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domínio marítimo

O domínio público marítimo distingue-se de outras formas de domínio hídrico com base no seu conteúdo e extensão (nos bens que integram o domínio marítimo). De acordo com a lei em vigor, o domínio público marítimo é sempre da titularidade do Estado, embora se deva atender às especificidades regionais quanto à sua delimitação nas regiões autónomas e se admita o reconhecimento de propriedade privada em alguns casos. Durante muito tempo, os órgãos de governo da Região Autónoma da Madeira defenderam que o domínio marítimo constituía domínio regional. Todavia, a jurisprudência do Tribunal Constitucional afastou reiteradamente esse entendimento. No texto, distingue-se ainda a titularidade e o exercício de poderes dominiais, sublinhando que a jurisprudência constitucional admite o exercício de poderes secundários dominiais pela Região Autónoma da Madeira (v.g., através da atribuição de licenças e concessões de utilização privativa) mas não de poderes primários dominiais (v.g., desafetação). Palavras-chave: domínio marítimo; jurisprudência; lei; Região Autónoma da Madeira. A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, após a revisão constitucional de 1989, incluiu no art. 84.º, n.º 1, uma enumeração, não exaustiva, dos bens do domínio público, individualizando alguns bens que integram necessariamente o domínio público, e que são, assim, bens de domínio público ex constitutione, como é o caso do domínio público hídrico, tal como concretizado na alínea a) deste preceito: “as águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos”. O art. 84.º, n.º 2, se é certo que reconhece que as regiões autónomas, o Estado e as autarquias locais são titulares do domínio público, não procede a qualquer delimitação do seu âmbito, remetendo tal tarefa para ato legislativo dos órgãos de soberania. O domínio público hídrico é um conceito amplo que abrange quer as águas dominais  quer os terrenos que se encontram estreitamente relacionados com as águas públicas, “abrangendo os respetivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas” (art. 1.º, n.º 1, da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que regula a titularidade dos recursos hídricos). Dentro da categoria mais vasta do domínio público hídrico, o art. 2.º, n.º 1, do mesmo diploma distingue: (i) o domínio público marítimo; (ii) o domínio público fluvial; (iii) o domínio público lacustre; (iv) o domínio público das restantes águas. Nos termos previstos no art. 3.º, o domínio público marítimo integra no seu âmbito: as águas costeiras e territoriais; as águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas; os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva e as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés. Importa frisar que o art. 3.º da lei n.º 54/2005 adota uma interpretação muito ampla de domínio público marítimo, uma vez que a doutrina, louvando-se no direito internacional do mar, distingue: (i) os direitos do Estado sobre parcelas do território terrestre ou bens nele existentes, que apresentam maior similitude com o direito de propriedade, embora submetidos ao direito público (regime do domínio público e do domínio privado), e assentam numa ideia de exclusividade e exclusão de atividades exercidas por terceiros, nomeadamente a de terceiros Estados sobre o mesmo espaço, salvo a atribuição de uma concessão nesse sentido; (ii) os direitos dos Estados costeiros relativamente ao espaço marítimo sob jurisdição ou soberania nacional (as águas interiores, o mar territorial, a zona contígua, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) que, tal como sucede com o espaço aéreo, constitui um espaço indeterminado, insuscetível, portanto, de ser objeto de direitos de propriedade, mas apenas de direitos dominiais, resultantes da jurisdição incluída no senhorio da entidade soberana sobre o território onde tem assento (domínio eminente), o que implica a necessidade da sua harmonização com os poderes de todos os outros Estados, nomeadamente com o princípio da liberdade do alto mar ou do direito de passagem inofensiva. Todavia, o Estado exerce soberania territorial sobre as águas interiores, i.e., as águas situadas no interior das linhas de base do mar territorial, nos termos do art. 2.º e art. 8.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, que beneficiam, por conseguinte, de um estatuto jurídico equivalente àquele que o Estado exerce sobre o território terrestre (lei n.º 17/2014, de 10 de abril que aprova as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional, e lei n.º 34/2006, de 28 de julho, que disciplina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar). Os recursos hídricos foram, durante muitos anos, disciplinados por legislação dispersa e manifestamente desatualizada (v.g., dec. n.º 5787-41, de 18 de maio de 1919 e dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro). Durante a vigência do estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira (RAM), aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, o art. 60.º estipulava que integravam o património da Região os bens do extinto distrito autónomo, os que por ela vierem a ser adquiridos e os que vierem a ser definidos no estatuto definitivo. Todos os bens não incluídos nesta disposição mantinham-se, assim, na titularidade do Estado. O Estatuto Político-Administrativo da RAM, aprovado pela lei n.º 13/91, de 5 de junho, alterado pela lei n.º 130/99, de 21 de agosto, e lei n.º 12/2000, de 21 de junho, consagrou um princípio radicalmente oposto, sendo a regra a de que todos os bens de que o Estado é titular, quer do domínio público, quer do domínio privado, desde que situados na RAM, se integram no domínio público regional, com ressalva das situações excecionadas. Com efeito, o art. 144.º do Estatuto, sob a epígrafe “Domínio público”, estabelece o seguinte: “1. Os bens do domínio público situados no arquipélago, pertencentes ao Estado, bem como ao antigo distrito autónomo, integram o domínio público da Região. 2. Excetuam-se do domínio público regional os bens que interessem à defesa nacional e os afetos a serviços públicos não regionalizados, desde que não classificados como património cultural”. Consagrou-se assim o princípio da tendencial titularidade regional dos bens do domínio público e do domínio privado situado na RAM. Assim sendo, os bens que são classificados por lei como integrando o domínio do Estado serão, em princípio, bens do domínio público regional por força do princípio estabelecido no art. 145.º dos Estatutos (v.g., bens elencados no dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro, que procede ao inventário dos bens do domínio público e privado do Estado). Todavia, a cláusula aberta de dominialidade pública regional consagrada no art. 144.º do Estatuto tem suscitado complexas e intrincadas dificuldades interpretativas, tendo presente que a doutrina e a jurisprudência constitucional têm preconizado a necessidade de uma interpretação desta disposição conforme com a Constituição, no sentido de admitir que existem bens essenciais ao exercício das funções soberanas para lá dos bens que interessem à defesa e dos bens afetos a serviços públicos não regionalizados e que não podem deixar, sob pena de inconstitucionalidade, de se encontrar integrados no domínio público do Estado. A questão colocou-se sobretudo no que concerne ao domínio público marítimo, tendo presente que o art. 3.º dos Estatuto Político-Administrativo da RAM prescreve, sob a epígrafe “Território”, que o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus” (n.º 1), abrangendo ainda a Região Autónoma da Madeira “o mar circundante e seus fundos, designadamente as águas territoriais e a zona económica exclusiva, nos termos da lei” (n.º 2). Na vigência do dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro, o art. 5.º, n.º 1 deste diploma considerava como domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar, além de outras águas e leitos e margens, na esteira, aliás, do entendimento preconizado pela comissão do domínio público. Os órgãos de governo próprios da RAM – invocando a necessidade de uma interpretação atualista desta disposição, conforme ao reconhecimento da autonomia político-administrativa das regiões autónomas pela Constituição de 1976 e sua conjugação com o disposto no art. 144.º do Estatuto Político-Administrativo da RAM, lei dotada de valor reforçado – sustentaram que o domínio público hídrico, inclusive o domínio público marítimo, integrava o domínio público regional, salvo quando existisse um ato expresso de afetação de bens nele integrados à defesa nacional. No pólo oposto, o Tribunal Constitucional tem firmado jurisprudência constante e reiterada no sentido de que não é “constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região” (ac. 330/99, de 1 de julho), não sendo possível sequer a sua “transferência para os Governos Regionais”, desde logo “por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional” e ainda por se tratar de bens que integram o “domínio público necessário do Estado” (ac. 131/2003) “por imperativo constitucional, atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais” (ac. 402/2008). O domínio público marítimo é considerado, assim, um “domínio público material” ou “domínio público por natureza” ou “domínio público necessário” por se referir a bens que se encontram intrinsecamente relacionados com a integridade territorial, a identidade e a própria sobrevivência do Estado em sentido amplo e, como tal, devem, pela própria natureza das coisas, estar sujeitos a um regime de dominialidade pública, independentemente de qualquer previsão constitucional ou legal nesse sentido. Já o domínio público lacustre e fluvial tanto pode ser da titularidade do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais (art. 6.º da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro). As águas e os terrenos que não são incluídos no domínio público hídrico (“recursos hídricos”) são qualificados como “recursos patrimoniais” e integram a propriedade privada das entidades particulares ou o domínio privado das entidades públicas (art. 1.º, n.º 2 do mesmo diploma). Registe-se, a este propósito, que nos termos previstos no art. 15.º, que foi alterado pela lei n.º 34/2014, de 19 de junho, se admite o reconhecimento de propriedade privada ou posse sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sendo a competência confiada aos tribunais comuns. Por outro lado, a largura da margem das águas do mar, definida como uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, se, por regra, é fixada em 50 m (art. 11º, n.º 2), ou em largura superior quando tiver natureza de praia, estendendo-se até onde o terreno apresentar tal natureza (art. 11.º, n.º 4), é fixada, nas regiões autónomas, tendo presente a sua específica orografia, em largura inferior sempre que a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente (art. 11.