr. Gabriel de Almeida, o montante de 266.600 réis, 49 moios e 26 alqueires de trigo, 2,5 moios de cevada e 101 pipas e 2 almudes de vinho, por comutação dos 1800 réis que anteriormente recebiam os prelados funchalenses. Menor distância, maior vencimento, melhor clima: este terá sido o conjunto de fatores que esteve na origem da primeira transferência de um bispo de outra diocese para a do Funchal, a qual, neste contexto, surge verdadeiramente como uma promoção, na medida em que se apresentava como muito mais apetecível, apesar de sempre longe dos muito mais rendosos e proeminentes bispados de primeira linha no reino. Em 1683, foi, então, D. Estêvão nomeado para o bispado da ilha da Madeira, para o qual se deslocou em 1685, com tomada de posse a 18 de abril desse mesmo ano. Teve um episcopado curto, de apenas três anos, pois logo em 1688 se retirou para Lisboa, para procurar alívio para males trazidos dos trópicos, acabando por falecer a 20 de maio de 1689. Do escasso período em que permaneceu na mitra do Funchal, sobraram poucos vestígios, mas um deles ficou a dever-se ao cura da Sé, Francisco de Bettencourt Sá, o qual, em 1688, num livro de defuntos da freguesia, e descrevendo uma epidemia de febres malignas que varreu a cidade, salientava as diligências do prelado, que, de tarde e de noite, levava o Santíssimo aos moribundos. Ao bispo também se ficou a dever a decisão de trasladar a miraculosa imagem de Nossa Senhora do Monte da sua igreja para a catedral, como forma de aplacar a doença, tendo esta estratégia resultado em pleno, pois “nem de novo deu mais a doença em pessoa alguma” (Arquivo Histórico da Madeira, vol. V fasc. i, 35). Apesar dos seus achaques, o prelado não deixou de cumprir os seus deveres visitacionais, e pode ser pessoalmente encontrado, em 1685, no Porto Moniz, de onde procedia à visita da igreja de S.to Antão do Seixal, “como fizeram nossos antepassados obrigados da dificuldade dos caminhos”. Ainda que não estivesse fisicamente presente na freguesia do Seixal, pelos impedimentos que indicava, o bispo encontrava-se informado o suficiente para determinar que se tinha de combater a tendência para a revelia à doutrina que era evidenciada pelos fregueses, os quais deviam ser condenados “se necessário for” (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos do Seixal, fl. 67v.), na quantia que se adequasse às possibilidades de cada um. A mesma brandura não se aplicava aos que se tinham comprometido com esmolas para a obra do pé da custódia, que, não cumprindo, se deviam excomungar, o mesmo acontecendo aos devedores às confrarias.   Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

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modelo regional de organização das escolas de ensino não superior

Buscar a origem da vontade regional em afirmar um modelo próprio de organização de escolas é assistir à implementação do dec.-lei n.º 115-A/98, de 4 de maio (que aprovou, ao tempo, o modelo estatal de autonomia, administração e gestão das escolas de ensino não superior), mas sobretudo constatar que esta ocorre num momento crucial que decorre das revisões da Constituição da República Portuguesa (CRP), que vieram crescentemente alargar o âmbito das competências das regiões autónomas portuguesas. Foram elas, sobretudo, a revisão constitucional de 1989, na qual houve a preocupação de aprofundar os poderes legislativos regionais, admitindo-se mesmo a possibilidade de as leis regionais não terem de respeitar as leis gerais da República (através do instituto das autorizações legislativas regionais), e a revisão constitucional de 1997, mais importante, com o crescimento da autonomia regional através da inclusão, no texto constitucional, das matérias de interesse específico regional, bem como a clarificação do exercício de algumas das suas competências; isto além da articulação das leis regionais com os princípios fundamentais das leis gerais da República. Mas também se poderá aditar uma “convicção [política], crescentemente assumida na Madeira e na área da Educação, em aprofundar, consequência dos 20 anos de experiência do decreto-lei n.º 364/79 e das matérias transferidas nesta área” (ALVES, 2012, 150), uma vontade, sobretudo de política educativa regional, que cresce e se afirma de forma inelutável. O marco relevante para compreender este impulso radica no desp. n.º 29/98, de 4 de junho, do secretário regional de Educação. Este despacho determina, tendo como norma habilitante o dec.-lei n.º 364/79 e a consagração competencial regional na supervisão da área organizativa e do funcionamento das escolas, manter o regime de funcionamento das escolas da Madeira constante do instrumento legal anterior ao dec.