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contacto linguístico

A coexistência de línguas é um facto. Existe desde sempre e desempenha um papel importante na variação inerente a qualquer sistema linguístico, nomeadamente quando esta variação ocorre ao longo do tempo. A publicação de Languages in Contact (1953), de Uriel Weinrich, constitui um marco nesta área de estudos linguísticos e na investigação sobre multilinguismo. Os principais temas relacionados com o contacto linguístico tinham sido abordados já na sua tese de doutoramento, Research Problems in Bilinguism with Special Reference to Switzerland (1951), obra que teve por base o trabalho de campo feito pelo autor na Suíça e que contém uma descrição detalhada da situação linguística naquele país, sobretudo nos espaços de fronteira e de contacto linguístico. O contacto entre línguas mereceu, desde então, a atenção de vários investigadores, que procuraram observar e descrever, de modo sistemático, as suas propriedades – origens, processos e resultados. Contacto linguístico (conceitos) Uma situação de contacto linguístico pode ser definida como “aquela em que pelo menos algumas pessoas usam mais do que uma língua” (THOMASON, 2001, 1). Tal acontece em várias situações do quotidiano, e.g., por via de vários tipos de mobilidade humana (emigração e imigração, turismo, etc.), em que os falantes de uma determinada língua materna se encontram em contacto com falantes de outras línguas. Este fenómeno ocorre também na escola, em situações de aquisição formal de uma segunda língua, não materna, ou L2, e ainda na comunicação digital (Internet). Na era da globalização, podemos entender que, de acordo com Maria Antónia Mota (1996), as sociedades de começos do séc. XXI são, na sua maioria, plurilinguísticas e que as línguas são sistemas marcados por grande variação interna, pois a relação comunicacional entre comunidades linguísticas é tão grande que é quase impossível não se influenciarem umas às outras. Trata-se de um processo que decorre da coexistência temporal e espacial de duas ou mais línguas ou variedades linguísticas, para o qual é necessário não só “definir a natureza [como também] a escala e o grau desse contacto e determinar quem entra em contacto com quem, se indivíduos, famílias, comunidades ou sociedades inteiras”, como observam René Appel Pieter Muysken, em obra citada por Glaucia Santos (SANTOS, 2008, 23). A dinâmica do contacto pode ser descrita como a passagem de uma situação de monolinguismo para uma de bilinguismo, existindo ainda a possibilidade de um regresso ao monolinguismo (manutenção da língua de origem, anterior ao contacto). Os processos e resultados linguísticos envolvidos nesta dinâmica, descritos na bibliografia de referência e referidos por Amália de Melo Lopes (2011), são os seguintes: (i) manutenção da língua de origem (LO) como única língua da comunidade; (ii) mudança de língua (language shift, FISHMAN, 1964), em que a LO é substituída pela língua de outro grupo em contacto, pelo facto de a comunidade considerar a língua adotada mais funcional ou mais prestigiada socialmente, ou por outro tipo de circunstâncias; (iii) mistura de línguas (language mixing), que pode dar origem a outros produtos linguísticos, marcados pela influência mútua das duas línguas, tais como: bilinguismo, pidgins e crioulos. Vários fatores, tais como a quantidade de migrantes e a duração da coabitação, o prestígio ou o poder económico e político das comunidades migrantes e daquelas que as recebem, intervêm nos resultados do contacto. Este assunto tem sido particularmente debatido no âmbito da ecologia do contacto de línguas, que faz parte da disciplina de ecolinguística, que consiste no estudo das relações entre língua e meio ambiente (ou território), e foi detalhadamente discutido, e.g., por Jean-Louis Calvet e Salikoko Mufwene. Assim, nem todas as comunidades respondem ao contacto linguístico da mesma forma. Há aquelas nas quais ocorrem processos de hibridismo, quando os falantes não diferenciam os diferentes códigos, constituindo-se então uma mistura de línguas – de tipo code-switching ou alternância de códigos e/ou de tipo code-mixting – que resultam de um maior e mais permanente contacto linguístico. É o caso dos crioulos e dos pidgins, que resultam do “surgimento de uma nova entidade linguística qualitativamente distinta de todas as línguas envolvidas na situação de contacto de onde ela emergiu” (LUCCHESI, 2004, 157). Noutras situações, podemos assistir à coabitação entre duas línguas na mesma comunidade linguística – bilinguismo – ou de duas variedades da mesma língua – diglossia. Bilinguismo O bilinguismo, situação muito comum no mundo dos alvores do séc XXI, corresponde ao conhecimento e uso de duas ou mais línguas por um indivíduo – bilinguismo individual – ou por uma comunidade – bilinguismo social –, quando esta se caracteriza pela existência de um número significativo de falantes bilingues. Os falantes bilingues podem apresentar diferentes graus de proficiência e uma grande variedade de uso das duas línguas, manifestando, na sua fala, interferências e alternâncias de línguas. Assim, o code-switching é uma manifestação de bilinguismo e consiste em trocar de língua no decurso de uma mesma produção linguística, mesmo que não haja mudança de interlocutor ou de situação. Em alguns casos, esta influência pode criar uma dualidade dentro de uma comunidade linguística, que, sendo “monolingue pode tornar-se bilingue pela conservação da sua língua autóctone e da língua forasteira” (LOPES, 2011, 14). Relativamente ao bilinguismo social, é de assinalar que um país pode ser bilingue ou multilingue/plurilingue, mas parte da sua população ser monolingue, assim como pode ser predominantemente monolingue sem que tal signifique que todos os cidadãos desse país falem só uma língua ou que todos os que vivem nesse país tenham essa língua como materna. Podem configurar-se situações estáveis de bilinguismo, de bilinguismo mútuo ou assimétrico, e outras situações que se situam entre esses dois extremos. Diglossia A diglossia é uma variante de bilinguismo, sendo um termo usado para classificar situações de comunicação em comunidades que recorrem ao uso complementar de variedades e/ou línguas distintas na vida quotidiana. Nestas circunstâncias, uma variedade/língua só pode ser usada em situações em que a outra variedade/língua está excluída. Esta definição abrange muitas situações que ocorrem na maioria das sociedades. A ilha da Madeira, e.g., no âmbito do português europeu (PE), poderá ser caracterizada, do ponto de vista linguístico, por uma situação de diglossia, uma vez que os falantes madeirenses usam uma variedade falada do português, distinta da variedade padrão e excluída das trocas comunicacionais em que é exigido o uso da variedade padrão (conferências, escrita). Este tipo de situação poderá gerar um conflito, uma vez que as duas variedades não gozam do mesmo prestígio, sendo a variedade falada e informal (conversas com familiares próximos etc.) objeto de maior estigma. Interlíngua A probabilidade de ocorrer uma ou outra das três situações referidas pode estar relacionada com condições socio-históricas e políticas específicas, com as atitudes dos falantes em relação à variação linguística observada, e com as relações de força que se estabelecem entre as comunidades de falantes de línguas ou variedades distintas. A estes fatores extralinguísticos juntam-se fatores de natureza linguística, tais como a importância da distância tipológica entre a língua materna (LM) e a língua não materna, ou língua alvo (LA), e os que estão relacionados com os efeitos linguísticos da interferência na LA, dando origem ao surgimento de uma outra variedade nessa língua. Assim, no processo de aquisição de uma segunda língua, como destaca Sara Thomason (2001), os falantes podem permanecer numa fase de interlanguage (ou “interlíngua”, SELINKER, 1972), um processo de variação linguística no qual se incluem os empréstimos lexicais e mesmo interferências estruturais, resultado da transposição de alguns traços da LM para a LA. Este processo poderá dar também origem à mudança linguística; tal ocorre quando traços de interferência são conservados e transmitidos às gerações seguintes, construindo-se, assim, uma nova versão da LA. No entanto, estar em contacto com outras línguas não implica necessariamente mudança. De assinalar também que todos os níveis dos sistemas linguísticos – fonológico, morfossintático e lexical – podem ser afetados (SANKOFF, 2001). O contacto linguístico é, normalmente, mais saliente ou dinâmico em zonas fronteiriças, onde duas línguas interagem constantemente, em comunidades onde a afluência de estrangeiros é grande, e ainda em espaços marcados pela ocorrência de fluxos migratórios (emigração para o estrangeiro e o seu regresso), bem como naqueles que foram objeto de colonização ou de ocupação por parte de outros países e, como anteriormente referido, em situações de aprendizagem de outra língua (MOTA, 1996). A língua portuguesa, e.g., tal como hoje se apresenta no começo do séc. XXI, resulta de séculos de contacto com o latim vulgar e com línguas de outros povos. Emergiu no Noroeste da península Ibérica, por volta do séc. IX, numa comunidade linguística que incluía também a língua falada na Galiza. A língua escrita continuou a ser o latim, e a primitiva produção escrita em português de que há conhecimento, de natureza notarial, data do séc. XIII. A partir da constituição do reino de Portugal, em 1143, o português foi acompanhando a configuração de novas fronteiras para o reino, passando a ser falado em espaços cada vez mais alargados. O repovoamento do Sul do território reconquistado aos árabes e a situação de contacto linguístico com os falares moçárabes que dele resultou criaram novas condições para a transformação e mudança na língua. A norte e a sul desenharam-se variedades distintas: nas áreas dialetais setentrionais, a norte, a mudança tinha levado, e.g., à perda da oposição etimológica entre /b/ e /v/; no centro e sul, emergiram variantes inovadoras, como foi o caso da monotongação do ditongo [ej] em [e] em palavras como “ceifar” [sefar] e “feito” [fetu]. Estabelecidas as novas fronteiras, também a capital do reino se mudou para sul do rio Mondego, fixando-se em Lisboa. Esta mudança histórica iria determinar novos caminhos para a língua: o modelo unificador do português desloca-se, a partir do séc. XVI, para esta região, que se torna pólo inspirador da sua norma culta e ponto de partida do padrão linguístico posterior. A partir do séc. XV, a língua conquistadora foi povoando ilhas e sendo também acolhida em sociedades distintas, em África, na Ásia e na América. As diferentes situações de contacto com as línguas faladas pelos nativos nos novos espaços ocupados enriqueceram o português, tendo tido um papel muito relevante na construção das suas variedades geográficas extra-europeias – brasileiras e africanas. No âmbito do PE, as variedades insulares, afastadas do contacto com as variedades peninsulares, desenvolveram traços linguísticos próprios. Deles fazem parte a manutenção de traços conservadores nas suas variedades populares, como no caso da variante nasal [õ] nas finais verbais de terceira pessoa do plural (“comeram” [kumerõ]) – também atestada em variedades peninsulares setentrionais –, que correspondem a uma fase da língua na qual ainda não tinha ocorrido a ditongação em [Œ)w)], variante que viria a ser integrada na norma do português apenas no séc. XVI. As variedades insulares ostentam também aspetos inovadores, como a mudança manifesta na ditongação das vogais altas acentuadas /i/ e /u/, em palavras como “aqui” e “rua”, pronunciadas [Œ’kŒj] e [{’ŒwŒ], respetivamente. Tal como a estrutura sonora da língua, também o léxico está em permanente renovação, com ganhos e perdas de palavras, e com outras a gerarem novos sentidos. No português, a herança lexical latina incorporou, no início da sua formação, os contributos de povos colonizadores – germânicos (nomes como “guerra”, “luva”, “roupa”) e árabes (“alcatifa”, “arroz”, “açúcar”, “atum”, “armazém”, “aldeia”). Mais tarde, na sua expansão marítima, os contactos com outras comunidades linguísticas enriqueceram a língua portuguesa e as suas variedades, sendo introduzidos novos itens: empréstimos das línguas ameríndias (“canoa”, “amendoim”, “tapioca”, “mandioca”, “goiaba”, “pitanga”), africanas (“banana”, “berimbau”, “cachimbo”, “cubata”) e asiáticas (“leque”, “chá”, “bengala”, “azul”, “bambu”, “chávena”, “xaile”). Em diversos momentos da sua história, provenientes de outras línguas europeias de cultura e de prestígio, outros empréstimos foram importados e integrados, sendo de notar, e.g., os galicismos (“monge”, “joia”, “blusa”, “soutien”, “envelope”), os italianismos (“soneto”, “aguarela”, “bússola”, “piano”, “violoncelo”) e os anglicismos (“pudim”, “bife”, “lanche”, “futebol”, “andebol”, “penalti”). Aspetos socio-históricos dos contactos linguísticos no espaço insular atlântico Na altura dos Descobrimentos, como referido, os Portugueses levaram a língua para as terras por onde passavam, que conquistavam e povoavam. Tal aconteceu na ilha da Madeira, descoberta em 1418. Os primeiros colonos, oriundos tanto do Norte como do Sul do reino, terão chegado pouco depois, por volta de 1420 ou 1425. Sendo as suas fronteiras traçadas pelo mar, poder-se-ia pensar que, quando comparada com outros espaços não insulares, a ilha da Madeira, e assim as suas comunidades de falantes, se caracteriza pelo isolamento e a falta de qualquer tipo de contacto. Porém, historicamente, a Madeira estabeleceu, desde o seu povoamento, no séc. XV, vários tipos de contacto linguístico, não só com falantes de outras variedades regionais do português europeu continental, como também com falantes de outras línguas, graças a fatores relacionados com o seu desenvolvimento socioeconómico (comércio, turismo, emigração). Assim, tal como outras ilhas situadas em alto mar, mas localizadas no centro de rotas marítimas, a ilha da Madeira nunca ficou completamente isolada, porque, beneficiando das condições económicas internas oferecidas pelas culturas da cana-de-açúcar, primeiro, e da vinha, mais tarde, constituiu-se num lugar de passagem obrigatório nos caminhos traçados no oceano Atlântico. O Funchal, uma cidade portuária, era um lugar de paragem quase obrigatória para a maioria das pessoas que viajavam pelas principais rotas do Atlântico. Esta situação manteve-se quase inalterada até ao séc. XIX, tornando a Ilha, na periferia da Europa, um ponto estratégico de ancoragem, um microcentro atlântico. A sociedade madeirense pode ser vista como resultado de fluxos migratórios constantes desde o início da sua história, regulados pelos ciclos económicos. Para além da presença de comerciantes, sobretudo europeus, e de escravos vindos inicialmente das Canárias (os guanches) e, mais tarde, do Norte de África (árabes) e da Costa da Guiné (negros), é de assinalar o alto nível de mobilidade social dos madeirenses. Povoamento do arquipélago da Madeira Aquando do descobrimento do arquipélago da Madeira, no séc. XV, houve a necessidade de o povoar, tal como aconteceria posteriormente noutros espaços atlânticos portugueses: os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde. Inicialmente, foram enviadas para a Madeira pessoas de variadas origens sociais. Como afirma Joel Serrão, “o primeiro grupo de povoadores da pequena nobreza, pelo menos, uns catorze, e os restantes, gente de condição modesta, entre a qual, antigos presos das cadeias do Reino, e aos quais se destinavam as tarefas mais humildes e ingratas” (SERRÃO, 1961, 2). As origens geográficas da população madeirense teriam sido, como observado por Luís de Sousa Melo, sobretudo as “províncias do Minho e do Algarve” (MELO, 1988, 20). Pinto e Rodrigues (1993) apresentam também evidências de que os distritos a norte de Portugal terão contribuído em maior quantidade para a ocupação humana do espaço insular. [table id=108 /] Apesar do decréscimo de matrimónios de imigrados ao longo dos decénios, podemos observar que Faro tem uma representação mais baixa, comparativamente aos imigrantes provenientes das zonas mais a norte de Portugal. Crê-se que a importância dos indivíduos oriundos do Algarve estivesse ligada à atividade marítima e a dos emigrantes do Norte de Portugal à atividade agrícola. Por outro lado, registou-se a presença de Espanhóis na ilha da Madeira entre os anos de 1539 e 1600, como podemos comprovar no gráfico apresentado por Luís de Sousa Melo no mesmo artigo: [caption id="attachment_16108" align="aligncenter" width="661"] Fig. 2 – Gráfico representativo do movimento migratório para a Madeira no séc. XVI.Fonte: MELO, 1988, 26.[/caption]   A presença espanhola na Madeira estaria ligada sobretudo à chegada de indivíduos da Galiza. Talvez tenha sido significativa anteriormente, sobretudo pelo comércio de escravos com o arquipélago das Canárias. O povoamento teve início no perímetro entre Machico e Calheta, portanto, na costa sul, por ser mais apropriada para o arroteamento. Porém, é à cidade do Funchal que se manifesta uma maior afluência de falantes vindos de todas as partes, uma vez que ali se encontrava o porto de embarque e de desembarque. Presença de escravos (canários e africanos) A chegada dos primeiros colonos à Madeira não pareceu ser suficiente para a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola, bastante exigente no seu início, devido à orografia e densidade florestal da Ilha. Julgou-se então necessário recorrer, para esse fim, à introdução do escravo na região. No fim do séc. XV, a população de escravos ascendia a cerca de 2 milhares, perfazendo 12 % da população total da altura. Veja-se, na fig. 3, a evolução global da população madeirense entre os finais do séc. XV e o séc. XVI: [table id=109 /] Foram, aliás, os escravos, os negros do Golfo da Guiné, os mouros cativos do Norte de África e ainda os canários quem mais contribuiu para o desenvolvimento do arroteamento de terras e, mais tarde, para a produção de cereais e de açúcar. Crê-se que até da Índia foram escravos, pois, segundo se lê no Elucidário Madeirense, “Tristão Vaz da Veiga, que foi governador-geral do arquipélago em 1582 tinha doze escravos indianos para serviço particular da casa” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Alberto Vieira, citando Alberto Sarmento, adianta que a escravatura na Madeira se apresenta como “um regresso à História Antiga, ao tempo patriarcal, com o escravo doméstico; à velha Grécia, com o escravo lavrador do Império Romano, com o escravo industrial” (VIEIRA, 1996). Os escravos guanches, marroquinos e africanos foram os primeiros a chegar à Ilha, porque a localização geográfica da Madeira, perto do continente africano, a posicionava idealmente para a receção do mercado escravo, sendo também de referir a intervenção de escravos vindos do Brasil e das Antilhas. Aos escravos deve-se, na sua maioria, o crescimento e o desenvolvimento da economia do arquipélago, que podem ser vistos por duas perspetivas: primeiro, como uma “economia de aproveitamento imediato daquilo que se apresenta com valor mercantil (madeiras, pastel, urzela) ou valor alimentar (peixe); segundo, como uma economia de produção (trigo, gado, mais tarde açúcar e vinho)” (PINTO e RODRIGUES, 1993, 408). A afluência de escravos foi tão acentuada na Ilha que muitos terão aí casado e permanecido. Inventariam-se 593 casamentos, dos quais uns ocorriam entre escravos da mesma condição, outros entre escravos e forros ou libertos, e outros ainda entre escravos ou ex-escravos e não escravos. O primeiro casamento no seio desta comunidade teria ocorrido em 1539, na igreja da Sé, e o último em 1830. Influência europeia através da história económica e social (comércio e turismo) A presença de estrangeiros na Ilha remonta ao seu povoamento. Os primeiros mercadores estrangeiros que aí apareceram eram florentinos, genoveses e venezianos, todos comerciantes do açúcar, o que originava muitas vezes na sua naturalização. Assim, refere o Elucidário Madeirense: “Os estrangeiros contribuíam consideravelmente, embora com proveito próprio, para o estado de prosperidade a que chegou esta ilha desde os fins do século XV até meados do século seguinte. Entregaram-se a diversos ramos de negócio, montaram muitos engenhos de açúcar e era por seu intermédio que se fazia uma boa parte da exportação desse produto para os países estrangeiros” (SILVA e MENESES, 1998, 422). Os Ingleses adquiriram um lugar de relevo na burguesia cosmopolita da cidade desde o séc. XVII, e a ilha da Madeira transformou-se numa escala obrigatória nas rotas marítimas da Inglaterra. A expansão do comércio, através dos negócios de exportação de produtos diversos, como o trigo, as madeiras, o açúcar, o vinho e o bordado Madeira, foi uma forma de a comunidade madeirense entrar em contacto, não só com os escravos, mas também com estrangeiros europeus que pela Madeira passavam. O comércio açucareiro terá tido início logo no dealbar do séc. XV, acentuando-se a sua produção depois da crise económica na última metade do séc. XVI, que decorreu da falta de trigo e, consequentemente, de pão. Os madeirenses viram-se para a produção do açúcar, uma vez que a produção cerealífera não prosperava nas frondosas e acentuadas montanhas da Ilha. A produção subiu, assim, em grande escala, não só para consumo próprio, como também para exportação, sendo de registar, a este propósito, o despacho enviado em 1461 ao Rei de Portugal, D. Fernando, a pedir autorização para “carregar vinhos açuquares madeyra pam e todo ho q avees de vosas nouidades pera hu vos mais prouuer sem me pagardes dizima da carregaçam”, acrescentando ainda: “taes carregações […] pera fora destes reynos” (PEREIRA, 1991, 91). Durante algum tempo, a produção e a exportação de açúcar seguiram bom porto e estenderam-se pelas cidades mediterrânicas e nórdicas, bem como para o reino, fomentando um grande interesse da burguesia estrangeira pelo comércio do açúcar. O mercado açucareiro, e principalmente a exportação deste produto para Flandres, Inglaterra, Ruão, Rochela e Bretanha, deram grande visibilidade à Madeira, sobretudo entre 1450 e 1550. Contudo, o comércio do açúcar não vingou nos séculos seguintes, devido à forte concorrência de outros locais, com maior produção. A Madeira, por ser uma ilha de pequenas dimensões, não conseguiu competir, pelo menos em grande escala, com os novos produtores da América do Sul (Caraíbas e Brasil). Com o declínio do açúcar, é a vinha que, enquanto cultura, passa a predominar, já nos fins do séc. XVI. O clima da Madeira, ameno em qualquer estação do ano, para além de favorecer as culturas, também não passou despercebido aos estrangeiros do Norte da Europa, cujos invernos eram muito mais rigorosos. De acordo com Albert Silbert, citado por António Marques da Silva, as características peculiares do clima da Madeira devem-se à “presença dos ventos alísios que emolduram o arquipélago da Madeira” (SILVA, 2007, 35). Apesar da grande afluência de Ingleses à Madeira, não foram apenas estes que tiveram interesse na beleza, no clima e no comércio que a Ilha podia oferecer. Os Alemães também mostraram essa vontade. A presença alemã na Madeira, tal como a inglesa, remonta ao seu povoamento, no séc. XV; com efeito, há registo de duas figuras lendárias, Henrique e André Alemão, tendo este etnónimo por referência “um indivíduo natural de Além-Reno” (VERÍSSIMO, 2012, 17). Henrique Alemão, cavaleiro de Santa Catarina, recebeu terras na ribeira da Madalena, em sesmaria de Gonçalves Zarco; uma outra terra, situada entre a Madalena e o Arco da Calheta, teria sido doada a André Alemão. A presença alemã nesta zona da Ilha “ficou assinalada através do topónimo Fajã do Alemão, hoje designada, por corruptela, Fajã do Limão” (VERÍSSIMO, 2012, 16). Mais tarde, já no séc. XVI, o comércio internacional do açúcar fica associado aos Alemães da família Paumgarther de Augsburg e à sua companhia, que mantinha relações entre a Madeira e as Canárias. Outros nomes associados à companhia são Welser Lucas Rem, Hans Rem e os feitores Leo Ravensburger e Hans Schmid. No século posterior e até ao séc. XIX, sabe-se que a presença alemã em território português vigorou principalmente nos Açores. A partir do séc. XVIII, a Madeira recebe um outro tipo de visitantes europeus: cientistas, sobretudo britânicos, mas também franceses e alemães. De facto, no séc. XIX, a permanência de Alemães na Ilha relaciona-se sobretudo com a chegada de cientistas cujos estudos incidem sobre a Madeira e têm como objeto o clima e a tuberculose; Alemães como Karl Mittermeier (que esteve na Madeira em 1855) e Rudolph Schultz (que ali esteve em 1864), entre outros, acreditavam que a Ilha possuía condições favoráveis para a sua cura. De acordo com Eberhard Wilhelm (1997), durante o período de 1815 a 1915, foram imensos os visitantes de língua alemã na Madeira, sobretudo naturalistas e médicos, que mostraram grande interesse pela botânica insular, sendo de referir, e.g., Johann Reinhold Foster e Johann George Adam Foster, e ainda, na área geológica, Leopold Von Buch. Na fig. 4, apresentam-se alguns nomes importantes de figuras alemãs que estiveram na Madeira e que em muito contribuíram para o seu desenvolvimento em diversas áreas: [table id=110 /] No séc. XIX, devido à vasta literatura científica e de viagem que inclui a ilha da Madeira, é possível reconstruir a situação da mesma nessa altura. Os viajantes que por lá passavam descreviam vários aspetos, como a natureza, a topografia, o relevo, as tradições, as vestimentas e os hábitos alimentares, e acrescentavam detalhes muito significativos, que representavam as suas ideias sobre determinadas situações do quotidiano madeirense: “De facto, o século XIX trouxe à Madeira muitos viajantes que julgaram oportuno proceder em termos dum ‘fifty-first’ e, assim, o número dos que deixaram registado em livro o seu ‘glimpse’ madeirense ascende a umas boas dezenas. Entre eles e para mencionar apenas os mais representativos em campos literários diferentes e perseguindo também diferentes objetivos temos Robert Steele, James Edward Alexander, o Dr. Wilde, James Golman, John Osborne, Wiliam Hadfield, Henry Vizetelly” (BRANCO, 1989, 201). Para além do grande número de estrangeiros interessados no arquipélago da Madeira, inicialmente pelo comércio do açúcar, do vinho, do bordado Madeira, e pelas características naturais do território (clima, botânica, geologia, medicina), na viragem do séc. XIX para o séc. XX, a Madeira começou a ser pensada como um espaço de lazer. É nesta altura que tem início o turismo na Madeira, uma nova era em que se começa a desenvolver um ciclo económico ligado a esta atividade. Se, por um lado, o turismo pode ser visto como algo motivador e revitalizador de práticas estagnadas, através do processo de aculturação, por outro, podemos inferir que o mesmo processo poderá influenciar e motivar a comunidade linguística a que se destina. Esta atração pelo turismo permitiu que houvesse, a nível económico e urbanístico, principalmente na cidade do Funchal, um grande investimento na construção de hotéis, levado a cabo sobretudo por Ingleses, que fez surgir na cidade uma realidade nova. A atividade turística transforma, assim, a capital insular num centro cosmopolita e num palco de muitas culturas. A emigração madeirense entre os séculos XV e XX Desde o séc. XV que a Madeira viu os filhos da sua terra partirem em busca de novos rumos, num movimento normalmente associado a crises socioeconómicas. A primeira crise do trigo, logo no séc. XVI, forçou os madeirenses a partirem, sendo a falta de cereais, que perdurou pelos séculos seguintes, responsável pelo facto de a Madeira se ter tornado refém da importação cerealífera vinda dos Açores. Nos sécs. XVI e XVII, os madeirenses foram essenciais no Brasil, pois contribuíram com as suas aptidões como lavradores e mestres de engenho, bem como na exportação de cana-de-açúcar, tendo tido um papel relevante no comércio açucareiro do Brasil. No séc. XVII, com a invasão holandesa do Brasil, o comércio teve dificuldades. Houve necessidade de enviar novamente madeirenses para a reconstrução dos engenhos, e eles contribuíram para a expulsão dos Holandeses do Maranhão em 1642, em particular o madeirense António Teixeira Mello; em Pernambuco, em 1645, a organização de resistência foi feita pelo madeirense João Fernandes Vieira. No séc. XVIII, a fome e a crise persistiam, consequência, ainda, da falta de trigo, como afirma Maria Licínia dos Santos: “logo nos primeiros anos do século XVIII, ou seja, 1806, a Madeira foi intensamente ameaçada pelo espectro da fome” (SANTOS, 1999, 16). A emigração para o Brasil foi, portanto, uma fuga à fome e uma forma de ascender social e economicamente. Por esta razão, os madeirenses optam por levar os seus cônjuges, decisão que beneficiou e garantiu as terras do Sul do Brasil, que estavam quase à mercê dos Espanhóis com o Tratado de Madrid. Daqui resultou uma grande afluência de madeirenses para as regiões de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Maranhão e Rio de Janeiro. A chegada dos madeirenses ao Brasil foi difícil, tendo esta situação ficado conhecida como “escravatura branca” (VIEIRA, 2004a). Na tabela seguinte, apresentam-se os dados fornecidos por Alberto Vieira relativamente ao número de emigrantes para este destino, entre os anos de 1835 e 1860. [table id=111 /]   A par do Brasil, outro destino procurado pelos madeirenses foi o sul de África, nomeadamente a extensa colónia angolana, onde se regista presença madeirense desde 1664. Até ao séc. XIX, a emigração (imigração/emigração) para esta região não se fazia de forma acentuada, quando comparada com esse século e os seguintes. O processo de emigração, resultado da continuada crise económica e das várias calamidades naturais que afetaram a agricultura, especialmente a vinícola, levou os insulares a procurarem em massa, comparativamente aos séculos anteriores, outros destinos para obterem melhores condições de vida. Para além dos problemas acima enunciados, a Madeira sofreu ainda o impacto do conflito político entre liberais e absolutistas, tornando o arquipélago vulnerável e dando aso às investidas de ocupação por parte dos Ingleses, em 1801 e em 1810. A crise permitiu que as diferenças sociais aumentassem e as classes sociais se diferenciassem mais umas das outras, levando a que as classes mais baixas, famintas, procurassem outros rumos. A meio do século (1846 e 1847), a Madeira sofre nova crise, desta vez no cultivo da semilha, o meio de sustento dos pobres, levando a mais um surto de fome e, consequentemente, a nova vaga de emigração. As Antilhas britânicas foram um dos locais procurados pelos madeirenses para emigrar, até porque, na altura, os ingleses tinham falta de mão de obra para as suas plantações. Assim, os destinos de emigração mais frequentes dos madeirenses foram as Antilhas, Demerara, os países da América Central, o Brasil, o Havai e Angola. Nas tabelas seguintes, podemos observar o número de emigrantes distribuídos pelos vários países entre 1834 e 1847 (fig. 6) e pelas colónias britânicas entre 1843 e 1866 (fig. 7): [table id=112 /] [table id=113 /]   No outro lado do oceano, a colonização de Angola era um assunto premente, pelo que, em 1884, se fixaram nessa terra os primeiros 222 colonos saídos do porto do Funchal. Ainda no mesmo ano, chegariam mais 349 emigrantes e, até 1890, registaram-se mais de 704 indivíduos. Ainda no séc. XIX, outro destino procurado pelos madeirenses foi o Havai, que, na segunda metade da centúria, recebeu 400.000 emigrantes de todo o mundo. A emigração madeirense deveu-se em grande parte ao trabalho de Wilhem Hillebrand. Em 1978, este promoveu uns panfletos denominados “Breve notícia acerca das ilhas Sandwich – e das vantagens que elas oferecem à emigração que as procure”. Segundo Susana Caldeira, “Primeiro, foram os chineses, em 1852. A emigração portuguesa começou com o primeiro grupo de 120 madeirenses que chegaram lá [ao Havai] no dia 29 de setembro de 1878, a bordo do navio Priscilla, respondendo [ao apelo de] mão de obra [para as] plantações de açúcar”. A predominância dos madeirenses durou até ao início do séc. XX, e “o português, que foi ensinado, na universidade do Havai, até 1956 e, mesmo depois, por alguns tutores privados, ainda é falado por alguns descendentes, sendo que o sotaque e os termos utilizados podem denotar-se de origem madeirense” (CALDEIRA, 2011). Se, por um lado, a emigração madeirense se acentuou no séc. XIX em países da América Central e nas colónias ingleses, já no séc. XX os destinos emigratórios serão predominantemente o Brasil, Curaçau, a África do Sul e a Venezuela. No início do séc. XX, com as guerras mundiais à porta, a emigração viu-se fechada e será apenas a partir de 1940 que irá acentuar-se, consequência dos danos colaterais provocados pela Segunda Guerra Mundial. Neste período, o turismo diminuiu, assim como a exportação do vinho, o que fez agravar a situação económica na Ilha e aumentar a necessidade de saída dos madeirenses. Na fig. 8, podemos ver o número de emigrantes para a Venezuela e para o Brasil no período compreendido entre 1943 e 1954.   [table id=114 /]   No séc. XIX, apesar de muitos madeirenses terem saído da Madeira, muitos regressaram também; já no séc. XX, e segundo os censos 2011, a população de nacionalidade portuguesa residente na Madeira que já tinha residido no estrangeiro é de 18,2 %; a maior fatia corresponde aos que tinham emigrado para a Venezuela (37,1 %), seguindo-se os indivíduos que tinham estado no Reino Unido (17,5 %). A Madeira é, portanto, uma porta aberta para o mundo, para o fluxo de entradas e saídas de várias comunidades linguísticas e culturais, caracterizada por um contacto persistente e acentuado com outras comunidades linguísticas ao longo do tempo. Desta forma, é possível entender o contacto linguístico na Madeira como um facto que poderá estar na origem de vários fenómenos linguísticos variáveis, sobretudo a nível lexical, mas também fonético, morfológico e, porventura, sintático. Os produtos resultantes dos contactos etnolinguísticos no arquipélago da Madeira serão exemplificados a seguir.   