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cem – construindo o êxito em matemática

No final da déc. de 90 do séc. XX, a Associação de Professores de Matemática (APM) realizou um estudo, Matemática 2001 – Diagnóstico e Recomendações sobre o Ensino e Aprendizagem da Matemática, “com o propósito de elaborar um diagnóstico e um conjunto de recomendações sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática no nosso país” (ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA, 1998, 1). Este estudo tinha a preocupação de contribuir para a melhoria do ensino da matemática no início do séc. XXI. Dele emergiram recomendações específicas para uma reorganização curricular, repensando as finalidades do ensino da disciplina para as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula e para a formação de professores, entre outras. Em 2001, seguindo as recomendações advindas do estudo supracitado, o Ministério da Educação lançou o Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais, definindo as aptidões fundamentais que um aluno deveria ter desenvolvido no final de cada ciclo (1.º, 2.º e 3.º ciclos). Esta finalidade do ensino da matemática implicava mudanças nas práticas dos professores. Visando ir ao encontro das necessidades de formação para implementar tais mudanças, realizou-se na Madeira uma formação para professores de matemática. Em 2005, no âmbito do Plano de Ação para a Matemática, iniciou-se em todo o país uma formação de professores que teve como propósito melhorar a preparação para uma mais profícua implementação do novo programa da disciplina, então em experimentação, e que veio a ser homologado em 2007. Esta formação decorreu entre 2005 e 2011 e alcançou milhares de professores. O projeto CEM O CEM – Construindo o Êxito em Matemática é um projeto de formação contínua de professores de matemática do ensino básico que teve início no ano letivo 2006-2007, no âmbito do Plano Regional de Ação para a Matemática, e que conta com o apoio da referida Direção Regional e da Universidade da Madeira (UMa). Com uma visão ampla do que é a aprendizagem no geral e a aprendizagem da matemática em especial, foram adotadas três teorias sociais de aprendizagem que seriam o suporte teórico de toda a conceção e implementação do projeto. A teoria da aprendizagem situada, que vê a aprendizagem como participação, defende que, para aprender, as pessoas têm de se empenhar conjuntamente, sendo igualmente necessário que participem nas práticas e tenham uma meta a alcançar. Outra das teorias que sustentam o projeto é a teoria da atividade, que entende a aprendizagem como transformação, seja das práticas em que as pessoas (professores e alunos) se envolvem, seja das pessoas que aprendem (professores e alunos). O terceiro pilar teórico do projeto é a educação matemática crítica, que discute a aprendizagem como ação dialógica, defendendo que para aprender é preciso existir intencionalidade por parte de quem aprende, o que envolve ação e reflexão sobre essa ação. A partir destas três ferramentas teóricas, idealizou-se um projeto com cenários de aprendizagem para os professores e para os alunos. O projeto criado visou melhorar as aprendizagens e desenvolver as competências matemáticas nos alunos, trabalhando com os professores do ensino básico da Região Autónoma da Madeira (RAM) com os seguintes objetivos: a) promover um aprofundamento dos conhecimentos matemáticos e didáticos dos professores; b) favorecer a realização de experiências de desenvolvimento curricular que contemplem a planificação e a implementação de aulas, e posterior reflexão; c) promover o trabalho cooperativo entre docentes (intra e inter escolas). Com estes objetivos, foi promovida uma formação que teve em conta os conhecimentos matemático, didático e curricular, de acordo com os conteúdos matemáticos a abordar, e procurando atender às necessidades e solicitações dos professores. A realização de experiências de desenvolvimento curricular contemplou a planificação de aulas, a sua condução e posterior reflexão por parte dos professores envolvidos, apoiados pelos pares e pelas formadoras que integravam a equipa do projeto. No ano letivo de 2006-2007, iniciou-se o projeto CEM para professores do 3.º ano do 1.º ciclo. Cada equipa de formação era constituída por uma professora do 1º ciclo e por uma professora de matemática do 3.º ciclo e do secundário. Esta exigência prendeu-se com a procura de assegurar que tanto o conhecimento matemático quanto o didático e curricular estavam salvaguardados. Metodologia de trabalho do projeto CEM As equipas de professores destacados pela DRE prepararam a formação construindo propostas de trabalho adequadas ao tipo pretendido e criaram materiais visando o trabalho dos alunos na sala de aula e considerando a sua adequação a uma metodologia de atuação onde o discente é o elemento central do seu processo de aprendizagem. Quinzenalmente, as equipas de formação reuniam com os docentes, organizados em pequenos grupos (de não mais de 12), apresentavam e discutiam com os professores em formação as propostas de trabalho e os materiais construídos, refletindo sobre as metodologias de trabalho e as consequências das mesmas para a implementação das propostas. Finalmente, prestavam apoio aos professores, em contexto de sala de aula, na execução das propostas de trabalho construídas e amplamente discutidas nas reuniões. Cada professor envolvido na formação tinha a liberdade de adaptar à(s) sua(s) turma(s) a proposta construída pelo CEM, sendo essa adaptação apresentada e discutida com as equipas de formação. Os cenários de aprendizagem dos professores também tinham momentos de discussão e reflexão conjunta (professor, equipa formadora, restantes professores em formação) acerca da prática pedagógica resultante da implementação das propostas de trabalho na sala de aula. Os formandos tinham ainda de refletir sobre o processo e apresentar ao grupo de trabalho, com base em artigos científicos fornecidos pela equipa de formadores, diversas temáticas, como sejam, a avaliação das aprendizagens matemáticas e a comunicação matemática. Como estratégia complementar, os professores envolvidos no projeto dinamizavam, com o apoio da respetiva equipa formadora, seminários trimestrais nos estabelecimentos de ensino a que pertenciam, como meio de troca e partilha de experiências com os restantes colegas da escola. Dos cenários de aprendizagem criados para os docentes faziam também parte a análise e interpretação (por parte dos professores, apoiados pelas equipas de formação) dos documentos curriculares que foram emergindo ao longo de todos os anos de projeto. Este aspeto do trabalho é bastante apreciado pelos professores. A evolução do CEM Em 2006-2007, 57 professores do 3.º ano de escolaridade aderiram voluntariamente ao projeto. Em 2007-2008, entraram 119 novos professores, também do 3.º ano, e deu-se continuidade ao trabalho realizado com 49 dos docentes que integraram o projeto no ano anterior, na altura lecionando 4.º ano de escolaridade. Em 2008-2009, o projeto funcionou com 106 professores do 4.º ano (dos que tinham entrado para o projeto no ano antecedente) e entraram cerca de 100 novos professores do 3.º ano. Ainda em 2008-2009, foram preparadas propostas para o 1.º ano de escolaridade, disponibilizadas numa plataforma Moodle, introduzida nesse ano letivo como mais um meio de comunicação entre a equipa de formação e os professores em formação. A preparação das propostas para o 1.º ano foi a forma de garantir o elo de ligação aos professores que tinham terminado a formação presencial. No mesmo ano letivo, chegaram ao 2.º ciclo os primeiros alunos do projeto CEM. O CEM, para o 2.º ciclo do ensino básico (CEM2), surgiu como a continuidade natural e desejável a dar ao trabalho realizado por esses alunos no 1.º ciclo do ensino básico (CEB). Aderiram ao projeto 65 professores de matemática que estavam a lecionar ao 5.º ano de escolaridade e entraram para o projeto mais duas equipas de formação, cada uma delas constituída por duas professoras de matemática (uma do 2.º e outra do 3.º ciclo). Em 2009-2010, o projeto CEM (1.º ciclo) funcionou com cerca de 70 professores do 4.º ano. Foram preparadas propostas para o 2.º ano de escolaridade, disponibilizadas na plataforma Moodle. No CEM2, deu-se continuidade ao trabalho realizado no ano anterior com os professores de matemática do 5.º ano que se encontravam já a lecionar ao 6.º ano. Em 2010-2011, chegaram os primeiros alunos do projeto CEM (1.º e 2.º ciclos) ao 3.º ciclo. Assim, como forma de dar continuidade ao trabalho realizado nos ciclos anteriores, o projeto CEM estendeu-se ao 3.º ciclo do ensino básico (CEM3). Os objetivos do CEM3 são, basicamente, semelhantes aos que tínhamos para o 1.º e 2.º ciclos. Neste ano letivo, foi feita a generalização dos novos programas de matemática do ensino básico. Todo o trabalho desenvolvido teve em conta as orientações do novo programa, até então em experimentação. Iniciou-se o CEM3 com 56 professores do 7.º ano de escolaridade e com três formadoras licenciadas em matemática destacadas pela DRE. Entretanto, nesse ano letivo (2010-2011), a DRE quis alargar o projeto a um maior número de professores. Estreou-se assim uma nova modalidade do CEM para o 1.