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paço episcopal

Os primeiros bispos do Funchal, ligados à administração régia, não se deslocaram à Madeira, tendo sido D. frei Jorge de Lemos (c. 1510-1574) o primeiro a fazê-lo. Desembarcou na Ilha dois anos após a sua nomeação, em 1558, tendo-se instalado em casas particulares, pertencentes a Tristão Gomes de Castro (1539-1611), neto de Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1475-1544), que fora vedor das obras da sé do Funchal e depois alferes-mor da Ilha (Sargento-mor), casas na então Rua Direita, atual Rua dos Ferreiros, onde se levantou depois o palácio Torre Bela (Palácios). Após uma breve estadia de apenas cinco anos, num episcopado que durou na totalidade treze, D. frei Jorge de Lemos retirou-se para Lisboa, em 1563, e nas mesmas casas veio a residir depois D. Jerónimo Barreto (1543- 1589). Este bispo começou por se instalar após a sua chegada, a 31 de outubro de 1574, na inicial residência da Companhia de Jesus, na albergaria da capela de São Sebastião, e só após o conselho dos jesuítas escolheu residência, nas casas um pouco acima, onde residira D. frei Jorge de Lemos, dado que o proprietário nunca ali residiu. D. Jerónimo Barreto ainda permaneceria 10 anos na sua diocese, mas em 1584 foi colocado na do Algarve, para onde saiu, a 3 de junho de 1585. A substituição foi rápida para a época e, a 4 de agosto de 1586, desembarcava no Funchal D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608). Após as complexas cerimónias da tomada de posse da diocese, primeiro na praia do Funchal e depois na sé, o novo bispo retirou-se “às suas pousadas, que tomadas estavam na Rua das Pretas” (FRUTUOSO, 1968, 316-317). A referência à residência na Rua das Pretas parece ser um lapso do cronista açoriano, pois que D. Jerónimo Barreto residiu na Rua Direita, hoje Rua dos Ferreiros, e todas as informações seguintes dão as mesmas casas como também residência de D. Luís Figueiredo de Lemos. Em carta de Lisboa, o prelado tinha solicitado “umas casas acomodadas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 9, doc. 9), onde se pudesse instalar aquando da sua chegada, pelo que se pode ter optado, de imediato, pelas casas da Rua das Pretas, mas depois voltou-se às da Rua Direita, anteriormente ocupadas por D. Jerónimo Barreto. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos deixou estas casas em meados de 1594, ocupando, em princípio, as casas negociadas pelo seu antecessor para instalação do seminário, na atual Rua do Bispo. Escreve depois o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que nas referidas casas da Rua Direita se iniciou um enorme incêndio, no dia 26 de julho de 1594, “em dia da gloriosa Santa Ana”, dizendo que havia pouco tempo desde que foram despejadas pelo prelado, incêndio que queimou 104 casas de morada, “das melhores e mais principais de toda a cidade” no centro do Funchal. Refere ainda o cronista a estranheza do ocorrido, tanto porque nessas casas tinham residido os anteriores prelados, “por cuja causa as devíamos supor santificadas”, como pela razão de terem sido hospício dos “gloriosos mártires”, do padre Inácio de Azevedo e seus companheiros (NORONHA, 1996, 367). Esta referência, contudo, não é verdadeira, uma vez que esses jesuítas pernoitaram muito pontualmente no Funchal, e mais abaixo, na albergaria de São Sebastião, dado que quase todos pernoitaram a bordo da nau em que pensavam chegar ao Brasil. Desse incêndio ficaram os topónimos das Ruas da Queimada de Baixo e de Cima. Foi o prelado D. Luís Figueiredo de Lemos que mandou construir os primeiros paços episcopais. O paço foi levantado segundo desenho executado pelo mestre das obras reais Jerónimo Jorge (c. 1570-1618) e à custa do erário régio, como ainda hoje se pode constatar pelas armas reais existentes no edifício. Desse paço primitivo ficou a loja maneirista e a capela de São Luís de Tolosa, datada, na fachada, de 1600, ano que corresponde possivelmente à data de intenção e não de construção, pois o pagamento feito ao mestre das obras reais Jerónimo Jorge, por umas traças e diligências que fez no sítio do “Seminário, tocantes às casa episcopais”, tem a data de janeiro de 1604 (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fls. 279-279v.). Do edifício maneirista dos inícios do séc. XVII resta a fachada simples virada para a Rua do Bispo, com o brasão real de Portugal com coroa aberta, que os Filipes usaram em todas as obras no país e a interessante loggia de sabor renascentista, virada a Norte, onde funciona hoje o Café do Museu. Compõe-se de uma galeria aberta e alpendrada, com balcão cego e pilastras muito elegantes, assente em arcos de volta perfeita, que se articula com a pequena capela de São Luís de Tolosa, onde o prelado se fez sepultar e cuja lápide se encontra hoje na entrada da sé do Funchal. A lápide, em mármore branco continental, com as suas armas e cartela maneirista, lembra, decididamente, a de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego, que se fez sepultar como arcebispo, mas existem no continente e na Ilha outras lápides semelhantes. O portal da capela é de muito bom desenho, com entablamento decorado com pontas-de-diamante, a inscrição “Ludovicus Epus Funchalensis 1600” e as armas do prelado, ladeadas e encimadas pelo que parecem ser esferas armilares simplificadas, conjunto ainda rematado pela cruz da Ordem de Cristo. A fachada da capela é encimada por óculo simples e rematada a norte por campanário de gosto tardo-gótico. O prelado mandou representar nas suas armas as dos Figueiredo, mas não as dos Lemos, com rosetas de quarto crescente. Nas armas da capela aparece uma merleta, pequena ave semelhante à andorinha, mas sem patas aparentes, que foi atribuída aos Leme, família que se fixou na Madeira ainda no séc. XV, cujos elementos heráldicos o bispo carregou nas suas armas, bem como as cinco folhas de figueira, utilizadas pela família Figueiredo. Para norte, a capela articula-se com uma escadaria de acesso à antiga entrada do paço, com arco de volta perfeita e acesso ao alpendre da loggia, numa composição que terá sido reposta pelas obras de 1940/50. Estas casas ainda tiveram obras ao longo do séc. XVII, pelo menos na vigência do prelado D. frei António Teles da Silva (1675-1682), homem de gosto refinado, que deixou um importante espólio de que faziam parte móveis orientais, entre outras peças, e, muito provavelmente, também duas grandes talhas chinesas, adquiridas após a morte de D. Luís Rodrigues Villares (c. 1740-1810) para a capela do Santíssimo da sé. Da vigência de D. António Teles da Silva no Funchal sobrevive a Relação do Sínodo Diocesano de 9 de junho de 1680, com a descrição das decorações feitas no paço episcopal (BNP, Arquivo da Casa de Tarouca, doc. 150), das mais interessantes descrições do que foi a época barroca na Madeira. Nos inícios do séc. XVIII, na vigência de D. José de Sousa Castelo Branco, de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira, o paço conheceu nova ampliação (ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 273). Incorporou então as instalações do seminário, ao tempo denominado como “colégio de São Luís”, e os estudantes foram realojados no chamado “mosteiro novo”, onde hoje existe o laboratório regional de análises, na rua ainda desta evocação: Seminário. O “mosteiro novo”, que nunca o chegou a ser, era até então “recolhimento de mulheres honestas” e dos descendentes da família do fundador, o cónego António Spranger (SILVA e MENESES, II, 1998, 398-399). A oportunidade de ampliar francamente as instalações ocorreu com o tremor de terra de 1748. O paço episcopal teria sido bastante abalado e o bispo podia ocupar a residência da fortaleza de São Lourenço, pois desde maio do ano anterior desempenhava as funções de governador, dada a saída para o Brasil, diretamente da Madeira, de Francisco Pedro de Meneses Gorjão, nomeado para o governo do Maranhão. Assim, após o tremor de terra, o bispo e a família transferiram-se para São Lourenço. O pedido para aumentar o “palácio episcopal”, que “já antes era muito pequeno, pelo que se tinha ocupado o Colégio de S. Luís, [até então] seminário da Diocese” (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 973, fls. 155v-156), seguiu logo no mesmo ano de 1748, havendo diligências em 1749, altura em que o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1779), efetuou o projeto e se orçamentaram as obras. A autorização do conselho da fazenda chegou com data de 24 de janeiro de 1750, foi registada a 18 do mês seguinte e logo no dia 24 próximo se procedeu à arrematação, feita pelo mestre carpinteiro Francisco Gomes, morador aos Arrifes, no Funchal, por mais de cinco contos de réis. O auto de arrematação foi lavrado com data de 19 de março, figurando como fiadores do mestre carpinteiro Bernardo Fernandes de Freitas, que também tinha feito um lanço sobre as obras, no valor de sete contos de réis, António Gonçalves e Francisco Fernandes Antunes e Silva. O bispo D. frei João do Nascimento, no entanto, percebeu de imediato que o lanço efetuado pelo mestre Francisco Gomes não cobria as obras que pretendia, pelo que conseguiu, por mandado do conselho da fazenda de agosto de 1751, que se revertessem os ordenados de governador, que se encontrava a acumular desde quase os inícios de 1747, para a reedificação do paço. Com base nesse dinheiro e no seu próprio, o bispo assumiu a direção final das obras. O prelado tinha acumulado até então uma série de ordenados para além do seu, como sejam os de provisor e de vigário-geral, cargos que, entretanto providos, tinham sido comutados para o prelado por mais 200.000 réis anuais, passando tudo os 10.000 cruzados de renda. Por novo mandado do conselho da fazenda, do final desse ano de 1751, as obras foram pagas no estado em que se encontravam ao mestre carpinteiro Francisco Gomes, assumindo o prelado a direção e os encargos do restante. O paço já devia estar, no entanto, minimamente habitável nos meados de 1751, pois em agosto desse ano, o prelado entregou o governo e o palácio de São Lourenço ao novo governador, D. Álvaro José Xavier Botelho e Távora (1708-1789), conde de São Miguel. Contudo, as obras do paço devem-se ter arrastado ainda por algum tempo, pois o magnífico painel de azulejos das fábricas de Lisboa, que decora a enorme varanda superior da torre de ver o mar, deve ser um pouco posterior a 1760. Todo o acompanhamento dos trabalhos, entretanto, foi efetuado pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins. A direção deste, aliada à austeridade franciscana de D. frei João do Nascimento, explica o total despojamento da arquitetura exterior do paço episcopal assim como, por outro lado, a sua escala verdadeiramente monumental para a cidade do Funchal dos meados séc. XVIII. O enorme bloco quadrangular do paço episcopal, rematado por ampla varanda superior, em torre e ao gosto funchalense, aberta para o mar, articulava-se (como ainda se articula) com o corpo construído por Jerónimo Jorge em 1604/1609, rematado pela pequena capela de São Luís de Tolosa. A nascente é muito possível que possuísse mais alguma construção, de serviços, e de que teria ficado o prédio contíguo, com fachada para a Rua do Bispo. Trata-se de um prédio de grande dignidade e anterior à construção do monobloco de 1748/1751, que possui no primeiro piso e no piso térreo vestígios vários de arcos e nichos, ainda mais antigos, assim como cantarias boleadas nos pisos superiores. Todo este conjunto possuía uma cerca ampla para Norte com jardim, ainda utilizada pelo então Liceu do Funchal, que ali funcionou a partir de janeiro de 1914, e que foi depois parcialmente atulhada para nivelamento e utilizada para a construção do largo do Município. Paço Episcopal A fachada para a rua do Bispo apresenta portal central de moldura de remate relevado em cantaria, datado no lintel do início da construção (1750), encimado por cornija relevada e ligeiramente ondulada, ladeado por grandes janelões gradeados de idêntica moldura. As entradas laterais de serviço, de molduras mais simples, são ladeadas por óculos quadrilobados e gradeados. O andar intermédio, correspondendo ao andar de serviços, apresenta oito janelas, que usam como cornija de balanço as sacadas das varandas do andar nobre, aí com grade de ferro com bolachas. As molduras das janelas das varandas do andar nobre são rematadas por frontão curvo e a fachada rematada superiormente por cornija de cantaria relevada com duas gárgulas em forma de meia cana. A fachada norte, dantes virada para os jardins do bispo e depois para o campo de jogos do Liceu do Funchal, apresenta a marcação dos três pisos da fachada com um bloco central de mais dois pisos correspondentes à torre monumental, não visível da Rua do Bispo, sendo o andar inferior, correspondente às antigas arrecadações do paço, dotado de gradeamento à face. O andar nobre é excecionalmente alto, com varandas de sacada a servirem de balanço às janelas do andar de serviços, criando as molduras de cantaria espelhos superiores vazados e possuindo estas janelas grades de ferro, ditas “de barriga”, que permitiam a quem se debruçasse continuar protegido por detrás das mesmas. A fachada poente deste enorme bloco apresenta uma janela decorada com as chaves de São Pedro esculpidas no lintel e uma porta inferior com lintel com cartela maneirista esculpida com a emblemática dos jesuítas. O trigrama cristológico IHS é a abreviatura do nome de Jesus em grego ou em latim medieval: Ihesus. Ora, embora propagado no séc. XIV pelo pregador São Bernardino de Sena e utilizado pelos franciscanos a partir do séc. XVI, foi retomado por Santo Inácio de Loyola com a significação de “Jesum habemus socium”, em português “Temos Jesus como companheiro”, e passou a ser o emblema da Companhia, pelo que o lintel desta porta do paço episcopal deve ter vindo do edifício do Colégio ou de uma das suas quintas. O paço episcopal é rematado superiormente por larga torre de ver o mar, de mais dois pisos, colocada na parte central do conjunto, ligeiramente recuada em relação à fachada, com uma elegante balaustrada de pedra com grade de ferro, que é das poucas que ainda se mantêm abertas no centro da cidade. O alpendre assenta em seis barras de ferro que partem dos balaústres de cantaria, tenda duas portas de moldura de cantaria com lintel de balanço, definindo três panos totalmente ocupados por um painel contínuo de azulejos com as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade, de uma das oficinas dos grandes mestres de Lisboa, datáveis de 1760 a 1765 e de uma grande qualidade de execução. O átrio de entrada do antigo paço episcopal encontra-se empedrado ao gosto madeirense dos sécs. XVIII/XIX, mas num desenho conjetural das grandes obras de reabilitação de 1950 a 1954 para instalação do Museu Diocesano de Arte Sacra. Mantém ainda as argolas de parede para prisão das cavalgaduras, que sobreviveram, assim, a inúmeras campanhas de obras. Apresenta ao centro uma escadaria de grande impacto visual, com corrimão de cantaria e de planta em voluta, terminado nas pilastras com enrolamento das guardas e remate por pelouro, o que lhe dá uma sensação especial de profundidade. A porta superior é rematada por arco abatido e ladeada por dois enormes óculos ovais com moldura de cantaria, de eixo ligeiramente inclinado para iluminação das escadas, ao gosto das encenações barrocas. Assim, os óculos parecem iluminar uma grande escadaria interior, mas esta, interiormente, só corresponde a um lanço de escadas. Armas do Paço Episcopal Nem sempre os prelados funchalenses ocuparam este edifício, optando alguns por se recolherem em outros locais mais recatados, embora ali se mantivessem os seus serviços e os órgãos da diocese. D. José da Costa Torres (1741-1813), 18.º bispo do Funchal, por exemplo, vivia habitualmente na residência da quinta da Penha de França, de onde, aliás, foi embarcado à força em julho de 1796, na escuna Andorinha, do futuro conde de Carvalhal (1778-1837), dado já ter sido eleito bispo de Elvas, e o bispo seguinte, D. Luís Rodrigues Vilares (c. 1740-1810), faleceu na quinta da Nazaré. Os prelados administradores apostólicos, como D. Francisco Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828), bispo de Meliapor, depois eleito bispo de Elvas, também ali não viviam, mas, ao contrário, o cardeal D. Lorenzo Caleppi (1741-1813), arcebispo de Nibisi e núncio apostólico em Portugal, passando pelo Funchal a caminho do Rio de Janeiro em julho de 1808, ficou a residir no paço episcopal.     Arcadas do Paço Episcopal O paço episcopal do Funchal seria confiscado pela fazenda da República em 1910, por ter sido construído com verbas da anterior fazenda régia e aí foi instalado o Liceu do Funchal, em janeiro de 1914. Com a nova consciencialização patrimonial do Estado Novo e a campanha desenvolvida por várias entidades locais em prol da criação de um Museu de Arte Sacra, assim como com a construção de um novo edifício para o Liceu, veio a ser ali instalado esse Museu, após a saída dos alunos em 1942 e as obras de reabilitação, cuja inauguração decorreu em 1 de junho de 1955, cerimónia que contou com a presença do general Francisco Higino Craveiro Lopes, presidente da República, então em visita ao arquipélago, do bispo do Funchal D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957) e das demais entidades regionais.   Arcadas do Paço Episcopal Em 1915, com a tomada de posse de D. António Manuel Pereira Ribeiro, depois de ter sido sagrado em Viana do Castelo, o cabido e um grupo de católicos alugaram uma residência na Rua dos Netos, na esquina da Rua dos Ferreiros, em frente ao antigo Ateneu do Funchal. No entanto, ainda nesse ano, por aquisição da diocese e com apoio de uma doação e uma herança, o prelado passou a residir na quinta senhorial do Largo do Ribeiro Real, que passou a paço episcopal, onde ainda se encontra. O atual paço episcopal foi objeto de obras de reabilitação na época em que assumiu o lugar de bispo auxiliar do Funchal D. Manuel de Jesus Pereira (1911-1978) e que os serviços gerais da diocese conheceram um novo dinamismo, entre 1948 e 1953. Data dessa época a reforma do portal de acesso aos jardins e do alinhamento do muro, ficando o portal encimado pelas armas do bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro e a data de 1951. No início da década de 90, construiu-se o novo bloco da Câmara Eclesiástica, sob projeto do arquiteto João Francisco Caires.   Rui Carita (atualizado a 19.12.2017)

Religiões

nogueiras, viscondessa das

(Funchal, 1805-Funchal, 1888) Poeta e escritora, Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt foi autora de poemas longos e sentimentais, entre eles, “A Mulher Poeta”, “Uma Noite de Luar”, descrição romântica de fenómenos da natureza e “O Rouxinol”. Estes trabalhos revelam bem o modo empolgante como interrogava a existência através da poesia. Palavras-chave: poesia; literatura. Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, conhecida como viscondessa das Nogueiras, nasceu no Funchal, a 14 de março de 1805, e faleceu no seu solar, na mesma cidade, a 23 de dezembro de 1888. Era filha de José Joaquim de Vasconcelos e de Francisca Emília Teles de Meneses. Casou-se com Jacinto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, 1.º visconde das Nogueiras, com quem teve dois filhos: Jacinto Augusto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, que veio a ser 2.º visconde das Nogueiras e ministro de Portugal em Washington, nos E.U.A., onde acabaria por morrer (sem que sua mãe tivesse conhecimento), e Matilde Lúcia de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt. Foi avó de Matilde Sauvayre da Câmara e de Celina Sauvayre da Câmara, autora de De Nápoles a Jerusalém (1899), e cunhada de Maria do Monte. Fruto de uma educação privilegiada, enriquecida no decorrer dos anos por um constante amor ao trabalho, sabia falar e escrever corretamente francês e inglês, tinha bons conhecimentos de italiano e cultivava a música e o canto, embora fosse uma amadora. Pertencente às mais distintas famílias madeirenses, era uma senhora de claros dotes poéticos, que desde muito nova se interessou pela literatura. Nos últimos anos da sua vida, devido a uma saúde débil, dedicou-se mais intensamente à tradução e à poesia. Colaborou com artigos e poemas na imprensa portuguesa e em revistas literárias do estrangeiro. Foi umas das primeiras mulheres a escrever para o Almanaque Luso-Brasileiro de Lembranças. “‘Suaves Modestos Sons’ – Mulher e Poesia na Imprensa Madeirense da Segunda Metade do Séc. XIX”, de Luísa Marinho Antunes, é fonte importante de pesquisa no que diz respeito à sua colaboração na imprensa periódica. Constam composições da viscondessa das Nogueiras nas coletâneas Flores da Madeira, Album Madeirense e na obra Prelúdios Poéticos de J. Ramos Coelho. O escritor e poeta Bulhão Pato, que nos cantos VI e VII do seu poema “Paquita” faz uma bela descrição poética da Madeira, foi amigo íntimo do 2.º conde do Carvalhal e de Jacinto Augusto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, 2.º visconde das Nogueiras, filho da viscondessa, e em sua companhia passou várias temporadas na Ilha, entre 7 de agosto de 1850 e 6 de março de 1851. A isso se refere em alguns dos seus livros com saudosa recordação. Em Sob os Ciprestes e nos três volumes das suas Memórias, ocupa-se de algumas pessoas e assuntos relacionados com madeirenses. Encontram-se ali largas e elogiosas referências não só ao conde do Carvalhal, mas também à viscondessa das Nogueiras, nomeadamente aos seus versos sentimentais e à sua prosa. Há registos bibliográficos dos seguintes títulos e traduções suas: Diálogos entre uma Avó e sua Neta, a sua obra principal, aprovada pelo Conselho Geral de Instrução Publica para as Escolas Oficiais e editada em Lisboa, pela Imprensa Nacional, em 1862; o romance O Soldado de Aljubarrota, publicado em 1857; Eurico le Prêtre, de Alexandre Herculano, tradução de Eurico, publicada em Paris, no ano de 1888, por iniciativa do príncipe Nicolau de Oldenburgo, que tivera ocasião de conhecer o respetivo manuscrito, tendo em conta que privava com os viscondes das Nogueiras e, assim, leu no solar da R. da Mouraria e achara excelente a tradução; Historia de Santa Monica. Por Monsenhor Bougaud, que foi a sua última tradução para português, pelo Centro de Propaganda Catholica em Portugal, e teve direito a uma segunda edição, em 1888, pela Guimarães; Castelãs de Roussilon, também uma tradução da obra do abade de Bougaud; Genoveva, traduzido de Lamartine; “Nota ao Mês de Maio”, que surge na tradução dos Fastos de Ovídio, pelo visconde de Castilho. A viscondessa das Nogueiras, como refere Bulhão Pato nas Memórias e, depois, o visconde do Porto da Cruz, era reconhecida também pela sua gentileza, possuindo, com efeito, um singular talento que, noutro meio com recursos menos limitados, poderia certamente ter conquistado um nome ilustre na história da literatura portuguesa. Poemas longos e sentimentais como “A Mulher Poeta”, “Uma Noite de Luar”, uma descrição romântica de fenómenos da natureza, e “O Rouxinol”, este último transcrito por Luís Marino na obra Musa Insular, revelam o modo empolgante como interrogava a existência através da sua poesia. Os seus restos mortais repousam no cemitério das Angústias. Obras de Matilde Isabel de Santana Vasconcelos Moniz: O Soldado de Aljubarrota (1857); Diálogos entre Avó e sua Neta (1862); “O Romance Bermudo e a Mesa de Prata de D. Dinis” (1879); Poemas (2013).   António José Borges (atualizado a 03.03.2018)