Produtos linguísticos resultantes do contacto linguístico Os estrangeirismos correspondem a empréstimos, porque são termos importados de outras línguas, podendo ou não sofrer adaptações para se adequarem às características fonéticas e morfológicas da língua de acolhimento; surgem por necessidades denominativas e comunicativas. Um dos empréstimos mais usados e generalizados no arquipélago será, sem dúvida, o nome “semilha” (batata), empréstimo do espanhol “semilla” (semente), a partir do qual surgem as formas derivadas “semilheira” (de “semilha” + sufixo -eira), para designar a planta que dá a semilha, e “semilhal” (de “semilha” + sufixo -al), para denominar uma grande quantidade de semilhas. Património linguístico ligado à presença britânica No séc. XVII, uma considerável comunidade inglesa afirma-se na Madeira. Para tal contribuiu também a conjuntura favorável ao comércio colonial inglês, definida em 1663 por D. Carlos II, que lança o vinho madeirense como um importante produto do Atlântico. O vinho ganha hegemonia na cultura madeirense, substituindo o açúcar, tal como refere, em 1727, António Cordeiro, citado por Alberto Vieira: “a abundância de frutos já não é tanta, como nem é tanto açúcar, […] mas a principal de todas é a dos muitos, e excelentes vinhos” (VIEIRA, 2004a, 44). O vinho da Madeira ganha grande relevo e atrai investidores estrangeiros, nomeadamente Ingleses, à Ilha. Aliás, António Ribeiro Marques da Silva, falando da perspetiva de um estrangeiro, afirma que: “Hancock parece ter razão em referir o vinho Madeira como um dos mais importantes motivos da deslocação do comércio atlântico” (SILVA, 2007, 38). Nos séculos que se seguem ao ciclo do açúcar, a Madeira continua a receber imensos estrangeiros, na sua maioria Ingleses, que se fixaram na Ilha e que contribuíram significativamente para o comércio vinícola. Estas comunidades estrangeiras terão provavelmente começado a influenciar linguisticamente a comunidade madeirense. A língua inglesa é, assim, depois da portuguesa, a que é mais falada e a que detém mais prestígio na Ilha. Os elementos da comunidade britânica aí assentaram primeiro como comerciantes e, mais tarde, como naturalistas. No séc. XVIII, a Madeira era vista como um centro político e social em transformação, o que se deveu à presença de duas comunidades linguísticas diferentes. Aliás, a comunidade inglesa na Madeira contribuiu maioritariamente para o desenvolvimento da economia insular, desde o séc. XVII até ao séc. XX, tendo estabelecido uma organização conhecida como British Factory. A narrativa segundo a qual a descoberta da ilha da Madeira é tributária dos Ingleses, ou a lenda de Machim, reforça a ideia da ligação mítica e histórica à cultura anglicana, ideia que tem sido explorada sobretudo na literatura britânica. Alberto Gomes (1950) menciona que uma revista britânica sugere que a conservação da Cruz do túmulo de Anne d’Arfet e Robert Machim na capela da Ordem de Cristo em Machico poderá ser um sinal de que os madeirenses consentem na tese de que o descobrimento foi feito pelo casal inglês. Esta lenda poderá também explicar a forte adesão de Ingleses ao arquipélago. De acordo com David Hancock (2012), a comunidade inglesa fixada na Madeira no início do séc. XIX deveria rondar os 500 indivíduos, muitos deles a viverem nas suas quintas, próximas ao Funchal. Embora a comunidade britânica tivesse poucos membros, a sua influência na construção e no desenvolvimento da sociedade insular foi enorme. Na verdade, não foi só o vinho que os interessou. No séc. XIX, em 1850, apareceram numa exposição no Funchal uns bordados madeirenses que chamaram a atenção de Elisabeth Phelps. No mês de junho do mesmo ano, nos dias 29 e 30, o Cons. Silvestre Ribeiro promoveu os bordados numa feira com o objetivo de fomentar o comércio interno, feira que, de acordo com Luísa Clode (1968), foi visitada por 15.000 pessoas. Posteriormente, Elisabeth Phelps deu a conhecer o bordado madeirense aos Ingleses e, a partir 1854, deu-se início à produção de bordados em larga escala. Com o continuar dos anos, e apesar dos altos e baixos que a sua produção conheceu, pode considerar-se que, de um modo geral, houve um aumento significativo do número de bordadeiras e da sua produção, que se refletiu numa maior afluência de estrangeiros, em especial de Ingleses, ao Funchal para a compra do bordado, assim como na exportação. O património natural insular também resulta, em grande parte, da atividade científica conduzida por naturalistas britânicos que viveram na Ilha, tal como o Rev. Lowe, ou que nela permaneceram algum tempo, e.g., sir Joseph Banks, no séc. XVIII e, no séc. XIX, Morgan Lemann, James Yate Johnson, sir Dalton Hooker, entre outros, a fim de coletar dados que integram várias taxonomias científicas (botânica, fauna, geológica, etc.). Os Ingleses estiveram, assim, ligados à história socioeconómica da Madeira nas suas diferentes fases (açúcar, vinho, bordados e turismo). Logo no final do séc. XVII, a economia da Madeira beneficiou da sua integração no sistema comercial do Atlântico inglês, através do acordo conhecido como Lei da Navegação de 1660, usufruindo, posteriormente, do Tratado de Methuen. No entanto, é de salientar que, apesar da influência da comunidade inglesa na economia insular, os contactos com os ilhéus eram superficiais. Como afirma David Hancock “Interactions between strangers and natives […] were more restrained. […] The Portuguese had ‘a strong aversion’ to the British in particular, specially British Protestants, and the British held a similar view in reverse [As interações entre os estrangeiros e os nativos […] eram mais contidas. […] Os Portugueses tinham ‘uma forte aversão’ aos Britânicos em particular, especialmente aos protestantes britânicos, e os Britânicos tinha uma visão semelhante, simétrica]” (HANCOCK, 2009, 18). Destes tipos de contacto linguístico e intercultural há a registar vários produtos linguísticos, entre os quais regionalismos como “bambote” e “bamboteiro” (de “bum boat”). Aline Bazenga, João Adriano Ribeiro e Miguel Sequeira (2012) referem também o uso de etnónimos, tais como “inglês” e “britânico”, tanto no domínio da antroponímia como da toponímia. No que concerne ao primeiro caso, são de sublinhar os registos da alcunha “o inglês” em arquivos notoriais da Região; no caso dos topónimos, são de assinalar a antiga R. dos Ingleses, a igreja inglesa e o cemitério dos Ingleses. O etnónimo “inglês” também integra nomes de estabelecimentos comerciais, e.g., Botica Inglesa. Os patrónimos de figuras de prestígio da comunidade britânica insular foram também celebrados através do seu uso na toponímia regional. É o caso de Blandy (levada do Blandy), de Phelps (Lg. do Phelps) e de Murray (fontanário Carlos Murray, na freguesia do Monte, no Funchal). O legado da comunidade britânica contempla referências onomásticas de naturalistas britânicos nas descrições taxonómicas de plantas endógenas da ilha da Madeira, e.g. nomes de espécies, como Arachniodes webbiana (A. Braun) Schelpe, de Philip Barker Webb (1793-1854); Dryopteris aitoniana Pic. Serm., de William Aiton (1731-1793); Limonium lowei R. Jardim, M. Seq., Capelo, J.C. Costa & Rivas Mart.; Monanthes lowei (A. Paiva) P. Pérez & Acebes; Lotus loweanus Webb & Berthel; Peucedanum lowei (Coss.) Menezes; Scrophularia lowei Dalgaard; Phagnalon lowei DC.; Koeleria loweana Quintanar, Catalán & Castrov., todas dedicadas ao Rev. Thomas Lowe (1802-1874), naturalista britânico que viveu alguns anos na ilha da Madeira, Convolvulus massonii F. Dietr. e Cheirolophus massonianus (Lowe) A. Hansen & Sunding, ambas em nome de Francis Masson (1741-1805), e ainda Musschia wollastonii Lowe 1856, do mesmo autor, cujo naturalista celebrado é T. Vernon Wollaston (1822-1878). Influência do castelhano na variedade insular madeirense O arquipélago madeirense possui, ainda no séc. XXI, um grande número de emigrantes a residir na Venezuela. As segundas e terceiras gerações, já de nacionalidade venezuelana, quando regressam, esporádica ou definitivamente, à terra natal dos pais ou avós apenas falam castelhano. O bilinguismo é raro nesta comunidade, que, mesmo a residir no espaço insular, conserva a língua daquele país da América do Sul. Quem emigrou jovem fala, normalmente, português com muitas interferências castelhanas, mas o inverso também acontece, porque há quem opte pelo castelhano com, inevitavelmente, interferências portuguesas. De qualquer modo, sucede que, quando regressam para residir no arquipélago, formam comunidades, essencialmente familiares, mas também de vizinhança, mantendo tradições venezuelanas e conservando o idioma que falam entre si. Diz-se que o hábito madeirense de cozer milho terá origem venezuelana, mais precisamente na polenta; não será por acaso que muitas marcas de farinha de milho usadas neste prato madeirense têm nomes castelhanos. Estes “madeirenses venezuelanos” são reconhecidos e identificados pelos locais como “mira”, a exclamação castelhana usada para chamar a atenção de outrem. Congregando a comunidade, o Consulado da Venezuela joga um papel determinante na valorização da mesma, que inclui madeirenses casados com venezuelanos de outras origens que não a madeirense, havendo, portanto, outros contactos linguísticos. Esta influência castelhana é notória, e.g., nos nomes próprios de muitos madeirenses, sobretudo os de dupla nacionalidade, que se destacam no conjunto dos nomes próprios tipicamente portugueses dos madeirenses que não emigraram. Quando se ouvem nomes como “Melita”, “Reina”, “Estefani”, “Nancy”, “Juan” e “Juan Carlos”, reconhecem-se, sobretudo, lusodescendentes, cujos pais passaram por aquele país da América Latina. Para além disto, é na culinária que se destaca a ocorrência de vocábulos de origem castelhana; assim, a empanada, que se reencontra em restaurantes da ilha da Madeira, é um exemplo claro deste contacto linguístico motivado pela aquisição de novos hábitos culturais. Apesar do forte peso que tem, não se deverá, contudo, apenas à Venezuela a influência castelhana na variedade insular madeirense. Segundo Deolinda Macedo, tal influência remontará ao séc. XVII, aquando do domínio filipino; é uma convicção da autora, embora não exemplifique: “Em algumas regiões, nomeadamente, no norte, existem certos vocábulos que parecem acusar influência espanhola. O caso não deve parecer-nos muito estranho, porquanto é facto averiguado que durante o domínio filipino se foram estabelecer, na Madeira, várias famílias daquela nacionalidade. É natural, pois, que a estada dessas famílias na ilha tivesse deixado entre os seus habitantes alguns vestígios” (MACEDO, 1939, 3). Quando enuncia, e.g., “particularidades fonéticas”, a autora refere que “no norte, especialmente em S. Vicente, é vulgaríssima a pronúncia de tu e su para designar respetivamente os pronomes teu e seu ou tua e sua, o que denota certamente influência espanhol [sic]” (Id., Ibid., 14). No entanto, não fica bem demonstrada esta influência. Aliás, Helena Rebelo (2007), procurando influências do castelhano na variedade insular madeirense pela consulta de alguns vocabulários madeirenses, realça isso mesmo. O exemplo mais flagrante é o caso de “semilha”, que, comprovadamente, tem origem castelhana, mas pelo contacto, de novo, com a América Latina. Contudo, a presença de falantes de castelhano no arquipélago madeirense vai sendo, pontualmente, referida. Na narrativa “Prophetas” (1884), de Mariana Xavier da Silva, e.g., é mencionada a presença de um castelhano a viver no Porto Santo: “Um aventureiro espanhol servia-lhes de sacristão, e tocava todos os dias a campainha lançando pregão para a prática”; “servindo-lhes de porteiro o espanhol, que era fino e astuto, e muito dedicado aqueles impostores” (SILVA, 1884, 167-168). Esta presença não será, decerto, caso isolado e isso terá consequências na língua falada. Num dos textos de “populismos madeirenses”, o subintitulado “origens”, escreve Alberto Artur Sarmento: “A corrente de famílias estrangeiras que acudiu à Madeira pouca influência teve, a não ser a castelhana e depois mais durante o domínio em que foi estabelecido no Funchal o presídio com tropas vindas de Espanha. [...] Além dos nomes de origem algarvia, grande número de vocábulos dos árabes e castelhanos andam de mistura com termos corrompidos do inglês que atropelam os primitivos numa contínua variedade de palavras introduzidas, especialmente no Funchal, coração de todo o comércio, e onde o negociante de bordo ou bomboteiro tem uma linguagem muito sua própria” (SARMENTO, 1914). Esta quase ausência de dados, como se não houvesse grandes relações entre o castelhano e a variedade insular, deixa, no entanto, sérias dúvidas. Sabe-se que os arquipélagos da Madeira e das Canárias mantiveram desde muito cedo contactos estreitos, existindo, inclusivamente, famílias mistas; talvez por isso, gerou-se o hábito de passar férias no outro arquipélago, quer para madeirenses, quer para canários. Os investigadores do arquipélago espanhol procuram atestar influências recíprocas entre o português e o castelhano falado nas ilhas. Além disso, residirá no arquipélago da Madeira um número considerável de galegos, que se foram misturando com a população. Terá sucedido o mesmo com alguns gibraltinos, espanhóis, bolivianos, peruanos, mexicanos, etc. Mas o que se conhece, no começo do séc. XXI, sobre os contactos linguísticos entre o castelhano e o português falado no arquipélago madeirense é muito pouco; a deteção dos vestígios linguísticos de uma influência castelhana carece de trabalho de campo, faltando aprofundar a investigação no terreno.   A presença árabe na Madeira A presença árabe no arquipélago da Madeira deve-se, sobretudo, à contribuição dos madeirenses para a conquista e proteção das praças marroquinas, assim como ao desenvolvimento das relações comerciais e culturais entre as ilhas atlânticas, neste caso entre a Madeira e as Canárias, como resultado principalmente da produção açucareira. Alberto Artur Sarmento, no seu artigo acerca dos mouros na Madeira transcrito no Elucidário Madeirense, afirma: “O mouro era mais trabalhador do que o escravo da Guiné e da Mina, por isso a preferência dos senhores das terras em importá-lo para as suas fazendas de cultivo. Este comércio escandaloso […] originou o clamor do chefe dos mouros que lamenta em carta a D. Manuel, o que fazia Azambuja, apanhando a torto e a direito e de todas as classes, para enviar de contrato aos capitães da Madeira. Os mouros formaram núcleos importantes, reunindo-se em grupo ou bairro à parte, como o atesta a Mouraria, uma das ruas mais antigas do Funchal. […] Tiveram grande comércio nas vilas, especialmente em Ponta do Sol e Santa Cruz” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Acrescenta ainda que foi grande o número de mouros existentes no arquipélago da Madeira, nos primitivos tempos da colonização, nomeadamente no Funchal, na Ponta do Sol, no Curral das Freiras e em Machico. Os escravos mouros surgem das várias expedições guerreiras dos madeirenses a Marrocos e este grupo servil teve grande importância na sociedade madeirense no séc. XV. No Elucidário Madeirense, pode ler-se: “Em Santa Cruz, mostrava-se ainda há anos um retábulo existente na igreja paroquial, onde figuravam escravos mouros usando um pequeno turbante afunilado, com uma ponta caída, de que derivaram a carapuça do vilão e a toalhinha pendente da cabeça, antigos trajes característicos da camponesa da Madeira” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Sobre a carapuça madeirense, Wuellerstorf-Urbair, citado por Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, afirmava em 1857: “O capuz mourisco também se modificou, desfigurando-se em gorra semelhante ao barrete frígio e desceu aos ombros em tapa-nuca; reduziu-se depois a carapuça limitada à cabeça, elevada em esboço de ponta cónica no cocuruto e sobreposta a um curto pano de linho, contra o sol, descaído até o pescoço; aguçou em apêndice a parte superior retesada em rabo-de-gato, adelgaçando para cima até acabar em ponta. Em sua forma atual não oferece abrigo nem contra o frio nem contra o calor; não parece mais do que um fragmento de touca mourisca” (PEREIRA, 1989, II, 569). Acrescenta que os habitantes das costas africanas, com quem os primeiros colonos madeirenses tiveram estreitas relações, usavam carapuças semelhantes, as quais eram à maneira de turbantes, circundadas dum pano branco fino, referindo também a igreja de Santa Cruz, onde apareciam alguns escravos árabes com estas carapuças (Id., Ibid.). Voltando ao Elucidário Madeirense, na transcrição do texto de Sarmento, o autor explicita: “Dos mouros, a dolência dos cantares, mas a dança repisada é movimento de negro. Dos mouros as lengas-lengas serranas, os populares: lengi lengi o nevoeiro corriqueiro, a formiga que o seu pé prende” “Entre as brumas, princesas encantadas, as histórias de palácios e riquezas entesouradas, ladrões e varas de condão, são influências e assuntos do povo, migrados nesta corrente de longe subordinada” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Francisco Lacerda, na sua enumeração de influências mouras no arquipélago, também regista os contos de princesas mouras encantadas, bem como os tapetes mágicos, as varinhas de condão e as lengalengas (lingue-lingue). Afirma também que certos sítios têm na sua toponímia reminiscências mouriscas, como a Fajã da Moura (Serra de Água) e a Cova do Mouro (Monte), acrescentando que “aonde hoje se encontra a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, no Faial, existiu uma pequena mesquita, com entrada disfarçada, aonde os mouros secretamente se reuniam” (LACERDA, 1993, 102). O autor menciona ainda que os corsários mouros rondavam os mares do arquipélago e que, muitas vezes, assaltavam povoações, como o Caniçal e a Fajã dos Padres (no Campanário), e salienta que o Porto Santo foi assolado muitas vezes, ficando em escombros e a ilha quase desabitada. Refere ainda a expressão “vai-te p’ra Argel” como praga popular que relembra o saque e cativeiro em terras da moirama. Ao fazer o estudo das tradições orais populares, Lacerda documenta o romance de conde Claro (ou Claros), variante de D. Carlos de Mont’Alvar, recolhido no Porto Santo, no qual podemos encontrar uma referência aos mouros ou moiros: “– Aonde vais tu, conde Claro,/que assim vais tão arreiado?/ – Se eu venho muito arreiado,/É p’ra com moiros brigar” (LACERDA, 1993, 24). A forma “arreiado”, provavelmente de “arrear”, significa “pôr os arreios, peças do aparelho das cavalgaduras” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Nas cantigas, regista uma referência à moirama nos seguintes versos: “Fui cativo p’ra moirama,/pelo triste azar da guerra;/que por mim moneta desse,/não houve perro nem perra [?]” (LACERDA, 1993, 62). “Moirama” ou “mourama”, “terra de muçulmanos” e “os mouros”; “moneta”, possivelmente “moeda” (de monetário); “perro” e “perra”, respetivamente “cão” e “cadela”, “pessoa vil, canalha, patife, sacana” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). O autor documenta ainda, na parte denominada “Cantigas d’amor”, a composição “Pretidão de amor”, onde também há uma clara referência aos mouros: “Passei pela tua porta/Pedi-te água, não me deste./Tu passaste pela minha/Bebeste quanta quiseste./Nem os moiros da moirama/Faziam o que tu fizeste!” (LACERDA, 1993, 153). Outra relação entre a ilha da Madeira, o Norte de África e Portugal diz respeito à lenda da ilha de Arguim, que Lacerda regista da seguinte forma: “Em certas tardes brumosas, aparece, ao pôr do sol, para os lados do Porto Santo uma ilha, também envolta em bruma, onde o Desejado (Rei D. Sebastião) dorme e espera, desde a desastrosa jornada de Alcácer-Quibir. Espera, até que uma alma forte consiga abordar a misteriosa ilha de Arguim” (LACERDA, 1993, 80). Arguim é uma ilha na baía de Arguim, na Mauritânia, onde teria sido construída a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, por ordem do infante D. Henrique, senhorio do arquipélago da Madeira. Foi um importante centro de comércio, estabelecendo ligações com Safim, depois Marrocos. O Rei D. Sebastião, derrotado pelos mouros na batalha de Alcácer-Quibir, teria fugido para uma ilha no oceano Atlântico, que seria Arguim; na rota para esse lugar, teria passado pela ilha da Madeira, tocando o cabo do Garajau, e na rocha teria espetado a sua espada, que aí ficou encantada, a aguardar que um dia ele voltasse para a conquista do território português que, entretanto, tinha sido submetido aos Filipes de Castela. Outra versão da lenda diz que o Rei enterrou a sua espada na encosta mais árida e escarpada da Penha de Águia, no Porto da Cruz. Marco Livramento refere ainda a lenda da construção do templo a S.to António, na freguesia de Santo António da Serra (concelho de Santa Cruz), que, curiosamente, teve como interlocutor preferido um escravo mouro (Lendas e mitos fundadores). A presença árabe parece estar patente na música e nas tradições populares madeirenses, e.g. na mourisca, como o próprio nome indica. Lacerda, a propósito da presença moura no arquipélago da Madeira, diz que mourisca é o nome de uma dança que perdeu todo o seu carácter mouro (LACERDA, 1993, 103). Carlos Santos afirma tratar-se de uma canção que se popularizou, adquirindo variantes de freguesia para freguesia, sendo cantada sobretudo na cultura do trigo do trabalhador mouro ou madeirense (SANTOS, 1937, 39). No entanto, não há nenhuma certeza sobre a herança árabe no folclore madeirense, i.e., não há dados concretos que provém esta influência. Carlos Santos refere que “A canção popular revela fielmente a vida e os trabalhos do homem rural, as alegrias e dores, esperanças e incertezas, o amor e a fé. As ilhas da Madeira e Porto Santo, colonizadas por gentes vindas do Norte ao Algarve de Portugal continental, assim como escravos mouros, negros e outros, naturalmente reflete o modo de ser, pensar, agir e reagir, a mentalidade dos povos que as precederam […]. A influência árabe, que mais do que qualquer outra se manifesta no nosso povo, não é já árabe, senão portuguesa na sua origem, para nós. Essencialmente portugueses são a nossa gente e o nosso carácter” (Id., Ibid., 8). O autor escreve: “Igualmente não é crível que as primeiras gerações madeirenses fossem todas puras e assimilassem unicamente os hábitos e costumes dos seus progenitores. […] Não esqueçamos, igualmente, que aos escravos nunca foi proibido dançar e cantar” (Id., Ibid., 39), tal como aconteceu no Brasil. No entanto, isto não invalida que haja traços de música continental portuguesa, i.e., parecenças entre a música da Madeira e a do Minho, do Alentejo e do Algarve. Mas, segundo o autor, o estilo é madeirense, produto de uma miscelânea em que prepondera o árabe; e questiona: “E se no Minho há muitas canções alegres, porque haviam de ficar na Madeira só as monótonas?” (Id., Ibid., 40-41), para concluir que, na Madeira, “tanto nas populações ribeirinhas como nas serranas usam-se as mesmas músicas – o charamba, a mourisca e o bailinho. […] Se o estilo preponderante e generalizado mais se aproxima do mouro, segue-se que eles o deixaram por cá como aconteceu em várias províncias continentais. […] Há de haver de tudo um pouco; mas o estilo musical, não sendo o característico do continente, convida a uma reflexão demorada. A sua pobreza melódica aproxima-se da música árabe tanto quanto se afasta das ricas melodias portuguesas” (Id., Ibid., 44-45). Posto isto, o charamba, a canção mais conhecida no folclore madeirense, possivelmente deixada pelos árabes, foi adotada com variação de freguesia para freguesia. Com um ritmo arrastado e sentimental que revela a alma do povo madeirense, é o género musical mais antigo da tradição popular ou rural. Na Madeira é cantado, enquanto nos Açores é uma dança. Para Carlos Santos, o charamba parece traduzir o lamento de escravo ou ser uma melodia árabe; os camponeses madeirenses identificaram-se com esta melodia, devido à sua dura vida rural. O autor observa que, sempre acompanhado com a viola de arame, o charamba entrou no ouvido dos madeirenses, como provam as seguintes quadras: “O charamba pelo meio/Toda a vida m’agradou/Depois que o charamba veio/Outra moda não se usou” e “O Charamba foi às lapas/A mulher aos caranguejos/A filha ficou em casa/A dar abraços e beijos” (Id., Ibid., 49). Maria de Lurdes de Oliveira Monteiro, ao descrever o baile da meia-volta do Porto Santo, aponta as “características irrefragáveis dos árabes, com os quais a ilha, durante séculos, teve intercâmbio populacional: [...] não há ninguém que, vendo estas rodas e meneios lentos, em noites de luar e ouvindo as toadas melancólicas e trinadas que os acompanham não chegue instantaneamente a essa conclusão, tão grande é a semelhança” (MONTEIRO, 1945, 48). Adalberto Alves (1999) afirma que grande parte dos instrumentos musicais usados em Portugal, como o violino, a guitarra, o alaúde, a gaita, o pandeiro e o adufe, deriva diretamente dos instrumentos árabes. Jorge Torres e Rui Camacho (2015), a propósito dos instrumentos musicais populares, citam Gaspar Frutuoso, que, por volta de 1590, na descrição da ilha da Madeira, referindo-se à romaria de N.ª Sr.ª do Faial, diz congregar mais de 8000 pessoas, “que se deixam estar dois, três e mais dias em Nossa Senhora […] e juntos fazem muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, flautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 1873, 99). Os autores não nos dão nenhuma indicação sobre o que seria(m) este(s) instrumento(s) denominado(s) rabis, talvez por ser(em) desconhecido(s). Nem Torres e Camacho (2015) nem Torres (2015) fazem qualquer referência à influência árabe, pelo facto de não existirem dados que a comprovem, como já referido. Sobre o violino popular, o grupo de folclore do Porto Santo escreve: “Mais conhecido por rebeca foi sempre um acompanhante inseparável das danças e cantares mais característicos e tradicionais do Porto Santo, como o Baile da Meia Volta e Ladrão. Assim, pode-se concluir que o seu aparecimento no Porto Santo esteja ligado à chegada dos mouros a esta ilha, tal como as danças referidas. Posteriormente, este instrumento passou a acompanhar todas as festas populares, tanto religiosas como profanas” (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1999, 10). Relativamente à influência árabe na alimentação madeirense, os autores do Elucidário Madeirense citam Sarmento, que chama a atenção para o cuscuz dos mouros, “massa granulada de farinha de trigo, tão apreciada pelas classes pobres e que só a comem nas ocasiões solenes, com um naco de carne de porco, pelos batizados e casamentos, não faltando o ramo de segurelha e coentro que encima o prato e o aromatiza” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408-409). A palavra “cuscuz” (do ár. “kuskus”) surge em Luís de Sousa com a grafia “cuscus”, definida como “produto de confeção mourisca, fabricado principalmente em Marrocos e na Madeira. Notas. I. Z.” (SOUSA, 1950, 57), que se utiliza geralmente como arroz; com efeito, na Madeira, o trigo, convertido em farinha, além de ser usado para fazer pão e doces, também é usado para fazer cuscuz. Veríssimo refere que, no Convento da Encarnação do Funchal, “No Dia de Jesus ou nos Reis nunca faltava o picado de carneiro com cuscuz” (VERÍSSIMO, 1987, 39). O trigo era empregue em pão, bolos, doces, empadas, pastéis e cuscuz. No ano de 1769, e.g., as freiras consumiram 6,5 alqueires de cuscuz (Id., Ibid., 40). O Visconde do Porto da Cruz escreve: “O cuscus – parece que foi introduzido na culinária madeirense pelos escravos mouros do tempo dos povoadores – é dos pratos mais divulgados”. Diz-nos que há dois pratos: “o cuscus vulgar e o cuscus rico. O primeiro come-se só com água, sal, um raminho de segurelha, manteiga e serve-se quente e o segundo é feito do mesmo modo mas come-se com passas de uva, azeitonas, pedaços de chouriço, de carne de porco, de carne de galinha e até conservas de pepino, couve-flor, etc.” (PORTO DA CRUZ, 1963, 43). Lacerda nota que o cuscuz é “receita e uso deixado pelos mouros, muito usado nos conventos e entre seculares, nos casamentos e batizados” (LACERDA, 1993, 96); Zita Cardoso menciona que o cuscuz é servido como arroz, especialmente na quadra do Natal e na Páscoa, com pratos de carne: “Trazido do Norte de África, depois muito usado na Madeira e Porto Santo, foi alimento dos pobres muito vulgarizado na Ponta do Sol, Ponta do Pargo e Calheta. Foi também manjar senhorial. Daí haver o cuscuz rico, quando adicionado com pedaços de carne de porco, vaca, galinha, chouriço, passas, legumes e azeitonas em conserva” (CARDOSO, 1994, 134). O cuscuz é característico da zona oeste da Madeira, mas a tradição de fazer e cozinhar cuscuz não era desconhecida na parte leste da ilha, onde, como já se referiu, também houve uma importante presença moura. Élvio Sousa mostra que o cuscuz constava do receituário tradicional das cozinhas dos solares da Vila de Machico, ou seja, o seu fabrico e consumo seria frequente apenas nas casas abastadas, ao contrário do que acontecia noutras partes da Ilha (em que o seu uso era generalizado); talvez tenha sido por isso que desapareceu da parte leste da Ilha. Normalmente, era um prato confecionado em dezembro, antecedendo a matança do porco. A Revista Folclore informa que o cuscuz de trigo, na alimentação tradicional madeirense de São Vicente, era utilizado todo o ano, mas principalmente entre novembro e junho, porque se cozinhava com linguiça de porco e esta era feita com a matança do porco (GRUPO DE FOLCLORE DA CASA DO POVO DE SÃO VICENTE, 1998, 31). Segundo o Elucidário Madeirense, os habitantes da ilha do Porto Santo dão o nome de escarpiada ao pão de fina espessura feito com farinha de milho moída em moinho de mão ou de vento, sem fermento, que só terá sobrevivido nessa ilha. A massa do pão, achatada e muito fino, é cozida numa pedra de barro (o caco), untada com azeite ou banha de porco, sendo voltada de um lado e do outro (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1998, 13). Parece tratar-se de um pão de origem árabe, característico do Porto Santo, onde a influência moura teria sido maior; contudo, segundo Alberto Vieira (2004a), consumia-se escarpiada, no séc. XVIII, no Convento da Encarnação, no Funchal. Alberto Vieira, em “A mesa e a cozinha na história madeirense” (2004b), afirma que o cuscuz, a escarpiada e o bolo do caco terão origem no Norte de África, devido ao contacto entre as duas áreas geográficas e aos escravos mouros; a escarpiada ou escrapiada teria sido introduzida no Porto Santo pelos árabes; igualmente de origem árabe será, como já se disse, o bolo do caco, pão elaborado à base de farinha de trigo, podendo levar batata-doce para ficar mais fofo e doce, tendo igualmente um aspeto achatado e de bordas arredondadas. O bolo do caco deve o nome ao facto de ser cozido a lenha, numa pedra de basalto, denominada caco de pedra, colocada sobre o lar. A presença árabe no Arquipélago da Madeira também passa pela influência berbere dos escravos guanches das Canárias. Segundo o Elucidário Madeirense, o gofe ou gófio, papa que se fazia no Porto Santo com cevada moída depois de torrada, terá sido introduzido no arquipélago no séc. XV pelos guanches, oriundos de Gran Canária, de La Palma, de Tenerife e de La Gomera (SILVA e MENESES, 1998, II, 92-93). Em Ilhas de Zargo, Eduardo Pereira informa que ainda se fabricava gófio no Porto Santo, mas em diminuta quantidade, somente para uso particular na alimentação de crianças, débeis e doentes (PEREIRA, 1989 II, 580). Destaque-se ainda a tanarifa ou abóbora moira, também conhecida por moganga com a variante boganga/o, que parece ser simultaneamente de influência canária e moura. Trata-se de uma abóbora branca que, na Madeira, serve sobretudo para fazer sopa. Os vocábulos “tanarifa” e “abóbora moira” apresentam pouca vitalidade no concelho do Funchal e na zona leste da ilha, enquanto no concelho da Ponta do Sol e Calheta (zona oeste) parecem ser muito conhecidos. O termo “tanarifa” surge em Fernando Augusto Silva (1950), em Luís de Sousa (1950), em Antonino Pestana (1970) e em Marques da Silva (2013) como sinónimo de “abóbora moira”. Helena Rebelo (2007) refere a possível origem espanhola ou canária do termo, também registado como “tenerifa” por Luís de Sousa (1950). J. M. Barcelos (2016, 392), além de registar este termo como “abóbora, o m. q. boganga/moganga”, explica que a tanarifa também é conhecida como “abóbora de Tenerife”, indicando que “Tanarife era forma antiga de Tenerife, de onde terão vindo algumas dessas espécies de legumes, em caixas de madeira, nas quais vinha escrito o nome dessa ilha das Canárias”. O estudo destas palavras e coisas da cultura madeirense mostra-nos a herança das inter-relações históricas, linguísticas e etnográficas, cuja presença se prolongou na cultura madeirense. O francesismo linguístico na realidade insular: o regionalismo “tratuário”/“trotoario” Contrariamente às situações de contacto já referidas, que remetem para a presença de comunidades linguísticas e culturais distintas no mesmo espaço insular, o contacto do português falado na Madeira com o francês pode ser visto como sendo à distância, uma vez que não pressupõe a presença de uma comunidade francesa apreciável. A influência francesa no léxico regional deve-se, tal como ocorre com a variedade padrão do português, ao facto de ser grande o prestígio da cultura francesa em geral no final do séc. XVIII e durante o séc. XIX. Esta situação, de tipo unidirecional (no sentido do francês para o português), difere, e.g., da que caracteriza o contacto com o espanhol, sobretudo nas variedades das ilhas Canárias, as quais integram um número considerável de portuguesismos, sendo por este motivo considerada uma situação de contacto bidireccional A terceira fonte em número de vocábulos no português é o francês, que, durante séculos, primeiro na Idade Média, e mais tarde, nos sécs. XVIII e especialmente XIX, foi a língua de cultura da Europa. Muitas das palavras de origem francesa recolhidas nos dicionários tornaram-se de uso culto, literário, sendo outras arcaísmos; contudo, uma parte apreciável continuou a ser utilizada, integrando-se na linguagem diária portuguesa, “abajur”, “afazeres”, “agrafo”/“agrafar”, “berma”, “betão”, “creche”, “écran”, “ancestral”, “apartamento”, “assassinato”, “avenida”, “banal”, “bicicleta”, “bobina”, “boné”, “cabine”, “cabotagem”, “camuflagem”, “chance”, “conduta”, “constatar”, “crachá”, “departamento”, “detalhe”, “eclosão”, “elite”, “embalagem”, “emoção”, “evoluir”, “fetiche”, “governante”, “greve”, “maquete”, “restaurante”, “revanche”, “revoltante”, “silhueta”, “sabotagem”, “vitrine”, etc. Algumas foram integradas no português sem alterações (“fantoche”), outras adaptaram-se às propriedades morfológicas e fonológicas do português, obedecendo também a alguns ajustes de tipo gráfico (“chauffeur”>“chofer”). Este processo de empréstimo de palavras a outras línguas pode ocorrer com alteração de propriedades gramaticais, e.g., o género, como, na passagem do francês para o português, em: “une robe”>“um robe”; “une envelope”>“um envelope”; “le courage”>“a coragem” (VILLALVA, 2008). A variedade urbana insular (Funchal) integra no seu léxico a palavra “tratuário”, que tem a sua origem no termo francês “trottoir”, nome masculino derivado do verbo “trotter” (de *“trotton”>“trotten”, correr , forma intensiva de “treten”, dar um passo, andar). Palavra atestada nesta língua desde o séc. XVI, destaca-se ainda, na sua etimologia, o uso da expressão “être sur le trottoir” (1577), com o significado ser tema de conversa; “se mettre sur le trottoir”, com o sentido figurado de produzir-se, mostrar-se (1592); o termo designa a pista na qual trotam cavalos (1660). A referência a passeio, ou “chemin élevé le long des quais et des ponts pour les gens qui vont à pied [percurso elevado, ao longo dos cais e das pontes, destinado aos transeuntes] ”, surge já no séc. XVIII (1782) (REY, 2005). Do ponto de vista das suas propriedades semânticas, integra-se, enquanto nome locativo, na categoria de objetos dimensionais de superfícies de duas dimensões; nesta categoria, pertence à classe dos nomes de passagem, caracterizados pelas correlações com deslocação, ao lado de uma via urbana, no domínio da vida quotidiana (LE PESANT, 2000). “Tratuário” aparece, assim, no léxico regional madeirense, variedade do PE, entre peregrina e empréstimo, acompanhada de uma outra, “trotoário” (como em O Amor Que Purifica e Trotoário Azul, Fotonovelas Feitas na Ilha da Madeira). Estas duas formas gráficas revelam opções de adaptação distintas: a primeira procura conformar-se à fonologia do português e a uma das suas propriedades (redução do vocalismo átono), dando conta, no seu radical *trat-, da realização da vogal central, média-alta (VELOSO, 2012) em posição pretónica, afastando-se da representação gráfica da palavra francesa; já na segunda, reconhece-se o radical nominal trot- (de “trote”, nome masculino), com diferentes realizações fonéticas nas duas línguas em relação. Ambas opções recebem, através da vogal final -o, índice temático com valor de género (masculino), de acordo com as regras morfológicas do português. De notar que os sufixos -ário e -oir, português e francês, respetivamente, têm a mesma origem latina (-arius e -orium), sendo utilizados na formação de nomes de agente, com valores instrumental e locativo, mas com propriedades morfológicas distintas: o primeiro anexa-se a radicais nominais, o segundo a radicais verbais. “Tratuário” e “trotoário”, configuram-se então como hibridismos (CUNHA e CINTRA, 1984, 115). Palavras não registadas nos vocabulários regionais de referência, não é possível datar a sua entrada no léxico regional. No entanto, atendendo à data em que surgem atestadas no léxico de origem, é provável que o momento em que passaram a ser utilizadas na comunidade insular se situe nos finais do séc. XIX, altura em que se procede à edificação e calcetamento da praça do Rossio, em Lisboa, em que surge a calçada-mosaico e em que, “nas ilhas, o seixo rolado em abundância floresce num tratuário urbano para os peões” (MATOS, 2014), época coincidente com a do francesismo – iniciado a partir dos meados do séc. XVIII até aproximadamente à Segunda Guerra Mundial, período marcado pela influência cultural de França em vários aspetos da vida portuguesa (literatura, política, ideias) e também na língua, em diversas componentes do seu sistema, como refere Paul Teyssier (1994).     Catarina Andrade Aline Bazenga Helena Rebelo Naidea Nunes     artigos relacionados: cintra, luís filipe lindley gramáticas provérbios e outros ditos populares regionalismos madeirenses  