º, n.º 7). A lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, consagra que a titularidade do domínio público marítimo pertence sempre ao Estado (art. 4.º), na esteira da jurisprudência e doutrina constitucional. A lei não reconhece, por conseguinte, um domínio marítimo regional, estabelecendo a titularidade exclusiva do Estado. Trata-se de um entendimento que tem largo apoio nas experiências regionais de direito comparado. Em Espanha, o artigo 132.º, n.º 2, da Constituição de 1978 é claro e inequívoco ao determinar que “são bens de domínio público estatal os que a lei determinar e, em todo o caso, a zona marítimo-terrestre, as praias, o mar territorial e os recursos naturais da zona económica e da plataforma continental”. O art. 14.º do Estatuto da Sardenha, região dotada de autonomia político-administrativa face ao Estado italiano, estabelece que “a região no quadro do seu território sucede nos bens e direitos patrimoniais do Estado de natureza imobiliária e nos bens dominiais com exceção do domínio marítimo”. O art. 32.º do Estatuto da Sicília, região autónoma italiana e que foi a fonte inspiradora dos estatutos das nossas regiões autónomas, determinava que “os bens dominiais do Estado, compreendendo as águas públicas existentes na região, são atribuídas à região, com exceção dos que interessem à defesa nacional ou a serviços de carácter nacional”. A Corte Constituzionale acabou por decidir que, apesar de o domínio público marítimo não ser expressamente excecionado no teor literal do referido preceito do âmbito domínio da Sicília, deveria ser dele excluído dado que se trata de um bem que interessa manifestamente à defesa nacional, no que foi secundada pela doutrina e pelo Conselho de Estado italiano, que se pronunciou no sentido de todo o domínio marítimo interessar a serviços de carácter nacional e, como tal, deveria ser excluído do domínio regional. Aliás, o art. 22.º, n.º 3, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela lei n.º 39/80, de 5 de agosto, alterada pela lei n.º 9/87, de 26 de março, lei n.º 61/98 de 27 de agosto e lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro, é perentório no reconhecimento da natureza estadual do domínio público marítimo, excetuando do domínio público regional “os bens afetos ao domínio público militar, ao domínio público marítimo, ao domínio público aéreo e, salvo quando classificados como património cultural, os bens dominiais afetos a serviços públicos não regionalizados” . No que respeita à delimitação dos bens integrados no domínio público marítimo, de titularidade estatal, o entendimento da jurisprudência constitucional tem sido no sentido de abranger tanto as águas marítimas (quer costeiras, quer territoriais, quer as águas interiores sujeitas à influência das marés) quer as respetivas margens (faixas de terreno contíguas ou sobranceiras à linha que limita o leito das águas), pelo que podemos concluir que a disciplina da lei n.º 54/2005, também neste particular, se limita a concretizar aquela linha jurisprudencial (acs. do Tribunal Constitucional n.º 280/90, n.º 330/90, n.º 315/2014, e, em especial, ac. n.º 131/2003 e ac. n.º 654/2009). Com efeito, inclusive no âmbito do domínio público portuário que constitui pacificamente domínio público regional (dado o facto de o art. 4.º, alínea e) do dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro qualificar os “portos artificiais e docas” como bens do domínio público do Estado e a tendencial titularidade regional dos bens do domínio público situados nas regiões autónomas), assiste-se a uma interpretação jurisprudencial restritiva do conceito de “porto artificial e doca”, circunscrevendo-se o domínio público portuário aos edifícios e infraestruturas de apoio à atividade portuária, com exclusão dos terrenos em que tais edifícios assentam, que integram exclusivamente o domínio público marítimo. Solução que não é evidente atendendo a que o domínio público portuário constitui um conceito autónomo do domínio hídrico e que constitui uma das modalidades do domínio público infraestrutural, que compreende a universalidade ou o conjunto de bens (a rede de infraestruturas) que são qualificadas como dominiais, por opção legislativa, por se destinarem a prosseguir uma finalidade unitária e constituírem o suporte físico artificial do desenvolvimento de determinadas atividades ligadas ao exercício de serviços públicos essenciais. No ac. n.º 654/2009, de 12 de fevereiro de 2010 (processo n.º 668/06), o Tribunal Constitucional rejeitou a tese de que os terrenos em torno dos cais e portos constituiriam bens da Região pelo facto de os portos e cais serem domínio público daquela e tais terrenos constituírem, em conjunto com eles, uma universalidade pública. Procedeu-se, nesta sede, a uma relevante distinção entre a titularidade e a gestão dos bens do domínio público, afirmando-se que a “unidade funcional de um determinado conjunto de bens pode justificar que a gestão da sua utilização caiba a uma só entidade, mas não implica necessariamente a unidade da titularidade dominial do complexo de bens que o integram”. A não regionabilidade da titularidade do domínio público marítimo integrante ou circundante da área territorial das regiões autónomas não arrasta consigo, como consequência forçosa, a insusceptibilidade de transferência de certos poderes contidos no domínio. No ac. n.º 402/2008 do Tribunal Constitucional, na linha do que já era defendido pela Comissão do Domínio Público Marítimo (parecer n.º 5945, de 18/01/2002) esclareceu-se que, desde que “mantida incólume a titularidade do Estado”, estão “constitucionalmente legitimadas formas dúcteis de exploração e rendibilização dos bens dominiais, em cuja definição tenham um papel relevante os poderes regionais”. Uma tal opção encontra apoio claro nos fundamentos e objetivos da autonomia traçados no artigo 225.º, em particular nos objetivos de “desenvolvimento económico-social” e no de “promoção e defesa dos interesses regionais” (n.º 2 do citado artigo). Como decorre inequivocamente da jurisprudência constitucional, mormente do ac. 654/2009, o “ente territorial não titular de determinados bens do domínio público, quando estes se encontrem no seu território […] pode exercer poderes dominiais secundários (concessão ou licença de exploração e uso privativo), mas já não poderes primários (desafetação)”. Já no acórdão n.º 315/2014, esclarece-se que o “reenvio que o artigo 84.º da CRP faz para lei, quanto à definição dos bens integrantes do domínio público, bem como do seu regime, condições de utilização e limites (alínea f) do n.º 1 e n.º 2), consente a separação entre titularidade e o exercício dos poderes característicos do estatuto da dominialidade, o que significa, por outras palavras, que a titularidade do domínio não engloba necessariamente todos os poderes de gestão do bem dominial”. Importa assim distinguir: (i) os poderes primários, i.e., “aqueles que apenas podem ser exercidos pelo titular dominial, sob pena de não se assegurar o fim público a que direta e permanentemente estão destinados”, sendo que, relativamente ao “domínio público marítimo são intransferíveis os poderes que respeitem à integridade e soberania do Estado ou os poderes que sejam incompatíveis com a integração dos bens em causa nesse domínio, designadamente os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio”, mormente os poderes de desafetação do domínio público marítimo; (ii) os poderes secundários, i.e., aqueles que “podem ser exercidos por entidades diferentes do respetivo titular, sem se comprometer aquela finalidade”, nos quais se integram os poderes de “gestão do bem dominial, incluindo o seu aproveitamento ou utilização” relativamente aos quais não há impedimento a que sejam dissociados “do titular do domínio e confiados a outras pessoas coletivas públicas ou a particulares, designadamente concessionários”. Esta separação entre a titularidade e o exercício de poderes de administração sobre os bens do domínio público hídrico está, aliás, expressamente consagrada na lei 54/2005, de 15 de novembro, onde se dispõe que “a jurisdição do domínio público marítimo é assegurada, nas regiões autónomas, pelos respetivos serviços regionalizados na medida em que o mesmo lhes esteja afeto” (art. 28.º, n.º 2).   Ana Gouveia Martins (atualizado a 02.01.2017)

Direito e Política

casas da madeira

A forma violenta como algumas pessoas se desapegam do seu local de origem e da sua casa conduz a um processo de desterritorialização, de perda das suas raízes e dos seus vínculos culturais e emocionais que as leva a buscar meios de retorno. Desta forma, a integração num novo local, concebida como um processo de reterritorialização, implica esse retorno à origem, que se torna fundamental para a construção de uma harmonia dentro da nova realidade. As casas regionais assumem-se, assim, como o espaço e o lugar onde isso acontece, seja dentro do território do país ou no estrangeiro. As casas da Madeira, que se constroem ou surgem em qualquer parte do mundo, regem-se pela ideia fundamental de recriação do espaço vivido, que se transplanta em termos físicos e mentais para outros territórios, estando a sua fruição ligada à sugestão de um retorno a casa ou de um hiato num mundo que não é sentido como o nosso. Desta forma, a casa em si é o retrato da Ilha e das origens, a insistência numa cultura e num território que, embora ilhado e, por isso, isolado, continua a ter um significado especial, sendo capaz de reunir todos aqueles que se encontram na mesma situação de afastamento. Contudo, nem todos manifestam esse espírito de pertença. Na verdade, muitos dos que se consideram enraizados no território de acolhimento preferem identificar-se com o novo espaço que os acolheu e perder, de forma intencional ou não, parte das suas raízes emocionais e culturais. O processo de aparecimento das casas regionais não é linear e nem sempre mereceu o mesmo entendimento por parte do poder político, que ora o acolhe ora encara com desconfiança. O discurso histórico mostra-nos diversos momentos deste processo evolutivo, que se coadunam com a situação política do país. O Estado Novo, entendido como o período que decorre com a afirmação do regime político saído da Constituição que vigorou entre 1933 e 1974, constituiu um momento favorável à criação e elaboração desta identidade regional, que ganha, fora da Ilha, alicerces nas casas regionais existentes na capital do país. Mas a atitude perante as casas regionais ou de Portugal que se constroem nos locais de acolhimento dos inúmeros emigrantes foi diferente, certamente porque aquelas acolhem os oposicionistas ao regime. No caso da Madeira, a maioria das casas nasce sob um signo fundamental para a vivência do arquipélago, definido pelo processo autonómico que ganhou forma a partir da Constituição de 1976 e da transformação do arquipélago numa região autónoma, com governo próprio. Há uma definição do território e um processo de