Literatura

boa imprensa, a

A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, durante todo o século XIX e até o primeiro quartel do século XX, permite-nos analisar o discurso normativo segundos os cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. O conceito de boa imprensa, que se veio a tornar operativo no plano das orientações doutrinais e pastorais de Igreja na sua relação com o Mundo, é expressão de uma época marcada por uma cultura de combate, em que a imprensa foi usado como instrumento privilegiado de doutrinação ideológica e de ataque aos campos que pensavam e defendiam modelos de sociedade diferentes. Palavras-Chave: Comunicação Social, Igreja, Ideologia, Iluminismo, Cultura Laica, Doutrina, Teologia.     A imprensa católica na Madeira, a chamada boa imprensa, publicada durante o séc. XIX e até ao primeiro quartel do séc. XX, permite analisar o discurso normativo dos cânones do catolicismo, face a um mundo europeu em transformação em todos os sectores, nomeadamente nos campo filosófico e ideológico, o que, obviamente, terá reflexos profundos de natureza teológica. Se é um facto histórico que a autoridade da Igreja Católica e do papa já haviam sido contestadas pela Reforma protestante de Lutero e Calvino, no início do séc. XVI, mas no interior do cristianismo, cuja essência não se era questionada, o período em análise da boa imprensa é o tempo em que a autoridade das religiões reveladas, não apenas o cristianismo, mas igualmente o judaísmo e o islamismo, começava a ser equacionada e até refutada. A análise da imprensa católica madeirense, desde o século XIX até ao primeiro quartel do século XX, é feita no contexto de uma sociedade hoje munida da utensilagem mental que nos confere o Concílio Vaticano II e todas as correntes de pensamento que atravessaram todo os séculos XIX e XX e já mesmo do século do atual século XXI. Na verdade, se tivermos em conta que a boa imprensa formula como objetivo a doutrinação da sociedade, através de uma normatização, que inclui uma determinada conceção de família e do seu papel na sociedade, este trabalho é feito justamente no momento em que o Sínodo dos Bispos, patamar eclesiástico anterior a um concílio, acaba de realizar em Roma, sob o múnus do Papa Francisco, sob o tema da família, cujos cânones clássicos de família monogâmica, de casamento para uma vida inteira, sem a existência do divórcio, que continua a ser vedado no direito canónico, mas constantemente efetivado após uma vida conjugal, que, ab initio, se quis até a que a morte separasse os membros do casal. Essa realidade levanta novos desafios à Igreja Católica, nomeadamente a da confissão e absolvição bem como a da comunhão dos divorciados pela igreja e de novo casados à face das leis civis. Outro desafio não menos atual é o da união conjugal de indivíduos do mesmo sexo, questão que o sínodo episcopal não se absteve de debater, tal como a questão do batismo de crianças de pais solteiros. A Igreja Católica sempre foi apontada como uma instituição a quem fogem os tempos hodiernos de cada época, na medida em que a sua visão do tempo nem sempre coincide, segundo os seus críticos, com aquela que é a visão atualíssima, mas sempre efémera, visto que cada moda é sempre sufocada pela vaga sucessiva e ininterrupta que cada época tem para oferecer. A essa ideia, a igreja sempre contrapôs a dos valores eternos. Essa mutação constante dos tempos, geradora de insegurança, teria como alternativa, numa visão conservadora ou clássica, conforme a perspetiva, a segurança ontológica do lar, com os papéis bem definidos do modelo do homem, como pai e chefe de família, da mulher, como esposa e mãe, no quadro completo de uma relação tendencialmente procriadora, em que os filhos encontravam o tal universo seguro face à insegurança do mundo exterior. A este mundo interior da família, a Igreja oferecia, no espaço exterior, uma simbologia religiosa em que se incluía a devoção mariana, o culto dos santos, com o seu lado sacro e profano, as procissões e romarias, e uma exigência na penitência para o sacramento essencial da transubstanciação eucarística. É assim, neste cenário, que a barca de Pedro atravessa as vagas dos tempos, dos séculos XIX e XX: a família e o lar, a comunidade católica, com as suas datas simbólicas, do calendário litúrgico, consagradas como dias santos, a par dos feriados públicos, que mudam ao sabor dos regimes. Assim, a manutenção do universo católico tinha de ombrear com a chamada má imprensa, cujos valores não só divergiam dos valores pregados pela Igreja Católica, como, por vezes, os combatiam sistematicamente, num combate recíproco de exclusão mútua de legitimidade, ambos os lados convencidos de que eram detentores de uma crença que, metafísica e/ou religiosa, se propunha salvar a humanidade. A boa imprensa pretendia ser e declarava-se como o baluarte dos valores da doutrina, face a um mundo que se dissolvia nas correntes que queriam substituir a crença em Deus pela crença na ciência ou em ideologias que tinham a mesma estrutura teleológica, como o marxismo, mas que, em vez de situar a salvação na outra vida queriam uma sociedade perfeita neste mundo. A boa imprensa tinha uma missão e pretendia abarcar todos os aspetos da vida, não apenas a religião, mas igualmente a arte, a literatura e a própria ciência, criando, assim, uma cosmovisão que dispensava a imprensa má e pretendia assim conduzir o rebanho para os caminhos de Deus. A boa imprensa não se limitava à esfera estrita do religioso, dos sacramentos, das verdades da fé, como primeira instância do catolicismo, antes ambicionava oferecer uma identidade de vida cujas bases eram o catolicismo. A normatização da vida terrena e a relação do homem com o alto pela Igreja tem marcos ao longo dos séculos. Com efeito, podemos destacar três momentos marcantes na construção da identidade católica como norma desde os fins da Idade Média, com o Concílio de Trento (1545-1563), o Concílio Vaticano I (1869-1870) e o Concílio Vaticano II. Tudo isso levanta a questão dos novos desafios e valores com que a Igreja se vê confrontada, sobretudo desde o século XVIII. É nessa encruzilhada da História que é convocado o Concílio Vaticano II, no ano de 1961, pela bula papal Humanae Salutis, de João XXIII, concluído já no pontificado de Paulo VI. Este concílio, em contraste com os anteriores da história da Igreja, que, muitas vezes, significaram um maior enclausuramento da Igreja Católica face ao mundo, tem uma natureza de abertura ao mundo e representou, segundo algumas leituras, o fim do complexo de fortaleza em que a Igreja tendeu a fechar-se depois da Idade Média. No tempo medieval, a Igreja confundia-se com o próprio mundo conhecido, o mundo europeu. Mas se os três concílios referidos são marcos na história do catolicismo, a doutrina de normatização da vida dos católicos pela Igreja, mesmo no plano secular, sempre existiu, desde os seus primórdios e isso traduz-se em 21 concílios ao longo destes mais de 2000 anos. A questão é saber se essa normatização coincide com a mensagem de Cristo, que aceitava o mundo na sua diversidade, como se vê quando conta a parábola do samaritano, ou quando convive com a mulher adúltera ou com o cobrador de impostos, porque a todos quer imbuir do seu amor, ou seja, Cristo inclui na sua mensagem a alteridade, o outro, que é constantemente recusado por sectores fundamentalistas das diversas culturas, atitude, a da recusa, que se torna um obstáculo à comunhão universal. Que a interpretação pelas Igrejas cristãs da doutrina de Cristo é suscetível de ser alterada ao longo dos séculos, provam-no vários factos. Basta ver que, ainda hoje, algumas Igrejas cristãs consideram autênticos e, portanto, de inspiração divina livros que as outras principais Igrejas cristãs não aceitam. A  Igreja Ortodoxa da Etiópia reconhece o Pastor de Hermas e os Atos de Paulo;  a Igreja Apostólica Arménia ora aceita a terceira Epístola aos Coríntios, ora não a inclui entre os livros canónicos do Novo Testamento; a mesma Igreja Arménia não incluía na sua Bíblia o Apocalipse até 1200. Já a Bíblia copta, adotado pela Igreja do Egito, continua a incluir as duas Epístolas de Clemente. Poder-se-á arguir que estas Igrejas não comungam com a Igreja de Roma da mesma perspetiva doutrinal. Bem, por um lado, todas estas Igrejas cristãs, e que não incluem as Igrejas protestantes, se consideram lídimas intérpretes da doutrina de Cristo; por outro, temos o exemplo livro do Apocalipse, que, durante muito tempo, não foi considerado autêntico pela própria Igreja Católica e que hoje o é. Isto alerta-nos, desde logo, para duas coisas: que a Igreja não é a instituição estática e imune ao espírito do tempo, como alguns, dentro e fora dos muros eclesiais, julgam, e que é sempre preciso saber ler na doutrina oficial o que ela contém de marca do eterno, divino ou humano. Qual a importância destes factos? Revelar que a análise das opções culturais, ideológicas e culturais deve passar pelo conhecimento de que mesmo o sagrado da mesma confissão, neste caso, o cristianismo, nem sequer chega ao estatuto de universal nas suas diferentes Igrejas, o que deve precaver os fiéis para uma aceitação cega das crenças e convicções. A busca da síntese de um corpo por natureza plural como é o corpo da Igreja será permanente. A pluralidade sociológica da Igreja é origem da tensão permanente no seu seio, o que, aliás, se verifica desde os primórdios da sua existência e inclui não apenas a questão ideológica e política dos seus membros, mas a polémica da masculinização da doutrina, que, nos primeiros séculos, teria levado à ascendência de uma perspetiva esvaziada do papel da mulher. Nesse processo, incluir-se-ia a postergação de um hipotético evangelho apócrifo atribuído a Maria Madalena, cuja liderança incomodaria os apóstolos. Se o documento é real, a sua autoria fica por confirmar. Contudo, do ponto de vista simbólico, significa a existência de um modelo de Igreja quase estático e outro modelo de Igreja dinâmico, capaz de atribuir um estatuto a mulher idêntico ao do homem. O Concílio Vaticano II vai questionar esse desfasamento temporal e vai trazer, naturalmente, para o seio da Igreja, melhor, vai revelar no seio da igreja aquilo que tinha vindo a ser oculto, pelo menos desde o século XIX: a multipolaridade de identidades sociais e políticas que faziam a sua própria leitura da doutrina até então oficializada numa versão essencialmente conservadora e normalmente veiculada pela boa imprensa, que, sob a capa da normatização, oferecia e impunha uma certa visão do mundo, de natureza conservadora. Ao abrir-se à sua pluralidade interna, a Igreja abria-se ao mundo como um todo, mas na sua variedade. É óbvio que essa abertura expunha a Igreja aos ventos da mudança e a confrontava com a sua própria unidade. A dialética social, que sempre existira no interior da Igreja, tornava-a agora vulnerável e suscetível de ver a essa unidade abalada, uma unidade que, tantas vezes, sufocara o processo dinâmico inerente a qualquer instituição humana, ainda que reivindicando-se de natureza divina. Era agora a vez de as forças progressistas quererem impor a sua visão da doutrina. Revelava-se, portanto, muito complexo o equilíbrio entre os diferentes sectores no seio da igreja, que tinham ligações ao exterior. Afinal, não é a isso que se assiste, às várias tentativas de se apropriação sectorial do carisma do Papa Francisco na sua ligação com o mundo? Desde aquele instante em que o universo emergiu da incubação em que sempre se mantivera que a natureza inicia o seu processo infindável de se auto-organizar, ainda antes que o ser pensante quisesse começar a ter a veleidade de ele mesmo repetir o gesto inicial do fiat lux, tenho ele aqui o sentido literal ou literário da passagem do caos à ordem natural das coisas, porque é disso mesmo que se trata: em cada momento e em todos os tempos há que reorganizar, refundar, ordenar os elementos que se dispersam, caoticamente, se não forem absorvidos e submetidos a um sistema que lhes dê a ordem necessária. Todas essas tentativas que, ao longo dos séculos, se propuseram e nos propuseram a construção de uma sociedade perfeita têm em si duas ideias propulsoras: o mundo está uma desordem; é preciso ordená-lo. E uma estrutura imanente: a do momento do fiat lux, faça-se a luz que supere as trevas. Ao querer repetir esse momento inaudito e irrepetível, os homens sempre reservaram para si o papel dos deuses. E, concomitantemente, sempre tenderam do politeísmo para o monoteísmo, isto é, não só quiseram repetir o instante da criação como sempre quiseram ser únicos no sistema que propunham, porque esta é a natureza das coisas: se o modelo de sociedade que se propõe é aquele que melhor a serve, por que razão se haveria, sequer, de discutir outro modelo que concorra com ele? E partir daí, entendem que esse outro modelo está para o primeiro, no tempo ou na avaliação que é proposto, como as trevas estão para a luz. E é nesse instante que começa a recusa do outro. Qualquer modelo filosófico, cultural ou religioso traz no seu ADN a ideia de proposta e a ideia de recusa. Se essa tensão não for superada através de um processo dialógico, essa recusa mútua trará a rutura em qualquer sociedade, exatamente o oposto do que propõe cada um dos vários modelos. Mas não haverá legitimidade em cada um dos modelos? Enquanto proposta, opção e direito à recusa do outro, sim; enquanto recusa do conhecimento, do direito à existência do outro e do diálogo com o outro, não. E não, porque o homem não é Deus, mesmo que aceitando o princípio teológico de que tenha sido feito à sua imagem e semelhança, o que não quer dizer igualdade absoluta, o que não significa que não tenha o direito de querer caminhar em direção ao absoluto, num processo hegeliano do espírito em busca de si mesmo. A República de Platão, a Cidade de Deus de Santo Agostinho, a Cidade do Sol de Campanela, a Utopia de Thomas More, todas essas obras foram sempre proposições de arquétipos de sociedades perfeitas a construir na Terra, tal como a proposta marxista de uma sociedade sem classes, onde não haveria mais exploração do homem pelo homem, ao contrário da sociedade capitalista, em que o homem seria lobo do próprio homem, e onde a igualdade seria perfeita. Todos estes modelos defendem, contudo, a harmonia entre os homens e todos eles são compatíveis com o “amai-vos uns aos outros” de Cristo, só que Ele, que era filho de Deus, segundo os cristãos, ainda assim, não teve a veleidade de propor um sistema, político ou mesmo teológico perfeito – “o meu Reino não é deste mundo” –, mas ninguém o levou a sério, foi, então, crucificado, e note-se que não é metáfora, como pode parecer neste (con)texto, mas facto histórico que todos aceitam. Já aqueles modelos eram e são todos deste mundo e pronunciavam-se sobre todos os aspetos da vida humana. A propósito do chocolate, proveniente da América Central, e que aparece na Europa no final do século XVI, o Padre José Tolentino de Mendonça lembra uma questão teológica religiosa sobre se o uso do chocolate quebrava ou não a lei do jejum no tempo da quaresma, defendo uns que sim e outros que não, pois se era alimento quando sólido e violava o jejum, diluído em água tornava-se bebida. Afirma o Padre Tolentino de Mendonça: “a questão de fundo não é tanto o chocolate em si quanto o que ele representa: o confronto de modos de interpretar o mundo. De um lado, perfila-se uma posição ascética de rutura; de outro, expressa-se um entendimento do valor do mundo e da criação” MENDONÇA (“Religião e Chocolate”). Portanto, nada fica de fora de qualquer sistema de valores que se outorgue o papel de ordenador de uma sociedade que se pronuncia sobre o que existe ou sobre o que aparece. O Catolicismo é, portanto, um dos vários sistema de valores que se propõem às sociedades,. E afirma-se não apenas no aspeto religioso, mas igualmente na representação cultural e normativa que pretende para a sociedade em que se insere, sem descurar a questão política. Na sociedade madeirense, isso é visível na imprensa católica, a chamada Boa imprensa, boa justamente porque, segunda a própria, ela veiculava esses valores e deles se fazia eco e múnus doutrinário. Esse modelo de sociedade manteve-se em todo o século XIX até o Concílio Vaticano II, em que o diálogo ecuménico veio instituir uma nova relação com as outras confissões religiosas e, assim, alterar o conceito de alteridade desde sempre presente na cultura ocidental. Que a imprensa católica ou denominada neste artigo boa imprensa não se confinava nem se pretendia confinar ao caráter religioso, di-lo logo, inclusive, a denominação de alguns periódicos. Em 1879, circulava na imprensa regional um jornal que se intitulava “Religião e Progresso”, que já no nome traz implícita várias mensagens: que a religião não era incompatível com o progresso, ideia muito divulgada desde o Iluminismo, em que a Razão vinha ocupar o lugar de Deus na vida do homem, e que se acentua com as doutrinas filosoficamente materialistas, estávamos então nas vésperas do auge das teorias marxistas que vieram a sustentar a revolução de outubro de 1917, ano em que do céu, desciam as anunciadas aparições de Fátima. O jornal “Religião e Progresso” autodefinia-se como “jornal religioso, litterário, politico e scientifico”, na grafia da época e antes da reforma ortográfico radical de 1911, o que significa que este periódico, embora se declarando logo como religioso e dizia ao que vinha, não deixa de dizer que cobria vários campos do saber, dispensado, assim, outras publicações que se apresentassem como literárias, políticas ou científicas, porque ali tudo podia ser encontrado. O que se percebe muito bem, porque, se o objetivo era o do caráter da normatividade essa normatividade devia abranger todos os aspetos da vida em sociedade e procurava não se deixar ultrapassar nem ser considerado ultrapassado. Essa autocaraterização teria ainda como intenção não dar oportunidade que a leitura de outras publicações, nos vários campos do saber, induzisse outros valores incompatíveis com o modelo de sociedade que a boa imprensa pretendia incutir na sociedade madeirense, portanto, a doutrinação era multidisciplinar, mesmo que partisse do campo religioso. Neste jornal, nessa edição de 6 de Dezembro de 1879, o artigo de fundo era precisamente “A penitencia”. O artigo começa por falar sobre a forma de proceder dos apóstolos. “Se quizermos mais uma prova da maneira de proceder dos Apostolos, abramos mais uma vez a Escriptura” e conta, o artigo, o caso de um homem de nome Simão que havia sido convertido pelo Apóstolo Filipe e a forma como ele reagiu ao ver o poder dos Apóstolos: “Tempos depois do baptismo d’este converso, vendo elle que pela imposição das mãos dos Apostolos sobre a cabeça dos novos convertidos, descia sobre elles o Espirito Sancto, pretendeu comprar este poder. Simão pensava naturalmente que lhe seria de muita vantagem alcançar este poder; porque, exercido, lhe seria bem rendoso”. A questão teológica é saber como é que Simão seria perdoado desta iniquidade. E aqui há a polémica entre o Catolicismo e o Protestantismo: “Se a fé somente é o que justifica o homem, bastar-lhe-ha recordar os artigos que o apostolo S. Philippe lhe havia ensinado antes do baptismo”, diz o articulista e prossegue: “Não foi isso, porém, o que lhe prescreveu São Pedro. Terminantemente lhe dice: - Poenitentiam age ab hac nequitia tua: - faze penitencia d’essa maldade”. E neste ponto, afirma o articulista: “Creio que o Protestantismo não negará a um Apostolo, o conhecimento d’aquillo que é necessario para a remissão dos peccados”. E prossegue lembrando: “Simão era crente: - Tunc et ipse credit: mas, se apesar da fé de Simão, o apóstolo obrigou-o a fazer penitencia (…) que devemos concluir? Que não é somente a fé que justifica o homem, mas sim acompanhada da penintencia, a qual é absolutamente necessaria para a justificação, e que, por consequencia, é erro consideral-a inutil”. Este é um ponto crucial numa órgão da imprensa católica porque a penitência e o perdão do pecado é um dogma essencial ao catolicismo e um poder inalienável sobre os crentes, a quem não bastava ter fé para lhes serem perdoados os pecados, questão que o autor do artigo levanta: “Se isto assim é, se a penitencia é necessaria para a remissão dos peccados, como é possível que Jesus Christo quizesse dizer [ou seja, tivesse dito]: - prégae o Evangello; os peccados serão perdoados àquelles que acreditarem?! Serão perdoados pela fé, sem a penitencia?! Por acaso, pode a Escriptura estar em desacordo com Jesus Christo? Não, por certo”. E finalmente o articulista chega ao pomo da discórdia: “Se ha desacôrdo, é porque a interpretação do Protestantismo é errada; atribue á Escriptura o que ella não diz. Tira d’ella o que lhe appraz e não o que lá se acha”. Portanto, a posição do protestantismo sobre a questão da importância da fé na salvação do homem só pode resultar de uma má interpretação da Escritura. E de falta de senso: “Apellemos para o bom senso. Quem será que ouvindo estas palavras: os pecados serão perdoados áquelles a quem os perdoardes, serão retidos áquelles a quem os retiverdes: entenderá o seguinte: os peccados serão perdoados áquelles que acreditarem, serão retidos áquelles que não acreditarem?! Bem, qual é, então, o ponto essencial para o qual pretende chamar a atenção o articulista, além da discórdia da interpretação e da falta de senso que atribui ao protestantismo ao sustentar que é a fé que nos salva? É o do poder do sacerdote de perdoar os pecados, sem o qual não há salvação. Esse poder desapareceria se bastasse a fé ao crente: “Jesus Christo não subjeita o perdão dos peccados á fé, mas sim ao poder que confere aos Apostolos: mitto vos… quorum remiseritis, quorum retinueritis peccata”. Portanto, o poder de perdoar ou não perdoar, de reter ou não reter “segundo se verificarem ou não certas condições”. O Evangelho e a sua pregação abrange todos, mas o perdão não: “Mandando pregar o Evangelho, ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar peccados, não ordena que seja a todos: quorum retinueritis. (…) Jesus Christo mandando prégar o Evangelho ordena que seja a todos: omni creatura; mandando perdoar os peccados, deixa ao juízo dos Apostolas [sic] o julgar se os homens teem ou não arrependimento”. Portanto, segundo o articulista C. como ele assina, Cristo “deixa ao juízo dos Apóstolos”, que são homens, não só perdoar, mas decidir se há arrependimento ou não do pecador, o que pode perfeitamente ser subjetivo, um poder discricionário e terrível para um crente. O papel da boa imprensa fica clarificado quando compaginado com escritos que se lhe opõem e denunciavam, do seu ponto de vista, os objetivos dela. É preciso notar que a missão da boa imprensa não tem fronteiras é uma estratégia que conheceu divulgação por todo o mundo católico, inclusive com legislação que não escondia o seu objetivo. Nos finais de 1841, o governo prussiano aprovava um decreto que considerava ofensivo hostil à religião como ofensivo e difamatório. Acontece que no mesmo decreto censório se confundia, deliberadamente ou não, a religião e a política. Diz-se deliberadamente ou não, visto que os autores do decreto poderiam não confundir a religião e a política com a intenção de o fazer, confundir porque em suas próprias conceções ideológicas as duas se confundiam, sendo também ambas obviamente conservadoras, não podendo nenhuma delas, nem a fé nem a política, ser, de modo algum, progressistas, contra isso se levantavam vozes por todo o lado. Karl Marx, a 5 de Maio de 1842, dia do seu 24º aniversário, estreia-se com o seu primeiro trabalho jornalístico justamente com um artigo que era uma verdadeira declaração de guerra a essa nova lei do governo da Prússia e, assim, uma guerra à boa imprensa prussiana. O artigo foi escrito no novel periódico «Rheinische Zeitung», o qual, justamente à luz do decreto referido, veio a ser alvo de censura e finalmente encerrado. Marx procura destruir o absurdo decreto, no seu ver, recorrendo, com eloquência e acutilância, à literatura, mas de uma forma cómica e sarcástica, procurando demonstrar que o decreto acabaria por provocar consequência contrárias aos seus objetivos: “A liberdade faz [de tal modo] parte da essência do homem que até os seus oponentes a implementam quando combatem a sua realidade; querem apropriar par si mesmos, como o ornamento mais precioso, aquilo que rejeitaram como ornamento da natureza humana”. E depois procurava demonstrar que ninguém logra combater a liberdade em si mesma, a não ser a liberdade do outro: “Nenhum homem combate a liberdade; quando muito combate a liberdade de outros. Assim, toda a liberdade existiu sempre num momento como um privilégio especial e noutro como um direito universal. A questão tem agora um significado consistente, pela primeira vez. A questão não é se a liberdade de imprensa deve existir, pois ela existe sempre. A questão é se a liberdade de imprensa é um privilégio de indivíduos particulares ou um privilégio da mente humana”. Essa era a questão essencial: a liberdade de imprensa existe sempre para quem tem toda a liberdade de defender as suas ideias, se elas foram permitidas pelo poder, mas não existe para aqueles que possam defender ideias que o poder, qualquer que ele seja, não