Linguística

nascimento, joão josé

Pintor retratista, nasceu em Machico, em 1784, sendo filho de Estevão José do Nascimento e de Ana Joaquina de Sousa, também naturais de Machico e casados nesta freguesia em 23 de outubro de 1779. A 14 de dezembro de 1802, matriculou-se, em Lisboa, na aula de Eleutério Marques de Barros (um dos discípulos do gravador Bartolozzi), que frequentou durante quatro anos. Contudo não completou o curso, vendo-se obrigado a regressar à Madeira pela altura das invasões das tropas francesas. Concluiu, depois, o curso na Madeira. Foi aluno das aulas de Desenho e Pintura do Funchal, cadeira criada em 1809 pela carta régia de 7 de junho, que tinha como professor responsável o pintor Joaquim Leonardo da Rocha. Enquanto aluno deste, foi premiado nessa aula, onde já exercia o ofício de retratista. Em 1825, João José Nascimento chegou a concorrer, assim como Felipe Cardoso da Costa e Melo, ao lugar de professor substituto da cadeira de Desenho e Pintura, que vagara, possivelmente pelo falecimento do seu detentor, não se sabendo ao certo se chegou a reger interinamente a referida cadeira, visto que não há referências ao funcionam da aula a partir dessa data. João José do Nascimento deixou um conjunto de retratos a óleo, em coleções particulares e públicas (nomeadamente no Palácio de São Lourenço e na Câmara Municipal do Funchal). Curiosamente, expôs algumas das suas obras ao público, conforme um anúncio publicado no jornal O Defensor, datado de 1846, prevenindo os leitores de que “os quadros da sua produção estão longe da categoria dessas sublimes pinturas […] que Suas Senhorias tem visto nas soberbas galerias que tem visitado” (O Defensor, 18 abr. 1846). De entre os seus trabalhos, relevam-se: “Personagens na Rua da Carreira”; “Os Dois Meninos Cavaleiros”; “O Arrojo de Cinco Patriotas”; “A Aclamação do Governo Liberal na Madeira”; “O Instinto Magnetisa Almas Ilustres”; uma cópia do retrato de João Gonçalves Zarco, do Palácio de São Lourenço, pertencente a Rui da Câmara; um retrato de António Rodrigues Garcês, na opinião de João Cabral do Nascimento; o retábulo da capela de Nossa Senhora do Desterro, no Monte; um desenho a lápis num exemplar da Galatée de Florion (1847); e o retrato do bispo de Moçambique, em 1847. Atribui-se a este pintor madeirense a autoria da pintura existente no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro que representa a princesa Leopoldina a passear nas quintas da Madeira. A legenda do quadro refere: “Arquiduquesa Leopoldina, princesa real do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, etc. passeando na quinta do Vale Formoso, morada atual do bispo presente na ilha da Madeira, em 12 de 7bro 1817”. Existe outra versão, ligeiramente menor, dada como pintada na quinta do Palheiro Ferreiro, então propriedade do futuro conde de Carvalhal. Aos 64 anos, João José casou-se com Joana Vicência de Castro, de 38 anos, natural de São Gonçalo, com quem teve um filho de nome João do Nascimento. Na altura do casamento, deu a profissão de retratista. Morreu por volta de 1850.   Lucinda Maria da Silva Moreira (atualizado a 03.03.2018)   artigos relacionados: rocha, joaquim leonardo da pintura zarco, joão gonçalves palácio e fortaleza de são lourenço