-lei n.º 115-A/98; i.e., condicionando a aplicação deste decreto do Estado ao território da Madeira, que se continuará a reger, assim, ao nível do funcionamento das escolas, pelo dec.-lei n.º 769-A/76, enquanto não for publicado um modelo regional de organização e funcionamento das escolas. De resto, esta convicção assumida no citado despacho alicerça-se no programa do VII Governo regional da Madeira (GRM), com mandato entre 1997 e 2000, que, na área da educação, dispunha como objetivo: “Assegurar, em termos jurídico-legislativos, a introdução a nível regional, de novos mecanismos de gestão e administração escolar” (Programa do VII Governo Regional, 1997-2000, 14). Todo este processo de vontade de não aplicar o modelo do Estado (dec.-lei n.º 115-A/98) à organização e ao funcionamento das escolas da Madeira por, em contraposição, se pretender ensaiar as competências constitucionais e legais ao dispor da Região tem como marco deveras assinalável o envio da proposta de decreto legislativo regional, pelo GRM (resolução n.º 1159/98, aprovada em plenário do GRM, de 7 de setembro de 1998), para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (ALRAM), em virtude de este ser um ato de natureza legislativa, e para este poder ser aprovado nos termos do arts. 227.º, n.º 1, al. a) e 228.º, al. o) da CRP, conjugados com o art. 37.º do Estatuto Político-administrativo definitivo da Madeira (lei n.º 130/99, de 21 de agosto). Após conveniente tramitação parlamentar, a referida proposta veio a ser aprovada e publicada como dec. leg. regional n.º 4/2000/M, de 31 de janeiro, detendo a designação de “Regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos de educação e de ensino públicos da Região Autónoma da Madeira”, marcando aquilo que se poderá considerar, definitivamente, como a consagração de um modelo regional de organização das escolas da Madeira. O regime previsto neste decreto legislativo viria, no entanto, a ter uma aplicação, nas escolas da Madeira, não imediata nem simultânea, dado o momento da sua entrada em vigor (o ano letivo já se encontrava a decorrer), e fundamentalmente pelo facto de o decreto ter ficado, desde a sua aprovação, condicionado pelo pedido de fiscalização sucessiva abstrata de algumas das suas normas (solicitado pelo ministro da República, que terá mesmo vetado o decreto legislativo, aprovado inicialmente em sessão plenária da ALRAM de 28 de julho de 1999). Na realidade, tendo o ministro da República de assinar por força constitucional (art. 233.º da CP) – já que o mesmo foi reconfirmado na íntegra por maioria absoluta dos deputados em funções –, este recorreu às suas competências constitucionais e suscitou a fiscalização sucessiva abstrata junto do Tribunal Constitucional (TC). Por determinação administrativa, através do desp. n.º 26/2000, do secretário regional de Educação, de 25 de maio (difundido junto das escolas da Madeira através de ofício circular da Direção Regional de Administração e Pessoal, da Secretaria Regional de Educação, n.º 21/2000, de 29 de maio de 2000), foi mandado aplicar o modelo regional, exclusivamente no ano escolar 2000/2001, apenas a duas escolas, as escolas básicas dos 2.º e 3.º ciclos do Caniçal e do 3.º ciclo do Funchal (extinta), e mantido o regime de prorrogação da experiência pedagógica (na altura ao abrigo do dec.-lei n.º 172/91, de 10 de maio) da Escola Secundária de Francisco Franco, permanecendo as restantes escolas abrangidas pelo regime constante do dec.-lei n.º 769-A/76, de 23 de outubro. Acresce, todavia, que a aplicação plena do regime constante do dec. leg. regional n.º 4/2000/M viria também a ficar limitada, no ano seguinte, pelo atraso nas tomadas de posse dos membros dos órgãos de gestão das escolas, o que motivou uma determinação administrativa em prorrogar, por desp. n.º 30/2001, de 22 de agosto (do subsequente secretário regional de Educação, do VIII GRM – 2000-2004), até à tomada de posse dos novos membros dos órgãos de gestão das escolas, os mandatos dos seus atuais membros e o respetivo regime legal de funcionamento das escolas, que se regiam, como se viu, pelo dec.-lei n.º 769-A/76. Marcado por todo este circunstancialismo, o dec. leg. regional n.º 4/2000/M acabou por surgir na sua plenitude a partir do ano escolar de 2001/2002 (ainda que na pendência da assinalada fiscalização sucessiva de constitucionalidade junto do TC) como afirmação plena das competências estatutárias da Madeira, na área da educação e, simultaneamente, como vontade de implementar um modelo regional que, não escondendo a sua referência ao modelo do Estado, fosse no entanto diferente e adequado à realidade regional. Pelo ac. n.