consente. Por isso, Marx afirma nesse artigo: “A censura não abole a luta [entre boa imprensa e a má imprensa], fá-la unilateral, converte uma luta aberta numa luta escondia, converte a luta sobre princípios numa luta de princípio sem poder contra um poder sem principio. A verdadeira censura, baseada na própria essência da liberdade de imprensa, é a crítica. (…) A censura é a crítica como monopólio de poder”. A análise de Marx do decreto do governo da Prússia toca no ponto essencial da questão: o decreto não abole a luta entre a boa imprensa e a má imprensa, apenas a oculta. O que é que Marx critica e denuncia? Que as duas imprensas não possam pelejar em campo aberto e que a uma seja dada a luz do dia, a boa imprensa, e que a outra, a má imprensa, tenha de esconder-se para existir e criticar aquela. Esse é o âmago da questão: que as duas não possam ser legítimas e mesmo que se possam considerar, mutuamente, de má imprensa, à outra, e boa imprensa, a si mesma. E sobretudo critica que ambas ambicionem a viver sozinhas, sem concorrência, impondo a sua visão do mundo a toda a sociedade. Marx estava longe de imaginar – ou imagina? – que, em seu nome, a boa imprensa, católica, tenha sido proibida em países e regimes que se reclamaram da sua doutrina. Ou melhor, que a boa imprensa, nesses regimes, passou a ser aquela que veiculava a ou uma nova versão oficial contraposta a antiga versão oficial conservadora que a antiga boa imprensa, católica, veiculava. A boa imprensa, então, passara a ser a imprensa progressista. Este é um ponto que não pode ser torneado neste artigo em todas as suas latitudes e azimutes. Este jornal prussiano, contudo, não terá beneficiado daquela intimidade de que goza a imprensa regional, que têm as característica de proximidade e de familiar, como assinala o padre António Rego, num artigo justamente intitulado «A dignidade da imprensa regional”. A imprensa regional fala aos crentes, quase familiarmente, com a característica, como assinala o mesmo prelado, de, sendo os “jornais regionais uma espécie de reserva ecológica da imprensa” terem “defeitos dos pequenos espaços circulares onde as narrativas da aldeia falam mais de pessoas que de ideias. Ou das ideias de apenas algumas pessoas” (REGO, «A dignidade…). Ora o autor não deixa de assinalar - não obstante relevar o papel da Igreja na criação da imprensa regional e no seu desenvolvimento correspondendo ao apelo da Igreja universal -, por outro lado, que a mesma imprensa regional no “nosso país surgiu, na linha da boa imprensa”, desde diários, semanários e mensários, “que faziam circular as ideias nas dioceses e nas aldeias mais longínquas”. Mas não deixa de se queixar o autor que o poder político tenha olhado com desconfiança para esse “vaivém de informações”, certamente um poder político que, politicamente, não se revia ou até, talvez, era visado como sendo um poder que estava do outro lado dos valores que veiculava a boa imprensa. Em termos atuais e na dicotomia política europeia, esse poder político que olhava de soslaio essa imprensa tenderia a ser identificado com a esquerda, ao passo que a direita política, cultural e sociológica não se sentia visada, antes representada e identificada com essa boa imprensa. Rego, contudo, reconhecido como cidadão do mundo por todos, não procede a essa dicotomia fácil e simplista, limitando-se a assinalar, porém, a propósito do porte pago, uma forma de apoio à imprensa regional, que as flutuações do poder, sob o protesto de apoiar os órgãos de imprensa mais fortes, deixar cair os mais pequenos. A generosidade da ideia, contudo, trazia no bojo o propósito de “favorecer a criação de alternativas a uma imprensa cristã já existente por outra que, com mais apoios oficiais, autárquicos e nacionais refletisse a voz dos donos” (idem). Este artigo de António Rego escrito em 13 de Fevereiro de 2007 não deixa de ser simétrico - e até parecer ser uma resposta, quanto ao lugar donde parte, de defensor da boa imprensa - do de Karl Marx de 5 maio de 1842 contra o decreto prussiano de finais de 1841, já antes referido, em que Karl Marx se insurge contra o decreto, por na prática, defender os valores veiculados pela boa imprensa. E nessa posição simétrica da de artigo de Marx, que se queixava do decerto, Rego, queixa-se da forma como estava a ser usado o apoio à imprensa, nomeadamente através do apoio ao parte pago, para, na prática, criar dificultar a vida da boa imprensa, que, normalmente tinha dimensão local ou regional, em favor de uma imprensa de maior dimensão, mas que, na prática, já não partilhava os valores dessa boa imprensa, ou seja, era já não prosélita como a boa imprensa, mas, pior ainda, mas de um outro proselitismo, porque era laica e, ainda cima, aparentemente neutra, portanto mais difícil de combater. Ambos, porém, eram, em termos absolutos, isto é, quando não enquadrados em setores ditos conservadores ou progressistas, de direita ou de esquerda, rigorosamente equivalentes na defesa de um determinado tipo de empresa em desfavor de outro, posição, a de ambos, cuja legitimidade não pode ser contestada enquanto não propugnar abertamente a extinção e a perseguição ao outro tipo de imprensa. Por outro lado, o esquema cultural com que se encara os dois lados não pode, a não ser em termos epistemológicos, situar à esquerda ou à direita, em termos de progressistas ou conservadores, cada um dos setores, pois bem sabemos que essa utensilagem mental, para usar uma expressão de Fernand Braudel, nem sempre corresponde à realidade política em diferentes épocas e latitudes, pois não é verdade que a implantação da República no Brasil se deveu a um ato culturalmente de esquerda, visto hoje, da Princesa Isabel, de abolir a escravatura? E que os Democratas americanos, de esquerda em termos europeus, eram esclavagistas, no Sul dos Estados Unidos, e os Republicanos, considerados conservadores, eram favoráveis à abolição da escravatura? Em qualquer caso, o que se nota é um proselitismo em função da posição religiosa, política ou ideológica de cada um, que se pode revelar quer pela afirmação dos seus princípios, quer pelo combate aos princípios alheiros. É óbvio que, nos setores e territórios em que uma determinada crença ou ideológica é maioritária ou tem o privilégio da exclusividade, sendo proibidos as outras correntes ideológicas ou religiosas, a corrente predominante não precisa de as combater nem de se afirmar contra elas. No caso em que as correntes minoritárias são consentidas, estas têm a tendência em se afirmar, desde logo, perante a corrente dominante. No caso da Madeira, em que o catolicismo sempre foi maioritário, era normal que alguns órgãos de comunicação se afirmassem contra ele, como é o caso de uma revista, que, existindo no século XIX se intitulava justamente “Revista histórica do proselitismo anti-catholico”, dirigida por Robert Reid Kaylley. Voltando à questão do supra referido, publicado no jornal “Religião e Progresso”, a sua importância não podia ser maior no contexto da boa imprensa, porque ele versava, por um lado a penitência e o poder consequente de perdoar, por outro, a polémica explícita com o protestantismo, que entende que basta a fé e não os atos, segundo o artigo ali publicado, e por outro, pode, subtilmente, dar a entender que, se o perdão está reservado aos apóstolos, conforme lhes foi conferido por Cristo, ou seja, aos sacerdotes, e que, se sem esse perdão ninguém poderia ter salvação, então os não católicos não teriam salvação. Quer-se anátema maior lançado sobre os pecadores que não tivessem acesso livre a esse perdão. Quem: os que não se arrependiam? Desde logo! Os protestantes? Imediatamente a seguir! E mais: os que não partilhassem dos valores veiculados pelo catolicismo? Os que não liam a imprensa que os veiculava? Os que, concretamente, não liam aquele jornal? Estas são as questões que se levantam! Mas, depois, outro artigo do mesmo jornal, que também se intitulava político fala de um ato eleitoral. Penariam, também, eternamente, os que não partilhassem das ideias políticos que o jornal veiculava, porque se há um sistema de valores ele não se esgota na religião, estende-se a todos os campos, inclusive aos da política, ou seja, também os eleitores, por certo, não escapariam a retenção da absolvição. Mera especulação intelectual do leitor, inferência ilegítima do que ali não está? Não estão as deduções no campo da doutrina política, mas estão claramente as posologias da doutrina religiosa católica para os males do mundo. Sem perdão não há remissão. Não sendo este um tratado de teologia, importava aqui saber o conceito de pecado. Pecado é a ausência do bem, é a ausência de Deus, que origina o mal, o diabo. O diabo não é, como às vezes pareceu ser em certas correntes ultramontanas, o outro lado de Deus, o seu oposto equivalente, porque, então, dessa equivalência de duas potências, poderia, numa oposição de contrários, caminhar-se para uma síntese hegeliana de superação dessa dicotomia. Sendo Deus aquele que é, “Eu sou aquele que é”, I am that i am”, o diabo, que existe, neste caso como alegoria do mal, sendo aquele que não é – o bem, tende, numa homologia perigosa e de equipolência, a ser aquele que não é como nós, ou seja, o outro de nós mesmos, problema que subsiste na cultura ocidental desde sempre que ela existiu. Ora, se o diabo, como ausência do bem, deve ser extirpado, então o outro, que é aquele que não é – como eu [sou], tende, primeiro culturalmente, e, depois, em situações de afirmação radical de sistemas absolutos que a si mesmo se consideram perfeitos, fisicamente a ser eliminados, porque perturbam a ordem instituída. Como é que se entende a eliminação física dos não católicos, mesmo sendo crentes do mesmo Deus, pelas fogueiras da Inquisição, senão por se tratar do outro em relação ao conceito de sociedade que se defendia e, nessa sociedade, ao conceito que ela pretende impor da própria ideia de Deus? – “A cultura ocidental, erigida sob a égide da ontologia grega, historicamente relegou o outro em sua alteridade ao esquecimento, numa supremacia do ser que justificou as cruzadas, a colonização, a escravidão, os regimes totalitários como o fascismo e o nazismo, entre outros […]A modernidade fundada no racionalismo de Descartes, voltada para a ideia da perfeição e das verdades inatas (divinas), sem a perspetiva da existência do outro, dará luz o eu gestado no Ocidente desde Platão”. (BIRMAN, “O reconhecimento da alteridade, 275). Essa recusa do outro manifesta-se na religião, não só entre as religiões mas dentro das próprias religiões e as suas diferentes correntes. No Cristianismo, o caso das guerras permanentes entre católicos e protestantes, na Irlanda do Norte. No Islamismo, entre sunitas, xiitas, waabamitas, em que cada seira se considera o verdadeiro intérprete do pensamento do profeta. A designação de boa imprensa traz consigo uma valoração implícita no adjetivo bom. Ao autor de um artigo de dicionário ou de uma enciclopédia põe-se a mesma questão que se coloca ao sociólogo, que é a de saber se deve analisar os factos e as instituições sem emitir juízes de valor sobre os mesmos . No caso da análise da boa imprensa, ou seja, a imprensa católica, deverá o autor do texto limitar-se a observar, abstendo-se de ajuizar, mesmo que veja nela valore morais que possa considerar essenciais numa sociedade, situá-los num determinado tempo e lugar ou admitir que os valores que ela veicula são comuns a outros credos religiosos, cristãos ou não? A reflexão não tem de ter uma resposta explícita, mas não podia deixar e ser feita. Em qualquer circunstância, o enquadramento de um facto no seu tempo e na linha do tempo deve ser a resposta para a sua compreensão, o que, assim, obvia apologia ou condenação que lhe não é exigida. Tem sido essa a linha que este artigo, entender a boa imprensa no interstício de vários tempos e e correntes doutrinárias. O jornal «Pregador Imparcial da verdade, da Justiça e da Lei”, na sua edição de 6 de Dezembro de 1823, em tom grandiloquente, anunciava, num artigo intitulado «Alemanha» que o governo deste país tinha dado ordens severas contra as sociedade secretas, visando a maçonaria, obrigando a que “todo aquelle que aspirar aos Empregos, tanto civis como ecclesiáticos, està obrigado, para ser admitido aos exames, a apresentar certidões de Policia, que façaõ fé, de não ser parte em nenhuma destas associações, e deve ter-se muito em vista que se verifique esta condição, mormente quando se tratar de prover os lugares de ensino público”. O «Pregador Imparcial da Verdade…» não só publica, como incentiva que a medida se propague: “Publiquem-se pois em todas as Nações os quadros de todas as Lojas». Segundo o espírito do articulista, a publicação das litas dos maçónicos resulta da obrigação de servir o bem público. Não podem as instituições serem dominadas por indivíduos que possam contamina-las. Se as instituições resultam de um conjunto de circunstâncias, segundo Montesquieu, podemos concluir que as que existem são as melhores possíveis naquelas circunstâncias, porque resultam de uma determinada influência social. Impor-se-ia, portanto, saber o que será necessário para se atingir os objetivos que se pretendem alcançar o melhor possível. Ora, segundo o articulista, atingir o melhor possível os interesses sociais de uma instituição é varrer dela os indivíduos que, pertencendo a uma associação secreta como a maçonaria, supõe-se que não poderiam ter direito a ser titulares das mesmas instituições que, obviamente, para o articulista, deviam ser portadores dos valores que eram veiculados pela boa imprensa. Poderia, abusivamente ou por extensão ilegítima, segundo a máxima de Montesquieu de que se “a legislação resultou do espírito de uma nação” , seria lógico adaptar as leis-comando ao espírito da nação. Mas essa seria uma adaptação ilegítima porque o articulista transmite o sentimento de uma parte da nação que não pode ser tomado como o espírito nacional, que é o todo e não a parte. Assim é, quer viva a nação em monarquia ou em república, sendo que a igualdade que, em teoria, a república implica deveria ser ainda mais impeditivo que isto acontecesse num sistema de governo republicano, privar os cidadãos de pertencer às instituições públicas por não professarem uma ou outra religião e professando esta pertencessem a uma ala progressista ou conservadora desse credo religioso. Nem mesmo a natureza do regime, ao tempo monárquico, poderia ser respaldo para defender tal iniquidade. Não é natureza do regime, monárquico ou republicano, que vai determinar a justeza das leis que devem consagrar o sentido da justiça que é anterior às leis positivas universalmente aceites: “Dizer que não há nada justo e a não ser o que ordenam ou proíbem as leis positivas é [o mesmo que] dizer que antes de ser traçado o círculo nem todos os seus raios eram iguais” (ARON, 57). De facto, não se pode considerar válidos critérios cujos efeitos sejam a exclusão de uma parte da sociedade, mas sim aqueles critérios ou leis que, anotando as diferenças de uma determinada realidade social ou política, ou religiosa, sejam capazes de garantir essas diferenças. Ora o que diz o articulista é que a lei a aplicar deve ser aquela que considera válidas para integrar as instituições os cidadãos que não tenham pertença a instituições de caráter secreto. Essa recusa do outro enquanto indivíduo que não partilha dos mesmos valores é um fenómeno resultante da vida em sociedade, porque o homem, no seu estado natural, isto é, anterior ao estado de vida em sociedade, vive “uma verdadeira paz, pelo menos um estado alheio à distinção paz-guerra” (idem, 58). Esta atitude resulta, segundo Montesquieu, da vida em sociedade, ao contrário do que pensa Hobbes, para quem o homem vive, naturalmente, em estado de guerra permanente contra o seu semelhante. Esta diferença de conceitos, em que, segundo um, Hobbes, o homem é um ser por natureza inimigo do homem, como sua característica intrínseca, ao passo que para Montesquieu, essa não é a sua natureza, sendo conflito um fenómeno social, não sendo possível regressar ao estado de pureza do homem imaginável antes de viver em coletividade, como o concebeu Jean-Jacques Rosseau, conduz à necessidade de superar o conflito em sociedade através da aceitação do outro, a questão da alteridade na cultura ocidental. Esse equilíbrio social só pode ser conseguido através da constatação de que a ordem social é, por regra, heterógena e a liberdade de todos não pode senão resultar da inclusão social de todos os membros de uma sociedade. Hobbes defende um poder absoluto em resultado desse conflito social permanente em guerra com os seus semelhantes. Observa assim, que, neste ponto, o articulista coincide na com Hobbes e não com Cristo, ao defender que não devem ter acesso a certos empregos, nomeadamente ao ensino público , em virtude de serem maçónicos, os pedreiros-livres, defendo que todas as polícias, sabendo as lojas maçónicas há muito, deveriam imprimir as listas dos seus membros e se não as fazem é “porque appareceriaõ talvez marcados com este ferrete o Duque, o Marquez, o Conde, o Cavalheiro, o Magistrado, o Frade, o Clerigo” (in «Pregador Imparcial da Verdade») e acrescenta que não poderia haver mal de tal coisa porque sabiam da existência da lei. Se o autor de um artigo se deve dispensar o papel de julgar as instituições, não deve eximir-se ao dever de fornecer todos os dados a quem o deve fazer, o leitor. A equação dos dados num artigo deve permitir ao leitor o papel de julgar, de que se deve dispensar o autor. Se aqui a atitude do articulista do texto «Alemanha” deriva da sua ideia de organização da sociedade e dos valores que defendia, essa atitude deve ser confrontada com o que pensam sobre a questão da organização social os grandes pensadores de correntes diversas. Assim será possível verificar a finalidade imanente das atitudes humanas com as do autor daquele artigo e sobretudo o momento histórico em que aquele é escrito. Há, com efeito, dois aspetos atitudes culturais claramente identificáveis no jornal. Por um lado, esta atitude da boa imprensa de recusar de tudo o que saia dos cânones da doutrina católica tem um contexto histórico-cultural. Antes de mais, convém esclarecer que a própria existência da boa imprensa é um si mesma uma prova de que os tempos da afirmação inquestionável da autoridade teológica já passara. O aparecimento da boa imprensa coincide com uma necessidade de reafirmar e manter a unidade da mensagem católica num tempo em que outro tipo de autoridade começava a surgir e que abalava a autoridade teológica. Passara o tempo em que a autoridade política e religiosa coincidiam e juntas formavam a autoridade universal. Os tempos agora eram outros e o tempo histórico da sociedade europeia nos princípios do século XIX haveriam de conhecer profundas alterações. Se o poder político era afirmado pela força das armas, o poder religioso era firmado pela poder teológico sustentado na infalibilidade papal. É nesse contexto que o Concílio Vaticano I proclama a infalibilidade papal, dogma da teologia católica que confere ao papa o dom de definir a interpretação e clarificação em matéria de fé e moral, na medida em que ele, em comunhão com o Sagrado Magistério, o faz no gozo da assistência sobrenatural do Espirito Santo, e, desse modo, fica imune a todo o erro. A função de Magistério da Igreja é do múnus do Papa  e pelos bispos em comunhão com ele. Auguste Comte assevera que o início do século XIX assiste ao fim de uma tipo de sociedade, que tem origem na Idade Média, em que o poder se caracteriza pelos dois adjetivos: teológico e militar. Esses poderes, teológico e militar, partilhavam a supremacia numa sociedade claramente marcada pela hierarquia eclesiástica e militar. A supremacia desses poderes está em vias de ceder o lugar a um outro tipo de sociedade científica e militar: “A sociedade que nasce é científica no mesmo sentido em que a sociedade que morre era teológica” (Comte in ARON, 59). Segundo Comte, a forma de pensar dos tempos passados, a dos teólogos estava a ser substituída pela forma de pensa dos sábios. A sociedade do início do século tinha agora uma nova categoria social que lhe fornecia a base intelectual e moral, que era a dos sábios, que herdavam o poder espiritual dos padres e passavam a ser o novo modelo de pensar, a nova fonte das ideias que serviam a nova ordem social, ao mesmo tempo que os industriais haviam de substituir os militares. Nesta nova ordem, a força militar desapareceria porque era uma sociedade em que os novos detentores do poder exerciam-no pelo pensamento científico e não pela força. Analisando este nova sociedade que despontava, Auguste Comte conclui que a reforma social a que se assistia implica um reforma intelectual e isso só se faria entre a síntese da ciência e de uma política positiva. Neste cenário, em que o poder teológico cede o passo aos sábios, a nova classe intelectual proposta por Comte, é natural que a boa imprensa sinta a necessidade de reafirmar o modelo de sociedade e de família proposto pela doutrina católica, que se confronta, ainda por cima, com perturbações sociais derivadas das contradições de uma sociedade em crise de mudança. Vários modelos confrontam-se então: o modelo proposto por Comte é aquele que visa superar as contradições sociais resultante do confronto entre a ordem antiga, teológica e militar, pela nova ordem, científica e social. Ao lado destes dois modelos, surge o grande doutrinador da Revolução, Karl Marx. Montesquieu, por sua vez, defende a doutrina das instituições livres. Em confronto com estes três modelos, o modelo proposto pela boa imprensa, em que as verdades são eternas, imutáveis e indiscutíveis, e, desde o Vaticano I, reforçadas com a infalibilidade papal, que, obviamente é uma resposta a esse novo tipo de autoridade científica que surge: como contestar o que existe por inspiração divina, através do Espírito Santo? Além de querer divulgar esse modelo à sociedade, a missão da boa imprensa visa reforçar a unidade interna da Igreja. A sociedade tinha de ser visto no seu todo para ser compreendida e esse era agora – então - o objetivo da sociologia. Nenhum facto devia ser entendido isoladamente, sobretudo a partir de uma ciência como a biologia. Já não bastava analisar os fenómenos de per si, mas integrados epistemologicamente. As ciências já não podem ser puramente analíticas, mas devem ter caráter sintético. Isto origina a conceção sociológica da unidade histórica. Ora não se pode entender a sociologia como se ela fosse uma ciência de natureza inorgânica , que tem um caráter analítico ao estabelecerem leis entre fenómenos isolados. Tal como a biologia, que não pode explicar um órgão ou uma função sem integrá-lo anatomicamente, não se pode compreender um acontecimento, por mais relevante, sem o situar na sincronia, isto é, no seu tempo, e na corrente diacrónica, ou seja, conhecer os seus antecedentes e, eventualmente, estabelecer, prospectivamente, eventuais desenvolvimentos futuros. Um cientista não pode cortar uma parte do organismo para saber como ele funciona. Pode deter-se, epistemologicamente, sobre ele mas só o pode explicar no todo, porque estamos a falar da vida e não da morte. Essa inserção do elemento no todo da biologia transfere-se para a sociologia, em que o todo tem primazia sobre o elemento. Segundo o pensamento de Comte, “Não compreendemos a situação da religião […] numa sociedade particular, se não considerarmos o todo dessa sociedade”. (ARON, 86). Não é possível compreender o papel da boa imprensa, por um lado, sem conhecer a evolução histórica da sociedade no seu todo e, por outro, a própria evolução e reinterpretação da doutrina da Igreja à luz do Evangelho, é certo, mas também à luz da sua adaptação constante à sociedade do seu tempo, o que contradiz a ideia comum de a Igreja Católica não ser capaz de introduzir no seu seio dinâmicas vivas capazes de a reatualizarem, à luz dos tempos, o que o estudo dos vinte e um consílios da sua história milenar certamente elucida. Poderá sempre ser acusada de estar mais preocupada de manter o statu quo ante, de manter a autoridade incontestável do seu Magistério na pessoa do papa, mas nunca de ignorar a passagem do tempo, elemento fundamental do seu porvir, porque a Igreja olha os tempos que passam com a sabedoria do Tempo eterno de que é detentora, não apenas enquanto instituição, mas o do Verbo de que se proclama representante. Enquanto a boa imprensa propõe a prática da doutrina cristã na Terra para ganhar o paraíso; o positivismo advoga o progresso humano com base nos avanços da ciência – etimologicamente scientia, note-se, porque é aqui importante -, como meio para a transformação da humanidade; já o marxismo propõe-se construir uma sociedade de justiça através da dialética que afirma estar imanente a uma sociedade dividia em classes. Assim, as três correntes de pensamento convergem em dois aspetos: a scientia, a ciência e o seu caráter teleológico. Pela ciência, o conhecimento, da Verdade, a boa imprensa promete ao crente o alcance do céu; com o progresso da ciência, podemos alcançar o progresso ilimitado da Humanidade, defendem os positivistas; com a ciência da sua circunstância e conhecendo os limites da sua vontade no momento da sua escolha – “Os homens fazem sua própria