Artes e Design

museus

No arquipélago da Madeira, e particularmente na cidade do Funchal, os museus desenvolveram-se como resultado da investigação e da constituição de coleções científicas, saídas do espírito iluminista dos finais do séc. XVIII. A sua posição estratégica, entre os circuitos do Velho Mundo e os seus impérios coloniais, nas rotas de atravessamento do Atlântico fez com que se iniciassem investidas do domínio científico, sobretudo no âmbito das ciências naturais. Charles Darwin não esteve na Madeira, mas mandou lá um discípulo e incluiu várias espécies madeirenses nos seus trabalhos científicos. James Cook, por sua vez, esteve no arquipélago à procura de raridades botânicas, iniciado que estava na Europa um pensamento sistemático de cariz científico para conhecer a fauna e a flora. Do estudo e catalogação da natureza, partiu-se rapidamente para a sua recriação, procurando-se, num espaço confinado, reproduzi-la a partir do trabalho do homem. Nasciam assim, e tornavam-se cada vez mais comuns, os jardins botânicos. Já Hans Sloane (1660-1753), fundador do Museu Britânico, esteve na Madeira a caminho de expedições às Antilhas Inglesas. As expedições científicas tinham por objetivo a constituição de coleções, como são os casos do Museu Britânico, dos Kew Gardens, da Universidade de Cambridge e do Museu de História Natural de Paris. A Madeira funcionou muitas vezes como laboratório de experimentação das técnicas de estudo e recolha que foram aplicadas nas viagens feitas no Atlântico, no Índico e no Pacífico. Serviu também o arquipélago de espaço de aclimatação de plantas entre os hemisférios Sul e Norte, existindo até, desde finais do séc. XVIII, estudos para a criação de jardins com esse propósito. Até cerca de 1828, funcionou, na zona do Monte, um primeiro viveiro de plantas. Em 1850, o governador civil da Madeira, José Silvestre Ribeiro, lançou a ideia da criação de um gabinete de história natural, afirmando: “tomei sobre mim o empenho de dar começo ao estabelecimento de um museu, na cidade do Funchal, deixando ao tempo, ao zelo dos que me substituírem e à solicitude do ilustrado Governo de Sua Majestade e seu progressivo desenvolvimento. Em todos os países cultos, a fundação de Museus tem merecido aos governantes a mais desvelada atenção. É que estas instituições são livros abertos aos olhos da inteligência popular e o melhor meio de cultura científica e social” (SILVA, 2002, 72). Neste contexto, chegaram mesmo a ser disponibilizadas algumas salas do palácio de São Lourenço para a instalação provisória do museu, que acabou por ser desmontado com a saída do governador. Em 1852, Frederico Welwitsch propôs a criação de um jardim de aclimatação do Funchal. Uma recolha realizada na Madeira foi depois entregue ao herbário da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Em 1854, o barão de Castelo de Paiva desenvolvia na Madeira trabalhos de recolha científica, que resultou na doação de um herbário da Madeira e Porto Santo à Real Academia das Ciências. Já o documento elaborado por Frederico Welwitsch, sob o título Aforismos acerca da Fundação de Jardins de Aclimatação na Ilha da Madeira e em Angola, na África Austro-Ocidental, e entregue à Casa Real refere curiosamente que a existência de um bem organizado jardim, povoado com as mais vistosas produções da flora de todas as zonas, havia forçosamente de chamar para ali um avultado número de viajantes curiosos e aumentar consideravelmente a já não pequena concorrência de doentes, convidando uns e outros a uma maior demora naquela Ilha dos encantos: “parece a criação de um jardim de aclimatação, com as componentes modificações para ao mesmo tempo servir de passeio público, uma das mais eficazes providências que o governo de Sua Majestade atualmente podia dar para aquela Ilha, a fim de mitigar algum tempo tanto as tristes consequências da devastadora epífita que lá reina, bem como para evitar a futura repetição de semelhantes desastres, que mais cedo ou mais tarde sempre se deverá recear, se os madeirenses continuarem a basear exclusivamente, como até agora, todas as suas esperanças agrícolas sobre um só género de cultura” (VIEIRA, 1985, 102). Assim, ao longo do séc. XIX, foi-se acumulando experiência científica no ramo das ciências da natureza, transformando-se a Madeira num ponto estratégico no quadro da exploração mundial. Para além disso, a presença assídua da Madeira na rota das campanhas oceanográficas do príncipe Alberto do Mónaco, entre 1879 e 1912, parece ter também inspirado a atenção dada ao mar por D. Carlos I, Rei de Portugal. O padre alemão Ernesto João Schmitz, nascido em Rheydt, vice-reitor do Seminário do Funchal, fundou em 1882 um Museu de História Natural, conhecido como Museu do Seminário, reunindo, na sua qualidade de especialista em ornitologia, uma coleção notável da fauna madeirense. As coleções primeiramente organizadas por Schmitz foram depois completadas e aprofundadas por outros especialistas. Em 1908, o Museu passa a ser dirigido pelo então reitor do Seminário, Cón. Manuel Agostinho Barreto. Com a implantação da república, o Museu foi desmontado e transferido para casa própria no Lg. de Ribeiro Real. Esteve depois um tempo desativado até ter voltado, na déc. de 40 do séc. XX, ao Seminário da Encarnação, integrado, já na déc. de 80 do mesmo século, no Jardim Botânico do Funchal. Como são exemplo outras unidades surgidas com a República, foram criados pelo país museus escolares, como é o caso do Museu do Liceu do Funchal, a partir de coleções ligadas às ciências da natureza adquiridas em 1913 e 1914 por Alberto Artur Sarmento. A primeira experiência museológica fora das ciências da natureza que revela uma preocupação com a proteção do património construído é da Câmara Municipal do Funchal (CMF), em 1915, com o projeto de constituir um museu arqueológico no Convento de Santa Clara do Funchal, reunindo elementos arquitetónicos de demolições de edifícios históricos, como as armas do Convento de São Francisco do Funchal e várias inscrições epigráficas. Foi ainda revelada a intenção de esse Museu ser o fiel depositário do próprio espólio artístico do Convento de Santa Clara, que se encontrava praticamente ao abandono. No entanto, problemas relativos à tutela e direitos de outras instituições sobre o Convento não permitiram dar continuidade ao projeto. Outra ideia sem continuidade efetiva foi a do museu oceanográfico que a CMF, em 1920, queria instalar no edifício da Santa Casa da Misericórdia. Por deliberação da CMF, foi criado, em 1929, o Museu de Ciências Naturais, sob proposta de Adolfo César de Noronha (nomeado diretor da Biblioteca Municipal em 1928), só abrindo ao público em 1933, no palácio de São Pedro, antiga residência dos condes Carvalhal. Nasceu com a designação Museu Regional da Madeira, anexo à Biblioteca Municipal, tendo-se achado pertinente a existência de secções de arqueologia, arte e etnografia. A inexistência de outras unidades museológicas que desenvolvessem outros aspetos da história do arquipélago justificavam a presença das secções referidas. Em visita à instituição, Manuel Cayola Zagallo refere a sua insuficiência no que concerne à designação de “museu regional”, visto ser pouco abrangente noutros campos do conhecimento para além das ciências da natureza, afirmando a necessidade de ser rebatizado como Museu de História Natural, a sua verdadeira vocação. Por sugestão de Adão Nunes, em 1957, foi possível concretizar, no rés do chão do edifício, um aquário de água salgada, já com orientação técnica de Günther E. Maul, onde se apresentaram os mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira. Günther E. Maul, diretor do Museu entre 1943 e 1981, foi desenvolvendo a apresentação de animais montados, encontrando-se, em 2015, acessíveis ao público cerca de 78 espécies de peixe, 247 aves, 14 mamíferos terrestres e marítimos, 3 répteis marinhos, 152 insetos e outros invertebrados, assim como uma importante coleção de rochas e minerais do arquipélago, tais como fósseis marinhos do Porto Santo. Em 2015, as coleções atingem cerca de 37.500 exemplares. Permanecendo praticamente intacto desde a sua inauguração, este museu passou a ser, em termos de conceção museográfica, e apesar da reorganização do seu programa científico e orientação museológica, um importante exemplo da história da museologia portuguesa, mantendo o seu cariz oitocentista. É também de destacar o facto de ter sempre desenvolvido uma vertente de investigação científica, publicando desde 1945 o Boletim do Museu Municipal do Funchal e ainda, de forma não periódica, a revista Bocagiana, com a inscrição de novas espécies para a ciência dos vários arquipélagos atlânticos. A manutenção, desde o nascimento do Museu, de um sistema de permutas deu origem a uma importante biblioteca especializada. O Museu desenvolveu ainda uma importante ação educativa, com atividades ligadas à educação ambiental e divulgação científica que são desenvolvidas dentro do espaço museológico dos seus serviços de educação, mas também no exterior. O Museu seria integrado no departamento de ciência da CMF, assim como na Estação de Biologia Marinha, junto ao antigo cais do carvão, no Funchal. No campo das artes plásticas, história e arqueologia, sendo esparsas as preocupações das entidades governamentais e autárquicas, apesar de referidas em vários fóruns, a Madeira não conseguiu, até meados da segunda década do séc. XX, concretizar nenhuma instituição museológica com plena autonomia. No campo das artes plásticas era notória a existência de algumas coleções e do interesse por obras de arte dos colecionadores portugueses e de origem inglesa estabelecidos na Ilha. É exatamente por via de uma coleção privada, a de César Filipe Gomes, e da sua doação ao Estado, após a aquisição em 1946 da Qt. das Cruzes, que nascerá o primeiro museu de vocação próxima das artes decorativas. A inauguração do Museu da Quinta das Cruzes, quinta que, em 1947, havia sido classificada como imóvel de interesse público, só acontecerá em 1953, integrada nas comemorações oficiais do 28 de Maio. O processo de aquisição do imóvel não foi pacífico, tendo sido concluído apenas em 1948. No documento de doação de toda a coleção de obras de arte por parte de César Filipe Gomes, fica à responsabilidade da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal a criação do Museu de Artes Decorativas, com particular empenho do então presidente João Abel de Freitas. Já em 1955, João Couto refere: “Esta primorosa instituição cuja base foi a coleção do amador César Gomes, não tem deixado de ser enriquecida com peças adquiridas pela Junta Geral. A Madeira, graças aos seus atuais dirigentes, dignos herdeiros dos esforçados paladinos doutras felizes eras, passa agora um momento alto no que diz respeito à resolução dos seus difíceis problemas artísticos” (COUTO, 1955, 32). O Museu, desde a sua fundação até 1976, foi dirigido por comissões diretivas que dependiam diretamente da Junta Geral. A comissão que vigorou até 1973 era constituída por Rui Vieira, Frederico de Freitas e António Aragão Mendes Correia, que em 1970 publica o primeiro catálogo geral do Museu. São depois substituídos por Rui Carita, Álvaro Simões e Jorge Marques da Silva. Em 1976, Amândio de Sousa torna-se no seu primeiro diretor. A instalação do Museu de Artes Decorativas na Qt. das Cruzes não deixa de ter uma raiz simbólica, na medida em que se trata de uma das mais prestigiadas quintas madeirenses. A quinta madeirense liga-se ao conceito de quinta de recreio portuguesa, distribuindo-se por várias dependências, desde a casa grande, a capela, a casinha de prazer, o parque ajardinado e a pequena horta, que, a partir do séc. XVIII, foram pontuando sobretudo o anfiteatro da baía do Funchal. A designação “das cruzes” permanece incerta no tempo, aproximando-se das primitivas casas de João Gonçalves Zarco, 1.º capitão donatário do Funchal. Esta casa foi depois ampliada no tempo do seu filho, o 2.º capitão João Gonçalves da Câmara, ao mesmo tempo que se realizava obras na capela de Nossa Senhora da Conceição de Cima e construía o Convento de Santa Clara do Funchal. Ao longo dos séculos, foi sofrendo transformações importantes até que, em meados do séc. XVIII, deverá ter ganho a estrutura que se manteve. Em 1692, havia sido construída a capela de N.ª Sr.ª da Piedade, pela família Lomelino. A vocação de artes decorativas sempre marcou a coleção do Museu da Quinta das Cruzes, sendo que a designação “Museu da Quinta” procurava, de certa forma, apontar para um programa científico que visava enquadrar a ideia de quinta funchalense, das suas funcionalidades, espaços e equipamentos. A coleção, primeiro nascida do conjunto doado por César Gomes, refletia de certa forma o gosto dominante na Madeira da primeira metade do séc. XX. A primeira montagem da coleção ficará a dever-se essencialmente a Frederico de Freitas e a José Leite Monteiro, com a colaboração de Ângelo Silva, de Eduardo Pereira, de Basto Machado e de João Maria Henriques. Veja-se o que nos diz António Aragão: “Na realidade, os espaços das ‘casas das cruzes’ que através dos séculos serviram de moradia a variadas gerações, voltaram a ser compostos com objetos de uso doméstico, objetos esses, é claro, selecionados segundo um critério de qualidade e apresentação que os transferem de posição utilitária e doméstica para uma situação de objetos referenciáveis dentro duma outra escala de valores” (CORREIA, 1970, 46). Às coleções iniciais, juntaram-se, em 1966, as de ourivesaria europeia de João Wetzler, antiquário que residia na Madeira, havendo um importante esforço de aquisição sobretudo no mercado regional, e depois nacional, de obras de arte. Nas coleções, e dentro da sua variedade tipológica, deveremos destacar o conjunto de mobiliário português dos sécs. XVII-XVIII ao gosto madeirense, dito “caixa de açúcar”, realizado com madeiras exóticas, na sua maioria brasileiras. No mobiliário estrangeiro, o destaque vai para o mobiliário inglês dos sécs. XVIII-XIX, Chippendale, Hepplewhite, Sheraton, etc. Refiram-se ainda dois contadores indo-portugueses, produzidos em Goa em meados do séc. XVII, um outro da Índia Mogol, realizado no segundo quartel do séc. XVII, e um escritório Namban, japonês, de inícios do séc. XVII. Notáveis são também os dois contadores espanhóis ao gosto hispano-mourisco, dito Vargãnos, de meados do séc. XVII. Merece especial referência um conjunto de ourivesaria portuguesa religiosa e civil de meados do séc. XVI até ao séc. XVIII, com destaque para uma bandeja com pé, de inícios do séc. XVI, e um porta-paz do início do segundo quartel do mesmo século com a aplicação de cabochões de pedras preciosas. Na ourivesaria estrangeira, pode destacar-se uma taça com pé de Nuremberga, coberta, de meados do séc. XVI, uma salva de Augsburgo de finais do séc. XVII, outra de Amsterdão de meados do séc. XVII e um par de escravas saleiro em prata e ébano, do México, de meados do séc. XVII. No Museu, consta ainda um pequeno conjunto de jóias e objetos de adorno femininos e masculinos, originários da coleção de César Gomes. Trata-se de peças oriundas, na sua maioria, de oficinas europeias, com destaque especial para algumas obras portuguesas de meados do séc. XVIII, como minas de proveniência brasileira ou um par de brincos goeses de início do séc. XVII. O Museu possui também uma importante coleção de glíptica, com exemplares de entalhes romanos (séc. I d.C.) e modernos (sécs. XV e XVI), assim como camafeus desta última época. Integrada na exposição de joalharia, e montada num estojo de meados do séc. XVIII, encontra-se uma placa aberta a buril com a representação da Sagrada Família, assinada por um dos mais importantes artistas holandeses da segunda metade do séc. XVI, Henrick Goltzius (1558-1617). A cerâmica existente nas coleções divide-se em dois núcleos. O das faianças, maioritariamente portuguesas, dos sécs. XVII a XIX e um núcleo de porcelanas europeias e orientais. Estas últimas estão representadas por alguns exemplares da dinastia Ming e sobretudo da dinastia Qing, com peças de encomenda europeia, ditas da Companhia das Índias. Muito curiosa é a presença de um conjunto, serviço de chá, encomendado pelos lealistas franceses, com as silhuetas, dissimuladas em jogo ótico, do Rei Luís XVI, de Maria Antonieta e do delfim real, de finais do séc. XVIII. Na pintura, o Museu possui uma coleção eclética, com destaque especial para algumas pinturas de raiz romântica, maioritariamente inglesas, com vistas da baía do Funchal e da ilha da Madeira, assim como três pinturas de Tomás da Anunciação, das quais se destaca O Piquenique, onde se vê em primeiro plano a família do conde de Carvalhal na sua propriedade do Palheiro Ferreiro. Na coleção, encontramos ainda vários retratos do pintor Joaquim Leonardo da Rocha e uma pintura, rara na obra do artista, com a representação do forte da Pontinha. É ainda de destacar duas pequenas pinturas atribuídas a Jacques Callot (1692-1625) ou o retrato do marquês de Castelo Rodrigo, D. Francisco de Moura, de escola flamenga ou holandesa de meados do séc. XVII. Referência especial deve ter ainda a pintura da Virgem do Loreto, pintura a óleo sobre madeira que parece ser ainda uma cópia do séc. XVI, de Rafael. Na escultura, deve nomear-se especialmente um retábulo flamengo da cidade de Bruxelas do último quartel do séc. XV, em madeira de carvalho, assim como uma Virgem com o Menino, provavelmente da escola de Bruges, de finais do mesmo século. Deve aqui referir-se ainda uma coleção de figuras de presépios de barro datáveis de meados do séc. XVIII, algumas delas produzidas em oficinas regionais. Montadas em enquadramento romântico, em pleno jardim, estão algumas pedras significativas, provindas de demolições que tiveram lugar ao longo dos sécs. xix e xx no Funchal. Destaque-se a presença de duas janelas de recorte manuelino em cantaria basáltica, assim como parte do pelourinho da cidade do Funchal. Nos jardins do Museu está implantada uma cafetaria anexa a uma estrutura de apresentação de um orquestrofone, adquirido pelo visconde de Cacongo, João Rodrigues Leitão (1843-1925), na Exposição Mundial de Paris de 1900, e integrado nas coleções do Museu desde 1978. Em 2007, depois de devidamente restaurado, este foi apresentado ao público. O Museu de Arte Sacra do Funchal nasce de uma crescente preocupação das entidades civis e religiosas relativamente ao património artístico da ilha da Madeira depois da extinção das ordens religiosas a partir de 1834 e da revolução de 1910. Desde 1933 que se reuniram algumas peças da Sé em duas salas anexas, gesto que manifestou uma primeira preocupação com o património religioso. Em 1934, o conservador do palácio da Ajuda, Manuel Cayola Zagallo, com a colaboração das entidades locais e o entusiasmo de D. António Pereira Ribeiro, bispo do Funchal, realizou um primeiro levantamento da pintura flamenga da ilha da Madeira. Esta primeira abordagem constitui uma primeira consciência da qualidade e excecionalidade do conjunto redescoberto. Depois do apoio logístico e financeiro da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, o conjunto foi enviado para Lisboa para ser restaurado no ateliê de Fernando Mardel e apresentado, em 1949, no Museu Nacional de Arte Antiga, numa exposição temporária orientada pelo diretor João Couto. De regresso ao Funchal, o conjunto fica exposto num anexo da Sé até à abertura do Museu, a 1 de junho de 1955. O Museu foi instalado no antigo paço episcopal, que, entre 1914 e 1943, havia funcionado como Liceu do Funchal, sofrendo depois profundas obras de adaptação praticamente contemporâneas da reorganização urbanística da praça do município, nas suas traseiras. O antigo paço episcopal, harmonizado por grandes obras da segunda metade do séc. XVIII, no tempo do bispo D. João do Nascimento, foi primitivamente fundado por Luís de Figueiredo Lemos, em 1594. Da época primitiva é a arcaria dupla de sabor maneirista sobre a posterior praça do município e a capela de São Luís de Tolosa, datada de 1600. Dominando a construção, sobre o edifício do séc. XVIII ergue-se uma torre avista navios, que permitia, no último piso, através de uma varanda aberta, observar toda a baía do Funchal. Nesta varanda na parede a norte, foram colocados gigantes painéis de azulejaria portuguesa do séc. XVIII, que ilustram os temas da fé, da esperança e da caridade. Nas coleções do Museu, podem destacar-se duas áreas essenciais, a da arte flamenga e a da arte portuguesa. A presença da arte flamenga na ilha da Madeira relaciona-se com os intensos contactos comerciais estabelecidos com a Flandres, desde meados do séc. XV e por todo o séc. XVI, por causa do açúcar produzido em larga escala sobretudo na costa sul da ilha da Madeira. Muitos dos produtores e donos de engenhos, assim como comerciantes, realizaram encomendas sumptuárias à Flandres, de pintura, escultura e ourivesaria, de que a coleção do Museu de Arte Sacra é um exemplo paradigmático. A coleção de pintura apresenta exemplares do período que vai do último quartel do séc. XV até aos anos 40 do séc. XVI, com obras atribuídas a Dieric Bouts, Gérard David, Joos Van Cleve, Jan Provoost, mestre do tríptico Morrison, Pieter Coeck van Aelst, Jan Gossaert, dito Mabuse, entre outros. Dos conjuntos retabulares, de invulgaríssimas dimensões, refira-se, a título de exemplo, A Virgem e o Anjo da Anunciação, atribuída a Jan Provoost, e, provindos da igreja matriz da Calheta, A Adoração dos Reis Magos, atribuída ao Mestre da Adoração de Machico, da igreja matriz de Machico, Maria Madalena, atribuída a Jan Provoost da Sé do Funchal, e São Pedro, São Paulo e Santo André, atribuído a Joos van Cleve, da capela de São Pedro e São Paulo do Funchal. Na escultura flamenga, encontram-se exemplares das escolas de Malines, Antuérpia e Bruxelas e de ateliês hispano-flamengos de finais do séc. XV até ao fim do primeiro quartel do séc. XVI. A escultura flamenga tem vindo, ao lado da pintura, a ganhar maior significado, até pela entrada na coleção de novas obras. Refira-se especialmente as peças Calvário, São Roque e Deposição no Túmulo, da Sé do Funchal, Santa Luzia, da primitiva igreja de Santa Luzia do Funchal, ou a Virgem com o Menino da igreja matriz de Machico. Na coleção, destacam-se ainda duas raríssimas peças, uma bandeja e um cálice puncionados, da cidade de Antuérpia, de inícios do séc. XVI. No Museu encontramos também uma coleção importante de arte portuguesa, provinda na sua maioria de igrejas e capelas da Diocese do Funchal. Esta divide-se em vários núcleos, estando as peças organizadas cronologicamente e com uma forma de apresentação que revela o cruzamento de tipologias artísticas. Na pintura, referência para São Bento, de uma oficina portuguesa de finais do séc. XV, provindo da Sé do Funchal, ou Ecce Homo, do antigo Convento das Mercês, Ascensão de Cristo, de Fernão Gomes, ou A Visitação, de Vieira Lusitano. Na escultura portuguesa, especial referência deve ter São Sebastião, de finais do séc. XV ou inícios do séc. XVI, atribuído à oficina de Diogo Pires, o Moço, ou o conjunto respeitante ao camarim da Sé do Funchal, datável do início da segunda metade do séc. XVII, atribuído ao imaginário Manuel Pereira. Destaca-se ainda uma Santa Isabel, do séc. XVII, provinda do antigo Convento da Encarnação, e a Dormição de São Francisco Xavier, do mesmo século, provinda do Convento do Bom Jesus da Ribeira. No Museu de Arte Sacra, é ainda de referir uma importante coleção de ourivesaria portuguesa dos meados do séc. XV até aos últimos anos do séc. XVIII. Destaca-se igualmente o conjunto do denominado tesouro da Sé do Funchal, onde assume relevo a cruz processional, oferecida por D. Manuel I e chegada já depois da sua morte ao Funchal, em 1527, e uma excecional caldeirinha, com o recorte no fundo da esfera armilar, símbolo régio. Na coleção, encontra-se ainda um importante grupo de ourivesaria maneirista, datável entre o último terço do séc. XVI e meados do séc. XVII, como o cálice, datado de 1580, da capela do Corpo Santo no Funchal, a naveta da matriz de Câmara de Lobos, de 1589, ou a ânfora de prata da Sé, de meados do séc. XVII. No séc. XVIII, referência especial devem ter a urna de prata da Sé e a custódia de ouro assinada e datada de 1799, de Paul Mallet, de uma oficina de Lisboa. A exposição de ourivesaria do Museu é apresentada a par de paramentaria dos sécs. XVII - XVIII. O Museu de Arte Sacra desde cedo se constituiu como sede de exposições temporárias pela existência de uma sala especialmente a elas dedicada. À própria fundação do Museu se ligam trabalhos de levantamento patrimonial, que resultaram em edições como Lampadários – Património Artístico da Ilha da Madeira (1949), por Luiz Peter Clode, e a organização, em 1951, de uma exposição e catálogo de ourivesaria sacra, no Convento de Santa Clara do Funchal, à qual se seguiu uma outra, em 1954, sobre esculturas religiosas. No Museu, organizaram-se, desde a déc. de 70, exposições temporárias sobre temas próximos à defesa do património cultural e artístico e, mais tardiamente, de integração de arte antiga e contemporânea. Exemplo disso são as exposições Jesus Cristo Ontem Hoje Sempre, O Futuro do Passado, Eucaristia Mistério de Luz, A Madeira nas Rotas do Oriente ou Alguns Santos Mártires Revisitados, de Rui Sanches em 2003, Remains de Graça Pereira Coutinho, em 2006, Obras de Referência dos Museus da Madeira, em 2008, e Madeira do Atlântico aos Confins da Terra, exposição comemorativa dos 500 anos da Diocese do Funchal, em 2014. Como foi já referido, é bastante antigo o interesse pela botânica e por coleções de espécies naturais na ilha da Madeira. Desde o séc. XIX se mostrou interesse pela fundação de um jardim botânico, o que só se concretizou com a aquisição da Qt. do Bom Sucesso por parte da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, em 1960. O Jardim Botânico da Madeira é uma instituição científica do Governo regional da Madeira que se dedica ao estudo e conservação da flora e da vegetação dos arquipélagos da Madeira e das Selvagens. A Qt. do Bom Sucesso, que havia pertencido à família Reid, situa-se numa zona privilegiada da baía do Funchal, na encosta sul de um vale compreendida entre os 150 e os 300 m. Reúne as condições para a instalação de numerosas espécies, numa área superior a 80.000 m2, apresentando, nos inícios do séc. XXI, cerca de 2000 espécies exóticas. Neste espaço, as plantas encontram-se identificadas com o nome científico comum, origem e afinidades ecológicas e geográficas. Nos jardins, ainda deve ser destacada uma zona respeitante às plantas indígenas e endémicas, exclusivas da Madeira e da Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde), com a natural presença de espécies da Laurissilva, caracterizada como floresta perenifólia de características subtropicais, sendo as suas árvores mais comuns as laureáceas, como o til, o loureiro, o barbusano e o vinhático. Encontram-se ainda no Jardim Botânico espécies de outras zonas do globo, ecologicamente opostas, desde os Himalaias, à América do Sul e trópicos. Uma área independente apresenta uma importante coleção de plantas tropicais, cultivares, aromáticas e medicinais, ligadas aos costumes e tradições culturais e gastronómicos madeirenses. Foi ainda disponibilizado ao público um parque com aves tropicais. Na casa principal da Qt. do Bom Sucesso, está instalada uma parte do antigo Museu de História Natural do Seminário do Funchal, transferido em 1982, que alberga os trabalhos de João Schmitz, ornitólogo alemão estabelecido na Madeira em 1874. A Photographia - Museu “Vicentes”, como o próprio nome indica, nasceu da tentativa da musealização de um ateliê fotográfico. O Vicentes Photógraphos foi um dos mais antigos estúdios de fotografia de Portugal, tendo sido fundado em 1848 por Vicente Gomes da Silva e permanecido em funcionamento ininterrupto até 1982, dentro da mesma família, ao longo de quatro gerações. Em 1852, estes fotógrafos foram convidados a fazer parte da comitiva que organizou a visita de Sua Majestade a Imperatriz do Brasil e de sua filha, a princesa D. Amélia. No ano seguinte, apresentava já na fachada das suas instalações as armas imperiais do Brasil e era reconhecido como “Gravador de S. M. Imperatriz do Brasil”. Da mesma época são as suas primeiras experiências com a daguerreotipia. O estúdio inicia, assim, uma longa carreira, registando importantes acontecimentos da história da Madeira e de muitos dos seus visitantes ilustres. Em 1866, fotografa a Imperatriz Isabel de Áustria, a célebre Sissi, e, em 1901, aquando da visita de D. Carlos e D. Amélia, Reis de Portugal, fotografa-os na varanda sul do palácio de São Lourenço. Este Museu possui um espólio notável de 800.000 negativos, registo incontornável de uma história mental, social e cultural da ilha da Madeira. Ao património inicial, juntaram-se os de outras casas ou de fotógrafos amadores, como os de João Francisco Camacho (1833-1898), José Júlio Rodrigues (1843-1893), Joaquim Augusto de Sousa, João António Bianchi (Vale Paraíso), Major Charles Courtnay Shaw, Gino Romoli, Francisco Barreto, João Soares, Álvaro Nascimento Figueira, Luís de Bettencourt, João Anacleto Rodrigues, Russel Manners Gordon (Torre Bela), Alexander Lamont Henderson, Photo Figueiras, Foto Arte, Joaquim Figueiras e Carlos Fotógrafo, assim como o espólio de um notável ateliê, o Perestrellos Fotógrafos, com uma coleção notável de reportagem de acontecimentos sociais e políticos. No Museu, para além de originais fotográficos, é também de relevar uma estrutura organizativa de um ateliê fotográfico do séc. XIX que permanece quase intacta. A coleção passou depois a desenvolver outras áreas de interesse, como a recolha e identificação de cinema documental sobre a Madeira. Em 1972, todo o recheio do ateliê Vicentes havia sido vendido pela família Vicentes à Sociedade Pátio, Livros e Artes, Lda., através da sua gerente, Maria de Mendonça, uma jornalista açoriana radicada na Madeira que desenvolveu a esperança de abrir um museu dedicado às fotografia e artes gráficas. Em 1982, todo o conjunto foi adquirido pelo Governo regional da Madeira, sendo criado o Museu. Em 1983, foi criada uma nova pequena unidade museológica pelo Instituto do Vinho Madeira, que, em 1979, veio substituir a antiga Junta Nacional do Vinho: o Museu do Vinho Madeira. O Museu foi instalado numas dependências do Instituto, importante edifício romântico da cidade do Funchal edificado no princípio do séc. XIX pelo cônsul inglês Henry Veitch. A sua coleção, de modesta dimensão, procurava mostrar o processo de produção do vinho Madeira e agenciá-lo no seu contexto histórico. O Museu foi encerrado pela tutela, que passou a ser o Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira (IVBAM). Em 1986, a 21 de agosto, Dia da Cidade do Funchal, foi inaugurada no edifício da CMF uma pequena estrutura museológica em duas salas, sob a designação de Museu da Cidade, que procurava mostrar os ciclos fundamentais da história da Ilha, socorrendo-se de algumas peças de época do acervo da CMF e de elementos de apoio gráfico. Esta unidade foi encerrada em 1995, passando uma parte do seu espólio a integrar o Núcleo Museológico A Cidade do Açúcar. Por iniciativa da CMF, foi inaugurado, nas instalações de um antigo auxílio materno-infantil e durante o Marca – Festival de Arte Contemporânea, em setembro de 1987, o Museu Henrique e Francisco Franco. Em 1966, a CMF adquiriu, junto de herdeiros de Francisco Franco, um importante conjunto de obras que pensou colocar numa sala especial do Museu da Quinta das Cruzes. Contudo, essa intenção não chegou a concretizar-se. Em 1972, um novo conjunto do espólio dos irmãos Franco foi adquirido aos seus herdeiros, incluindo um grupo de pinturas de Henrique Franco. No entanto, só em 1987, depois de várias apresentações públicas do espólio, foi criado o Museu. Apesar da dignidade do espaço, não era possível apresentar de forma sistemática e global o conjunto reunido, tendo-se, depois de um pequeno período de encerramento, reaberto o Museu com exposições temporárias de média duração, que permitiam explorar em regime de rotatividade temas e conteúdos específicos na obra dos irmãos Franco, facultando a visita de especialistas às reservas organizadas. Na reorganização de 1996, procedeu-se ao inventário sistemático da coleção, a trabalhos de conservação e restauro, e à implementação de um novo programa museológico e museográfico. O Museu apresentou a exposição Por Causa de Paris, juntando por coerência temática algumas obras cedidas pelo Museu da Quinta das Cruzes. No mesmo ano, o Museu disponibilizou ainda um roteiro de visita às esculturas de Francisco Franco em locais públicos da cidade do Funchal. Em 1988, foi aberta ao público a Casa-Museu Frederico de Freitas, que ficou instalada na denominada Casa da Calçada, a residência dos condes da Calçada entre o séc. XVII e os inícios do séc. XX. Nos meados dos anos 40 do séc. XX, ali se instalou Frederico de Freitas e a família até à sua morte, em 1978. Todos os seus bens móveis foram deixados à RAM para que se criasse uma casa-museu. Frederico de Freitas (1894-1978) fora um advogado e importante impulsionador das artes e da defesa do património cultural na Madeira. Em 1999, ficou concluído o processo de adaptação da sua residência a casa-museu, englobando áreas diversificadas: a casa da entrada, com receção, loja, serviço educativo e gabinete de estampas e desenhos, a casa principal, designada por Casa da Calçada, a Casa dos Azulejos, edifício novo construído para acolher a coleção de azulejaria, assim como um auditório e uma cafetaria. O Museu possuía, desde 1988, uma sala de exposições temporárias junto a um jardim que se abre à Calç. de Santa Clara, com o tradicional pavimento de calhau rolado, um corredor de vinha e canteiros de flores, rematando a extremidade do muro, e uma “casinha de prazer” que fora, no tempo de Frederico de Freitas, o espaço que albergava parte da coleção de azulejos holandeses. Das coleções, destaque-se o particular interesse de todos os temas relacionáveis com a Madeira e a sua memória patrimonial e artística. A Casa-Museu possui uma importante coleção de estampas, aguarelas e desenhos da Ilha, na sua maioria de ingleses do séc. XIX, com álbuns de Pitt Springett, Andrew Picken, Emily Geneviéve Smith, Susan Vernon Harcourt, John Eckersberg, Frank Dillon, etc. Refira-se especialmente o manuscrito original de Journal of a Visit to Madeira and Portugal (1853-1854), de Isabella de França. Outro importante núcleo da coleção é o da azulejaria portuguesa, hispano-mourisca, holandesa, flamenga, inglesa, turca e persa, desde meados do séc. XII até aos meados do séc.XIX. Do conjunto, destaque-se os conjuntos de Toledo, Manises, Valência, Sevilha, Talavera de la Reina, Bristol, Liverpool, Delft, Kashan, Rayy, Iznik e Tabriz, entre outros. Na azulejaria portuguesa, refiram-se conjuntos de padrão de tapete de meados do séc. XVII, provindos, na sua grande maioria, de demolições na ilha da Madeira. A coleção de cerâmica da Casa-Museu é vasta, integrando desde exemplares portugueses e europeus até aos do Extremo Oriente, como o conjunto de peças da denominada Companhia das Índias, à volta de duas divisões da casa, o quarto dos bules e das canecas. Na Casa-Museu Frederico de Freitas encontra-se ainda, entre outras coleções, uma importante coleção de escultura religiosa datável entre os sécs. XVI e XVIII. Do conjunto, destaca-se um São Jerónimo de barro de meados do séc. XVI, uma cena da Visitação de meados do séc. XVII, uma Santa Ana Ensinando a Virgem a Ler de meados do séc. XVIII ou um São João Evangelista, para além de um importante conjunto de marfins luso-orientais, dos quais se destaca, para além de Bons-Pastores de Goa, uma especialmente rara Virgem com o Menino sino-portuguesa de inícios do séc. XVII. O conjunto de mobiliário da Casa-Museu é eclético, sendo marcado sobretudo por peças madeirenses que remontam aos inícios do séc. XIX, sob a forte influência do mobiliário inglês de finais do séc. XVIII. Desde 1989, podem ser visitadas, em regime de visita acompanhada e organizada, as antigas adegas de São Francisco do Funchal, propriedade da Madeira Wine Company. Estas adegas são o remanescente do antigo Convento de S. Francisco do Funchal, situado nas suas dependências principais no posterior Jardim Municipal, que foi demolido nos finais do séc. XIX. O Convento foi fundado primitivamente em 1473, por Luís Álvares da Costa e pelo seu filho Francisco Álvares da Costa. As adegas correspondem a algumas dependências que eram usadas como armazéns nos meados dos sécs. XVII e XVIII. A Madeira Wine Company foi fundada em 1913, incorporando várias empresas de produtores independentes que se associaram, como William Hinton, Welsh, Cunha & Co. Lda., Henriques & Câmara, Cossart Gordon, Blandy, Leacock e Miles. As adegas passaram a possibilitar a visita a salas que mostram os mais importantes passos, e a tecnologia utilizada, para a produção do vinho das principais castas, como Sercial, Malvasia, Verdelho e Boal, e ainda a sua história ao longo dos muitos séculos. Para além disso, há também a possibilidade de visitar armazéns e salas de provas, entre outros espaços. O Museu-Biblioteca Mário Barbeito de Vasconcelos era uma pequena unidade museológica da empresa Vinhos Barbeito (Madeira) Lda., sendo fundado em 1989. As suas coleções foram reunidas pelo bibliófilo Mário Barbeito de Vasconcelos, comerciante de vinhos da cidade do Funchal, que desde sempre se interessou pela criação de uma biblioteca que tivesse como temas principais a história do arquipélago da Madeira e da expansão portuguesa, bem como a figura de Cristóvão Colombo. Nas três salas de exposição, encontravam-se livros raros, moedas, medalhas e gravuras sobre Cristóvão Colombo. Na segunda sala, edições raras, manuscritos e estampas sobre o arquipélago da Madeira e a história do seu vinho, e ainda uma coleção de documentação e livros sobre a botânica da Madeira, adquirida a outro colecionador, George Walter Grabham. A terceira área era dedicada a um arquivo documental sobre vários aspetos culturais de predominância regional. O Museu foi miseravelmente atingido pela aluvião de 20 de fevereiro de 2010, tendo entrado num processo de reorganização. A Casa Colombo, inaugurada em novembro de 1989, correspondia a um pequeno museu evocativo da figura do navegador Cristóvão Colombo, ligado de forma indelével ao arquipélago da Madeira, em particular ao Porto Santo. Segundo a tradição popular, tal Casa terá sido residência de Cristóvão Colombo, sendo harmonizada mais tarde por uma arquitetura de fundo popular de meados do séc. XVIII sobre um núcleo mais antigo, do qual se destaca, numa parede a norte, duas janelas armadas de blocos de barro em ogiva de finais do séc. XV. Cristóvão Colombo casara com Filipa de Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo, 1.º capitão donatário do Porto Santo. Deve ter estado pela primeira vez na Madeira em 1476, tendo sido depois encarregue por Paolo di Nero de deslocar-se à Ilha para negociar açúcar para o genovês Ludovico Centurione. A Casa Colombo, que, em 2005, passou a ser Casa Colombo – Museu do Porto Santo, foi completamente reformulada, contando com um novo programa museológico que permitiu uma nova organização de espaços e a criação de três áreas temáticas, tendo por pano de fundo a posição estratégica do Porto Santo no contexto da expansão. Numa primeira sala, explora-se o contexto histórico da expansão portuguesa e o descobrimento do Porto Santo e da Madeira, bem como dos primeiros séculos da sua economia dominante, com a presença de peças de época que criam um enquadramento temático, como um elmo português de meados do séc. XVI ou uma cruz processional de cobre dourado de finais do séc. XV. Uma segunda sala é dedicada à expansão castelhana e à figura do descobridor da América, Cristóvão Colombo, com destaque para uma pintura italo-flamenga de meados do séc. XVII. As últimas duas pequenas salas do percurso expositivo são dedicadas ao afundamento, na costa norte do Porto Santo, de um galeão holandês, o Slot ter Hooge, em 1724. As três áreas temáticas afirmam o papel de três das potências europeias fundadoras da expansão. A Casa Colombo – Museu do Porto Santo possui áreas específicas para exposições temporárias, uma loja, um auditório de ar-livre, uma sala de serviço educativo e um acervo documental onde se encontra um conjunto de gravuras sobre Cristóvão Colombo, oferecido ao Museu por Mário Barbeito de Vasconcelos. O Museu da Baleia é um museu da Câmara Municipal de Machico, cujos estatutos foram aprovados em 1990, ano da sua abertura ao público, com a participação, para além das verbas municipais, do International Fund for Animal Welfare (IFAW). O Museu pretende contar a história da atividade baleeira na Madeira, proibida em 1981, partindo da coleção recolhida por Eleutério Reis na antiga Fábrica das Baleias e de doações da comunidade local no Caniçal. Sendo um baluarte da história, este Museu constitui-se como centro de defesa da conservação das baleias, especialmente do cachalote, contribuindo para a sua preservação. Em 2011, o Museu abriu novas instalações para o desenvolvimento das suas funções museológicas, transformando-se num pólo de investigação e defesa dos mares. A Fundação Berardo abriu ao público em 1991, nos jardins da Qt. Monte Palace, situada numa zona privilegiada sobre a baía do Funchal. A freguesia do Monte, sede de muitas quintas de veraneio, transformou-se num importante reduto do romantismo na ilha da Madeira. A história da Qt. Monte Palace está ligada à compra, nos meados do séc. XVIII, de uma propriedade a sul da igreja do Monte pelo cônsul inglês Charles Murray, que aí construiu a Qt. do Prazer. Em 1897, Alfredo Guilherme Rodrigues adquiriu a propriedade e construiu a casa sede da propriedade em estilo revivalista, criando o prestigiado Monte Palace Hotel. Em 1987, após longos anos de abandono, a propriedade foi adquirida por Joe Berardo. Realizaram-se grandes trabalhos de reordenamento da vegetação, plantando-se numerosas espécies novas. Foram introduzidas plantas exóticas, como uma importante coleção de cicas e próteas da África do Sul, azáleas da Bélgica, urzes da Escócia e uma grande quantidade de espécies características da laurissilva madeirense. Nos jardins, foram colocadas várias peças decorativas, destacando-se um retábulo em pedra renascentista de uma oficina coimbrã, do séc. XVI. Está também presente uma grande coleção de painéis de azulejos, na sua maioria portugueses, desde os exemplares hispano-mouriscos do séc. XVI até às produções do início do séc. XX. Foi ainda criado um jardim oriental, com vários elementos arquitetónicos. Foi também construído um edifício de raiz, onde ficaram reunidas outras coleções do comendador Joe Berardo, como uma de escultura contemporânea africana e outra de minerais provenientes de praticamente todo o mundo. O Museu de Arte Contemporânea – Fortaleza de Santiago tem a sua origem na criação dos prémios de arte contemporânea Cidade do Funchal, em 1966 e 1967, organizados pela então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, através da Delegação de Turismo do Funchal. Com as obras premiadas e outras aquisições realizadas, pensou-se na criação de uma espécie de extensão contemporânea da coleção do Museu da Quinta das Cruzes. Esta funcionou, no entanto, de forma precária a partir de 1984 numa sala da Direção Regional dos Assuntos Culturais, tendo depois transitado para outras dependências na Qt. Magnólia no Funchal sob a designação de Núcleo de Arte Contemporânea. Com a entrega da fortaleza de S. Tiago à administração do Governo da RAM em 1992, foi pensada a sua adaptação para a instalação de um museu de arte contemporânea, assim como uma sala de vocação militar que contasse de forma coerente a relação dessa fortaleza no contexto da história da defesa da baía do Funchal. A fortaleza de S. Tiago iniciou-se em 1614, sob o risco de Jerónimo Jorge e, depois, de Bartolomeu João, seu filho. A primeira fase das obras deve ter terminado por volta de 1637. No séc. XVIII, sofreu grandes transformações sob as ordens do Gov. José Correia de Sá, terminando tal intervenção em 1767. O Museu foi aberto ao público em 1992, reunindo o núcleo central dos prémios Cidade do Funchal dos anos 60 e aquisições feitas desde então. Das obras iniciais, destaque para Joaquim Rodrigo, António Areal, José Escada, Helena Almeida, Artur Rosa, Manuel Baptista e Jorge Martins, aos quais se juntaram obras de outros autores adquiridas desde então, nomeadamente de Lourdes Castro, René Bertholo, José de Guimarães, António Palolo, João Queiroz, Rui Sanches, Gaetan, Michael Biberstein, Fernando Calhau, Pedro Cabrita Reis, Pedro Portugal, Pedro Calapez, Sofia Areal, Pedro Casqueiro, Miguel Branco, Pedro Proença, Ilda David, Rigo, entre muitos outros. Foi também reunido um conjunto de obras de artistas que desenvolveram a sua atividade artística principalmente na ilha da Madeira, nomeadamente de Élia Pimenta, Celso Caires, Isabel Santa Clara, Eduardo de Freitas, Graça Berimbau, Teresa Jardim, Filipa Venâncio, Karocha, Guilhermina da Luz, António Rodrigues, Danilo Gouveia e Guida Ferraz, entre outros. Em 2009, foi realizada no Centro das Artes Casa das Mudas, na Calheta, uma exposição que permitiu reunir pela primeira vez toda a coleção nacional, sob o título A Experiência da Forma – Um olhar sobre o Museu de Arte Contemporânea I. Em 2015, a coleção de arte contemporânea da Madeira deixou a Fortaleza de S. Tiago e passou definitivamente para o antigo Centro das Artes na Calheta, criando-se o Mudas. Museu de Arte Contemporânea da Madeira. A fortaleza-palácio de S. Lourenço foi mandada construir por determinação de D. Manuel I, em 1513, tendo a construção sido iniciada logo na década seguinte. Dela, permaneceu praticamente intacto o torreão nascente, com as armas reais, cruz de Cristo e esfera armilar. As obras foram encomendadas a João Cáceres, sendo depois ampliadas após o ataque corsário de 1566. No período filipino, são feitas importantes transformações com a construção de novos baluartes da responsabilidade de Mateus Fernandes e Jerónimo Jorge. Por razões diversas, a fortaleza de S. Lourenço foi sendo progressivamente transformada em palácio dos governadores da Madeira, sobretudo a partir do séc. XVIII. Em 1836, a separação administrativa dos poderes civil e militar provocou uma divisão física do palácio. A leste, antes da responsabilidade do governador militar, passou a estar o Comando da Zona Militar da Madeira. A área oeste, correspondente às principais dependências e salas nobres, antes próximas do governador civil, ficou ligada ao ministro da República para a Madeira e, a partir de 2004, ao representante da República na RAM, sendo a sua residência oficial. Depois de 1993, foi iniciado um aturado processo de conservação e restauro do edifício e das coleções postas à sua guarda, das quais uma parte significativa tinha sido transferida de palácios nacionais, na déc. de 30 do séc. XX, sendo outras pertencentes a um fundo antigo do palácio. Destas coleções, destaque-se um conjunto de mobiliário Boulle e uma curiosa galeria de retratos, como os de D. João V e D. José I. A criação de um circuito de visita e a instalação de serviços de conservação preventiva e serviços de educação criaram, desde 1995, as condições para a musealização do espaço. Na área militar, encontra-se instalado, em pequenas dependências, um núcleo histórico-museológico onde se apresentam elementos para a compreensão da evolução histórica da construção da fortaleza, assim como do seu papel na estratégia de defesa da baía do Funchal, para além de outros aspetos da história militar da cidade. Embora já há muito tempo se fizessem apelos nesse sentido, só em 1996 foi criado o Museu Etnográfico da Madeira, cujas coleções tiveram na sua origem algumas peças da coleção etnográfica do Museu da Quinta das Cruzes. O Museu foi instalado na Ribeira Brava, no quadro de uma importante aposta na descentralização cultural, num antigo solar transformado mais tarde em unidade industrial, o antigo engenho de aguardente da Ribeira Brava. O Convento de Santa Clara, foreiro de uma casa ali existente, vendeu os terrenos a Luís Gomes da Silva, capitão de ordenanças da Ribeira Brava. Em 1710, acrescentou-se ao conjunto uma capela da invocação de S. José. Em 1853, a antiga casa foi convertida em unidade industrial, criando-se um engenho de cana-de-açúcar com alambique para a destilação de aguardente. Foi pouco depois instalado um sistema de moagem através de energia hidráulica, com roda motriz de madeira servido por levada de água própria para a moagem de cereais. Em 1974, a estrutura entretanto desativada foi adquirida pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, e só várias décadas mais tarde, em 1996, se inaugurou o Museu depois de obras de adaptação. O Museu tem por princípios orientadores a investigação, documentação, conservação e divulgação dos testemunhos da cultura tradicional madeirense, centrando-se nas atividades produtivas, como a pesca, os ciclos produtivos do vinho, dos cereais e do linho, os transportes, as unidades domésticas e o comércio tradicional. No seu acervo, podemos encontrar equipamento de uso doméstico, alfaias agrícolas, artes e ofícios, festividades cíclicas, instrumentos musicais, atividades lúdicas, trajes, sistemas de atrelagem, cerâmica, figuras de barro e tecnologia têxtil. O Núcleo Museológico do IBTAM – Instituto do Bordado Tapeçaria e Artesanato da Madeira, posteriormente o IVBAM – Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira, foi instalado na antiga sede do Grémio dos Industriais de Bordado da Madeira, inaugurado em 1958, projeto da autoria de Fabrício Rodrigues. Este núcleo tem por base duas exposições organizadas em 1986. A primeira teve lugar no Museu da Quinta das Cruzes, com a participação do Museu Nacional do Traje, onde foram recolhidas peças, cronologicamente situadas entre 1850 e 1900, de numerosas coleções particulares, na sua maioria completamente inéditas, numa organização de Luiza Clode. Uma segunda mostra foi organizada logo depois e inaugurada no mesmo ano no IBTAM, com um quadro cronológico mais abrangente que chegava aos anos 30 do séc. XX. Dessa exposição, um pequeno núcleo remanescente, que constituía a coleção do IBTAM e algumas cedências temporárias, foi montado provisoriamente. O Núcleo Museológico foi reformulado em 1996, com a criação de ambientes de enquadramento da época, a segunda metade do séc. XIX, e ainda áreas respeitantes à produção da primeira metade do séc. XX. Foram também desenvolvidas áreas pedagógicas e técnicas de explicação do processo criativo e produtivo. O Núcleo Museológico A Cidade do Açúcar foi inaugurado em 1996, sendo consequência do pequeno Museu da Cidade, já referenciado, antes aberto ao público em duas salas dos paços do concelho. Em 1989, foram realizadas escavações no terreno e imediações da antiga casa de João Esmeraldo no Funchal, que resultaram no aparecimento de numeroso e interessante espólio arqueológico, e organizada uma exposição no Teatro Baltazar Dias, no Funchal. Num edifício a norte, onde posteriormente, após reordenamento urbanístico, se criou a Pç. Colombo, foi criado o núcleo museológico que deu origem ao Museu A Cidade do Açúcar. O núcleo encontrava-se localizado no espaço correspondente a uma casa do final do séc. XV, destruída no séc. XIX, do comerciante João Esmeraldo, que hospedou o descobridor da América, Cristóvão Colombo. Para além da apresentação do espólio da escavação arqueológica e da história da desaparecida casa de João Esmeraldo, procurava afirmar-se como espaço de relação das memórias ainda vivas da cidade do Funchal no seu ciclo açucareiro. Nesse sentido, propunha guias didáticos de visita ao Funchal manuelino. Este era um museu preferencialmente ligado ao enquadramento dos achados arqueológicos, em especial os da escavação das casas de João Esmeraldo realizadas em 1989. O espólio recolhido ajudou a perceber o quotidiano da cidade do Funchal entre o final do séc. XV e meados do séc. XVII. Na escavação, foram recuperadas grandes quantidades de fragmentos de cerâmica portuguesa dos sécs. XV, XVI e XVII, entre eles formas de açúcar, selos de chumbo da Alfândega do Funchal e moedas. Na coleção, foram ainda colocadas algumas obras de enquadramento histórico, como Medidas Manuelinas, datada de 1499, um São Sebastião de madeira de carvalho de uma oficina flamenga de inícios do séc. XVI ou uma salva com pé com as armas da cidade do Funchal de inícios do séc. XVII. O projeto não pretendeu constituir-se como espaço de identificação da memória e tecnologia açucareira, que deveria ser instalado num antigo engenho de açúcar. Dedicava-se apenas às consequências culturais desse período fundamental da economia regional. Este Núcleo Museológico, que foi transformado no Museu A Cidade do Açúcar em 2009, foi totalmente destruído pela aluvião de 2010 no Funchal, entrando depois disso em processo de reorganização. O Museu da Eletricidade Casa da Luz foi inaugurado em 1997, após trabalhos de adaptação e musealização da antiga central térmica do Funchal, sob projeto museológico de Sara Silva. O Museu centra-se em várias áreas temáticas, como os vários tipos de iluminação pública ao longo dos tempos da cidade do Funchal, desde as primeiras lamparinas de azeite até aos candeeiros modernos. Uma segunda área temática apresenta-nos um historial evocativo da evolução da eletrificação do arquipélago da Madeira, com a presença de maquinaria diversa e com as duas principais formas de produção de energia elétrica: a térmica e a hidráulica. Foi ainda transformado para exposição um posto de transformação elétrica, sendo complementado por várias maquetas de centrais elétricas, urbanas e rurais. Numa terceira zona, apresenta-se, com sentido interativo e didático, uma exposição sobre fontes de energia, primárias e renováveis, como as energias eólica e solar, assim como uma área dedicada à ciência e à tecnologia. O Centro Cívico e Cultural de Santa Clara – Universo de Memórias João Carlos Abreu é uma unidade pública responsável pela conservação, manutenção e exposição ao público de todos os bens doados à RAM em 2001. Encontra-se instalado numa casa de finais do séc. XIX, na Calç. do Pico, com as coleções de artes decorativas reunidas por João Carlos Abreu, ex-secretário regional do Turismo e Cultura, jornalista, escritor, gestor e diretor hoteleiro. A coleção reflete as suas numerosas viagens à volta do mundo, nas quais adquiriu numerosas recordações. Aí, podem ser visitadas a biblioteca, a sala vermelha, a sala roxa, a sala de jantar, a sala das viagens, a cozinha, a sala dos cavalos, o oratório, a sala das joias de cena, o quarto verde e o quarto bege, entre outros espaços. Em 2003, foi aberto ao público um pequeno museu, numas instalações à R. do Carmo, das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias. Trata-se de um projeto constituído por cinco salas, que procuram apresentar a vida e obra de Mary Jane Wilson (1840-1916), fundadora da congregação. A exposição organiza-se por várias áreas temáticas, como a infância e juventude, com uma coleção de desenhos por si realizados e ainda alguns objetos ligados à sua chegada à Madeira. Uma segunda sala é dedicada à sua conversão ao catolicismo, enquanto a terceira e a quarta são dedicadas ao desenvolvimento do seu trabalho enquanto enfermeira e fundadora de obras sociais e caritativas, como aconteceu durante o surto de varíola em 1906. Na última divisão, é feita a reconstituição de uma sala com objetos pessoais de Mary Jane Wilson, como testemunho da sua vida. O Museu do Brinquedo na Madeira abriu ao público em 2003, com a apresentação de uma coleção privada de brinquedos de José Manuel Borges Pereira, provindos dos mais variados centros de fabrico europeus, desde meados do séc. XIX até ao final do séc. XX. Estão, assim, reunidos cerca de 12 mil objetos que refletem a época histórica em que se enquadram e o imaginário infantil de numerosas gerações. À coleção particular atrás referida, juntaram-se vários depósitos de outras coleções particulares. Em 2015, o Museu foi deslocado da R. da Levada dos Barreiros para o edifício Armazém do Mercado, na R. Latino Coelho, n.º 39. O Madeira Story Centre abriu ao público, como centro de interpretação histórica, em 2005, após trabalhos de adaptação de um edifício na zona de Santa Maria no Funchal, integrando uma área no jardim do Almirante Reis, junto à estação do teleférico da Madeira, onde estão expostas duas antigas lanchas de desembarque no porto do Funchal, a Mosquito e a Áquila. O Madeira Story Centre era uma organização privada da FUN – Centros Temáticos do Funchal, Lda. em parceria com a Etergeste. Apresentava-se como um centro de informação sobre a Madeira, que, de uma forma lúdica e interativa, desenvolvia o tema da história da Ilha. Os visitantes encontravam os seguintes tópicos: as origens vulcânicas; lendas da descoberta; descoberta da Madeira; tumulto e comércio; Ilha estratégica; desenvolvimento da Madeira; depois da navegação; e explore a Madeira. Foi encerrado em 2015. O Núcleo Museológico do Solar do Ribeirinho nasceu em 2007, sob a tutela autárquica de Machico, resultando de um aturado e contínuo trabalho da ARCHAIS – Associação de Arqueologia da Madeira e do CEAM – Centro de Estudos de Arqueologia Moderna. Está organizado a partir de quatro áreas temáticas: uma primeira sobre a história e a arquitetura do solar, a segunda sobre as origens, o povoamento e a vida local, a terceira sobre o percurso económico e uma quarta sobre o quotidiano. Este espaço funciona em articulação com o Núcleo Arqueológico da Junta de Freguesia de Machico. Em 2013, foi aberto ao público o Museu de Imprensa, no centro de Câmara de Lobos, junto da Biblioteca Municipal. Trata-se de uma unidade gerida pela Câmara Municipal, com a apresentação, numa grande nave, de um importante espólio de máquinas tipográficas, ligadas em muitos casos à antiga impressão de jornais. O Museu aproxima-se tematicamente também da história do jornalismo da Madeira e respetiva génese. Ainda em 2013, foi inaugurado, no Funchal, um espaço museal dedicado ao futebolista madeirense Cristiano Ronaldo, com um historial do seu percurso profissional, acolhendo numerosos troféus desportivos. Assim, o início do séc. XX trouxe à Madeira o primeiro museu de vocação científica, de história natural, mas a designação “Museu Regional” denunciava já a vontade de se abarcar outras áreas, que permaneceriam residuais, nas vertentes histórica, arqueológica, artística, etnológica, etc. O séc. XX irá, pois, estruturar progressivamente o conhecimento e fazer entender a necessidade de enquadrar outras realidades museológicas, a que os avanços da historiografia regional e levantamentos patrimoniais e artísticos davam sedimento. A aquisição e posterior transformação da Qt. das Cruzes em museu afirma-se, junto das tutelas oficiais, como um exemplo ilustrativo das muitas carências no campo das artes, servindo mesmo, ao longo da sua história, como génese de outras unidades mais especializadas. É no Museu da Quinta das Cruzes que se depositam as primeiras obras de arte contemporânea, com o objetivo de se constituir uma extensão contemporânea do próprio Museu, que levará mais tarde ao nascimento do Museu de Arte Contemporânea. Ainda no Museu da Quinta das Cruzes se conservava o reduto principal de uma coleção etnológica que se constituía com o fito de um dia integrar um museu no antigo Recolhimento do Bom Jesus, ideia que, no entanto, foi logo abandonada. Tal coleção viria a constituir o cerne da coleção do Museu Etnográfico da Madeira, na Ribeira Brava. A criação do Museu de Arte Sacra junta as vontades da Diocese e da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, e inicia uma especialização progressiva dos museus, dando seguimento aos amplos trabalhos de recuperação e, em muitos casos, de descoberta de um extraordinário património artístico. A realidade política criada com a autonomia, consequência da revolução de 1974 e de intensas mudanças a nível nacional, trouxe uma progressiva sedimentação das unidades museológicas criadas e a possibilidade de uma crescente especialização, assistindo-se, sobretudo durante as décs. de 80 e 90, como na maior parte do país, a uma explosão museológica que trouxe naturalmente necessidades de reajustamento e ponderação estratégica: “A autonomia político-administrativa alcançada pelas regiões autónomas portuguesas (Açores e Madeira) permitiu-nos, e agora refiro-me especialmente ao caso particular da Madeira, em determinadas circunstâncias e com alguma criatividade e pioneirismo, ultrapassar dificuldades específicas em áreas funcionais fundamentais, nomeadamente no que se refere à divulgação e comunicação nos museus, com a criação de serviços educativos que, numa primeira fase, funcionaram exclusivamente com recurso ao destacamento de professores efetivos, de algumas Escolas do Ensino Básico e Secundário, num claro apoio de intercâmbio institucional com a Secretaria Regional da Educação” (PAIS, 2005b). Na Madeira, os anos 90 começam com o congresso da Associação Portuguesa de Museus (APOM), sob o título “Panorama Museológico Nacional – Perspetivas para a Década de 90”, onde museólogos locais defenderam um museu da Região, dada a importância de haver uma unidade mais abrangente na história multifacetada do arquipélago. A abertura da formação em museologia a novos quadros, a colocação em atividade dos serviços de educação nos museus e o desenvolvimento de trabalho de investigação sobre as coleções abriram caminho ao aparecimento de novos museus e de novos públicos, e motivaram uma nova atenção a questões como segurança e conservação preventiva. A abertura de novos e especializados programas de formação, tal como aconteceu a nível nacional com a criação de vários tipos de pós-graduação, proporcionou a conquista de novos quadros, que programas locais, como os cursos de formação profissional, ajudaram a consolidar. A participação dos museus da Madeira em grandes exposições nacionais e internacionais (caso do Festival Europália em Bruxelas e Lisboa, em 1990-1991, e da Exposição Internacional de Sevilha, em 1992), do Museu de Arte Sacra, sobretudo, e do Museu da Quinta das Cruzes, fez equacionar a importância do seu património. Em 2009, foi organizada, no palácio nacional da Ajuda, a exposição Obras de Referência dos Museus da Madeira – 500 Anos de História de um Arquipélago, que constituiu a mais abrangente embaixada cultural e patrimonial da Madeira em Portugal continental. Já desde os anos 90 se assistia a uma maior sensibilidade relativamente ao património, que a criação de roteiros de leitura patrimonial ajudaram a concretizar. Para além disso, a posterior entrada em cena de unidades culturais de âmbito paramuseológico, como os centros culturais, vieram trazer um complemento importante à ativação do dinamismo cultural, quase todos com uma dimensão de descentralização, como o Centro Cultural John dos Passos, na Ponta do Sol, o Parque Temático de Santana, o Centro de Vulcanismo, em São Vicente, o Centro de Ciência Viva, no Porto Moniz, e especialmente o Centro das Artes Casa das Mudas, pelas excecionais condições infraestruturais e superior qualidade arquitetónica. Esta descentralização cultural e uma cada vez maior abrangência de tipologias e diversificação dos conteúdos têm motivado uma maior consciência da identidade e uma noção mais ampla de património cultural. Tal processo deve entender-se num quadro de interação cultural e rentabilização de esforços, correndo-se, no entanto, o perigo da pulverização dos recursos e estratégias. Uma esperança redobrada nasceu com o protocolo celebrado entre a Direção Regional dos Assuntos Culturais e o Instituto Português de Museus, em 2002, com a entrada dos museus dependentes desta tutela regional para a Rede Portuguesa de Museus. A participação e consolidação da presença dos museus madeirenses na Rede criou a oportunidade do estabelecimento de parâmetros comuns de atuação e a circulação de formação e informação fundamental para a ação museológica, como mostra, por exemplo, a criação de regulamentos internos dos museus, que a Lei Quadro dos Museus (n.º 47/2004, de 19 de agosto) e o estabelecimento do princípio da credenciação (desp. normativo n.º 3/2006, de 25 de janeiro) vieram impor. Assim, a Rede tem sido um agente de colaboração e de participação ativa na criação de ações de formação profissional dos quadros da Ilha e um participante ativo no financiamento de projetos do Museu de Arte Sacra do Funchal (desp. normativo n.º 3/2006, de 13 de julho).   Francisco António Clode Sousa (atualizado a 01.02.2018)

