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O mar é uma constante no imaginário lusíada. Foi com o mar que se cumpriu Portugal e, durante muito tempo, no dizer do poeta, o mar foi português. Isto foi dito porque os portugueses se lançaram, no séc. XV, à sua conquista, batendo as barreiras do medo que atormentavam desde a antiguidade os potenciais navegantes do Atlântico. A economia das ilhas não se resumiu aos produtos trazidos pelos colonos europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao primeiro aspeto, é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de assentamento ribeirinha, se assumiram como exímios marinheiros e pescadores, tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor alimentar. A atividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a sua atenção pela abundância de peixe e mariscos, mas raras vezes satisfez as necessidades das populações. O Atlântico, próximo das ilhas e da costa africana, era considerado, desde a antiguidade, como um espaço privilegiado de pesca, descoberto pelos cartagineses, no séc. VI a. c.. Desta forma, aquilo que os portugueses buscavam não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra. Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana estão no mar – o óleo e a pele de lobo-marinho provenientes das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira, como prova a expedição que João Gonçalves Zarco fez para o reconhecimento da costa sul da ilha. Depois disso, múltiplos visitantes testemunharam essa riqueza. Cadamosto, em meados do séc. XV, refere que a ilha é rica “em garoupas, dourados e outros bons peixes” (ARAGÃO, 1981, 36). Em 1698, o governador D. António Jorge de Melo refere que “o peixe é muito bom e não caro, que remedeia muito a terra” (NASCIMENTO, 1930, 15). Em 1853, Isabella de França acrescenta a esta ideia de riqueza piscícola a descrição de alguns peixes, como a abrótea, o atum, o chicharro, o congro, o cherne, a garoupa, o pargo, a raia, o salmonete e a tainha. Diversos autores referem a abundância de peixe nas costas das ilhas. Deste modo é cada vez maior o conhecimento do peixe disponível à volta da Ilha, muito evidente na lista de A. Biddle, de 1910, e nos diversos estudos científicos que entretanto se fizeram. A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e andaluzes. Todavia, o balanço das capturas dos madeirenses e dos açorianos não foi suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. A descoberta do Atlântico é um ato simultâneo com a da Ilha. Os portugueses demandam a sul, à procura das terras, míticas e verdadeiras, já debuxadas nos mapas. João Gonçalves Zarco decide fazer o reconhecimento da costa madeirense: este momento merece ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa, mas também pelas revelações que lhe permitem o batismo dos diversos acidentes da costa. Na primeira busca, conseguiu boas oportunidades de abordagem e de fixação, enquanto, na segunda, a fauna marinha move a sua atenção. Um bando de garajaus deu nome a uma ponta: a Ponta do Garajau. Os lobos-marinhos que, no dizer do cronista, “era enquanto, e não foi pequeno refresco para a gente, porque mataram muitos deles, e tiveram na matança muito prazer e festa” (FRUTUOSO, 1873, 40), deram nome à Câmara de Lobos. No ano imediato, tratou-se do assentamento e reconheceu-se a terra que ficara no desconhecimento: a Ponta do Pargo, assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: “e o maior que até aquele tempo tinham visto, pela razão do qual peixe ficou nome aquela Ponta a do Pargo” (Id., Ibid., 69). O facto de a toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os navegadores depositavam nesta riqueza e do empenho com que a observavam: Porto das Salemas (Porto Santo), Baixa da Badajeira (Madeira), Porto do Pesqueiro (Madeira). Os mares da Madeira eram ricos em variedades e quantidades de peixe, como confirmam inúmeros visitantes estrangeiros. Em 1853, Isabella de França refere o chicharro, o peixe-espada, o gaiado, o atum, a abrótea, o pargo, o cherne, a garoupa, a tainha, o salmonete, a pescada, e o congro. A sua apreciação destes peixes faz-se pela sua aparência, e não pela degustação, pois deverá tê-los visto na praça ou nos portos das localidades por onde embarcou. A respeito do atum, tece o seguinte testemunho: “O atum é feio e escuro, de cerca de seis pés de comprido, carne avermelhada e grossa. É um espectáculo dos mais ridículos ver o campónio regressar