º CEB (CEM1): formação de formadores. As equipas do CEM1 prepararam 30 professores para fazerem formação a outros docentes por toda a RAM. Cada um destes formadores seria responsável por dinamizar a formação de um grupo de 12 professores. Esta modalidade perdeu a componente de trabalho conjunto na sala de aula. Seguiu-se um esquema semelhante para os professores do 5.º ano. 40 docentes das diferentes escolas da RAM receberam formação com a equipa do CEM2 e depois deram-na aos colegas da sua escola que lecionavam ao 5.º ano. Em 2011-2012, foram 48 os professores do 8.º ano que estiveram envolvidos na formação na sua modalidade original, sendo que muitos deles já tinham tido formação no âmbito do projeto CEM3 no ano anterior, quando lecionavam ao 7.º ano. Ao longo deste ano letivo, 19 professores do 1.º CEB receberam formação e replicaram-na a grupos de 12 professores. Também 33 professores do 6.º ano receberam formação e dinamizaram-na nas suas escolas para os colegas que lecionavam no mesmo ano de escolaridade. Em 2012-2013, o projeto CEM3 atingiu o último ano de escolaridade do 3.º ciclo, trabalhando na sua modalidade original (com acompanhamento na sala de aula). Foram 60 os professores do 9.º ano que frequentaram a formação. Para esse ano letivo (2012-2013), a DRE propôs que se adotasse uma metodologia semelhante à dos 1.º e 2.º ciclos para os 7.º e 8.º anos. Ou seja, professores dos 7.º e 8.º anos indicados pelas próprias escolas fariam formação com as equipas do CEM3 e depois dinamizariam a mesma formação nos seus estabelecimentos de ensino para os colegas que lecionavam ao 7.º ou 8.º ano, respetivamente. Mas esta formação para os 7.º e 8.º anos não teve o sucesso esperado, nomeadamente, devido à obrigatoriedade da mesma e à falta de critérios adequados para a seleção dos professores que iriam receber a formação com as equipas do CEM3 e replicá-la nas escolas. Em relação ao 1.º CEB, nesse ano, fez-se formação para todos professores da RAM que se encontravam a lecionar ao 4.º ano de escolaridade: 153 frequentaram essa formação. Note-se que muitos destes docentes já tinham frequentado o projeto CEM na sua modalidade original e, portanto, conheciam muito bem as metodologias de trabalho em questão. Este aspeto foi uma mais-valia para a formação e refletiu-se na profundidade das reflexões elaboradas pelos professores, quer sobre as propostas apresentadas, quer sobre a implementação das mesmas na sala de aula, e também no aproveitamento dos alunos. No que concerne ao 2.º CEB, no mesmo ano letivo, 26 professores do 5.º ano e 27 do 6.º ano participaram na formação. Muitos já tinham frequentado o CEM2 na sua modalidade original. Em 2013-2014, estando a DRE muito agradada com os resultados dos exames nacionais de matemática do ano anterior, solicitou novamente formação para todos os professores do 4.º ano da RAM e para os professores do 1.º e do 3.º (anos em que o novo programa de matemática, definido em 2013, estava a ser implementado). Iniciou-se com os professores destes 1.º e 3.º anos uma nova modalidade do CEM e apostou-se no b-learning, uma vez que muitos destes professores já tinham participado no projeto, numa das outras modalidades. No 2.º e 3.º ciclo, a formação foi para os professores que lecionavam aos 5.º e 7.º anos, respetivamente, uma vez que eram anos de implementação do novo programa de matemática (2013), como se disse. No 7.º ano, na modalidade original e no 5.º, sem acompanhamento na sala de aula. Os números do CEM  Ao longo destas linhas foi indicado o número de professores que participaram na formação do CEM nos três níveis de ensino. Quanto aos discentes, cada professor que participou no CEM tinha mais do que uma turma e terá trabalhado com uma metodologia semelhante nas várias turmas que tinha e pelas quais foi passando ao longo dos anos pós-projeto CEM. Não se consideram esses valores no quadro da fig. 1, mas somente o número de alunos no ano e turma com que o professor participou no projeto. Muitos destes discentes foram “alunos do CEM” durante diversos anos e ciclos de escolaridade. Também vários professores dos diferentes ciclos participaram no CEM durante vários anos. Ano letivo N.º de professores por ciclo N.º de alunos por ciclo 1.º  2.º 3.º 1.º 2.º 3.º 2006-2007 57 - - 1140 - - 2007-2008 168 - - 3360 - - 2008-2009 206 65 - 4012 1625 - 2009-2010 70 31 - 140 775 - 2010-2011 15 40 56 1920 1000 1046 2011-2012 19 33 48 2400 825 772 2012-2013 153 53 113 3060 1300 2418 2013-2014 235 36 29 4700 900 658 Fig. 1 – Quadro com o número de docentes e discentes que participaram no projeto CEM entre os anos letivos de 2006-2007 e 2013-2014. Os resultados do projeto CEM Os resultados obtidos são, em termos gerais, semelhantes para o CEM1 e para os CEM2 e CEM3. Podemos avaliar o projeto tendo em conta: as aprendizagens matemáticas dos alunos e as transformações nas práticas dos professores. Para avaliar as aprendizagens matemáticas dos alunos, temos disponíveis os seguintes elementos: resultados das provas de aferição e dos exames nacionais; observação do trabalho dos alunos aquando da participação das equipas de formação nas aulas dos professores em formação; partilha feita pelos professores nas reuniões quinzenais sobre o desempenho dos alunos nas aulas; inquéritos realizados aos alunos; portefólios elaborados pelos professores; múltiplas teses de mestrado realizadas na UMa. No que diz respeito aos resultados das provas de aferição dos alunos do projeto CEM1, CEM2 e CEM3, podemos constatar, ao longo dos anos, que estes são ligeiramente melhores do que os resultados globais dos alunos da RAM. A grande diferença está na ausência da classificação mais baixa (nível E) nos alunos do projeto e de uma percentagem maior de alunos com classificação superior (nível C). No ano 2012-2013, a média dos resultados dos exames nacionais dos alunos da RAM foi superior à média dos resultados dos exames nacionais dos alunos de Portugal continental. Da observação direta do trabalho dos alunos, denota-se aprendizagens significativas ao nível dos conteúdos matemáticos, maior interesse e empenho para com a aprendizagem da matemática, mudança de atitude em relação a esta disciplina, mais competência na resolução de problemas matemáticos e utilização da matemática de forma crítica. Os professores que recebem “os alunos do CEM” referem que estes aprenderam a discutir ideias matemáticas e a comunicar matematicamente, quer por escrito, quer oralmente; têm um forte poder de argumentação; sabem trabalhar cooperativamente, com materiais manipulativos e com software informático, mantendo uma postura crítica face à aprendizagem da matemática; têm muita facilidade em discutir estratégias e procedimentos, bem como em fundamentar as suas opiniões. Estes resultados são também corroborados pelos autores das várias teses e relatórios de mestrado em ensino da matemática no 3.º CEB e no secundário elaboradas na UMa, por professores que frequentaram o CEM. Para avaliar as transformações nas práticas dos professores, dispomos dos seguintes meios: reuniões quinzenais, idas às escolas, reflexões; planificação e execução das aulas, escolha dos materiais e seleção de estratégias; portefólios elaborados pelos docentes; inquéritos realizados aos mesmos; e a dissertação de doutoramento da Eva Gouveia. Da análise de todos estes instrumentos de avaliação podemos afirmar que houve mudanças ao nível dos conhecimentos científicos e didáticos dos professores envolvidos no projeto, visíveis através de um maior rigor científico-matemático e de uma maior necessidade de aprofundamento dos conhecimentos matemáticos. Houve também mudanças no que diz respeito à planificação e condução das aulas, bem como à reflexão que passaram a fazer sobre as aulas participadas. As planificações tornaram-se mais sistematizadas e fundamentadas; as aulas, menos expositivas e mais centradas no aluno; os conteúdos matemáticos, tratados com maior rigor científico; os professores, mais críticos em relação ao seu desempenho. No geral, ao final de um ano de projeto, a prática pedagógica dos professores envolvidos no mesmo sofreu transformações, quer na diversificação de estratégias, quer na crescente inclusão de materiais manipulativos nas suas planificações e nas suas práticas, bem como na segurança com que passaram a trabalhar a matemática. No que diz respeito ao trabalho cooperativo entre os docentes, houve alguns casos de sucesso, mas, de um modo geral, os professores ainda resistem ao trabalho cooperativo intra e inter escolas. As formadoras do projeto As formadoras do CEM são uma parte fundamental do projeto. Para que tudo decorra da melhor forma possível, quando em contacto direto com os professores em formação, é necessário um forte trabalho de bastidores que também merece ser destacado. Semanalmente, houve reuniões de trabalho entre as formadoras do projeto e a sua coordenadora. Foi nessas reuniões que se definiram ou redefiniram estratégias de trabalho, se discutiram as propostas apresentadas e debatidas com e pelos professores, e se consideraram artigos científicos sobre a aprendizagem da matemática, a avaliação das aprendizagens matemáticas, a utilização de materiais manipuláveis e softwares educativos e applets na aula de matemática, entre outros.   Elsa Fernandes (atualizado a 29.12.2016) 