Artes e Design História da Arte Património

música

Os estudos sobre a música na Madeira parecem manifestar a forte ligação da Ilha à cultura europeia, com especial ênfase numa identidade marcadamente portuguesa, com traços de outras culturas, tais como a holandesa, a italiana, a espanhola, a inglesa, a alemã, a francesa, a brasileira e de outras nações que tiveram fortes relacionamentos económicos e culturais com Portugal e com a Madeira. Na verdade, a procura de uma identidade própria não se tem mostrado profícua, sendo consensual que muitos dos seus elementos considerados diferenciadores estão igualmente presentes noutros espaços portugueses ou europeus. É possível encontrar exemplos de elementos considerados até há pouco tempo como característicos de uma cultura própria da Madeira – instrumentos tradicionais, trajes, géneros musicais, entre outros –, que, de acordo com os conhecimentos posteriores, se conclui terem ido de outras regiões para a Madeira (ou terem sido inventados há menos de 100 anos, com o propósito de criar uma identidade regional). Entre o início do povoamento, no séc. XV, e o séc. XVIII, é pouco conhecida a história da música na Madeira, embora os escassos dados existentes pareçam indiciar que, tal como em Lisboa, a música foi principalmente relevante em atividades religiosas e palacianas. Foi o período do cantochão do Rito de Salisbury (e, posteriormente, do Rito Romano), da polifonia vocal renascentista e da música barroca de influência italiana. A criação de um teatro público terá acontecido no final do séc. XVIII e a sua atividade foi aparentemente muito intermitente. O início do séc. XIX foi marcado pela revolução liberal e pelo consequente declínio da música sacra. O ideário liberal incentivou o espírito associativista, consubstanciado na fundação de dezenas de clubes e de sociedades que organizavam concertos, executados por virtuosos, e bailes com as novas danças de salão influenciadas pelas modas dos salões dos centros europeus (valsas, quadrilhas, cotilhões, polcas e mazurcas, entre outras). Na transição do séc. XIX para o séc. XX, dá-se um novo movimento de difusão musical, tendo surgido um significativo número de grupos musicais amadores, tais como bandas filarmónicas, tunas e orfeões, que tornaram a prática musical uma atividade comum, inclusivamente nas classes sociais mais desfavorecidas. Esta fase de popularização da prática musical começou a decair na déc. de 1930, embora muitos dos grupos fundados neste período ainda existissem no séc. XXI. Nesta época, também se assistiu a uma importante reforma na música sacra, com o Motu Proprio de Pio X (1903), o qual deixou vestígios durante mais de 60 anos. O período do Estado Novo foi marcado pelas consequências da introdução dos fonogramas, da telefonia e do cinema, que vieram difundir a cultura americana. Foi a era das jazz bands e dos conjuntos, que passaram a constituir as novas formas de modernidade musical. Uma reação a este fenómeno foi a fundação de várias instituições que procuraram promover música “de qualidade”, tais como a Sociedade de Concertos da Madeira, a Academia de Música da Madeira, o Posto Emissor do Funchal e a Orquestra de Câmara da Madeira – antecessora da Orquestra Clássica da Madeira. Foi igualmente o tempo da fundação dos grupos de folclore e da promoção da cultura popular com propósitos turísticos e identitários. No período pós-revolução de abril de 1974, assistiu-se à reforma de várias estruturas culturais e educativas ligadas à música, sendo de destacar a adoção de importantes medidas que vieram facilitar a fundação de associações culturais de índole musical, bem como o rejuvenescimento de antigas coletividades, tais como bandas filarmónicas, coros, grupos de folclore e grupos de bandolins. Instituições como o Conservatório–Escola Profissional das Artes da Madeira e o então Gabinete Coordenador de Educação Artística funcionaram como os dois pilares educativos que permitiram o aumento do número de praticantes, bem como o desenvolvimento das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Do início do povoamento ao fim do Antigo Regime A música fez parte de várias atividades religiosas e palacianas desde o início do povoamento da Madeira. No domínio religioso, é plausível que, no seio de algumas festas litúrgicas – como as festividades respeitantes aos ciclos do nascimento e da morte de Cristo ou dedicadas à Virgem Maria –, se realizassem manifestações musicais ligadas a representações teatrais. Como refere o historiador Rui Carita, permaneceram reminiscências desses antigos autos, nomeadamente das “representações de Natal, com as recitações do Pensar o Menino e as entradas e cantares dos pastores com as ofertas” (CARITA, 2008, 13). Além de menções de atuações teatrais com música, existem igualmente referências documentais a missas cantadas na Madeira. Nos testamentos de Gil Eanes (1479) e de Rodrigo Anes (1486), e.g., alude-se à obrigação de celebração de missas cantadas. No testamento de Gil Eanes fala-se de uma missa cantada na igreja de Machico e no de Rodrigo Anes diz-se que no “dia do enterro lhe dirão oito missas, uma cantada com todo o ofício de ladainhas” (NASCIMENTO, 1933, III, 154-155). Embora não tenha sobrevivido repertório religioso desta época, o aristocrata russo Platon de Waxel, a primeira personalidade a escrever um esboço de uma história da música na Madeira, salienta que o rito seguido nas primeiras igrejas e conventos da Madeira deveria ser o mesmo que em Lisboa: o Rito de Salisbury. Este rito ter-se-á mantido na Madeira até ao início do séc. XVII, não tendo a Madeira acompanhado o sucedido em Lisboa, onde o rito havia sido abandonado em 1536 (WAXEL, 1948, 33). A música religiosa era também executada fora das igrejas, durante procissões religiosas, as quais foram regulamentadas por D. João II em 1483. Nas festas do Corpus Christi, nomeadamente, as confrarias de ofícios desfilavam em carros alegóricos onde se bailavam danças como a “mourisca”, levando o historiador Rui Carita a concluir que estes eventos deviam assemelhar-se mais a cortejos carnavalescos do que a procissões religiosas; entre os exemplos que sobreviveram ao tempo, encontra-se a “dança das espadas” da confraria dos ferreiros (CARITA, 2008, 13). No domínio da música palaciana, apesar da inexistência de partituras e de provas documentais com referência à prática musical, há indícios de que existiria no Funchal uma atividade musical deste género desde os primeiros povoadores. De facto, conhece-se poesia trovadoresca de personalidades madeirenses do séc. XV. Além disso, no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende (1516), é possível encontrar poemas de personalidades como João Gomes (?-1495), pajem e escudeiro do infante D. Henrique, que se fixou no Funchal e que viria a dar nome a uma das ribeiras da cidade; a sua produção poética foi de tal modo apreciada que lhe valeu a inclusão de poemas no cancioneiro de Resende e o cognome de “O Trovador”. Outros poetas madeirenses que constam do cancioneiro são Tristão Vaz Teixeira, identificado como filho do 1.º capitão de Machico, e João Gonçalves da Câmara, que terá sido o 2.º capitão donatário do Funchal. Segundo Rui Carita, o trovador mais importante da época viria a ser, no entanto, Duarte Pestana de Brito, quer pela quantidade, quer pela qualidade da sua produção poética. No início do séc. XVI, a música palaciana continuou a ter um papel preponderante no Funchal, principalmente pela ação de Simão Gonçalves de Câmara (?-1530), 3.º capitão donatário do Funchal, que governou a partir de 1508. Sendo músico e detentor de uma fortuna considerável à época, promoveu uma capela com cantores e tangedores, da qual Gaspar Frutuoso diz fazer “grandes partidos” (FRUTUOSO, 2008, II, 106). A qualidade da capela deveria ser de tal ordem que “competia com a de el-rei”, tendo como “mestre da capela Diogo de Cabreira, castelhano, mui destro na arte de canto de órgão e tal, que o próprio rei lho pediu para cantor para sua capela” (Id., Ibid., 103). Acompanhando o crescimento económico da Ilha, a situação musical religiosa melhorou no início do séc. XVI. O facto de o Funchal ter sido elevado à qualidade de diocese, em 1514, levou a que a atividade musical tivesse acompanhado esse novo estatuto. Assim, em 1518, os cantores da capela da Sé do Funchal, que seriam, até então, apenas quatro, passaram a oito por ordem do rei D. Manuel I, que mandou “criar mais quatro moços do coro”. Dois anos depois, D. Manuel I escreve uma carta, ordenando agora ao deão da Sé do Funchal, o mestre Nuno Cão, “que os cónegos e moços do coro saibam canto do organo [canto do órgão] para os domingos e festas se oficiar as missas com canto de organo [canto de órgão]” (WAXEL, Ibid.). Tendo em consideração esta fonte, é plausível concluir, tal como fez Platon de Waxel, que, no Funchal, a música religiosa era até então composta do mais simples cantochão, passando a partir dessa data a ser, numa base regular, de cariz polifónico. Em data incerta, talvez ainda durante a déc. de 1520, foi criado o cargo de organista na Ilha. A substituição do Cón. Gaspar Coelho (possivelmente o primeiro a ocupar esta função na Madeira) por Luís Mendes (?-1598), em 1554, é prova da existência desse cargo. O ordenado seria de 10.000 réis anuais, tendo o organista sido aumentado posteriormente com mais “dois mil réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho” (Id., Ibid.). Entretanto, as normas, mais rígidas, advindas do Concílio de Trento (1543-1554) não foram totalmente aplicadas: de facto, as interpretações teatrais dentro e junto das igrejas madeirenses não foram erradicadas. Em 1565, a chancelaria régia difundiu um alvará para todo o país, onde se proibia a utilização de máscaras na procissão do Corpus Christi e nas igrejas, parecendo corroborar as determinações do Concílio. Apesar disso, sabe-se que no último quartel do séc. XVI ainda se realizavam, “de dia e de noite”, atuações nas igrejas e ermidas, as quais causavam “muitos inconvenientes e escândalos”, segundo a opinião expressa nas Constituições do bispado do Funchal, aprovadas em 1578 pelo Bispo D. Jerónimo Barreto. No mesmo documento, exigia-se que as representações só fossem organizadas com “especial licença do prelado” (CARITA, 2008, 14). Este tipo de atuações seria frequente e estaria relacionado com atividades religiosas de cariz popular, tais como romarias. Gaspar Frutuoso descreve, por exemplo, a romaria de Nossa Senhora do Faial, na qual participavam cerca de “oito mil almas” e onde os peregrinos, vindos de outras zonas da Ilha, descansavam durante dois ou três dias. Neste período, os romeiros faziam “muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 2008, II, 52). Sendo estas manifestações religiosas de cariz mais popular, é plausível deduzir que se terá gerado algum conflito entre o bispado, que procurava seguir as orientações do Concílio de Trento, e as tradições religiosas já enraizadas na vida do povo. Em meados do séc. XVI, a fixação do bispo Jorge de Lemos, 4.º bispo do Funchal, na Madeira, onde foi o primeiro bispo a residir, coincidiu com um dos momentos mais marcantes da vida musical do séc. XVI. D. Jorge de Lemos era músico e, por isso, terá favorecido a prática musical, tendo inclusivamente levado para o Funchal um mestre de capela; este cargo foi oficialmente criado a 20 de setembro de 1556 por carta régia, tendo o mestre de capela a “obrigação de ensinar canto aos 12 colegiais do seminário, com o ordenado de 25 mil rs”. Na mesma data, também por carta régia, foi criado o seminário do Funchal, estando previsto o pagamento anual de 345 mil réis, sendo “45 mil réis para os mestres de gramática e do canto da cidade do Funchal” (WAXEL, Ibid., 34). Foi durante este período que se criou a primeira instituição dedicada ao ensino de música sacra na Madeira. No séc. XVII, houve alterações importantes no domínio religioso. A principal delas foi a introdução do Rito Romano na Madeira, por alvará datado de 1 de junho de 1629, substituindo-se, assim, o Rito de Salisbury. D. Filipe III de Portugal ordenou que se praticasse “o Ritual Romano no que toca no governo do coro, dignidades, cónegos e capitulares, e nos particulares que não for possível se deve conformar com o que se pratica na Sé de Lisboa” (WAXEL, Ibid., 33). Nesta altura, a Sé do Funchal recebeu dois órgãos: em 1613, Filipe II ofereceu um órgão à Sé do Funchal e, poucos anos depois, um “grande órgão”, que terá sido construído em Córdova, foi dado à mesma Sé (WAXEL, Ibid., 34; SILVA E MENESES, 1978, II, 416). Entre os organistas que sucederam, no séc. XVII, aos músicos Gaspar Coelho e Luís Mendes, conhecem-se o P.e Francisco da Cruz – que em 1664 tinha um ordenado de valor igual ao de Mendes (2000 réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho) – e o P.e Pascoal Ferreira que, em 1681, recebia 7000 réis em dinheiro, um moio e 20 alqueires de trigo e duas pipas de vinho. O repertório executado na Sé do Funchal incluía música polifónica de qualidade, referindo Platon de Waxel que “devia ser a melhor que então havia no reino”. Como prova da sua afirmação, o aristocrata russo argumenta que na Sé existia um livro de missas de um dos mais relevantes compositores portugueses da primeira metade do séc. XVII, Duarte Lobo, impresso em Antuérpia em 1639 (WAXEL, Ibid., 36) – trata-se, provavelmente, do Liber Missarum II. São também do séc. XVII as duas primeiras fontes musicais de obras polifónicas da Madeira de que se tem conhecimento. A primeira é pertença do Convento de S.ta Clara: trata-se de uma peça polifónica a quatro vozes (tiple, alta, tenor e baxa) que se encontra transcrita na frente de uma folha em branco de um livro de cantochão, provavelmente escrito na primeira metade do séc. XVII; a composição é anónima e tem como título Jesu Redemtor, sendo a obra polifónica mais antiga de que há registo na ilha da Madeira. A segunda fonte é propriedade da Sé do Funchal e contém partes de missas, salmos e hinos; é um fragmento de um livro de coro (ofícios e missas) copiado no séc. XVIII, cujo repertório é constituído, sobretudo, por polifonia seiscentista, ainda que algumas obras possam ser do final do séc. XVI. Os autores também não estão identificados; Manuel Morais comparou as composições da coleção com obras congéneres de autores portugueses não madeirenses, ativos entre a segunda metade do séc. XVI e finais do XVII, e não encontrou qualquer correspondência (MORAIS, 1998, 50-51). Pouco se sabe sobre os músicos ativos no Funchal neste período, para além do seu nome e cargo. Entre os mestres de capela da Sé do Funchal, conhecem-se os nomes do P.e Manuel de Almeida (em funções a partir de 1618) e do P.e Miguel Pereira (falecido em 1682); sabe-se, ainda, do Cón. Manuel Fernandes, professor de música no Funchal, e de Francisco de Valhadolid, músico madeirense que chegou a ser mestre no seminário arquiepiscopal em Lisboa, citado na Bibliotheca Lusitana e em Os Musicos Portuguezes de Joaquim de Vasconcelos. Francisco de Valhadolid foi o primeiro músico natural da Madeira que se sabe ter ocupado um lugar de destaque a nível nacional. Natural do Funchal, onde nasceu em 1640, foi discípulo do Cón. Manuel Fernandes em composição e, posteriormente, de João Alvares Frovo, em contraponto, em Lisboa. Aquando da sua morte, a 16 de julho de 1700, estaria a trabalhar na publicação de um livro sobre os Mysterios da Musica, assim Pratica como Especulativa, o qual ficou incompleto. Valhadolid deixou uma vasta obra, principalmente composta de missas polifónicas (a 6, 8, 14 e 16 vozes), salmos, responsórios, lamentações, um Miserere, uma ladainha e vários motetes a 3, 4, 7 e 8 vozes. No séc. XVII, as festividades religiosas madeirenses assumiram grande relevância artística. Em 1622, nomeadamente, realizaram-se importantes festas em honra de S.to Inácio de Loiola, de S. Francisco Xavier e do B.º Luís Gonzaga, as quais envolveram as principais formas de arte na Madeira à época: poesia, teatro, dança, música e artes figurativas. No documento, de autor anónimo, denominado Relaçam Geral da Festas que fez a Companhia de Jesús na Provincia de Portugal, na Canonização dos Gloriosos Sancto Ignacio, & S. Francisco Xavier Apostolo da India Oriental no Anno de 1622, existe um capítulo dedicado às cerimónias da Madeira, onde são narrados os acontecimentos festivos ocorridos entre 20 de junho e 31 de julho de 1622. Estes eventos, segundo Manuel Morais, não eram indignos, em fausto e diversidade, das “cerimónias que se representaram na capital do nosso largo Império seiscentista” (MORAIS, 2008, 29). Pela descrição das festas, é possível ter noção da grande diversidade de instrumentos e de danças que então existia – no que concerne a estas, o cronista refere danças com “oito salvagens, vestidos à inteiriça, todos cobertos de musgo”, “danças de marinheiros de barretes, e coletes vermelhos, e ceroulas até baixo”, uma “grave, e aparatosa dança, que em parte alguma do reino pudera sair melhor”, dança da mourisca, “dança de segadores”, “dança de moços pequenos feitos soldados”, danças de “ciganas”, de romeiros e de “meninos à mourisca” e “dança dos rios ou ribeiras de mais nome nesta ilha”. No que diz respeito aos instrumentos musicais, é de ressaltar a sua variedade, salientando o autor a realização de eventos musicais ao som de “frauta, e tamboril”, “trombeta bastarda”, “violas e rabequinha ao som dos quais cantavam algumas letras com muita melodia”, “pandeiro” e “alaúdes”, “castanholas” e “charamelas de cana”, “concertada música”, em que “13 moços […] tangiam todos instrumentos, violas, rabequinhas, pandeiros, cestos, e ginebra, e em quanto se ocupavam os de uma parte em cantar, dançavam os da outra ao redor do tambor, que no meio fazia com ele mil voltas”. Nestas festas participaram os melhores músicos sacros da altura, mencionando o cronista que se organizaram “solenes vésperas com o melhor da capela, e música da Sé, que também ao domingo cantaram a missa” (Id., Ibid., 25-29). O compositor António Pereira da Costa (1697?-1770), cónego e mestre de capela da Sé do Funchal, é o primeiro residente na Madeira a publicar peças musicais; fê-lo em Londres, em 1741, publicando Concertos Grossos, cujo título imita o da coleção de Arcangelo Corelli (1653-1713), 12 Concerti Grossi. O nome completo da obra do compositor português é Concertos Grossos com Doys Violins, e Violão de Concertinho Obrigados, e Outros Doys Violins, Viola e Orgão, e constitui um conjunto análogo ao de Corelli. Por volta de 1755, é impressa em Londres uma nova coletânea de composições de Pereira da Costa para guitarra, desta vez com o título em inglês: XII Serenatas for the Guitar. Estas serenatas parecem trair também a influência de Corelli, que agrupou as suas composições em conjuntos de 12 obras: 12 Sonatas a Tre, 12 Sonatas da Camera a Tre, 12 Concerti Grossi, etc. Segundo Rui Carita, ambas as composições são dedicadas ao morgado João José de Vasconcelos Bettencourt (1703-1766), irmão mais velho da mercadora D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789). As composições de António Pereira da Costa são, na Madeira, os primeiros exemplos conhecidos de um novo período marcado por modelos musicais italianos, à semelhança do que aconteceu em Lisboa na primeira metade do séc. XVIII, por intervenção de D. João V. Neste reinado, por volta de 1720, contratou-se o mestre da Cappella Giulia do Vaticano, Domenico Scarlatti, para mestre da Capela Real, bem como um conjunto de outros músicos italianos, que contribuíram para uma progressiva italianização da música portuguesa. De facto, em 1728, a orquestra da Capela Real era constituída principalmente por estrangeiros, sendo quase metade deles italianos: entre os 13 músicos que constituíam a orquestra – sete violinistas, dois violetistas de arco, dois violoncelistas e um contrabaixista – havia seis italianos (um genovês, dois florentinos e três romanos), um francês, dois boémios, três catalães e um português. Para garantir o ensino adequado dos jovens músicos portugueses, D. João V criou, em 1713, um seminário especificamente destinado a esse efeito, o qual viria a ser o seminário patriarcal, instituição que formaria a maior parte dos músicos de Setecentos e que seria decisiva para a replicação dos modelos italianos em Portugal. Além das serenatas e dos Concertos Grossos, Pereira da Costa dedicou-se a cantatas e sonatas, sendo esse facto indício da existência de um repertório marcadamente barroco, de carácter instrumental, em contraste com a polifonia vocal renascentista, de cariz contrapontístico. A Gazeta de Lisboa de 2 de junho de 1750 faz menção do cultivo de cantatas e de sonatas, referindo a participação do compositor nas festividades de N.a S.ra do Monte no Funchal. Existem registos dos vencimentos dos músicos participantes nas festividades de N.a S.ra do Monte. Num livro de receitas e despesas do Convento da Encarnação dos anos de 1767 e 1768 faz-se referência ao salário dos “pretos das xaramelas” por tocarem nas festas de domingo do Senhor, de N.a S.ra do Monte e de S.ta Clara (PEREIRA, 1989, II, 590). No Convento de S.ta Clara, existem também assentamentos de pagamentos, respeitantes ao mesmo período, “aos moleques que tocaram caixa e charamela”, ou simplesmente a “moleques da charamela” (CARITA, 2008, 16). Os gastos com os músicos de capela da Sé do Funchal encontram-se assinalados em documentos de despesa da Provedoria e da Junta da Real Fazenda do Funchal. Tal como acontecia noutras catedrais católicas, a Sé do Funchal tinha uma capela em que os cargos eram os de subchantre, de capelão cantor ou de moço do coro, de mestre de capela e de organista, e os pagamentos realizavam-se em função dos cargos musicais ocupados, como o comprova a folha de pagamentos referente à despesa de 1775 (ver Quadro 1). [table id=107 /] O subchantre dirigiria, provavelmente, o coro de cantochão dos moços de coro, sendo acompanhado pelo organista. O mestre de capela deveria ser responsável pela música polifónica, com vozes e instrumentos. Com base nas despesas registadas no Livro de Assentamento da Capitania, supõe-se que o número de moços de coro, em 1775, seria menor do que em 1518, quando D. Manuel aumentou o número de moços de coro de quatro para oito; de qualquer modo, este número chegaria para cumprir com as funções musicais. Segundo o musicólogo Manuel Morais, na Sé do Funchal encontravam-se 11 livros de cantochão do séc. XVIII e de inícios do séc. XIX, manuscritos e impressos. No âmbito das festividades religiosas, é de mencionar que no séc. XVIII se mantiveram as representações teatrais junto das igrejas. Segundo Rui Carita, existem referências a que estas atuações terão continuado a decorrer até meados do séc. XVIII, inclusivamente dentro de igrejas e de conventos. Em 1751, uma edição no campo dos estudos sobre a tísica viria a influenciar os tempos posteriores na Madeira, tendo consequências também no domínio da música. Neste ano, é publicado um artigo de Thomas Heberden (1703-1769), em Philosophical Transactions, que descreve o clima da Madeira como propício à cura de doenças infectorrespiratórias (a saber, a tuberculose). Influenciados por esta “descoberta” da medicina, centenas de indivíduos da aristocracia europeia começam a passar longas temporadas na Madeira, de modo a procurarem uma cura para si ou para algum familiar próximo. Surge, assim, o turismo terapêutico e são construídas unidades hospitalares e estabelecimentos hoteleiros. Por conseguinte, a influência da alta aristocracia europeia começará a sentir-se na Madeira de forma mais intensa ao longo de mais de um século, estendendo-se ao plano musical, o que virá a contribuir para o estabelecimento de um Funchal de cariz mais cosmopolita do ponto de vista cultural. A literatura estrangeira, principalmente os relatos de viagens, fica muito em voga a partir de meados do séc. XVIII. Grande parte do conhecimento que existe sobre a atividade musical madeirense, tanto erudita como popular, advém das descrições de estrangeiros, sobretudo inglesas. A título de exemplo, em 1777 é publicado em Londres um livro de George Foster – um alemão educado em Inglaterra que acompanhou o capitão James Cook na sua segunda viagem aos “mares do sul”, tendo passado no Funchal em 1772 –, onde se refere que, na Madeira, “o camponês […] é geralmente aliviado com canções, e ao serão reúnem-se vindos de várias cabanas para dançarem ao som da música sonolenta de uma viola”. Em 1792, a visitante Maria Riddel publica, em Edimburgo, um texto referente ao ano de 1788, no qual menciona que os madeirenses “são muito musicais e extremamente galantes. Raramente se passa uma noite na Madeira sem se ouvir serenatas de violas e bandolins em qualquer parte da rua” (MORAIS, 2008, 32). Ainda assim, as narrações de estrangeiros sobre a Madeira são raras no séc. XVIII, começando a ser mais frequentes no séc. XIX. O maior acontecimento musical da segunda metade do séc. XVIII foi a fundação do Teatro Grande ou Casa da Ópera. Como refere o historiador Valdemar Guerra, “Casa da Ópera”, “Casa da Comédia”, “Teatro Grande” ou “Teatro Funchalense” são diferentes designações para o mesmo edifício. Este foi o primeiro espaço de atuações públicas de relevo do Funchal; construído em 1777, foi considerado alguns anos mais tarde como a maior casa de espetáculos de Portugal depois do teatro nacional de São Carlos, tendo sido demolido em 1833 por razões militares, sob as ordens do governador Álvaro de Sousa Macedo. As atividades deste teatro contam principalmente óperas, representações cómicas, danças e entremezes. (salas de teatro) A Casa da Ópera surgiu por iniciativa de dois negociantes, José Rodrigues Pereira e Miguel dos Santos Coimbra. Ambos haviam tido uma pequena “Casa da Ópera”, a qual sofreu um violento incêndio. Devido à necessidade de divertimento da população funchalense e à falta de tradição teatral “digna de relevo”, os empresários iniciaram este novo projeto na expectativa de lucros imediatos. Apesar de a sua construção ter sido concluída no início de 1777, a Casa da Ópera só esteve em atividade até maio, altura em que foi noticiada a morte de D. José e se entrou num período de luto de um ano. Este espaço de tempo acabou por ter uma história conturbada, com vários problemas financeiros que afetaram o cumprimento de temporadas operáticas com uma periodicidade normal. Por ter sido o primeiro espaço cultural de grande dimensão da Madeira, o Teatro Grande dispôs-se a ser um local de fortes confrontos, nomeadamente no plano dos costumes. Por exemplo, encontram-se várias notícias do primeiro quartel do séc. XIX que discutem a moralidade das récitas ali realizadas, chegando a considerar que a Casa da Ópera era um espaço pouco próprio para levar senhoras; ao longo do séc. XIX, a situação repete-se em outros teatros, havendo designadamente notícias de que o Teatro Concordia era “foco da imoralidade e das ofensas vilãs” (CARITA e MELLO, 1988, 41). Supõe-se que, na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, as bandas militares terão começado a ganhar importância na Madeira, à semelhança do que aconteceu em Lisboa. No entanto, as primeiras referências a esse facto datam de 1807, desconhecendo-se qualquer alusão à presença das bandas na região no séc. XVIII. Entre os anos de 1807 e 1824, há menções de pagamentos de pão com o objetivo de municiar os “pífanos e tambores de milícias”, o que indicia existirem músicos nas tropas milicianas da Madeira, pelo menos desde esta época; a referência mais antiga que se conhece é de 6 de junho de 1807 e a despesa paga foi no valor de 430$320 réis. Os salários não eram anuais, podendo ser recebidos várias vezes ao ano, em alturas diversas: sabe-se de ordenados pagos em março, no “dia de Corpo de Deus”, “nos meses de julho e agosto”, não havendo, aparentemente, datas predefinidas e regulares. Entre 1815 e 1819, começa a especificar-se o pagamento dos regimentos de milícias da Calheta e do Funchal, e já não da “Ilha” apenas. A qualidade da banda regimental do Funchal de então não é fácil de aferir. O britânico Robert Steele, tenente da Marinha Real inglesa, resumia, no seu diário de viagem, redigido no verão de 1809, o que considerava ser a fraca qualidade daquele contingente musical: “A parada militar é geralmente frequentada pelos oficiais mais graduados, e a banda, tendo muitos encantos, envergonha as tropas portuguesas, que são más em todas as suas atividades” (MORAIS, 2008, 33). O declínio da música sacra e a era dos clubes, das sociedades e da música doméstica A prolongada série de revoluções e de contrarrevoluções ocorridas no período de 1820 a 1851, no contexto da implantação do regime liberal, teve graves efeitos no domínio musical de cariz religioso. A extinção das ordens religiosas, em 1834, e o confisco dos seus bens provocaram o declínio da estrutura religiosa madeirense, algo que se repercutiu na música sacra. Apesar da situação conturbada, houve neste período um conjunto de músicos sacros, muito influenciado por músicos formados na escola de música do seminário patriarcal de Lisboa (extinta em 1834), que deixou um legado musical relevante. Uma das personalidades influentes deste período foi D. Fr. José Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) que, ainda antes da instauração do regime liberal, por volta de 1812, foi para a Madeira acompanhado de alguns músicos, entre os quais se destacam José Joaquim de Oliveira Paixão (?-1833) e João Fradesso Belo (1791-1862), discípulo de Fr. José Marques e Silva no seminário patriarcal. Além de ser músico e de proteger a música sacra, José Ataíde compôs algumas obras que foram cantadas em igrejas madeirenses, tais como uma missa de Requiem e o motete Sub Tuum Praesidium, ambas a quatro vozes mistas. José Joaquim de Oliveira Paixão era compositor, organista e violinista. Fez parte da orquestra do Teatro Grande como violetista e foi professor de música no seminário. Segundo o investigador João Rufino da Silva, apesar de ter falecido em 1833, as obras musicais de José de Oliveira Paixão ainda eram cantadas nas igrejas madeirenses quase 150 anos depois da sua morte – ou, pelo menos, até aos anos 70 do séc. XX –, principalmente os responsórios de matinas na Semana Santa. Estas obras eram cantadas a duas e a três vozes masculinas e acompanhadas a órgão, orquestra de cordas – 1.º e 2.º violinos, violoncelo e contrabaixo –, flauta e clarinete em si bemol. João Fradesso Belo foi professor no seminário do Funchal e é apontado como tendo ocupado o cargo de mestre de capela da Sé, apesar de se ignorar os moldes em que esta dignidade era neste período exercida. Sabe-se igualmente pouco sobre a sua produção musical, embora se tenha conhecimento de que compôs uma Ave-Maria “muito cantada na Madeira” (SILVA, 2006, 191). Segundo Platon de Waxel, Fradesso Belo teve um papel importante no plano educativo, visto que deixou dois discípulos de grande valor: Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858) e António de Melo, este último considerado pelo aristocrata russo, em 1869, como “o único compositor de música sacra hoje existente do Funchal” (WAXEL, 1949, 205). Um músico sacro muito importante deste período foi António Maria Frutuoso da Silva, que terá chegado ao Funchal no início de 1837. Num anúncio no periódico A Flor do Oceano, de 8 de janeiro de 1837, Frutuoso da Silva apresenta-se como “professor de música, vindo recentemente da cidade e corte de Lisboa”, propondo-se ensinar “piano, rabeca, e cantoria”. Era antigo cantor na Sé patriarcal de Lisboa, tendo fundado e dirigido no Funchal, entre 1840 a 1848, uma sociedade de concertos (Id., 1948, 36). Entre as suas composições sacras estão uma Missa a Grande Instrumental, um Asperges Me (1848) e um Ò Salutaris (1848). Waxel menciona ainda a existência de outros músicos “que escreveram algumas pequenas composições sacras”: Fr. Manuel Gaspar, o Cón. Libório José Furtado, o P.e Barros, José Justiniano da Silveira (?-1864), o P.e António Francisco Drumond e Vasconcelos (?-1864), o P.e José Maria de Faria e Eduardo Maria Frutuoso da Silva (Id., 1948, 35). Se o ideário liberal oitocentista conduziu, por um lado, ao declínio da música sacra, incentivou, por outro, o espírito associativista, tendo sido criadas várias coletividades em Portugal neste período, entre as quais algumas sociedades de concertos de amadores. Em 1822, um dos músicos mais próximos dos ideais liberais, João Domingos Bomtempo (1775-1842), fundou em Lisboa a Sociedade Philarmonica, seguindo o modelo da sociedade congénere londrina fundada em 1813, tendo a instituição portuguesa sobrevivido até 1828. O novo modelo de sociedades de concertos começado em Inglaterra e copiado por Bomtempo em Lisboa foi igualmente seguido no Funchal: parte da elite madeirense foi influenciada pelo novo ideário, tendo surgido no séc. XIX um significativo conjunto de sociedades e instituições privadas com o propósito de promover a organização de concertos ou de entretenimentos com a participação de músicos (e.g., bailes). Desta forma, após um período de alguma instabilidade política, vivida na déc. de 1820, são constituídos, nos anos 30, pelo menos três clubes e uma sociedade. Tem-se conhecimento da fundação do Clube União – o qual terá tido curta duração, havendo poucos dados sobre a sua atividade –, em 1836, e do Clube Inglês, que existiu durante mais tempo, estando ainda em atividade e organizando bailes na déc. de 1850. Em 1838, surge a Sociedade Harmonia, destinada à prática e à fruição musicais (realiza, nesse ano, uma récita no Teatro do Bom Gosto). No ano seguinte, é fundado um dos clubes madeirenses mais importantes do séc. XIX e o de maior longevidade, o Club Funchalense; esta associação era financiada por algumas das principais famílias nacionais e estrangeiras a residir na Madeira e tinha como um dos seus propósitos principais a promoção de concertos de música vocal e instrumental, embora organizasse sobretudo bailes; de origem anglo-saxónica, o nome desta coletividade acusa a influência de estrangeiros residentes na Madeira, principalmente ingleses. O Club Funchalense e a Sociedade Philarmonica – cujo nome indicia a influência da sociedade homónima de Bomtempo – são as instituições que, durante a déc. de 1840, mais frequentemente publicitam concertos ou bailes nos periódicos madeirenses. Não se encontram referências à organização de concertos musicais por parte do Club Funchalense; de qualquer modo, é provável que neste clube houvesse momentos musicais informais, principalmente em redor do piano, visto que um dos seus primeiros presidentes, Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), era pianista (as suas composições para piano chegaram a ser editadas em Nova Iorque, em 1830). Por sua vez, a Sociedade Philarmonica era uma autêntica sociedade de concertos de amadores. Esta associação foi fundada por António Maria Frutuoso da Silva em 1840; a sua atividade ter-se-á prolongado até 1848. A criação da Sociedade Philarmonica tinha como objetivos formar novos músicos, por um lado, e promover espetáculos musicais em “serões benefecientes, festejos patrióticos e a acompanhar músicos distintos como o violinista Agostinho Robbio, o machetista Candido Drummond de Vasconcellos, o clarinetista Caetano Domingos Drolha e o pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca”, por outro (CARITA e MELLO, 1988, 39). Na segunda metade do séc. XIX, proliferam as sociedades de concertos e os clubes que incentivam a prática musical. Sabe-se da existência, em 1850, da Sociedade Aglaia, que fomentaria a realização de bailes, o que se depreende do facto de o pianista e compositor Duarte Joaquim dos Santos ter produzido uma polca para piano dedicada a esta sociedade, cujo título era o próprio nome da coletividade: Aglaia. Em 1855, há referências à fundação do Clube Recreativo, embora nada se saiba sobre o seu funcionamento. A 30 de março de 1871 é fundada a Sociedade Recreio Literário dos Artistas Funchalenses; esta associação dispunha de uma orquestra que começou a funcionar em finais de abril, princípios de maio, “com instrumentos de fôlego e cordas” (FREITAS, 2008, 413). Um dos músicos mais empreendedores na organização de coletividades deste período foi o violinista e maestro Agostinho Martins (1841-1909). Ao longo da sua carreira musical, este artista funchalense fundou várias instituições, entre as quais a Academia Marcos Portugal, a Sociedade de Concertos Funchalenses e a Filarmónica Restauração de Portugal. A par da criação de sociedades e clubes, desenvolve-se no Funchal um novo modo de sociabilidade: os convívios musicais em salões privados. Este tipo de prática musical doméstica, uma moda importada de França, começa a surgir em Portugal pelo menos na segunda metade do séc. XVIII. A emergência de um grande repertório de modinhas neste período é resultado desta nova forma de convivência urbana; neste âmbito, cabia principalmente à mulher a função de entretenimento doméstico através do canto, do piano e de instrumentos de corda dedilhada. Algumas famílias e personalidades madeirenses ficaram conhecidas pelos serões requintados que organizavam nos seus salões, onde entre “contradances, polcas e as valsas se chegava às tantas da manhã” – exemplo disso são a “ilustre família Gordon” e D. António da Câmara Leme, com um teatro no seu palácio (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Nos saraus, a música para canto e piano – principalmente árias de ópera – ocuparia um lugar especial, sendo uma das formas de entretenimento mais habitual. Apesar de a cidade do Funchal ter ficado, na déc. de 1830, sem um teatro lírico de grandes dimensões, a prática do repertório de influência operática ter-se-á mantido ao longo de todo o séc. XIX, sendo vários os testemunhos que comprovam esta afirmação – e.g., em 1835, numa receção ao futuro governador civil das “possessões inglesas na Índia”, faz-se referência à execução de “árias, duetos, e romances” acompanhados ao piano por Duarte dos Santos (A Flor do Oceano, Funchal, 18 out. 1835, 4). Juntamente com a prática da música vocal, verificou-se um aumento da importância do piano, da viola e do machete, existindo diversos documentos que confirmam a presença destes instrumentos no quotidiano doméstico e a sua boa execução por madeirenses. Um dos maiores músicos madeirenses deste período foi o compositor e intérprete de machete Cândido Drummond de Vasconcelos. São escassas as informações sobre este músico, pelo que se torna difícil traçar a sua biografia. Como instrumentista de machete, há notícias da sua atividade no Funchal a partir de 1841; foi autor de uma coleção de música manuscrita, de 1846, editada pelo musicólogo Manuel Morais, a qual é constituída por um repertório de elevada qualidade, composto principalmente por valsas, temas e variações, quadrilhas e polcas. Conhecem-se ainda outros intérpretes de machete e de viola, entre os quais se destacam António José Barbosa (1822-1899) e Manuel Joaquim Monteiro Cabral. Entre os pianistas mais relevantes deste período são de vincar os nomes de João Fradesso Belo (1792-1861), Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), Duarte Joaquim dos Santos (1801-1855) e António José Bernes (?