construção da identidade madeirense que diferencia os cidadãos residentes na Madeira dos demais do território nacional. Desta forma, à exceção da Casa da Madeira de Lisboa, as casas que foram surgindo obedecem a esta lógica. Existe um jogo mútuo entre a Ilha e as diversas formas da sua representação configuradas por estas casas. O madeirense emigrante lança as raízes da sua madeirensidade no local de acolhimento e recria, conforme pode, o local de origem, que assume o papel de ponte com o seu mundo local. Por outro lado, os que ficaram na ínsula constroem, no quadro político da autonomia, uma ponte com estas ilhas da Ilha espalhadas pelo mundo. É a Ilha ou arquipélago a aumentar o seu território. O ideal que norteia a criação das casas da Madeira está sempre sinalizado no território da Ilha ou do arquipélago e nos elos de proximidade que existem no território atual de acolhimento dos madeirenses. Os que estão fora olham para a Ilha como uma recordação, com o objetivo do regresso, esperando ter o ânimo para cumprir o sonho de lá retornarem com aquilo que ambicionaram. É em torno desta realidade que se constroem as casas da Madeira em território nacional ou estrangeiro, tal como as diversas instituições que juntaram muitos madeirenses na diáspora. Em qualquer dos casos, estas são um lugar de criação identitária e de expressão de uma comunidade imaginada. Este associativismo emigrante não se resume à motivação do lugar, que acontece com maior acuidade no séc. XX, mas alarga-se a múltiplas motivações que podem levar à união de emigrantes de diversas proveniências, que não apenas a Madeira. Este associativismo do lugar/região é típico do séc. XX e reforça-se em Portugal, de forma evidente, a partir da afirmação do movimento autonómico gerada com a Constituição de 1976, em que se diferenciam, no todo nacional, as regiões autónomas da Madeira e dos Açores. A afirmação das autonomias regionais foi favorável ao desenvolvimento deste associativismo local, muitas vezes incentivado pelas autoridades madeirenses, através de múltiplas iniciativas que visaram congregar os emigrantes madeirenses em torno da sua Região, como foram, desde 1977, o Centro das Comunidades Madeirenses e, em 1984, o I Congresso das Comunidades Madeirenses. A partir de então, a casa da Madeira deixou de ser a casa regional para se afirmar como a casa da autonomia. A existência de uma associação ou casa da Madeira não deriva apenas da existência de uma comunidade de madeirenses, tendo mais que ver com o dinamismo por estes demonstrado em termos associativos. Vários são os motivos que os levam a reunir-se num momento determinado ou a associar-se, de forma permanente, para criar vínculos de solidariedade. O movimento regionalista foi um factor importante no quadro nacional para o aparecimento das casas regionais na capital portuguesa. Assim, em 1905, surge a Casa de Trás-os-Montes e, passados dois anos, a da Madeira. As demais casas da Madeira no território nacional seguem a sequência do dinamismo dos madeirenses no continente português, nomeadamente nas cidades do Porto, de Coimbra e de Faro. Este movimento alarga-se ao território ex-ultramar, com o aparecimento de uma casa da Madeira em Moçambique, em 1937, na então cidade de Lourenço Marques, e, depois, aos Açores, com a casa da Madeira que surge em Ponta Delgada, em 1986. Releve-se que a iniciativa da Casa da Madeira de Coimbra, que nasceu a 10 de maio de 1986, se deveu aos estudantes madeirenses que estudavam nessa cidade. A constituição da comunidade madeirense de Moçambique prende-se com a oportunidade que este país representava para os madeirenses de entrarem na África do Sul. No entanto, nem todos conseguiam atingir o fim ambicionado e acabavam por ficar em Moçambique, o que explica a importância de tal comunidade em Lourenço Marques. Lembremos, a propósito, que D. Teodósio Clemente de Gouveia (1889-1962), natural de São Jorge, foi arcebispo dessa cidade a partir de 1941. Nos diferentes destinos da emigração madeirense, o espírito associativo ganha uma diversidade de expressões, surgindo, assim, associações, sociedades, clubes e irmandades. A questão da origem pode ser um motivo aglutinador, mas muitas vezes estes organismos são manifestações de carácter religioso que marcam a religiosidade madeirense. É o caso das festividades em torno do Espírito Santo ou de alguns oragos das freguesias, ou de momentos especiais do calendário litúrgico. No Havai, destacam-se, e.g., as festas do Espírito Santo e as de N.ª Sr.ª do Monte. Para além disso, também o desporto e os clubes de futebol madeirenses ou nacionais são motivos que fazem reunir os madeirenses, sendo muitas vezes o que os leva a criar elos de união e espaços físicos de convívio em momentos determinados. Há também alguns elementos emblemáticos que acompanham estes momentos de vida associativa, como o folclore, a música e a gastronomia. Por outro lado, no decurso do séc. XIX, as sociedades beneficentes ou de socorros mútuos tiveram uma presença muito evidente na Ilha e fora dela, nas comunidades de emigrantes. Estas associações tinham como objetivo ajudar os pobres e necessitados da comunidade. Todavia, o que unia os seus associados era o ideal fraterno e não a origem geográfica. Vemos, e.g., em Honololu, na Sociedade Lusitana Beneficente de Havai (1882) e na Sociedade de São Martinho (1903), uma predominância de madeirenses. O mesmo espírito norteia a comunidade portuguesa emigrante na Guiana Inglesa, onde as associações assumem um carácter nacional, embora irmanadas no ideal de beneficência. Assim, surgiu, em 1913, a Associação Portuguesa de Auxílio Mútuo e Beneficência e, em 1924, o Portuguese Club. Em Trinidade e Tobago, encontramos o mesmo espírito nas associações criadas, destacando-se o surgimento, em 1905, da Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro e, em 1927, do Portuguese Club. Entretanto, no Curaçau, o espírito associativo dos madeirenses surgiu em torno dos clubes de futebol, com o Madeira Futebol Clube, o Clube Futebol União Português e o Sport Clube Madeirense. Dentro do mesmo espírito, temos as associações de emigrantes nos Estados Unidos. Esta forma de reunião e união acontece por meio de associações recreativas e culturais, clubes desportivos e sociais, fundações para a educação, bibliotecas, grupos de teatro, bandas filarmónicas, ranchos folclóricos, sociedades de beneficência e religiosas, e casas regionais. De entre estas, merece relevo a Associação Protetora da União Madeirense, criada em 1911, tendo como primeiro presidente o madeirense João Gouveia. Em Oakland, na Califórnia, surgiu, em 1913, a Associação Protetora Madeirense do Estado da Califórnia, por iniciativa do madeirense José Amaro de Pita, com uma sucursal em New Bedford. Esta Associação deu auxílio aos madeirenses carenciados residentes na Ilha com o envio de apoio monetário, tendo como seu representante, na Madeira, João da Conceição Teixeira. Já em New Bedford, surgiu, em 1915, o Clube Madeirense do Santíssimo Sacramento, que passou a contar, desde 1979, com um grupo folclórico. Este Clube surgiu em torno das festas do Santíssimo Sacramento, celebradas, pela primeira vez, na igreja da Imaculada Conceição no primeiro fim de semana de agosto de 1915. Esta festa, que era celebrada na paróquia do Estreito da Calheta, foi transplantada para os EUA por iniciativa de quatro emigrantes madeirenses: Manuel d’Agrela, Manuel d’Agrela Coutinho, Manuel Santana Duarte e Manuel Sebastião. No Canadá, a primeira associação relacionada com os madeirenses surgiu em 1953, na cidade de Montreal, mas foi em Toronto que, em 1963, nasceu a Casa da Madeira Community Center. A esta associação foram associados um rancho folclórico criado em 1983 e outro criado em 2011, sendo este último designado de Floristas da Madeira. Com ligação a esta Casa, temos o Canadian Madeira Park, onde habitualmente se realizavam todas as atividades desta associação de madeirenses. Destaca-se ainda a Associação Madeirense de Apoio das Festas de Câmara de Lobos em Toronto, uma associação cultural de oriundos de Câmara de Lobos com um objetivo específico. Por fim, é de mencionar o Grupo Folclórico da Madeira Vancouver, criado na cidade de Vancouver, que foi fundado no ano 2000 por Eleutério Rodrigues. No Brasil, um dos destinos tradicionais da emigração madeirense, a presença insular afirma-se a partir de um dos principais destinos desta emigração no séc. XX – o Estado de São Paulo. Em Santos, porto tradicional de chegada e local onde permaneceram muitos dos madeirenses, surgiu, a 14 de abril de 1934, a Casa da Madeira. Aí apareceu ainda, em 1975, o Rancho Folclórico Típico Madeirense do Morro São Bento. Em São Paulo, surgiu uma associação idêntica, que começou a dar os seus primeiros passos a 17 de outubro de 1967, por iniciativa de um grupo de madeirenses liderados por Jaime de Nóbrega e João da Cruz Nóbrega Correia. Em 15 de junho de 1969, ganhou estatuto institucional a Sociedade Amigos Ilha da Madeira, como o objetivo de divulgar os costumes, as tradições, a cultura e o folclore da Ilha, sendo conhecida como Casa Ilha da Madeira. Na Venezuela, país de forte emigração madeirense, ficou especialmente conhecido o Centro Português de Caracas, mas podemos assinalar associações específicas relacionadas com a Madeira. Assim, temos o Centro Social Madeirense de Valência, que surgiu em 1978, por iniciativa de César Andrade, Agostinho Henriques, Agostinho Nunes e Agostinho Pinto; o Grupo Folclórico Luso Venezolano Pérola do Atlântico, criado em 1982 por Ilídio Adriano Pita; a Academia da Espetada; o Marítimo da Venezuela, equipa de futebol criada em 1957 por António Firmino Barros e Artur Brandão Campos; o Grupo Folklorico Luso Venezolano Jardim da Madeira; a Asociación Centro Atlántico Madeira Club, fundada a 26 de agosto de 1984 por um grupo de portugueses radicados no Estado Lara. Na Austrália, a presença madeirense está assinalada também pelas associações. Em New South Wales, forma-se, a partir de 2002, o Grupo Folclórico Regional da Madeira INC e, ainda, o Portugal Madeira Sydney Social & Cultural Sports Club Ltd. Em Victoria, destaca-se o Madeira Folk Dancing Pérola do Atlântico e, na Austrália Ocidental, a Associação de Nossa Senhora do Monte. Na África do Sul, a presença madeirense acontece de forma especial em Durban, Cidade do Cabo, Joanesburgo e Pretória. Nesta última, temos a Casa Social da Madeira de Pretória, que acolhe um rancho folclórico. Em Inglaterra, a presença madeirense é mais notória em Londres, mas há também comunidades em Manchester e Bormouth. A organização madeirense torna-se visível através do Futebol Clube Santacruzense, criado em 1993, da Associação Empresarial Santana Madeira Londres, criada a 22 de janeiro de 2012, e do Grupo Folclórico Pérola do Atlântico. Em França, merece destaque o Grupo Folclórico Fleurs de Madère.   Alberto Vieira (atualizado a 22.12.2016)

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comunidades madeirenses