a casa com a cabeça do atum na extremidade do bordão. A pesca do atum não corre sem perigo, pois já se tem visto puxar um homem pela borda fora” (FRANÇA, 1970, 117). Já em 1817, o governador Lúcio Travassos Valdez informa do envio, pelo mercador João Baptista Gambaro, estabelecido em Câmara de Lobos, de dois barris de atum, conservado de diversas formas (cozido, salgado e seco), que poderia ser uma alternativa ao bacalhau estrangeiro no abastecimento às embarcações. Desta forma, durante muito tempo, a disponibilidade do peixe estava limitada aos sistemas de conservação disponíveis. O peixe fresco era um privilégio quase só das zonas ribeirinhas e com portos de pesca. Aos demais, ficava o peixe salgado ou seco. Foi assim até que se começou a desenvolver a indústria de conservas, fundamentalmente de atum, em princípios do séc. XX, no Porto da Cruz (1909), no Paul do Mar (1912), em Pedra Sina (1939), no Penedo do Sono, em Porto Santo (1944), no Machico (1949). Atente-se que, na Madeira, o incremento da congelação só aconteceu a partir de 1972, sendo a primeira unidade criada em 1966, pela empresa Somagel. Por outro lado, a revelação e a descoberta do mar ganharam interesse devido à possibilidade de fruição das riquezas piscícolas. Mas a atenção do europeu ao mar não se orienta apenas neste sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, perceber os sistemas de correntes e ventos, compreender os acidentes da costa, os baixios, etc. É neste contexto que os portugueses iniciam uma ação pioneira que irá permitir o melhor conhecimento do mar e das suas possibilidades e recursos. As pescarias e as viagens de navegação e de descoberta ao longo da costa africana confundem-se. Os madeirenses pescavam nas costas da Berberia, um dos melhores bancos de peixe do Atlântico, como se conclui duma reclamação dos pescadores, em 1596, sobre o tributo que pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que de lá traziam. A pesca foi, a par da atividade agrícola, uma ocupação das gentes insulares ribeirinhas. Aliás, num espaço como a Madeira, onde a orografia condicionou a circulação terrestre, o mar é a via fundamental que liga os vários núcleos de povoamento que, por esse motivo, no início, se anicham no litoral. O mar foi o meio de comunicação mais usual e importante da comunidade insular, verificando-se a valorização da construção naval; ela surge, não apenas com a finalidade de assegurar o fornecimento de embarcações de cabotagem, mas também para dar apoio à navegação atlântica, no reparo das embarcações fustigadas pelos acidentes ou pelas tempestades oceânicas. Os estaleiros de construção e reparação naval proliferavam nas principais ilhas do meio insular, sendo esta atividade transformadora regulamentada e apoiada pelas autoridades locais e centrais, que, por exemplo, asseguravam as licenças necessárias para o corte das madeiras e definiam as dimensões e a capacidade das embarcações a construir. Os estaleiros de reparação e construção naval da Madeira situar-se-iam no Funchal, principal porto da Ilha, e em Machico, sede da capitania do norte, onde as madeiras eram abundantes. A construção de embarcações para a pesca está testemunhada desde o início da ocupação da Ilha. João de Barros refere mesmo que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz fizeram duas embarcações no Porto Santo, certamente com troncos de dragoeiro, tal como refere Frutuoso. Ao contrário do que acontece no início do séc. XXI, a pesca não era uma atividade exclusiva de alguns núcleos do sul; na verdade, alargava-se a toda a Ilha, apesar de se ter evidenciado mais na vertente sul. Para o ano de 1889, existe referência a 2158 pessoas ocupadas na atividade da pesca, para um total de 493 embarcações, 338 das quais estavam empenhadas na faina do atum e 121 na do gaiado. A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. Em 1595, foi capturada a primeira baleia na zona; sabe-se que outra rendeu 64.000 réis em 1692, enquanto uma terceira, já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis. Em 1741, Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a resistência das indústrias da Baía, temerosas da concorrência, impediu-o de levar por diante tal objetivo. A indústria em questão só terá lugar após a Primeira Grande Guerra, conhecendo-se três fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade, nos primeiros anos do séc. XX, altura em que surgem a fábrica da Ponta da Cruz, de João A. Júdice