Educação História da Educação

defesa nacional e segurança (política de)

No passado, a defesa e a segurança dos povos era, na prática, quase exclusivamente assegurada pelo aparelho militar do Estado. Porém, com a evolução das sociedades e à medida que a vida coletiva se foi tornando mais complexa, os conceitos de segurança e de defesa foram-se densificando, reconhecendo-se que, a par da componente militar, a componente civil também tinha um papel importante na estruturação e no funcionamento dos mecanismos de segurança e de defesa. Deste modo, as matérias respeitantes à defesa são, no princípio do séc. XXI, um domínio específico do conhecimento e da ação política que concita a atenção, de forma permanente e dominante, não só dos militares, mas também dos decisores políticos e dos cultores da ciência política, tendo expressão nos mais importantes documentos políticos dos Estados organizados. Importa assinalar, ainda, que os poderes relativos à segurança e à defesa pertencem ao núcleo essencial da soberania do Estado, que a definição e a orientação da política de defesa são da competência exclusiva dos órgãos de soberania e que, por isso, tais poderes e tais competências não são regionalizáveis. A Região Autónoma da Madeira não pode, pois, ter uma política de defesa própria. Porém, o arquipélago da Madeira, o seu território e o seu povo estão inseridos na política de defesa nacional, por fazerem parte integrante do Estado português e graças à sua importância geoestratégica; além do mais, os órgãos de governo próprio são chamados a colaborar na execução da política nacional de defesa e de segurança, nomeadamente na sua componente civil. É neste enquadramento teórico e institucional que deve ser vista a posição da Madeira no contexto da política de defesa nacional. Pensar a Madeira em termos de defesa nacional supõe, pois, ter a noção da importância geoestratégica do arquipélago da Madeira e conhecer a política de segurança e de defesa do Estado português, elencando e caracterizando nesta os pontos que têm implicações sobre o território e a população da Madeira e nas relações com os órgãos de governo próprio. Importância geoestratégica do arquipélago da Madeira  Na memória justificativa da proposta de lei do Governo, que viria a converter-se na primeira Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) (lei n.º 29/82, de 11 de dezembro) após o 25 de Abril de 1974, dizia-se que “não pode esquecer-se que o reforço da unidade nacional em tempo de crise passa necessariamente também pelas regiões autónomas, que a definição de uma política de defesa nacional comporta aspetos de interesse específico para essas regiões, que nelas se situam importantes infraestruturas de defesa, que em relação a elas vigoram relevantes convenções internacionais de carácter militar e que nelas se verificarão incidências geoestratégicas em caso de guerra”. Na reunião da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, ocorrida no dia 25 de outubro de 1982 para debater, na especialidade, a proposta de lei do Governo, defendeu-se a importância geoestratégica dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, assinalando-se o seguinte: – a própria definição do papel da nação portuguesa no mundo passa, no princípio do séc. XXI, pelos arquipélagos dos Açores e da Madeira: como foi, aliás, reconhecido pelos mais altos responsáveis políticos nacionais e regionais; – o chamado “triângulo estratégico continente-Madeira-Açores” surge como fator de identificação do nosso país, no contexto da defesa coletiva do ocidente, sobretudo em face do ingresso da Espanha na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); – são as posições estratégicas propiciadas pelas regiões autónomas que conferem ao Estado português uma acrescida força negocial internacional. Fig. 1 – Sem as regiões autónomas, Portugal continental ficaria descaracterizado do ponto de vista geoestratégico, diluindo-se no vasto território da Península Ibérica. Como se verifica, já então era reconhecida a importância geoestratégica do arquipélago da Madeira. Tal importância foi aumentado, quer face ao posterior quadro de ameaças e à chamada “guerra assimétrica” – de guerrilha e terrorismo –, quer pela multiplicidade de funções que o Estado foi assumindo para garantir a soberania e a independência nacional, para controlar o espaço aéreo e marítimo, para defender e fiscalizar a extensa zona económica exclusiva, e para realizar as operações de busca e salvamento a que está, nacional e internacionalmente, obrigado – algo reconhecido pelos vários conceitos estratégicos de defesa nacional e pelos demais documentos estruturantes em matéria da política de segurança e de defesa.  A política de segurança e defesa do Estado português Os documentos políticos fundamentais são o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), as Grandes Opções do Plano (GOP) e o Programa do Governo. O CEDN contém as orientações gerais em matéria de segurança e de defesa e, em consequência, inspira as GOP e os programas de governo, sendo acertado, do ponto de vista metodológico, focar a atenção sobre o próprio CEDN que, aliás, em regra, se revela mais duradouro e estável do que os outros dois documentos. Daí que o enquadramento lógico da Madeira na política de defesa nacional deva fazer-se predominantemente a partir de uma análise cuidada do CEDN. Se bem que é verdade que as orientações da política só se tornam eficazes quando vertidas em lei, não é menos certo que é pela análise do CEDN, situado ao lado daquelas, que se compreende o alcance da lei e que se consegue enlaçá-la com os objetivos e os superiores interesses nacionais. Desde a entrada em vigor da primeira LDNFA, em finais de 1982, até 2016, a política de defesa nacional foi concebida e enquadrada tendo por pano de fundo o CEDN de 1985 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 10/85, de 20 de fevereiro), o CEDN de 1994 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 9/94, de 4 de fevereiro), o CEDN de 2003 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 6/2003, de 20 de dezembro), e pelo CEDN de 2013 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, de 5 de abril). O CEDN apresentava-se juridicamente configurado na lei n.º 29/82, de 11 de dezembro, que aprovou a LDNFA. Segundo o n.º 2 do seu artigo 8.º, entende-se por conceito estratégico de defesa nacional a definição dos aspetos fundamentais da estratégia global do Estado adotada para a consecução dos objetivos da política de defesa nacional. Sinteticamente, pode-se dizer que o CEDN corresponde ao conjunto das linhas orientadoras da política de segurança e de defesa. O CEDN não é um documento isolado que possa ser objeto de uma análise autónoma. Pelo contrário, ocupa o topo de uma panóplia de instrumentos que visam operacionalizar a política de defesa nacional, sobretudo na sua vertente militar. Ao lado do CEDN, a LDNFA prevê a elaboração de documentos, de natureza reservada, tais como o conceito estratégico militar, as missões, o sistema de forças e o dispositivo. Durante a vigência da LDNFA de 1982 e, posteriormente, na vigência da lei orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho (alterada e republicada pela lei orgânica n.º 5/2014, de 29 de agosto), o Governo aprovou os Conceitos Estratégicos de 1985, de 1994, de 2003 e de 2013. Estes conceitos estão datados e refletem a conjuntura nacional e internacional que, naquele tempo, inspiravam o clima de segurança e de defesa no país e no mundo. O primeiro daqueles conceitos foi elaborado em 1985, um tempo ainda dominado pelo ambiente da chamada Guerra Fria, caracterizado por um mundo bipolar, dividido entre as esferas de influência da União Soviética e dos Estados Unidos da América. Por sua vez, o Conceito de 94 traduziu as alterações decorrentes da queda do Muro de Berlim e a emergência de novos referenciais de poder, designadamente da União Europeia e do Japão. Na sua elaboração estão também presentes as transformações que, então, se processavam no âmbito da OTAN, as questões decorrentes das assimetrias de desenvolvimento norte-sul, os movimentos migratórios descontrolados, os radicalismos étnicos, religiosos e ideológicos, e o ressurgimento dos nacionalismos com as inerentes disputas territoriais. O Conceito de 94 ensaiou mesmo, pela primeira vez, um elenco das novas ameaças, com especial menção do terrorismo internacional, das ações de rutura dos aprovisionamentos de recursos, dos atentados ecológicos, do fenómeno do narcotráfico, da proliferação das armas nucleares e de outras armas de destruição massiva. O Conceito de 2003 representou um salto qualitativo, na forma e no conteúdo, relativamente aos conceitos anteriores, apesar de muito centrado nos aspetos estratégicos e militares da defesa, limitando-se a uma mera alusão final à sua componente civil. O Conceito Estratégico de Defesa Nacional de 2013 O CEDN que entrou em vigor em 2013 foi aprovado, conforme já referido, pela resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 5 de abril. Tratava-se de um conceito inovador, na sistematização e no conteúdo, marcado por uma forte ambição, mas não desconhecia as alterações que, naquela última década, ocorreram na situação estratégica e no ambiente internacional, nem a crise económico-financeira que atingiu a Europa, em particular a Zona Euro, e o facto de Portugal se encontrar sob assistência financeira internacional. No que toca à sua ambição, poderá dizer-se que este conceito se qualifica mais como um conceito estratégico nacional do que como um simples conceito estratégico de defesa nacional. Isso é claro logo na sua introdução, onde se afirma que “para a realização dos objetivos de segurança e defesa concorrem todas as instâncias do Estado e da sociedade” para concluir de seguida que “o conceito estratégico de defesa nacional define os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional”. Além do mais, este Conceito, no seu último ponto, sob a esclarecedora epígrafe “Uma Estratégia Nacional do Estado”, afirma o seguinte: “O conceito estratégico de defesa nacional deve assumir-se como a estratégia nacional do Estado, destinado a dar cumprimento às suas tarefas fundamentais, para as quais concorrem as suas instâncias e organismos, bem como a própria sociedade. Este é um desafio para o qual todos estamos convocados”. Com estes pressupostos, compete ao CEDN definir “os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional”. Do extenso texto deste Conceito é possível extrair uma outra constatação: é superado o complexo ideológico que, segundo alguns, exige uma separação estancada entre a defesa e a segurança, assumindo-se, expressis verbis, como um conceito de segurança e de defesa, na linha do que acontece na generalidade dos Estados-Membros da OTAN e da União Europeia e no seio da União e da própria Aliança Atlântica. A propósito dos fundamentos da estratégia de segurança e de defesa nacional, este Conceito considera particularmente relevante “uma melhor exploração dos recursos minerais e marítimos – a enorme zona marítima sob responsabilidade nacional é um dos recursos nacionais que mais importa valorizar”. Ao referir-se aos contextos de segurança regionais, retoma e amplia a enumeração feita no Conceito de 2003, destacando a Europa e a União Europeia, os EUA e as relações transatlânticas, o norte de África (em termos que podem considerar-se minimizadores da perigosa situação então existente na região do Sahel), o Médio Oriente, a África subsaariana, o Atlântico e a Ásia. Do elenco que o Conceito faz das ameaças e dos riscos no ambiente de segurança global, retira-se a ideia de que todos eles tinham ou poderiam ter uma repercussão no arquipélago da Madeira: o terrorismo transnacional; a pirataria; a criminalidade transnacional; a proliferação de armas de destruição massiva (NBQR – nucleares, biológicas, químicas e radiológicas); a multiplicação de Estados frágeis e de guerras civis, potenciando atrocidades em massa, terrorismo e vagas crescentes de refugiados; o ciberterrorismo e a cibercriminalidade, cujo alvo são as redes indispensáveis ao funcionamento da economia e da sociedade da informação globalizada; a disputa por recursos naturais escassos (e.g.: hidrocarbonetos, minerais e água); e os desastres naturais e as mudanças climáticas. Dos riscos de natureza ambiental, este Conceito destaca os atentados ao ecossistema, terrestre e marítimo, a utilização abusiva de recursos marinhos e os incêndios florestais. Ao analisar a posição de Portugal no Mundo, o Conceito salienta que “a geografia do espaço nacional, definida pelo ‘triângulo estratégico’ formado pelo território continental e pelos arquipélagos da Madeira e dos Açores, valoriza naturalmente a Europa e o Atlântico”, reconhecendo que a Europa é a principal área geográfica de interesse estratégico nacional – sendo Portugal a fronteira ocidental da Europa no Atlântico - e que a comunidade de segurança do Atlântico Norte é o espaço da unidade entre a Europa, os EUA e o Canadá, que são também áreas de implantação de importantes comunidades portuguesas. Depois da Europa, este Conceito