A Constituição da República Portuguesa (CRP), na sua versão originária, definia as regiões autónomas como pessoas coletivas de direito público (art.º 229.º); não continha, assim, qualquer preceito que legitimasse o intérprete para eleger o território como seu elemento definidor. Entretanto, a consideração dos condicionalismos geográficos, como elementos que dão fundamento à autonomia, a evidência da individualidade territorial e a sua qualificação como pessoa coletiva de direito público – aproximando-a das outras pessoas coletivas de direito administrativo de base territorial, como a freguesia e o município – fizeram com que rapidamente se vulgarizasse, na doutrina, a ideia de que as regiões autónomas eram entes coletivos de base territorial, isto é, definidas e estruturadas, essencialmente, em função do respetivo território. Quando da revisão constitucional de 1982, tentou-se proceder a uma caracterização correta das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, i.e., conforme à realidade das mesmas. Essa tentativa consistiu fundamentalmente em duas propostas: uma tinha em vista substituir, no n.º 1 do art. 227.º, “condicionalismos” por “características”, e incluir nestas, também como fundamento da autonomia, “as características culturais”; outra tinha como fim eliminar no corpo do art. 229.º a referência a “pessoas coletivas de direito público”. A primeira foi aprovada, mas a segunda não passou. Poder-se-á pensar que se está perante um mero jogo de palavras. Mas não é assim. Com efeito, fundar a autonomia nas características dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, em vez de a fundar nos condicionalismos, tem o objetivo de a desconjunturalizar, transformando-a numa imanência da realidade insular. A referência às características culturais insere nos fundamentos da autonomia o elemento que decisivamente define um povo, que é a sua cultura, e que permanentemente o identifica. E que não se trata de uma mera questão de palavras, prova-o a resistência demonstrada pelos membros da respetiva comissão eventual para a revisão constitucional à introdução daquelas alterações. Numa correta caracterização das regiões autónomas, torna-se claro que, se a Constituição fundamenta a autonomia nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, é porque as regiões autónomas não são apenas o território, mas sobretudo as pessoas, que são o agente ativo ou passivo daquelas características. Esta consideração permite dar um salto qualitativo, que ultrapassa o território como elemento definidor e contempla o povo madeirense na sua plenitude. Desta forma, a autonomia deixa de ser uma questão que apenas diz respeito às pessoas residentes no território das regiões autónomas para passar a estar intimamente ligada a todos os madeirenses, onde quer que se encontrem. E, se a população emigrante é o dobro ou o triplo da população residente no arquipélago da Madeira, esta ideia nada tem de lírico, antes se insere profundamente na realidade do povo madeirense. Só a esta luz se consegue explicar a expectativa com que os madeirenses espalhados pelo mundo vivem a experiência autonómica e o empenho com que participam nela, bem como as tentativas que têm sido feitas para institucionalizar a participação dos madeirenses não residentes nas instituições autonómicas e de criar mecanismos de ligação e apoio às comunidades que, pelo mundo fora, esses madeirenses constituíram e mantêm. A este respeito, tornou-se conhecida a querela acerca da existência de círculos eleitorais de não residentes que, por via dos mesmos, passariam a ter assento nos Parlamentos regionais. A matéria recebeu consagração legislativa no Estatuto Político-Administrativo dos Açores, e foi declarada inconstitucional em relação ao Estatuto Político-Administrativo da Madeira, matéria que será retomada em passo ulterior do presente texto. Alguns receiam que o reforço da autonomia regional afete a unidade do Estado. E não é por acaso que a base territorial das regiões autónomas é veementemente afirmada pelos constitucionalistas de pendor centralista; como não é por acaso que os responsáveis políticos com uma visão centralista da estrutura do Estado português rejeitam energicamente a conceção institucional de região autónoma. Uns e outros ter-se-ão apercebido de que se está perante uma questão de importância fundamental para a adequada caracterização do sistema autonómico português. É importante reter que, no estado atual do direito português nos começos do séc. XXI, há base formal e legitimidade política para defender que a região autónoma é uma pessoa coletiva de base institucional, que diz respeito a todos os madeirenses e seus descendentes, quer residam na Madeira, no Porto Santo, no continente, nos Açores ou no estrangeiro. Erigir o território como elemento definidor da região  autónoma é uma atitude reducionista da própria autonomia, cuja consequência mais imediata é subtrair à jurisdição das instituições políticas regionais os madeirenses não residentes para, de modo centralista, os colocar sob tutela do Governo central. Na realidade, está-se perante pessoas coletivas de base institucional, já que o que é relevante na caracterização da Região Autónoma da Madeira (RAM) não é o território, mas o seu povo, que está disperso pelos cinco continentes. Não há um censo específico que permita quantificar com rigor este universo de Portugueses, mas calcula-se que só no continente português vivam, no começo do séc. XXI, cerca de 300.000  madeirenses, e nas comunidades radicadas no estrangeiro à volta de 600.000. Nesta “madeirofonia” deverão integrar-se também os “madeirodescendentes”, em número elevado, embora impossível de determinar. É este valioso potencial humano que reclama dos órgãos de Governo próprio da RAM uma política para as comunidades madeirenses no exterior. Trata-se de um universo caracterizado pela dispersão, pela dimensão planetária e pela diferenciação. Com efeito, as comunidades madeirenses encontram-se dispersas por vários países, estão presentes nos cinco continentes e cada comunidade tem características próprias que a diferenciam das demais. As centenas de milhares de madeirenses não residentes e as suas comunidades constituem um elemento estrutural e estruturante da RAM. O espírito empreendedor, a abertura a outros povos e culturas e uma fácil integração nas sociedades de acolhimento, sem prejuízo da sua ligação à terra de origem, são características peculiares da maneira de ser dos madeirenses. É, em grande parte, através dos madeirenses residentes no continente português e no estrangeiro que a RAM se afirma no exterior e que se concretiza a vocação universalista e humanista do povo madeirense. O elo mais forte que liga todos os madeirenses entre si, e à sua terra de origem, é a língua portuguesa, a cultura e as tradições madeirenses. No plano jurídico, é preciso respeitar a igualdade de direitos e deveres entre madeirenses residentes e madeirenses não residentes, bem como defender os direitos e legítimos interesses dos madeirenses não residentes face aos ordenamentos jurídicos e às autoridades dos países de acolhimento, e pugnar pela igualdade de tratamento em relação a todos os não residentes, dando uma especial atenção aos jovens, aos idosos, aos hospitalizados e aos detidos. Ao nível da manutenção e reforço dos laços afetivos e culturais com a Região de origem, deve, em todas as circunstâncias, ser aprofundado o amor à pátria madeirense e cultivado o orgulho em se ser madeirense. Os madeirenses não residentes devem ser defendidos junto dos órgãos de soberania, combatendo todo o tipo de discriminação em relação aos outros Portugueses e assegurando a participação das comunidades madeirenses, através das suas estruturas representativas, na definição das políticas a levar a cabo pelos órgãos de Governo próprio, nomeadamente, na política para as comunidades madeirenses no exterior. Do ponto de vista prático, uma política só é eficaz quando dispõe dos instrumentos e meios adequados à sua concretização. A política direcionada às comunidades madeirenses no começo do terceiro milénio carece, antes de mais, de meios financeiros suficientes e de apoios logísticos idóneos. No domínio deste tipo de políticas, é recorrente a exiguidade das dotações orçamentais, pelo que se torna necessário procurar formas de financiamento para além dos apoios oficiais. Quanto aos apoios logísticos e aos instrumentos adequados para levar a cabo esta política, é preciso ter presente o princípio da universalidade: tais apoios e instrumentos devem permitir que as medidas e ações de política sejam acessíveis a todos, esbatendo ao máximo a tentação natural de privilegiar as comunidades que se encontram mais próximas da região de origem. De entre os meios a utilizar, são de privilegiar uma cobertura consular adequada, uma informação atualizada e o mais ampla possível, e um apoio estratégico ao associativismo, tão vulgarizado e atuante no seio das comunidades madeirenses. A cobertura consular é da competência do Governo da República, cabendo aos órgãos de Governo próprio da Região tirar partido dos consulados, que existem em cada país de acolhimento, beneficiando assim as comunidades madeirenses radicadas nas respetivas áreas consulares. Na déc. de 80 do séc. XX, na Venezuela, cujo território é nove vezes maior que o território de Portugal continental, para uma comunidade de cerca de meio milhão de Portugueses, só existia um consulado de carreira em Caracas, com jurisdição sobre a totalidade do território venezuelano e dos territórios autónomos de Curaçau e Aruba. A maior parte dos Portugueses residentes naquela vasta área consular era de origem madeirense e foi devido ao empenho de um secretário de estados das comunidades portuguesas natural da Madeira que se procedeu à abertura de um novo consulado em Valência e à ampliação e modernização das instalações do consulado em Caracas, melhorando-se substancialmente a cobertura consular naquele país, com benefício para todos os Portugueses lá residentes. A informação a fornecer aos madeirenses residentes fora da Madeira não pode ser só de carácter utilitário, mas também de cariz cultural, social, recreativo, desportivo, o mais ampla e atualizada possível. A informação adequada às comunidades madeirenses terá de ser tridirecional, isto é, da RAM para as comunidades, das comunidades para a RAM e para o país em geral, e das comunidades entre si. Só assim se alcança um conhecimento recíproco, que é o suporte indispensável de qualquer universo que se pretenda coeso e solidário. Trata-se de um desiderato facilmente alcançável graças aos múltiplos meios de comunicação proporcionados pela tecnologia. Não será exagerado considerar que este é o instrumento mais eficaz de política junto das comunidades madeirenses no exterior. O apoio ao associativismo, baseado em uma visão estratégica da presença dos madeirenses no mundo, também é relevante. Tal visão consiste em, para além do