história, mas não as fazem segundo sua livre vontade; em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado”, (Karl Marx in «O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 2008, p. 207, citado em FRANKLIM, 204), o homem construirá a grande síntese final que é a sociedade sem classes. Assim, as três correntes, caminham para um fim previsível, o paraíso, sendo que a boa imprensa, isto é, a religião católica nos propõe vencer as agruras deste mundo com o paraíso no outro; o positivismo e o marxismo propõem-se construir um outro mundo ainda neste mundo. Perante isto, é de concluir – con[s]ciência certa – que, se não desistirem da sua caminhada, ainda que po percursos diversos e até divergentes – hão de encontrar-se todos às portas de uma Nova Jerusalém, e também nesse caso, serão vencidas as fronteiras entre este mundo e hoje: “Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar já não existia. Vi a cidade santa, a Nova Jerusalém, que descia do céu de junto de Deus”. (Apocalipse, 21: 1,2). Tanto Comte como Marx pretendem uma nova forma de organização do poder temporal, isto é, do poder político, mas enquanto Marx proponha a revolução, os positivistas de Augusto Comte acreditavam que o poder temporal podia ser reformado pelo poder espiritual que caberia aos sábios e filósofos, que teriam o mesmo papel que caberia aos padres na idade teológica, segundo a sua conceção: “O poder espiritual deve regrar os sentimentos dos homens, uni-los em vista de um trabalho comum” (ARON, 97). Para os marxistas, não só todas as estruturas do velho poder devem ruir pela força da revolução, como o papel de construir uma sociedade nova competia às vanguardas revolucionárias, quais sacerdotes de uma nova metafísica revolucionária. A boa imprensa segue a linha de que o poder de transformar o coração dos homens deve continuar a ser da Igreja e do seu magistério - sacerdotes, bispos e o papa -, cuja autoridade advém da Verdade que lhe(s) inspira o Espírito Santo, fonte da renovação constante da Igreja, cabendo a esta espalhar, desde o tempo de Cristo, a conversão interior dos homens e da humanidade. Para a boa imprensa, o Catolicismo era a verdadeira Religião da Humidade e a Igreja, Católica por natureza, isto é, universal, tinha o direito e o dever de divulgar a sua mensagem através dos meios de comunicação ao seu dispor. Os positivistas, por seu lado, proponham-se instituir a sua Religião da Humanidade, um nova religião, de que as religiões do passado eram apenas formas provisórias, que procuravam no sobrenatural e nos deuses aquilo que devia ser procurado no cerne da própria humanidade, cuja unidade moral e humana era o Ser Supremo de si mesma. À escolástica de Tomás de Aquino e dos Padres da Igreja, que tanto tinham influenciado e fundamentado o catolicismo, Comte contraponha a filosofia positivista como o fundamento da sua nova religião. Embora positivista, esta nova religião não dispensava, todavia, os seus templos e capelas e até um novo calendário, o calendário positivista composto por treze meses de vinte e oito dias, com base no calendário lunar e tinha como ideal o altruísmo, palavra criada por Comte. Em síntese espontânea: em que é que diverge o espírito semântico d’ o amor ao próximo de Cristo, o altruísmo de Comte e a igualdade de Karl Marx? O que sabemos, porque observamos a passagem do tempo e do que ele deixa prevalecer, é que o poder espiritual que subsiste é exercido pelas igrejas do passado ou pelo poder de ideólogos, e não pelos verdadeiros sábios ou filósofos, como idealizava Comte na sua nova religião. Se Comte pretendia uma desvalorização dos conflitos ideológicos e do poder temporal, isto é, do poder político, ambição comum aos doutrinadores da boa imprensa, a verdade é que a Europa e o Mundo sucumbiram, por duas vezes, no século XX a esses conflitos que tiveram por base a questão ideológica e que fizeram perecer milhões de seres humanos. Comte preferia a desvalorização do conflito ideológico e do poder da hierarquia temporal e um ascendência do poder espiritual dos sábios sobre a organização social, mas isso está longe de ser uma realidade: “Provavelmente os homens preferem sempre o que os divide ao que os une. Provavelmente cada sociedade é obrigada a insistir no que tem de particular e não nos traços comuns que compartilha com todas as sociedades” . (ARON, 98) Há ideias e os valores que numa sociedade são subtilmente insinuados, aliás, muitas vezes com uma eficácia muito maior, por uma determinado doutrina religiosa ou corrente ideológica ou cultural do que aqueles explicitamente expostos. Quando os revolucionários franceses mudaram o calendário gregoriano por uma calendário próprio ou quando os positivistas pretendiam impor o seu calendário sabiam que isso era uma forma de incutir os valores simbólicos que esse calendário implicava. Hoje é frequente determinadas confissões religiosas minoritárias nos países maioritariamente católicos, como o nosso, reivindicar a legitimidade de lhes ser concedido o dia de guarda da sua religião, o caso de judeus e adventistas, para descanso, tal como os católicos têm o domingo, ou os momentos diários de oração e meditação, caso dos muçulmanos. Os rituais e implicações culturais de um calendário religioso não deixam de ser reivindicados pela boa imprensa, num reafirmação dos valores católicos face ao movimento de secularização da sociedade, que vinha já dos séculos passados: “a rivalidade medieval entre o papado e o império, a Reforma protestante, o século das Luzes, para citar apenas as etapas principais da secularização das sociedades europeias” (Gianni Vattimo in BINDÉ, 35/36). Essa secularização tem ainda outros momento importante na crescente secularização, como a revolução tecnológica, sobretudo no século XIX e a crescente urbanização da sociedade, o que leva “à «perda do centro», isto é, a dissolução das tradições comuns e das crenças nos mesmos valores, seja do ponto de vista religioso seja do ponto de vista ideológico” (idem, 37). Esse movimento de secularização, tem, assim, um largo rastro, e, para os alguns, nomeadamente para os arautos da boa imprensa, que o queriam impedir, ou para outros que o observavam e ou até senão o desejavam, nada lamentavam, como Nietzsche ou Spengler, significava o crepúsculo do Ocidente, esquecendo, como lembra Vattimo, que o crepúsculo, ou alpardinho, no dizer madeirense, “não é apenas o declínio do Sol no poente, mas aquela luz lenta e insegura que anuncia uma nova aurora”. A boa imprensa não deixava de estar atenta a esse movimento da secularização. Num artigo de 11 de dezembro de 1909, no jornal «Brado d’Oeste», defendia-se o descanso semanal e insurgia-se contra o seu incumprimento: . “um abuso que não deve continuar”. Se a questão era a do trabalho e a do direito ao descanso semanal, a questão das datas importantes do calendário litúrgico e o valores da família eram uma constante neste bissemanário da imprensa católica. No próprio dia 25 de Dezembro, dia de natal, no editorial do «Brado d’Oeste» o editorialista escreve: “Vêem-se alli cumpridos oraculos e prophecias”, a profecia que é a concretização do que tinha sido anunciado no passado para o futuro, e assim se fundem a lembrança do passado e a espera do futuro, numa espécie de plenitude do ser, situado naquilo a que Derrida designa por “logocentrismo”, na media em que essa plenitude se situa na realidade ontológica do ser, para além da circunstância do ente no tempo divido da realidade, a dimensão temporal da existência humana. Nessa realidade logocêntrica, o homem ultrapassaria a sua dimensão socio-político-religioso-cultural, situando-se no plano ontológico, em que se dissolvem as diferentes visões do mundo. Isso não significa que essa realidade ontológica seria conseguida à culta do fim das civilizações, mas que todas elas saberiam situar-se e compreender-se como uma das várias manifestações do ser na sua plenitude, como condição de unidade da humanidade na sua pluralidade. Assim, a boa imprensa, não deixaria de ser entendida como uma das faces da realidade, na afirmação dos seus valores, como um dos contributos inalienáveis na afirmação da unidade do ser. Mesmo que ela e os que definiam contra ela se considerassem, reciproca e simultaneamente, como representantes únicos da verdade, excluindo cada o outro de o ser, esse antagonismo só reforçaria o vitalismo de cada um, o que é dizer que os faz andar mais depressa, na senda de uma visão teleológica da realidade. Todas as manifestações religiosas, culturais, civilizacionais participam, numa perspetiva hegeliana, da caminhada do Espírito sobre a Terra até a realização da consciência plena da Razão na sua plenitude final, mas é normal que nenhuma delas ou nem todas elas tenham a noção do seu papel insubstituível e único, mas não exclusivo, na consecução da plenitude da humanidade. Se a História, na visão kantiana, corresponde à realização dos planos secretos da natureza, é natural que os seus autores, muitos deles, não tenham a noção exata do seu papel no grande drama humano. Não se pode, desse modo, pedir a todos, que, para além de saber de cor o seu papel, tenham a ciência exata do sentido da grande narrativa da Humanidade. Assim, as ideologias, as religiões, as culturas, as civilizações são manifestações parcelares da Humanidade na medida em que não a representam no seu todo, mas nenhuma delas deve ser extinta violentamente porque isso seria decepar cada uma das formas em que o espírito humano se manifesta. O mesmo não acontece quando uma determinada civilização se transforma ou se deixa absorver, paulatinamente, por outra, porque, na verdade, ela não desaparece, a não ser superficialmente, pois que passa a estar incluída no âmago da cultura em que foi absorvida que deixa de ser, na medida em que, ao absorve-la se deixou também absorver. Os factos não têm sentido quando considerados individualmente, apenas ganham sentido quando integrados no percurso dos acontecimentos. Na sua dupla dimensão, a história atende à realidade dos factos que se vão inscrevendo na linha do tempo – a res gastae – ao passo que é o relato desses - a narrativo rerum gestarum – que lhe confere sentido e racionalidade. Esse é o papel da boa imprensa: atribuir uma dimensão transcendente àquilo que, no quotidiano, não tem significado que o ultrapasse. Se a um facto não for conferida dimensão transcendente, ele esgota-se por si mesmo. Se, porém, ele for compreendido numa dimensão mais vasta que o ultrapassa, tal circunstância dá-lhe uma dimensão simbólica. O nascimento de uma menino, numa gruta, é uma facto da natureza humana. Mas se a interpretação desse acontecimento for determinante na marca da humanidade, então ele sobreleva o quotidiano da sua realização. Quando o articulista do editorial do «Brado d’Oeste» no já citado artigo sobre o Natal, afirma que se completam “ali os multiplicados votos de milhares de gerações, sonhos dourados de homens e promessas infalliveis de um Deus” e que “Um passado calamitoso e sombrio termina alli” e “um futuro de venturas brilhantes d’alli se desenrola” e acrescenta que a partir “Do recinto tenebroso de uma gruta raia uma aurora de duração eterna” está não só a proceder à inscrição de facto localizado no “recinto tenebroso de uma gruta” numa leitura providencial da História, mas, igualmente, a proceder à interpretação do facto de acordo com a característica linear e judaico-cristã do tempo. A “duração eterna” de que fala não funciona apenas para o futuro, a partir do momento em que a esperança se realiza, mas absorve, igualmente, o passado em que essa esperança nasceu e sobreviveu no coração de “milhares de gerações”. Dá-se, assim, a unidade do ser e o “cahos do passado recua”. A igualdade dá-se ali pelo “effeito (…) edificante, admirável e prodigioso do […] do Natal do Homem-Deus” porque “O escravo sacode e despedaça as algemas; o senhor (…) curva a cerviz; a mulher proclama os seus direitos; o pobre, o desgraçado, reconhecem alfim que são creaturas de Deus; a religião transforma e humaniza o homem.” O efeito miraculoso da igualdade do escravo e do senhor, da mulher e do pobre, que se reconhecem como criaturas de Deus, é alcançado por esse Homem-Deus. Ao proceder a essa leitura, a boa imprensa, na sua ânsia de absorver a realidade da vida, supera-se a si mesma e eleva à ontologia do ser aquilo que, em princípio, é um facto da vida quotidiana dos entes. Mesmo aqueles que não concordam com a leitura transcendente daquele facto não podem negar que essa leitura é uma leitura universal e não facciosa da realidade. Ao proceder assim, qualquer religião tem um movimento ascendente em relação a si mesma e em relação à realidade concreta, que, é por natureza, fragmentada e caótica, logrando a unidade. Essa consecução da unidade não é, portanto, incompatível, com a diversidade religiosa, embora não seja esse, muito provavelmente, o pensamento do articulista. Augusto Comte pensou a unidade da espécie humana através da constância da sua natureza essencial, que podia observar, contudo, através da diversidade das instituições históricas no plano social. Na sua conceção “a afirmação da unidade humana (…) implica uma certa conceção do homem, da sua natureza, da sua vocação e da relação entre o indivíduo e a coletividade”. (ARON, 114). Mas há, desde logo, uma diferença radical, ou seja, de raiz: enquanto o articulista concebe a unidade do homem pela intervenção do transcendente, a unidade preconizada pelo positivismo é uma unidade imanente. Se é certo que todas as doutrinas sociológicas desde o século XIX proponham que se passasse do pensamento à ação, ou da ciência à política, enquanto fundador de uma nova religião, a religião da humanidade, o positivismo desvaloriza o económico e o político em favor da ciência e da moral e não acredita que seja através da mudança do regime ou de Constituição que o homem ponha termo às convulsões da sociedade. Comte inscreve-se na linha de Kant, que acreditava no papel da natureza na marcha inexorável do tempo e de Hegel, na espiral ascensional do espírito. Para Kant, Hegel e Comte, o tempo é o grande senhor da História. Comte admite que apenas o tempo fará passar das sociedades fragmentadas e injustas de hoje às sociedades reconciliadas do futuro, mas acredita que o esforço dos homens de boa vontade aliado ao sentido inexorável da evolução, que pode ser mais ou menos longa: “Na duração e nas modalidades da evolução, em si própria inevitável, exprime-se a parte de liberdade reservada aos homens” (idem) . Comte não é o profeta da violência revolucionária, como Marx, mas acredita que os seres humanos têm uma «margem de modificabilidade da fatalidade» (idem, 115). Tal como o cristianismo, o positivismo e o marxismo têm subjacente uma estrutura teleológica e acreditam num grau crescente de aperfeiçoamento da humanidade. Ou entra a revolução ou a reforma, que são ou da sociedade ou do indivíduo. O positivismo partilha com o cristianismo o repúdio ao recurso à violência como forma de atingir uma sociedade justa e partilha; com o marxismo, a ideia de que a única transformação social possível é aquela que implicasse o fim do pensamento teológico, com a diferença que Comte é apologista do pensamento reformador pela ciência e Marx pela revolução. A relação entre as conceções religiosas e os comportamentos económicos é visto por Max Weber como uma das causas das transformações económicas das sociedades, na medida em que uma determinada interpretação do protestantismo vai favorecer a criação do sistema capitalista, fundamentada na conformidade, intelectual ou espiritual, entre o espírito da ética protestante – ou de uma certa ética protestante – e o espírito do capitalismo. A tese de Max Weber é a da adequação significativa entre o espírito do capitalismo e o espírito do protestantismo: “A ética protestante a que Max Weber se refere é essencialmente a conceção calvinista” (idem, ibidem), segundo o qual Deus predestinou cada ser humana para a salvação ou para a condenação, não sendo, portanto, pelas suas obras que o homem pode alterar a decisão divina tomada à anterior. sem que, através das nossas obras, possamos modificar esse decreto divino de antemão fixado. Mas é, pelo menos, concebível uma outra interpretação. É através do trabalho que, segundo Max Weber, “certas seitas calvinistas acabam por descobrir no êxito temporal, eventualmente no sucesso económico, a prova da escolha de Deus”. Assim, o trabalho seria a melhor forma para ultrapassar a dúvida da salvação e obter a certeza da graça, sendo a melhor forma de ultrapassar a angústia religiosa. A boa imprensa reconhece ao trabalho o seu papel transformador do mundo e fator do progresso. No editorial do periódico «Brado d’Oeste» de 15 de Dezembro de 1909, o articulista afirma, convictamente, o seu “relevante e grandioso papel […] no seio das sociedades de todos os tempos. […] O que seria , sem elle, finalmente, do desenvolvimento, do progresso? […]” Elle é a mola propulsora de todo o progresso, de toda a civilisação, de toda a felicidade”. O trabalho é uma visto como um combate ao ócio e afirmação de um valor moral. De um modo ou de outro, católicos e protestantes são levados a agir, embora uns para se salvar, outros para ter o sinal da salvação. A nossa conceção de tempo linear provém da cultura judaico-cristã, que veio substitui a ideia do «eterno retorno» herdada das antigas civilizações euroasiáticas, nomeadamente da antiga Babilónia, ou ameríndias, maia e hindu. Essa cosmologia do tempo que nos é dada pelos movimentos de translação ou de rotação da Terra ou do retorno das estações, em que tuto recomeça, deu-nos uma ideia de renovação que se foi inscrevendo na nossa cultura ocidental e que o próprio folclore absorveu – “a primavera vai e volta sempre”, diz uma canção do folclore madeirense – como se o tempo estivesse a renovar-se ciclicamente. Na conceção do tempo ciclo, não só o passado não tem o peso que terá nas futuras civilizações, como não estava inscrita a ideia de futuro, porque aí o tempo se renovava incessantemente. O judaísmo, ao anunciar a vinda de um Messias, vem instituir, pela primeira vez, uma ideia de futuro, um futuro de luz e esperança, que o cristianismo há de confirmar mais tarde, com o nascimento de Cristo, mas, sobretudo, com a sua ressurreição, provando que o futuro messiânico e salvífico tinha sentido. Essa ideia de futuro mantém-se com a parúsia, a segunda vinda de Cristo. Essa esperança no futuro inicia a ideia de tempo linear, porque incute nos povos o sentimento de caminhada em direção a algo, a um tempo em que a realização plena do homem acontecerá. Essa conceção de caminhada para um fim imbuiu ainda as ideologias de matriz materialista, como o marxismo, o que significa que o futuro se transformou em tempo de utopia, fosse qual fosse a doutrina, religiosa, política, ou filosófica, nomeadamente o judaísmo, sempre à espera de um messias, o cristianismo, em que a promessa de uma recompensa no céu anula a própria ideia de morte definitiva do homem enquanto ser espiritual, o positivismo, com a sua Religião da Humanidade, ou o materialismo marxista, com a sua promessa de uma sociedade sem classes e igualitária, em que a luta contra a exploração ganha um sentido de futuro. Quer o cristianismo, quer o marxismo criam no homem o desejo de futuro, porque é lá que se situa ou a salvação ou a utopia de uma sociedade em que, em qualquer caso, haverá o reconhecimento de que todos os homens são iguais, que o cristianismo reconhece à partida, mas que só será possível quando todos se inserirem no projeto de salvação, e que o marxismo garante, desde que todos os cidadãos desencadeiem um processo de luta contra as desigualdades. O cristianismo implica uma consciência moral e o reconhecimento do outro, ao passo que o marxismo exige uma ética de entrega a uma luta contra a exploração, em nome desse futuro. Ambas as doutrinas, a cristã e a marxista, são imbuídas de coesão ideológica sólida porque conduzem os seus sequazes em nome desse futuro. Essa coesão, todavia, só é possível com a convicção e adesão profunda a essa ideia de porvir, por uma lado, o que é uma condição, para o segundo aspeto que só essa convicção garante, que a longa espera, quiçá, espera sem fim, da realização dessa expetativa, sob pena da fragmentação da própria doutrina e deserção dos próprios prosélitos. Talvez isso explique o desmoronamento dos regimes políticos que se ergueram com base nessa expetativa utópica, porque o socialismo nunca foi atingido, ao fim de longas décadas, e isso foi observável ainda neste mundo, ao passo que as religiões permaneceram coesas, apesar das vicissitudes, porque a esperança no paraíso ultraterreno nunca foi desmentida. Essas utopias, nomeadamente as de cariz ideológico e filosófico, iniciaram-se com o iluminismo, prosseguiram com o racionalismo positivismo e e tiveram uma versão iminentemente ideológica com o materialismo marxista - construído, note-se, a partir do idealismo hegeliano e da sua dialética -, ao longo dos séculos XVIII e XIX, com o marxismo a fazer prova da sua eficácia ao longo de quase todo o século XX. Mas essas ainda eram épocas em que o tempo se projetava à la longue, o tempo das longas viagens de barco e de comboio e a própria vida amorosa tinha o seu tempo de espera e de consumação. Ao invés, os tempos que correm não se compadecem com tão longa espera. De repente, todos fomos tomadas pela carácter imediato das realizações humanas. Todas as atividades humanas, mesmo as de caráter pessoal, foram atingidas pela fugacidade do tempo, em que tudo se deve realizar já. O afeto e o amor precisam, normalmente, de tempo, para serem profundos; se olharmos para os transportes e os meios de comunicação, vemos que foram tomadas pela urgência, a carta, o diário, até o telefonema e o telégrafo, foram ultrapassados pela ligação em tempo real da internet. A crise financeira tem como um dos seus principais fatores a questão do tempo, com resultados catastróficas a nível social, económica e humano: “a urgência desorganiza a estrutura do tempo e retira a legitimidade à utopia”. (BINDÉ, 421). Enquanto no passado, era costume os homem sacrificar o presente em nome do futuro dos seus descendentes, o homem de hoje parece estar a sacrificar o futuro das novas gerações em nome do presente, como se o tempo, de repente, houvesse sido abolido, como se o presente fizesse um saque sobre o futuro, gastando hoje todos os recursos de várias gerações e ameaçando não só o bem-estar das futuras gerações, mas o próprio equilíbrio do planeta e, por via disso, o futuro da vida humano. Cansado de se projetar no futuro, lugar da promessa não cumprida, o ser humano, como se sentisse que tinha caído num logro, quisesse o futuro já e com urgência. É frequente, aliás, frases publicitárias que anunciam que “o futuro é já hoje!”. Com a chegada do cristianismo, a noção de um tempo linear, baseado no facto único da morte e da ressurreição do Cristo, fez a sua aparição. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, afirma que «O Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados e, depois de ressuscitado, nunca mais morrerá”. Para que a atual geração não faça um saque sem fundo sobre o futuro dos vindouros e estes não nos cobrem o tempo que é nosso, e que é sempre irreversível, terá de haver um contrato geracional, uma espécie de “pacto do tempo”, em que pudesse haver um investimento no presente com efeitos imediatos, mas com consequências positivas para as gerações futuras. Só com base nesse equilíbrio na gestão criteriosa do tempo é possível recolocar o tempo nos carris da história e retomar o comboio da viagem com todas as carruagens, do passado, do presente e do futuro, no seu lugar certo, que os passageiros dos diferentes tempos não se sintam desconfortáveis, porque os passageiros das outras carruagens invadiram o seu espaço. Nessa perspetiva, poderemos pedir uma concessão de tempo ao futuro, para que não fiquemos sufocados pela ditadura da urgência. Esse contrato geracional deve abranger todos aqueles que, crentes ou ateus, católicos ou protestantes, cristãos ou muçulmanos, entendem que é preciso, para usar a expressão de Jérôme Bindé «alargar a comunidade ética» que acha que é necessário estabelecer compromisso com o futuro, tendo a noção que as decisões que tomarmos hoje não podem ser apenas na expetativa do bem-estar individual de cada um, dos resultados financeiros a apresentar ao fim do trimestre, dos resultados eleitorais de uma nova eleição, mas terão consequências a longa prazo: “O reforço das capacidades de antecipação e de prospetiva é portanto uma prioridade para os governos, as organizações internacionais, as instituições científicas, o setor privado, os intervenientes da sociedade e para cada um de nós”. (idem, 422) Este é o tempo em que à cultura do instantâneo temos de responder com a cultura do compromisso, para que os decisões que foram tomadas no passado possam ser salvas desde que integradas num projeto de futuro, e não haverá futuro se todos nos deixarmos envolver por interesses que deixam consumir pelo recompensa imediata. A cultura de compromisso dos melhores será a melhor forma de envolver a todos. Temos todos de nos empenhar no futuro a partir das lições do passado. Se nos detivermos todos a olhar, deque forma for, contemplativamente o passado, ficaremos divididos criaremos uma crispação ideológica. Se, porem, estivermos cientes do nosso passado comum, empenhar-nos-emos coletivamente, seremos capazes de construir o futuro de que necessitamos, para que o horizonte não se afaste de nós, porque não o pensamos bem. Como dizia Pascal: «esforcemo-nos para pensar bem: é este o princípio da moral» (Bindé, 424). Um programa que implique uma nova moral implica uma ligação entre a doutrina e a prática. Desse ponto de vista, o cristianismo vem representar uma verdadeira revolução, não só porque modificou a nossa ideia de Deus, como também da sua relação com o homem. Aos deuses antigos imanentes à natureza, vem substituir-se um Deus transcendente mas que, mistério da Encarnação, e não obstante a sua natureza transcendente, se faz homem: “Cristo, o Homem-Deus, aliança de Carne e de Luz, estabelece uma ponte entre o homem e o Absoluto: ele garante uma mediação entre as duas ordens e, pelo seu sacrifício, resgata a humanidade. É a Boa Nova que se anuncia” (RUSS, ). E é, paradoxalmente através do seu corpo, o corpo que no homem é sede do pecado, que Cristo vai salvar a humanidade em queda e reerguê-la, como se o homem recuperasse, de novo, o ser - “o homem só é homem na media em que desperta para o ser” (DURAND, 295) - ao homem é-lhe, de novo, devolvida, a dignidade de se ver como um ser livre. É essa condição de homem livre, que a boa imprensa destaca, ilibando Deus da existência do mal, visto que o Deus do catolicismo, ao contrário do Deus do calvinismo, não decide de antemão a sorte do homem, antes lhe confere a responsabilidade e a liberdade de começar de novo. Camus compara o homem a Sísifo, que empurra o rochedo, suportando o seu fardo desde sempre, mas com a grandeza e a dignidade de quem nunca cessa de o fazer. Camus, contudo, fala de um mundo agora sem Deus e sem a eternidade. A boa imprensa, por sua vez, transmite a esperança de um luz que oferece a eternidade da salvação. Será feliz um ser, como o homem, que procura dar sentido a um mundo que parece estar submerso no absurdo e no sem sentido? – “«A própria luta na direção do cume basta para encher o coração de um homem. Temos de imaginar que Sísifo era feliz». (idem, 297). O humanismo que impregnou várias correntes de pensamento do século XX, incluindo o humanismo marxista, desde Mounier a Gide e a Sartre não deixou de (re)colocar o homem no centro da história, onde, ele, aliás, já estava desde o momento em que foi chamado a construir o seu destino, “assim na Terra como no Céu”, onde, ainda assim, se cumpre a vontade de Deus. E não é assim, desde o suspiro do Calvário, em que Cristo pede o afastamento do cálix do sofrimento do Homem: contudo, “faça-se a Sua vontade”. A de Deus. A Cristo, colocou-se, por um breve instante, o instante eterno, a escolha entre beber o cálix até ao fim e a vontade de Deus. Afinal, que vontade prevaleceu, a de Cristo Homem ou a de [Cristo] Deus? O que houve foi uma coincidência de vontades de Deus Pai e de Deus Filho, et bien sûr: Cristo escolheu, voluntariamente, a liberdade de não cair, e com ele o homem, no abismo do nada. Parecia, assim, estar a dar uma resposta, com vinte séculos de antecedência, ao humanismo ateu, que para os proponentes do existencialismo cristão, como Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, entre outros, era fundamentalmente niilista, que também, à sua maneira procuravam a síntese das várias dialéticas do século vinte, entre o ateísmo e o sagrado, a liberdade da renúncia humana e a transcendência divina. Superando essas angústias existenciais da morte a boa imprensa apresentava a imagem da sobrevivência contra a ideia de morte. Era necessário reconstruir o compromisso entre os desafios que se colocam ao cristão no dia a dia e o horizonte de que a vinda de Cristo representou para nós. A boa imprensa tem no seu sintagma um adjetivo, boa, que a demarca da restante imprensa, mas isso não significa, necessariamente, que ela não tenha como objetivo último a divulgação de uma mensagem e de uma doutrina que se considera universal – “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”, Marcos, 16: 15) – e que a si mesma se atribua uma missão cujos limites é atingir o pleno da divulgação dos valores da mensagem, que é a do amor ao outro, que é o próximo. Esta dimensão universal da mensagem, que é uma decorrência das palavras do próprio Cristo, teria condições de futuro? Estabelecendo uma distinção entre mundialização e universalidade, nos dias de hoje, Jean Baudrillard clarifica as diferenças: “Entre os termos mundial e universal existe uma analogia enganadora. A universalidade é a dos direitos do homem, das liberdades, da cultura, da democracia. A mundialização é a das técnicas, do mercado, do turismo, da informação” (BINDÉ, 49). E depois chama a atenção para as dinâmicas de ambas, defendendo a tese de que a mundialização ganhou uma dinâmica irreversível, ao passo que a universalidade estaria em recuo ou até em vias de desaparecer. Assim, verificamos que, num momento em que os avanços tecnológicos poderiam ser uma meio de divulgar valores como os direitos do homem, a liberdade, a cultura, a democracia, o amor ao próximo, valores inseparáveis da modernidade ocidental, os mesmos podem recuar em função do predomínio, em potência, das técnicas do mercado, que, afinal, mesmo nesse campo, podem falhar, por falta de uma ética que as sustente, como a crise atual, neste início da segunda década do século XXI, veio confirmar. Será possível afirmar, a esta distância, que, ainda no dealbar do século XIX, a boa imprensa já teria a noção de que a secularização da sociedade, já em curso, não teria, afinal, força suficiente para se impor em termos definitivos? Afinal, como acabou a Nova Religião da Humanidade, com os seus templos, os seus sábios e filósofos, como representantes da nova espiritualidade? Tiveram sucesso os anunciadores de uma nova ética capaz de substituir a moral cristã que era propagada pela boa imprensa? Com efeito, haveríamos de assistir, desde início do século XIX até aos nossos dias, a um movimento de secularização dupla ou com duas fases. Numa primeira fase, Auguste Comte enuncia a lei dos três estados, que correspondem ao longo percurso da história humana. Numa primeira fase, Comte afirma que a humanidade viveu o estado teológico, em que Deus está presente em tudo, seguido do estado metafísico, em que a ignorância da realidade ou a falta de crença num Deus todo poderoso leva a pensar que há relações misteriosas entre todas as coisas e entre estas e os espíritos. Em face disso, para inaugurar uma segunda fase, Comte estabelece o estado positivo em que a humanidade, finalmente liberta da presença de qualquer crença e guiada pelo espírito científico, busca o conhecimento absoluto e substitui toda a influência teológica pela observação dos factos científicos. Comte, porém, não advoga o fim do culto, apenas a substituição do culto de Deus, que substitui pelo culto do Grande Ser, hipostasiado por ser “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para o aperfeiçoamento da ordem universal» (COMTE, «Curso de Filosofia Positiva», tomo IV), p. 30. Comte não só substitui o culto de Deus pelo do Grande Ser, como defende que “O culto dos homens verdadeiramente superiores forma uma parte essencial do culto da Humanidade. Mesmo durante a vida objetiva, cada um deles constitui uma personificação do Grande Ser. Todavia esta representação exige que sejam idealmente afastadas as graves imperfeições que, muitas vezes, alteram as melhores naturezas.” (Ibid., tomo II, p. 63). Em rigor, o positivismo de Comte deixa de crer em Deus para passar a crer na ciência e na Humanidade. Se o Grande Ser é tão abstrato como o Deus da religião, o Deus que a boa imprensa defende, esse Deus que se fez homem, pelo Mistério da Encarnação para os católicos, e, depois de morto e sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, o positivismo de Comte faz desaparecer esse Deus do estado teológico para logo o reencarnar no Grande Ser, o Ser de toda a humanidade, e tal como Deus encarnou em Cristo, também o Grande Ser, alem de se concretizar em “o conjunto dos seres passados, futuros e presentes”, pode ser personificado, durante a vida, por cada um desses homens superiores e sábios que passam a ser a nova autoridade moral na nova sociedade. Hoje, como se sabe, os positivistas nunca conseguiram que a superioridade ética desses seres prevalecesse sobre o poder temporal. E este é o segundo momento da ausência da morte das crenças em entidades superiores, sejam elas Deus, o Grande Ser, as grandes Utopias do século XX, todas elas teleologicamente dirigidas para um tempo de plena afirmação da Humanidade. Fosse qual fosse a natureza e o percurso da participação do singular no universal, por transcendência ou imanência, a perda desse caráter universal levou “ao exterminação de todos os nossos valores, o que é uma «morte má»” no dizer de Jean Baudrillard (BINDÉ, 49), que afirma ainda: “O universal era uma cultura da transcendência, da reflexão do tema e do conceito, uma cultura com três dimensões, a do espaço, do real e da representação. O espaço virtual é o do ecrã, da rede, da imanência, do numérico”. Ou seja, a transcendência era comum a todas as doutrinas, fossem elas a da utopia marxista, do Espírito de Hegel, do Positivismo de Comte, ou a doutrina propagada pela boa imprensa, porque todas eram detentoras de valores. Desde o século XVIII procuravam-se sucedâneos ou sucessores para o Deus dos cristãos: Razão, Natureza, História, Progresso, Homem, Iluminismo e a própria Europa, como utopia, que nós vamos vendo soçobrar como distopia, essa Europa onde nasce o humanismo que lhe dá a base cultural: “O humanismo está ligado a uma Europa que tem a vocação do Universal e que encarna «uma grande república divida em vários Estados» (Voltaire)” (RUSS, 180). O cristianismo no seu todo era colocado em causa, “tanto o Deus dos católicos como o de Calvino, processo global e não singular que, inflamava os espíritos” (idem, 181). A boa imprensa nasce, assim, num contexto em que nem sequer era o catolicismo que se contestava, era a própria ideia de Deus, um Deus cuja existência não se podia (não se pode) provar. É certo que a boa imprensa, de tendência proselitista, e tantas vezes de natureza local, poderia, muitas vezes, julgar que se tratava de uma guerra inter-religiosa, mas o questão era muito mais fundo e muito mais vasta: era a própria ideia da morte de Deus que se prenunciava desde o Iluminismo e que é posto em julgamento, com a natureza a se constituir como os fundamentos de uma «religião natural», desde os inícios do século XVIII. Jean Meslier, eclesiástico e ateu, afirma, em testamento publicado por Voltaire, que o cristianismo não era uma instituição divina e contrariava as leis da natureza. Seguem-se, na sua esteira, “Voltaire, Montesquieu, Helvétius e, de um modo geral, os Filósofos que, sem realizar estudos de exegese, censuram ao cristianismo o facto de exigir demasiado à razão, que não admite nem milagres, nem revelação, nem sobrenatural […] Apenas no seio da Natureza e da Razão, paradigmas fundamentais do pensamento da Aufklarüng, existe uma crença válida” (idem, 182). Contra os livros sagrados e a Revelação, ergue-se, em pleno, a Ratio, o dinamismo religioso da Aufklarüng, “uma força universal que não pode reduzir-se às representações singulares da fé. Pois o século XVIII, embora critique a lei revelada, também faz o alargamento da ideia de Deus […] Confúcio situa-se ao lado de Cristo” (idem, 184) . Está posição filosófica de conceber um [novo] Deus como Ser Supremo, através da razão e não por revelação divina dos textos sagrados, o Talmude, a Bíblia ou o Alcorão, e a que se convencionou chamar deísmo, alastrou por toda a Europa. Ter-se-ia esta religião deísta, baseada na natureza e na razão e não na revelação, libertado da “tirania” da crença e da fé, de que era acusada a velha Igreja? «Ao mesmo tempo que o respeito pelos homens pela Igreja se desmorona, o deísmo impõe-se e o culto do Ser Supremo, caro a Robespierre e à Revolução Francesa, não está longe. Como esquecer esse culto deísta, instituído pelo decreto de 7 de maio de 1974? Robespierre, influenciado por Rousseau, rejeita as tendências ateístas dos seguidores de Herbert e contrapõe-lhes a religião natural e o reconhecimento do Ser Supremo”, isto por um lado. Por outro, ao Grande Ser da religião positivista, Comte advoga o culto, mas não via como boas a dúvidas sobre a sua existência. Ou seja, os apóstolos das novas correntes deístas eram tão dogmáticos quanto os das religiões reveladas e os ateus que não criam nem numas nem noutras sentiam o fenómeno da rejeição. Os sacerdotes dos novos credos, tal como os fautores da boa imprensa, estavam imbuídos de proselitismo em toda a semântica da palavra, procurando fazer o apostolado das suas ideias, como qualquer prosélito, que, além de convertido, se porta de forma sectária, isto é, como membro de uma seita. Por sua vez, os partidários das novas utopias materialistas dos séculos XIX e XX não se mostrariam menos intransigentes contra aqueles que não aceitavam o novo projetos de sociedade que eles propunham, sobretudo quando se tratou de as levar ou tentar levar à prática. Como reconstruir, então, a universalidade dos valores a partir das crenças monoteístas, deístas ou utópicas, num tempo da relativização de todos os valores ou já sem valores, de que estavam imbuídos todas aqueles doutrinas, que, crentes ou ateias, tinham sentido teleológico e de caminhada para uma sociedade humana perfeita, algures devir, histórico ou teológico? Fará sentido colocar essa questão aqui no âmbito deste artigo da boa imprensa? Esse é o desafio que se nos coloca como forma de volver ao universal onde todas a formas de expressão se podem encontrar, não um universal por abstração, situado acima do mundo real, mas obtido com a inclusão de cada um, ou seja, de todos. Quando o Deus dos cristãos nos manda amar o próximo, ele exemplifica pela ação. Jesus come com os publicanos e pecadores: “E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publicanos e pecadores  vieram e tomaram lugar com Jesus e seus discípulos” (Mateus 9, 10). Quando criticado, Jesus redarguiu: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que isto significa: misericórdia e não holocaustos; (idem, 12, 13). Note-se que “holocaustos” aparece, às vezes, nesta passagem do evangelho de Mateus, em vez de “sacrifício”, o que, em termos práticos, dá o mesmo, visto que o sacrifício implicava a imolação pelo fogo e o significado de “holocausto” é, etimologicamente, todo (holo) e queimado (kausto), palavra historicamente sugestiva, sabendo que o holocausto que está historicamente próxima de nós significou a recusa completa da alteridade. . Ora, uma cultura de liberdade admite o outro como essencial ao todo. Só podemos chegar ao universal pela inclusão de todos, o que significa incluir um a um, até atingir essa universalidade. Não se pode amar o universal nem ele existe se excluir uma parte de si. Repare-se o que diz Hannah Arendt, citada por Helé Béji, ao ser acusada de não gostar o bastante dos judeus, a propósito do processo de Eichmann: «Esse povo já só acredita em si mesmo? Que espera ganhar com isso?» Não tenho qualquer amor ao povo judeu, nem aos povos alemão, francês, ou americano, nem à classe operária. A única espécie de amor em que acredito é no amor das pessoas. Esse amor pelos judeus, uma vez que eu própria sou judia é suspeito” (BINDÉ, 60). O que Arendt nos explica é que amar um povo é amar um universal abstrato, tal como amar a classe operária e que só acredita no amor das pessoas, de cada pessoa, seja ela do proletariado ou de outra classe social, ou de que nacionalidade for, como o bom samaritano, que era estrangeiro: “o pertencer a uma mesma cultura ou a uma mesma religião não é uma garantia de tolerância ou de felicidade política. Porque não é a ligação cultural que faz a ligação política, mas antes a ligação civil” como afirma Hélé Béji (BINDÉ, 59). Tomando a diferença concetual entre «religioso» e «espiritual» a propósito do diálogo de culturas, Béji afirma que a reivindicação da identidade, quando é feita à custa da universalidade, está eivada de uma violência de natureza religiosa no sentido de tirania da crença e não da espiritualidade e da liberdade de pensamento. O que é que sobreleva na boa imprensa: a espiritualidade ou a tirania da crença religiosa? O que ali estava, à superfície, nesse conceito, era, de facto, a “tirania da crença”. Contra essa “tirania”, e em nome da liberdade, vão revoltar-se a Civilização e Razão, ) mas logo estabelecem novas “tiranias”, usando a a mesma nomenclatura, o que é natural, como filhas dessa primeira crença. Só que nessa aparente “tirania” da crença propaganda pela boa imprensa germinava também a liberdade da sua contestação o que era, perfeitamente, plausível, numa doutrina provinda de quem, como Jesus, não escolhia as companhias para comer. Quando se perfilham a Ciência, a Razão, o Progresso, a República, «entidades com maiúscula em estado de prostração», segundo a expressão de Marcel Gaucher» lembramo-nos que todas elas se ergueram em nome da Liberdade contra o obscurantismo da crença religiosa. Mas, quando verificamos que o homem se perdeu num “individualismo que é uma ideologia de massas e já não uma singularidade criadora”, perguntamo-nos qual dos dois é mais livre: o homem individualista subsumido nas massas anónimas ou o homem a quem era dado o dom de dialogar, intimamente, com o seu Deus, esse Deus que se sacrificara por ele, segundo a doutrina cristã divulgada pela boa imprensa? Béji afirma que “um dos sinais mais desumanos da cultura é a separação do religioso e do espiritual”. Afinal, não era esse o caminho, o da liberdade, que se iniciara desde o Iluminismo? O homem hoje está só perante a multidão e, nas redes sociais tem milhares de amigos virtuais, às vezes, mas sem a convivialidade de outrora. No jornal «A Verdade» de 5 de Fevereiro de 1916, num artigo intitulado “Miasmas d’alma”, com o subtítulo “Estudo Psycologico”, o articulista escreve que “a vida é uma tragedia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo… N’ella se identificam em biliões de actores os generos de caracter disfarçadas pela acção da peça ou pelas exigencias do enredo. […] Subiu o pano. […] Principia a representar-se a Vida, peça d’um só acto […] Que grandes actores tem a tragedia escripta por Deus. … Que genios! Com que arte alguns representam o papel de honestos! […] Ao entrarem, porém, no camarim que é o seu lar, passam a esponja pela face, e ficam o que eram: hypocritas, falsos, aventureiros do destino. Outros abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos, se levam uma bofetada na face direita entregam como Christo a face esquerda, aconselham a essencia do bem, guiam os fracos, choram a desdita dos seus irmãos, mas finda a scena, recolhem a bastidores, passam a esponja e lá ficam, no que são: covardes, intriguistas de escada, especuladores e párias! Que exhuberante é o Theatro do Universo!”. Que questão se poderá colocar quanto ao sentido do artigo, através da leitura deste trecho escrito por quem acredita em Deus, o Deus que é o autor da vida, “tragédia escripta por Deus e representada no Theatro do Universo”? Como pode esse Deus, origem do Bem, encher o mundo destas personagens que “representam o papel de honestos”, “hypocritas, falsos, aventureiros do destino”, ou que “abraçam a religião, tudo perdoam, tudo esquecem, amam os seus inimigos”, “aconselham a essencia do bem” para depois, tendo recolhido aos bastidores, se revelarem “intriguistas de escada, especuladores e párias!”: pode Deus ser o autor do “Theatro do Universo” com este tipo de personagens? Ou o autor entrou em contradição com a doutrina que divulga ou coloca-se aqui a questão da teodiceia, o da justificação racional de Deus e a sua coexistência com o mal, aporia da cultura ocidental e da cultura oriental. “O teólogo contemporâneo Maurice Zundel, dizia, com alguma ironia, que se o mal existisse realmente, Deus seria a sua primeira vítima, quase fazendo suas as célebres palavras de Stendhal, segundo as quais a única desculpa de Deus em face do mal e do sofrimento só poderia ser a Sua inexistência”. (CORREIA, 1). Contudo, o editorialista, católico, não poderia ter subentendido essa ideia de que Deus, autor do teatro da vida, seria o responsável do mal provocadas pelas personagens da vida no palco do mundo, numa paráfrase vicentina. O que ele critica é justamente que o mal exista não por vontade de Deus, mas por ação das personagens que são, na realidade, a humanidade. Trata-se da questão essencial do homem, colocado perante a responsabilidade de construir o seu destino, segundo o seu livre arbítrio e uma ética da responsabilidade que não deixa ficar a teodiceia desarmada perante esta questão: “a teodiceia não ficou sem recursos. Com efeito, é possível surpreender vários modelos teóricos que visam mostrar que não existe qualquer incompatibilidade lógica entre a existência de Deus e o problema do mal” . tendo como base “o paradigma que é invocado por vários filósofos teístas contemporâneos e que se funda, a meu ver, no postulado ético da responsabilidade” (idem, 40). Essa ética da responsabilidade deve ser exercido na busca e no exercício de valores absolutos como a Verdade, o Bem, o Sagrado, a Beleza, valores intemporais e independentes da história, englobados numa ética cuja consumação tornaria o mundo esteticamente harmonioso, o que contribuiria para a ressurreição do Deus ou Bem Absoluto como ideais a atingir em cada circunstância, sabendo habitar o tempo e o lugar. Existe, a um tempo, a marca do efémero e do eterno. Quando a boa imprensa se concede o direito de divulgar os valores em que acredita e exclui o próximo por divergências confessionais, ela comporta-se como qualquer poder temporal em que o que mais conta é a autoridade e menos a revelação de que a doutrina cristã é filha. Mas, quando, e apesar disso, ela é, genuinamente, crente nos valores que propaga, então torna-se num espaço de diálogo e supera os muros do poder profano, literalmente, o poder que está para além e acima das barreiras que dividem. Qualquer corrente ideológica, religiosa ou filosófica que se coloca nas margens do universal e recusa o diálogo, adquire características que a confundem com qualquer corrente fundamentalista e, a breve trecho, perde a possibilidade de construção do espaço em que todos se devem encontrar. Essa recusa torna conflito inevitável. Um cenário que não tem de ser imaginado, seja quando se pensa nas fogueiras da inquisição, nos campos de concentração de todos os lugares e azimutes ou no apogeu da recusa da alteridade que foi a II Guerra Mundial, onde, em nome de ideologias absolutas que se consideravam prenhes de razão, não cederam lugar ao espaço de diálogo e cederam o passo à loucura do desumano, de onde a justiça se afastou ou foi afastada violentamente. Emmanuel Levinas exprime a exigência do nosso tempo ao afirma que a justiça só é justiça numa sociedade onde não exista distinção entre próximos e afastados, mas também onde exista a impossibilidade de passar ao largo do mais próximo. No caso da boa imprensa, ela revela a sua visão do mundo, mas, na sua visão singular, não deixa de especular, quer dizer, espelhar o universal, visto que o singular não deixa de ser uma face do poliedro que é universal. E descendo até ao mais local, a imprensa católica madeirense teceu as linhas do universal na nossa diocese até a mais humilde capela do mais recôndito lugarejo, no esconso do mais remoto cabeço. Afinal, aquilo que hoje consideramos universal é o que se divulgou em todo o globo a partir de um determinado local. Aquilo que é local em cada momento está apenas à espera de uma oportunidade de ascensão a partir de um monte das Oliveiras. Não dizemos nós que as Sagradas Escrituras não podem ser tomadas à letra? Afinal, todo o texto religioso é metafórico e todo o texto literário carece de uma exegese como se fora religioso, e só assim ele pode atravessar a passagem do tempo e ser atual em todas as épocas. Nenhum universal, que deve ser o objetivo de toda a manifestação humana, se pode construir quando não vemos em cada instante o sinal do eterno. A espiritualidade é saber ver o universal no singular. Para o dizer na linguagem desta espiritualidade, “o amante vê o ser que ama em todo o lado. Se não vimos a verdade naquilo que é diferente, é porque não estamos suficientemente apaixonados e que não temos para Leyla os mesmos olhos de Majnun”. (Nota: Leyla e Majnun são personagens clássicas da arte islâmica, imortalizadas, num poema de Fuzuli (século XVI). Leyla representa a beleza divina; Majnun o espírito humano). A verdade é pura, branca e una, mas não é única, pois o branco é a síntese das sete cores do arco-íris. Ou seja, a exclusão de qualquer das sete cores tornaria impossível a unidade traduzida pelo branco. Assim, o universalismo só o pode ser se integrar todas as matizes em que se realiza e que o realizam. Ou, por outros palavras, é possível ver o rosto de Cristo em cada ser humano, situando-se a frase na semântica do religioso ou da metáfora, conforme a queira entender o leitor, senhor último da palavra.   Miguel Luís da Fonseca