elege o espaço euro-atlântico como a segunda área geográfica de interesse estratégico permanente, baseando-se para tal na defesa da unidade nacional e da integridade territorial de Portugal, na aliança bilateral com os EUA e na coesão da Aliança Atlântica. O Magrebe também é considerado neste contexto pelo efeito de proximidade territorial e pelas relações económicas e culturais. O Conceito defendia ainda que Portugal não poderia alhear-se das transformações que ocorriam no continente asiático e que deveria procurar aí as parcerias estratégicas que poderiam ser do nosso interesse. O Conceito de 2013 concluiu, pois, que “no princípio do séc. XXI, Portugal, membro da UE, da OTAN e da CPLP, está no centro geográfico da comunidade transatlântica e é um elo natural nas relações entre a Europa Ocidental e a América do Norte e com a América do Sul e a África Austral”, aludindo, a este respeito, às comunidades portuguesas e aos fluxos migratórios concentrados nos países europeus e ocidentais, bem como no Brasil, na África do Sul, em Angola e na Venezuela. No domínio da segurança cooperativa, este Conceito realçou a pertença do nosso país, como membro de pleno direito, às Nações Unidas, à OTAN e à União Europeia, que, com o Tratado de Lisboa, assumiu novas responsabilidades como ator de segurança, no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), destacando-se também o maior relevo dado à Agência Europeia de Defesa. O Conceito afirmou que estas três organizações, para além das suas preocupações humanitárias, “partilham uma determinação comum em melhorar a capacidade de prevenção e gestão de crises e assegurar uma maior capacidade de resposta rápida e de projeção de meios civis e militares”. A propósito da estratégia de alianças, este Conceito é claríssimo em reconhecer que a OTAN é a aliança crucial para a segurança e a defesa de Portugal, afirmando que “a defesa da integridade territorial e da coesão nacional são inseparáveis da participação na OTAN”. Também a internacionalização e a modernização das Forças Armadas portuguesas resultam da integração de Portugal na Aliança Atlântica. Em matéria de parcerias estratégicas, este Conceito sublinha a importância e defende o reforço do relacionamento com os EUA, com a UE (no quadro da PCSD e nos programas da Agência Europeia de Defesa), com a CPLP e com Timor-Leste. Entre os ativos nacionais, o Conceito inclui “o mar e a centralidade no espaço atlântico; o carácter arquipelágico do território; o clima e as comunidades de emigrantes” e, a propósito dos princípios da segurança e defesa nacional, diz taxativamente: “O Estado defende os interesses nacionais por todos os meios legítimos, dentro e fora do seu território, das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e do espaço aéreo sob sua responsabilidade; o Estado assegura a salvaguarda da vida e dos interesses dos portugueses num quadro autónomo ou multinacional; no exercício do direito de legítima defesa, Portugal reserva o recurso à guerra para os casos de agressão efetiva ou iminente”. O Conceito atribui a devida importância às informações estratégicas, reconhecendo que “o carácter imprevisível, multifacetado e transnacional das novas ameaças confirma a relevância das informações” e que, “neste contexto, os serviços de informações constituem-se como incontornáveis instrumentos de identificação e avaliação de ameaças e oportunidades em cenários voláteis e complexos”. Enfatiza, ainda, a sua relevância, afirmando que “as informações são um instrumento estratégico do Estado, essencial para o apoio à decisão política, sobretudo em matéria de segurança e defesa”. Sobre as obrigações que vinculam o Estado na prossecução dos seus objetivos permanentes – defender o território e a segurança dos cidadãos, neutralizar as ameaças e os riscos transnacionais – o Conceito estabelece que as políticas de segurança e de defesa nacional devem: assegurar uma capacidade dissuasora, reforçada pelo quadro de alianças; consolidar uma estrutura militar adequada; articular os meios civis e militares de forma eficiente; garantir a capacidade de vigilância e de controlo do território nacional e do espaço interterritorial, incluindo a fiscalização do espaço aéreo e marítimo; garantir a capacidade autónoma para executar as missões destinadas a salvaguardar as vidas e os interesses dos cidadãos portugueses (onde quer que eles se encontrem); assegurar as reservas estratégicas indispensáveis à segurança do país, nomeadamente nos planos de energia, de comunicações, de transportes, de abastecimentos, de alimentação e de saúde; garantir a capacidade para organizar a resistência em caso de agressão. A resposta às ameaças e aos riscos passou por maximizar as capacidades civis e militares existentes, mantendo em operação um efetivo sistema nacional de gestão e de crises, em que a cooperação entre as Forças Armadas, as forças e os serviços de segurança se desenvolviam de acordo com um Plano de Articulação Operacional. Em resposta à ameaça das redes terroristas, Portugal deveria desenvolver uma estratégia nacional e integrada que pudesse articular as medidas diplomáticas, judiciais, de controlo financeiro, de informação pública e de informações policiais e militares. Deveria, ainda, ser dada uma especial atenção à vigilância e ao controlo das acessibilidades marítima, aérea e terrestre ao território nacional com base num Programa Nacional de Proteção das Infraestruturas Críticas. Na luta contra o crime organizado transnacional, tornava-se necessário reforçar a cooperação internacional, bem como melhorar a capacidade de prevenção e de combate à criminalidade, dando particular atenção ao tráfico de droga nos espaços marítimo e aéreo sob a jurisdição nacional, às ações de imigração clandestina e ao tráfico de seres humanos. No combate à cibercriminalidade, era necessário garantir, antes de mais, a proteção das infraestruturas de informação críticas, criando-se para o efeito um Sistema de Proteção da Infraestrutura de Informação Nacional (SPIIN). Depois, era preciso montar a estrutura responsável pela cibersegurança, sensibilizar os operadores públicos e privados para a natureza crítica da segurança informática, e levantar a capacidade de ciberdefesa nacional. O Conceito de 2013 destaca também o impacto devastador das catástrofes, naturais ou provocadas, e das calamidades, preconizando para lhes fazer frente, o reforço do Sistema de Proteção Civil, o desenvolvimento de metodologias, os programas e os estudos técnicos e científicos sobre os diferentes perigos, ameaças e riscos, e também a criação de uma Unidade Militar de Ajuda de Emergência. O Conceito aborda, ainda, o risco de pandemias e de outros perigos para a segurança sanitária, considerando prioritário o reforço da capacidade de resposta nacional aos riscos sanitários no sentido de mais rápida e eficazmente se fazer face a doenças epidémicas ou a ataques com armas NBQR, e a existência de condições que garantam a segurança alimentar, nomeadamente a qualidade dos alimentos e da água, estimulando a definição de uma Estratégia Nacional Sanitária-Epidemiológica. Tudo isto sem esquecer a necessidade de “uma Estratégia Nacional do Ambiente, que permita prevenir e fazer face, de forma integrada, aos principais riscos ambientais em Portugal, como os sismos, os incêndios florestais, as cheias, a erosão no litoral e a erosão hídrica do solo, a desertificação e os acidentes industriais”. Ao referir-se à afirmação de Portugal como coprodutor de segurança internacional, o Conceito recordou que “as fronteiras de segurança nacional vão para além das fronteiras territoriais do Estado”. Assim, Portugal deveria participar em missões militares internacionais na defesa da paz e da segurança; em missões de ajuda de emergência; em missões de reforma do sector de segurança; estabelecer parcerias estratégicas de segurança com os países da CPLP, privilegiando o combate à criminalidade organizada e à cibercriminalidade, e a segurança das rotas navais; e igualmente apoiar o esforço que se desenvolvia na área da cooperação técnico-militar. Há no Conceito de 2013 um ponto que é particularmente importante para a RAM na sua relação com a política de defesa nacional. Estavam em causa as chamadas missões de interesse público constitucionalmente cometidas às Forças Armadas e que se traduziam no apoio ao desenvolvimento sustentado e à melhoria das condições de vida dos portugueses. Tais missões preenchiam um vasto leque de atividades, de entre as quais o Conceito destaca as seguintes: o apoio ao Serviço Nacional de Proteção Civil, para fazer face a situações de catástrofe ou de calamidade pública; o apoio à satisfação das necessidades básicas das populações; a fiscalização da Zona Económica Exclusiva; a busca e o salvamento; a proteção do ambiente; a defesa do património e a prevenção de incêndios; a pesquisa dos recursos naturais e a investigação nos domínios da geografia, da cartografia, da hidrografia, da oceanografia e do ambiente marinho. É na execução destas missões que deve ser valorizado, na sua máxima extensão, o princípio de duplo uso, no sentido em que grande parte dos equipamentos militares poderiam ser utilizados quer para fins militares, quer para fins civis – o que se traduz, afinal, numa aplicação do moderno conceito de Defesa Inteligente (Smart Defence). Tendo em conta os diferentes cenários de atuação das Forças Armadas portuguesas, o Conceito entende que estas devem dispor, “prioritariamente, de capacidade de projetar forças para participar em missões no quadro da segurança cooperativa ou num quadro autónomo - para proteção das comunidades portuguesas no estrangeiro (onde se incluem as comunidades madeirenses), em áreas de crise ou conflito –, de vigilância e controlo dos espaços de soberania e sob jurisdição nacional, e de resposta a emergências complexas, designadamente em situações de catástrofe ou calamidade”. E acrescenta: “É, por isso, indispensável que se privilegie uma estrutura de forças baseada em capacidades conjuntas e assentes num modelo de organização modular e flexível”. Na sua parte final, o CEDN de 2013, ao elencar os vetores e as linhas de ação estratégica e ao considerar a valorização dos recursos e das oportunidades nacionais, atribui uma particular ênfase ao investimento nos recursos marítimos. Começa por referir-se à posição geográfica específica de articulação intercontinental de Portugal, reconhecendo que nela se cruzam muitas das mais importantes rotas aéreas e marítimas mundiais. Aborda, depois, a delimitação da plataforma continental, que configura um território de referência do País, indissociável da sua dimensão marítima acrescida. Portugal dispunha, neste contexto, “de direitos soberanos na exploração e aproveitamento do elevado potencial dos seus recursos e assume responsabilidades e desafios num espaço que renova a sua centralidade geoestratégica”. Para desfrutar desta nova realidade, Portugal deveria apostar no conhecimento científico, incrementar a capacitação tecnológica, e defender a plataforma continental. Neste novo quadro, reforçou-se a posição do mar como um importante ativo estratégico, que, enquanto tal, não poderia deixar de estar inserido “numa perspetiva ampla de segurança e defesa nacional”. Segundo este Conceito, o primeiro objetivo de tal estratégia consiste em “manter uma capacidade adequada de vigilância e controlo do espaço marítimo sob responsabilidade nacional e do espaço marítimo interterritorial”. Seguem-se depois vários objetivos: de organização, de coordenação e de clarificação de competências e de racionalização dos meios das instituições envolvidas na vigilância e na assistência marítima; de prevenção e de reação a acidentes ambientais e a catástrofes naturais; de otimização da coordenação e da utilização dos meios de combate às atividades criminais efetuadas no mar; de adoção de políticas públicas de fomento da economia do mar; de aproveitamento e de utilização dos recursos marinhos da Zona Económica Exclusiva e da plataforma continental; de aposta na formação profissional e superior, na Investigação e Desenvolvimento na área das ciências do mar, e no desenvolvimento de uma consciência coletiva sobre a importância do mar como fator de poder nacional. Na sua parte final, o Conceito preocupou-se, ainda, com a renovação demográfica e com a gestão do envelhecimento; com a melhoria do sistema de justiça; com a valorização do conhecimento, da tecnologia e da inovação; e com o potencial dos recursos humanos e a valorização da língua e da cultura portuguesas, sendo aqui que o conceito se cruzou com as GOP e se assumiu como estratégia nacional do Estado. Na RAM, a operacionalização do CEDN, na componente militar, coube aos militares dos três ramos das Forças Armadas que servem a pátria; na componente civil, para além da preciosa ajuda dos militares, das forças de segurança e de outros serviços dependentes da Administração Central, a operacionalização do CEDN tornou-se também uma competência dos serviços regionais e das entidades privadas para tal vocacionadas.   Manuel Filipe Correia de Jesus (atualizado a 03.01.2017)

