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2ª conferência do teatro "madeira de a a z"

Vem aí mais um final de tarde com as Conferências do Teatro - Madeira de A a Z. É já no próximo dia 15 de Fevereiro às 18 horas no Teatro Municipal Baltazar Dias que prossegue o ciclo das Conferências do Teatro Madeira de A a Z. As conferências pretendem, pela sua regularidade e interesse geral, ser parte do calendário da cidade, envolvendo o público como participante. Com a periodicidade mensal, as conferências, três por sessão, de diferentes áreas do saber, ligam-se a efemérides ou comemorações nacionais e internacionais, contribuindo para consciencializar o público no que toca às suas tradições e memória histórica. Pretendendo-se levar ao público as temáticas tratadas no âmbito da criação do Grande Dicionário Enciclopédico da Madeira, desta feita em destaque a Língua Materna, cujo dia Mundial se comemora a 21 de fevereiro e cuja comunicação estará a cargo da investigadora Naidea Nunes, o assinalar da data de nascimento da escritora Luisa Grande Lomelino (15 de fevereiro), nome próprio da escritora Luzia com comunicação de Cláudia Neves e Armando Correia fechará o painel sob a efeméride do Dia Europeu da Vítima do Crime datado a 22 de fevereiro. Conferência inaugural durante comunicação do Professor José Eduardo Franco

Madeira Cultural Notícias

galerias de arte

Entre os finais do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX, as poucas exposições de arte que ocorreram na Madeira foram organizadas em espaços improvisados. A designação galeria de arte foi usada em 1922, no contexto da primeira exposição de arte moderna que teve lugar no Funchal. Nas décadas seguintes, foram espaços como o Ateneu Comercial do Funchal e a Junta Geral que chamaram a si a organização de exposições. A partir dos anos 60, surgiram projetos privados mais próximos do conceito de galeria, destacando-se as galerias Tempo, Decorama, Mundus, Quetzal, Funchália, Porta 33, Edicarte e Mouraria. Dentro das iniciativas de caráter institucional, merecem registo a galeria da SRTC e o teatro municipal do Funchal. Fora do desta cidade, refira-se a Casa das Mudas, as casas da cultura de Santa Cruz e de Câmara de Lobos e a Galeria dos Prazeres. Palavras-chave: exposições; artes plásticas; artistas. O Grémio Artístico, nos finais do séc. XIX, e a Sociedade Nacional de Belas Artes, a partir de 1901, dominaram o panorama das exposições de pintura e escultura em Portugal, com os seus frequentes “Salões” de inspiração francesa. Na Madeira, em contraste com Lisboa, as exposições esporádicas de que há notícia aconteceram em espaços improvisados de hotéis e casinos da cidade do Funchal. Contudo, o protagonismo dos artistas madeirenses Francisco Franco, Henrique Franco e Alfredo Miguéis, tanto em Lisboa como em Paris, motivou o inesperado aparecimento, embora efémero, da primeira galeria de arte moderna no Funchal, em abril de 1922. A Galeria de Arte do Casino Pavão, como ficou conhecida, foi uma iniciativa do banqueiro e mecenas Henrique Vieira de Castro. Este espaço foi especialmente construído para acolher a, também primeira, exposição de arte moderna na Ilha, e na qual os artistas referidos participaram ao lado dos estrangeiros Bernard England e Madeleine Gervex-Émery, e do aguarelista continental Roberto Vieira de Castro, formando assim o Grupo dos Seis, que deu nome à exposição. Dois meses antes da sua abertura, um artigo no Diário de Notícias do Funchal, anunciando esta inédita exposição, insistia na necessidade de dotar a cidade com museus e galerias de arte, de maneira a promover o necessário e urgente desenvolvimento cultural da Madeira. Apesar das intenções de ali se organizar anualmente uma exposição de arte moderna, tal nunca veio a acontecer. Nesta déc. de 20, encontramos apenas a iniciativa isolada de Adolfo de Noronha que, em 1929, com o apoio da Câmara Municipal, abriu ao público o Museu Municipal do Funchal, que contemplou, nos primeiros anos, uma sala de pintura e escultura, mas que logo se especializou nas ciências naturais. Durante o regime do Estado Novo, o número de galerias privadas a nível nacional foi verdadeiramente exíguo, tendo cabido às instituições do Estado o controlo e organização das exposições artísticas. Nas décs. de 30 e 40, passaram pela Madeira, muito esporadicamente, algumas exposições de pintura organizadas pelo Estado, tendo o átrio da então Junta Geral funcionado como sala de exposições temporárias. Como exemplo, é de mencionar a visita do pintor Alberto de Sousa, que ali expôs em 1934. Às salas de hotéis e casinos que acolheram as exposições no período anterior, acrescentam-se, a partir dos anos 40, espaços não menos provisórios em associações comerciais, clubes, e galerias, que eram mais lojas de antiguidades do que espaços de exposição. Da iniciativa privada, destaca-se o papel dinamizador do Ateneu Comercial do Funchal, que, fundado em 1898, ganhou algum protagonismo cultural, a partir dos anos 30. Durante os anos 40 e 50, o Ateneu promoveu diversas atividades, sobretudo no âmbito da poesia e literatura, através de concursos e prémios. Contudo, é de salientar a criação, em 1936, de um núcleo de fotografia, que promoveu a realização do I Salão de Arte Fotográfica no Funchal, em 1937. Aquando do estabelecimento do museu da Quinta das Cruzes, em 1946, à data conhecido como Museu César Gomes, foi pensada a criação de um espaço que serviria de ateliê a artistas visitantes e um outro que funcionaria como sala de exposições temporárias. Mas tal não aconteceu, a não ser muito pontualmente, pois esta não seria a vocação do museu. A primeira exposição temporária ocorreu em 1949, com a Exposição de Estampas Antigas da Madeira e, durante os anos 50, há notícia de duas mostras, uma do pintor Francisco Maya, em 1953, e outra de desenhos de Egon von der Wehl, no ano seguinte. Para além dos espaços referidos, na sede da Sociedade de Concertos da Madeira ocorreram algumas exposições. Em 1950, foram exibidos 42 trabalhos – entre aguarelas e desenhos de paisagem – de Américo Marinho, pintor de origem continental e, por essa altura, professor da Escola Industrial e Comercial do Funchal. No mesmo ano, foi notícia na revista Das Artes e da História da Madeira uma exposição de aguarelas e óleos de uma pintora inglesa, Bryce Nair, desta vez nas Galerias da Madeira. Este local comercial, situado na esquina da rua 5 de Outubro com a rua Bettencourt, era vocacionado, sobretudo, para a venda de antiguidades. Por sua vez, o Clube Funchalense, entidade de carácter social e cultural, já criada no séc. XIX (foi fundado em 1839), organizava, mormente, bailes e soirées, e só apresentou exposições de arte muito esporadicamente; sendo de destacar, no séc. XX, a primeira exposição individual de Lourdes Castro, em 1955, uma das poucas que realizou na Madeira, e uma mostra de António Aragão, no ano seguinte. A partir dos anos 60, o número de galerias aumentou, em Portugal continental, de forma significativa, passando de três, no início da década, para cerca de 30. Alguns novos projetos seguiram o figurino de loja-galeria ou galeria-livraria, em voga nessa época. Em 1964, é o tempo de inaugurar, na Madeira, o primeiro espaço próximo deste figurino, a Galeria de Artes Decorativas Tempo, sita na rua do Bom Jesus. Iniciativa do Arqt. Rui Goes Ferreira e do escultor madeirense Amândio de Sousa, esta galeria apostou na comercialização de objetos de design moderno e também em exposições temporárias. Na sua exposição inaugural, Sete Pintores Portugueses, foram apresentados trabalhos de Manuel Mouga, Jorge Pinheiro, Espiga Pinto, Manuel Pinto, José Rodrigues, Ângelo de Sousa e Júlio Resende. Num figurino semelhante, merece destaque a abertura da Galeria Mundus, em 1965. Neste espaço comercial foram realizadas as primeiras exposições de arte moderna de uma nova geração de artistas madeirenses. Em 1966, foram expostos desenhos surrealizantes de António Vasconcelos (Nelos) e Humberto Spínola; assim como pintura abstrata de Danilo Gouveia e Ara Gouveia. Por esta galeria passaram também artistas continentais mais ou menos conhecidos, entre os quais António Palolo, que ali expôs individualmente em 1967. Outra iniciativa integrada no conceito de loja-galeria foi a fugaz Decorama, da responsabilidade de João Silvério Cayres. Esta trouxe ao Funchal mobiliário e