Fialho (1909), a fábrica do Paul do Mar, de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia Formosa, a fábrica de Pedra Sina, em S. Gonçalo, de Maximiano Antunes (1939), a fábrica de Machico (1949), de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís Nunes Vieira, e a fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui, o pescado da Ilha passará a ter dois destinos – o consumo público e a indústria de conservas –, o que veio permitir um aumento das capturas. Até então, o único destino era o consumo público, sob a forma de fresco ou salgado. Tenha-se em conta o interesse nas salinas em Câmara de Lobos e na Praia Formosa, de que existem testemunhos desde o séc. XVIII, mas que nunca adquiriram grande dimensão e interesse. É evidente a preocupação das autoridades no sentido da preservação deste recurso marinho. Assim, em 1547, a vereação acusa alguns pescadores de cana de usarem foles e redes, mantado a “criação de peixe” e o “peixe miúdo”, proibindo tal ação com a pena de 500 reais. Esta determinação passou a postura, sendo a pena de 1000 reis, que subia para 2000 réis, no caso de o visado ser pescador. A medida voltou a ser recordada em 1623. Ao longo dos tempos, continuamos a assistir a esta manifestação de interesse pela preservação deste recurso, que se alarga, em épocas posteriores, ao combate ao sistema de pesca através de bomba. Os aparelhos usados na armação da pesca na primeira década do séc. XX são referidos por A. Loureiro. Também se defendeu a indústria por meio de regulamentos que delimitavam a forma da pescada quanto às redes a usar e que, no séc. XIX, restringiam o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da Ilha e na Ponta de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877, recomendando ao governador medidas contra essa prática. O pescado chegava mais ao Funchal, onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo, sucedia que as diversas localidades da vertente sul, embora dispondo de núcleos piscatórios, se debatiam quase sempre com a sua falta, pelo facto de os pescadores preferirem a sua venda na cidade. As autoridades municipais foram portanto forçadas a tomar medidas. Em Machico, os pescadores da vila estavam obrigados a venderem aí 1/4 do pescado, passando, em 1640, para 1/3; no ano de 1638, esta limitação de saída era total, sobretudo na época da Quaresma, em que o consumo de pescado aumentava. Por outro lado, em 1751, não obstante recomendar-se que a venda do pescado fosse feita primeiro à população local, podendo as sobras ser depois levadas ao Funchal, refere-se o privilégio dado a algumas embarcações para o fornecimento, fora desta regra, ao convento de S. Francisco, ao juiz dos Resíduos e às capelas do Funchal. Já na Ponta do Sol, a Câmara proibiu, em 1704, a sua venda para fora do concelho e, em 1727, obrigava os pescadores a irem todos os dias ao mar, sob pena de 2000 réis. Idêntica obrigação existia em Machico para o ano de 1679, onde os pescadores preferiam o serviço de barqueiros ao da pesca. Atente-se que, em 1674, na Ponta de Sol, o arrais de um barco foi preso por não trazer peixe do mar. Mesmo assim, o Funchal não estava devidamente abastecido de pescado, necessitando de importar arenque salgado de Inglaterra. A prova disso está no facto de o foral de 1516 isentar os ingleses do pagamento do dízimo. Em 1768, o governador e Cap.-Gen. Sá Pereira, em carta ao conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, testemunha sobre uma representação dos moradores da Madeira, “sobre o promover-se a pescaria tão útil, e tão necessária aqui para que este povo possa livrar-se da miséria, a que está reduzido por falta de alimento, obrigado a sustentar-se de carnes, e peixes salgados, e corruptos, que aqui introduzem os Ingleses com grave prejuízo dos seus habitantes” (SANTOS, 2010, 368). Em 1771, o mesmo governador, no capítulo 26 do regimento dado ao Porto Santo, penaliza os moços indigentes, obrigando-os a dedicarem-se à agricultura ou às pescas. Já em 1783, o corregedor organiza um regulamento para as pescas nas ilhas da Madeira e Porto Santo – o Estabelecimento das Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo –, que não teve efeito. Finalmente, em 1792 foi autorizado o estabelecimento de uma Fabrica de Pescaria, e Salinas, a ser instalada na Praia Formosa. E em novembro de 1822 foi formada uma Sociedade Piscatória na Madeira, com intuito de promover as pescarias, vindo, para o efeito, pescadores