º 161/2003 – proc. n.º 64/2000, de 6 de maio de 2003 –, o TC viria a concluir (no contexto do pedido de fiscalização sucessiva) que, apesar de os poderes das regiões autónomas integrarem o poder de desenvolver as leis de bases, em função do interesse específico das regiões em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República (AR), a Lei de Bases do Sistema de Ensino estaria, todavia, na reserva absoluta de competência desta Assembleia do Estado (art. 164.º, al. i), da CRP). Com efeito, apesar de a revisão constitucional de 1989 ter reconhecido poderes muito amplos às regiões autónomas, no sentido do desenvolvimento de leis de bases da AR, entendia o TC que a competência para desenvolver a Lei de Bases do Sistema Educativo caberia em exclusivo ao Governo da República (GRe). Assim, e nesta matéria, declarou o TC que os poderes legislativos das regiões autónomas estariam particularmente limitados ao ser atribuído ao GRe o exclusivo do desenvolvimento da Lei de Bases do Sistema Educativo, nos termos do preceituado no art. 198.º, n.º 1, al. c), da CRP. Acresce ainda que o próprio dec.-lei n.º 115-A/98 (art. 13.º) se assumia para valer como lei geral da República, prescrevendo mesmo a sua aplicação territorial às regiões autónomas. Nesta decorrência, o TC acabaria, por fim, por se pronunciar pela desconformidade de algumas das normas do dec. leg. regional n.º 4/2000/M, fundamentalmente da fórmula de recrutamento dos então designados direção executiva ou diretor mediante procedimento concursal a decorrer na escola (e não eleição), e impor que o mesmo fosse alterado por contrariar a CRP. Perante esta decisão do TC, de imediato se ensaiou a necessária aprovação da alteração ao dec. leg. regional n.º 4/2000/M, de novo sob o impulso do GRM (resolução n.º 998/2005, aprovada em plenário do GRM, de 14 de julho de 2005). Concomitantemente, a ALRAM viria a aprovar, em sessão plenária de 22 de março de 2006, aquilo que seria o dec. leg. regional n.º 21/2006/M, de 21 de julho, que veio alterar o dec. leg. regional n.º 4/2000/M, tendo aqui como normativos habilitantes os arts. 227.º, n.º 1, alínea a), e n.º 4, conjugados com os arts. 37.º e 81.º, do Estatuto Político-administrativo definitivo da Madeira e no desenvolvimento da Lei Bases do Sistema Educativo. Contudo, o representante da República (por força da revisão constitucional de 2004, substituto constitucional do ministro da República) suscitou a apreciação do diploma através da fiscalização preventiva da constitucionalidade, por entender que a Madeira estaria ainda persistindo em diferenças, no regime de funcionamento e organização, que seriam introduzidas no modelo de organização e funcionamento das escolas. Aspetos que conflituariam agora com as suas competências constitucionais e com a unidade do sistema nacional. Isto, curiosamente, apesar de, ao contrário do que acontecia no quadro constitucional anterior, com a assinalada revisão de 2004, a AL, por força do disposto no art. 227.º, n.º 1, al. c), da CRP, passar a dispor de competência para “desenvolver para o âmbito regional os princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos, contidos em lei que a eles se circunscrevam”, mesmo quando, como na situação em apreço, tais bases do sistema de ensino se inscrevam no âmbito da reserva absoluta de competência legislativa da AR. Não obstante a evolução de competências das regiões, aberta pela revisão da Constituição de 2004, e a possibilidade de a Madeira ensaiar uma iniciativa legislativa regional numa área antes reservada ao GRe (por força da já assinalada reserva absoluta do Estado – Lei de Bases do Ensino), bem como a convicção clara do TC de que a “[…] razão pela qual o juízo a proferir pelo Tribunal Constitucional sobre a questão que agora lhe é submetida haverá de confrontar-se com um quadro jurídico-normativo substancialmente distinto daquele que vigorava aquando da aprovação do Acórdão n.º 161/2003” (ac. n.º 262/2006, proc. n.º 358/2006 do TC, DR, I Série-A, n.º 107, 2 de junho de 2006, p. 3685); ainda assim, aquele Tribunal considerou que a proposta de alteração do dec. leg. regional n.