apoio prestado ao associativismo tradicional, de cunho saudosista e folclórico, promover o associativismo de jovens e de empresários. É neste ponto que reside, em grande parte, o que permitirá dar o salto qualitativo em matéria de política para as comunidades madeirenses. Ao privilegiar o associativismo jovem e empresarial, contribui-se para uma melhor integração dos madeirenses e dos seus descendentes nas sociedades de acolhimento, o que aumentará a importância política, cultural, económica e social das comunidades portuguesas no seio dos países que as acolhem, e garantirá a sua perenidade no futuro. De facto, só os descendentes da primeira geração de emigrantes poderão perpetuar a sobrevivência das comunidades madeirenses nos países de acolhimento. Para isso é necessário que se mantenham ligados à Região dos seus antepassados e vejam permanentemente vivificada a herança cultural e afetiva que os antepassados lhes legaram. O papel da internet, como já se disse, é fundamental, bem como a existência de programas de rádio e televisão nacionais e regionais especialmente dirigidos a jovens. O recurso às tecnologias de comunicação não dispensa, porém, o conhecimento presencial de lugares e pessoas, através da criação e manutenção de mecanismos que permitam intensificar o intercâmbio de conhecimentos e experiências, através da celebração de protocolos ou parcerias, e da obtenção de apoios públicos e privados que o propiciem. Deve realçar-se, neste contexto, a importância que assume o intercâmbio ao nível do ensino superior, dada a sua repercussão em termos de um maior protagonismo dos jovens descendentes de madeirenses nas sociedades de acolhimento, e a organização de iniciativas específicas que permeiem os jovens participantes por razões de mérito, dando-lhes a conhecer a terra dos seus antepassados. Outro instrumento fundamental a ter em conta é o ensino à distância, tirando partido das plataformas comunicacionais para criar salas de aula virtuais para esse efeito. Ponto fulcral desta política dirigida aos jovens é a preservação e divulgação da língua portuguesa. O português é uma língua estratégica, pelo número de pessoas que a falam em vários países de diferentes continentes. Além disso, é o meio de comunicação privilegiado no seio do chamado mundo lusófono, e constitui o mais poderoso meio de ligação à pátria portuguesa e à região de origem dos portugueses que vivem no estrangeiro, e dos seus descendentes. Daí que a aprendizagem do português deva estar entre as prioridades da política para as comunidades madeirenses. Além do associativismo juvenil, deve estimular-se o associativismo empresarial, não só pela importância de que se reveste o poder económico dos empresários madeirenses nas economias das sociedades de acolhimento e pelas vantagens que daí podem resultar para o desenvolvimento económico da RAM, mas também pelo apoio financeiro que podem dar às iniciativas culturais, sociais e filantrópicas das comunidades de madeirenses, e às candidaturas de madeirenses e seus descendentes a cargos de responsabilidade política nos diferentes níveis da organização do poder político dos Estados onde residem. É conhecido o sucesso empresarial de muitos madeirenses nos países de acolhimento e a repercussão que isso tem na internacionalização da economia portuguesa e no desenvolvimento da sua Região de origem. Foi com o objetivo de reconhecer e aproveitar esse potencial económico que, no início da déc. de 90 do séc. XX, foi criada a Confederação Mundial dos Empresários das Comunidades Portuguesas, e que, durante as décadas que se seguiram, os órgãos de Governo próprio da RAM criaram e mantiveram condições atrativas para que os empresários madeirenses dispersos pelo mundo investissem na sua terra natal. Em termos estratégicos, os empresários, graças ao seu poder económico, também podem desempenhar um papel decisivo na afirmação da presença cultural das comunidades madeirenses no estrangeiro, reforçando a importância global dessas comunidades nos países de acolhimento, quer sob a forma de mecenato, quer sob a forma de simples ajudas financeiras avulsas. O quadro jurídico-constitucional exclui dos poderes das regiões autónomas os chamados atributos da soberania ou poderes soberanos: política externa, defesa, segurança interna e justiça. Mas não em absoluto, já que, para além do direito de audição junto dos órgãos de soberania sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como em matérias do seu interesse específico (art. 227.º, n.º 1, alínea v), da CRP), e do direito de participar no processo de construção europeia (alínea x) do mesmo artigo), os órgãos de Governo próprio têm o poder de participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que diretamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes (alínea t) do n.º 1 do art. 227.º da CRP). No âmbito da política para as comunidades madeirenses, estes poderes revestem-se de particular importância, quer no que toca à proteção consular, quer na negociação de tratados e convenções internacionais com interesse para a situação dos madeirenses residentes no estrangeiro, quer no que respeita, em geral, à política do Governo central para as comunidades portuguesas. Trata-se, assim, de um raro domínio em que a RAM participa na execução da política externa do Estado português. O regresso definitivo dos madeirenses que residem no estrangeiro é outro aspeto que não pode ser descurado numa política direcionada às comunidades madeirenses. Trata-se de um fenómeno incontornável, cuja dimensão varia consoante a situação interna dos países de acolhimento. O regresso definitivo de tais cidadãos confronta os poderes autonómicos com problemas específicos, nomeadamente no que toca à inserção escolar de crianças e jovens, à integração no mercado de trabalho, a apoios de natureza social e à aplicação de poupanças. Isto significa que os responsáveis aos níveis político, social e económico devem contribuir para a criação de condições adequadas de reinserção, sob pena de o regresso à terra natal se configurar como uma segunda emigração. A participação dos madeirenses não residentes na vida política, cultural, social e económica da RAM é desejável e deve ter maior expressão. Para o efeito, devem ser legalmente reconhecidas as estruturas representativas das comunidades madeirenses e regulado o modo de participação na conceção e execução dos programas de governação regional e autárquica. A forma como se constituem as estruturas representativas no seio das comunidades madeirenses é outro assunto que não pode ser descurado. A este respeito, a lei deve assegurar que a representação seja genuína, democrática e interclassista. Além das estruturas representativas dos madeirenses residentes fora da Região, devem ser criadas e mantidas instituições, de natureza pública ou privada, que constituam uma presença permanente e visível das comunidades madeirenses no seio da sociedade madeirense, sediadas na cidade capital da Região. A título de exemplo, refira-se a necessidade de existência de um fórum das comunidades madeirenses e de uma fundação das comunidades madeirenses, inexistentes no começo do séc. XXI. O fórum disporia dos seguintes espaços: um núcleo museológico, onde estaria presente a memória da saga das migrações madeirenses ao longo dos tempos e o espólio de individualidades madeirenses com responsabilidades políticas na área das comunidades portuguesas e/ou madeirenses; um núcleo cultural, onde estariam patentes obras relacionadas com a temática das comunidades, resultantes da produção intelectual e artística de madeirenses residentes no estrangeiro, ou até residentes na Região, e onde se levariam a cabo iniciativas de natureza cultural; e um núcleo de apoio aos Madeirenses residentes fora da Região, que compreenderia um universo de serviços de resposta às múltiplas necessidades dos não residentes, e dos regressados definitivamente, perante as entidades e serviços da administração pública autónoma, os municípios da Região e as entidades privadas. O outro exemplo consiste em criar uma entidade que seria a fiel depositária e a gestora dos donativos (feitos a título de mecenato ou outro), das doações e das deixas testamentárias de madeirenses que perecem fora da Região ou de residentes – ajudas e patrimónios que seriam administrados de acordo com o interesse dos madeirenses regressados em situação de emergência social, em obras de solidariedade social e em iniciativas de dignificação da presença dos madeirenses no mundo. A participação política nas eleições regionais, legislativas e autárquicas é recomendável. Os madeirenses não residentes, dada a sua dupla cidadania, portuguesa e europeia, têm o direito de participar nas eleições de âmbito europeu e de âmbito nacional, nos termos da respetiva legislação. A este respeito, merecem especial destaque a eleição do Presidente da República e a eleição dos deputados à Assembleia da República. Por tudo quanto fica exposto, é imperativo concluir que a existência de comunidades madeirenses radicadas fora do território da Região, com a importância que assumem, na Região e nos países que as acolhem, exige dos responsáveis políticos a definição de uma política específica, que abranja as múltiplas vertentes em que tal realidade se desdobra, adequada às especificidades de todas e de cada uma dessas comunidades e com visão estratégica e sentido de responsabilidade face aos interesses vitais da RAM.   Manuel Filipe Correia de Jesus (atualizado a 30.12.2016)

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centro de química da madeira