objetos de gosto contemporâneo, mas cedo deu lugar a uma loja mais vocacionada para mobiliário clássico, mais ao gosto do comprador local. Um projeto ambicioso foi o da utópica Casa do Artista, que partiu da ideia trazida por alguns críticos e galeristas franceses de visita à Madeira por ocasião da II Exposição de Arte Moderna realizada no Funchal, em 1967, entre outros, Victor Lacks e Michel Tapié de Céleyran. A proposta atraiu alguns artistas empreendedores da Região, nomeadamente Amândio de Sousa e António Aragão, que cedo contribuíram para transformá-la num projeto, que chegou a ser apresentado à Junta Geral do Funchal, em 1968. Aquela que parece ter sido a primeira tentativa real para criar uma estrutura cultural de apoio e divulgação das manifestações artísticas de vanguarda, e que incluía um espaço de exposições, próximo do conceito de galeria, acabou por não vingar, por desinteresse das entidades governamentais. Entrados os anos 70, novas intenções de constituir espaços para a exposição de arte moderna foram surgindo, mas não tiveram continuidade. Lembremos o caso da Sociedade de Empreendimentos Turísticos Matur, que organizou duas exposições em 1973, uma com artistas locais e outra com convidados do continente. O objetivo era criar um museu/galeria no Hotel Atlantis, pertencente àquele grupo, mas a ideia não vingou. No pós-25 de Abril, as anteriores iniciativas privadas foram desaparecendo. O Governo Regional, através de algumas galerias institucionais, foi promovendo o desenvolvimento dos espaços expositivos. Foi o recém-criado Instituto de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM) que se constituiu como uma das alternativas mais atuantes ao longo das décs. de 80 e 90. Na sua sede, na rua da Carreira, foi criada uma pequena galeria de exposições aberta ao público, onde foram realizadas inúmeras mostras escolares e, com alguma frequência, exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros. Em simultâneo, a galeria da Secretaria Regional do Turismo e Cultura (SRTC), situada na avenida Arriaga, e conhecida localmente como Galeria do Turismo, desempenhou um papel importante ao longo das décs. de 80 e 90 na realização de exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros, tirando partido da sua localização privilegiada no centro da cidade, o que permitiu uma afluência considerável de visitantes. Por outro lado, e no mesmo período, o salão nobre do teatro municipal Baltazar Dias também acolheu numerosas e diversificadas iniciativas apoiadas pela Câmara Municipal do Funchal, em estreita colaboração com várias instituições, sobretudo com o ISAPM e o Cine Forum do Funchal. Ainda na déc. de 80, e em diálogo com as instituições acima mencionadas, assiste-se ao aparecimento de alguns espaços de iniciativa privada, hoje desaparecidos, tais como a galeria Quetzal, em 1981, e a galeria Funchália, em 1989. A primeira, da responsabilidade de Francisco Faria Paulino, e associada a uma editora homónima, trouxe ao Funchal exposições de artistas portugueses contemporâneos. A Quetzal não abriu portas em local próprio, tendo sido as suas exposições montadas em espaços como o teatro municipal Baltazar Dias, o Museu de Arte Sacra do Funchal, e a galeria da SRTC. No contexto da sua atividade como galerista, Francisco Faria Paulino foi também o principal responsável, em 1987, pelo Festival de Arte Contemporânea MARCA-Madeira, evento inédito no Funchal que contou com a participação de 31 galerias portuguesas e incluiu um congresso de arte contemporânea, entre outras ações paralelas que muito dinamizaram o ambiente artístico regional, por esses anos. Por sua vez, a galeria Funchália foi inaugurada no centro comercial Eden Mar sob a direção de Manuel Brito, Maurício Fernandes e Rui Carita, entre outros. De iniciativa local, esta galeria constituiu a primeira iniciativa com sede própria dedicada à arte contemporânea local e nacional. Ali foram organizadas um total de 31 exposições, sete das quais com artistas locais, tendo cessado a sua atividade em 1994. Expuseram na Funchália artistas como Helena Vieira da Silva, Celso Caires, João Moreira, André Sander, Cruzeiro Seixas, Rocha Pinto e António Botelho. Preenchendo o vazio deixado pelo encerramento da Funchália, o galerista Francisco Faria Paulino propôs um novo projeto, desta vez com sede própria: a galeria Edicarte, inaugurada em 1996, com sede na rua dos Aranhas, e que foi responsável pela realização da segunda e terceira edições do festival MARCA-Madeira onde, uma vez mais, estiveram representadas importantes galerias portuguesas. Ainda nos anos 90, regista-se a abertura de uma delegação, na zona turística do Caniço, da galeria Falkenstern Fine Art, sediada na ilha de Sylt, na Alemanha, vocacionada para mostrar trabalho de artistas estrangeiros de passagem pela Madeira e também do seu fundador, Siegward Sprotte. No começo do séc. XXI, a sede alemã continua em atividade, mas a delegação da Madeira, aberta em 1991, revelou-se um projeto efémero. Um caso à parte é a galeria Porta 33, criada em 1989 e ainda em funcionamento. Concebido, nos seus estatutos, como associação cultural, este espaço tem trazido ao Funchal nomes importantes da arte contemporânea. Para mais, tem desenvolvido com alguns artistas projetos específicos de exposição; tem promovido o debate com críticos convidados de âmbito nacional e internacional; e tem organizado diversos workshops e palestras. A Porta 33 trouxe ao Funchal obras de artistas de recorte nacional como Graça Pereira Coutinho, Ilda David, João Penalva, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Pedro Croft e Pedro Calapez. De entre os artistas locais ou madeirenses que fizeram carreira no exterior, destacam-se Lourdes Castro, António Aragão, Rigo, António Dantas e Rui Carvalho. Esta galeria também tem participado em feiras de arte internacionais, tais como a ARCO, em Madrid. No dealbar do séc. XXI, foi inaugurado um novo espaço comercial, a Galeria Mouraria, da responsabilidade de Ricardo Ferreira, e que trouxe ao Funchal algumas coletivas com representantes do contexto nacional, apresentando obra de artistas locais, assim como desenvolvendo a iniciativa project room, com mostras de carácter mais experimental. Alguns dos artistas que a galeria representou individualmente ao longo da sua existência foram reunidos numa coletiva comemorativa do seu 10.º aniversário, em 2011, a saber: Cristina Perneta, Filipe Rodrigues, Guareta, Hernando Mejia, Marcos Milewski, Maria São José, Patricia Morris, Roberto Bolea, Sílvio Sousa Cró e Trindade Vieira. Meses depois, este projeto galerístico fechou portas. O início do séc. XXI viu desaparecer a galeria da SRTC, em 2006, pondo-se assim fim a um intenso trabalho de divulgação e dinamização cultural no centro da cidade. Um ano antes, fora também encerrado o Centro Cívico Edmundo Bettencourt, situado na rua Latino Coelho, e cuja ação foi muito menos marcante do que a daquela galeria, por se ter resumido a exposições coletivas de pouco impacto e com critérios de organização pouco consistentes. Fora do Funchal, outros espaços, sob a tutela das autarquias locais, foram cumprindo a missão de organizar exposição de artes plásticas, complementando assim o trabalho das poucas galerias privadas que se foram mantendo em atividade. É exemplo a Casa da Cultura de Santa Cruz, cuja atividade profícua teve como coordenadores José Baptista e o escultor António Rodrigues, e que apresentou, ao longo dos anos 90, para além de inúmeras coletivas, mostras individuais de António Aragão, Hélder Baptista e Lagoa Henriques. Por sua vez, e sob a coordenação de Paulo Sérgio BEJu, a Casa de Cultura de Câmara de Lobos privilegiou, entre 2005 e 2010, as mostras coletivas em formato de instalação, com propostas temáticas que desafiavam a criatividade dos aristas convidados. Para além destas, foram apresentadas mostras individuais de artistas locais, tais como Teresa Jardim, Domingas Pita e Rita Rodrigues. Neste contexto, é importante destacar o papel da Casa das Mudas, Casa da Cultura da Calheta, inaugurada em 1997, coordenada por Luís Guilherme Nóbrega até 2007. Esta galeria aproveitou a sua localização para operar uma descentralização cultural e uma ação direta no meio. Alguns dos artistas ali apresentados foram José Manuel Gomes, Lígia Gontardo, Élia Pimenta e Ara Gouveia, do contexto local, e Alberto Carneiro, António Palolo e José de Guimarães, do contexto nacional. Este espaço privilegiou também a linguagem fotográfica, trazendo à Madeira mostras coletivas e individuais neste âmbito, assim como mostras de importantes coleções de fundações nacionais, como a da Fundação Serralves. Uma outra iniciativa descentralizadora é a que levou à criação da Galeria dos Prazeres, inaugurada em 2008 e orientada por Patrícia Sumares até 2012. Trata-se de um projeto galerístico inserido na Quinta Pedagógica dos Prazeres, uma iniciativa, por sua vez, de origem paroquial e com carácter recreativo e cultural. A galeria propriamente dita pauta-se por uma estreita ligação com natureza e com o património local, privilegiando exposições de artistas locais e estrangeiros que desenvolvem propostas artísticas nesse sentido. A partir de 2013, a galeria passou a ser coordenada por Hugo Olim, artista visual e docente na Universidade da Madeira. Nesse espaço, destacam-se, para além de artistas estrangeiros, as mostras individuais de artistas locais como Carla Cabral, António Dantas, Paulo Sérgio BEju, Jose Manuel Gomes, Filipa Venâncio, Ara Gouveia, Martinho Mendes e o Arqt. Paulo David.   Carlos Valente (atualizado a 01.02.2017)