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figueiredo, estêvão brioso de

D. Estêvão Brioso de Figueiredo nasceu em Évora, em 1630, filho de Manuel Martins e Catarina de Figueiredo, gente sem vestígio de fidalguia nas origens, e foi ordenado padre em 1658. Para que pudesse ser alcandorado ao título de bispo, precisou da conjugação de alguns fatores que, ao tempo, ajudassem à promoção a um lugar cimeiro na hierarquia eclesiástica e que, no seu caso concreto, se materializaram num percurso académico, em protetores bem colocados e em alterações produzidas nos critérios de provimento episcopal. Em termos de habilitações, era D. Estêvão possuidor de um bacharelato em Cânones pela Universidade de Coimbra, o qual lhe possibilitara o início de carreira na Relação de Évora, sua terra natal. Daí se viu promovido para Lisboa, onde veio a tornar-se vigário geral e procurador do arcebispo, D. António de Mendonça, e terá sido esta relação que lhe valeu a proteção do irmão do referido arcebispo, o 2.º conde de Vale de Reis. Esta circunstância, somada a um novo critério de escolha episcopal surgido no reinado de D. Pedro, que se caracterizou pela atribuição de um maior peso das cúpulas da Igreja na designação dos titulares de mitras, e que privilegiava carreiras feitas ao serviço de instâncias eclesiásticas, será o suficiente para explicar a opção por D. Estêvão Brioso de Figueiredo para primeiro bispo da recém-criada Diocese de Olinda-Pernambuco. Assim, e depois de confirmado, em 1676, por Inocêncio X, chegou D. Estevão a Olinda a 11 de abril de 1678, para dar início a um episcopado onde pontificaram a reforma do auditório eclesiástico do bispado e um programa visitacional que incluiu as igrejas da cidade e das povoações vizinhas. A distância do reino e a insegurança que experimentou – foi mesmo alvo de um disparo contra a janela do paço episcopal – fizeram com que o bispo, “pouco satisfeito com o lugar”, pedisse e obtivesse a promoção para a Diocese do Funchal, entretanto vaga (MELO, 2003, 106). Outro elemento que poderá ser tido em linha de conta na vontade de transferência de D. Estêvão Brioso de Figueiredo diz respeito ao vencimento episcopal que, em Olinda, era de 800.000 réis, e que no Funchal já atingia, desde o tempo de D. Fr. Gabriel de Almeida, o montante de 266.600 réis, 49 moios e 26 alqueires de trigo, 2,5 moios de cevada e 101 pipas e 2 almudes de vinho, por comutação dos 1800 réis que anteriormente recebiam os prelados funchalenses. Menor distância, maior vencimento, melhor clima: este terá sido o conjunto de fatores que esteve na origem da primeira transferência de um bispo de outra diocese para a do Funchal, a qual, neste contexto, surge verdadeiramente como uma promoção, na medida em que se apresentava como muito mais apetecível, apesar de sempre longe dos muito mais rendosos e proeminentes bispados de primeira linha no reino. Em 1683, foi, então, D. Estêvão nomeado para o bispado da ilha da Madeira, para o qual se deslocou em 1685, com tomada de posse a 18 de abril desse mesmo ano. Teve um episcopado curto, de apenas três anos, pois logo em 1688 se retirou para Lisboa, para procurar alívio para males trazidos dos trópicos, acabando por falecer a 20 de maio de 1689. Do escasso período em que permaneceu na mitra do Funchal, sobraram poucos vestígios, mas um deles ficou a dever-se ao cura da Sé, Francisco de Bettencourt Sá, o qual, em 1688, num livro de defuntos da freguesia, e descrevendo uma epidemia de febres malignas que varreu a cidade, salientava as diligências do prelado, que, de tarde e de noite, levava o Santíssimo aos moribundos. Ao bispo também se ficou a dever a decisão de trasladar a miraculosa imagem de Nossa Senhora do Monte da sua igreja para a catedral, como forma de aplacar a doença, tendo esta estratégia resultado em pleno, pois “nem de novo deu mais a doença em pessoa alguma” (Arquivo Histórico da Madeira, vol. V fasc. i, 35). Apesar dos seus achaques, o prelado não deixou de cumprir os seus deveres visitacionais, e pode ser pessoalmente encontrado, em 1685, no Porto Moniz, de onde procedia à visita da igreja de S.to Antão do Seixal, “como fizeram nossos antepassados obrigados da dificuldade dos caminhos”. Ainda que não estivesse fisicamente presente na freguesia do Seixal, pelos impedimentos que indicava, o bispo encontrava-se informado o suficiente para determinar que se tinha de combater a tendência para a revelia à doutrina que era evidenciada pelos fregueses, os quais deviam ser condenados “se necessário for” (ACDF, Seixal, Livro de Provimentos do Seixal, fl. 67v.), na quantia que se adequasse às possibilidades de cada um. A mesma brandura não se aplicava aos que se tinham comprometido com esmolas para a obra do pé da custódia, que, não cumprindo, se deviam excomungar, o mesmo acontecendo aos devedores às confrarias.   Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