O Centro de Química da Madeira (CQM) foi criado em 2004, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Este projeto nasceu da vontade de um punhado de investigadores que aceitaram o desafio de criar, na Universidade da Madeira e para a Região, um centro de investigação de qualidade internacional nas áreas da química e da bioquímica. O CQM foi, desde a sua criação, o CQM auditado regularmente por painéis internacionais de avaliação, sendo os seus relatórios de atividades públicos e os resultados mensuráveis através de critérios internacionalmente aceites. Os órgãos de governo emanam da vontade dos investigadores que constituem o Centro, sendo o respetivo coordenador eleito por voto secreto dos seus membros seniores, e os resultados do domínio público. Para além disso, o Centro cumpre as regras de contratação pública e as leis em vigor. O financiamento do CQM, que tem sido obtido através de concursos altamente competitivos, provém, fundamentalmente, da FCT e de fundos europeus. Graças ao trabalho efetuado nas vertentes de investigação, desenvolvimento, inovação, formação de recursos humanos, e apoio e serviços às empresas, bem como na divulgação da ciência, o CQM é, no início do séc. XXI, uma referência para a Madeira e para o país. Tendo por base a experiência e o conhecimento do pequeno grupo de investigadores doutorados que estiveram na sua génese, o CQM cedo definiu como estratégia de desenvolvimento uma forte ligação às necessidades científicas e de formação da Região, procurando sempre, nas parcerias e na internacionalização, a janela de oportunidade para o reconhecimento e para a complementaridade do trabalho produzido. Assentando em dois grupos de investigação interdisciplinares: “Produtos Naturais” e “Materiais”, o CQM é o elemento central de promoção e dinamização da investigação, do desenvolvimento e da inovação em química e bioquímica na Região Autónoma da Madeira, desenvolvendo a sua atividade nas seguintes áreas: Química Analítica, Química Alimentar, Saúde, Materiais, Modelação Molecular, Nanoquímica e Fitoquímica. No final de 2014, o CQM era constituído por 57 investigadores, 15 dos quais eram doutorados; outros 15 investigadores tinham o mestrado, 11 eram estudantes de doutoramento e 14 estudantes de mestrado; do total, 22 % eram investigadores estrangeiros e 54 % do sexo feminino. De acordo com o estudo bibliométrico realizado pela FCT a todas as unidades de investigação nacionais, no período de 2008-2012, a produtividade do CQM foi uma das mais altas do país; além disso, nos critérios: número de citações por investigador a tempo inteiro (full-time equivalent researcher), impacto, e publicações mais citadas, o CQM destaca-se entre todos os centros de investigação portugueses. Nos seus primeiros 10 anos de existência, o CQM estabeleceu e fortaleceu parcerias, não só no espaço português e da Macaronésia, como na China, Índia e Brasil, destacando-se a constituição de protocolos ou colaborações com várias instituições científicas e laboratórios. Tendo por unidade de acolhimento o CQM, foi criada na Universidade da Madeira a primeira cátedra em Nanotecnologia do país. Em resultado deste projeto, a Universidade da Madeira assinou o primeiro protocolo com uma Universidade Chinesa (Universidade de Donghua – Xangai), começou a receber alunos chineses de doutoramento e mestrado para realizarem estágios no CQM, e os investigadores do CQM passaram a visitar regularmente a China para desenvolverem trabalho de investigação. Desta intensa atividade científica conjunta resultou a publicação de vários trabalhos em revistas de elevado fator de impacto, e ainda um aumento do número de alunos estrangeiros, quer no Mestrado em Nanoquímica e Nanomateriais, quer no Doutoramento em Química da Universidade da Madeira. A localização específica do Centro de Química da Madeira na Região é uma característica inerente de apresentação do próprio Centro. A investigação desenvolvida no CQM está, por isso, prioritariamente ligada à comunidade que integra. Desta forma, há uma forte relação entre o CQM e as entidades regionais, como o hospital, o governo e várias empresas locais. As atividades educativas, como o “Ciência Viva nas Férias”, “A Química é Divertida” e os “Estágios de Verão”, têm sido ao longo de vários anos um importante ponto de contacto com as escolas da região e com a população, a que se juntou em 2015 o projeto “Bridging the Gap”. As atividades do CQM permitiram a formação de vários jovens investigadores madeirenses, tendo muitos deles permanecido a trabalhar em empresas da Região. As atividades de investigação e de inovação, além da participação em projetos internacionais, contribuíram para colocar a Madeira e o Porto Santo numa posição de destaque, seja pela divulgação e valorização dos produtos da região, seja pela atração de investigadores e estudantes internacionais, seja ainda pela obtenção de fundos nacionais e internacionais que fomentam a economia regional. No que concerne à internacionalização, o Centro de Química da Madeira tem procurado a excelência e o profissionalismo em todos os domínios da sua atuação, captando conhecimento externo e dinamizando atividades que levam ao enriquecimento dos seus investigadores. O estabelecimento de protocolos e intercâmbios com diferentes universidades – como a Universidade de Nova Delhi (Índia) e a já referida Universidade de Donghua (China) –, a existência da Cátedra em Nanotecnologia, a visita frequente de conferencistas e professores estrangeiros (com a consequente troca de experiências com os investigadores do Centro), a captação de estudantes e investigadores de outros países, e a possibilidade de o Centro oferecer condições para que os investigadores nacionais tenham experiências noutros países e conheçam outra realidade, são pontos fortes que apoiam a contínua internacionalização do trabalho realizado no CQM. A possibilidade de desenvolver colaborações cada vez mais estreitas com entidades internacionais enriquece e revitaliza a investigação no Centro, permitindo aconselhamento científico externo, e fazendo com que a oferta formativa que o CQM disponibiliza seja mais abrangente e a investigação mais competitiva. Após os primeiros 10 anos de existência e passada a fase da criação, o CQM foi colocado perante o desafio de crescer e se sustentar, reforçando o forte compromisso social através da investigação e dos programas educacionais, aumentando a massa crítica do Centro com um maior número de investigadores seniores, dando continuidade ao programa de internacionalização com colaborações capazes de exponenciar o impacto do CQM. No domínio educacional, o objetivo é garantir um ambiente inovador, preparando os estudantes para se tornarem investigadores e empreendedores de excelência, proporcionando-lhes as melhores condições para poderem ter sucesso no mundo empresarial e académico. Ao nível da investigação, o plano estratégico do CQM para o período de consolidação assentou no desenvolvimento de novas abordagens analíticas para aplicação no ramo alimentar e no controlo de qualidade, na identificação precoce de biomarcadores característicos de diferentes doenças, na identificação de compostos moleculares com potencial atividade biológica, no desenvolvimento de novos nanomateriais e sensores para aplicações biomédicas, com especial relevo para as doenças emergentes e para as doenças ressurgentes (malária e dengue). O Centro de Química da Madeira tem a missão de servir a comunidade investigando, desenvolvendo a Região e o país, formando e criando emprego para o mundo e, por isso mesmo, o conhecimento acumulado no CQM destina-se a todos e encontra-se ao serviço de todos.   João Rodrigues (atualizado a 29.12.2016)

Física, Química e Engenharia Educação

exílio

“Exílio” (lat. exilium) significa banimento, desterro ou degredo, sendo o estado de ter sido expulso e estar longe da própria casa, cidade ou nação, podendo assim ser definido também como a expatriação, voluntária ou forçada, de um indivíduo. Alguns autores utilizam o termo “exilado” no sentido de refugiado, embora esta última situação se enquadre somente no quadro de autoexílio ou exílio voluntário, como aconteceu na Madeira no período do absolutismo miguelista. No contexto da Madeira, a situação de exílio, ao contrário da situação de asilo, que pressupõe a ida de elementos nessa situação para a Ilha, aponta para a expulsão de elementos madeirenses da sua casa ou da sua terra. Além de pessoas, pode haver também governos em exílio, como o do Tibete face à invasão do seu território pela China, ou mesmo nações em exílio, como foi o caso dos judeus, exilados na Babilónia no séc. IV a.C. e, depois, após a destruição de Jerusalém, noutros locais, no que ficou conhecido como diáspora. Tal foi também, entre 1078 e 1375, o caso da Arménia, que, depois da invasão do seu território por tribos seljúcidas, se exilou na baixa da Anatólia, na posterior Turquia, formando um novo reino. O termo não tem sido extensivo à deslocação da corte portuguesa para o Estado do Brasil, até então vice-reino, por se entender que se manteve em território nacional. Tal território foi inclusivamente elevado a reino, passando D. João VI, a partir de 16 de dezembro de 1815, a intitular-se Rei de Portugal, Brasil e Algarves, reino que, a partir de 13 de maio do ano seguinte, passou a ter armas próprias. Alguns indivíduos, sentindo-se ameaçados ou vítimas de perseguição política, racial ou religiosa, podem igualmente procurar exílio por iniciativa própria em outros locais ou países, sem que tenha havido qualquer ato legal ou jurídico para tal. Costuma chamar-se a essa atitude autoexílio ou exílio voluntário, embora essa posição seja, na generalidade, desvalorizada pelas autoridades no poder por não configurar um exílio imposto, ou seja, oficial, não sendo assim facilmente detetada na documentação. Somente em meados do séc. XVIII se pode escrever concretamente sobre situações de exílio na Madeira, pois que até então não havia uma concreta consciencialização política que permitisse equacionar tais casos. Porém, já nessa altura ocorreram inúmeras situações de degredo, mas por processos judiciais e não políticos ou religiosos, como na contemporaneidade. Ao analisarmos, e.g., a documentação da Inquisição, constatamos que, nos finais do séc. XVI, terá havido uma forte corrente de autoexílio por parte da comunidade de cristãos-novos madeirenses, quer para Amesterdão, quer para o Brasil. Tal não se terá devido a motivos especificamente religiosos, mas ao medo de futuras denúncias relativas à sua situação, pelo que, instalando-se na Holanda, logicamente acabariam por professar o judaísmo. A ilha da Madeira foi visitada, nos finais do séc. XVI, entre 1591 e 1592, pelo inquisidor Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1550-1614), que, entre 1600 e 1614, foi bispo de Angra, tendo sido denunciadas quase 200 pessoas e organizados quase 100 processos, na base dos quais se viria a organizar depois o “Rol dos Judeus e seus Descendentes”. Em 1618, voltou a haver nova visitação, então a cargo de Francisco Cardoso de Torneo, deputado do Tribunal de Coimbra, que terá ficado surpreendido com a escassez de denúncias por judaísmo na Madeira. Assim, a 23 de outubro de 1623, foi à Inquisição de Lisboa Francisco Gomes Simões, cristão-velho, piloto de nau e morador na Madeira, para informar que, tendo partido da Madeira para a Flandres cerca de 5 anos antes, vira ali muitos portugueses fugidos do reino, que lá viviam como judeus. Francisco Simões denuncia cerca de uma dezena de pessoas, entre as quais três que tinham vivido na Madeira: “porquanto ele denunciante partindo das ilhas para a dita cidade de Amesterdão, o senhor Francisco Cardoso, inquisidor, que então visitava as ditas ilhas, lhe encomendou que fizesse na dita cidade diligências sobre as pessoas de nação que para ali eram fugidas, de que ele, denunciante, as fez muito largas e lhas mandou das ditas ilhas” (ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n.