Direito e Política

domínio marítimo

O domínio público marítimo distingue-se de outras formas de domínio hídrico com base no seu conteúdo e extensão (nos bens que integram o domínio marítimo). De acordo com a lei em vigor, o domínio público marítimo é sempre da titularidade do Estado, embora se deva atender às especificidades regionais quanto à sua delimitação nas regiões autónomas e se admita o reconhecimento de propriedade privada em alguns casos. Durante muito tempo, os órgãos de governo da Região Autónoma da Madeira defenderam que o domínio marítimo constituía domínio regional. Todavia, a jurisprudência do Tribunal Constitucional afastou reiteradamente esse entendimento. No texto, distingue-se ainda a titularidade e o exercício de poderes dominiais, sublinhando que a jurisprudência constitucional admite o exercício de poderes secundários dominiais pela Região Autónoma da Madeira (v.g., através da atribuição de licenças e concessões de utilização privativa) mas não de poderes primários dominiais (v.g., desafetação). Palavras-chave: domínio marítimo; jurisprudência; lei; Região Autónoma da Madeira. A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, após a revisão constitucional de 1989, incluiu no art. 84.º, n.º 1, uma enumeração, não exaustiva, dos bens do domínio público, individualizando alguns bens que integram necessariamente o domínio público, e que são, assim, bens de domínio público ex constitutione, como é o caso do domínio público hídrico, tal como concretizado na alínea a) deste preceito: “as águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos”. O art. 84.º, n.º 2, se é certo que reconhece que as regiões autónomas, o Estado e as autarquias locais são titulares do domínio público, não procede a qualquer delimitação do seu âmbito, remetendo tal tarefa para ato legislativo dos órgãos de soberania. O domínio público hídrico é um conceito amplo que abrange quer as águas dominais  quer os terrenos que se encontram estreitamente relacionados com as águas públicas, “abrangendo os respetivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas” (art. 1.º, n.º 1, da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que regula a titularidade dos recursos hídricos). Dentro da categoria mais vasta do domínio público hídrico, o art. 2.º, n.º 1, do mesmo diploma distingue: (i) o domínio público marítimo; (ii) o domínio público fluvial; (iii) o domínio público lacustre; (iv) o domínio público das restantes águas. Nos termos previstos no art. 3.º, o domínio público marítimo integra no seu âmbito: as águas costeiras e territoriais; as águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas; os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva e as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés. Importa frisar que o art. 3.º da lei n.º 54/2005 adota uma interpretação muito ampla de domínio público marítimo, uma vez que a doutrina, louvando-se no direito internacional do mar, distingue: (i) os direitos do Estado sobre parcelas do território terrestre ou bens nele existentes, que apresentam maior similitude com o direito de propriedade, embora submetidos ao direito público (regime do domínio público e do domínio privado), e assentam numa ideia de exclusividade e exclusão de atividades exercidas por terceiros, nomeadamente a de terceiros Estados sobre o mesmo espaço, salvo a atribuição de uma concessão nesse sentido; (ii) os direitos dos Estados costeiros relativamente ao espaço marítimo sob jurisdição ou soberania nacional (as águas interiores, o mar territorial, a zona contígua, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) que, tal como sucede com o espaço aéreo, constitui um espaço indeterminado, insuscetível, portanto, de ser objeto de direitos de propriedade, mas apenas de direitos dominiais, resultantes da jurisdição incluída no senhorio da entidade soberana sobre o território onde tem assento (domínio eminente), o que implica a necessidade da sua harmonização com os poderes de todos os outros Estados, nomeadamente com o princípio da liberdade do alto mar ou do direito de passagem inofensiva. Todavia, o Estado exerce soberania territorial sobre as águas interiores, i.e., as águas situadas no interior das linhas de base do mar territorial, nos termos do art. 2.º e art. 8.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, que beneficiam, por conseguinte, de um estatuto jurídico equivalente àquele que o Estado exerce sobre o território terrestre (lei n.º 17/2014, de 10 de abril que aprova as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional, e lei n.º 34/2006, de 28 de julho, que disciplina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar). Os recursos hídricos foram, durante muitos anos, disciplinados por legislação dispersa e manifestamente desatualizada (v.g., dec. n.º 5787-41, de 18 de maio de 1919 e dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro). Durante a vigência do estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira (RAM), aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, o art. 60.º estipulava que integravam o património da Região os bens do extinto distrito autónomo, os que por ela vierem a ser adquiridos e os que vierem a ser definidos no estatuto definitivo. Todos os bens não incluídos nesta disposição mantinham-se, assim, na titularidade do Estado. O Estatuto Político-Administrativo da RAM, aprovado pela lei n.º 13/91, de 5 de junho, alterado pela lei n.º 130/99, de 21 de agosto, e lei n.º 12/2000, de 21 de junho, consagrou um princípio radicalmente oposto, sendo a regra a de que todos os bens de que o Estado é titular, quer do domínio público, quer do domínio privado, desde que situados na RAM, se integram no domínio público regional, com ressalva das situações excecionadas. Com efeito, o art. 144.º do Estatuto, sob a epígrafe “Domínio público”, estabelece o seguinte: “1. Os bens do domínio público situados no arquipélago, pertencentes ao Estado, bem como ao antigo distrito autónomo, integram o domínio público da Região. 2. Excetuam-se do domínio público regional os bens que interessem à defesa nacional e os afetos a serviços públicos não regionalizados, desde que não classificados como património cultural”. Consagrou-se assim o princípio da tendencial titularidade regional dos bens do domínio público e do domínio privado situado na RAM. Assim sendo, os bens que são classificados por lei como integrando o domínio do Estado serão, em princípio, bens do domínio público regional por força do princípio estabelecido no art. 145.º dos Estatutos (v.g., bens elencados no dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro, que procede ao inventário dos bens do domínio público e privado do Estado). Todavia, a cláusula aberta de dominialidade pública regional consagrada no art. 144.º do Estatuto tem suscitado complexas e intrincadas dificuldades interpretativas, tendo presente que a doutrina e a jurisprudência constitucional têm preconizado a necessidade de uma interpretação desta disposição conforme com a Constituição, no sentido de admitir que existem bens essenciais ao exercício das funções soberanas para lá dos bens que interessem à defesa e dos bens afetos a serviços públicos não regionalizados e que não podem deixar, sob pena de inconstitucionalidade, de se encontrar integrados no domínio público do Estado. A questão colocou-se sobretudo no que concerne ao domínio público marítimo, tendo presente que o art. 3.º dos Estatuto Político-Administrativo da RAM prescreve, sob a epígrafe “Território”, que o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus” (n.º 1), abrangendo ainda a Região Autónoma da Madeira “o mar circundante e seus fundos, designadamente as águas territoriais e a zona económica exclusiva, nos termos da lei” (n.º 2). Na vigência do dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro, o art. 5.º, n.º 1 deste diploma considerava como domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar, além de outras águas e leitos e margens, na esteira, aliás, do entendimento preconizado pela comissão do domínio público. Os órgãos de governo próprios da RAM – invocando a necessidade de uma interpretação atualista desta disposição, conforme ao reconhecimento da autonomia político-administrativa das regiões autónomas pela Constituição de 1976 e sua conjugação com o disposto no art. 144.º do Estatuto Político-Administrativo da RAM, lei dotada de valor reforçado – sustentaram que o domínio público hídrico, inclusive o domínio público marítimo, integrava o domínio público regional, salvo quando existisse um ato expresso de afetação de bens nele integrados à defesa nacional. No pólo oposto, o Tribunal Constitucional tem firmado jurisprudência constante e reiterada no sentido de que não é “constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região” (ac. 330/99, de 1 de julho), não sendo possível sequer a sua “transferência para os Governos Regionais”, desde logo “por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional” e ainda por se tratar de bens que integram o “domínio público necessário do Estado” (ac. 131/2003) “por imperativo constitucional, atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais” (ac. 402/2008). O domínio público marítimo é considerado, assim, um “domínio público material” ou “domínio público por natureza” ou “domínio público necessário” por se referir a bens que se encontram intrinsecamente relacionados com a integridade territorial, a identidade e a própria sobrevivência do Estado em sentido amplo e, como tal, devem, pela própria natureza das coisas, estar sujeitos a um regime de dominialidade pública, independentemente de qualquer previsão constitucional ou legal nesse sentido. Já o domínio público lacustre e fluvial tanto pode ser da titularidade do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais (art. 6.º da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro). As águas e os terrenos que não são incluídos no domínio público hídrico (“recursos hídricos”) são qualificados como “recursos patrimoniais” e integram a propriedade privada das entidades particulares ou o domínio privado das entidades públicas (art. 1.º, n.º 2 do mesmo diploma). Registe-se, a este propósito, que nos termos previstos no art. 15.º, que foi alterado pela lei n.º 34/2014, de 19 de junho, se admite o reconhecimento de propriedade privada ou posse sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sendo a competência confiada aos tribunais comuns. Por outro lado, a largura da margem das águas do mar, definida como uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, se, por regra, é fixada em 50 m (art. 11º, n.º 2), ou em largura superior quando tiver natureza de praia, estendendo-se até onde o terreno apresentar tal natureza (art. 11.º, n.º 4), é fixada, nas regiões autónomas, tendo presente a sua específica orografia, em largura inferior sempre que a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente (art. 11.º, n.º 7). A lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, consagra que a titularidade do domínio público marítimo pertence sempre ao Estado (art. 4.º), na esteira da jurisprudência e doutrina constitucional. A lei não reconhece, por conseguinte, um domínio marítimo regional, estabelecendo a titularidade exclusiva do Estado. Trata-se de um entendimento que tem largo apoio nas experiências regionais de direito comparado. Em Espanha, o artigo 132.º, n.º 2, da Constituição de 1978 é claro e inequívoco ao determinar que “são bens de domínio público estatal os que a lei determinar e, em todo o caso, a zona marítimo-terrestre, as praias, o mar territorial e os recursos naturais da zona económica e da plataforma continental”. O art. 14.º do Estatuto da Sardenha, região dotada de autonomia político-administrativa face ao Estado italiano, estabelece que “a região no quadro do seu território sucede nos bens e direitos patrimoniais do Estado de natureza imobiliária e nos bens dominiais com exceção do domínio marítimo”. O art. 32.º do Estatuto da Sicília, região autónoma italiana e que foi a fonte inspiradora dos estatutos das nossas regiões autónomas, determinava que “os bens dominiais do Estado, compreendendo as águas públicas existentes na região, são atribuídas à região, com exceção dos que interessem à defesa nacional ou a serviços de carácter nacional”. A Corte Constituzionale acabou por decidir que, apesar de o domínio público marítimo não ser expressamente excecionado no teor literal do referido preceito do âmbito domínio da Sicília, deveria ser dele excluído dado que se trata de um bem que interessa manifestamente à defesa nacional, no que foi secundada pela doutrina e pelo Conselho de Estado italiano, que se pronunciou no sentido de todo o domínio marítimo interessar a serviços de carácter nacional e, como tal, deveria ser excluído do domínio regional. Aliás, o art. 22.º, n.º 3, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela lei n.º 39/80, de 5 de agosto, alterada pela lei n.º 9/87, de 26 de março, lei n.º 61/98 de 27 de agosto e lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro, é perentório no reconhecimento da natureza estadual do domínio público marítimo, excetuando do domínio público regional “os bens afetos ao domínio público militar, ao domínio público marítimo, ao domínio público aéreo e, salvo quando classificados como património cultural, os bens dominiais afetos a serviços públicos não regionalizados” . No que respeita à delimitação dos bens integrados no domínio público marítimo, de titularidade estatal, o entendimento da jurisprudência constitucional tem sido no sentido de abranger tanto as águas marítimas (quer costeiras, quer territoriais, quer as águas interiores sujeitas à influência das marés) quer as respetivas margens (faixas de terreno contíguas ou sobranceiras à linha que limita o leito das águas), pelo que podemos concluir que a disciplina da lei n.º 54/2005, também neste particular, se limita a concretizar aquela linha jurisprudencial (acs. do Tribunal Constitucional n.º 280/90, n.º 330/90, n.º 315/2014, e, em especial, ac. n.º 131/2003 e ac. n.º 654/2009). Com efeito, inclusive no âmbito do domínio público portuário que constitui pacificamente domínio público regional (dado o facto de o art. 4.º, alínea e) do dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro qualificar os “portos artificiais e docas” como bens do domínio público do Estado e a tendencial titularidade regional dos bens do domínio público situados nas regiões autónomas), assiste-se a uma interpretação jurisprudencial restritiva do conceito de “porto artificial e doca”, circunscrevendo-se o domínio público portuário aos edifícios e infraestruturas de apoio à atividade portuária, com exclusão dos terrenos em que tais edifícios assentam, que integram exclusivamente o domínio público marítimo. Solução que não é evidente atendendo a que o domínio público portuário constitui um conceito autónomo do domínio hídrico e que constitui uma das modalidades do domínio público infraestrutural, que compreende a universalidade ou o conjunto de bens (a rede de infraestruturas) que são qualificadas como dominiais, por opção legislativa, por se destinarem a prosseguir uma finalidade unitária e constituírem o suporte físico artificial do desenvolvimento de determinadas atividades ligadas ao exercício de serviços públicos essenciais. No ac. n.º 654/2009, de 12 de fevereiro de 2010 (processo n.º 668/06), o Tribunal Constitucional rejeitou a tese de que os terrenos em torno dos cais e portos constituiriam bens da Região pelo facto de os portos e cais serem domínio público daquela e tais terrenos constituírem, em conjunto com eles, uma universalidade pública. Procedeu-se, nesta sede, a uma relevante distinção entre a titularidade e a gestão dos bens do domínio público, afirmando-se que a “unidade funcional de um determinado conjunto de bens pode justificar que a gestão da sua utilização caiba a uma só entidade, mas não implica necessariamente a unidade da titularidade dominial do complexo de bens que o integram”. A não regionabilidade da titularidade do domínio público marítimo integrante ou circundante da área territorial das regiões autónomas não arrasta consigo, como consequência forçosa, a insusceptibilidade de transferência de certos poderes contidos no domínio. No ac. n.º 402/2008 do Tribunal Constitucional, na linha do que já era defendido pela Comissão do Domínio Público Marítimo (parecer n.º 5945, de 18/01/2002) esclareceu-se que, desde que “mantida incólume a titularidade do Estado”, estão “constitucionalmente legitimadas formas dúcteis de exploração e rendibilização dos bens dominiais, em cuja definição tenham um papel relevante os poderes regionais”. Uma tal opção encontra apoio claro nos fundamentos e objetivos da autonomia traçados no artigo 225.º, em particular nos objetivos de “desenvolvimento económico-social” e no de “promoção e defesa dos interesses regionais” (n.º 2 do citado artigo). Como decorre inequivocamente da jurisprudência constitucional, mormente do ac. 654/2009, o “ente territorial não titular de determinados bens do domínio público, quando estes se encontrem no seu território […] pode exercer poderes dominiais secundários (concessão ou licença de exploração e uso privativo), mas já não poderes primários (desafetação)”. Já no acórdão n.º 315/2014, esclarece-se que o “reenvio que o artigo 84.º da CRP faz para lei, quanto à definição dos bens integrantes do domínio público, bem como do seu regime, condições de utilização e limites (alínea f) do n.º 1 e n.º 2), consente a separação entre titularidade e o exercício dos poderes característicos do estatuto da dominialidade, o que significa, por outras palavras, que a titularidade do domínio não engloba necessariamente todos os poderes de gestão do bem dominial”. Importa assim distinguir: (i) os poderes primários, i.e., “aqueles que apenas podem ser exercidos pelo titular dominial, sob pena de não se assegurar o fim público a que direta e permanentemente estão destinados”, sendo que, relativamente ao “domínio público marítimo são intransferíveis os poderes que respeitem à integridade e soberania do Estado ou os poderes que sejam incompatíveis com a integração dos bens em causa nesse domínio, designadamente os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio”, mormente os poderes de desafetação do domínio público marítimo; (ii) os poderes secundários, i.e., aqueles que “podem ser exercidos por entidades diferentes do respetivo titular, sem se comprometer aquela finalidade”, nos quais se integram os poderes de “gestão do bem dominial, incluindo o seu aproveitamento ou utilização” relativamente aos quais não há impedimento a que sejam dissociados “do titular do domínio e confiados a outras pessoas coletivas públicas ou a particulares, designadamente concessionários”. Esta separação entre a titularidade e o exercício de poderes de administração sobre os bens do domínio público hídrico está, aliás, expressamente consagrada na lei 54/2005, de 15 de novembro, onde se dispõe que “a jurisdição do domínio público marítimo é assegurada, nas regiões autónomas, pelos respetivos serviços regionalizados na medida em que o mesmo lhes esteja afeto” (art. 28.º, n.º 2).   Ana Gouveia Martins (atualizado a 02.01.2017)