Artes e Design Cultura e Tradições Populares Educação Madeira Cultural

cinco artistas vagabundos (os)

A 2 de agosto de 1916, o Diário da Madeira anunciava, para breve, o aparecimento nas suas páginas de “uma interessante narrativa que sairá aos folhetins” e cuja autoria era atribuída a “cinco rapazes d’esta terra, bons cultivadores de literatura” (Diário da Madeira, 2 ago 1916). Entre 4 de agosto e 12 de setembro de 1916, este diário funchalense dava à estampa vários capítulos desse folhetim, provocatoriamente intitulado Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos. Contada por 5 Autores Absurdos e Todos Verdadeiros. Esta novela constitui um interessante contributo madeirense para o debate estético e ideológico que na déc. de 1910 decorria em Portugal, sobretudo depois da publicação de Orpheu em 1915, mas também nos principais centros culturais da Europa, então assombrados pela Primeira Guerra Mundial e pelas propostas modernistas de vanguarda. Embora praticamente esquecida nas páginas do Diário da Madeira ao longo de todo o séc. XX e só reeditada no início do séc. XXI, Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos. Contada por 5 Autores Absurdos e Todos Verdadeiros foi, porém, noticiada quer por Cabral do Nascimento logo em 1917, quer por Alfredo de Freitas Branco, já em 1953. O primeiro fê-lo na lista bibliográfica de obras de sua autoria que publicou na abertura do livro de poesia Hora de Noa, editado no ano seguinte à edição do folhetim. Nascimento assume-se aí como um dos coautores dessa narrativa, identificando os companheiros que, com ele, haviam assinado o folhetim: A. de Freitas Branco, Álvaro Manso, Luiz Vieira de Castro e Manoel de Lins. Alfredo de Freitas Branco, por sua vez e então já assinando como Visconde do Porto da Cruz, reportava-se, no seu Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, a esses “escritos” “muito revolucionários” publicados no Diário da Madeira e que “fizeram sensação” no verão funchalense de 1916, sobretudo “pela extravagância e irreverência”, embora apresentando uma lista autoral diferente da enunciada por Cabral do Nascimento, em 1917. De acordo com Freitas Branco, “Os Cinco Artistas Vagabundos” tinham sido “um grupo de estudantes universitários e de escritores” composto por “João Cabral do Nascimento, Luís Vieira de Castro, Álvaro Manso de Sousa, Rodolfo Ferreira e eu” (PORTO DA CRUZ, 1953, 8-9). Verificamos, assim, que a complexidade conferida à novela dos Cinco Artistas Vagabundos, desde logo pelo carácter coautoral da sua composição e pela estrutura fragmentária da publicação em folhetim, será adensada por três irónicas ocorrências que se prendem com as assinaturas autorais: (1) o facto de não serem coincidentes as indicações autorais dadas por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco, pois enquanto este não refere Manoel de Lins, identifica Rodolfo Ferreira, nome que, por sua vez, não está presente na lista de Nascimento; (2) o facto de nenhum destes dois últimos nomes ser detetável em trabalhos de referência que se tenham ocupado da identificação de autores do sistema literário madeirense; (3) o facto de nenhum dos fascículos do folhetim ser afinal assinado por qualquer dos nomes identificados por Nascimento e pelo Visconde do Porto da Cruz. Por conseguinte, duas questões se colocam relativamente à autoria deste folhetim: quem é Manoel de Lins e/ou Rodolfo Ferreira? E quem, de entre as duas listas de escritores apresentadas por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco, é de facto responsável pela criação de cada uma das figuras autorais que assinam a Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos? As respostas a estas questões exigem a leitura atenta do próprio folhetim, assim como o cruzamento dos seus fragmentos com outros textos e trabalhos artísticos. Ao longo do verão de 1916, os funchalenses foram conhecendo as escritas de cinco supostos novos autores que, desde o título do folhetim autobiográfico (semificcional, acrescente-se, desde já), se autodefiniam como “vagabundos, absurdos, mas todos verdadeiros”, sendo aqui de destacar o duplo sentido de “vagabundo”, significando andarilho à deriva, mas também mendigo, marginal que se exclui e/ou é excluído do meio social, económico e cultural em que vive. Os seus nomes estranhos e os parcos dados autobiográficos referidos na novela conferem a alguns dos “artistas vagabundos” uma nacionalidade estrangeira, evidenciando-se nas suas escritas e nos seus percursos de vida um manifesto registo cosmopolita e moderno: Ismael de Bó é um poeta luso-judeu; Enrick Porchá, um contista húngaro; Rogério Lehusen, um músico experimentalista sem nacionalidade atribuída, mas não português em exclusivo, dado o sobrenome; Diogo de Eiró, um escritor saxão; e Ymário Koman ou Imário Koman, o “paradoxal e estranho desenhador polaco”, como a ele se refere Ismael de Bó numa passagem do folhetim (BÓ, 1916a, 2). O conjunto destes cinco artistas acompanha a líder do grupo, Collecta de Nylves, uma “femme artiste” atenta a tudo o que de novo ocorria no mundo, uma intelectual com vida amorosa e social pouco convencional e, por conseguinte, representando na fábula a figura da emancipada mulher moderna, enquadrável na vanguarda da primeira fase dos movimentos feministas ocidentais que na déc. de 1910 se consolidavam também em Portugal. Desta forma, a novela dá conta de uma suposta aventura cosmopolita, de deriva excêntrica e transnacional, realizada pelo grupo dos seis intelectuais diletantes que, entediados e sempre em busca de experiências-limite e do novo, percorrem algumas das mais relevantes metrópoles da Europa, do Médio Oriente, da Índia e da América Latina, assim como espaços que, desde 1914, se encontravam intimamente associados à Grande Guerra. Alternadamente, os “cinco artistas vagabundos” assinam 16 capítulos dessa novela, distribuídos de forma irregular por quatro secções, destacadas no Diário da Madeira como tratando-se de três volumes e um livro. Acresce a esses 16 capítulos um último fascículo autónomo, o qual, na economia da narrativa, funciona como epílogo, justamente por não surgir numerado e por narrar o suicídio de um dos artistas, Enrick Porchá, incidente que justifica o fim da própria novela (cf. Fig. 1). Com o folhetim, dialogam, no entanto, outros textos: uns atribuídos às figuras autorais que assinam a novela; outros aos autores madeirenses que efetivamente as criaram (Cabral do Nascimento, Funchal, 1897-Lisboa, 1978; Luiz Vieira de Castro, Funchal, 1898-Lisboa, 1954; Álvaro Manso, Funchal, 1896-1953; e Alfredo de Freitas Branco, Funchal, 1890-1962; lista a que deveremos acrescentar Ernesto Gonçalves, Funchal, 1898-1982, pelas razões que adiante apontaremos). Estabelece-se, deste modo, uma constelação de textos, cuja leitura exige a adoção de um paradigma hipertextual, sobretudo quando se pretende desvendar a identidade do criador de cada um dos cinco artistas vagabundos. A esta constelação pertence, para além dos textos acima indicados, um outro conjunto de textos em número considerável, com autorias dificilmente identificáveis, e que foram também publicados no Diário da