º 202, fl. 301). O autoexílio em questão dos três cristãos-novos detetado nos inícios do séc. XVII era, assim, perfeitamente residual, o mesmo se passando nos dois séculos seguintes, ainda que existissem sempre informações pontuais sobre o autoexílio da chamada gente de nação. Nos meados do séc. XVIII, com a centralização do poder régio e a ação do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), existem casos de exílio por razões políticas, embora à data não fossem naturalmente assim apresentados. O referido governador, e.g., mandou prender e degredar para o norte da Ilha o P.e João José Bettencourt de Sá Machado (1707-1781), que, embora mulato e filho de uma escrava, frequentara a Universidade de Coimbra, fazendo-se inclusivamente acompanhar de um criado branco. O padre afrontara, em várias reuniões, as despóticas diretivas do governador, alvitrando que, como capitão-general, a sua ação se deveria restringir à organização militar e pouco mais. Estas opiniões valeram-lhe o desterro do Funchal, não se cansando o governador de repetir que o “soberbo, arrogante e dissoluto clérigo”, “pardo por nascimento, como filho que é de uma preta”, afrontava as suas ordens (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 4804 e 4805). O clérigo em causa era meio tio-avô de Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1786), levando a família a intervir a seu favor na corte de Lisboa. O Gov. João António de Sá Pereira tomou idêntica atitude com o Cón. Pedro Nicolau Acciauoli e com o Cón. António Acciauoli, assim como com o P.e Luís Spínola, todos enviados para Lisboa sob escolta do sargento-mor, o que levou o intendente Pina Manique (1733-1805) a investigar a atitude do governador, ouvindo o sargento-mor a esse respeito. O clero madeirense nem sempre se pautou pela contenção devida ao seu ministério. Note-se, e.g., que, tendo-se reformado o P.e António Maria do Sacramento, capelão da infantaria de guarnição da Madeira, propôs-se a nomeação do P.e Francisco José da Silva. No entanto, como expôs para Lisboa o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1798) (Coutinho, D. Diogo Pereira Forjaz), “algum tempo depois da expedição desta proposta, ele se ausentou fugitivamente desta ilha, por se lhe imputar o crime de esperar traiçoeiramente um homem” e o tentar assassinar à espadeirada (ABM, Governo Civil, liv. 519, fls. 141v.-142). O padre, entretanto, não voltou à Madeira, acabando o governador por ter de apresentar outro para o lugar. O referido exílio do P.e Bettencourt de Sá Machado para o norte da Ilha não foi caso único. Na complexa situação da ocupação inglesa de 1801 a 1802, o Gov. José Manuel da Câmara (c. 1760-c. 1825), em 1803, chegou a exilar o bispo D. Luís Rodrigues de Vilares (c. 1740-1810) para o Santo da Serra. O bispo teria tido reuniões secretas com o cônsul inglês e com outros elementos dados como maçons, pelo que, em junho de 1803, o governador comunicou tal situação para Lisboa, fixando-lhe residência no Santo da Serra e proibindo-o de entrar no Funchal. A decisão foi revogada pelo Governo de Lisboa num curto prazo de meses, a 22 de agosto, mas a situação de conflito entre as duas autoridades não deixou de piorar, pelo que acabaram por ser obrigados a regressar a Lisboa em navios separados. Na Madeira, a situação complicou-se nos finais do séc. XVIII com a verdadeira guerra levada a efeito pelo bispo do Funchal, D. José da Costa Torres (1741-1813), contra as lojas maçónicas (Maçonaria). O bispo arvorou-se em defensor dos interesses da Coroa e do Estado, posição que, prudentemente, não quis assumir o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, perseguindo o prelado, feroz e primariamente, os elementos que entendia ligados à Maçonaria. O bispo perseguiu a tal ponto os presumíveis maçons do Funchal, em princípio com o tácito acordo do governador e até com ordens emanadas de Lisboa, que famílias inteiras tiveram de abandonar a Madeira. D. José da Costa Torres exorbitou, assim, a tal ponto as ordens recebidas, que o próprio Governo central teve que intervir nos excessos praticados pelo prelado, ordenando-lhe que soltasse grande parte dos acusados e “recomendando-lhe a maior moderação no castigo dos delinquentes” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 918). A perseguição envolveu civis, militares e eclesiásticos, citando-se em documento oficial que, inclusivamente, “demitira, suspendera e prendera, por castigo alguns eclesiásticos” (SILVA e MENESES, 1998, I, 326), pelo que, tendo já sido transferido para Elvas, foi violentamente levado da sua residência privada, então na Penha de França, para o embarcarem para o continente. A memória das lojas maçónicas madeirenses manter-se-ia na corte de Lisboa. Dissolvidas as Cortes, derrogada a Constituição de 1822 e restabelecido o Governo absoluto em julho de 1823, a Madeira era de novo assolada por uma alçada. Em causa estavam as questões das lojas maçónicas, dos vagos mas emergentes partidos políticos (Partidos políticos) e das ligações às ideias liberais, tudo indiciando que os madeirenses queriam subtrair-se à Coroa portuguesa e ligar-se à Inglaterra. Num breve espaço de tempo, havia mais de uma centena de presos, embora só viesse a ser condenada uma dezena deles. De qualquer forma, eram muitos os indiciados e vários saíram da Madeira. A Ilha veio, assim, a ser desapropriada de muitos dos seus principais quadros, entre morgados, funcionários públicos, cónegos e vigários, escritores, militares de todas as patentes, etc. Tal alçada não seria, infelizmente, a última, pois, com a tomada de poder pelo infante D. Miguel (1802-1866), em 1828, e conquistada a Ilha pelas forças absolutistas, nova alçada era enviada à Madeira, levando à prisão quase duas mil pessoas acusadas de “malhados” e maçons. Num curto espaço de tempo, a Ilha perdia, de novo, exilados para Cabo Verde (Cabo Verde), Angola e Moçambique, parte dos seus principais quadros sociais e económicos, militares, administrativos e religiosos. Muitos deles não voltariam à Madeira, optando por ficar em Londres e, depois, no continente, havendo uma parte que optou por emigrar para o Brasil. Ao longo dos sécs. XIX e XX, a Madeira foi um dos principais locais de exílio das várias revoltas políticas ocorridas no continente. Na sequência, e.g., da Revolta de Torres Vedras, a 4 de fevereiro de 1844, foram enviados para a Madeira 23 dos insurgentes, entre advogados, eclesiásticos e militares. Os primeiros deram entrada na fortaleza do Ilhéu a 20 de abril, e os seguintes na do Pico, mas todos vieram a ser colocados em liberdade após o malogro da Revolta. Também ao Funchal chegavam, a 8 de maio de 1919, os prisioneiros políticos da Revolta de Monsanto, a bordo do vapor África, da Empresa Nacional de Navegação, o qual fora arvorado em transporte de guerra. Os deportados monárquicos, em número de 289, foram acompanhados de uma força da Marinha, desembarcando três dias depois e sendo instalados no Lazareto de Gonçalo Aires. Não obstante as precauções, no dia 3 de junho deu-se pelo desaparecimento de oito prisioneiros, sabendo-se depois que tinham chegado a Las Palmas, na lancha rápida Glafiberta, pertencente ao sportsman Humberto dos Passos Freitas (1893-1926) (Freitas, Humberto dos Passos), que preparara a evasão. A situação mais complicada veio a ocorrer com a Revolta do Porto, de 1927, na sequência da qual uma série de militares foi para a Madeira. Embora deportados, estes gozavam de uma certa liberdade de movimentos e de contactos, podendo alguns estar por detrás do movimento popular conhecido como Revolta das Farinhas, entre 4 e 9 de fevereiro de 1931 (Revolta das Farinhas). A ditadura destacou então para a Madeira uma força especial, sendo os oficiais subalternos da mesma quem desencadeou, a 4 de abril de 1931, a chamada Revolta da Madeira (Revolta da Madeira). Na sequência deste acontecimento, constituiu-se um Governo autónomo com os principais militares deportados na Ilha, mas também civis, como Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969), que fora ministro das Finanças do Governo de José Domingos dos Santos (1885-1958), nos finais de 1924 e inícios de 1925. A ditadura responderia um mês depois, quase com todas as forças disponíveis no continente, inclusivamente hidroaviões, recuperando a situação, tendo então os principais revoltosos sido deportados para Cabo Verde e Moçambique. O Ten. Manuel Ferreira Camões (1898-1968) e o Ten. Manuel Silvio Pelico de Oliveira Neto (c. 1888-1953) haviam de se radicar na ilha de S. Nicolau, em Cabo Verde, lugar onde continuaram a ser recordados (Cabo Verde). Deportados da Revolta da Madeira em Cabo Verde. 1932. Arquivo Rui Carita Pela Madeira tinham, entretanto, passado exilados internacionais de grande destaque, como, em 1921, o ex-Imperador da Áustria, posteriormente designado por beato Carlos de Habsburgo (1887-1922), acompanhado da família. Depois de breves dias na Vila Vitória, anexa ao Reid’s Palace Hotel, instalou-se na Qt. do Monte (Quinta do Monte), onde viria a falecer de pneumonia dupla a 1 de abril de 1922, sendo os seus restos depositados na igreja de N.ª Sr.ª do Monte, onde permaneceram. Estaria também alguns dias no Reid’s Palace Hotel, nos finais de 1959, o Gen. Fulgêncio Batista (1901-1973), que havia sido derrotado pela Revolução Cubana em janeiro desse ano. Mais tarde, o Funchal ainda seria local de exílio dos principais governantes portugueses afastados com o pronunciamento militar de 25 de abril de 1974: o ex-Presidente da República Américo de Deus Rodrigues dos Reis Thomaz (1894-1987), o ex-presidente do Conselho José das Neves Alves Marcello Caetano (1906-1980) e os ex-ministros Joaquim Moreira da Silva Cunha (1920-2014) e César Moreira Baptista (1915-1982).   Marcello Caetano e Américo Thomaz na Madeira. Comércio do Funchal.01.05.1974. Arquivo Rui Carita   Declaração de Entrega dos Ex-membros do Governo. 26.05.1974. Arquivo Rui Carita           Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

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tutela administrativa