Direito e Política

centro de química da madeira

O Centro de Química da Madeira (CQM) foi criado em 2004, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Este projeto nasceu da vontade de um punhado de investigadores que aceitaram o desafio de criar, na Universidade da Madeira e para a Região, um centro de investigação de qualidade internacional nas áreas da química e da bioquímica. O CQM foi, desde a sua criação, o CQM auditado regularmente por painéis internacionais de avaliação, sendo os seus relatórios de atividades públicos e os resultados mensuráveis através de critérios internacionalmente aceites. Os órgãos de governo emanam da vontade dos investigadores que constituem o Centro, sendo o respetivo coordenador eleito por voto secreto dos seus membros seniores, e os resultados do domínio público. Para além disso, o Centro cumpre as regras de contratação pública e as leis em vigor. O financiamento do CQM, que tem sido obtido através de concursos altamente competitivos, provém, fundamentalmente, da FCT e de fundos europeus. Graças ao trabalho efetuado nas vertentes de investigação, desenvolvimento, inovação, formação de recursos humanos, e apoio e serviços às empresas, bem como na divulgação da ciência, o CQM é, no início do séc. XXI, uma referência para a Madeira e para o país. Tendo por base a experiência e o conhecimento do pequeno grupo de investigadores doutorados que estiveram na sua génese, o CQM cedo definiu como estratégia de desenvolvimento uma forte ligação às necessidades científicas e de formação da Região, procurando sempre, nas parcerias e na internacionalização, a janela de oportunidade para o reconhecimento e para a complementaridade do trabalho produzido. Assentando em dois grupos de investigação interdisciplinares: “Produtos Naturais” e “Materiais”, o CQM é o elemento central de promoção e dinamização da investigação, do desenvolvimento e da inovação em química e bioquímica na Região Autónoma da Madeira, desenvolvendo a sua atividade nas seguintes áreas: Química Analítica, Química Alimentar, Saúde, Materiais, Modelação Molecular, Nanoquímica e Fitoquímica. No final de 2014, o CQM era constituído por 57 investigadores, 15 dos quais eram doutorados; outros 15 investigadores tinham o mestrado, 11 eram estudantes de doutoramento e 14 estudantes de mestrado; do total, 22 % eram investigadores estrangeiros e 54 % do sexo feminino. De acordo com o estudo bibliométrico realizado pela FCT a todas as unidades de investigação nacionais, no período de 2008-2012, a produtividade do CQM foi uma das mais altas do país; além disso, nos critérios: número de citações por investigador a tempo inteiro (full-time equivalent researcher), impacto, e publicações mais citadas, o CQM destaca-se entre todos os centros de investigação portugueses. Nos seus primeiros 10 anos de existência, o CQM estabeleceu e fortaleceu parcerias, não só no espaço português e da Macaronésia, como na China, Índia e Brasil, destacando-se a constituição de protocolos ou colaborações com várias instituições científicas e laboratórios. Tendo por unidade de acolhimento o CQM, foi criada na Universidade da Madeira a primeira cátedra em Nanotecnologia do país. Em resultado deste projeto, a Universidade da Madeira assinou o primeiro protocolo com uma Universidade Chinesa (Universidade de Donghua – Xangai), começou a receber alunos chineses de doutoramento e mestrado para realizarem estágios no CQM, e os investigadores do CQM passaram a visitar regularmente a China para desenvolverem trabalho de investigação. Desta intensa atividade científica conjunta resultou a publicação de vários trabalhos em revistas de elevado fator de impacto, e ainda um aumento do número de alunos estrangeiros, quer no Mestrado em Nanoquímica e Nanomateriais, quer no Doutoramento em Química da Universidade da Madeira. A localização específica do Centro de Química da Madeira na Região é uma característica inerente de apresentação do próprio Centro. A investigação desenvolvida no CQM está, por isso, prioritariamente ligada à comunidade que integra. Desta forma, há uma forte relação entre o CQM e as entidades regionais, como o hospital, o governo e várias empresas locais. As atividades educativas, como o “Ciência Viva nas Férias”, “A Química é Divertida” e os “Estágios de Verão”, têm sido ao longo de vários anos um importante ponto de contacto com as escolas da região e com a população, a que se juntou em 2015 o projeto “Bridging the Gap”. As atividades do CQM permitiram a formação de vários jovens investigadores madeirenses, tendo muitos deles permanecido a trabalhar em empresas da Região. As atividades de investigação e de inovação, além da participação em projetos internacionais, contribuíram para colocar a Madeira e o Porto Santo numa posição de destaque, seja pela divulgação e valorização dos produtos da região, seja pela atração de investigadores e estudantes internacionais, seja ainda pela obtenção de fundos nacionais e internacionais que fomentam a economia regional. No que concerne à internacionalização, o Centro de Química da Madeira tem procurado a excelência e o profissionalismo em todos os domínios da sua atuação, captando conhecimento externo e dinamizando atividades que levam ao enriquecimento dos seus investigadores. O estabelecimento de protocolos e intercâmbios com diferentes universidades – como a Universidade de Nova Delhi (Índia) e a já referida Universidade de Donghua (China) –, a existência da Cátedra em Nanotecnologia, a visita frequente de conferencistas e professores estrangeiros (com a consequente troca de experiências com os investigadores do Centro), a captação de estudantes e investigadores de outros países, e a possibilidade de o Centro oferecer condições para que os investigadores nacionais tenham experiências noutros países e conheçam outra realidade, são pontos fortes que apoiam a contínua internacionalização do trabalho realizado no CQM. A possibilidade de desenvolver colaborações cada vez mais estreitas com entidades internacionais enriquece e revitaliza a investigação no Centro, permitindo aconselhamento científico externo, e fazendo com que a oferta formativa que o CQM disponibiliza seja mais abrangente e a investigação mais competitiva. Após os primeiros 10 anos de existência e passada a fase da criação, o CQM foi colocado perante o desafio de crescer e se sustentar, reforçando o forte compromisso social através da investigação e dos programas educacionais, aumentando a massa crítica do Centro com um maior número de investigadores seniores, dando continuidade ao programa de internacionalização com colaborações capazes de exponenciar o impacto do CQM. No domínio educacional, o objetivo é garantir um ambiente inovador, preparando os estudantes para se tornarem investigadores e empreendedores de excelência, proporcionando-lhes as melhores condições para poderem ter sucesso no mundo empresarial e académico. Ao nível da investigação, o plano estratégico do CQM para o período de consolidação assentou no desenvolvimento de novas abordagens analíticas para aplicação no ramo alimentar e no controlo de qualidade, na identificação precoce de biomarcadores característicos de diferentes doenças, na identificação de compostos moleculares com potencial atividade biológica, no desenvolvimento de novos nanomateriais e sensores para aplicações biomédicas, com especial relevo para as doenças emergentes e para as doenças ressurgentes (malária e dengue). O Centro de Química da Madeira tem a missão de servir a comunidade investigando, desenvolvendo a Região e o país, formando e criando emprego para o mundo e, por isso mesmo, o conhecimento acumulado no CQM destina-se a todos e encontra-se ao serviço de todos.   João Rodrigues (atualizado a 29.12.2016)