de Sesimbra para ensinar aos madeirenses as artes da pesca. Tais carências levavam a Ilha a importar peixe seco e salgado de Lisboa, do Algarve, das Canárias, de Santa Cruz da Berberia, de Cabo Verde, da Irlanda, da Escócia, da Noruega, da Suécia, da Dinamarca, do norte de França, da América do Norte e da Terra Nova. Os ingleses eram quem mais abastecia a Ilha deste peixe importado, muitas vezes com qualidade duvidosa, pois foram insistentes as reclamações sobre a venda de peixe podre. De acordo com informações da imprensa do Funchal, a partir do último quartel do séc. XIX, são frequentes as referências ao abastecimento do Funchal com peixe, lapas, caramujos e carne das cagarras das ilhas Selvagens. Os proprietários das ilhas organizavam campanhas temporárias com trabalhadores para a caça e a pesca, retornando ao Funchal com elevadas quantidades de produto salgado ou seco para venda na cidade. A faina da caça às cagarras e aos coelhos e da pesca ocorria entre os meses de agosto e outubro. No retorno, os trabalhadores enchiam a embarcação que os trazia de volta com caixas de lapas, caramujos, engodos, barris de salga de coelhos, cagarras, e peixe, sacos de penas de cagarra e óleo de cagarra. O peixe era fundamentalmente o atum, a cavala e o gaiado, que descarregavam no Funchal ou em Câmara de Lobos. Em 1907, sabemos da safra de 13.000 gaiados que foram vendidos no Funchal a 240 réis ao kg. Já em 1912, a safra foi de 16.000 gaiados, havendo problemas entre os pescadores e a firma proprietária quanto à distribuição dos quinhões. Os mares das Selvagens eram, assim, ricos em pescado, alcançando o imposto do mesmo, no primeiro quartel do séc. XX, valores elevados, apenas suplantados pelo Funchal e pela Câmara de Lobos. A faina nestas paragens era sempre complicada, acontecendo, por diversas vezes, naufrágios e situações de falta de mantimentos, indo, muitas vezes, as embarcações arribar à ilha vizinha de Tenerife. Desta forma, em novembro de 1916, os pescadores regressados ao Funchal mandaram celebrar uma missa de ação de graças na igreja de S. Gonçalo, por não terem sido vítimas de qualquer desastre. A pesca e a venda do peixe fresco, resultante desta faina, ou seco e salgado, por importação do estrangeiro ou de produção própria na Ilha, estavam sujeitas a apertadas medidas de controlo que consideravam a salvaguarda da saúde e a sanidade públicas e também a especulação dos vendedores. Aqui é clara uma evidência: em terra banhada pelo mar, onde o peixe abunda, o peixe da safra local era limitado e parece que a faina era pouco atrativa para os homens do mar, que preferiam dedicar-se à função de barqueiros nas ligações costeiras. Desta forma, são insistentes as reclamações das vereações municipais, quanto à sua falta como à coação dos pescadores para irem ao mar. Em 1847, foram estabelecidas isenções de direitos à entrada de peixe salgado, para suprir problemas de fome. Sabemos que, no ano imediato, a sua importação foi de 6464 arrobas, na sua maioria da Terceira, de Portimão e de Lisboa. A venda do pescado era feita na praça, de acordo com condições estabelecidas pelas posturas. Estava proibida a revenda do peixe fresco ou salgado sem licença dos oficiais da câmara. O peixe que sobrava de um dia para outro era salpresado e, depois de mostrado aos almotaceis, poderia ser vendido. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tabelados e a todos os que o procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que, através dos seus escravos, procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras. A carência de peixe é uma constante na Ilha, acusando a vereação, em 1547, de os madeirenses não quererem ir pescar, pois “onde devem de ir pescar quatro vezes na semana muitas vezes não vão senão uma e isto porque a tal preço dão o peixe que assim se remedeiam com um dia de trabalho na semana como se todos os dias trabalhassem [...]” (COSTA, 1998, 404). Desta forma, os homens-bons da Ponta Sol, em 1782, assistiam, no Calhau, à distribuição do peixe. As praças para a venda do peixe existiram em todos os municípios, sendo uma forma de regular e fiscalizar a venda do pescado. Na sua falta, o peixe vendia-se em locais determinados pela câmara, como sucedia em 1856, na Madalena do Mar. Temos notícias das praças da Ponta de Sol, em 1840, a qual foi reformada em 1931, do Porto Moniz, em 1894, de S. Vicente, em 1896, e do Porto Santo, em 1889. A do Funchal existe desde o séc. XV, tendo