-1880). João Fradesso Belo foi o primeiro compositor para piano na Madeira, tendo produzido música de salão, da qual se conhece uma valsa. Este músico terá ido para a Madeira em 1812, em conjunto com outros músicos, por intermédio do bispo José Joaquim de Meneses e Ataíde, tendo residido no Funchal até ao final da sua vida. Fradesso Belo foi discípulo de Frei José Marques, em Lisboa; Ernesto Vieira refere que o músico terá estudado no seminário patriarcal. Ao longo da sua vida na capital madeirense, João Fradesso Belo tornou-se um músico célebre, sendo mestre de capela da Sé e professor no seminário da cidade. Duarte Joaquim dos Santos foi, igualmente, um dos pianistas mais importantes do Funchal no segundo quartel do séc. XIX, tendo residido nesta cidade desde a déc. de 1840, provavelmente, até à data da sua morte a 24 de maio de 1855. Segundo Rui Magno Pinto, Santos afirmou-se em Londres como compositor prolífico, tendo publicado em editoras como a Payne & Hopkins, a R. Cocks & Co., a Jeffreys & Co.; nos catálogos, estão registadas cerca de 60 peças suas. Entre as suas obras publicadas encontram-se, na British Library, peças para piano a duas e a quatro mãos – quadrilhas, valsas, divertimentos –, transcrições de árias de ópera para piano e uma peça sacra – Alma [Redemptoris Mater] – para coro e órgão. A Biblioteca Nacional dispõe também de algumas quadrilhas da sua autoria, as quais foram publicadas em Portugal na Lithografia Armazem de Musica da Casa Real. O pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca é exemplo de um compositor pivô que acompanhou o crescimento da importância das danças de salão no quotidiano madeirense. Assim, se ainda cultivava, no início do séc. XIX, o género sonata, passa progressivamente a dedicar-se a danças de salão, tendo sido um músico pioneiro na composição de valsas e de cotilhões para piano. Finalmente, o pianista António José Bernes foi um conceituado compositor, professor de piano e maestro. Existem poucas referências à sua formação, mas é provável que tenha estudado primeiramente no Funchal, com Ricardo Porfírio d’Afonseca, e mais tarde em Viena e em Nápoles, como nota Platon de Waxel, que o considerava “o único compositor que merecia, até certo ponto, este nome na Madeira” à época (WAXEL, 1948, 35). No Funchal, Bernes foi influente como professor de piano: entre as suas alunas, realce-se Maria Paula K. Rego, uma das pianistas funchalenses mais ativas em saraus de beneficência na segunda metade do séc. XIX. Do seu repertório, chegaram aos nossos dias uma valsa incompleta (Le Diamond) e Il Sogno Amoroso a Nice, com um poema sobre os enganos do amor. Os três instrumentistas compuseram música de salão, seja para piano, seja para viola ou para machete; é possível identificar um repertório destes músicos destinado a saraus musicais privados e constituído tanto por valsas, quadrilhas e polcas, como por temas e variações. Nos saraus musicais no Funchal não atuavam apenas portugueses, mas também visitantes estrangeiros. Em 1853, e.g., a visitante Isabella de França descreve, no seu livro Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, um convívio organizado por uma família alemã, em que foi “um verdadeiro regalo ouvir” a anfitriã cantar uma ária “com o marido a acompanhá-la ao piano” (FRANÇA, 1970, 170-171). Nesse sarau participaram pessoas de várias nacionalidades, o que demonstra a importância destes encontros para os estrangeiros que ficavam longas temporadas na Madeira. Ao longo do séc. XIX, a disposição do interior das casas acompanhou a mudança de costumes causada por este novo tipo de sociabilidade urbana, e começaram a surgir novas divisões, como salões de música, as quais eram destinadas a festas e saraus dançantes; nestes compartimentos, os tetos em estuque eram decorados com motivos musicais. Alguns dos salões madeirenses tinham excelentes condições para convívios musicais domésticos, estando ao nível das melhores salas privadas europeias, como o testemunham os relatos de visitantes estrangeiros da época: nomeadamente, em meados do séc. XIX, uma das aristocratas que visitou a Madeira, ao descrever um salão de uma casa onde decorria um baile, referia que este “rivalizava com os de Paris e Londres, tendo mesmo uma galeria para a orquestra” (NASCIMENTO, 1933, III, 98). Na Madeira, assiste-se a um ganho de importância da mulher como dinamizadora de salões nobres, sendo costume as senhoras organizarem festas nos seus salões privados, em que, quer as anfitriãs, quer as convidadas demonstravam os seus dotes, cantando ou tocando piano. Apesar de não serem públicos, alguns desses eventos são divulgados na imprensa periódica do Funchal. Enquanto, no plano privado, os saraus domésticos constituíram o tipo de atividade mais comum, no plano público os eventos de cariz musical mais representativos foram, provavelmente, os bailes e saraus de beneficência, os quais eram frequentemente organizados por clubes ou sociedades. No caso dos bailes, é importante referir que se tratava de iniciativas de convívio social de requinte na sociedade funchalense, em que os participantes vestiam a rigor e em que os anfitriões preparavam luxuosamente as salas de dança. Assim, é natural que a música também acompanhasse o primor exigido pelo acontecimento, pelo que os bailes seriam as ocasiões da vida social em que se tocaria a música mais elegante da época, com o maior número e a maior variedade de instrumentos, seguindo a moda então em vigor nos principais centros europeus. Entre as orquestras que tocavam nos bailes no terceiro quartel do séc. XIX, conhecem-se a Orquestra de Augusto Miguéis, da qual existe repertório respeitante ao período compreendido entre 1865 e 1884, e a de Anselmo Serrão (1846-1922), que tocou na Orquestra do Teatro Esperança. As orquestras eram de pequena dimensão. Os arranjos do repertório documentado estavam destinados à seguinte disposição instrumental: cordas (violino 1, violino 2, baixo), sopros de madeira (flauta ou outavino e clarinete) e sopros de metal (cornetim, trompas e barítono). A iniciativa dos saraus de beneficência partia, muitas vezes, de comissões de senhoras que aproveitavam o tempo livre para se dedicarem à caridade. Numa época em que, na Madeira, entretenimentos como o teatro eram considerados moralmente impróprios para mulheres, os saraus de beneficência constituíam uma das poucas oportunidades para aquelas exibirem os seus talentos musicais em público. Encontram-se relatos de espetáculos de beneficência no primeiro periódico madeirense, O Patriota Funchalense. Os motivos de beneficência eram variados: enquanto os primeiros eventos deste tipo da déc. de 1820 são realizados em prol de artistas, a partir da déc. de 1830 há atuações cujas receitas são arrecadadas em proveito do hospital e dos enfermos. Além de exibições musicais para apoio de artistas e de doentes, encontram-se também concertos cujos lucros revertem em favor dos “atormentados pela fome” (CARITA e MELLO, 1988, 40). A importância destes eventos era tal que os estatutos da Sociedade Philarmonica referiam, aquando da sua criação, em 1840, que um dos principais objetivos era o de atuar em serões beneficentes. Deste modo, é normal que, na déc. de 1840, existam diversas notícias, em variados periódicos da época (), a concertos de beneficência no Funchal. Na déc. de 1850, há notícia de vários saraus de beneficência, cujas descrições pormenorizadas permitem saber como decorria um evento deste género. Os saraus organizados no Funchal pela ilustre cantora madeirense Júlia de Atouguia de França Neto, entre 1854 e 1861, foram postos em evidência pela imprensa. Neste período, Júlia de França Neto realizou 10 concertos de beneficência, os quais se destinavam a suprir as necessidades dos pobres e desfavorecidos. Estas iniciativas de maternidade social intensificam-se na déc. de 1860, altura em que uma das principais promotoras destes convívios musicais passa a ser Maria Paula Rego. A participação de estrangeiros nestes saraus deveria ser muito habitual, encontrando-se na imprensa periódica algumas notícias de saraus organizados conjuntamente por senhoras inglesas e portuguesas. Como impulsionadora destes saraus, merece ainda destaque Amélia Augusta de Azevedo. Nascida em 1840, foi uma das mulheres pioneiras no domínio da composição musical na Madeira. Estudou no Conservatório de Música de Lisboa e, segundo Rui Magno Pinto, “possivelmente no Conservatoire National de Musique et de Declamation [Conservatório Nacional de Música e de Declamação] em Paris (ou alguma das suas sucursais)”. Entre as suas composições, contam-se Alma Minha (sobre a poesia de Camões), Le Regret, Paris Russophile e a polca-mazurca Recordações de Cintra (PINTO, 2008, 9). As sociedades, os clubes e as comissões de senhoras tinham salões próprios para o desenvolvimento das suas atividades, os quais se adaptavam a espetáculos de pequenas dimensões e de cariz amador. No entanto, para eventos de maior projeção e com artistas profissionais, foram construídos vários teatros no período pós-revolução liberal, os quais foram os locais privilegiados dos concertos públicos. Entre os muitos espaços existentes no Funchal destacam-se – antes da construção do Teatro D. Maria Pia, que passou a ser a referência no final do séc. XIX – o Teatro do Bom Gosto, a sala da Escola Lancasteriana, o Teatro Prazer Regenerado, o Teatro da Concórdia, o Teatro Tália e Marte e o Teatro Esperança. Entre estas salas de concerto, a sala da Escola Lancasteriana ocupa um lugar de relevo, tendo sido um dos mais importantes pontos de atuação dos virtuosos que visitaram a Madeira. A título de exemplo, mencione-se que o violoncelista César Augusto Cazella, que se apresentava como “violoncelista particular do rei da Sardenha”, atuou na sala da Escola Lancasteriana entre dezembro de 1850 e janeiro de 1851, quase sempre acompanhado ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. O violinista Agostinho Robbio – que surgia como “discípulo distinto do imortal Paganini, por quem foi premiado com a sua própria rabeca e medalha de honra” – também atuou neste espaço entre fevereiro e maio de 1850 (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Foi igualmente na Escola Lancasteriana que a conceituada intérprete madeirense Júlia de Atouguia de França Neto realizou, a 28 de dezembro de 1854, um concerto em favor dos pobres, o primeiro de uma série de espetáculos de beneficência que decorreram ao longo desta década; a intérprete foi acompanhada ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. Até 1873, ano em que deixa de haver notícias sobre a atividade musical nesta sala, vai havendo sempre virtuosos a atuar neste espaço: o flautista Daniel Imbert, o violinista Charles Elliot, o contrabaixista Arthur F. Reimhardt, o pianista brasileiro Hermenegildo Liguori, que tocou como solista, a cantora Nelida Martinon, o violinista Ernesto Mascheck, os irmãos Croner. Todos estes músicos apresentaram repertórios virtuosísticos constituídos por fantasias sobre motivos de óperas, variações, árias com variações, temas e variações, concertos ou duetos brilhantes. Em 1859 é fundado o Teatro Esperança, que passou a ser o local de concertos mais importante do Funchal até ao aparecimento do Teatro D. Maria Pia, em 1888. Este espaço recebeu músicos virtuosos de projeção internacional como a cantora Anna Bishop, que ali realizou alguns concertos acompanhada pelo pianista e vocalista Charles Lescelles, e companhias operáticas como a Companhia Dramática Italiana, que trouxe à Madeira as cantoras Dejean e Sauzin e o tenor Verdini. O diretor de orquestra da Companhia Dramática Italiana era Francisco Vila y Dalmau, que viria mais tarde a instalar-se permanentemente na Madeira e a ser o maestro mais importante do Funchal no último quartel do séc. XIX; esta companhia de cantores terá produzido, na íntegra, várias óperas italianas famosas. Finalmente, é imprescindível salientar a enorme influência das bandas regimentares neste período. Como refere o musicólogo Rui Magno Pinto, a atividade das bandas regimentais incluía atuações em dias festivos régios e exibições em concertos públicos em praças e jardins funchalenses, em festividades e procissões religiosas, no teatro e em bailes. Contudo, o seu trabalho ia para além do exercício de funções próprio a uma banda – na realidade, os regentes e músicos ocuparam também lugares de relevo enquanto solistas, compositores, regentes de agrupamentos musicais diversos e professores. A qualidade das diversas bandas regimentares presentes no Funchal neste período (tais como o Regimento de Infantaria n.º 7, o Batalhão de Infantaria n.º 11 e a Banda de Caçadores n.º 12, a primeira a estar sediada na Madeira, a partir de 1862) levou certamente ao surgimento de filarmónicas civis. A constituição destes grupos musicais foi realizada à imagem das bandas regimentares, normalmente formadas por iniciativa popular, mediante o mecenato de um nobre ou burguês ou como resultado da associação de profissionais de uma mesma atividade. Segundo Rui Magno Pinto, a primeira coletividade deste tipo surgiu na Madeira em 1844, embora se desconheça o seu nome, sendo descrita como uma “banda de curiosos”. A 18 de fevereiro de 1850 foi fundada a Filarmónica Artístico Funchalense, conhecida como Banda Municipal do Funchal. Entre 1859 e 1860 surge a Filarmónica Recreio Artístico Funchalense, ativa até finais do primeiro quartel do séc. XX (PINTO, 2011, 134). A importância das filarmónicas civis crescerá nas décadas seguintes. Até ao primeiro quartel do séc. XX irá surgir um número elevado destes agrupamentos em quase todos os municípios da Madeira, num fenómeno de popularização da música que atingirá o seu cume na déc. de 1930. A popularização da prática musical na transição do século XIX para o século XX Entre 1870 e 1930 assiste-se à emergência de dezenas de grupos musicais amadores de grande dimensão um pouco por toda a Ilha. Este foi um fenómeno incomum, que revolucionou por completo a prática musical na Madeira. A partir da déc. de 1870, com especial impacto a partir de 1880, surgiram na Madeira muitas bandas filarmónicas, tunas de cordofones, grupos corais e orquestras sinfónicas, constituídos maioritariamente por músicos amadores. Alguns agrupamentos teriam perto de 100 elementos, segundo notícias da época. Em poucas décadas, desenvolveu-se na Madeira um extraordinário movimento de democratização musical, em que parte apreciável da população passou a integrar grupos musicais. As causas que estão na origem de uma mudança desta magnitude são várias. No caso das bandas filarmónicas, a sua proliferação deve ter ocorrido principalmente como “fruto do discurso que favorecia a capacidade educacional da música enquanto promotora de progresso e civilização e atribuía mérito e reconhecimento aos detentores de capacidade artística” (PINTO, Ibid., 133). O crescimento do número de bandas também deve ter sido facilitado pelo aumento da produção e a consequente redução dos preços dos instrumentos de sopro ocorridos ao longo do séc. XIX. No que diz respeito às tunas, a influência para a sua fundação terá vindo do meio académico, tendo surgido muitas tunas na Madeira sob inspiração da Tuna Compostellana em Portugal continental, no final do séc. XIX (principalmente a partir de 1888). O facto de haver na Madeira vários construtores de instrumentos de cordas habituais nas tunas – violinos, bandolins, violas, entre outros – facilitou a criação deste tipo de agrupamento musical do ponto de vista económico. Outra causa central para a replicação destes grupos está relacionada com a inexistência ou com a pouca difusão dos meios técnicos que viriam a revolucionar a música na Madeira, principalmente a partir da déc. de 1930: a telefonia, o gramofone e o cinema (a partir desta década, com a emigração e com a diminuição dos preços destes expedientes técnicos, a prática musical amadora reduz-se bastante na Madeira). Finalmente, a valorização do convívio masculino, juntamente com a facilidade de execução das partes instrumentais individuais em grupos grandes, terão contribuído de igual modo para a multiplicação deste tipo de agrupamentos amadores. A grande difusão das bandas filarmónicas na Madeira neste período pode ser atestada na seguinte lista, não exaustiva, na qual se enumera os agrupamentos surgidos na déc. de 1880: em 1881, estava a organizar-se, na vila da Ponta do Sol, uma filarmónica para a elite ponta-solense e uma banda para os operários; em 1883, é fundada a Banda União Fraternal de Santa Cruz; a 18 de fevereiro de 1884, a Filarmónica Recreio dos Lavradores atuou pela primeira vez; em 1886, é fundada a Orquestra Recreio e União; em 1887, é provavelmente criada a Sociedade União e Lealdade na freguesia de São Roque; em 1887, é instituída a Sociedade Recreio Musical, com sede na rua dos Ferreiros; em 1887, funda-se a Filarmónica União Santacruzense; em 1889, cria-se a Banda dos Bombeiros Voluntários Madeirenses; em 1889, estabelece-se a Filarmónica da Ribeira Brava. As tunas de cordofones são outro género de grupo muito na moda neste período. As tunas começam por ter como instrumento melódico principal o violino, mas, progressivamente, o bandolim vai ocupando o lugar de destaque nestes agrupamentos amadores, sendo comum na Madeira designar estes grupos como tunas de bandolins ou orquestras de palheta (esta última denominação é de clara influência italiana – “orquestra de plectro”). Entre 1889 e 1935, são fundadas várias tunas na Madeira, primeiramente com ligações ao meio académico e, posteriormente, de cariz mais popular. Segue-se uma lista, não completa, das tunas: 1889, Tuna Compostellana; 1905, Tuna Académica (Liceu do Funchal); 1906, Grupo de Amadores de Música Passos Freitas; 1913, Grupo Reunião Musical da Mocidade (a ulterior Orquestra de Bandolins da Madeira); 1913, Grupo 6 de Janeiro de 1915 (o posterior Círculo Bandolinístico da Madeira); 1920, Grémio Musical 10 de Junho; 1920, Septeto Dr. Passos Freitas (versão reduzida do grupo original); 1920, Quarteto do Sr. Arsénio (Santa Cruz); 1923, Grupo Musical Faialense; 1930, Núcleo Bandolinístico de Câmara de Lobos; 1934, Grupo Bandolinístico de Santo António; 1935, Grupo Bandolinístico União de Santo António (BUSA); 1935, Grupo Musical Colares Mendes. Apesar de a maioria dos grupos amadores madeirenses ser constituída por bandas e por tunas, são frequentes neste período outros tipos de agrupamento. Entre eles, são de salientar os grupos corais e as orquestras sinfónicas. No caso dos grupos corais, apesar de haver referência à criação de uma escola de canto coral no Funchal em 1885, é principalmente na déc. de 1920 que se encontram grupos corais de grande dimensão. Os três protagonistas deste movimento terão sido o cantor Júlio Câmara (1876-1950), o músico-advogado Manuel dos Passos Freitas (1872-1952) e o capitão Gustavo Coelho (1890-1965). Júlio Câmara dirigia, em 1920, o Orfeon Académico, o qual chegou a ser composto de 85 elementos; Manuel dos Passos Freitas fundou e dirigiu o Orfeão Madeirense, que se apresentou por diversas vezes no teatro e realizou digressões às Canárias; finalmente, o capitão Gustavo Coelho criou um Orfeão Académico, constituído por alunos do Liceu do Funchal e sobre o qual há notícias de estar em atividade em 1925. Gustavo Coelho merece ser posto em evidência, uma vez que foi um dos mais relevantes e conceituados regentes de bandas filarmónicas, orquestras e grupos corais, assim como um prolífico compositor e transcritor de música. Foi chefe da Banda de Música do Comando Militar da Madeira e integrou o corpo docente da Academia de Música, Belas-Artes e Línguas da Madeira. Entre os principais regentes de bandas e orquestras deste período salientam-se ainda os nomes de Nuno Graceliano Lino (1859-1929), “organizador de quase todas as orquestras que se faziam ouvir nos salões aristocráticos e nas grandes solenidades da Diocese” (DN, Funchal, 16 nov. 1929, 3), e de César Rodrigues de Nascimento (1879-1925), compositor, violinista e regente de duas das principais bandas madeirenses, Artistas Funchalenses e Artístico Madeirenses (Guerrilhas). No plano nacional, a transição do séc. XIX para o séc. XX é marcada pela tentativa de criação de uma identidade com a qual os portugueses se identificassem como com algo de próprio e de distinto das outras nações. No caso da Madeira, houve várias ações no âmbito das artes que tiveram nitidamente esse propósito, mas também se deram algumas iniciativas mais específicas, onde, mais do que uma identidade nacional, os autores procuraram criar uma identidade regional madeirense. Uma das primeiras medidas levadas a cabo com este intuito está relacionada com o estudo das tradições do povo rural; em 1880, designadamente, Álvaro Rodrigues de Azevedo faz as primeiras observações e recolhas sobre o folclore regional. Outra das providências estava relacionada com a utilização dos instrumentos considerados típicos da Madeira; nomeadamente, em 1890 há referências à atividade musical da Orquestra Característica Madeirense, dirigida por Agostinho Martins, a qual era constituída por vários tipos de instrumentos, entre os quais se destacam os típicos da Madeira, tais como o machete (vulgo braguinha) – a utilização, em orquestra, deste género de instrumentos parece não deixar dúvidas quanto ao objetivo de criar, ou de executar, música com traços marcadamente regionais. Para além disso, em 1905, o compositor madeirense Filipe Fernandes Madeira (1864-1912) cria uma obra musical intitulada Souvenir de Madere – Rapsodia de Canções Populaire, formada de canções consideradas pelo autor como tradicionais da Madeira, o que constitui outro exemplo da tentativa de reprodução de uma música marcadamente madeirense. À semelhança de Filipe Fernandes Madeira, também o compositor Manuel Ribeiro procura inspiração nas canções populares da Madeira. Provavelmente na déc. de 1910, o então regente da Banda Militar compõe uma rapsódia baseada em alguns cantos típicos madeirenses – charamba, bailinho do Porto Santo, mourisca, etc. –, a qual orquestra para um dispositivo sinfónico. A procura de regionalismos encontra-se também nas produções teatrais com música, nomeadamente na revista musical madeirense, então muito em uso. Neste sentido, Dário Florez (1879-1951), um músico espanhol radicado na Madeira, cria várias peças de teatro de revista com inspiração em elementos regionais, como o exemplifica o título de uma obra sua, Semilha e Alface, de 1917. Além da busca de inspiração na música regional, assistiu-se ao cultivo de géneros nacionalistas. Assim, no primeiro quartel do séc. XX multiplicam-se a composição e a interpretação de fados no Funchal. Uma das referências mais antigas à prática de fados concerne à banda regimental de infantaria n.º 27, que incluía no seu programa de concerto, em 1902, uma versão de um fado de Rey Colaço. Prova da grande difusão do fado, neste período, é o facto de todas as principais salas de espetáculos da Madeira terem artistas que tocam este género musical. No Pavilhão Paris, e.g., é possível ouvir o ator Horácio Campos cantar fados, antes de interpretar um dueto da Viúva Alegre, enquanto no Teatro-Circo Duarte Valério apresenta “canções e fados” (DN, Funchal, 9 fev. 1914, 3); por sua vez, um anúncio do Casino Vitória refere a estreia de Silva Sanches, um “artista distinto” português, que oferece um “repertório fino, de que fazem parte, além de vários números de operetas, lindos fados e canções internacionais” (DN, Funchal, 30 dez. 1919, 1); finalmente, no teatro municipal produz-se uma opereta, da qual se diz ter “imensa graça”, intitulada Tiro ao Alvo, “com as suas canções e fados”(JM, Funchal, 10 jan. 1929, 3). Existem indícios da inclusão do fado em contexto erudito, algo que se verifica no trabalho de vários cantores líricos, que passaram a incluir fados no seu repertório de concerto, juntamente com obras clássicas, de modo regular. Assim, o tenor lírico Ernesto Silva anunciava que iria cantar “novos fados”, a par de uma canção napolitana (Diário da Madeira, Funchal, 9 fev. 1916, 2); a cantora Helena Robini sabia “com mestria interpretar os melhores clássicos” e cantava também “grande número de fados e canções” (DN, Funchal, 27 abr. 1917, 2); Júlio Câmara, tenor lírico que esteve radicado na Madeira durante alguns anos, incluía no seu repertório um “lindo fado sentimental” (DN, Funchal, 5 fev. 1918, 2). No que diz respeito à faixa etária dos fadistas, há notícia de que as crianças eram protagonistas no canto do fado. Assim, no Salão Ideal anunciava-se que, para além da “habitual presença do Quartetto Nascimento, a atriz Luiza Durão de 11 anos, cantará um lindo fado […], com letra e música, original do Sr. Machado Bonança, distinto professor do liceu d’esta cidade” (DN, Funchal, 4 jun. 1911, 1). Esta pequena atriz não foi caso único, encontrando-se uma criança ainda mais jovem, “o menino Fernando Barreto, de 9 anos”, a atuar na Qt. das Cruzes, onde cantou fados e canções portuguesas e do qual se dizia “ser possuidor de uma grande voz” (DN, Funchal, 17 set. 1931, 1). Eng. Luiz Peter Clode.1940 Naturalmente, a intensa atividade relacionada com o fado nos principais locais de espetáculo funchalenses influenciou os músicos madeirenses. Assim, ao longo da primeira metade do séc. XX, sabe-se de vários fados para canto e piano de autores madeirenses ou a residir na Madeira. Entre os autores identificados, além de Dário Florez, com o fado Saudades de Coimbra, conhecem-se, em versões para piano: um fado de Gustavo Coelho (1890-1965), intitulado Oh! Quem Me Dera; o Fado do Desespero, do músico amador Fernando Clairouin (1897-1962); Fado da Feira, Fado “Maria das Dores”, Fado dos Olivais, Fado do Vale e Fado dos Laranjais, da autoria de Luiz Peter Clode (1904-1990); e o “fado slow” Adeus Funchal, do pianista Tony Amaral (1910-1975). Um músico e poeta madeirense que viria a evidenciar-se na história do fado português, mais especificamente do fado de Coimbra, foi Edmundo Bettencourt (1899-1973). Da sua obra ressaltam as gravações de discos pela Columbia, em 1928, com a participação do guitarrista Artur Paredes (pai de Carlos Paredes), que fariam dele um cantor de referência para muitas gerações de músicos do fado e da canção de Coimbra, entre os quais Zeca Afonso. A nível religioso, a execução de música sacra em contexto popular foi muito frequente nesta época. As celebrações religiosas solenizadas com música estavam normalmente associadas “ao calendário litúrgico, destacando-se a Semana Santa, o ‘Mês de Maria’ e o Natal, assim como as cerimónias dos santos populares e dos oragos das freguesias” (CAMACHO, 2010, 19). Um outro aspeto central da música religiosa deste período está relacionado com orientações vindas do papa Pio X. Em 1903, o Papa lança o Motu Proprio, que bane da Igreja a música teatral de estilo florido, “com recitativos, floreados no canto e no acompanhamento […], e melodia das óperas mais conhecidas” (SILVA, 2006, 11). Tendo em consideração que parte significativa da música tocada nas igrejas madeirenses era inspirada em modelos operáticos, esta orientação papal exigiu uma profunda mudança na música religiosa da época. Com certeza, a diretriz vinda de Roma não resultou numa reforma completa e imediata da música na Madeira. Prova disso é o facto de o bispo D. António Pereira Ribeiro ter necessidade de criar, por decreto, uma Comissão Diocesana de Música Sacra, em 1918, com o objetivo de promover “ ‘a escrupulosa observância em toda a Diocese das leis eclesiásticas acerca da música sacra’ ” (SILVA, 2006, 10-11). Considerando que, em 1908, foi publicada na Madeira uma segunda edição de uma coleção de melodias sacras, de acordo com as orientações do Motu Proprio, fica claro que terá havido alguma resistência a retirar, dos templos madeirenses, a música de influência teatral. Apesar disso, existem casos de compositores que criaram um elevado número de obras em consonância com as novas normas emanadas do papa. Um dos casos mais notórios é o do Cón. Fernando Vaz (1884-1954), de quem se conhecem 78 composições, sobretudo cânticos em honra de N.ª Sr.ª e do Sagrado Coração de Jesus. A aludida coleção de melodias sacras compostas para o culto religioso, como alternativa às músicas de inspiração operática, não foi a única solução encontrada para pôr em prática as diretrizes de Roma. De facto, tal como um pouco por todas as dioceses portuguesas, encontram-se nesta época várias referências à tentativa de instituir o canto gregoriano na Madeira. A 15 de outubro de 1909 é anunciado na Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira que “todos os alunos do seminário têm aula diária de cantochão ou de música” (SILVA, 2008, 217); entre 1912 e 1915, há notícia de um padre beneditino que realiza um curso de canto gregoriano no Funchal; finalmente, a 1 de março de 1915 são apresentados os princípios elementares do canto gregoriano e da música sacra no Boletim Eclesiástico da Madeira. Neste âmbito, é relevante nomear José Sarmento (1842-1905), que foi convidado pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto para organista da Sé, tendo sido depois mestre de capela e professor do seminário. Sarmento criou e imprimiu vários folhetos intitulados Rudimentos de Música, onde explicou os fundamentos teóricos da música tonal e gregoriana. Promoveu ainda vários concertos de beneficência e audições reservadas na sua Qt. de Santa Luzia, para os quais convidava os músicos que passavam pela Madeira, acompanhando-os ao piano ou ao harmónio. Outro músico que merece relevo na área da música sacra deste período é o compositor Luiz de Freitas Branco (1890-1955). Figura maior da cultura musical portuguesa da primeira metade do séc. XX e considerado o introdutor do modernismo musical em Portugal, foi para a Madeira com a família em 1912, tendo ficado até cerca de 1915. Apesar de ser bastante jovem, aquando da sua estadia na Madeira o compositor já tinha realizado estudos de composição em Berlim (1910) e tido contacto com a estética do Impressionismo em Paris (1911), onde havia conhecido Claude Debussy. No Funchal, compôs três obras de música sacra a pedido do bispo D. António Pereira Ribeiro, as quais se encontram no Arquivo do Seminário Maior: Responsórios de Matinas da Imaculada Conceição; Te Deum, a duas vozes masculinas; Te Deum, a três vozes masculinas. Outra importante mudança ocorrida na transição do séc. XIX para o séc. XX está relacionada com o desenvolvimento de um mercado para os músicos, derivado da criação de um conjunto de espaços de entretenimento que contratava os seus serviços. Enquanto no período de 1820-1880 não há dados sobre a contratação de músicos para atuações regulares em espaços públicos, a partir do final do séc. XIX começam a surgir cafés, teatros, cinemas, casinos, hotéis e outras entidades que necessitam de músicos para entretenimento habitual de madeirenses e de turistas. Passa-se de uma situação em que os músicos eram maioritariamente solicitados para dinamizar bailes esporádicos em clubes ou para atuações pontuais em teatros a uma situação em que existem vários espaços em simultâneo com necessidade, por vezes diária, de atividades musicais. A mudança em questão, aliada à necessidade de regentes para os grupos musicais de amadores então surgidos – bandas, tunas e orfeões –, bem como ao aumento de solicitações de professores de música, alterou profundamente o estatuto dos músicos, criando mais oportunidades de profissionalização para esta classe. Este novo contexto trouxe grandes alterações ao tipo de agrupamentos musicais existentes: enquanto os grupos musicais de amadores eram constituídos por dezenas de elementos, os grupos profissionais eram mais reduzidos. Em poucos anos, surgem vários grupos profissionais de pequena dimensão, normalmente sextetos, quintetos ou quartetos. Assim, principalmente a partir da déc. de 1890, são criados muitos grupos de músicos profissionais, acentuando-se o fenómeno a partir do início do séc. XX: 1895, Café “Águia D’Ouro”; 1905, Quinta Santana; 1906, Monte Stranger Club; 1907, Club dos Estrangeiros; 1909, Casino da Quinta Pavão e Hotel Belo-Monte; 1911, Salão Ideal, Salão Central Cinematographo Gaumont e Pavilhão Paris; 1916, Ateneu Comercial; 1919, Casino “Vitoria” e Teatro Circo; 1920, Novo Club Restauração; 1922, Hotel Savoy. A proliferação de grupos profissionais virá a acentuar-se a partir da déc. de 1940, devido sobretudo ao significativo aumento no número de hotéis e da oferta turística madeirenses. No período de 1890 a 1930 assiste-se a uma primeira fase de profissionalização da classe dos músicos, como está patente na seguinte lista (não exaustiva): 1897, Sexteto de Evaristo Guedes; 1900, Sexteto dos Srs. Nunos; 1905, Sexteto Espanhol da Quinta Santana; 1906, Sexteto Agostinho Martins; 1906, Sexteto António de Aguiar; 1909, Sexteto Espanhol da Quinta Pavão; 1909, Sexteto de Nuno Graciliano Lino (mais tarde, Quarteto); 1909, O Sexteto Nascimento (mais tarde, Quarteto e Quinteto); 1909, Orquestra Belo-Monte; 1911, Quarteto João de Deus; 1916, Sexteto Joaquim Casimiro; 1919, Sexteto Cesar Magliano; 1920, Sexteto Passos Freitas (mais tarde, Septeto, Octeto e Quinteto); 1920, Quarteto Accacio Santos; 1922, Quarteto do Hotel Savoy. O momento mais importante do final do séc. XIX, que influenciaria as artes performativas profissionais ao longo das primeiras três décadas do séc. XX, foi a fundação do Teatro D. Maria Pia, em 1888 (posteriormente Teatro Funchalense, Teatro Manuel Arriaga, teatro municipal Baltazar Dias). As obras de construção terão sido concluídas em 1887, altura em que a Orquestra da Associação Musical 25 de Janeiro deu um concerto para experimentar as condições acústicas da nova sala. A 11 de março de 1888, o teatro é inaugurado oficialmente por uma companhia espanhola contratada pelo negociante espanhol D. José Zamorano, estabelecido no Funchal; a primeira peça a ser representada foi a zarzuela Las dos Princesas. Na sequência da fundação do teatro, experimentou-se um incremento da produção teatral: ao longo de 1888 são apresentados 69 espetáculos (referentes a 34 zarzuelas). De facto, este foi o espaço privilegiado do Funchal para concertos públicos, tendo nele atuado várias companhias de ópera, de revista, de zarzuela e diversos músicos virtuosos. A partir da inauguração do Teatro D. Maria Pia, as representações de teatro lírico de influência italiana começaram a ser mais frequentes – com forte concorrência da zarzuela espanhola –, e o tipo de espetáculo mais comum terá sido o sarau ou a récita com uma mistura de árias das óperas mais famosas de então. Um exemplo deste género de exibição ocorre em 1904, ano em que um conjunto de cantores líricos com formação italiana atua no teatro municipal: o barítono Maurício Bensaúde (teatro alla Scala de Milão), a mezzo soprano Paola Moretti (La Fenice de Veneza) e o tenor Ivo Zaccari (teatro Carlo Felice de Génova), que apresentam um conjunto de êxitos das óperas mais populares. Contudo, no final do séc. XIX as cançonetas ligeiras começam a ganhar a preferência de alguma elite madeirense, ocupando o espaço deixado livre pelos romances (desaparecidos das notícias de imprensa desde a déc. de 1870) e fazendo concorrência às árias de ópera de influência italiana. O termo “cançoneta” começa a aparecer de forma frequente a partir de 1888, coincidindo com o ano de fundação do Teatro D. Maria Pia. As cançonetas eram cantadas maioritariamente por atores e não por cantores líricos; tinham, com frequência, objetivos cómicos: um articulista referia que a cançoneta “De Pernas Para o Ar”, quando interpretada pelo ator Santos, fazia “a gente morrer de riso” (DN, Funchal, 21 out. 1888, 1); outra cançoneta teria o mesmo efeito, sendo descrita como “a engraçadíssima cançoneta: Sol, Lá, Si, Dó que é d’uma pessoa morrer de riso” (DN, Funchal, 13 nov. 1888, 1). Entre as cantoras e compositoras madeirenses, saliente-se Matilde Sauvayre da Câmara (1871-1957), que teve grande influência na vida musical da Ilha na transição do séc. XIX para o séc. XX. Na visita que os reis D. Carlos e D. Amélia fizeram à Madeira em 1901, Matilde Sauvayre da Câmara foi responsável pela organização de uma récita de gala no teatro municipal do Funchal. Sauvayre da Câmara, enquanto artista que alcançou notoriedade a compor e a cantar cançonetas, exemplifica a mudança que se viria a sentir no início do séc. XX, onde a preferência por um estilo musical teatral mais ligeiro, em detrimento das árias de ópera, se veio a confirmar. A cantora madeirense tem sucesso, desde 1893, ao atuar em saraus domésticos realizados em salões nobres de casas de personalidades do Funchal, tais como as do médico Adriano Augusto Larica ou dos Viscondes de Monte Bello; em 1897, surge como protagonista de números dramáticos no Teatro D. Maria Pia, onde também interpreta algumas cançonetas integradas num espetáculo de beneficência. Na área da música para teatro, uma das novidades de maior relevo deste período é a emergência de um repertório original de criação regional de influência lisboeta e espanhola – a revista. A revista madeirense terá provavelmente sofrido o influxo da congénere de Lisboa, por meio dos militares músicos que chegaram à Madeira partidos do continente – como Manuel Ribeiro –, e da zarzuela espanhola, através da ação das várias companhias que estiveram no Funchal neste período. Parece plausível que entre 1909 e a déc. de 1950 tenham sido produzidas no Funchal dezenas de revistas originais, exibidas em espetáculos criativos que misturavam libretistas, compositores e coreógrafos regionais. Ao longo de cerca de 50 anos foi produzido um extenso repertório de revista, mediante o contributo de músicos como Augusto Graça, Manuel Ribeiro, Dário Florez e, no período do Estado Novo, do Cap. Edmundo Conceição Lomelino. No domínio dos libretos, a variedade de autores é maior, destacando-se, entre outros, os nomes de Alberto Artur Sarmento, de Adão Nunes e, na época do Estado Novo, de Teodoro Silva. Nos anos áureos da revista e da opereta regional madeirenses surgiu o tenor lírico Nuno Lomelino Silva (1893-1967), apelidado de “Caruso português”. Nascido no Funchal, no final do séc. XIX, começa a sua atividade de cantor como amador numa opereta na Madeira. Após realizar estudos em Itália, acaba por enveredar por uma carreira internacional, com digressões pela Europa, pela América do Norte, pelo Brasil, pela Ásia, etc. Atuou no Funchal por diversas vezes, acompanhado de excelentes pianistas; entre estes, conhecem-se os nomes de Jacinto C. Baptista Santos, do maestro Jacobs Pierre, de Pedro Guevara e de Regina Cascais. Na área da relação entre a música e o teatro, é ainda de referir João dos Reis Gomes (1869-1950) que, em 1919, publica um esboço filosófico intitulado A Música e o Teatro, o qual ocupa um importante lugar no panorama musicológico madeirense. As novas tecnologias e a emergência do Novo Mundo Os primeiros anos do regime do Estado Novo foram marcados por um conjunto de mudanças tecnológicas que teve um elevado impacto na cultura madeirense. Entre elas encontram-se a telefonia, o cinema e o gramofone, que vieram alterar o modo de recreação dos madeirenses, quer na vida privada, quer na vida social. A telefonia chega à Madeira no verão de 1927, altura em que surgem os primeiros anúncios para venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. No entanto, será principalmente a partir da déc. de 1930 que a telefonia se começa a generalizar entre a população madeirense. O cinema ganhou progressivamente a adesão do público, supondo-se que fosse, no segundo quartel do séc. XX, a principal forma de passatempo madeirense. A primeira apresentação do animatógrafo ocorreu no Funchal em 1897; em 1907, ocorreu o lançamento do cinema em termos comerciais. O sucesso obtido por esta arte no Funchal foi de tal ordem que, em 1932, o teatro municipal já funcionava quase exclusivamente como sala de cinema. O gramofone foi outra tecnologia que, na déc. de 1930, marcou de forma indelével o quotidiano e os entretenimentos madeirenses. Pelo menos desde o início da déc. de 1910 que se faz menção desta tecnologia nos periódicos, a qual coincide com o início da decadência da prática musical amadora. É nesta altura que começam a surgir os primeiros anúncios publicitários a vendas de fonógrafos, então designados de “Pathéphone – máquinas falantes” (DN, Funchal, 19 jul. 1910, 3). Estes reclames mantinham-se ao longo de várias semanas, o que indicia que o negócio devia ser rentável. A nova tecnologia era apresentada com grande euforia nos jornais: v.g., afirmava-se que “a descoberta das máquinas falantes para discos sem agulha produziu uma revolução no mundo artístico e musical” (DN, Funchal, 21 nov. 1910, 3) – o que, de facto, veio a confirmar-se nas décadas seguintes. Na déc. de 1930, aparece a denominação “gramofone” num anúncio que informa que “gramofones de origem alemã” podiam ser adquiridos na “rua do Comércio, 166 a 168” (DN, Funchal, 31 jan. 1932, 6). Em espaços comerciais destinados a estrangeiros havia casos de proprietários que preferiam colocar gramofones em vez de pôr música ao vivo: e.g., num anúncio em inglês, a Majestic House informava que todos os dias colocava discos a tocar no seu gramophone, dando especial destaque aos melhores “fados portugueses” (DN, Funchal, 26 jan. 1932, 6). A elevada importância destas tecnologias entre os jovens da déc. de 1930 está bem patente num texto de Luiz Peter Clode, escrito em 1949, onde o autor descreve as motivações para a fundação da Sociedade de Concertos da Madeira, em 1943: “de 1930 a 1943, […] aos rapazes e raparigas dos 15 aos 18 anos pouco interessava a política do espírito. A sua máxima preocupação era o aperfeiçoamento dos gramofones, as atrizes e os atores de cinema, radiotelefonia, o ‘jazz’ e o gosto exagerado pelo futebol” (CLODE, 1949, 1). A difusão destas novas tecnologias na déc. de 1930 contribuiu de forma decisiva para um aumento da influência da música americana na Madeira – tal como no resto da Europa –, em especial através do cinema e dos gramofones. Num anúncio do Jornal da Madeira de 10 de maio de 1924 indica-se existir à venda, na rua da Queimada de Cima, um “grande sortimento de DISCOS entre outros: Fox-trots, Shimmy’s, Boston, Jazz-Band”. Assim, é natural que a música americana começasse a disseminar-se nos entretenimentos madeirenses, principalmente