º 4/2000/M continha normas, concretamente o caso do recrutamento do órgão de gestão (direção executiva/diretor, renomeado posteriormente como conselho executivo/diretor), contrárias à própria Lei de Bases do Sistema Educativo, com a qual se deveria conformar, na medida em que esta, no seu entender, exige a eleição democrática dos órgãos que asseguram a direção das escolas. Não se pode deixar de referir que este acórdão foi aprovado com algumas declarações de voto vencido (não concordância) de alguns do seus juízes conselheiros, entre eles Benjamim Rodrigues, que era favorável à proposta de decreto legislativo regional apresentada, pois no seu entender: “É que não conseguimos descortinar ­– mesmo aceitando, por inteiro, um dos pressupostos de que parte o acórdão, de que ‘bases’ correspondem às ‘opções político-legislativas fundamentais respeitantes à matéria’ do sistema de ensino –, que as normas em questão contrariem as ‘bases do sistema de ensino’, definidas pela referida LBSE, no que aqui importa, ouse seja, ‘as bases’ relativas à ‘administração do sistema de ensino’ e à ‘administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino’ [arts. 46.º e 48.º]” (ac. n.º 262/2006, p. 3694). Sobre o papel do TC na dimensão regional do modelo regional de autonomia, administração e gestão escolar, assistem-se a duas intervenções jurisprudenciais, ambas incidindo sobre o modelo, mas descortinando neste apenas aspetos que não o comprometem na sua integralidade, nem mesmo aquilo que consideramos a sua matricialidade, quedando-se fundamentalmente sobre a forma de escolha do órgão de gestão. Porém, esta conclusão merece contestação, pois parece discutível não só poder concluir-se por esta desconformidade, tout court, face à Lei de Bases, como caracterizar esta suposta desconformidade como tratando-se de uma matéria de natureza de inconstitucionalidade per se. De facto, o TC entendeu que haveria uma desconformidade da legislação regional, não por contrariedade ao desenho legal fixado na Lei de Bases (único parâmetro conformador, como se viu, após a revisão de 2004), mas por não conformação à lei nacional, ao tomar como parâmetro referencial o dec.-lei n.º 115-A/98. Acontece que ao adotar esta opção interpretativa, e discutível, acabou o TC por neutralizar a competência constitucional da RAM para desenvolver a Lei de Bases do Sistema Educativo. Além disso, o TC, ao tomar como referência conformadora o citado dec.-lei n.º 115-A/98, criou mesmo, ao arrepio da CRP, uma nova categoria de leis reforçadas, indo além do art. 112.º, n.º 3, in fine, da CRP. Ora, a ser assim, trata-se aqui de introduzir nesta lógica de pensamento jurídico, do TC, o fenómeno típico dos ordenamentos jurídicos federais: a preempção, ainda que não aplicável em Portugal, figura em virtude da configuração constitucional de Estado unitário, com regiões. Em síntese, esta análise coloca em evidência o sentido restrito que o TC em Portugal tem tido em matéria de repartição constitucional de competências, entre o Estado e a RAM, na área da administração educacional, procurando contornos restritivos que a arquitetura jurídica, saída da revisão de 2004, claramente não coloca. No início do séc. XXI, vigora no espaço continental português, no âmbito da autonomia e administração das escolas, um modelo nacional criado com a publicação do dec.-lei n.º 75/2008, de 22 de abril (subsequentemente alterado, ainda que pontualmente, pelos decs.-lei n.os 224/2009, de 11 de setembro, e 137/2012, de 2 de julho). Este diploma nacional assume-se como aprovando um novo regime nacional de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos. São definidos, no preâmbulo do dec.-lei n.º 75/2008, objetivos estratégicos que suportam as mudanças que se pretendem implementar: “reforçar a participação das famílias e comunidades” na direção estratégica dos estabelecimentos de ensino; “reforçar a liderança das escolas” e “reforçar a autonomia das escolas”. Neste sentido, propõe-se que a obtenção desses objetivos será conseguida por via de alterações a introduzir na organização e gestão das escolas através de: aumento da representação parental e comunitária, no órgão de direção estratégica (posteriormente denominado conselho geral (CG)); ampliação dos poderes deste órgão, em especial no que respeita à eleição do diretor e à supervisão da sua atividade de gestão; criação do cargo de diretor, o seu recrutamento por via de um procedimento concursal e o reforço dos seus poderes (presidência por inerência do conselho pedagógico, faculdade de designar os responsáveis pelas estruturas de gestão intermédia); ampliação da margem de manobra das escolas na definição da sua organização interna, em função da especificidade do serviço de educação que prestam. No essencial é absolutamente paramétrico, e não deixa de ser característica que marca especialmente este novo modelo, aquilo que diz respeito ao órgão de gestão da escola: o diretor. A opção por esta figura, que se caracteriza não só pelo facto de não se prever sequer a possibilidade de aquele órgão ser colegial, por opção da escola (como em todos os modelos anteriores e como no modelo regional da Madeira previsto no dec. leg. regional n.