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falar(es) na escrita

As duas faces de uma língua viva Constituída por uma vertente oral e outra escrita, uma língua é, por princípio, bifacial. Contudo, nem sempre os dois lados coexistem. Se for uma língua viva, a face oral, tem-na por inerência, mas pode não contemplar a escrita. Os crioulos cabo-verdianos constituirão um caso paradigmático disso mesmo, embora a situação se esteja a alterar com a tendência crescente para a fixação da fala do criouléu cabo-verdiano de Santiago, divergente, por exemplo, do de São Vicente. Se se tratar de uma língua morta, sucederá o inverso. É assim com a língua latina, que, grosso modo, subsiste apenas na escrita. Pela sua prolífera cisão, esta deu origem às línguas românicas, que, inicialmente, eram apenas faladas e que, por razões históricas, ganhando dimensão nacional ou regional, se tornaram, na sua maioria, escritas. A língua portuguesa, com 800 anos de história contados a partir do Testamento de D. Afonso II, datado de 1214, é exemplificativa de uma língua latina com escrita fixada, havendo percorrido um longo percurso para o efeito. Todavia, há línguas que estavam mortas e que voltaram a ganhar vida, ou seja, readquiriram uma vertente oral. Foi o que aconteceu com a hebraica, aquando da criação do Estado de Israel. É possível contar com outras línguas que nunca foram escritas e que desapareceram ad aeternum com a extinção da sua comunidade de falantes (cf., p. ex., DN, 7 fev. 2011, 49). Algumas mantêm-se vivas pontualmente, como os versos sânscritos recitados em exercícios de ioga. Neste conjunto de línguas, seria igualmente viável inserir o latim, já que a Santa Sé o usa ocasionalmente, sendo a sua língua oficial, embora o italiano a substitua em grande parte das ocasiões em que é indispensável recorrer a um registo linguístico de viva voz. Assim sendo, compreende-se que a dinâmica de um idioma é dada pelo facto de ele ser falado, usado na comunicação diária dos membros de uma comunidade. Esta evidência reencontra-se na relação dos termos “comum”, “comunidade” e “comunicação”, ao integrarem a mesma família. Entre línguas naturais mortas (desaparecidas ou conservadas), ressuscitadas e vivas, a relação entre as suas duas faces, os dois registos, é incontestável. Podem esses dois lados (ou apenas um deles) encontrar-se num estado latente/implícito (sem escrita ou sem oralidade) ou patente/explícito (com escrita e com oralidade). No geral, é à comunidade de falantes (os usuários das línguas numa ou nas duas facetas) que cabe decidir o que pretende fazer. Acontece que, nas trocas linguísticas quotidianas, a variedade da língua empregue raramente corresponde, com completude, à que está padronizada nos dicionários e nas gramáticas, nos compêndios e nos prontuários, já que os membros de uma comunidade vão recorrendo quer a diversos níveis da linguagem, consoante as situações de comunicação em que se encontram – das mais formais às mais informais –, quer a variedades sociais ou diatópicas com cunho específico. É preciso ter em conta que estas últimas recebem a influência da área geográfica onde os falantes nasceram e vivem ou onde passaram a residir, sem aí terem nascido. Assim, sucede que na Região Autónoma da Madeira (RAM) se fala de uma maneira que não é integralmente comum à do restante território nacional, embora também se recorra, nesta área geográfica insular, à variedade padrão, de modo mais premente na escrita documental e oficial. Compreende-se, consequentemente, a razão por que a variedade regional tem somente registo oral, não possuindo nenhum registo escrito oficial. É famosa a frase “O grade azougou e foi atupido na manta das tenerifas”, apresentada como um exemplo ilustrativo do falar regional usado pela população, sendo incompreensível a quem seja de fora, isto é, estranho à comunidade. Aliás, vão-se divulgando textos escritos “à madeirense” (incluindo do Porto Santo: cf., p. ex., ROSADO, 2003). É também esta a ideia que perpassa, por exemplo, no texto “Linguagem Popular da Madeira”, da obra homónima (SILVA, 2013, 23-27), e na crónica “Falares Ilhéus” (JARDIM, 1996, 23-24). No arquipélago, é frequente ouvir dizer, mesmo numa situação formal de comunicação, que determinada tarefa leva “horas de tempo” (“Esse trabalho leva duas horas de tempo”), mas a expressão não se deverá escrever, já que, no plano da escrita, vigorará a norma que aceita unicamente “horas” (“Esse trabalho leva duas horas”). Esta discrepância é fácil de entender, visto que as entidades que controlam o idioma, nomeadamente no que se refere ao ensino, para o manterem homogéneo, o mais uniformizado possível, optaram por uma grafia única, a da norma, um padrão imposto às restantes variedades. Assim, a qualidade bifacial do Português assume, do lado da escrita, à partida, a invariabilidade, mas reconhece, do lado da fala, a variabilidade. Infere-se, daí, que a norma é a única variedade com menos variação. Todavia, a este propósito, sublinhe-se que a definição de “norma” pode não ser unânime. Embora este conceito tenha uma base incontestável, quando a definição remete para “que serve de modelo, de padrão”, foi posto em causa, ultimamente, devido à população referencial que a consubstancia. A que falantes corresponde a norma? Reporta-se aos mais instruídos, sejam eles de que parte do país, e do mundo, forem? Tem origem, em exclusivo, nos falantes mais escolarizados (estrato social médio-alto) de uma área geográfica precisa (Lisboa ou Coimbra-Lisboa)? Para o Português Europeu, equivaleu à variedade usada pela classe alta do eixo Lisboa-Coimbra, e para o Português do Brasil, à das classes altas do Rio de Janeiro (CUNHA e CINTRA, 1995). Como já referido, este conceito de cariz social e geográfico tem sido alvo de alguma refutação, estando, claramente, a ser reequacionado (cf., p. ex., EMILIANO, 2009), o que é compreensível numa sociedade do séc.XXI que, pesem embora as enormes desigualdades sociais, tende para a existência de uma classe média mais forte, com diminuição dos extremos no que toca ao poder económico. Este é, pelo menos, o cenário generalizado na sociedade ocidental. Esquecendo, momentaneamente, a problemática colocada pelo conceito de “norma linguística” e centrando a temática na questão das variedades, sabe-se que, habitualmente, os falantes regionais dominam, pelo menos, duas variedades linguísticas: a exógena (a normativa) e a endógena (a nativa). Diz-se, então, que existe um fenómeno de diglossia, muito semelhante ao bilinguismo. Torna-se evidente, porém, que isso se aplica em exclusivo ao registo oral, uma vez que, na escrita, predominará a ortografia estabelecida para a língua oficial. Por exemplo, num bilhete para um familiar, um madeirense poderá escrever algo como “Vamos ir lalá lalém com Maria. Junta a mochilha!”, hesitando na grafia de “lalá”: “lá-lá”/“lá lá” e de “lalém”: “l’além”/“lá-além”/“lá além”. Todavia, se ele tivesse de transmitir esta mensagem a alguém que não fosse da mesma variedade diatópica, encontrando-se, além disso, numa situação de comunicação que requeresse adequação linguística, deveria alterá-la, adaptando-a com uma proposta como “Vamos dar um passeio acolá com a Maria. Apanha a mochila!”. Numa comparação geral destas duas possibilidades, observa-se que as divergências existentes entre o registo exógeno e o endógeno são substanciais e mereceriam a elaboração de um dicionário (Regionalismos Madeirenses) e de uma descrição gramatical (REBELO, 2014a). Esta deveria dar conta de todas as marcas linguísticas que individualizam a variedade regional a nível da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica, incluindo os outros campos dos Estudos Linguísticos, o que os vários trabalhos existentes, de que fazem parte as dissertações académicas, tenderam a fazer de modo parcial. Fica claro que a norma de uma língua viva tem uma vertente oral e uma escrita, mas tal não sucede com as variedades diatópicas, uma vez que possuem unicamente, em termos oficiais, registo oral. Pontualmente, quando se vê escrita nas mais diversas situações de comunicação, nem sempre, por diversas razões, é evidente a variante a fixar (REBELO, 2014b). Aliás, as corruptelas, ou seja, “pronúncia ou escrita de palavra, expressão, etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social” (HOUAISS, 2001), presentes nas entradas de vocabulários e glossários são prova disso mesmo. Com frequência, surgem na imprensa (cf. os jornais regionais publicados diária ou semanalmente na RAM) hesitações. É o caso de “persiana”, um vocábulo que não se usa no arquipélago e que é, sistematicamente, substituído pelo termo tido como regional “tapa-sol” ou “tapassol”, parecendo difícil escolher entre uma ou outra variante. Acontece de igual modo com muitos outros termos registados nos vocabulários existentes (cf. RIBEIRO, 1929; SILVA, 1950; SOUSA, 1950; PESTANA, 1970; e CALDEIRA, 1993, entre outros). Esta variação gráfica assinala-se, inclusive, nos estudos linguísticos, como os de Käte Brüdt (1938) e de Millet Rogers (1940, 1946 e 1948), que anotaram as palavras da forma como as ouviram pronunciadas pela população. A audição com apontamento foi a metodologia seguida por grande parte dos estudiosos da variedade insular madeirense. Aliás, estes dois investigadores, como quase todos os outros dos três primeiros quartéis do séc. XX, arranjaram uma transcrição sui generis para grafar a dinâmica da fala madeirense (REBELO, 2002b). Este método de registo do(s) falar(es) faz lembrar o da “pronúncia figurada” (REBELO e SANTOS, 2013, submetido), que se empregou extensivamente antes de haver alfabeto fonético internacional. Veja-se o seguinte exemplo para “vinho”, evidenciando a diferença entre a pronúncia figurada, como a expressa em “vâinho” (BRÜDT, 1937-1938), e uma transcrição fonética que se poderá considerar equivalente: ['vɐjɲu]. Sinteticamente, a expressão “pronúncia figurada” significa aquilo que os termos constituintes evidenciam, ou seja, é a representação escrita (figurada), através das letras do alfabeto latino e de determinados sinais adicionais, como acentos gráficos, usada para poder ser reproduzido por meio da leitura (articulação) um modo de dizer (pronúncia) de uma língua estrangeira ou de uma variedade geográfica. A única face visível da variedade diatópica madeirense A variedade insular madeirense, no seu todo, tem, consequentemente, patente a face oral, uma vez que é exteriorizada através da verbalização, e latente (invisível) a faceta escrita, dado que não possui gramática oficial, nem ortografia definida. O mesmo se verifica para as restantes variedades regionais portuguesas ou para as outras realidades não diatópicas lusófonas, como as africanas ou as asiáticas. Podem existir estudos que descrevam ou registem particularidades da oralidade das variedades, mas são restritos e pontuais. Aliás, a “transcrição alinhada” que acompanha as gravações dos CD’s Português Falado (BACELAR DO NASCIMENTO, 2001) normaliza consideravelmente a vitalidade da fala, distanciando-a bastante da grafia que surge a acompanhar o registo oral dos falantes gravados. Porém, esta situação tem vindo a ser alterada, dando-se visibilidade ao registo da variedade, como aconteceu para São Vicente (cf. FREITAS, 1994), embora não se tenha acesso às gravações realizadas pela pesquisadora. Quase todos os trabalhos, incluindo os académicos, curiosamente, facultam o registo escrito (transcrição), mas não dão o registo oral gravado que motivou a transcrição, sucedendo o mesmo com os trabalhos dos atlas linguísticos (REBELO e NUNES, 2009), em que apenas se publica a transcrição fonética dos termos cartografados. É assim desde o início das investigações, mas ressalva-se que, antigamente, os meios técnicos eram praticamente inexistentes. Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo e Lindley Cintra interessaram-se pelo estudo da variação diatópica portuguesa, procurando atestar (por escrito) estas realidades linguísticas ultradinâmicas. Quanto à existência de uma única variedade madeirense ou de muitas, uns preferem o singular (VASCONCELOS, 1901, 1970) e outros o plural (CINTRA, 1990, 2008). Escreveu Lindley Cintra que “[...] não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertence ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais. Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos de outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (CINTRA, 2008, 104). No entanto, apesar de optar pelo plural, não os identifica, nem os localiza. Indicar, unicamente, diversas particularidades não parece suficiente para justificar a existência do plural “dialetos madeirenses”. Foi testado o reconhecimento auditivo da variação na variedade insular madeirense (REBELO, 2011) e comprovou-se que dificilmente os ouvintes conseguem identificar, simplesmente pelo falar, a origem regional dos falantes. Assim, por falta de provas e de estudos consistentes sobre este assunto, opta-se por referir a variedade no geral e, consequentemente, no singular. Aliás, a designação “madeirense” (até prova em contrário) serve perfeitamente para o efeito, fazendo equivaler a linguagem regional ao identificativo do habitante (língua e gentílico), como acontece com a maioria das línguas vivas (REBELO, 2014a). Antes de os estudos pós-saussurianos centrarem a análise linguística na parole (fala), em vez de se concentrarem na langue (língua), os filólogos debruçavam-se sobre os textos escritos, em especial os literários. Deles colhiam informações pertinentes para o estudo da langue, em particular da sua diacronia e história. Criando-se a Linguística como disciplina científica, o que passa a interessar não são os textos fixados em suportes deterioráveis como o papel, mas a riqueza sincrónica da fala multivariável, com um suporte físico “imaterial” (o ar). Este afastamento da escrita levou os especialistas da linguagem, sobretudo os dedicados à análise da fala, num plano sincrónico, a olvidarem totalmente os registos literários. Ora, para os linguistas que têm procurado estudar o português falado na RAM, através de transcrições e de gravações, é de todo conveniente observar, igualmente, os contributos dos escritores regionais. No séc. XX, sobremaneira na primeira metade, indo mesmo aproximadamente até à déc. de 70, as transcrições linguísticas presentes em dissertações de licenciatura, e noutros trabalhos académicos, como se referiu, não diferiam muito das propostas presentes em textos literários, nos diálogos de personagens tipicamente regionais, estando ambos (trabalhos académicos e textos literários) muito próximos do método da “pronúncia figurada”. A descrição da fala regional importa aos estudiosos da linguagem e a um número considerável de escritores, embora numa abordagem menos científica do que a que orienta um linguista. Logo, é a Literatura que vai permitir registar a escrita do modo regional de falar, mesmo se algumas produções literárias não têm seguido esta via, o que aconteceu na recolha de contos populares (FREITAS, 1996) ou de rimances (FERRÉ e BOTO, 2008). Não se almeja, no entanto, abordar a questão da “Literatura Madeirense” (cf., p. ex., HOMEM, 1999 e SANTOS, 2007, 2008), mas tão-somente valorizar, para o falar da variedade madeirense na escrita, o contributo de textos literários de alguns escritores, mais ou menos conhecidos, consagrados ou não, relevantes ou insignificantes quanto ao cânone literário (SANTOS, 2008). A escrita da variedade madeirense: a relevância do texto literário Em termos linguísticos, se o português falado na RAM é apenas unifacial por possuir exclusivamente a face oral, quando olhado sob o prisma literário, torna-se bifacial. Contudo, a dimensão escrita que adquire não é ortográfica, mas fonográfica ou grafofónica (REBELO, 2013 e 2014, no prelo). Estes dois últimos termos estabelecem uma íntima relação entre a dimensão “gráfica” (representação escrita) e a “fonia” (produção oral) para dar conta das características regionais ou locais de um modo de falar. Consistem, por assim dizer, no mesmo processo empregue no registo da “pronúncia figurada”. Posto isto, convém, todavia, clarificar que as representações escritas do registo oral regional vão variando consoante os escritores e a maneira como captaram as sonoridades insulares, não havendo, portanto, uma relação unívoca entre estas duas faces. As causas para este fenómeno serão múltiplas e não se equacionam de momento. A poligrafia literária faz lembrar o polimorfismo próprio do Português Arcaico (cf., por exemplo, VÁZQUEZ CUESTA e LUZ, 1988). Por exemplo, o Dicionário Houaiss apresenta a evolução histórica dos significantes e verifica-se que nem sempre um determinado vocábulo (ex.: “igreja”) se escreveu da mesma maneira, tendo tido, num mesmo período ou em mais, várias formas (ex.: “egreja” e “ygreja”, entre outras possibilidades). Em parte, isso verifica-se porque os diversos autores tidos como regionais foram fixando e dando corpo gráfico, visibilidade impressa, às sonoridades insulares, segundo a sua própria captação da fala. Este processo de materialização dos diversos níveis da variedade insular (como o social: calão, gíria, etc.) na escrita literária sucedeu no plano internacional (p. ex., em França, com Raymon Queneau, e em Moçambique, com Mia Couto) e nacional, com escritores como Lídia Jorge ou Aquilino Ribeiro. Aliás, é sabido que já Gil Vicente procurara conferir um estilo linguístico a determinados tipos de personagens, moldando a grafia segundo traços de pronúncia. Logo, esta especificidade não se observa unicamente na RAM, uma vez que é comum a outras variedades, registos ou línguas. Deste modo, não é uma estratégia exclusiva do espaço criativo madeirense. Contudo, é aqui que a interessa observar, esboçando-lhe os contornos para a configurar. São, sobretudo, as personagens representativas das camadas sociais mais baixas, tipicamente populares, que, nos textos literários, vão “falar à madeirense”. O valor científico da linguagem popular (BOLÉO, 1942) e a problemática da relação entre “popular” e “regional” (VERDELHO, 1982) são tópicos prementes para o estudo do registo escrito das variedades. A escrita ficcional tende a querer assumir traços de realismo linguístico (REBELO, 2008, 2013, 2014 no prelo). Portanto, as personagens, enquanto entidades literárias intratextuais, ganham pujança extratextual, representando um modo de falar de um povo de uma região. Têm entidade individual, muitas vezes com nome próprio, mas identificam o conjunto, a comunidade. O texto adquire, então, um colorido regional quando estas personagens populares, quer iletradas quer pouco ou nada instruídas, falam, sendo recriadas pelos autores. A grafia da fala representada passa a ser desviante porque é uma “transgressão ortográfica”, visto corresponder a uma transcrição gráfico-fónica. As letras do alfabeto latino são usadas para escrever a pronúncia regional que se afasta da representação ortográfica normativa (como no processo da “pronúncia figurada” e de modo distinto da transcrição alinhada, representação ortográfica que acompanha linha a linha a produção de um texto oral). São, assim, as sonoridades específicas da variedade diatópica madeirense que passam a ser escritas. É complexo saber quem terá sido o primeiro autor a procurar registar o falar regional madeirense na escrita, nomeadamente literária, uma vez que a tendência foi quase sempre a de normalizar a grafia. Sem considerar o registo pontual de Mariana Xavier da Silva (1884), Ricardo Jardim, que passou alguns anos em Inglaterra, apresenta-se, com Saias de Balão, como o percursor, até que se descubra outra referência. Este autor regista a fala na escrita de maneira muito incipiente e de forma esporádica. Esta acontece, essencialmente, quando os “criados” falam, como se verifica no seguinte excerto: “Menêina, nã vaia p’ra riba!... Menêina, vai-se pisar!... Menêina, aprante-se p’ra aí! Esteja quètinha!... Credo! Abrenúncio!” (JARDIM, 1946, 32). Desta deixa, sobressai, entre mais particularidades, a ditongação do <i> tónico (êi), considerada como tipicamente madeirense. Em contraponto com Ricardo Jardim, indubitavelmente, um dos autores que mais empregaram este processo da escrita do falar terá sido, por certo, Horácio Bento de Gouveia (SANTOS, 2007). Se não o fez em todos os contos, usou-o, pelo menos, sistematicamente nos seus romances (ALMEIDA, 2000). Apresenta-se um excerto da obra Torna-Viagem: o Romance do Emigrante (GOUVEIA, 1995, 56): - Q’ aconteceu? - O navoeiro matou mê filho! - Aonde? - Na beira da rocha. - Antão ’tá no fundo da ribeira. – E chamou, repentinamente, com toda a força da arca do peito: - Manel? Manel? - O quia, mê pai? - Vem cá. Neste breve diálogo, além de outros fenómenos, regista-se a ditongação com crase em “quia” (que é), sendo notória, no início do diálogo, a ausência do artigo definido antes do possessivo (Sintaxe) com a frequente monotongação deste (“mê filho”). Estes traços são correntes na variedade madeirense, embora, como se sabe pelos trabalhos de vários estudiosos e linguistas como, p. ex., Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo ou Lindley Cintra, comuns a outras variedades portuguesas. Entre estas duas tendências extremas (usar pouco – Ricardo Jardim – e empregar muitíssimo – Horácio Bento de Gouveia), diversos autores foram escrevendo a variedade diatópica madeirense. No entremeio, estará, p. ex., António Marques da Silva, com a “crónica romanceada” Minha Gente, obra póstuma, mas cuja finalização data de 1951. Dando voz às gentes da zona de São Jorge (Santana), reproduz o autor o falar do povo local, como evidencia a citação que se transcreve (SILVA, 1985, 13): – O mê digosto é nã poder botar-me desta terra pá rua. Ainda cum queira mercar um casaco pá missa, nã se pode. Anda-se atolado em lameiro todo loi dias e o que se ganha mal dá pá barreiga... – E si que dê graças a Deus em ter uma buxada para meter na boca... – acrescentou o outro, no mesmo tom melancólico. – Si amode canda reinando ca vida, Man’leinho? – soltou de lá um mais folgazão. – Ora! Cadmiração! Por aquei é com ’um porco que tá dentro do chequeiro. No há com’as outras terras! O Rodrigues, porém, insistia: – Poi sim... Mas si que veja o prove do João Perfeiro, do Farrobo, um homem como um teil, que veio arrebentado daquelas terras do fasteio!... Destaca-se também nesta amostra da escrita da fala a ditongação de <i> tónico (“Man’leinho” – Manuelinho, “barreiga” – barriga, “aquei” – aqui, “teil” – til, “fasteio” – fastio). Este ditongo, com semivogal divergente da palatal ou da velar normativas, reencontra-se, p. ex., no estudo acústico sobre o falar do Porto Santo (REBELO, 2005). Sobressai o uso da forma de tratamento com “si”, entre vocabulário típico (“mercar”, “um lameiro” ou “reinando”) e diversos fenómenos fonéticos, como mudanças de timbres, supressões, etc. Realça-se a forma do artigo definido masculino plural “loi” e a monotongação do possessivo “mê” (meu), mas, aqui, antecedido do artigo (“o mê”). Como se verifica, a exploração das particularidades linguísticas registadas deveria ser alvo de uma investigação aprofundada, podendo, crê-se, ter um considerável interesse para o linguista. A reaproximação da Linguística à Literatura merece, assim, para o estudo da variedade insular, uma atenção especial. Além destes três autores mencionados, apontam-se outros por serem, porventura, os que mais ilustram esta estratégia linguístico-literária, recorrendo a uma transcrição linguística reconstruída (ficcionada) que aproxima a grafia da fonia. Decerto, os autores que viveram o período da Revolução dos Cravos, em meados da déc. de 70 do séc. XX, experimentaram uma revalorização de tudo o que se relacionava com o povo. Textos publicados nesse período tenderam, por isso, a sobrevalorizar o falar regional, na sua vertente popular e regional. É o que acontece com Pernas Ceifadas, de Maurício Melim Teixeira, com prefácio de Horácio Bento de Gouveia. Nesta obra, o autor, conferindo-lhe um cunho de realismo, afirma que “[...] a história apresentada se baseia em factos reais [...]. À parte algumas criações minhas, outros arranjos e outra disposição, ela sustenta-se num (entre tantos) caso real, bem funesto da sociedade madeirense” (TEIXEIRA, 1975, 9-10). O pendor realista é ainda salientado por Horácio Bento de Gouveia no prefácio da obra: “A prova evidentíssima reside no conteúdo da novela, no realismo das cenas, no aspecto fónico do linguajar das personagens”. Acrescenta Gouveia, a propósito: “Nota-se uma natural preocupação de gosto pelo termo raro, muitas vezes forçado. Infere-se, da sintaxe, muita leitura, bem que não completamente escoimada dos prejuízos inerentes à busca da verdade linguística” (Ibid., 12-13). Reencontra-se esta tendência nos diálogos que dão conta de um falar divergente do registo normativo (Ibid., 153-154): – Olhe nã repare nesta desarrumação qu’ at’ ia ûa vergonha! ’Tava [sic] acabande d’almoçar, sabe cuma ia... Mas antão o qu’ ia qu’ a trai pro cá? Precisa dalgûa coisa, ia? S’ iu puder ajudar ia só dezer, faça-se de casa, nã faça cirmónia! [...] – Eu gostava de tilfonar... Hesitava. – Pôs ia tilfonar... ora venha daí... largue lá esses acanhamentes... por ’quei, por ’quei... – e balançava-se, afanada. – Sabe qu’ o nosso... quer dizer... o mê pai trancou o tilfone e iu preciso muito tilfonar... desculpe vir incomodar... – Ora essa! Ora essa! Incomodar, proquia? Nã incomoda nada, nem um belisque... Ah, mas o sê pai trancua? Ora essa! – repetia – Mas antão proquia? – [...] – Tudo por causa do mê namorado... O qui é que quer? Ele é assim! Embirrou e agora? É teimoso que nem um jerico! Vá lá entender-se isto! O diabo do homem pendeu prá ‘li e tirem-lho da carcaça! – Ah, e iu a pensá qu’o sinhô Francisque era um home compreensive, honeste! Olhe que nem parece ser o qu’ ia! – estava despeitada – Sabe o qu’ ia: a gente vê, fala, mei nunca ia cuma se vivesse cum ele, nã se lhe conhece ei manhas. Aparências... Olhe menina: nem tude o que luz ia oure! Ora, são todes bons! Homes! Todes iguais, nem um só s’ escapa! Ia tude ûa súcia de bandides, ûa canhalha! Concluía por fim: – Mei vá lá, vá lá, nã demore mais aquei, qu’a meinha c’riosidade já lhe tirua munte tempe. Ia aquei, ia aquei! Pegue, ‘teija à vontade! Neste diálogo, assinala-se, de novo, a ditongação de <i> acentuado (“aquei”, “meinha”), que, porém, nem sempre ocorre (“compreensive”, “bandides”), assim como a de “é” (“ia”), entre múltiplas outras especificidades, como a mudança de timbre de <o> em posição final absoluta ou não (“todes”, “tempe”). Certos traços ocorrem igualmente no conto de Jorge Sumares “Mai Maiores qu’ essei Serras”, que data também do mesmo período de mudança política, assim como de paradigma estético-literário e linguístico, já que foi escrito em finais da déc. de 60 e publicado, parcialmente, em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Não sendo escritor de profissão, Sumares redigiu este texto aproximando os grafemas dos fonemas, ou melhor, as letras dos fones, como se constata da leitura do passo que se recortou da integralidade textual (um diálogo em que se “ouve” apenas uma das duas vozes, um dos dois interlocutores, o idoso popular, marcadamente regional): “Filhos? Tive nove. Seis homes e três melheres. Tudo se criua à conta de Deus. Inté a nossa Rosaira já tava criada cando Deus a chamua à sua devina presença. Já andava nui vinte. Veio-le um bicho no estâmego – lá foi” (SUMARES, 2005, 177). Curiosamente, a ditongação de <i> tónico não se verifica neste excerto, mas ocorre no decorrer do conto (REBELO, 2013). Porém, o fenómeno da ditongação sucede, p. ex., com o fonema [o] (<ou>) em “criua” (criou), “chamua” (chamou). Também sobressai a mudança de timbre vocálico por, na maioria dos casos, assimilação ou dissimilação, o que é evidente em “melheres” (mulheres), “devina” (divina) e “estâmego” (estômago). Dá-se ainda, e apenas, relevo ao plural “nui” (nos), assinalando um traço que é identificado como madeirense, isto é, o plural em <i>. Este fenómeno gerou controvérsia quanto à sua explicação, nomeadamente entre Millet Rogers e Eduardo Antonino Pestana (PESTANA, 1970) (Sintaxe). É indispensável referir que, antes destes autores, Ernesto Leal, no conto com o título homónimo da obra O Homem que Comia Névoa, de 1964, experimentara este exercício, mesmo se, como Ricardo Jardim, não lhe conferiu grande relevo na sua obra. No entanto, não se pode deixar de mencionar, ilustrando esta escrita fónica com um breve trecho (LEAL, 1964, 68-69): Na Portela das Mantas, à hora da névoa da manhã, o vilão grita assim e os sons ficam no ar, a baloiçarem-se: – Ó Maruia!... […] E a viloa responde: – Qu’é? […] – Onde estás, que não te vejo, ca névoa? […] – Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro. Mais uma vez, o <i> tónico surge ditongado (“Maruia” – Maria, “ruiba” – riba) e sobressai enquanto marca madeirense perante fenómenos populares geograficamente mais amplos, como a elisão em “Qu’é?” ou a aglutinação presente em “ca”. Estranhamente, as formas verbais “estás” e “Estou” mantêm-se intactas, quando correntemente se reduzem a “tás” e “Tou”. O mesmo acontece com o ditongo de “não”, que tende a monotongar na oralidade (“nã”). O vocábulo “couves” é, popularmente, por certo, mais empregue com a variante do ditongo “oi”, mas, neste excerto, mantém-se inalterado. Esta observação, aplicada a outros fenómenos e vocábulos, é válida para os restantes autores que seguem o processo de escrever o falar, já que, por vezes, não assinalam traços que se sabe serem comuns no registo da fala. Aliás, isso é notório em Francisco de Freitas Branco, que, embora não tenha escrito textos literários, seguiu esta estratégia em crónicas com alguma literariedade. Orientou-se este autor por uma transcrição alfabética do falar madeirense (da Madeira e do Porto Santo) inconstante e cambiante, muito versátil, como o comprovam a leitura das crónicas “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê Tenho esta Ideia Comeio (Crónica Literária)” e “Ainda nam Teinha Trêzianes, Comecei Cêde: Tentativa para Reprodução Escrita da Fala Viva” (REBELO, 2002a, 2004, 2008, 2013, 2014 no prelo). O processo terá desagradado aos falantes que se sentiram desvalorizados por considerarem que aquela escrita estava repleta de “erros”. Ora, o facto de as transcrições de Freitas Branco se reportarem a pessoas (reais – entidades extratextuais) e não a personagens (de papel e palavras – entidades intratextuais) terá criado equívocos difíceis de resolver, já que estas transcrições queriam sublinhar a riqueza da dinâmica da fala. Parece, então, que, se se sair do plano ficcional, a variedade diatópica continua a ser unifacial. Caberá aos linguistas ultrapassar esta dificuldade, se se pretender que a variedade endógena seja bifacial fora dos limites da Literatura, que, porém, tem continuado a alimentar o processo de transcrição da fala. Mais recentemente, um dos últimos autores que procuraram passar para a escrita o falar dos ilhéus do arquipélago terá sido Lídio Araújo, que recorre, abundantemente, ao processo em Filhos do Mar. A leitura deste livro é animada pelos diálogos recriados, que, além de serem muito enfáticos, como à partida o são os reais, transmitem um colorido local. As marcas do nível popular preenchem o discurso dialógico, como o seguinte excerto o evidencia (ARAÚJO, 2002, 83-84): – Pedro, acorda! Al’vãta-te O [sic: sem ponto] pae leiva-t’ô maar! [...] – O qu’ia pae, ô maar? – Seim! Êu t’prom’tei, um deia. Hôje vaes c’agênte! [...] – Ia ve’dade, pae? – interrogou, incrédulo, arregalando os olhos. – Ia seim! – E a mãe já saabe? – Já! D’spacha-te! Ao ler-se estas deixas das personagens, é como se se ouvisse as pessoas a expressarem-se nos seus modos de falar marcadamente sincopados e com múltiplos fenómenos estudados pela fonética combinatória (Fonética). A supressão de fonemas é assinalada pelo apóstrofo, como em “Al’vãta-te” (Levanta-te) e “t’prom’tei” (te prometi/prometi-te). A duplicação vocálica poderá indiciar vogais longas e/ou com um grau de abertura considerável, representando para o leitor a necessidade de as “dizer” duas vezes (“maar” – mar, “saabe” – sabe), como se houvesse duas vogais/duas sílabas. Este último fenómeno confere melodia ao falar, alongando os vocábulos por parecerem ganhar uma sílaba. Como para os autores já mencionados, além de o nível popular se destacar, surgem também nesta obra de Lídio Araújo particularidades regionais, como a ditongação de <i>, quer oral – “deia” (dia) –, quer nasal – “seim” (sim). Regista-se ainda a da vogal anterior semiaberta, que se encontra, p. ex., em “qu’ia” (que é) e em “leiva” (leva). Poderia alargar-se a exemplificação, mas esta parece ser suficiente para comprovar o valor deste livro, que, através da recriação do autor, reproduz o falar das gentes do mar madeirense de Câmara de Lobos. Nesta síntese, fica claro ser inviável referenciar todas as obras de cunho madeirense (que começam a ser em número considerável) em que o recurso da escrita da fala ocorre. Pelo traço característico que as permite reagrupar aqui, os escritores mencionados e as obras citadas, além de todos os restantes não referidos, aguardam um estudo linguístico aprofundado. Seguindo as pegadas dos filólogos do passado, o linguista do presente, dedicado à variação regional, terá todo o interesse em analisar as diversas transcrições literárias para a representação gráfica do falar insular, que revelam constituir um rico património (REBELO e GOMES, 2014). Muitas vezes, são dados impressionistas (REBELO, 2003, 2011) e intuitivos, já que, p. ex., a palatalização da lateral antecedida de [i] nem é comum (ANDRADE, 1994) nos textos transcritos. No entanto, não se distanciam substancialmente dos que as dissertações de licenciatura apresentaram (MACEDO, 1939; ROGERS, 1940, 1946, 1948; MONTEIRO, 1945, 1950; PEREIRA, 1952; PESTANA, 1954; NUNES, 1965). A título meramente exemplificativo, veja-se, em baixo, a Tabela 1, com algumas representações literárias da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares e Francisco de Freitas Branco. A variação no modo de grafar a vogal indica uma pronúncia particular que cada autor escreve à sua maneira, como a ouve. A tabela foi elaborada a partir de um levantamento de dados anteriormente realizado (REBELO, 2008) e nela facultam-se exemplos, destacando-se a negrito os segmentos a considerar. [table id=95 /] Assim, constata-se que há todo um trabalho de sistematização linguístico-literário a realizar para dar visibilidade à face escondida (a escrita da fala) da variedade insular madeirense, que, todavia, figura em vários textos literários, segundo os critérios individuais dos seus autores. É urgente compará-los para compreender em que pontos são credíveis, ou não, as suas propostas de escrita da fala da variedade diatópica madeirense. Enquanto isso não suceder e não houver interesse em escrever o falar madeirense (os falares madeirenses?), a variedade insular continuará a ser apenas unifacial, sobrevivendo no registo oral, até a comunidade regional assim o desejar.   Helena Rebelo (atualizado a 07.12.2017)  