Madeira, entre 1916 e 1918 (cf. Fig. 2). Novela Romântica e Burlesca apresenta-se, portanto, como uma narrativa autobiográfica, num processo criativo altamente irónico, cujo sarcasmo já se anuncia no título. Esta ironia sarcástica exigirá do leitor uma redobrada atenção crítica, manifestando-se, desde logo, no caráter autobiográfico da narrativa conjunta, na medida em que alguns dos dados biográficos atribuídos aos “cinco artistas vagabundos” são totalmente ficcionais, enquanto outros se apresentam como acontecimentos/vivências efetivamente experienciados por Cabral do Nascimento, Ernesto Gonçalves, Luís Vieira de Castro, Alfredo de Freitas Branco e Álvaro Manso de Sousa. Ismael de Bó, já apresentado por Cabral do Nascimento quer em As Três princesas Mortas num Palácio em Ruínas (NASCIMENTO, 1916b, 21), quer em “Carta a alguém que nunca viu a Madeira. Ismael de Bó – Judeu errante da Belleza”, surge no folhetim ora como um poeta luso-judeu que compõe versos sobre “Les trois Princesses [qui] sont mortes” (BÓ, 1916a, 2), ora como autor do polémico livro Princesses of Thule (em suposta tradução inglesa) e que, para além disso, se encontrava implicado no debate sobre as vanguardas modernistas, protagonizado, em Portugal, pelo grupo de Orpheu. Quer a referência à origem judaica de Ismael de Bó, quer as irónicas citações da sua obra poética, nas quais encontramos uma evidente alusão a As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, primeiro livro de Cabral do Nascimento, editado em 1916, onde as protagonistas são apontadas como sendo também “as três Princesas de Tule” (NASCIMENTO, 1916b, 10), quer ainda a referência à participação desse “artista vagabundo” nas polémicas em torno das vanguardas, conduzem a uma identificação parcial de Ismael de Bó com João Cabral do Nascimento. Isto não invalida, porém, que a maior parte das aventuras narradas no folhetim e que são protagonizadas pelas personagens que o assinam sejam, de facto, ficcionais. Quanto ao “juvenilíssimo Diogo” de Eiró, este “escritor saxe” que, “uma vez em Coimbra, se declarará integralista fervoroso”, é apontado como um autor fascinado pelo “seu querido Oscar Wilde” (BÓ, 1916a, 2). Além disto, no primeiro capítulo do vol. II do folhetim, cuja autoria é atribuída ao próprio Eiró, este surge como o “gentil” anfitrião dos restantes “artistas vagabundos”: acolhe-os, durante “um mês divino”, no seu “sumptuoso palácio” indiano de Tuticorin, embora no “derradeiro” momento da partida, tenha sido tomado pela “miséria exquisita e aristocratica da sua nevrose”, a qual o leva a incendiar o próprio palácio (EIRÓ, 1916b, 2). Os atributos de “juvenilíssimo”, de “integralista fervoroso” e de anfitrião/mecenas dos “cinco artistas vagabundos” levam-nos a associar a figura de Diogo de Eiró a Luiz Vieira de Castro. Lembremos a atividade mecenática e filantrópica desenvolvida pela família Vieira de Castro nas primeiras décadas do séc. XX na Madeira, sobretudo pelo pai, Henrique Viera de Castro; e não esqueçamos que Luiz Vieira de Castro, com 18 anos em 1916, era, na verdade, um dos mais novos do grupo criador do folhetim, tendo desenvolvido, nos seus anos de estudante em Coimbra, uma intensa atividade política que o levaria, e.g., em 1921, a fundar o semanário monárquico Restauração, uma vez mais em parceria com Cabral do Nascimento e Ernesto Gonçalves, entre outros jovens madeirenses. Por outro lado, um artigo de Cabral do Nascimento, publicado em 1918 no Diário da Madeira, confirmará a veracidade dessa pista em torno da identidade do criador da personalidade ficcional Diogo de Eiró. Indicando Luiz Vieira de Castro como um admirador de Oscar Wilde e como autor de três livros – Nebuloses (1916), Livro estranho (1916) e Civilisados (1918) –, Cabral do Nascimento destacará, neste último, o “melhor trabalho” de Vieira de Castro: “o conto ‘A ultima labareda’” que, como declara Nascimento, era “o entrecho da nossa novela de colaboração, dos cinco artistas vagabundos e absurdos” (CABRAL, 1918, 1). Deste modo, o autor de As Três Princesas Mortas… confere a Luiz Vieira de Castro o engendramento do estranho episódio do incêndio do palácio de Tuticorin, reconhecendo no escritor de Civilisados, implicitamente, também o criador da figura autoral de Diogo Eiró. Por seu lado, Rogério Lehusen surge na novela como o músico, “o compositor genial e rebelde, duma incompreensível transbordação de talento”, que estaria a preparar com Ismael de Bó uma “opera quase a terminar” (BÓ, 1916a, 2). De entre os autores madeirenses apontados por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco como responsáveis pela criação dos “cinco artistas vagabundos”, o único que aparece implicado nas artes performativas é Álvaro Manso de Sousa. Luiz Peter Clode lembra que, para além de escritor e arquivista, este intelectual funchalense se dedicava “também à música e teatro”, tendo deixado, entre outras obras, quer “algumas peças de teatro para amadores, como dois “Vaudevilles”, quer “letra e música sacra” (CLODE, 1983, 299). Mas outro facto reforça a identificação de Rogério Lehusen com Álvaro Manso. Lehusen é apresentado no folhetim como criador que trabalha em parceria com Ismael de Bó, o “artista vagabundo” criado/identificado com Cabral do Nascimento. Esta referência pode ser lida como uma irónica transposição para a fábula da relação de amizade e de trabalho conjunto que, de facto, Álvaro Manso e Cabral do Nascimento desenvolveram entre si, desde muito cedo e ao longo da vida. Cooperaram na fundação do Arquivo Distrital do Funchal, nos anos de 1920 e 1930; e, no início da déc. de 1920, e.g., publicaram no semanário Restauração uma narrativa conjunta, também editada em folhetim. No caso de Ymário Koman ou Imário Koman, a novela apresenta-o como um “paradoxal e estranho desenhador polaco”, compositor de uma obra intitulada Bailarina Nua, na qual a excelência da sua criação plástica consegue dar visibilidade ao “ritmo oriental das curvas coreográficas e serenas” dessa bailarina (BÓ, 1916a, 2). As notas biobibliográficas que hoje dão conta do percurso de Cabral do Nascimento, Alfredo de Freitas Branco, Luiz Vieira de Castro e Álvaro Manso de Sousa não nos indicam que estes intelectuais insulares tenham desenvolvido qualquer trabalho criativo na área das artes visuais. Este facto leva-nos a supor que Ymário Koman, o responsável pela representação verbal (mas quase plástica, pela capacidade sugestiva do seu discurso descritivo) do incêndio do palácio de Tuticorin, é o “artista vagabundo” criado por Rodolfo Ferreira ou por Manoel de Lins. A respeito deste último, importa sublinhar que o seu nome surge também inscrito em Novela Romântica e Burlesca como o de uma personagem: Manoel de Lins é o “escritor” evocado por Collecta de Nylves, por ter inspirado uma “paixão dolorosa” nesta mulher “inteligente” e só comparável a “Ana Clara” (BÓ, 1916a, 2). O cruzamento deste facto com o desconhecimento de qualquer informação que comprove a existência empírica de um cidadão com o nome Manoel de Lins indicia estarmos, também neste caso, perante uma ficcionalização autoral, inscrita na novela, como acontece com os “cinco artistas vagabundos”. Quanto a Ymário Koman, será Cabral do Nascimento quem, uma vez mais, decifra o mistério da sua criação. No mesmo artigo de 1918 em que atribui a Luiz Vieira de Castro a autoria de Diogo de Eiró, Cabral do Nascimento aplaudirá a qualidade da escrita de Ernesto Gonçalves, classificando-o como um dos mais notáveis escritores da “novíssima geração” literária madeirense. Isto, sobretudo, por encontrar em Ernesto Gonçalves “um pintor, um debuxista botticelino, um Moreau”, caracterização que, de imediato, nos faz evocar as capacidades plásticas da escrita assinada por Ymário Koman. E, prosseguindo no comentário à obra deste “novíssimo” madeirense, acabará por documentar o elogio dirigido a Ernesto Gonçalves transcrevendo um fragmento que atribui a este autor, mas sobre o qual se apressa a anotar, não sem ironia: “Duma novela que publicámos neste jornal, a colaboração dele sobressai com notável relevo. Certamente passou despercebida, mas transcrevemos-lhe um trecho, para documentação do que vimos dizendo […]. O período citado, escrito há dois anos – teria o autor 18 de idade – revela qualidades tão notáveis” (CABRAL, 1918, 1). Se a citação feita por Cabral do Nascimento no Diário da Madeira, de