A figura jurídica da tutela representa, no âmbito do direito administrativo, uma forma de controlo administrativo que uma pessoa coletiva pública, através dos seus órgãos considerados legalmente competentes para o efeito, pode exercer sobre outra pessoa coletiva pública. Esta figura jurídica releva particularmente em ordenamentos jurídicos que consagram um sistema de organização administrativa descentralizado, pressupondo a existência de diversas pessoas jurídicas públicas. A tutela administrativa implica uma relação entre duas pessoas coletivas públicas, em que uma tem a posição de entidade tutelar e a outra de entidade tutelada. No âmbito dessa relação, a entidade tutelar acompanha e verifica o desempenho funcional da entidade tutelada, promovendo ou concorrendo para a adequação ou correção desse desempenho. A existência de uma relação tutelar entre duas pessoas coletivas públicas não se presume, dependendo de lei que, de modo inequívoco, a preveja. Estando prevista legalmente, só acarreta para a entidade tutelar os poderes sobre a entidade tutelada que resultarem, expressa ou implicitamente, da lei, não se admitindo a consagração tácita da tutela ou dos poderes tutelares respetivos. Acresce que, por definição, o legislador, ao consagrar um regime de tutela administrativa de uma pessoa coletiva pública sobre outra, deverá no limite fazê-lo de tal modo que daí não resulte a anulação da autonomia da entidade tutelada, sob pena de ficar em causa a sua personalidade jurídica e de, consequentemente, deixar de ser possível falar de uma relação entre entidades distintas, como é próprio da tutela. As limitações que por essa via se impuserem à autonomia da entidade tutelada devem restringir-se ao estritamente necessário para que se realizem os fins que o ordenamento jurídico considera que a podem justificar. Esta figura jurídica não se confunde com outras que relevam também para o direito administrativo. Assim, distingue-se desde logo da hierarquia administrativa, porque esta toma como referência uma relação entre órgãos de certa pessoa coletiva pública e não – como é próprio da tutela administrativa – uma relação entre distintas pessoas coletivas públicas. Distingue-se também da superintendência administrativa, na medida em que esta se traduz numa interferência juridicamente relevante de uma pessoa coletiva pública na gestão de uma outra, correspondendo tal interferência não a uma situação de mero controlo intersubjetivo, como é próprio da tutela, mas antes, especificamente, ao exercício de poderes tais como os de dirigir orientações, de emitir diretivas ou de solicitar informações aos órgãos dirigentes de outra pessoa coletiva pública sobre os objetivos a atingir na gestão desta e sobre as prioridades a adotar na respetiva prossecução. A tutela administrativa também não se confunde com a figura da fiscalização administrativa sobre entidades privadas que exerçam poderes públicos que é exercida por pessoas coletivas públicas. Neste caso, a diferença está em que a tutela administrativa pressupõe uma relação entre pessoas coletivas públicas, sendo que, diferentemente disto, nesta outra figura agora em referência está presente uma relação entre uma pessoa coletiva pública e uma entidade privada. Noutro aspeto, cabe referir que a tutela administrativa pode ter expressões muito distintas, variando consoante, nomeadamente, o seu alcance finalístico e material ou ainda em razão dos poderes de controlo que se lhe associam. A tutela administrativa, em razão das finalidades a que se vincula, pode configurar-se como tutela de legalidade ou como tutela de mérito, envolvendo, no primeiro caso, um controlo do cumprimento das determinações legais por parte da entidade tutelada e, no segundo caso, um controlo sobre a conveniência e a oportunidade dos comportamentos realizados pela entidade tutelada. Por sua vez, considerando o seu alcance material, distingue-se a tutela administrativa stricto sensu da tutela administrativa financeira: a primeira tem incidência sobre a autonomia administrativa da entidade tutelada; a segunda interfere com a autonomia financeira da entidade tutelada. Com referência aos poderes abrangidos, podem ainda ser identificados os seguintes tipos de tutela administrativa: tutela integrativa, em que o controlo administrativo se concretiza por via da aprovação ou da autorização da prática de determinados atos pela entidade tutelada; tutela inspetiva, que se exprime no poder de a entidade tutelar averiguar da regularidade da atuação da entidade tutelada; tutela sancionatória, que traduz o poder de aplicar sanções que se devam fazer corresponder a irregularidades verificadas no funcionamento da entidade tutelada; tutela revogatória, que envolve o poder de fazer extinguir os efeitos de regulamentos e/ou atos administrativos produzidos pela entidade tutelada e tutela substitutiva, que implica o poder de a entidade tutelar praticar atos legalmente devidos, em caso de inércia do órgão responsável da entidade tutelada. No que respeita particularmente ao ordenamento jurídico português vigente em 2016, importa ter em consideração que a Constituição, no n.º 2 do seu art. 267.º, determina que a lei estabelecerá adequadas formas de descentralização administrativa, devendo tal ocorrer sem prejuízo, nomeadamente, dos poderes de tutela dos órgãos competentes. Cabe depois esclarecer como é concebida a tutela administrativa nas situações de descentralização territorial, associativa e institucional operadas no ordenamento jurídico português. Neste sentido, com referência à descentralização territorial, impõe-se distinguir entre a que respeita às Regiões Autónomas e a que se relaciona com as autarquias locais. Quanto à descentralização em favor das regiões autónomas, será de relevar que a Constituição não prevê que seja acompanhada da consagração de correspondentes poderes de tutela estaduais. Tal descentralização é de natureza político-administrativa e não meramente administrativa, entendendo-se, por isto, que não se aplica às regiões autónomas a previsão sobre tutela administrativa contida no citado n.º 2 do art. 267.º da Constituição. Será assim de entender que, por falta de base constitucional, não será admissível a consagração, por via estatutária ou outra via legislativa ordinária, de tutela estadual sobre as Regiões Autónomas. A propósito da descentralização relativa às autarquias locais, diferentemente, a Constituição determina, no n.º 1 do seu art. 242.º, que sobre estas será exercida tutela, a qual consiste estritamente na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, sendo exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei. A tutela administrativa a exercer sobre as autarquias locais é, neste sentido, apenas, uma tutela inspetiva de legalidade, não cabendo aos órgãos tutelares, desde logo, o poder de apreciação do mérito dos atos praticados pelos órgãos autárquicos. Mais se determina constitucionalmente, no referido artigo, que as medidas tutelares restritivas da autonomia local devem ser precedidas de parecer de um órgão autárquico, nos termos a definir por lei (n.º 2), admitindo-se que a determinação da dissolução de órgãos autárquicos apenas possa ter por causa ações ou omissões ilegais graves (n.º 3). Tal tutela administrativa incumbe ao Estado, no caso das autarquias locais do continente, competindo ao Governo da República (art. 199.º, al. d) da Constituição); por sua vez, pertence às regiões autónomas, no caso das autarquias locais existentes nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, competindo ao respetivo Governo regional, como resulta da al. m) do art. 227.º da Constituição e dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas. Ainda a propósito do regime da tutela administrativa sobre as autarquias locais, importa considerar, especificamente, o que resulta da lei n.º 27/96, de 1 de agosto (alterada pela lei orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro), a qual se aplica também às regiões autónomas, sem prejuízo da publicação de diploma regional que identifique especificamente os membros dos Governos regionais que são competentes para o exercício da tutela administrativa; e.g., em relação à Madeira, o dec. leg. regional n.º 6/98/M, de 27 de abril. Neste diploma, entre outros aspetos, definem-se os regimes de realização de ações inspetivas e de aplicação de sanções resultantes da prática, por ação ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais (perda de mandato e dissolução de órgãos). No que respeita à tutela administrativa relacionada com a descentralização associativa que se concretiza em favor de associações públicas, cabe logo considerar a realidade das entidades intermunicipais (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais), que se regem pelo disposto nos arts. 63.º e seguintes da lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, e estão sujeitas ao mesmo regime da tutela administrativa que se aplica às autarquias locais e se encontra consagrado na citada da lei n.º 27/96, de 1 de agosto. Por seu turno, as associações públicas profissionais beneficiam, nos termos da legislação que define o seu regime (lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro), do reconhecimento de uma ampla autonomia que se traduz logo na determinação legal de que não estão sujeitas a superintendência governamental nem a tutela de mérito, ressalvados quanto a esta, os casos especialmente previstos na lei (art. 45.º, n.º 1 da citada lei). Estão sujeitas a tutela de legalidade idêntica à exercida sobre as autarquias locais, sendo essa tutela de carácter inspetivo, salvo quanto aos regulamentos que versem sobre os estágios profissionais, as provas profissionais de acesso à profissão e as especialidades profissionais, os quais só produzem efeitos após a sua homologação por parte da respetiva entidade tutelar (art. 45.º, n.os 2 a 5 da citada lei). Com referência às situações de descentralização institucional relativa a institutos públicos – serviços ou fundos personalizados (neste último caso, também designados como fundações públicas de direito público) do Estado ou das regiões autónomas –, importa sublinhar que estas entidades, gozando de autonomia administrativa e financeira, se sujeitam todavia a superintendência administrativa e a tutela – consoante os casos – do Estado ou da região autónoma respetiva. A tutela administrativa que pode ser exercida sobre os institutos públicos pode ser de legalidade e de mérito, configurando-se como tutela inspetiva, integrativa, sancionatória e substitutiva, nos termos do que resulta do art. 41.º da respetiva Lei-Quadro (aprovada pela lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, alterada e republicada pelo dec.-lei n.º 105/2007, de 3 de abril). A propósito considerem-se, ainda, as adaptações legislativas regionais constantes do dec. leg. regional n.º 17/2007/M, de 12 de novembro (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 2/2013/M, de 2 de janeiro) e do dec. leg. regional n.º 13/2007/A, de 5 de junho (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 13/2011/A, de 11 de maio). Por último, deverá cuidar-se da tutela administrativa que se realiza com referência às entidades públicas empresariais e às entidades administrativas independentes. As entidades públicas empresariais sujeitam-se à tutela administrativa que for consagrada nos atos legislativos que determinarem a sua criação. No caso das entidades administrativas independentes e, em particular, de entidades que exercem funções de regulação e de promoção e defesa da concorrência respeitantes às atividades económicas dos sectores privado, público, cooperativo e social, deverá ser considerado o disposto na Lei-Quadro da Entidades Reguladoras (aprovada pela lei n.º 67/2013, de 28 de agosto). Trata-se de entidades que, dispondo de uma ampla autonomia administrativa e financeira, se caracterizam por não se encontrarem sujeitas a superintendência ou a tutela administrativa, sujeitando-se, todavia, ao poder governamental de solicitação de informações e de aprovação e autorização prévia de alguns atos (art. 45.º da citada Lei-Quadro).   Afonso d’Oliveira Martins (atualizado a 04.01.2017)

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