nos diferentes tipos de danças. A influência, não só americana, mas também inglesa chegou à Madeira na déc. de 1920, altura em que se dançava o one step e o fox-trot no Funchal. Entre os compositores madeirenses, encontram-se músicos que criam repertório deste género. O pianista Raul de Abreu compõe, em 1936, uma peça intitulada Kit Cat, Fox-trot, na qual o estilo ragtime é bastante notório. Outro músico madeirense pioneiro nestas novas danças foi Edmundo da Conceição Lomelino, que editou um one-step para piano, intitulado A Little Kiss, Intermezzo Americano, em data incerta (entre 1920 e 1940). A americanização da música de dança e da música em geral continuou no Funchal ao longo da primeira metade do séc. XX, havendo vários indícios dessa aculturação, sobretudo ao longo da déc. de 30, com a difusão de jazz bands. A referência ao jazz é pertinente, principalmente porque é significativa de uma mudança cultural relevante. No Funchal, as notícias sobre jazz bands começaram a surgir sensivelmente a partir de 1927, com menção à prática de jazz habitualmente ligada ao cinema e à dança, confirmando-se assim o paralelismo com a situação em Lisboa. Designadamente, num anúncio a um espetáculo de cinema no Teatro-Circo avisava-se que se estreava “um jazz band, que doravante passa a tocar em todos os espetáculos deste cinema”, acrescentando-se que seria “mais um atrativo para o público” e que esta música estava “muito em uso em todas as partes da Europa” (DN, Funchal, 30 jul. 1927, 2). Poucos meses depois, no Strangers Clube do Casino Victor, anunciava-se que às seis horas haveria “dança com acompanhamento do Jazz-Band do Club” (DN, Funchal, 29 dez. 1927, 3). Durante a déc. de 30, estas referências multiplicam-se, surgindo várias orquestras de jazz que tocam em cafés, hotéis, clubes ou no Casino Vitória: Orquestra Jazz de Manuel Freitas (1932), Orquestra Jazz Café Ritz (1932), Orquestra Jazz Oceânia (1933), Orquestra Jazz Amaral (1933), Abreu’s Dancing Orchestra (1933); Jazz Band de Jacinto Baptista Santos (1935), Orquestra Jazz Senhor Silva (1935), Orquestra de Jazz da Academia Musical Instrução e Recreio (1936), Orquestra Jazz Vanize Meireles (1937), entre outras. Estes grupos incluíam instrumentos como a bateria de jazz, a viola (francesa), o piano, o bandoneon e o saxofone, que em alguns casos continuavam a coexistir com o violino, o clarinete e o trompete. Um dos primeiros músicos madeirenses a ser influenciado pela “nova música” americana e a obter enorme sucesso foi Tony Amaral (1910-1976). No início dos anos 40, o pianista e compositor madeirense criou o Conjunto Tony Amaral e a sua Orquestra, com o qual atuava no hotel Bellavista. Em 1946, muda-se para Lisboa, onde alcança um enorme êxito, inclusivamente junto da crítica. Na capital, sob a designação de Tony Amaral and His Boys, o conjunto atuou em nightclubs, restaurantes, teatros e no Casino Estoril. Em Lisboa, o conjunto era, numa primeira fase, constituído pelos músicos Carlos Menezes (guitarra elétrica), José de Freitas (contrabaixo), Barrinhos (bateria), Tony Amaral (piano) e Max (voz). Em 1949, o conjunto grava um disco com a Valentim de Carvalho, incluindo composições de Tony Amaral e de Max e recriações de canções tradicionais madeirenses, entre as quais o célebre Bailinho da Madeira e a música de influência africano-americana Noites da Madeira. O famoso cantor madeirense atuou no grupo até iniciar uma carreira a solo, na qual atingiria o estatuto de uma das mais populares vedetas da rádio, do teatro e da televisão portuguesa. O agrupamento de Tony Amaral é modelo de um novo tipo de grupo de músicos profissionais, normalmente denominado de “conjunto”, que começa a proliferar de forma mais acentuada na déc. de 1940, principalmente em conexão com o aumento dos hotéis e da oferta turística madeirenses. O termo “conjunto” aplicou-se a vários tipos de formações, mas na Madeira foi sobretudo utilizado, nas décs. de 1940 e de 1950, para designar novos agrupamentos de pequena dimensão e com configurações variadas, que se desenvolveram em torno da bateria de ritmo e com um repertório baseado nas danças em voga. Os conjuntos representam, deste modo, uma nova forma de agrupamento de músicos profissionais ligados ao turismo, a qual vem na sequência dos sextetos, dos quintetos ou dos quartetos que proliferaram no Funchal na transição do séc. XIX para o séc. XX. Os conjuntos distinguem-se dos grupos anteriormente referidos por apresentarem programas de influência anglo-americana e por disporem de um efetivo instrumental que inclui bateria, baixo ou contrabaixo, piano, viola amplificada, habitualmente, e, mais tarde, guitarra elétrica. Alguns conjuntos têm também instrumentos de sopro, como trompete, clarinete ou saxofone. Os conjuntos de Tony Amaral foram os primeiros do género em Portugal que alcançaram um elevado sucesso, tocando música swing, danças latino-americanas e composições de inspiração folclórica em instrumentos elétricos. Assim, é natural que um articulista se referisse ao “quinteto Tony Amaral” como tendo “feito a maior propaganda da Madeira no Continente sendo justamente considerado o primeiro conjunto musical português” (DN, Funchal, 1 jan. 1951, 6). O sucesso alcançado pelo conjunto de Tony Amaral, quer em Portugal continental, quer no estrangeiro, contribuiu certamente para o aparecimento de um grande número de grupos que seguiram o seu modelo, tanto a nível de efetivo instrumental, como de repertório. Assim, ao longo da déc. de 1950, surgem dezenas de grupos musicais que se apresentam sob a designação de “conjuntos” ou de “orquestras”, sem diferenciação substancial entre ambas as denominações, que seguem de perto o modelo do conjunto de Tony Amaral. Entre esses conjuntos, é possível destacar os seguintes, que, de acordo com os periódicos funchalenses, estão em atividade na déc. de 50: Conjunto Blue Moon (1951), Trio “Jess and His Boys” (1952), Conjunto Musical Privativo do Savoy (1954), Conjunto Musical “Tino Cubanos”, Conjunto Musical “Os Rapazes do Ritmo” (1954) – os quais atuam em Luanda em 1957 –, Orquestra “Os Reis do Ritmo” (1954), Orquestra privativa Conjunto “Jorge Brandão” (1954), Conjunto “Flamingo” (1954), Conjunto Irmãos Freitas (1955), Conjunto Académico (1955), Orquestra Zeca da Silva e o seu Conjunto (1955), Conjunto Privativo do Casino (1957), Conjunto Musical “Atlântico Jazz” (1957), Conjunto “Virgílio Cardoso”, (1957), Conjunto Alberto Amaral (1957), Conjunto “Os Amigos da Onça” (1958) – no mesmo ano aparece sob o nome de Orquestra privativa “Os Amigos da Onça” –, Conjunto “Novo Ritmo” (1958), Conjunto Tony Amaral Júnior (1958). Um grupo que merece um destaque especial neste período é o Conjunto de Helder Martins. Em meados dos anos 50, Helder Martins (1929-1978) foi o pianista do Quinteto do Hot e foi pioneiro do jazz em Lisboa, conjuntamente com outros dois madeirenses, o guitarrista Carlos Menezes e o vocalista Max. A partir da déc. de 60, surge uma segunda geração de conjuntos, como o Conjunto Académico João Paulo com Sérgio Borges, Dinâmicos, Demónios Negros, Incríveis, Dancers, entre outros projetos que alcançaram projeção nacional, os quais foram influenciados por grupos como os Shadows ou os Beatles. É também nesta altura que muitos conjuntos começam a acrescentar à sua designação a expressão “ritmos modernos”, a qual se torna comum: Conjunto de Ritmos Modernos “Os Dancer’s” (1965), Conjunto de Ritmos Modernos Tonar’s (1965), Conjunto de Ritmos Modernos “Os Baitas” (1969), grupos musicais de ritmos modernos ou de rock Os Rivais de Câmara de Lobos e os Hamong Band (1970). A título de exemplo, num espetáculo de homenagem à cançonetista Ana Maria, o articulista refere-se à “exibição dos conjuntos de ritmos modernos Vulcânicas e os Dinâmicos” (DN, Funchal, 19 mar. 1965, 7). Entre estes agrupamentos, o Conjunto Académico João Paulo viria a ser o de maior êxito, ocupando o lugar cimeiro da música ligeira regional e nacional, outrora pertencente ao Conjunto de Tony Amaral. A banda nasceu no Liceu Jaime Moniz, no início da déc. de 60, e foi influenciada pela nova vaga de grupos musicais e de cantores dos anos 60, cunhada no estilo dos Beatles. Em 1964, o grupo ganhou um dos concursos de música realizados na Madeira – uma promoção da Rivus, no antigo Cine-Parque – e foi premiado com atuações em Portugal continental, na rádio e na televisão. Na televisão, o grupo participou, com grande sucesso, no programa musical “T.V. Clube”, o que fez catapultar a sua música a nível nacional, de tal modo que os músicos madeirenses acabariam por decidir radicar-se em Lisboa, para dar continuidade ao seu trabalho. Os anos de 1965 e 1966 foram de grande sucesso. Em pouco tempo, o conjunto teve a oportunidade de gravar discos e começou a ser presença assídua em emissões de rádio e de televisão, bem como em espetáculos. Entre as exibições de maior sucesso de início de carreira, salientam-se as realizadas no Teatro Politeama e, depois, no Teatro Monumental. No Politeama, o conjunto tocou para casa cheia durante um mês e meio, num ambiente idêntico ao dos concertos dos Beatles, com uma reação do público inovadora em Portugal, a qual marcaria o início de uma nova era musical. O conjunto participou, por duas vezes, no Festival RTP da Canção, tendo alcançado o 2.º lugar em 1966 e o 1.º lugar em 1970. Da sua extensa discografia salientam-se as seguintes edições, entre 1964 e 1968, sob a designação Conjunto Académico João Paulo: Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1964), De Novo Com João Paulo e o Seu Conjunto Académico (EP, Columbia, 1965), + 1 Disco = 4 Sucessos (EP, Columbia, 1965), Diz-lhe (EP, Columbia, 1966), Eurovisão (EP, Columbia, 1966), Poema De Um Homem Só (EP, Columbia, 1967), L’Amour Est Bleu (EP, Columbia, 1967), Kilimandjaro (EP, Columbia, 1967), O Louco (EP, Columbia, 1967), A Shadow Rounds… (EP, Columbia, 1968). A partir de 1970, os discos são publicados sob a nova denominação de Sérgio Borges e o Conjunto João Paulo: Sérgio Borges com o Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1970), Lavrador (EP, Columbia, 1971), Meu Corpo E Minha Seiva (Single, Columbia, 1970), MAR (Single, Columbia, 1972). A expressão “ritmos modernos” teve tal aceitação na Madeira que, em 1970, é organizado um certame de conjuntos de ritmos modernos, organizado pela Comissão de Festas do Fim do Ano e integrado nas Festas da Cidade do Funchal. Segundo um articulista do Jornal da Madeira, não se podia “esquecer que no tempo eufórico dos conjuntos musicais do género alguns artistas madeirenses nasceram para o music-hall português e até para o internacional”, entre os quais Luís Jardim, que dos “Demónios Negros saltou para o conjunto inglês Bossa Cálida, João Paulo com Sérgio Borges, Valério Silva, o próprio Gabriel Cardoso […], Os Dinâmicos e outros conjuntos de agradável presença” (JM, Funchal, 14 out. 1970, 1 e 7). Depois do desfecho do concurso, a comunicação social noticia que “milhares de pessoas assistiram à final”. O laureado foi o grupo Mud Revolution, que “ultrapassou o Habitat de um ponto e o Comuna Singular de dois”, tendo o júri argumentado que os elementos do conjunto vencedor estavam “industriados naquilo que se denomina música de vanguarda” e que “se realizaram compondo aquilo que apresentaram” (JM, Funchal, 31 dez. 1970, 1 e 3). A introdução de novas tecnologias – fonograma, telefonia e cinema –, bem como a influência da cultura estrangeira (que, por meio daquelas, se tornava acessível), foram acompanhadas de uma reação de resistência cultural com contornos políticos, a qual consistiu na procura da definição da identidade da cultura musical regional. Se, na transição do séc. XIX para o séc. XX, já haviam sido levadas a cabo várias ações de valorização do património musical regional, foi a partir da déc. de 1930 que se realizaram estudos sistemáticos e rigorosos sobre a cultura tradicional madeirense, altura em que as entidades políticas passaram a exercer uma maior intervenção, mais organizada, no âmbito das tradições regionais. De facto, no Estado Novo procurou impulsionar-se as relações entre turismo e folclore, para o que foi criado, em 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (posteriormente Secretariado Nacional de Informação), instituição dirigida por António Ferro entre 1933 e 1950. Este organismo procurou incentivar a perpetuação das tradições folclóricas, em proveito da afirmação nacionalista do regime, através de uma atividade extensível a nível nacional, por meio das diversas repartições e casas do povo (PINTO, 2006, 13). No domínio do folclore e dos estudos sobre as tradições musicais madeirenses, são especialmente relevantes os trabalhos elaborados pelo Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) e pelo jornalista e folclorista Carlos Santos (1893-1955). A partir de 1933, aproximadamente, o Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) realizou vários trabalhos etnográficos e apresentou conferências sobre as tradições musicais madeirenses (sobre o traje, passando pelas danças, até às trovas e cantigas da Madeira). Salvo raras exceções, estes estudos, usualmente de pequena dimensão (20 a 30 páginas), foram publicados a expensas próprias, destacando-se, na área das tradições musicais, os seguintes: Trovas e Cantigas Madeirenses (1934), Danças Madeirenses (1946), Trovas e Cantigas do Arquipélago da Madeira (1954), Danças e Músicas do Arquipélago da Madeira (1954), O Folclore Madeirense (1955), O Trajo do Arquipélago da Madeira (1955) e As Danças e as Músicas Madeirenses (1959). Carlos Santos realizou igualmente estudos mais aprofundados, com uma argumentação mais sólida, tendo as suas obras alcançado alguma reputação, designadamente as seguintes: Tocares e Cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e Bailados da Ilha (1942) e O Traje Regional da Madeira (1952). Estas investigações etnográficas foram acompanhadas de uma componente de prática musical, tendo Carlos Santos dirigido diversos grupos musicais folclóricos, como o Grupo Folclórico dos Louros (1938), o Grupo Folclórico e Cultural Carlos Santos (1939), o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (1949), o Grupo Folclórico da Ponta do Pargo, o Grupo Folclórico da Boaventura, o Grupo Folclórico da Ponta do Sol e o Grupo Folclórico do Livramento-Monte. Segundo Rui Magno Pinto, a partir do final da déc. de 1950 assiste-se a um crescimento do turismo e a uma maior procura por espetáculos de folclore em hotéis e em restaurantes. Assim, em plena déc. de 1960, atuavam nos hotéis do Funchal os seguintes grupos: Grupo Folclórico da Camacha (hotel Savoy, Reid’s hotel), Grupo Folclórico do Livramento (hotel Sheraton), Ilhéus (hotel Monte Carlo, Vila Ramos, Casino Park hotel), Grupo Folclórico do Funchal (hotel Madeira Hilton) e Grupo Folclórico do Porto Santo (hotel do Porto Santo). Além disso, a influência do folclore chega ao teatro. Em 1940, um Grupo Folclórico fundado por Carlos Santos, sediado no Patronato de S. Pedro, apresenta Visão Lírica-Coreográfica da Ilha da Madeira, da autoria do próprio Carlos Santos, no teatro municipal. A peça integrava diversos números musicais de cariz tradicional, tais como canções da ceifa, baile corrido, canção da carga, canção dos borracheiros, canção do berço, canção da sementeira, charamba, mourisca, bailes – da Ponta do Sol, dos Canhas, das Camacheiras –, pesado e bailinho de oito. O hábito do teatro de revista mantém-se no período do Estado Novo, pelo menos até à déc. de 1950. Nesta época, um dos compositores de relevo foi Edmundo da Conceição Lomelino (1886-1962), que criou várias peças de teatro de revista inspiradas na realidade madeirense, as quais alcançaram sucesso entre o público do Funchal. Entre as composições teatrais mais importantes ressaltam Água Benta, A Primavera, A Madeira em Festa (1938) – também representada nos Açores –, Carnaval (1939), Bolas de Sabão (1944) e Flores da Madeira (1945). O enredo das peças de teatro estava maioritariamente ligado a acontecimentos sociais e políticos da altura. Exemplo disso é a peça de teatro de revista Carnaval, em que Teotónio da Silva fez uma paródia à conferência de Munique de 1938. O Capitão Lomelino foi autor da música desta peça, com base num texto de Teotónio da Silva (1900-1976), dramaturgo com quem o compositor colaborou mais frequentemente neste âmbito. A introdução das novas tecnologias contribuiu para o declínio da dedicação à música no espaço doméstico e, em menor escala, para a diminuição da prática instrumental e vocal nos grupos de músicos amadores. O piano, nomeadamente, perdeu o seu lugar central nos entretenimentos familiares, papel que passou a ser ocupado pelo gramofone e pela rádio. As lojas que anteriormente incentivavam a compra de pianos para animação defendiam agora ser mais moderna e mais simples a compra de um gramofone. Desta forma, ao longo da déc. de 1930, os jovens começaram a desinteressar-se da prática musical, como refere Luís Peter Clode. De modo a conservar o que tinham por “música de qualidade” e uma “política do espírito”, os irmãos Luiz Peter Clode (1904-1990) e William Clode (1900-1980) reúnem um conjunto de intelectuais e de artistas e formam, em 1943, a Sociedade de Concertos da Madeira (SCMa) e, três anos depois, a Academia de Música da Madeira (AMM). No seguimento destas instituições, os irmãos Clode fundam, conjuntamente com Herculano Ramos e Arlindo Ramos, a rádio Posto Emissor do Funchal, com o propósito de aumentar o nível cultural da população e de lhe incutir o gosto pela música que consideravam de valor. A SCMa tinha o propósito de fomentar a “arte musical” na Madeira, em proveito de “uma sociedade de elite”. Com esse objetivo, a SCMa deveria organizar concertos, conferências e festas de arte que integrassem artistas madeirenses e continentais de mérito reconhecido. Apesar de a SCMa ter uma índole assumidamente elitista, os seus estatutos referiam que poderiam ser promovidos concertos, com artistas contratados para o efeito, para o público em geral. Nomeadamente, o auditório do jardim municipal do Funchal foi inaugurado num espetáculo da Orquestra de Concertos da Emissora Nacional, organizado pela SCMa, o qual contou com a assistência de milhares de pessoas. Inclusivamente, foram realizados concertos populares ao ar livre em vários locais do Funchal; por norma integrados nos Festivais de Música da Madeira, da responsabilidade da SCMa, estes concertos foram realizados em espaços tais como a Qt. Magnólia e o Lg. do Município, tendo a sua difusão atingido o auge principalmente ao longo da déc. de 50. Luiz Peter Clode deixou um vasto legado de obras, na sua maior parte pequenas peças que imitam o estilo dos compositores do barroco, do classicismo e do romantismo. Obras suas foram tocadas por alguns dos eminentes músicos que atuaram no Funchal sob o patrocínio da SCMa. Entre as suas composições mais importantes, contam-se três peças para piano – Canção de Amor, op. 23, Fantasia N.º 1, op. 12 e Fantasia N.º 2, op. 31 – e uma obra sacra, um Tantum Ergo para duas vozes e órgão. A fundação da AMM teve como primeiro intuito o aproveitamento das vocações no domínio da música. No plano curricular, a AMM procurou seguir, desde a sua criação, o modelo educativo do Conservatório Nacional, o que veio a possibilitar aos alunos da AMM o reconhecimento legal, a nível nacional, das suas habilitações. A oferta da AMM permitiu que crianças, jovens e artistas da Madeira pudessem aceder a um ensino baseado no repertório da tradição erudita europeia, de acordo com padrões educativos de conservatórios e de escolas de música erudita então vigentes no mundo ocidental. Desde o pós-25 de Abril ao início do séc. XXI A revolução de 25 de abril de 1974 trouxe mudanças de fundo na cultura musical madeirense. Com a autonomia da Madeira, em 1976, foram regionalizados vários serviços da administração pública, nomeadamente nas áreas da educação e da cultura, em que foram criadas ou semiprofissionalizadas estruturas culturais e educativas ligadas à música. Os primeiros tempos pós-revolução foram conturbados na Madeira, algo que se refletiu no quotidiano de algumas instituições ligadas ao ensino da música: e.g., a 29 de julho de 1974, a Academia de Música e Belas Artes da Madeira foi ocupada por “um grupo representativo de professores, alunos e de mais pessoas interessadas no desenvolvimento do meio cultural madeirense” (DN, Funchal, 30 jul. 1974, 1). A Orquestra e o Coro de Câmara da Madeira tiveram de adequar o seu discurso e o público-alvo aos novos tempos. Assim, menos de um ano após a revolução, noticiava-se que a “Orquestra e Coro de Câmara da Academia, desde outubro, tem vindo a atuar em diversos pontos da Ilha, contribuindo para uma maior difusão da cultura musical” (DN, Funchal, 26 jan. 1975, 1). Poucos meses depois, num anúncio a um concerto no forte de São João Baptista, informava-se que este era destinado “sobretudo aos pescadores, operários e camponeses da freguesia de Machico” (DN, Funchal, 27 abr. 1975, 3). Finalmente, sobre outro concerto, dirigido a associados e familiares do Sindicato Livre dos Operários da Construção Civil e Ofícios Correlativos do Distrito do Funchal, dizia-se ter “como objetivo principal tornar acessível a boa música às camadas da população habitualmente alheia à realização de concertos” (DN, Funchal, 2 jul. 1975, 6). Durante esta época, realizaram-se, no Funchal, eventos musicais de intervenção política, como concertos de “canto livre”, onde se procurava “lançar para o público canções com uma temática de certo significado político-social”, nas palavras do cançonetista Rui Mingas (DN, Funchal, 12 jul. 1974, 4). Neste âmbito, realizou-se, no Funchal, um espetáculo com cançonetistas de intervenção política, em que participaram músicos como Adriano Correia de Oliveira, Rui Mingas, Jorge Letria, Manuel Freire e Carlos Paredes. Alguns destes concertos eram abertos a qualquer pessoa. A título de exemplo, sobre um evento organizado no então Liceu Nacional do Funchal, informava-se que poderiam inscrever-se nele e “participar como intérpretes todos os que se queiram manifestar adentro do contexto de tal género musical” (DN, Funchal, 2 jul. 1974, 8). No entanto, este tipo de exibições musicais foi desaparecendo com o estabelecimento do regime autonómico, mantendo-se apenas, durante algum tempo, em comícios de partidos de esquerda. A forte tradição musical continuou nos hotéis da Madeira no período pós-25 de abril, não tendo os conjuntos sido diretamente afetados pela revolução (no entanto, a partir da déc. de 1990, assistir-se-á a uma forte precarização dos vínculos laborais dos músicos, bem como a uma redução do valor das remunerações por serviço). Entre os músicos e os novos conjuntos que se destacaram nesta altura nos hotéis, mencionam-se, numa listagem não exaustiva, os seguintes: Celso e o seu conjunto (hotel Madeira Palácio); O Pentágono & Zeca da Silva (Sheraton hotel); Conjunto Habitat (Holiday Inn Madeira); Conjunto Musical “Tap Herperi” e Galáxia (hotel Savoy); Roger Sarbib e os conjuntos Octopus e Ària (Casino Park hotel); Conjunto Pégaso (hotel Atlantis); Conjunto Express Band (hotel Vila Ramos); Conjunto Privativo Fire Work (hotel Savoy); Conjunto The Images (Taste Sheraton hotel); Conjunto “Ritmo 5” (hotel Girassol); Conjunto Contacto (hotel São João); Conjunto Musical Zenith (Casino Park hotel); Tony Cruz (hotel Savoy); Conjunto de Tony Amaral Jr. (Casino Park hotel). Tony Amaral Júnior (1938) merece ser posto em evidência, na qualidade de improvisador e de promotor da música jazz (desde o pós-25 de Abril até à sua partida para Cardiff, em 1989). O pianista teve uma carreira semelhante à do seu pai, Tony Amaral, e notabilizou-se pela sua qualidade técnica como intérprete, bem como pelos conhecimentos musicais superiores de que dispunha, derivados de uma formação musical mais completa. Tocou no hotel Miramar (1958), no Casino da Madeira às datas de 1965 e de 1979 e no hotel Savoy (1973). Em 1986, fundou o Madeira Jazz Club, que durante alguns anos foi o ponto de referência do jazz no Funchal. Atuou em festivais de jazz em Portugal, no Reino Unido e na França, tendo atraído muitos alunos particulares em razão do seu prestígio e do seu talento (quer ao piano, quer na improvisação de jazz); alguns dos seus alunos tornaram-se músicos de relevo no panorama artístico funchalense, como Adler Pereira ou Humberto Fournier. A partir de 1976, o Governo da Região Autónoma da Madeira (RAM) implementou um conjunto de políticas na área da educação, o qual teve um impacto significativo na área da música, quer integrada na educação artística em geral, quer no ensino artístico especializado, bem como no regime de ocupação de tempos livres. Instituições como o Conservatório-Escola Profissional das Artes da Madeira (CEPAM) – instituição sucessora da AMM, que se converteu em Conservatório de Música em 1977 – e o Gabinete Coordenador de Educação Artística – depois Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (DSEAM), integrada na Direção Regional de Educação – funcionaram como dois pilares educativos que permitiram o incremento do número de praticantes, bem como das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Estas duas instituições foram responsáveis pela formação de um conjunto considerável de recursos humanos de elevada competência musical. O aumento de músicos qualificados, juntamente com a opção das entidades governamentais em apoiar projetos com identidade jurídica, incentivou a criação de novos empreendimentos e associações culturais específicas do domínio musical, bem como o rejuvenescimento de antigos agrupamentos – no que toca à idade dos executantes e ao tipo repertório –, tais como bandas filarmónicas e grupos de bandolins. Assumiram identidade jurídica e transformaram-se em associações culturais, entre outros, os seguintes agrupamentos, bandas, grupos musicais e coros: Banda Recreio Camponês-Associação Cultural e Recreativa do Concelho de Câmara de Lobos; Associação Cultural Coro de Câmara da Madeira; Associação Grupo Cultural Flores de Maio; Grupo Coral do Estreito; Banda Municipal Paulense; Associação Musical e Cultural Xarabanda; Associação Cultural Encontros da Eira; Associação de Amigos do Conservatório de Música da Madeira; Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística; Associação Tuna Universitária da Madeira. As diferentes coletividades associativas e agrupamentos de bandolins juntaram-se, tendo surgido a Associação de Bandolins da Madeira a 28 de março de 2000; o mesmo aconteceu no caso das bandas filarmónicas e dos grupos de folclore, tendo sido fundadas a Associação de Bandas Filarmónicas da Região Autónoma da Madeira (2000) e a Associação de Folclore e Etnografia da Região Autónoma da Madeira (2005). A AMM e, posteriormente, o CEPAM formaram centenas de profissionais. Muitas das personalidades que vieram a integrar e a liderar a vida musical no último quartel do séc. XX obtiveram formação na AMM e no CEPAM; nos planos musical e do ensino da música, destacam-se personalidades como o tenor e compositor João Victor Costa (autor do hino da RAM, fundador e maestro de vários coros), Tony Amaral Júnior, a violetista Zita Gomes, o violoncelista Agostinho Henriques, o maestro Fernando Eldoro, o pianista e professor João Atanásio, os flautistas Agostinho Bettencourt e Pedro Camacho, os guitarristas João Paulo Henriques e Pedro Abreu, o maestro João Basílio, o tenor Alberto Sousa, o violinista Norberto Gomes, o clarinetista Francisco Loreto, o bandolinista Norberto Cruz, os compositores Nuno Miguel Henriques, Nuno Jacinto e Pedro Camacho, os violoncelistas Luís Bruno Andrade e César Gonçalves, entre outras; no plano dos estudos de cariz musicológico, realcem-se João Rufino Silva – com um trabalho notável ao nível da recuperação das partituras dos cânticos religiosos do Natal madeirense, bem como de quase toda a música religiosa madeirense do séc. XX –, Vítor Sardinha – com estudos relevantes sobre a música nos hotéis e sobre a história mais recente das bandas filarmónicas – e Rui Magno Pinto – com formação académica especializada em musicologia, tendo realizado trabalhos importantes ao nível da história da música na Madeira; finalmente, no plano de altos quadros da administração pública, salientam-se os nomes de Carlos Gonçalves, José Pereira Júnior, Virgílio Caldeira e Natalina Santos. Por sua vez, a DSEAM complementou o trabalho desenvolvido pelo CEPAM no ensino artístico e vocacional, com um trabalho de base no ensino genérico e em atividades de ocupação de tempos livres. Esta ação dupla do CEPAM e da DSEAM permitiu um acesso facilitado e de qualidade à música por parte das crianças e jovens na RAM, nomeadamente devido à existência de extensões do conservatório em vários concelhos, permitindo a aprendizagem em regime supletivo ou a frequência de atividades artísticas extracurriculares a valores muito reduzidos. No início do séc. XXI, devido à intervenção da DSEAM no ensino genérico, os alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico têm aulas com professores especializados de música. Acresce ainda que os alunos estudam instrumentos Orff e flauta de bisel, e, de acordo com as competências dos professores, têm a possibilidade de aprender instrumentos de corda, sopro e teclado em contexto escolar, através do projeto Modalidades Artísticas; neste contexto, existem vários professores que ensinam guitarra clássica e elétrica, instrumentos tradicionais, teclados e instrumentos sopro. Através desta iniciativa foi possível inverter a situação de quase desaparecimento dos instrumentos tradicionais, existindo muitas crianças e jovens a tocar os cordofones madeirenses (braguinha, rajão e viola de arame). No domínio da ocupação de tempos livres, criaram-se dezenas de grupos artísticos, os quais realizaram uma temporada anual com cerca de 240 concertos, disseminados pelos concelhos da RAM. Na sequência da aprendizagem artística (também musical), surgiram projetos de grande impacto turístico, tais como a Semana Regional das Artes, que se associou ao Festival Atlântico. Ainda no âmbito da DSEAM, implementou-se, desde 2004, uma política de apoio à investigação no domínio da educação artística, que teve resultados relevantes ao nível da melhoria do ensino, bem como nos âmbitos da conservação do património musical e do estudo dos artistas madeirenses, os quais são inseridos no currículo escolar da RAM. O incentivo à pesquisa foi acompanhado de atividades de divulgação na comunicação social e na comunidade científica, tendo daí resultado vários programas televisivos, edições com conteúdos originais, comunicações em congressos e artigos em revistas científicas. No âmbito da preservação e da difusão dos instrumentos tradicionais madeirenses, é relevante frisar os seguintes nomes, que contribuíram para o reflorescimento na prática dos cordofones tradicionais (braguinha, rajão e viola de arame): Roberto Moritz e Roberto Moniz, pelo trabalho continuado de ensino dos cordofones tradicionais; Vítor Sardinha, pelo ensino e pela gravação de álbuns discográficos com viola de arame e rajão; Manuel Morais, pelos estudos e pelas edições de repertório do séc. XIX para braguinha; Carlos Gonçalves, por ter possibilitado a aprendizagem dos instrumentos tradicionais nas escolas da RAM; e Rui Camacho, pelas exposições e edições de cariz organológico, as quais visaram a divulgação e defesa daqueles instrumentos – esta proteção foi protagonizada pela Associação Musical e Cultural Xarabanda. O papel da Associação Musical e Cultural Xarabanda foi decisivo na renovação da música do legado madeirense, quer através de trabalhos de recolha, quer por meio dos arranjos musicais efetuados sobre canções tradicionais, os quais levaram novos instrumentos e sonoridades à música tradicional. Neste domínio, é ainda relevante mencionar os grupos de música tradicional Encontros da Eira e Banda D’Além que, a par do grupo Xarabanda, foram os principais dinamizadores da nova música tradicional madeirense. Com a entrada de Portugal na União Europeia, a RAM teve acesso a subsídios que contribuíram para o desenvolvimento regional em vários sectores, nomeadamente na área da cultura e da educação, em que foram construídas e recuperadas diversas infraestruturas um pouco por toda a Ilha (como sedes para coletividades e centros cívicos e culturais com pequenos auditórios), as quais melhoraram as condições do exercício da atividade musical. No que diz respeito às pequenas coletividades culturais, houve pouca capacidade dos agentes desta área em concorrer a fundos europeus, por falta de recursos financeiros próprios e, possivelmente, de apoio técnico dos serviços governamentais na área cultural. Assim, as receitas das associações culturais com maior impacto junto dos turistas, tais como a Associação Recreio Musical e União da Mocidade (Orquestra de Bandolins da Madeira) e o Grupo de Folclore e Etnográfico da Boa Nova, são quase exclusivamente provenientes dos concertos e das animações que realizam. Trata-se de exemplos de sucesso, em termos de sustentabilidade financeira, de agrupamentos que conseguiram aliar o trabalho artístico de qualidade à capacidade de comunicação e ao marketing cultural. Ambos os grupos têm trabalhos discográficos importantes e uma elevada preocupação em conservar o património musical regional. No caso de instituições com capacidade financeira, advinda principalmente de financiamento público regional, os fundos europeus recebidos foram aplicados maioritariamente em formação, através do programa Rumos – como aconteceu no CEPAM –, bem como na criação da marca Festivais Culturais da Madeira – com o programa Intervir+ –, mediante a qual se procurou reunir os quatro festivais organizados pelo Governo Regional da Madeira, através da Direção Regional dos Assuntos Culturais (Encontro Regional de Bandas Filarmónicas da RAM, Festival de Música da Madeira, Festival Raízes do Atlântico e Festival de Órgão da Madeira). Os festivais são o corolário de uma política de animação cultural que visou, desde o início da RAM, a organização de eventos que beneficiassem os madeirenses e os turistas, tendo em consideração a vocação turística da região. Nesse sentido, o Governo Regional teve a preocupação de: organizar concertos e sessões de folclore, concertos de música clássica e espetáculos de música tradicional; produzir concertos com artistas de fora da Ilha; e apoiar acontecimentos culturais com potencial turístico, tais como o Carnaval, a Festa da Flor ou a Festa do Vinho, onde a participação de músicos sempre foi uma constante. Outros festejos musicais de relevo neste período foram: o Festival da Canção do Faial; o Festival Internacional de Música Antiga, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Cine Fórum; o Madeira Bach Festival; o Festival Regional de Folclore (mais tarde Festival Regional de Folclore “24 horas” a Bailar); o Festival da Canção Infantil, (posteriormente Festival da Canção Infanto-Juvenil); o Festival de Coros da Madeira; e o Funchal Jazz Festival. Desde o final da déc. de 1990, havia-se assistido a uma semiprofissionalização da Orquestra Clássica da Madeira (OCM) – instituição que sucedeu à Orquestra de Câmara da Madeira –, mais direcionada para a música instrumental, não se aproveitando o seu potencial para áreas de cariz mais cosmopolita, como a ópera, os musicais ou o bailado. Houve, embora de forma intermitente, alguma articulação entre o ensino artístico especializado e a OCM, o que permitiu o aumento de músicos portugueses, após um período em que os lugares da orquestra eram principalmente preenchidos por músicos estrangeiros, na sua maioria oriundos do Leste Europeu, que tinham ido para a Madeira no período após a queda do muro de Berlim. Os músicos de Leste foram responsáveis pela elevação da qualidade da execução musical, maioritariamente na área das cordas, e contribuíram significativamente para a melhoria da OCM. Nos anos 90, no contexto do jazz, há que realçar o grupo Oficina, que procurou alargar o número de adeptos deste género musical. Uma das cantoras mais relevantes do início do séc. XXI foi Vânia Fernandes, que atuou nos hotéis da Madeira antes de se catapultar para o panorama nacional. A cantora madeirense ganhou renome em 2008, com a participação no programa musical “Operação Triunfo 3”, emitido pela RTP, no qual ficou classificada em 1.º lugar. Em março de 2008, no seguimento desta vitória, participou no Festival RTP da Canção, que venceu com o tema “Senhora do Mar”. Entre finais do séc. XX e inícios do séc. XXI, o turismo madeirense evoluiu significativamente, tendo-se caracterizado tanto pelo constante aumento do fluxo de turistas como pelo consequente aparecimento de novas unidades hoteleiras, as quais empregaram um número elevado de músicos, embora sem qualquer vínculo contratual. As causas desta precariedade laboral são complexas, mas deverão estar relacionadas com o aumento exponencial dos músicos de melhor formação no mercado de trabalho (entre os quais alguns músicos do Leste da Europa, habituados a remunerações mais baixas) e com a concorrência no domínio do entretenimento nos hotéis, designadamente dos disc-jockeys ou DJs (as áreas das danças e da animação eram anteriormente dominadas pelos conjuntos). De facto, encontram-se referências a disc-jockeys no Funchal a partir da déc. de 1990: e.g., no hotel do Mar, em 1992, atua o “popular disc-jockey Britânico Biko Bangs, excelente intérprete de temas anglo-saxónicos” (DN, Funchal, 21 fev. 1992, 13). Juntamente com os disc-jockeys começou a emergir, na déc. de 1990, uma geração de grupos de rock e de subgéneros do rock. Os conjuntos que precederam estes novos grupos tocavam habitualmente na hotelaria madeirense para um público maioritariamente estrangeiro, pertencente a uma faixa etária mais avançada em idade; diferentemente, os novos grupos rock pertencem ao fenómeno das “bandas de garagem” e são influenciados pela música grunge, hard rock, heavy metal, rock alternativo, gothic metal e por outros subgéneros do rock; tocam principalmente para públicos jovens, em bares, em discotecas ou em festivais específicos, como a Festa da Juventude, o Super Rock ou o Antena 3 Rock. Entre os grupos participantes em concursos de rock ou que foram noticiados na comunicação social estão os seguintes: Nostradamus, Requiem, Alma Gesto, Nude, Pilares de Bânger, Cães Abstractos, Quarto Quadrante, Sidewalk, Opium, Insania, Crumbs. Ao contrário do que aconteceu em Portugal continental, na Madeira eram poucas as possibilidades de atuação destes grupos, tal como os próprios agrupamentos por vezes reclamavam. Assim, os vários grupos que surgiram foram quase sempre de curta duração e tiveram pouca ou nenhuma projeção nacional (ao contrário do que havia acontecido na era dos conjuntos); a maioria destes grupos não chegou a gravar qualquer disco. Os empresários promotores do rock reconheciam o problema da falta de oportunidades dos grupos madeirenses, cujo panorama era bastante diferente do lisboeta, onde os orçamentos eram elevados e os promotores privados auferiam lucros. Além disso, a contratação de grupos de referência implicava custos difíceis de suportar, tais como os relacionados com “deslocação, alojamento, alimentação aluguer de sala e de tecnologia”, que, aliados aos cachets altos e fixos dos grupos, estorvaram a produção de concertos com grupos de rock do exterior da Madeira (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). A dificuldade em conseguir apoios de empresas regionais, à semelhança do que aconteceu a nível nacional, tornou complicada a organização de festivais e concertos; a principal causa de afastamento dos patrocinadores deveu-se à concorrência de outros eventos, como ralis e campeonatos de desportos, quer profissionais, quer de modalidades amadoras. Apesar de tudo, os principais e mais famosos grupos de rock portugueses à época atuaram na Madeira, o que foi viável em virtude de estes garantirem mais facilmente “maiores afluências de público” (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). Assim, nos anos 90 atuaram no Funchal grupos como os Peste & Sida, os Resistência, o grupo de música moderna Rádio Macau, os Madredeus, os GNR, acompanhados dos espanhóis La Frontera, e os Xutos e Pontapés. Nos primeiros 15 anos do séc. XXI, os problemas da Madeira no domínio musical estão relacionados com questões estruturais, não tanto com a qualidade dos intervenientes. Todavia, existem casos de boas práticas em várias áreas, desde o jazz, passando pela música clássica, até à música tradicional e ao rock. Além disso, vive-se nestes anos o resultado da aplicação de um tipo de ensino musical que formou milhares de jovens com razoáveis competências musicais.     Paulo Esteireiro (atualizado a 01.02.2018)