facto, documentava a qualidade da escrita agora atribuída a Ernesto Gonçalves, o irónico comentário do autor de Hora de Noa a respeito dessa citação deve também ser lido como testemunho que documenta a identificação do criador de Ymário Koman. Na verdade, o fragmento textual atribuído, em 1918, a Ernesto Gonçalves, pelo seu amigo Cabral do Nascimento, corresponde a uma passagem de Novela Romântica e Burlesca, mais concretamente, a um fragmento do cap. II do vol. II, assinado por Imário Koman. Uma coincidência que confirma, assim, a afirmação, também expressa por Cabral do Nascimento, de que Ernesto Gonçalves fora um dos ativos participantes no projeto folhetinesco dos “cinco artistas” “absurdos”, mas “todos verdadeiros”. Resta Enrick Porchá, o contista “incoerente”, sempre “achando um encanto superior na elegância perversa de irritar a burguesia” (BÓ, 1916a, 2), cuja pena ridicularizará, de acordo com a fábula da novela, os britânicos James Cook e Edward Trifler (personagens que, não inocentemente, surgem assim nomeadas na novela) e cujo perfil, até por exclusão de partes, permite associá-lo ao jovem polemista Alfredo de Freitas Branco, que desde cedo, mas sobretudo durante os anos da Segunda Guerra Mundial, viria a assumir-se como um inequívoco germanófilo. Confirma-se assim que os “cinco artistas vagabundos”, autores absurdos da Novela Romântica e Burlesca, foram, de facto, figuras autorais identificáveis, em parte, com “5 autores” “verdadeiros”: Cabral do Nascimento, Alfredo de Freitas Branco, Álvaro Manso de Sousa, Luiz Vieira de Castro e Ernesto Gonçalves. Por seu turno, o carácter absurdo que os próprios autores atribuem à sua escrita narrativa não deve ser descontextualizado, mas antes lido como mais uma das provocações irónicas e questionadoras que marcam a ação cultural deste grupo de jovens intelectuais madeirenses, sobretudo na segunda metade da déc. de 1910, quando nos principais centros culturais portugueses e europeus se discutiam a(s) modernidade(s) e os modernismos. Os “artistas vagabundos”, em 1916, nas páginas do Diário da Madeira e antecipando um pouco o que, entre 1918 e 1933, os Artistas Independentes experimentariam, nas suas tertúlias do café Golden, procuravam criar condições para, também na Madeira, se discutirem esses problemas e essas propostas modernas. Não por acaso, dois dos “artistas vagabundos” (João Cabral do Nascimento e Ernesto Gonçalves) fizeram também parte do grupo eclético dos Artistas Independentes, que integraria outros criadores insulares e visitantes temporários da Madeira: Henrique Franco, Francisco Franco, Alfredo Miguéis, Emanuel Ribeiro e João Abel Manta.   [table id=80 /]   [table id=81 /]     Ana Salgueiro (atualizado a 28.01.2017)    

Literatura Madeira Cultural

ateneu comercial do funchal

Fig. 1 – Capa do jornal Re-Nhau-Nhau (Funchal, 4 abr. 1935). O Ateneu Comercial do Funchal (AtCF) surgiu em nome dos interesses dos empregados do comércio a 8 de dezembro de 1898, sendo os seus estatutos votados só a 8 de janeiro de 1899 e o alvará que os aprovou datado de 22 de dezembro do mesmo ano. Em fevereiro de 1895 fundou-se a Associação de Socorros Mútuos dos Empregados do Comércio, que acabaria por ter uma curta duração, pois em abril do ano seguinte terá sido decidido exonerar os sócios que não pagavam as quotas; alguns destes membros, inseridos num grupo de empregados do comércio, estiveram na origem da criação do futuro Ateneu. Em novembro de 1897, alugaram um quarto ao número 14 da Rua da Sé, com os objetivos de se distraírem nas horas vagas e difundirem palestras educativas, levando assim ao nascimento de uma associação de classe. Os empregados pretendiam também encontrar proteção e apoio na defesa dos seus interesses junto dos patrões. Sob o impulso dos seus principais promotores, empenharam-se na recolha de um avultado número de adesões entre os seus colegas, abrindo, assim, caminho para a primeira reunião, na qual ficou deliberado nomear-se uma comissão para se constituir uma associação da respetiva classe profissional. O grupo reunia-se frequentemente no escritório de comissões de Júlio A. de Carvalho, à Rua do Sabão, e em estabelecimentos comerciais, em assembleias que somavam o empenho de vários colaboradores, o que permitiu que, em pouco tempo, fosse concretizada a aspiração de fundar uma agremiação para defesa dos empregados do comércio. À época debatiam-se, na sociedade local, questões relacionadas com a construção de um jardim no espaço do demolido Convento de São Francisco e do Teatro Municipal (inaugurado em 1888 com o nome de Teatro D. Maria Pia), a par de temas políticos. É neste contexto que nasce, em 1898, o AtCF, associação cujos membros lutam pela concretização daquilo que consideram serem as aspirações dos madeirenses. A atividade do AtCF abarca, assim, não só a defesa dos interesses dos empregados do comércio, mas também o domínio intelectual e o âmbito das obras de utilidade pública, procurando contribuir, dessa forma, para o progresso social da Madeira. Desde a sua fundação até 1900 o Ateneu funcionou no segundo andar do número 24 da Rua Direita, mudando-se, depois, para o número 3 do Largo da Sé, onde permaneceu até 1905. Nesse ano, transferiu-se para o número 108 da Rua dos Ferreiros, onde passou a dispor de instalações mais cómodas e capazes de permitirem o alargamento das diversas iniciativas. Com mais de 90 sócios fundadores, era constituído por personalidades influentes como César de Oliveira, Francisco António Ribeiro, João Maria Valente, Manuel Dias Tavares, Agostinho Dias Tavares, Luís Canuto Gonçalves, Vasco M. de Ornelas, João Gonçalves Farinha, João Pereira Martins, José de Freitas, Manuel Marques Júnior. Júlio A. de Carvalho, que acompanhava os acontecimentos do Ateneu Comercial de Lisboa, foi apontado como impulsionador deste projeto; Vieira de Castro, delegado do Banco de Portugal, fez a redação dos estatutos conforme os do Ateneu Comercial de Lisboa (AtCL) e tratou da sua aprovação. O Ateneu recebeu influências do AtCL, fundado a 10 de junho de 1880, bem como da Sociedade Nova Euterpe – que, em 1884, adotou o nome de Ateneu Comercial do Porto – e do Ateneu Popular, inaugurado em Coimbra em 1885. Segundo José Laurindo de Goes, a partir de 1850 surgiram, por toda a Europa, diversas coletividades com a designação de ateneu, bebendo a sua inspiração da antiguidade clássica Madrid, Roma, Londres ou Paris são exemplo dessa realidade. Fig. 2 – Imagem da simbologia do Ateneu Comercial do Funchal Para Jaime Vieira dos Santos, os fundadores destas coletividades eram homens de amplos horizontes, já que, para além dos proveitos resultantes da atividade comercial, tinham em vista ser homens de cultura, dignificando a sua profissão e elevando o seu espírito. Procuravam a sua própria valorização intelectual, bem como a de todos os membros do Ateneu e respetivas famílias. O comerciante não poderia ser um simples burguês boçal e inculto, mas deveria ser um verdadeiro homem de sociedade, que, ao lado das preocupações do lucro, se interessava também pelos acontecimentos que marcavam a realidade à sua volta Na Madeira, vivia-se um moderado progresso comercial e uma agitada discussão sobre os fundamentos da instauração da República, com vários títulos dedicados à causa republicana, bem demonstrativos do envolvimento e da participação da população na vida política da Ilha. Rafael Bordalo Pinheiro descrevia a época através de uma caricatura que apresentava o vilão madeirense, vestido a rigor, a segurar o deputado Manuel de Arriaga, enquanto pontapeava Fontes Pereira de Melo, chefe do governo da época. Para republicanos como Teófilo Braga, as comemorações camonianas realizadas no Ateneu significavamo começo de uma era nova da democracia portuguesa. A história desta instituição reparte-se em três fases. A primeira, desde a fundação até 1925, consiste sobretudo na sua afirmação enquanto coletividade. É a fase embrionária, marcada pelo entusiasmo dos membros do Ateneu, na qual assumiram grande significado as reivindicações sócio económicas dos anos 20. A segunda fase inicia-se em 1925, com a elaboração dos segundos estatutos, e prolonga-se até aos anos 60, sendo conhecida como o período áureo do AtCF pelos acontecimentos que nesta altura se despoletaram; considerada uma fase mais intelectual que sindical, atinge o seu clímax na década de 50. A terceira