sido ampliada em 1730. Sabemos ainda que, desde 1546, existia no Funchal uma rua do peixe, que pode estar associada a este espaço público de venda. A partir de 1840, temos o mercado do peixe de S. Pedro, reformado em 1880 e 1889, e em 1940 integrado no mercado dos lavradores. A lota aparece no arquipélago da Madeira em 1953, no Funchal, seguindo-se outras em Câmara de Lobos, Machico, Santa Cruz, Paul do Mar, Porto do Moniz, Porto Santo, Caniçal, Ribeira Brava e Calheta. A lota passa a substituir o calhau como espaço de primeira venda da safra, por leilão ou contrato. Os funcionários municipais, almotaceis e guardas-mores da saúde tinham especial cuidado na fiscalização do pescado fresco ou seco que se vendia na Ilha. O pescado salgado ou seco importado, nomeadamente pelos mercadores ingleses, não era apresentado para venda nas melhores condições, obrigando, inúmeras vezes, os funcionários da saúde a intervir, gerando alguns conflitos com esta comunidade. Em 1634, os comerciantes ingleses Roberto Veloni e Diogo Dom são acusados por colocarem à venda, em lojas suas onde empregavam vendedeiras, peixe (bacalhau e sardinha) em más condições. Em 1813, repete-se esta situação, com a casa inglesa Murdoch Yuille Wardop & Comp a reclamar uma indemnização pelo pescado lançado ao mar pelo guarda da saúde. Nesta mesma data, o bispo, em visita à Camacha, refere o uso na alimentação de arenques e cavalas salgados que, trazidos pelos ingleses, se apresentavam muitas vezes em má qualidade e deitavam um mau cheiro. A Madeira importava pescado seco e salgado de diversos portos nacionais e estrangeiros. Torna-se difícil entender a razão desta importação de peixe seco ou salgado, tanto mais que os mares da Ilha eram ricos em peixe. Para além de poder ser uma imposição desta comunidade inglesa, com domínio quase total do mercado da Ilha, poderão ser outras as razões para esta valorização do pescado importado, ainda que de má qualidade pelas condições de acondicionamento. Em 1827, Alfred Lyall afirmava que “há grande abundância de peixe, de grande variedade e de muitas espécies, normalmente muito bom, mas talvez inferior em sabor e firmeza na sua carne, quando comparado com o dos nossos mares” (SILVA, 2008. 111). A necessidade de assegurar a subsistência dos colonos obrigou ao aproveitamento dos recursos disponíveis no meio com valor alimentar, como foi o caso da pesca, uma atividade das populações ribeirinhas. O peixe foi também um dos recursos mais valorizados no início da ocupação da Ilha. A prova disso está no imposto lançado, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, este era cobrado pelos Jesuítas que, desde a segunda metade do séc. XVI, tiveram assento na Ilha. O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do calhau, depois Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores, cuja influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma comunidade de homens do mar com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. O grupo de madeirenses com ligação ao mar era elevado, mas parece existir uma predileção pela atividade ligada ao transporte costeiro, em detrimento da pesca. Os municípios instavam os homens do mar para irem à pesca, mas estes preferiam outros serviços mais remunerados. Em 1889, temos, em toda a Ilha, 2158 indivíduos associados a 493 barcos (127 de 4 remos, 200 de 2 remos e 121 canoas). Destes, como já referido em cima, 338 estavam dedicados à faina do atum e 121 ao gaiado, assumindo estas duas espécies uma importância dominante nas pescarias. A pesca ocupava, em 1914, mais de 1500 pescadores com 537 embarcações; já em 1931 existiam 1500 pescadores, que usavam 24 embarcações a motor e 508 à vela ou a remos. A partir de 1853, os governadores civis atuaram no sentido da valorização dos portos de pesca do arquipélago com diversos melhoramentos. O desenvolvimento de algumas indústrias no séc. XX levou à sua valorização. Em 1908, Vicente de Almeida D’Eça refere os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, São Jorge, Ponta Delgada, São Vicente, Seixal, Porto do Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara de Lobo e Porto Santo. Em 1909, Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e Porto Santo. Esta situação é também testemunhada por Orlando Ribeiro, em 1947, quando esteve na Ilha em estudos, afirmando em 1949 que “nas encostas da Madeira a cada abrigo correspondia um porto de pesca” (RIBEIRO, 1985, 104). Os mares da Madeira, embora não tão ricos como os do continente, apresentavam uma variedade significativa, pois podia-se pescar desde moluscos (lapas e caramujos), a crustáceos (caranguejo) e peixe (alfonsinho, bodião, boga, castanheta, chicharro, cavala, chicharro, mero, moreia, pargo, peixe espada preto, sardinha, salmonete, solha, tunídeos). São ainda assinalados diversos pesqueiros, isto é, espaços marinhos próximo à costa, onde este pescado aparece com abundância: Pedras, Cabeço Baixinho, Cabeço do Moinho, Largo do Mesinho, Pé da Poita, Pedra Lage, Pedra do Marracho, Pedra do capitão, e Canto do Porto.   