Artes e Design Sociedade e Comunicação Social

música tradicional

A música tradicional madeirense da atualidade resulta da combinação de um conjunto de elementos trazidos por sucessivas levas de povoadores. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), estes contributos foram evoluindo de forma isolada, mas recebendo pontuais influências de novas populações, de visitantes ocasionais ou ainda, a partir do séc. XX, dos meios de comunicação social de âmbito nacional, com particular incidência nas estações radiofónicas, ou da generalização do ensino oficial, com a chegada de docentes de diversos pontos do país. Deste modo, popularizaram-se na RAM canções que, com o tempo, têm vindo a assumir, para muitos, um carácter tradicional. Como é natural, trata-se de peças cuja identificação nem sempre é fácil, pois há pouca investigação feita sobre o tema nas diversas regiões do país. No caso particular das cantigas religiosas, é ainda necessário referir a influência de sacerdotes portadores de orientações precisas por parte da hierarquia ou de uma formação padronizada nos seminários que frequentaram. Um último aspeto que poderá estar na origem de algumas influências alheias é o regresso de emigrantes que trazem das terras onde viveram elementos tradicionais passíveis de ser incorporados na tradição. No entanto, seja por o fenómeno ser ainda relativamente recente, em termos de mecanismos de mudança cultural, seja apenas por ainda não ter havido quem o estudasse seriamente, a verdade é que não se sabe, atualmente, se essa componente se manifesta. Não é possível definir características genéricas da música tradicional madeirense. Por esse motivo, e de modo a facilitar a exposição, optou-se por abordar aqui, separadamente, cada um dos grandes géneros musicais, após uma primeira referência ao bailinho, o elemento mais conhecido e identitário da tradição musical da RAM. Aborda-se igualmente a mourisca, que, embora com menor realce, constitui também um modelo musical transversal a diversos géneros. Bailinho Com um padrão rítmico bastante simples, o bailinho é executado geralmente na tonalidade de Sol Maior, por ser aquela a que mais facilmente se adapta a voz. É esta melodia que está na base de muitos dos mais conhecidos bailes regionais, sendo também a forma assumida pela mais popular forma de canto improvisado em despique da RAM (com o nome de bailinho, retirada, meia noite ou outro). Encontramo-lo ainda a dar o “som” de muitos romances tradicionais, cantigas narrativas, cantigas de lazer, etc. De certa forma, é um elemento que, por si só, permite a qualquer não madeirense identificar uma melodia como sendo da RAM, sendo, atualmente, a forma musical mais presente e espontânea em todos os ambientes festivos na Região, acompanhada por qualquer instrumento ou mesmo por formas improvisadas de criar som. É importante chamar aqui a atenção para uma confusão bastante frequente resultante da coincidência do nome deste género musical. Existe uma canção muito conhecida, interpretada pelo cantor madeirense Max, que tem precisamente o nome de “Bailinho da Madeira”. No entanto, apesar da referência na sua letra ao bailinho, musicalmente esta nada tem a ver com ele. Antes pelo contrário, a música tradicional que serviu de inspiração para algumas das suas frases musicais foi o charamba. A grande popularidade desta canção tem feito com que seja frequente a confusão. Mourisca A mourisca madeirense dos começos do séc. XXI apresenta características que a aproximam de um vira valseado. Musicalmente, baseia-se no compasso binário composto, padrão rítmico de 6/8. Harmonicamente, tem a forma tradicional de alternância entre tónica e dominante. Na tradição local, principalmente a que se pode identificar através de recolhas efetuadas em anos anteriores, encontram-se formas de mourisca em diversas circunstâncias. Existem referências e alguns registos de mouriscas cantadas em despique, com letras improvisadas; contudo já não se encontram cultores desta prática, sobrevivendo apenas como canção de letra fixa. A sua grande força é traduzida numa dança, conhecida predominantemente na zona sul da ilha, em torno da Camacha, da Gaula, do Machico e do Caniçal. Existem algumas referências quanto à existência da mourisca dançada pelos populares em outras zonas, como os Canhas. Esta pode ser denominada, de forma indiferente, como mourisca ou chama-rita. No Porto Santo, existia o baile sério, nos começos do séc. XXI executado apenas pelo grupo folclórico desta ilha. Trata-se de uma variante da mourisca madeirense, com uma letra própria. Os habitantes da ilha consideravam-no a dança dos grupos mais abastados da ilha, em oposição à meia volta ou ao baile do ladrão, associados às classes populares. A sua letra é fixa, tal como na mourisca da ilha da Madeira, alternando quadra com refrão. As quadras são entoadas alternadamente por uma mulher e por um homem, sendo o refrão cantado em coro. Cantigas de trabalho Como resultado da transformação dos modos de vida e das atividades produtivas rurais, as cantigas associadas ao trabalho encontram-se atualmente numa situação peculiar. Com efeito, a verdade é que, nas zonas rurais, já não se ouve cantar a chamusca, a cava, a sementeira, a erva, a ceifa do trigo, a malha na eira, a boiada ou cantigas do moleiro, de acartar lenha, dos borracheiros, do linho, dos pastores, etc. Com o desaparecimento das atividades agrícolas que lhes estavam associadas, estas cantigas perderam o seu carácter funcional. De uma forma geral, podemos considerar que as cantigas de trabalho assumem diversas das características a seguir enunciadas: – Género exclusivamente vocal, sem acompanhamento instrumental; – Estrutura musical vulgar, nalguns casos simétrica; – Melodia simples e curta, muitas vezes irregular, com intervalos curtos; – Andamento lento e livre, dependente da respiração de cada um. O seu tempo é relativo e variável, dependendo da sensibilidade de quem canta e também do trabalho associado; – A tonalidade é a que melhor serve ao intérprete. Por vezes, verifica-se um prolongamento da última nota (de 8 ou 12 tempos finais), como, por exemplo, na cantiga da ceifa, da carga ou dos borracheiros. Não há mudança de tom; – Padrão rítmico: 2+2; 4+4; – Canto monódico. No entanto, a sua entoação pode variar, existindo diferentes formas de o fazer: a) Um único intérprete canta a totalidade da cantiga, ou cada um canta a sua quadra; b) Uma voz inicia a quadra e, nos dois últimos versos, os restantes participantes acompanham em uníssono imperfeito; c) Todos entoam, em conjunto, quadras já conhecidas; d) Cada um improvisa a sua quadra. – Sem refrão; – Forma de cantar: alto (agudo), voz de cabeça; – São frequentes os modos arcaicos (sistema modal); As características mais notórias da letra são: – A mesma letra pode servir para diferentes melodias, podendo ser de temática completamente alheia à tarefa. Esta é geralmente pouco profunda, mas ligada à tarefa do dia-a-dia, às dificuldades da vida. São temas recorrentes: Deus, amor, saudade, tristeza, alegria, humor, malandrice; – É frequente a apropriação de versos já conhecidos e pertencentes a cantigas de lazer, de carácter religioso ou romances tradicionais; – O cantar de improviso é um fator importante neste género de música associada ao trabalho caseiro, dependendo da capacidade poética de quem canta; – Entre as quadras ou versos, são frequentes os apupos ou onomatopeias; Listam-se abaixo algumas das mais significativas cantigas de trabalho madeirenses. Borracheiros Na costa norte da Madeira, as uvas eram tradicionalmente apanhadas e levadas para um lagar local. O mosto era posteriormente acartado para as adegas do Funchal, onde iria fazer parte do processo de produção do famoso vinho generoso. A ausência de boas vias de comunicação obrigava a que o seu transporte fosse feito em odres (borrachos) carregados aos ombros de homens pelas veredas da serra. Podiam juntar-se várias dezenas de borracheiros, que, em fila, faziam o percurso até à cidade. Como forma de atenuar a dureza da caminhada, iam entoando uma cantiga específica. O primeiro homem da fila era o chamado candeeiro, que cantava umas quadras de métrica irregular, a que respondiam os restantes (o gado), com vivas. O último do grupo era o boieiro. O canto servia para animar os elementos do grupo, fazendo alusão ao próprio caminho, podendo também incluir elementos de troça em relação a algum componente ou de incentivo ao esforço. A construção de estradas e infraestruturas levou ao inevitável fim dos borracheiros. Em 1974, por iniciativa de Eduardo Caldeira, constituiu-se um grupo, no Porto da Cruz, que recuperou essas tradições, apresentando-as em diversos eventos madeirenses. Cantiga da carga A força humana foi, desde sempre, o elemento que assegurou o transporte na ilha. Mesmo cargas pesadas eram levadas aos ombros ou à cabeça. Por vezes, onde os terrenos o permitiam, podia recorrer-se à ajuda de animais para facilitar a tarefa. No entanto, a ida à serra para recolher lenha para aquecer a casa ou cozinhar, ou para cortar erva para o gado que, no palheiro, a aguardava, dificilmente escapava à necessidade da força humana para o transporte dos pesados fardos. Esta cantiga era entoada naqueles percursos do regresso, aliviando, de certa forma, a dureza do esforço. A letra era composta por quadras, que podiam ser improvisadas, intercaladas por apupos e entoadas numa cadência lenta, acompanhando o ritmo lento da tarefa. Cantiga de embalar Adormecer uma criança é uma tarefa que pode ser árdua e que está muito dependente do tempo necessário para atingir o objetivo. Assim, a tradicional cantiga de embalar tem um andamento muito lento, sem grandes irregularidades. A letra tem versos intercalados por onomatopeias destinadas a fazer adormecer mais facilmente a criança.   Cantigas de carácter religioso O ciclo do Natal O primeiro momento do ciclo do Natal na Madeira, em termos musicais, é constituído pelas Missas do Parto. No seu estudo sobre o tema, Rufino da Silva (1998) afirma que os cantos que têm presença certa nestas cerimónias são conhecidos, pelo menos, desde finais do séc. XIX>, sendo no entanto impossível determinar se são de origem madeirense. Segundo o mesmo autor, estes cânticos apresentam traços de lirismo popular, revelam influência minhota pela harmonização em terceiras e a sua estrutura harmónica é basicamente de alternância entre a tónica e dominante e quase exclusivamente em modo maior. Embora esta seja a caracterização da maior parte das canções, o autor detecta nalgumas delas traços de influência do canto gregoriano.   Romagem. Missa do Galo. Boaventura. Foto: Rui A. Camacho A missa da Noite de Natal é um mais alto momento das vivências religiosas da população regional. Associadas à importância litúrgica de comemorar o nascimento de Cristo, há diversas práticas tradicionais que ajudam a que esta seja realmente a grande Festa. Em alguns locais, esta celebração ainda assume características muito próprias, terminando com as romagens, nas quais grupos de vizinhos, familiares ou amigos percorrem a nave do templo tocando e cantando, para levar até ao sacerdote as suas oferendas. A própria missa é intercalada por diversos momentos de representação e entoação de cantos, como o da “Anunciação aos Pastores” ou a “Pensação do Menino”, tradicionalmente cantados junto do presépio. Possivelmente, estes serão os últimos vestígios de um ancestral auto apresentado na ocasião. A alteração das condições de realização da cerimónia, incluindo alguma necessidade de encurtar a sua duração, poderá estar na origem da eliminação de componentes ou redução do número de estrofes entoadas, daí resultando a sobrevivência de apenas algumas canções isoladas. As romagens são um bom exemplo de uma outra realidade: o que aqui é tradicional é o contexto de interpretação e não a canção em si. Apesar de ser uma tradição que tende a perder-se, nos locais onde se mantém, a principal preocupação dos vários grupos que preparam a sua romaria é mostrar qualquer coisa que as pessoas presentes na igreja não conheçam, pelo menos no que respeita à letra, pelo que muitas vezes se adapta uma música conhecida a uma letra criada. Principalmente nas zonas onde essa preocupação pela conservação da tradição é maior, o grupo que apresente uma romaria que ele ou outro cantou naquela igreja no ano anterior ou dois anos antes, da qual toda a gente se lembra, é alvo de troça, uma vez que não foi capaz de preparar e apresentar uma romagem original, o que obriga a questionar o lugar da tradição. A tradição está na prática de as pessoas de um determinado sítio se reunirem e levarem uma canção para a missa de Natal, com ou sem instrumentos. Por definição, se o que o grupo tem de apresentar é uma novidade, então as músicas não podem ser tradicionais. O que acontece por vezes é que se o público gostar de uma romaria de Natal, seja pela situação em que ela foi apresentada, seja pela qualidade artística da sua melodia ou da sua letra, esta permanece e pode tornar-se tradicional, como uma cantiga de passatempo.   Noite de Reis. Foto: Rui A. Camacho Cantiga de Reis Na noite de 5 para 6 de janeiro, formam-se grupos que percorrem as casas dos vizinhos ou amigos, entoando cantos próprios da época, como forma de desejar um bom Ano Novo. Ao chegar à porta, canta-se enquanto se aguarda que o dono da casa abra e ofereça a todos as bebidas e bolos que os esperam. Depois de uns minutos de convívio, há que prosseguir o percurso, que dura até de manhã. Em cada zona da ilha tende a haver um canto próprio desta noite, embora haja alguns mais conhecidos que são partilhados por várias localidades. A cantiga é entoada em uníssono por todos os participantes. A sua estrutura melódica é constituída por duas partes distintas: uma primeira cantada em compasso de 3/4 e uma segunda em compasso de 3/8, embora haja casos em que surge o compasso 2/4. No final, é frequente haver uma quadra de despedida aos donos da casa. Espírito Santo. Camacha. Foto: Rui A. Camacho Espírito Santo Após a Páscoa, começam as visitas das insígnias do Espírito Santo às casas. Num número de domingos variável em função da quantidade de locais a percorrer, forma-se um grupo constituído pelos festeiros, portadores das insígnias (pendão com a pomba desenhada, coroa e cetro), músicos e duas ou quatro saloias (meninas que transportam cestos para acolher as ofertas). Ao chegar a cada casa, as saloias entoam o Hino, que pode variar de freguesia para freguesia, alusivo à entrada do Espírito Santo, a que se seguem o pedido e o agradecimento das esmolas ao dono da casa. Podem seguir-se outras cantigas, de acordo com pedidos feitos pelos moradores e/ou decisão dos festeiros. Cantigas de lazer Cantos improvisados Brinco em bailinho O despique em bailinho é, ainda hoje, o momento alto da festa popular. Em qualquer arraial tradicional, ou mesmo nas festas familiares, se pode encontrar um brinco. Um músico, pelo menos – tocando rajão, braguinha ou viola de arame, hoje frequentemente substituídos pelo acordeão –, atrai uma roda de cantadores que, à vez, entoam as suas quadras, podendo haver um acompanhamento adicional de palmas (se necessário, pode-se prescindir inclusivamente da presença de músicos). Musicalmente, encontramos uma melodia tonal, com base na harmonia da tónica, dominante.   Despique. Arraial de Ponta Delgada. Foto: Rui A. Camacho O canto é, no essencial, improvisado. No entanto, um bom despicador pode recorrer, se necessário, a quadras decoradas. Esta situação será um recurso aceite no contexto de um despique que se prolongue num arraial. A tentativa de “atirar” quadras críticas ou irónicas sobre os restantes pode proporcionar momentos de grande alegria. A forma poética escolhida é a quadra de verso curto, com rima cruzada (ABAB ou ABCB). Habitualmente, cada verso é bisado, e após o segundo verso toca-se o interlúdio musical. Por vezes, o despicador acrescenta mais dois versos (rima CB ou DB), como mecanismo que permite completar melhor a ideia. Em casos mais raros, poderá ser entoada uma nova quadra completa, tendência que se tem tornado mais comum em tempos mais recentes, possível sinal de uma menor capacidade inventiva e de síntese. A satisfação dos presentes é manifestada por meio de apupos. O despicador, ao chegar a sua vez, pode prescindir de participar, passando a vez ao seguinte. A conclusão mais natural do despique será a que resultar do progressivo abandono dos participantes, vencidos pelo mais inspirado. Num arraial, o brinco poderia prolongar-se por longo tempo, sendo um dos grandes momentos de animação antes da generalização dos grupos de música moderna. Na ilha do Porto Santo, é habitual chamar “Retirada” ao despique em bailinho. Charamba   Charamba. Foto: Rui A. Camacho É hoje a forma musical associada por excelência à viola de arame, embora tradicionalmente pudesse ser acompanhado por outros instrumentos. É uma forma de canto despicado, quase exclusivamente masculino. Na maior parte das vezes, os tocadores não participam no canto, sendo este alternado entre os participantes, que podem cantar quadras ou estrofes mais longas e também com uma métrica variável. A sequência é obrigatoriamente no sentido dos ponteiros do relógio. Ao conjunto dos charambistas que participam numa determinada sessão chama-se “quadrado”. Segundo alguns dos intérpretes tradicionais, o importante neste género musical era o conteúdo do que se cantava. Nalguns casos, acordava-se previamente um tema (fundamento) que estaria obrigatoriamente presente em todas as intervenções. O tema poderia também ser acordado após quadras iniciais entoadas pelos participantes. No momento do canto, o intérprete tem toda a liberdade de definir o andamento e a extensão dos seus versos. Se necessário, o tocador terá de “ir atrás” do cantor, prolongando as frases musicais ou repetindo-as. Para alguns, a opção é ir tocando uns acordes muito simples durante o canto. As quadras são entoadas com repetição de cada verso ou repetindo cada par de versos. Após a repetição, há o indispensável interlúdio musical, que tem uma forma padronizada e bem definida, num padrão rítmico regular de 2/4 (embora possa mudar para 5/8), sendo ele que, musicalmente, define o charamba. A estrutura harmónica é simples, baseando-se na Tónica e Dominante do tom de Sol maior. O seu andamento é lento/andante. Jogos cantados Nos momentos de convívio dos mais jovens, seja entre si, seja com os adultos da família ou amigos, as lengalengas e os jogos ocupavam um lugar importante. Estes apresentam uma grande diversidade de características, podendo ser cantados ou não, tal como ter associada uma coreografia própria. Embora não sendo possível efetuar generalizações, existe um conjunto de aspetos que se podem apresentar como sendo muito comuns aos jogos cantados: – São cantados em tom maior, com refrão e um ritmo simples; – É habitual possuírem refrão, cantado por todos em uníssono, intercalado com outras partes entoadas a solo por algum dos participantes; – Sem acompanhamento instrumental; – Recurso a acompanhamento de palmas; – A sua letra é composta maioritariamente por quadras de verso curto Muitos dos jogos têm uma coreografia associada. Os jogadores podem colocar-se em roda simples ou dupla, podendo ter um elemento no centro, podem estar em fila, frente a frente, etc. Histórias Outra forma muito comum de passar o tempo livre, ou mesmo acompanhar as longas horas de trabalho do bordado, era contando ou cantando histórias. Estas podiam assumir características diversificadas. Tanto podiam ser os antigos romances da tradição hispânica, como narrativas inspiradas em factos da vida real, como ainda histórias de animais ou mesmo lengalengas. Um elemento importante é assumirem, com grande frequência, um carácter didático ou terem uma conclusão moral. A sua componente musical varia muito. Ainda podemos encontrar alguns romances com as suas melodias ancestrais, a par de outros textos a que se foi adaptando uma música mais recente. Nestes casos, o facto de se tratar de uma melodia bem conhecida facilitava a sua memorização e podia tornar mais recetivos os ouvintes. De qualquer modo, são sempre melodias com frases musicais curtas, que se vão repetindo ao longo de todo o texto. Danças As duas formas dançadas mais comuns na RAM são os já referidos bailinho e mourisca. Para além delas, pode referir-se duas outras tradicionais da ilha do Porto Santo, a Meia Volta e o Ladrão, e uma outra, a Dança das Espadas, associada à festa de São Pedro, na Ribeira Brava. Meia volta Na ilha do Porto Santo, os momentos de festa em família ou com vizinhos e amigos tinham lugar nas eiras ou num espaço amplo dentro de casa. Aí, o tocador da rabeca colocava-se no centro e os restantes participantes do baile iam formando pares em roda (pares que nunca se tocavam, realçavam alguns dos mais antigos). Na roda, incluíam-se os tocadores dos outros instrumentos, como o rajão e viola de arame. Caso único nas danças da RAM, existia um mandador que orientava a sequência coreográfica do baile, ao mesmo tempo que cantava e tocava a viola de arame. Os restantes cantadores ficavam fora da roda. A música tem ainda hoje carácter modal (frígio), claro sintoma da sua antiguidade, embora todas as hipóteses até hoje lançadas para explicar a sua origem sejam puramente especulativas. Tradicionalmente, o canto era improvisado. Atualmente extinto da tradição, são elementos do Grupo Folclórico local que preservam a sua recordação. Musicalmente, apresenta uma sequência harmónica de três acordes: Sol, Lá, Sol, tom de Sol maior. O andamento é moderado e mantém-se sempre inalterável, mudando o número de notas musicais, criando uma intensidade sonora e desenvolvendo uma dinâmica rítmica, enquanto o violino executa uma interessante melodia com base na escala de Sol maior. A meia volta é única em relação a todas as outras músicas tradicionais. Dança das espadas Música tradicionalmente executada durante os festejos de São Pedro, na Ribeira Brava. Praticada até meados do séc. XX, esta dança desapareceu progressivamente da tradição, sendo alvo de trabalho de reconstituição em finais do século, tendo posteriormente retomado o seu lugar na festa.   Dança das Espadas. Ribeira Brava. Foto: Rui A. Camacho É interpretada por um conjunto de homens com um trajo próprio, tendo duas partes distintas: uma executada em marcha e a outra com uma coreografia própria. Aspecto peculiar, a dança é apenas instrumental, sem qualquer canto associado, o que faz com que seja a única dança da tradição popular que apresenta essas características. Musicalmente, é simples, baseando-se apenas em quatro compassos, em tom maior. Embora haja registo de ligeiras alterações, podemos definir o acompanhamento musical como sendo feito por rajão, braguinha, viola de arame e pandeiro.   Jorge Torres Rui Camacho (atualizado a 01.02.2018)

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Linguista, investigador e professor, Luís Filipe Lindley Cintra (n. 1925 - m. 1991) foi autor de trabalhos fundamentais de filologia e dialectologia, de entre os quais se salienta a Crónica Geral de Espanha de 1344, em quatro volumes (1951), sendo o 1º volume um Estudo Introdutório, e os outros a edição crítica integral do texto, acompanhada de notas, correspondente à sua tese de Doutoramento; e ainda A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, de 1959 (reprod. 1984), apresentado no Concurso para Professor Extraordinário da Faculdade de Letras de Lisboa, e ainda de outros, entre os quais se releva Estudos de Dialectologia Portuguesa, Lisboa, 1983, não esquecendo a Nova Gramática do Português, em parceria com Celso Cunha (1984). Contribuiu de modo profundo para uma maior e rigorosa determinação da variação dialectal do Português Madeirense: primeiro, acompanhando e orientando teses de licenciatura apresentadas na Faculdade de Letras (Universidade de Lisboa) por alunos oriundos da Madeira e do Continente; mais tarde, viria a revolucionar a caracterização dessa variação linguística, principalmente no domínio da fonética e da lexicologia, demonstrando que, mais do que falar-se de dialecto madeirense, como até essa data tinha sido proposto por eminentes estudiosos, se deviam reconhecer que essa variação linguística madeirense apresentava traços tão diferentes nas várias regiões que temos de considerar a existência de “dialectos madeirenses”, a par dos “dialectos açorianos”, que perfazem os “dialectos insulares”. No caso dos dialectos madeirenses, e ao contrário do que se considerava serem dialectos que apresentavam traços característicos do Sul, a realidade era / é outra: de facto, os “dialectos madeirenses” caracterizam-se por características não só meridionais, como também setentrionais. Palavras-chave: linguística; dialetos; sintaxe; regionalismos.   Lindley Cintra. Foto Instituto Camões Nascido em 1925 e falecido em 1991, foi professor catedrático da Faculdade de Letras (Univ. de Lisboa), onde investigou e lecionou várias disciplinas respeitantes à Filologia, Linguística e Literatura (assinalem-se Fonética Geral, Linguística Portuguesa, Linguística Românica a Literatura Portuguesa Medieval). Como docente e filólogo, marcou a investigação universitária no campo da Filologia e da Dialetologia, tendo sido responsável pela criação do Departamento de Linguística Geral e Românica (Faculdade de Letras, Univ. de Lisboa), após 1974, e pela reestruturação do Centro de Estudos Filológicos em Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Trabalhos fundamentais na Linguística Histórica, Historiografia e Crítica Textual foram Crónica Geral de Espanha de 1344 (1951), sua tese de doutoramento, e A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, estudo apresentado para as provas de professor extraordinário, em 1959, obras depois reimpressas ou reeditadas. Com a primeira, e contra o que se pensava até então, Lindley Cintra demonstrou que a Crónica Geral de 1344 tinha sido escrita originariamente em português e só depois traduzida para castelhano; além disso, demonstrou que a Crónica foi redigida pelo conde D. Pedro, filho de D. Dinis, neto de Afonso X de Leão e Castela. A edição crítica do texto em três volumes, acompanhada de um quarto (que ficou como 1.º volume na obra publicada) consagrado aos problemas historiográficos, filológicos e histórico-culturais, constituiu realização exemplar (os quatro volumes foram reimpressos e reeditados nas décs. de 80 e 90). O mesmo se pode afirmar do desenvolvido estudo sobre A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, de 1959, reproduzido em 1984. Embora a sua atividade de investigador e docente se centrasse nos textos medievais, também se ocupou de autores da literatura portuguesa de outras épocas (devem-se-lhe importantes estudos acerca de António Nobre e Almeida Garrett), e aprofundou questões relacionadas com a Sociolinguística e a Dialetologia. Também muito conhecida é a Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984), elaborada em parceria com Celso Ferreira da Cunha. Em geral, os alunos que seguiram as disciplinas lecionadas por Lindley Cintra lembram as suas aulas teóricas ou práticas, que podem ser qualificadas de excecionalmente informadas, sempre atualizadas pela sua pesquisa, bem estruturadas, e sobretudo pedagogicamente interessantes e entusiasmantes. Entre os seus interesses científicos – e isso justifica a sua presença neste conjunto de registos de grandes figuras que contribuíram para o estudo da cultura tradicional madeirense –, apontar-se-á principalmente o da investigação de natureza sociolinguística e dialetológica do português da Madeira. Na sua atividade respeitante à caracterização da variação linguística insular, que se integra no mais amplo estudo dos dialetos portugueses, orientou trabalhos de pesquisa e não só continuou como principalmente renovou e reperspetivou o que autores maiores, como Gonçalves Viana, José Leite da Vasconcelos, Käte Brüdt, Francis M. Rogers, Eduardo Antonino Pestana e outros linguistas, já tinham apontado como características pertinentes desta modalidade insular. Apontar-se-ão os principais contributos. Num primeiro conjunto, é de assinalar a atenção que lhe mereceram os trabalhos de pesquisa que aceitou orientar a pedido de alunos finalistas do curso de Românicas ou Filologia Românica, que, sendo naturais da Região, quiseram estudar as características da variação linguística da sua terra, com trabalho de campo, fazendo recolhas junto da população da Madeira e do Porto Santo. O primeiro ponto a assinalar como responsável por Cintra reconhecer a importância da matéria que o iria interessar foi a descoberta de problemas de que ia tomando conhecimento, não só pelas obras dos autores atrás referidos, como também pelos alunos que se deslocavam da Madeira para prosseguir os seus estudos em Letras, mormente em Filologia Românica, e lhe traziam projetos de estudo do “dialeto” da Ilha ou do “falar” da sua pequena comunidade para as suas teses de licenciatura. Foi esta a maneira de ele contactar com os resultados das recolhas, principalmente no que respeitava às características fonéticas e lexicais do português falado na Ilha. A primeira dessas teses é recordada por Cintra em 1990, na comunicação apresentada no Congresso Cultura Madeirense – Temas e Problemas, lida nessa ocasião pelo autor desta entrada: trata-se da tese de licenciatura de Maria do Carmo Noronha Pereira, que, em 1952, era “uma primeira tentativa de aplicação aos dialectos madeirenses dos métodos da geografia linguística” (CINTRA, 2008, 98). E Lindley Cintra confessa: “Não posso nem devo esconder a emoção com que, quase quarenta anos passados sobre a apresentação deste livro, voltei a lê-lo e a descobrir nele […] a reunião de toda uma série de informações seguras sobre as variedades regionais em que se subdivide ‘o madeirense e as suas localizações e limites aproximados” (Id., Ibid.). Seguiram-se duas teses elaboradas segundo os modelos da escola de Wörter und Sachen. Trata-se da tese de Maria Ângela Leote Rezende, de 1961, sobre duas zonas com características bem marcadas – Canhas e Câmara de Lobos: Estudo Etnográfico e Linguístico, e da tese de João da Cruz Nunes, de 1965 – Os Falares da Calheta, Arco da Calheta, Paul do Mar e Jardim do Mar. Lindley Cintra refere ainda o acompanhamento na elaboração de outra tese, que já não versa sobre um dialeto, antes sobre um socioleto, i.e., “a linguagem de um grupo social bem determinado” (Id., Ibid., 99), o trabalho de Elisabeth Gundersen Pestana, Subsídios para o Estudo da Linguagem dos Bambuteiros, datado de 1954. Outro contributo fundamental de Lindley Cintra diz respeito ao acompanhamento dos trabalhos/inquéritos preparatórios do Atlas Linguístico do Arquipélago da Madeira, na continuação do ALPI (Atlas Linguístico da Península Ibérica), com a colaboração dos investigadores do Centro de Linguística da Univ. de Lisboa. Ainda da referida comunicação no Congresso Cultura Madeirense – “Os dialectos da ilha da Madeira no quadro dos dialectos galego-portugueses” –, o que ficou como proposta para uma mais fundamentada e decisiva investigação sobre o português madeirense nesse seu contributo veio a mudar radicalmente o modo como os estudiosos consideravam a variação linguística da Madeira e do Porto Santo. Pelo estudo das variantes lexicais e, sobretudo, fonéticas, defendeu-se nesse histórico texto que o território madeirense era surpreendentemente rico do ponto de vista linguístico, a ponto de nele poderem reconhecer-se, não falares, mas dialetos bem caracterizados, que, com os dialetos açorianos, integram os “dialetos insulares” (Id., Ibid., 103). Lindley Cintra, evocando o estudo de Jorge Dias sobre “etnografia madeirense”, principalmente no que respeita ao “estudo das origens étnico-culturais das populações da ilha da Madeira”, salienta a pertinência de pequenos pormenores (aparentemente) da variação dialetal, como, e.g., a existência da queda do “g” intervocálico na região de Câmara de Lobos. Lembrando o contributo de Jorge Dias ao relacionar o povoamento da Madeira com, por um lado, o Norte de Portugal, e, por outro, o Sul, Lindley Cintra escreve: “Mal me atrevo também, no caso isolado da coincidência entre um lugar da Beira Baixa (aliás pertencente à zona repovoada pela ordem de que era Mestre o Infante Navegador) e uma região da Madeira, imaginar na queda do g intervocálico em ambos os dialectos, uma relíquia da presença de povoadores beirões na região de Câmara de Lobos” (Id., Ibid., 103). E a conclusão será: “Quer isto dizer, evidentemente, que não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertencem ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais”. E acrescenta: “Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos das outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (Id., Ibid., 104). Essa constatação é fundamental para o expressivo reconhecimento da rica variação do Português da Madeira, como demonstrou o estudo da equipa de linguistas responsável pela Gramática do Português editada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2013.   João David Pinto Correia (atualizado a 23.02.2018)

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