fase, iniciada nos anos 60, reflete algum esmorecimento das iniciativas, mantendo-se, no entanto, a realização de atividades como a Festa da Flor. Nos seus primeiros estatutos, o AtCF definia-se como “uma associação de instrução profissional, física e recreativa, representação e proteção mútuas, criada pelos empregados do comércio”, que tinha como finalidade proporcionar a “aquisição de conhecimentos teóricos e práticos que mais diretamente interessem à profissão do comércio em geral” (GOES, 1985, 128). Não se limitaria a agremiar empregados e a zelar pelos seus interesses, mas teria objetivos mais ambiciosos, os quais compreendiam os campos da cultura e da arte. Ao mesmo tempo, pretendia ser um espaço de descanso e partilha de opiniões. O projeto do AtCF visava a valorização intelectual dos associados e respetivas famílias, o que passava pela criação de escolas primárias para os filhos dos seus membros, por cursos de aperfeiçoamento linguístico para os sócios, por lições para o melhoramento da técnica comercial, por conferências sobre arte e literatura, por sessões científicas e palestras, pela ampliação progressiva da sua biblioteca, pela criação de divertimentos – como as tardes dançantes, festas de carácter regional, matinées destinadas às crianças, representações de pequenas peças teatrais – e por outras iniciativas que contribuíssem para estreitar os laços de solidariedade no interior da classe profissional. Seriam estas as linhas gerais estatutárias que algumas direções do AtCF procurariam concretizar ao longo dos tempos. Na qualidade de primeiro presidente da direção do Ateneu, entre 1898 e 1900, Sabino Joaquim Rodrigues procurou promover o desenvolvimento intelectual e social da vida da agremiação, zelando pelo melhoramento do nível de instrução dos seus sócios. Em fevereiro de 1899, inauguraram-se aulas ministradas por personalidades como Manuel Augusto Martins, Francisco Correia Caldas e Jaime Campos Ramalho. Em 1901, nos mandatos de José de Freitas e de Maximiano de Sousa Rodrigues, destacam-se a realização de uma exposição industrial e de uma récita no Teatro D. Maria, aquando da trasladação dos restos mortais de Almeida Garrett para o Mosteiro dos Jerónimos; em 1903, ocorreram a fundação de uma tuna e de um grupo dramático, a recolha de fundos para a construção de um monumento a Câmara Pestana e uma quermesse no então Jardim de São Francisco. Nesta altura, lutou-se pela Lei do Descanso Semanal, fizeram-se viagens pela Ilha e melhoramentos na sede do AtCF. Em 1905, sob a direção de João Lomelino Ferreira, a atividade reivindicativa diminuiu e a instituição virou-se para as áreas do desporto e das artes e letras. No final da primeira década, fundou-se o Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, pela mão de Luíz César Vieira, Francisco Melim e Aquino Baptista; no ano de 1912, foi criada uma escola de instrução primária para as crianças pobres, por proposta do presidente Agostinho Dias Tavares. Em 1913, com o objetivo de congregar a classe do comércio e de defender os seus interesses, alguns elementos do grupo desportivo fundaram O Athenista, jornal que se dedicava aos problemas mais graves da classe. Todavia, por pressão do patronato, por falta de apoio dos comerciantes e pela proximidade da Primeira Grande Guerra, O Athenista deixou de se publicar, o que coincidiu com o colapso do Ateneu. Só depois de 1925 foi possível assistir à retoma da associação e restituir-lhe a dinâmica dos primeiros tempos, por influência do presidente da direção, Carlos Alberto Ferreira, e dos presidentes que se lhe seguiram, personalidades como Diogo M. de Freitas, Juvenal de Araújo e Luís Vieira de Castro. A segunda fase do Ateneu seria marcada pela modificação dos estatutos iniciais, em março de 1925, cujo projeto de reforma foi elaborado pela comissão nomeada a 1 de março, sendo os princípios que regiam a coletividade lidos e aprovados em sessão de 29 de julho de 1925. Os 130 artigos dos novos estatutos veiculavam uma nova compreensão do Ateneu, que passou a definir-se como uma associação de classe de profissionais do comércio constituída tanto por empregados como por patrões – beneficiando, assim, de um critério mais alargado na admissão dos seus sócios, até porque muitos empregados do comércio se tinham tornado patrões com o passar dos anos. Para além da redefinição dos estatutos, também houve alterações nas atas, que recomeçaram a ser numeradas; escolheu-se, para símbolo do comércio, a figura alegórica de Mercúrio; e foi ainda decidido colocar um busto desta divindade no átrio do Ateneu. Seguiram-se tempos marcados por uma conjuntura de sentimentos autonomistas, pela falência de bancos da praça funchalense, em consequência da grande depressão, e pela Revolta da Madeira, bem como pelas transformações políticas que iriam consolidar a governação do Estado Novo. Apesar destas circunstâncias, o Ateneu impôs-se uma nova dinâmica, que acabaria por resultar num vasto conjunto de iniciativas de sucesso. As preocupações dos sócios não se cingiam às questões económicas, mas incluíam também a transmissão de uma panorâmica etnográfica dos costumes da Madeira. Além disso, voltou a incentivar-se o sentido lúdico do baile. Nesta altura, vivia-se um período de maior participação política. Em 1926, foi enviada a Lisboa uma delegação para se encontrar com vários ministros, com o propósito de solucionar as reclamações do comércio local e da própria associação. Pretendia criar uma comissão de verificação e defesa do bordado da Madeira e garantir uma melhor proteção à indústria do bordado; ambicionava a expedição direta de encomendas postais e maior celeridade na sua entrega; apostava na criação de uma representação do comércio na Junta Autónoma da Madeira, no aumento da carteira de descontos nos bancos locais e na simplificação da contribuição industrial. Ao levar as suas pretensões ao Governo Central, os empregados do comércio procuravam também afirmar-se no interior da sociedade madeirense. Insistiram em requerimentos ao Poder Central, sendo 1927 o ano mais ativo, em que trocaram correspondência com o Conselho da Bolsa Agrícola em defesa dos agricultores; com o chefe de serviços da Alfândega, o Governo e a Câmara sobre a questão dos linhos, que era fundamental para a indústria dos Bordados Madeira; com a Direção da Associação Comercial de Lojistas de Lisboa sobre a pauta alfandegária; com o Ministro do Comércio acerca de mercadorias e do movimento de turistas; com o Ministério das Finanças sobre a situação dos impostos, a carteira de descontos, a recolha de moeda, a situação da vinicultura e da obra de verga, a importação das farinhas e outros temas do interesse dos madeirenses. O Ateneu funcionava como uma Câmara de Comércio, que promovia o diálogo com as entidades oficiais em vista da luta pela defesa do comércio da Ilha. Estas conversações permitiram que, em 1928, o Ateneu solicitasse às entidades competentes que os bilhetes de identidade passassem a ser feitos no Funchal; que, em 1929, a importação de farinhas fosse livre; que a situação dos vendedores ambulantes fosse regularizada; simultaneamente, procurou intervir no sentido de que o liceu do Funchal tivesse um edifício próprio. Quanto à década seguinte, destaca-se, em primeiro lugar, o facto de, em 1933, se ter preparado uma exposição de flores naturais, a realizar, em agosto, nos salões do Ateneu, iniciativa que não chegaria a concretizar-se, por motivos políticos. A questão viria a ser ultrapassada por uma manifestação de rua, já que se procurava utilizar as flores, com a sua cor e vivacidade, para fazer a propaganda relativa ao golpe de Estado de 28 de maio de 1926 e, desta forma, impressionar não só os madeirenses, como todos os visitantes da Ilha. O cuidado da questão etnográfica justificou que, em 1935, se efetuasse um levantamento das vendedoras de flores e se publicasse uma postura camarária onde se estipulava o uso do traje obrigatório para as floristas, que usaram o vestuário, pela primeira vez, nas comemorações do 28 de maio, instituindo-se assim, um traje-padrão. Em 1935, após a substituição de diversos dirigentes governativos da Ilha, face às nomeações de Salazar, com Fernão de Ornelas na Câmara Municipal do Funchal e João Abel de Freitas na Junta Geral, o AtCF iria ser o palco escolhido para debater os problemas económicos da Ilha e para procurar esclarecer o