Direitos e tributos O pescado estava sujeito a diversos tributos sendo, no início, considerado como uma renda dos capitães, que auferiam, pela sua exploração, o foro e o dízimo. A 26 de setembro de 1433, o infante D. Henrique recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas da Madeira, de Porto Santo e das Desertas. Ainda nesta data, a Coroa, a pedido do infante D. Henrique, concedeu todo o cuidado espiritual das ilhas à ordem de Cristo, reservando para si o foro e o dízimo do pescado. Este dízimo foi abolido a 5 de abril de 1808, por ordem de Beresford, aquando da ocupação inglesa da ilha da Madeira. No Porto Santo, a referida abolição ocorreu em 1832. O dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca, no Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, era cobrado pelos Jesuítas. Temos dados sobre a arrecadação deste rendimento para os anos de 1759 a 1761. Já da receita da diocese sabemos que, em 1517, era de 200$000 réis, subindo, em 1581, para 363$600 e, em 1583, para 454$500. Este tributo foi abolido, na Ilha, por alvará de 20 de outubro de 1803, situação que só teve efeito durante quatro meses. Entretanto, os pescadores estabeleciam, entre si, alguns compromissos com o valor da faina. Assim, no Caniçal, existiu o quartão, que era o mesmo que um quarto, a parte que cada pescador do Caniçal tirava do seu quinhão da pesca para o pároco da freguesia, como forma de custear as despesas de serviço religioso, em seu benefício, durante o ano. Eram reservados ainda outros quartos – para as festas da Senhora da Piedade, de S. Sebastião, do Espírito Santo e do Santíssimo Sacramento. A par destes, existiram outros tributos de cariz social, como o socorro que apoiava os companheiros doentes, e o quinhão morto para acudir a qualquer desastre, do qual, no fim do ano, entre 25 de dezembro e 1 de janeiro, era distribuído o sobrante entre todos, sendo conhecido como a ajuda do pão-da-festa ou passadia. Em 1937, surgiu a Associação de Socorros Mútuos dos Pescadores da Madeira, que em 1953 deu lugar à Casa dos Pescadores, com instalações em Machico e Câmara de Lobos (1939), no Paul do Mar (1944), no Funchal (1950) e no Caniçal (1954). Em 1817, na tabela dos direitos ad valorem cobrados no Funchal, temos a indicação da sua cobrança sobre o peixe fresco, com sal ou de conserva, relativamente às seguintes espécies: atum, chicharro, carapau, lampreia, salmão e sardinha. Em 1954, o imposto ad valorem, de 3 % sobre o pescado, rendia à câmara do Funchal 115.000$000 escudos. O imposto de pescado era uma receita do Estado e da Câmara Municipal. No reinado de D. Maria, foi determinado, por alvará com força de lei, de 20 de junho de 1787, que fossem levantados os impostos sobre o pescado, porque haviam contribuído para a situação de decadência a que tinham chegado as pescarias do Reino e das ilhas adjacentes. O imposto sobre os barcos de pesca e pescarias (1830/1843), foi criado por decreto de 9 de novembro de 1830, sendo substituído, em 10 de julho de 1843, por outro imposto, de 6 % sobre os lucro da venda do pescado fresco, nomeadamente sobre as partes ou quinhões, excetuando apenas as comedorias, as caldeiradas, as restomengas e as carnadas; a sua coleta foi atribuída à Junta do Crédito Público. Pela lei de 10 de julho de 1843, só eram obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercessem a sua indústria em água salgada e somente naquela parte dos rios até onde chegassem as marés vivas do ano. Pelo decreto de 3 de dezembro de 1891, foram criados, na dependência do Ministério dos Negócios da Fazenda, diversos postos fiscais, com a missão especial de cobrar o imposto de pescado. Este imposto, cobrado pela Guarda Fiscal, era também conhecido como dízimo, e só foi abolido por decreto-Lei n.