º 4/2000/M, de 31 de janeiro, alterado pelo dec. leg. regional n.º 21/2006/M, de 21 de julho), passando a ser de imposição unipessoal (pela primeira vez desde o 25 de Abril, quiçá repristinando, apesar de impropriamente, a célebre figura dos diretores das escolas do Estado Novo), como na forma de o seu recrutamento assentar num procedimento concursal desencadeado pelo CG (art.º 22.º), a que se segue um procedimento eletivo (art.º 23.º). Ora, no essencial e na forma de recrutamento, não pode deixar de mencionar-se a clara aproximação que se introduz neste modelo estatal face ao modelo regional da Madeira (constante da versão inicial do dec. leg. regional n.º 4/2000/M e sem a alteração que este viria a sofrer pelo dec. leg. regional n.º 21/2006/M, consequência das decisões do TC). Isto porque a forma de recrutamento que o dec.-lei n.º 75/2008 vem introduzir assenta num procedimento concursal conduzido pelo CG (art.º 22.º n.os 3-5), sendo em tudo semelhante àquele que o dec. leg. regional n.º 4/2000/M (mencionada versão inicial) previa em processo conduzido pelo Conselho da Comunidade Educativa (art.º 17.ºss.). De resto, e a este propósito, não pode aqui deixar de se acompanhar João Barroso, ao questionar-se até a “legalidade deste procedimento” (BARROSO, 2008, 7) a propósito do dec.-lei n.º 75/2008, face à Lei de Bases do Sistema Educativo, quando a mesma, no âmbito do dec. leg. regional n.º 4/2000/M, foi considerada contrária a esta Lei de Bases tendo em conta os fundamentos antes destacados, sobretudo do ac. n.º 262/2006 do TC. Realizando finalmente uma análise morfológica, merecem destaque, no modelo regional: o órgão de gestão, inicialmente designado por direção executiva e dependente de “provas de mérito” (recrutamento através de procedimento concursal interno na escola – isto na versão original constante do dec. leg. regional n.º 4/2000/M), e subsequentemente a escolha deste mesmo órgão, já designado por conselho executivo, mediante eleições a cujo mandato os docentes da escola se candidatam por lista junto de toda comunidade escolar (isto na versão do dec. leg. regional n.º 21/2006/M); a realidade dos agrupamentos de escolas (não aplicável na Madeira, ao contrário do modelo nacional); os contratos de autonomia (sem existência regional) e o âmbito de aplicação do próprio modelo (aplicável na Madeira apenas a escolas dos 2.º e 3.º ciclos, e do secundário). Tudo aspetos que convergem claramente no sentido de poder afirmar-se que estamos, de facto, perante características matriciais fundamentais no modelo da Madeira, que se distinguem, globalmente, do regime estatal. Tudo isto é potenciado pelas realidades existentes nesta Região ao nível dos quadros jurídicos de pessoal docente, que existem por escola e por zona pedagógica, contrariamente ao continente, em que existem por agrupamento. Ainda, o permitir-se que para o desempenho das funções de direção escolar releve, não apenas a qualificação académica específica, como também, e em igualdade, o anterior desempenho destas funções por um mandato diretivo completo, sempre com a obrigatoriedade de os docentes serem do quadro da própria escola a que se candidatam (ao contrário do modelo do Estado). Estes aspetos confluem, assim, enormemente no sentido de também aqui existir, e de forma reforçada, uma dimensão matricial regional própria. Em rigor, temos por convicção que, na Madeira, naquilo que à organização das escolas diz respeito, seguir um modelo regional idiossincraticamente vocacionado para a realidade regional permite à administração educativa ser conduzida no sentido de abordagens que, no limite, deverão abandonar (não caindo na mera declaração reformista do Estado) a tentação tecnocrática da visão do papel da escola e das suas relações com a administração, através de um diretor nos moldes descritos anteriormente pelo modelo estatal. Não obstante, parece-nos apesar de tudo que esta fórmula, assim concebida, tudo terá a ganhar se ficar aliada a uma política educativa regional que pressuponha uma nova estratégia no funcionamento das organizações escolares, considerando-as na dimensão que Erhard Friedberg entende, como sistemas de ação concreta, e em cujas lógicas de funcionamento interno as escolas se apresentem na posse de plenas capacidades de perceção e realinhamento em relação à intervenção normativista da administração educacional.     J. Eduardo M. Alves (atualizado a 30.07.2017)

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