Linguística Literatura

atividades marítimo-turísticas

As empresas de animação turística são as entidades que exercem regularmente atividades lúdicas, culturais, desportivas ou de lazer, destinadas a turistas ou visitantes. O licenciamento, o exercício da atividade e a fiscalização das empresas de animação turística na Região Autónoma da Madeira (RAM) é regulamentado pelo dec. leg. regional n.º 30/2008/M, de 12 de agosto, o qual subdivide as atividades em três grandes áreas: 1 – Atividades de animação turística geral; 2 – Atividades de animação marítimo-turística; 3 – Atividades de animação turístico-ambiental. As atividades de animação marítimo-turística são as seguintes: passeios marítimo-turísticos organizados; mergulho, escafandrismo, caça submarina e snorkeling; observação e natação com cetáceos; observação de aves; pesca turística ou pesca desportiva; pesca-turismo (pesca artesanal dirigida a turistas efetuada em embarcações de pesca); passeios em submersível; aluguer de embarcações com ou sem tripulação; serviços efetuados por táxis marítimos; esqui aquático, vela, remo, canoagem, windsurf, surf, bodyboard, wakeboard e kite surfing; serviços de natureza náutica prestados mediante a utilização de embarcações atracadas ou fundeadas e sem meios de locomoção próprios ou selados; aluguer de motos de água e de pequenas embarcações dispensadas de registo e outros serviços, nomeadamente os de reboque de equipamento de carácter recreativo. O regime de acesso e exercício da atividade das empresas de animação turística, incluindo os operadores marítimo-turísticos, encontra-se regulamentado pelo dec.-lei n.º 108/2009, de 15 de maio, alterado pelo dec.-lei n.º 95/2013, de 19 de julho e pelo dec.-lei n.º 186/2015, de 3 de setembro. Em 2014, foi publicado o dec.-lei n.º 149/2014 de 10 de outubro, que aprova o Regulamento das Embarcações Utilizadas na Atividade Marítimo-Turística e estabelece as regras aplicáveis às embarcações utilizadas por empresas de animação turística e operadores marítimo-turísticos, no âmbito da atividade marítimo-turística, em todo o território nacional. Na Madeira, as atividades marítimo-turísticas surgiram com o mergulho e a pesca desportiva. O primeiro compressor de ar comprimido apareceu no posto náutico do Clube Naval do Funchal em 1968, clube que no ano seguinte organizou o I Curso de Mergulho Amador, dirigido por João Caldeira, da Federação Portuguesa de Atividades Subaquáticas, e contou com a participação de 40 pessoas e com a colaboração de Jorge de Castro e João Borges, já experientes no mergulho. A primeira escola de mergulho a surgir na Madeira foi o Garajau Madeira Diving, em 1980, no Garajau, propriedade de Rainer Waschkewitz que ficou para sempre associado à conservação e divulgação do mar da Madeira. Juntamente com seu amigo e parceiro de negócios Jorge de Castro, realizaram um sonho de criar a primeira reserva marinha em Portugal, a Reserva Natural Parcial do Garajau, em 1986, pressionando as autoridades e pedindo apoio a personalidades como Jacques-Yves Costeau. No início do séc. XXI, existiam 17 centros de mergulho na RAM, estando 15 localizados na Madeira e 2 na ilha do Porto Santo. A pesca desportiva na ilha da Madeira teve a sua origem com a fundação do Clube Naval do Funchal, em 1952, e a sua adesão à International Game Fish Association (IGFA) em 1953. A partir desta data o Clube Naval passou a estar associado à organização de pequenas provas desta modalidade. Em 1954, António Ribeiro (sócio fundador do Clube Naval) bate dois recordes nacionais de pesca, um a 19 de setembro com a captura de um espadim branco de 37,5 kg e outro a 24 de setembro com a captura de um atum patudo de 94,5 kg. Mas o grande impulso desta modalidade deu-se na déc. de 1970 onde inúmeros recordes foram alcançados, entre os quais o recorde da Europa, conquistado por António Ribeiro, ao capturar um espadim azul de 510 kg em 1977. Embora historicamente a prática desta modalidade esteja associada a este médico que ao longo da sua vida capturou os maiores exemplares de que há memória, nomes como o de Jorge Brum do Canto, realizador cinematográfico e escritor, e Américo Durão, também médico, não podem ser esquecidos, pelo importante contributo que deram para o desenvolvimento desta atividade na região. No início do séc. XXI, ainda existiam recordes mundiais obtidos na Madeira, como o recorde feminino para o espadim azul com 321 kg (708 libras) obtido em 1996 por Nikki Campbell (mulher do lendário pescador de records IGFA Stewart Campbell) ao largo da Madeira. Os fantásticos resultados obtidos no passado, tanto em provas nacionais como internacionais, em muito contribuíram para a dinamização de uma atividade que passou a ser considerada como um produto turístico distintivo da ilha da Madeira, fazendo dela um local único para a prática desta modalidade desportiva. Embora o turismo representasse a principal atividade económica da região, resultado do clima ameno e da posição geográfica privilegiada, a influência da corrente quente do Golfo mantinha a ilha da Madeira na lista dos destinos europeus de eleição para a prática da pesca grossa. Na época de pesca desportiva, que decorre entre os meses de maio e agosto, muitos eram os turistas que viajavam até à ilha da Madeira com a ambição de capturar uma das grandes espécies pelágicas e migratórias, como os espadins e os atuns, entre outros. A primeira empresa de pesca desportiva na Madeira, a Turispesca, surgiu na déc. de 1970 na marina do Funchal; a ela se juntaram outras oito empresas nesta marina e três na marina da Calheta. Na déc. de 1990, assim como nos inícios do séc. XXI, apareceram na Madeira várias empresas de passeios marítimo-turísticos organizados, empresas para observação e natação com cetáceos e observação de aves marinhas, operando em embarcações tão diversas como catamarans, embarcações semirrígidas, veleiros, e mesmo numa réplica em tamanho real da nau Santa Maria, de Cristóvão Colombo, propriedade de Rob Wijntje; este holandês construiu a nau no estaleiro de Câmara de Lobos com a ajuda de calafates locais, lançando-a à agua em junho de 1998. Este Santa Maria tem 22,30 m de comprimento, 3 mastros, o mais alto com 16 m, e foi construído em mogno. Operando com catamarans com mais de 100 pessoas, existiam duas empresas. A empresa VMT Madeira surgiu em 2004 com o nome Prazer do Mar, cujo objetivo inicial era proporcionar aos visitantes da Madeira uma viagem costeira para a observação da beleza morfológica da costa a bordo do seu primeiro catamarã, o Sea Pleasure. Quatro anos mais tarde surge o segundo catamarã, o Sea The Best, aumentando o número de lugares disponíveis para 168. Em 2013, a empresa mudou de nome, lançando a marca comercial VMT Madeira (Viagens Marítimo Turísticas da Madeira), e adquiriu o Sea Nature, um catamarã de dois decks, construído em Lagos, no Algarve, com capacidade para 220 pessoas. Existiam ainda empresas especializadas em nichos como a observação de aves marinhas, das quais se destacam a Ventura do Mar e a Madeira Windbirds. Surgiram igualmente empresas dedicadas a organizar atividades como formação e passeios de vela, canoagem, windsurf, surf e bodyboard. De referir o crescimento que se verificou nos primeiros anos do séc. XXI no que diz respeito a empresas e escolas de surf. Por último, resta mencionar as empresas que se dedicam ao coasteering, atividade que combina rappel, escalada, saltos para o mar, natação e mergulho, tudo numa única atividade que permite descobrir as escarpas sobre as baías, as grutas e os recantos com água translúcida existentes na Ilha. Um dos locais mais procurados para esta atividade é a Reserva Natural da Ponta de São Lourenço onde se pode desfrutar do percurso de coasteering que permite conhecer as belezas naturais da baía d’Abra.   Teresa Mafalda Freitas (atualizado a 09.10.2017)

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