º 237/70, de 25 de maio. Sobre a cobrança do imposto de pescado encontramos as seguintes informações: em 1921, era de 59.257$96 escudos, sofrendo uma quebra significativa, no ano imediato, para 4346$48; em 1933, era de apenas 1259$52.   Peixe à mesa Por fim, importa verificar qual a importância que os recursos marinhos assumem no quotidiano e na alimentação dos madeirenses. A dieta dos madeirenses baseava-se no aproveitamento dos recursos disponíveis com valor alimentar, isto é, a caça e pesca e os derivados da atividade pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido importante na atividade das populações ribeirinhas, que usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe. Através dos livros de receita e despesa, podemos acompanhar o dia a dia da mesa conventual, onde é regular a presença de carne e peixe, frescos ou salgados. No convento da Encarnação, a mesa dos sécs. XVII e XVIII era farta. O pão corria todos os dias à mesa, acompanhado de carne ou peixe. O peixe comia-se às quartas, sextas, sábados e dias prescritos pela Igreja. Poderia ser bacalhau, atum sardinha, arenques, pargos e chicharros. Mas nem sempre foi assim, uma vez que, por diversas vezes, foi manifestada a dificuldade no abastecimento de peixe aos conventos, o que fez com que estivessem isentos da obrigação da abstinência. A abstinência da carne era geral na altura da Quaresma, o que elevava o consumo de pescado. As pastorais determinavam regras sobre o consumo de carne e peixe pelos fiéis. Assim, a carne não podia ser misturada com o peixe e todos aqueles que estavam sujeitos ao jejum só podiam servir-se da carne ao jantar, sendo exceção os domingos, onde o consumo estava facultado. Daqui resulta a tradição popular do consumo da carne aos domingos. A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O pouco que se sabe resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Esta servia-se quase só do que a terra dava, isto é, frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Consumia-se algum peixe fresco ou seco, pescado na costa, mas a carne e o pão parecem ser uma raridade. Esta frugalidade está presente em todos os testemunhos de autores estrangeiros. Assim, na segunda metade do séc. XVIII, George Forster destaca que “os camponeses são excecionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne” (FORSTER, 1986, 72), mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, que era o principal ingrediente na alimentação do camponês. A isto juntava-se o consumo de peixe fumado ou em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto ao inhame, à batata e ao pão. O peixe consumido era o bacalhau dos Estados Unidos e o peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa, destacando-se o arenque de fumo ou de salmoura, muito apreciado pelo povo como conduto para o pão e as batatas. Esta situação ainda perdurava na década de 50 do séc. XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de duas toneladas eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e as indústrias de conservas. No Funchal, existia uma praça onde este era vendido aos interessados de acordo com uma lista de prioridades. Primeiro, deveriam servir o capitão, depois os conventos e os oficiais da governança e, finalmente, o povo. Em 1732, o bispo tinha um barco que provia às suas necessidades de pescado. Na Ponta de Sol, em 1782, um homem bom do concelho assistia a esta distribuição do pescado. A generalização das praças e dos mercados do peixe nos demais concelhos só aconteceu muito mais tarde: no Porto Santo, em 1889, no Porto Moniz, em 1894, e em S. Vicente, em 1896.   Ciências do mar O mar não foi valorizado apenas como recurso económico. Já a partir do séc. XVII se regista o seu valor científico com os diversos estudos realizados. A passagem pelo Funchal de alguns cientistas ingleses propiciou uma primeira descoberta de muitas das raridades da fauna marinha nos mares madeirenses. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane (1687) e James Cook (1768 e 1772). No decurso do séc. XIX, redobrou o interesse pela Ilha por parte de súbditos ingleses residentes ou de passagem pelo Funchal. Destes, podemos destacar os estudos de Richard Lowe (1833-1846), interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate Johnson seguiu-lhe o encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900. O empenho dos madeirenses no estudo da fauna marinha poderá ser assinalado com os estudos de João José Barbosa du Bocage. O primeiro apelo neste sentido foi feito por José Silvestre Ribeiro quando, em 1850, criou o Gabinete de História Natural, que desapareceu com a sua saída, em 1852. A aposta no estudo e na divulgação dos recursos marinhos só aconteceu mais tarde, com a criação do Aquário do Museu Municipal, que foi aberto ao público em 1951. A publicação do Boletim do Museu Municipal, desde 1945, e os estudos de Adão Nunes, de Adolfo César de Noronha e de Günther Maul vieram a revelar quão rico é o património marinho madeirense.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