Física, Química e Engenharia Educação

tutela administrativa

A figura jurídica da tutela representa, no âmbito do direito administrativo, uma forma de controlo administrativo que uma pessoa coletiva pública, através dos seus órgãos considerados legalmente competentes para o efeito, pode exercer sobre outra pessoa coletiva pública. Esta figura jurídica releva particularmente em ordenamentos jurídicos que consagram um sistema de organização administrativa descentralizado, pressupondo a existência de diversas pessoas jurídicas públicas. A tutela administrativa implica uma relação entre duas pessoas coletivas públicas, em que uma tem a posição de entidade tutelar e a outra de entidade tutelada. No âmbito dessa relação, a entidade tutelar acompanha e verifica o desempenho funcional da entidade tutelada, promovendo ou concorrendo para a adequação ou correção desse desempenho. A existência de uma relação tutelar entre duas pessoas coletivas públicas não se presume, dependendo de lei que, de modo inequívoco, a preveja. Estando prevista legalmente, só acarreta para a entidade tutelar os poderes sobre a entidade tutelada que resultarem, expressa ou implicitamente, da lei, não se admitindo a consagração tácita da tutela ou dos poderes tutelares respetivos. Acresce que, por definição, o legislador, ao consagrar um regime de tutela administrativa de uma pessoa coletiva pública sobre outra, deverá no limite fazê-lo de tal modo que daí não resulte a anulação da autonomia da entidade tutelada, sob pena de ficar em causa a sua personalidade jurídica e de, consequentemente, deixar de ser possível falar de uma relação entre entidades distintas, como é próprio da tutela. As limitações que por essa via se impuserem à autonomia da entidade tutelada devem restringir-se ao estritamente necessário para que se realizem os fins que o ordenamento jurídico considera que a podem justificar. Esta figura jurídica não se confunde com outras que relevam também para o direito administrativo. Assim, distingue-se desde logo da hierarquia administrativa, porque esta toma como referência uma relação entre órgãos de certa pessoa coletiva pública e não – como é próprio da tutela administrativa – uma relação entre distintas pessoas coletivas públicas. Distingue-se também da superintendência administrativa, na medida em que esta se traduz numa interferência juridicamente relevante de uma pessoa coletiva pública na gestão de uma outra, correspondendo tal interferência não a uma situação de mero controlo intersubjetivo, como é próprio da tutela, mas antes, especificamente, ao exercício de poderes tais como os de dirigir orientações, de emitir diretivas ou de solicitar informações aos órgãos dirigentes de outra pessoa coletiva pública sobre os objetivos a atingir na gestão desta e sobre as prioridades a adotar na respetiva prossecução. A tutela administrativa também não se confunde com a figura da fiscalização administrativa sobre entidades privadas que exerçam poderes públicos que é exercida por pessoas coletivas públicas. Neste caso, a diferença está em que a tutela administrativa pressupõe uma relação entre pessoas coletivas públicas, sendo que, diferentemente disto, nesta outra figura agora em referência está presente uma relação entre uma pessoa coletiva pública e uma entidade privada. Noutro aspeto, cabe referir que a tutela administrativa pode ter expressões muito distintas, variando consoante, nomeadamente, o seu alcance finalístico e material ou ainda em razão dos poderes de controlo que se lhe associam. A tutela administrativa, em razão das finalidades a que se vincula, pode configurar-se como tutela de legalidade ou como tutela de mérito, envolvendo, no primeiro caso, um controlo do cumprimento das determinações legais por parte da entidade tutelada e, no segundo caso, um controlo sobre a conveniência e a oportunidade dos comportamentos realizados pela entidade tutelada. Por sua vez, considerando o seu alcance material, distingue-se a tutela administrativa stricto sensu da tutela administrativa financeira: a primeira tem incidência sobre a autonomia administrativa da entidade tutelada; a segunda interfere com a autonomia financeira da entidade tutelada. Com referência aos poderes abrangidos, podem ainda ser identificados os seguintes tipos de tutela administrativa: tutela integrativa, em que o controlo administrativo se concretiza por via da aprovação ou da autorização da prática de determinados atos pela entidade tutelada; tutela inspetiva, que se exprime no poder de a entidade tutelar averiguar da regularidade da atuação da entidade tutelada; tutela sancionatória, que traduz o poder de aplicar sanções que se devam fazer corresponder a irregularidades verificadas no funcionamento da entidade tutelada; tutela revogatória, que envolve o poder de fazer extinguir os efeitos de regulamentos e/ou atos administrativos produzidos pela entidade tutelada e tutela substitutiva, que implica o poder de a entidade tutelar praticar atos legalmente devidos, em caso de inércia do órgão responsável da entidade tutelada. No que respeita particularmente ao ordenamento jurídico português vigente em 2016, importa ter em consideração que a Constituição, no n.º 2 do seu art. 267.º, determina que a lei estabelecerá adequadas formas de descentralização administrativa, devendo tal ocorrer sem prejuízo, nomeadamente, dos poderes de tutela dos órgãos competentes. Cabe depois esclarecer como é concebida a tutela administrativa nas situações de descentralização territorial, associativa e institucional operadas no ordenamento jurídico português. Neste sentido, com referência à descentralização territorial, impõe-se distinguir entre a que respeita às Regiões Autónomas e a que se relaciona com as autarquias locais. Quanto à descentralização em favor das regiões autónomas, será de relevar que a Constituição não prevê que seja acompanhada da consagração de correspondentes poderes de tutela estaduais. Tal descentralização é de natureza político-administrativa e não meramente administrativa, entendendo-se, por isto, que não se aplica às regiões autónomas a previsão sobre tutela administrativa contida no citado n.º 2 do art. 267.º da Constituição. Será assim de entender que, por falta de base constitucional, não será admissível a consagração, por via estatutária ou outra via legislativa ordinária, de tutela estadual sobre as Regiões Autónomas. A propósito da descentralização relativa às autarquias locais, diferentemente, a Constituição determina, no n.º 1 do seu art. 242.º, que sobre estas será exercida tutela, a qual consiste estritamente na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, sendo exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei. A tutela administrativa a exercer sobre as autarquias locais é, neste sentido, apenas, uma tutela inspetiva de legalidade, não cabendo aos órgãos tutelares, desde logo, o poder de apreciação do mérito dos atos praticados pelos órgãos autárquicos. Mais se determina constitucionalmente, no referido artigo, que as medidas tutelares restritivas da autonomia local devem ser precedidas de parecer de um órgão autárquico, nos termos a definir por lei (n.º 2), admitindo-se que a determinação da dissolução de órgãos autárquicos apenas possa ter por causa ações ou omissões ilegais graves (n.º 3). Tal tutela administrativa incumbe ao Estado, no caso das autarquias locais do continente, competindo ao Governo da República (art. 199.º, al. d) da Constituição); por sua vez, pertence às regiões autónomas, no caso das autarquias locais existentes nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, competindo ao respetivo Governo regional, como resulta da al. m) do art. 227.º da Constituição e dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas. Ainda a propósito do regime da tutela administrativa sobre as autarquias locais, importa considerar, especificamente, o que resulta da lei n.º 27/96, de 1 de agosto (alterada pela lei orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro), a qual se aplica também às regiões autónomas, sem prejuízo da publicação de diploma regional que identifique especificamente os membros dos Governos regionais que são competentes para o exercício da tutela administrativa; e.g., em relação à Madeira, o dec. leg. regional n.º 6/98/M, de 27 de abril. Neste diploma, entre outros aspetos, definem-se os regimes de realização de ações inspetivas e de aplicação de sanções resultantes da prática, por ação ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais (perda de mandato e dissolução de órgãos). No que respeita à tutela administrativa relacionada com a descentralização associativa que se concretiza em favor de associações públicas, cabe logo considerar a realidade das entidades intermunicipais (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais), que se regem pelo disposto nos arts. 63.º e seguintes da lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, e estão sujeitas ao mesmo regime da tutela administrativa que se aplica às autarquias locais e se encontra consagrado na citada da lei n.º 27/96, de 1 de agosto. Por seu turno, as associações públicas profissionais beneficiam, nos termos da legislação que define o seu regime (lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro), do reconhecimento de uma ampla autonomia que se traduz logo na determinação legal de que não estão sujeitas a superintendência governamental nem a tutela de mérito, ressalvados quanto a esta, os casos especialmente previstos na lei (art. 45.º, n.º 1 da citada lei). Estão sujeitas a tutela de legalidade idêntica à exercida sobre as autarquias locais, sendo essa tutela de carácter inspetivo, salvo quanto aos regulamentos que versem sobre os estágios profissionais, as provas profissionais de acesso à profissão e as especialidades profissionais, os quais só produzem efeitos após a sua homologação por parte da respetiva entidade tutelar (art. 45.º, n.os 2 a 5 da citada lei). Com referência às situações de descentralização institucional relativa a institutos públicos – serviços ou fundos personalizados (neste último caso, também designados como fundações públicas de direito público) do Estado ou das regiões autónomas –, importa sublinhar que estas entidades, gozando de autonomia administrativa e financeira, se sujeitam todavia a superintendência administrativa e a tutela – consoante os casos – do Estado ou da região autónoma respetiva. A tutela administrativa que pode ser exercida sobre os institutos públicos pode ser de legalidade e de mérito, configurando-se como tutela inspetiva, integrativa, sancionatória e substitutiva, nos termos do que resulta do art. 41.º da respetiva Lei-Quadro (aprovada pela lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, alterada e republicada pelo dec.-lei n.º 105/2007, de 3 de abril). A propósito considerem-se, ainda, as adaptações legislativas regionais constantes do dec. leg. regional n.º 17/2007/M, de 12 de novembro (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 2/2013/M, de 2 de janeiro) e do dec. leg. regional n.º 13/2007/A, de 5 de junho (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 13/2011/A, de 11 de maio). Por último, deverá cuidar-se da tutela administrativa que se realiza com referência às entidades públicas empresariais e às entidades administrativas independentes. As entidades públicas empresariais sujeitam-se à tutela administrativa que for consagrada nos atos legislativos que determinarem a sua criação. No caso das entidades administrativas independentes e, em particular, de entidades que exercem funções de regulação e de promoção e defesa da concorrência respeitantes às atividades económicas dos sectores privado, público, cooperativo e social, deverá ser considerado o disposto na Lei-Quadro da Entidades Reguladoras (aprovada pela lei n.º 67/2013, de 28 de agosto). Trata-se de entidades que, dispondo de uma ampla autonomia administrativa e financeira, se caracterizam por não se encontrarem sujeitas a superintendência ou a tutela administrativa, sujeitando-se, todavia, ao poder governamental de solicitação de informações e de aprovação e autorização prévia de alguns atos (art. 45.º da citada Lei-Quadro).   Afonso d’Oliveira Martins (atualizado a 04.01.2017)