rumo dos dinheiros enviados para a Região. Pó, fumo e nada foi o resultado do debate, o que motivaria uma firme resposta de Salazar, em carta enviada ao Presidente da Junta Geral, caricaturada a 6 de junho de 1935 pelo trimensário humorístico Re-Nhau-Nhau. Apesar das dificuldades económicas, cria-se, em 1936, o Núcleo Fotográfico do Ateneu e faz-se o I Salão de Arte Fotográfica, tendo-se destacado, como colaboradores mais distintos, José Carlos de Mendonça, António Manuel Trigo, Eduardo Pereira, Pita Ferreira e Carlos Maria dos Santos. Com a Segunda Guerra Mundial, o comércio da Madeira viveu uma fase crítica, visto que muitos dos bens essenciais foram racionados – além disso, a população padeceu de fome com o conflito. Neste período, a atividade do AtCF enfraqueceu, levando, depois, algum tempo a recuperar a sua dinâmica. Nos primeiros anos da década de 40 fazem-se jogos florais com atribuição de prémios e, em 1942, surge a Festa da Primavera. Assiste-se à afirmação da literatura e do seu aspecto criativo. Carlos Cristóvão, Alfredo Vieira de Freitas e Florival dos Passos são personalidades que marcaram esta época. Horácio Bento de Gouveia assegura que foi “pelo fim da década de 1940 e por todo o decénio de 50” que o Ateneu teve “uma função retintamente cultural” e que desenvolveu, com consciência esclarecida, uma ação de mecenato (GOES, 1985, 131). Vivia-se o espírito clássico do ateneu, que implicava a crítica e o diálogo, com conferências de variadas temáticas em que várias figuras apresentaram as suas ideias. Passaram pelo AtCF, inscrevendo-se na sua história, Ângelo Augusto da Silva, Ernesto Baltazar Gonçalves, José Pereira da Costa, Horácio Bento de Gouveia, J. Vieira dos Santos, J. Brito Câmara, Aragão Mendes Correia, Carlos Lélis e Maria Mendonça, entre outros, os quais marcaram esta época e deram o seu contributo para a literatura da Madeira. Para lá das atividades de pendor intelectual, distinguia-se, no AtCF, uma vertente recreativa, no âmbito da qual havia lugar para diversas modalidades desportivas e passeios a pé, bailes, serões e convívios, ao jeito da belle époque, procurando o descanso mental e a distração da conjuntura económico-social que então se vivia. Em 1954, o Ateneu organizou o Natal do Recém-Nascido e a Festa da Rosa. Seguiram-se a Festa do Avental, em 1956, a organização do I Rally Automóvel do Ateneu e da Festa da Uva, em 1957, para além de uma excursão às Ilhas Canárias e, nos anos 60, uma viagem aos Açores. As relações de amizade com outras regiões do País e com outros países iam-se consolidando, conferindo ao Ateneu um carácter universal. Figuras de toda a Europa e de diferentes ramos de atividade ficaram ligadas a esta instituição, como foi o caso da Viscondessa de Porto Formoso. A Festa da Flor está indissociavelmente ligada ao Ateneu. A Festa da Flor terá a sua origem na Festa da Rosa, quando a direção do AtCF realizou um evento de que fazia parte uma exposição/concurso desta espécie de flores. Para estimular a participação e aumentar o entusiasmo dos membros do Ateneu, foram atribuídos vários prémios, alguns bastante valiosos. O êxito da iniciativa levou a que esta se realizasse todos os anos, não apenas com rosas, mas com qualquer flor, mudando-se a designação, em 1955, para Festa da Flor. Numa terra onde são abundantes as flores de várias espécies, o acontecimento ganhou projeção e adquiriu um valor turístico excecional, dando razão aos que defendiam que podia ali estar a génese de um atrativo turístico de categoria mundial. Ao longo desta década, o AtCF desempenhou papel relevante na procura da elevação do nível cultural da cidade, promovendo conferências, proporcionando noites de arte e outras distrações de carácter cultural. A partir dos anos 60, o associativismo ressente-se não só da adversidade da conjuntura sociopolítica, como também da falta de novas ideias. Nesta altura, o dinamismo e a capacidade criativa do Ateneu perdem fulgor, atravessando-se anos de reduzida expressão cultural pública, o que caracteriza a terceira fase desta instituição. Mantêm-se, no entanto, algumas atividades, nas quais se recordam momentos da história do Ateneu, ou de que fazem parte vários intelectuais madeirenses: por exemplo, Bernardete Falcão, Elisa de Carvalho e Alice Ogando participaram nas conferências realizadas nos anos 60, salientando o papel da mulher. Nos anos 70, destaca-se o aspeto alegórico e renova-se a Festa da Flor, sob a direção do paisagista Fernando Pessoa e do professor Francisco Simões, que aproximam a coletividade das artes plásticas. Depois de se ter realizado, em 1957, no Casino da Madeira, a Festa da Flor volta à sede por razões de espaço. Em 1974 autorizou-se o regresso das atividades culturais ao AtCF; esta retoma cultural foi assinalada no dia 10 de junho com uma conferência sobre Camões, proferida no Teatro Municipal do Funchal. Organizaram-se também exposições de autores como Isabel Cabral, Afonso Costa, Ruy Teles, Carlos Luz e Francisco Simões (Francisco d’Almada). Nesta terceira fase, a atividade do AtCF não se caracterizou pela novidade das suas iniciativas, mas pela repetição da realização de eventos culturais já anteriormente levados a cabo. Os associados organizaram conferências, colóquios, saraus musicais e literários, jogos florais, bailes, exposições, a Mostra do Antúrio e do Sapatinho e, em especial, a Festa da Flor. Em 1981, em razão do trabalho desenvolvido ao longo de várias décadas, o Governo Regional da Madeira (GRM), reunido em plenário, resolveu declarar de utilidade pública o AtCF por intermédio da Resolução n.º 268/81. Foram reconhecidos os importantes serviços que o Ateneu prestou à Região nos setores cultural, artístico, desportivo e comercial, dinamizando a participação cívica dos seus associados e promovendo o associativismo da Região, aos quais se ficou a dever o seu lugar de destaque no interior da sociedade madeirense. Em 1982 reabriu-se o ciclo cultural do Ateneu, com uma forte participação da juventude. Organizaram-se os Jogos Florais de Verão e convidaram-se personalidades como Maria Aurora, Ângela Varela e Gonçalo Nuno, para estimular o renascimento do Ateneu. Nas comemorações do Dia de Camões de 1983 assumiu especial relevo a conferência de Mendes Marques, designada “O Ateneu Comercial do Funchal do Passado ao Presente”, assim como a de Maria Margarida M. Silva. Foram, ainda, expostas várias obras de interesse existentes na biblioteca. Nos anos seguintes, a coletividade continuaria a desempenhar um papel importante na dinamização de atividades socioculturais. Ao assinalar o seu 85.º aniversário, em 1983, ficou claro que o Ateneu, paladino de todos os verdadeiros valores, não estava, nem nunca estaria ultrapassado, assim o quisessem as suas gentes. Entre períodos difíceis e épocas áureas, faziam-se balanços anuais, esperando, ao mesmo tempo, a revitalização desta associação da sociedade madeirense. Procurando adaptar-se à evolução da sociedade, os professores Atanásio e Vítor Costa souberam captar os jovens para as iniciativas do AtCF. Ao longo dos tempos, vários membros desta instituição têm colaborado com ela espontaneamente, empenhando a sua inteligência e o seu esforço em valorizar a atividade do Ateneu. Atingido o centenário da fundação do AtCF, o GRM afirmou-se disposto a apoiar esta instituição, que apresentou formalmente o projeto de reconstrução do edifício-sede, considerado monumento de interesse público. O palacete urbano do século XIX, situado na Rua dos Netos, foi adaptado às exigências da época, procurando contribuir-se, deste modo, para a revitalização do Ateneu, que enfrentara, desde os anos 60, um crescente esmorecimento das suas iniciativas. João Evangelista, presidente desta instituição entre 1983 e 1992, expressaria o seu descontentamento, referindo, com tristeza, que parecia ter caído uma maldição sobre o Ateneu. Os anos iniciais do século XXI foram difíceis, com David Abreu, presidente demissionário desde 2002, a confirmar a acumulação de dívidas, a degradação do edifício e o afastamento dos sócios, não permitindo o desenvolvimento do tipo de atividades que, no passado, o AtCF, na sua qualidade de associação interventiva, havia realizado.   Agostinho Lopes (atualizado a 23.01.2017)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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archais, associação de arqueologia e defesa do património da madeira