Direito e Política

associação académica da universidade da madeira

A Associação Académica da Universidade da Madeira (AAUMa) foi criada a 10 de dezembro de 1991 com o intuito de responder às necessidades dos estudantes, sendo a estrutura representativa e comunitária dos estudantes da Universidade da Madeira (UMa). É uma instituição privada, sem fins lucrativos, que foi reconhecida em 2006 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; está inscrita no Registo Nacional do Associativismo Jovem do Instituto Português do Desporto e Juventude e possui, desde 2010, o estatuto de instituição de utilidade pública. Os primeiros órgãos sociais – liderados por Jorge Carvalho como presidente da direção, por Deodato Rodrigues como presidente da mesa da assembleia geral e por António Cunha como presidente do conselho fiscal – foram eleitos por 416 estudantes, tomando posse a 9 de janeiro de 1992. Diversas atividades foram desenvolvidas no sentido de consolidar uma estrutura estudantil única na Madeira, que representasse os estudantes da UMa. O registo legal, a idealização do logotipo, a organização de festividades e de colóquios aquando do Dia Nacional do Estudante, a participação em provas desportivas regionais e nacionais são disso exemplo. Para fazer cumprir algumas das promessas eleitorais, foi necessário “adquirir uma máquina de encadernação, formar uma tuna, adquirir um computador, fomentar a participação dos estudantes no grupo de teatro, realizar um festival de tunas e participar nas competições desportivas interuniversitárias” (Livro de Actas da Direcção…, 16 jan. 1993, s.p.). A 14 de janeiro de 1994 foi eleita, para mais um mandato, a equipa liderada por Jorge Carvalho na direção, com Deodato Rodrigues na mesa da assembleia geral e Ricardo Félix no conselho fiscal, tomando posse a 2 de fevereiro do mesmo ano. O apoio ao estudante e a organização de colóquios, de conferências e de fóruns de discussão sobre assuntos relacionados com o ensino superior e com a UMa e a sua oferta formativa foram as principais preocupações da equipa. O segundo mandato da equipa liderada por Jorge Carvalho terminou com o I Encontro de Estudantes Madeirenses do Ensino Superior, no qual, durante dois dias, se discutiram questões sobre o ensino de qualidade e sobre a formação de profissionais de excelência em Portugal. A 19 de janeiro de 1996 tomavam posse os novos corpos sociais da AAUMa, liderados por Vítor Freitas como presidente da mesa da assembleia geral, por Orlando Oliveira como presidente do conselho fiscal e por Eduardo Marques como presidente da direção, cargo que manteve até 18 de dezembro do mesmo ano, data em que trocou de lugar com a vice-presidente, Natércia Silva. É com esta equipa que se institui, pela primeira vez, a Semana do Caruncho e o Corte das Fitas (até então, designados de Semana Académica e Queima das Fitas), o primeiro Código de Praxe e Comissão de Praxe, a primeira publicação do jornal (Parenthesis), a 14 de maio de 1996, e a aposta no desporto e na contratação de bandas nacionais e regionais para celebrar o adeus aos finalistas e a receção dos novos estudantes da UMa. A 6 de março de 1998 tomavam posse Sara André Serrado, como presidente da direção, Paulo Santos, como presidente da mesa da assembleia geral, e José Costa, como presidente do conselho fiscal. Uma das primeiras preocupações foi a alteração estatutária e a regulação da praxe na UMa, modificando para tal o Código de Praxe em vigor e criando a Comissão de Veteranos. Seria, contudo, na direção seguinte, liderada por Clara Freitas, que as questões da praxe ficariam desvinculadas da AAUMa, por deliberação da Reunião Geral de Alunos. Eleita por dois mandatos – a 19 de janeiro de 2001 e a 20 de fevereiro de 2003 –, Clara Freitas vê o último mandato terminar de forma abrupta. A direção acaba por ser exonerada, pois o pedido de demissão apresentado pela maioria dos membros dos órgãos sociais inviabiliza a continuidade da restante equipa na liderança da AAUMa. No entanto, e enquanto os corpos sociais desta direção estiveram ao serviço dos estudantes, as questões desportivas, as de ação social, as culturais e as recreativas foram as suas principais bandeiras. A 23 de abril de 2004 é eleita a equipa de Marcos Pestana, que encontra uma estrutura associativa com uma situação financeira instável, parca de recursos e com uma credibilidade reduzida, o que acabou por dificultar grande parte do trabalho a que se havia proposto. A aposta no desporto universitário e na tradição académica da UMa foi, contudo, concretizada. A 8 de março de 2006 aquela dá lugar à equipa de Luís Eduardo Nicolau, que viria a ser, pelo menos até 2016, o presidente com maior longevidade à frente dos destinos da AAUMa, com três mandatos (14 de março de 2006, 21 de abril de 2008 e 3 de novembro de 2010) e três equipas diferentes (lideradas por André Dória, Andreia Micaela Nascimento e Rúben Sousa como presidentes da mesa da Reunião Geral de Alunos e por Pedro Olim, Tiago Seixas e Gonçalo Camacho como presidentes do conselho fiscal). A implementação do processo de Bolonha e do regime de prescrições na UMa foi uma das primeiras preocupações desta equipa. Nestes anos são criados vários projetos, muitos dos quais se mantêm vários anos depois. Uma publicação mensal, a emissão de programas de rádio e de televisão, um projeto de solidariedade social, um grupo de fados de Coimbra, um centro de explicações para o ensino básico, secundário e superior, o acolhimento de estágios curriculares e pedagógicos diversos, as lojas Gaudeamus e os projetos de valorização e de preservação do património histórico regional são alguns exemplos. Deve ainda enfatizar-se a participação da AAUMa no primeiro conselho de leitores do Diário de Notícias da Madeira, no Conselho de Cultura da UMa e no Observatório do Emprego e Formação Profissional da UMa. É no último mandato de Luís Eduardo Nicolau que, por decisão dos estudantes presentes na assembleia geral de 4 de março de 2010, se decide laurear, com o título de associado honorário, D. António Carrilho, bispo da Diocese do Funchal, José Manuel Castanheira da Costa, então reitor, Jorge Carvalho, Marco Faria, Idalécio Antunes, Andreia Micaela Nascimento, Carlos Diogo Pereira e a Tuna Universitária da Madeira. Em outubro de 2012, João Francisco Baptista assume a presidência, formando equipa com Vitor Andrade, como presidente da mesa da Reunião Geral de Alunos, e com Nuno Rodrigues, como presidente do conselho fiscal; em outubro de 2014, é reeleito, tendo Ricardo Martins como presidente da mesa da Assembleia Geral de Alunos e Nuno Rodrigues como presidente do conselho fiscal. No decorrer dos seus mandatos, salientam-se a continuidade e o crescimento de alguns projetos já existentes, o início da Imprensa Académica, linha editorial da AAUMa, a criação de projetos de apoio social destinados aos estudantes da UMa (a bolsa de alimentação, a bolsa escolar e a bolsa LER), o apoio ao estudante, o ateliê de férias Doutorecos, a dinamização de projetos de interesse turístico e cultural e o reconhecimento, pela União Europeia, da AAUMa enquanto entidade de acolhimento e de envio de voluntários pelo Serviço Voluntário Europeu. A cultura, o desporto, o apoio ao estudante (presencial, telefónico e remoto), a tradição, a ciência, a investigação, a empregabilidade, a formação e a cidadania ativa e responsável voltam a ser as prioridades de uma estrutura que cresceu e que representa a UMa e todos os estudantes que nela são formados.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 14.12.2016)

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