A ARCHAIS nasceu a 15 de abril de 1998. A sua atuação engloba a área da arqueologia e luta pela defesa do património cultural. Como obra fundamental de arranque, realizou o projeto cultural do Solar do Ribeirinho, em Machico, distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Realizou inúmeros encontros, seminários e publicações diversas. Palavras-chave: arqueologia; associações culturais; defesa do património; inventários; recriações históricas.   A ARCHAIS, acrónimo da Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira, inspirado na palavra grega Arkhais que significa “antigo”, nasceu a 15 de abril de 1998, data em que formalmente registou os seus estatutos, então com sede no Sítio do Povo, em Gaula, Santa Cruz. A ARCHAIS surgiu na sequência de uma série de associações deste âmbito que proliferaram em Portugal continental e na ilha da Madeira durante as décs. de 80 e de 90, mas quase sempre, por razões de ordem vária, quer políticas quer sociais, de duração efémera. Os sócios fundadores foram Arlindo Quintal Rodrigues, Richard da Mata e Élvio Sousa. A associação assumiu-se desde logo como sociedade sem fins lucrativos, apartidária e não religiosa, visando desenvolver na RAM uma série de atividades de forma a defender os valores relacionados com a arqueologia e com o património, e a enriquecer o espírito de grupo e a cidadania. Os elementos fundadores já se encontravam a trabalhar desde 1997 pelo menos, procurando fazer um diagnóstico da situação do património cultural a nível regional. Foi com base nesse diagnóstico que vieram a assumir intervenções em várias frentes, especialmente na promoção de campanhas e de trabalhos na área da arqueologia, criando, inclusivamente, não só uma escola de arqueologia para o ensino, a formação e a promoção das campanhas a efetuar, e a promoção de cursos técnicos de introdução e de iniciação à arqueologia, à conservação e ao restauro, mas também visitas de alerta para a preservação geral do património cultural material do passado. No final da primeira década do séc. XXI, foi lançado o Portal do Arqueólogo, dedicado a todos os profissionais da área da arqueologia. Este serviço pretendia facilitar e agilizar os procedimentos decorrentes da prática profissional da arqueologia no território continental e promover a dinâmica entre a tutela do património arqueológico e o trabalhador/investigador. A obra fundamental de arranque do projeto cultural da ARCHAIS foi o trabalho de arqueologia desenvolvido a partir do Solar do Ribeirinho, em Machico, coordenado pelo Prof. Arlindo Rodrigues, que se estendeu a outros locais da cidade, tendo depois o solar sido transformado em museu, com projeto do arquiteto Vítor Mestre, que, em 2016, foi distinguido com o prémio APOM, da Associação Portuguesa de Museologia. Solar do Ribeirinho. Tapete.     Escavação Junta de Freguesia de Machico   Foi no projeto de escavação da área do solar que se alicerçaram, de imediato, outras iniciativas, tal como a realização do I Encontro Regional de Arqueologia e Património, no Funchal, a 26 e 27 de abril de 2000, cujos conteúdos foram depois publicados no Livro Branco do Património (2003). Outros encontros seguiram-se, e.g.: Legislação e Património, Arqueologia e História e Mesa-Redonda sobre a Nova-Lei de Bases do Património. Partindo da premissa de que publicar seria a melhor forma de defender e de valorizar o património e o trabalho desenvolvido, foram sendo dados à estampa não só vários estudos temáticos, tais como A Propósito do Solar do Ribeirinho (2000) e Iluminação Pública em Machico (2001), mas também inventários gerais de património de cidades e de freguesias da Região, com o apoio fundamental das Câmaras Municipais e de outras instituições.   As atividades de defesa do património da ARCHAIS estenderam-se ainda ao património cultural e ao imaterial, tendo-se tais ações integrado especialmente nos chamados mercados quinhentistas (recriações históricas muito divulgadas por toda a Europa desde os finais do séc. XX, de que o mercado de Machico se tornou paradigmático na Região). Estes eventos começaram com vários elementos ligados à Associação, com o apoio da Câmara de Machico e da Escola Básica e Secundária de Machico, quer na orientação dos professores quer na participação dos alunos, tendo-se alargado progressivamente. Naqueles mercados quinhentistas organizaram-se também colóquios sobre o património cultural imaterial que, embora não surgissem com a chancela da ARCHAIS, tinham a sua marca de origem. A atividade da ARCHAIS é indissociável da revista Ilharq, cujo n.º 0 apareceu em 2000 e o n.º 1, em 2001,e que abarca um amplo leque de temas, especialmente na área do património arqueológico. A partir do seu n.º 8, a revista começou a apresentar uma periodicidade bianual com o apoio da Câmara Municipal de Machico, e a ARCHAIS começou a ter a sua sede na antiga escola do Sítio dos Maroços, em Machico. O n.º 11 foi apresentado no Solar do Ribeirinho, a 11 de dezembro de 2015, reunindo um conjunto de artigos sobre o concelho de Machico, e revelando temáticas tais como a história regional e local, o património arquitetónico, a arte, a azulejaria, a etnografia, as tradições e as vivências quotidianas. Desde o nascimento da ARCHAIS, em 1998, foram sendo publicados também boletins informativos, acompanhados de imagens das atividades da Associação, tendo os primeiros boletins começado com uma periodicidade quadrimestral, evoluindo para uma periocidade semestral, e acabando, finalmente por se tornar anuais. A atividade da Associação, embora gozando do apoio de inúmeras personalidades nacionais ligadas à arqueologia, pretendendo intervir em toda a Ilha e arvorando-se de valores da cidadania participativa, encontrou alguma dificuldade no Funchal, devido a também existirem naquele local outras estruturas regionais e concelhias relacionadas com a área da arqueologia. Acresce que, embora assumindo-se como não partidária pelos seus estatutos, teria sido no seio desta associação, ou pelo menos com elementos ligados à mesma, que surgiu a formação partidária Juntos pelo Povo (Partidos políticos), que conquistou rapidamente representação autárquica e regional. Nesse sentido e torneando essas dificuldades, a ARCHAIS e os elementos ligados à mesma apostaram na diversificação de polos de desenvolvimento, fundando, por exemplo, o Centro de Estudos em Arqueologia Moderna e Contemporânea (CEAM), que, em união com outras entidades, desenvolveram projetos alternativos e apostaram em interessantes iniciativas vocacionadas para as camadas mais jovens (e.g., os chamados Giro de Património e os roteiros juvenis), com bastante sucesso. Estas ações, que pretendiam divulgar a realidade patrimonial local numa perspetiva de sensibilização para a necessidade de proteger, de preservar e de valorizar a mesma, conseguiram assim estender-se a quase toda a Ilha, inclusivamente às várias freguesias do Funchal, com o apoio das respetivas juntas de freguesia. O primeiro Giro, intitulado Património Histórico de Machico, editado com o apoio da Câmara Municipal de Machico, com textos de Isabel Gouveia e de Virgínia Nóia, e com design de Ricardo Caldeira, teve edição em abril de 2000; seguiu-se-lhe o Giro pelo Património Edificado de Santa Cruz, em 2001, com o mesmo design, texto de João Lino Pereira Moreira e fotografias de Élvio Duarte Martins Sousa. O sucesso da iniciativa levou a que ambos estes giros tivessem nova edição, seguindo-se, ainda em 2001, o Giro pelo Património Edificado da Ponta do Sol, com texto de Emanuel Gaspar e com o apoio da respetiva Câmara. Seguiram-se o Giro pelo Património Cultural de Santana, em 2002, e o Património Edificado da Ribeira Brava e Histórico-Arquitetónico da Calheta, em 2004, tendo sido depois promovidos, nas freguesias do Funchal, o Histórico de Santa Maria Maior, em 2005, o Histórico da Sé, em 2006, o Histórico de São Pedro, também em 2006, e o Histórico do Monte, em 2007. A ARCHAIS lançou ainda, em formato de livros de bolso, facilmente consultáveis em caminhadas, vários roteiros culturais das freguesias da zona leste da Madeira: o do Caniçal, o do Santo da Serra, o da Água de Pena, o do Porto da Cruz, o de São Jorge, e o de Gaula e de Caniço, entre outras.   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

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