Biologia Marinha História Económica e Social

leme, luís da câmara

Filho do morgado D. João Frederico da Câmara Leme e de uma das filhas dos viscondes de Torre Bela, D. Maria Carolina Correia Pinto, nasceu no Funchal a 26 de março de 1819, sendo irmão do Ten. D. Jorge da Câmara Leme (1807-1889), que ainda entrara nas lutas liberais, do Ten.-Cor. e governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), e ainda de D. José da Câmara Leme (c. 1823-1883), capitão do estado-maior. Descendiam do ramo dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de uma das filhas de Zarco, descendência que se cruzara, entretanto, com os Leme (Genealogias) e de que a principal figura fora, nos meados e finais do séc. XVII, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). D. Luís da Câmara Leme assentou praça em 1836, sendo despachado alferes de Caçadores 5 em 1837 e enviado, a 18 de outubro de 1838, para servir no comando da 9.ª Divisão Militar, com sede no Funchal, ordem assinada pelo então ministro da Guerra, conde do Bonfim (1787-1862), que fora governador da Madeira. Pouco tempo depois, no entanto, terá estado em Lisboa, pois, em 1844, concluiu com distinção a Escola do Exército, sendo promovido a tenente em 1845 e a capitão em 9 de abril de 1851, referindo-se na nomeação definitiva como capitão do corpo do estado-maior, de 4 de agosto desse ano, assinada pela Rainha e pelo duque de Saldanha (1790-1876), que frequentara o curso preparatório da extinta Academia de Marinha e da também já extinta Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho, onde fizera os cursos de Engenharia e Artilharia, tal como frequentara, na Escola do Exército, o curso de estado-maior. É possível que tenha sido mobilizado para Lourenço Marques, mas não conseguimos confirmar a informação, nem a sua estadia em Moçambique, que, a ter ocorrido, teria sido por pouco tempo. Na déc. de 50, entretanto, D. Luís da Câmara Leme entrava decididamente na política. Havendo terminando a legislatura de 1853 a 1856, mandou o alvará de 18 de agosto de 1856 convocar as comissões de recenseamento para procederem à eleição dos quatro deputados que competiam à Madeira. A realização das eleições teria apresentado dificuldades fora do Funchal, mas, em dezembro desse ano, foram eleitos o antigo governador, José Silvestre Ribeiro (1807-1891), D. Luís da Câmara Leme, Sebastião Frederico Rodrigues Leal, então redator do periódico O Funchalense, e António Correia Herédia (1822-1899). D. Luís da Câmara Leme voltaria a concorrer às eleições de 1860, que uma vez mais conheceriam algumas dificuldades de realização. A 7 de janeiro de 1860, e.g., só existiam as nomeações para as comissões do Funchal e do Porto Santo e, no mesmo dia, oficiava-se para a Ponta do Sol, para que fossem tomadas as devidas providências para “a completa liberdade dos eleitores”, colocando-se a hipótese de se ter de enviar uma força armada para o concelho, dadas as manifestações de violência ocorridas (ABM, Governo Civil do Funchal, liv. 8, fls. 114-115). O figurino mudara entretanto, passando a existir círculos e, sendo a primeira vez que tal ocorria, parece ter sido esse o motivo das dificuldades, embora a acusação recaísse quase sempre sobre os Herédia da Ribeira Brava. Vieram a ser eleitos pelo círculo do Funchal Luís Vicente de Afonseca (1803-1878), pelo da Calheta D. Luís da Câmara Leme, pelo de Santa Cruz Luís de Freitas Branco (1819-1881), e pelo da Ponta do Sol António Gonçalves de Freitas (1827-1875). Sendo dissolvido o Parlamento por decreto de 27 de março de 1861 e mandando-se proceder a novas eleições ordinárias de deputados às Cortes, que decorreram a 20 de maio desse ano, foram eleitos os mesmos deputados das eleições de 1860. Em 1853, D. Luís da Câmara Leme servira sob as ordens do Mar. Saldanha, que muito o considerava e de quem se tornaria muito amigo, justificando-se a dedicatória de “súbdito e obrigadíssimo amigo” no seu primeiro grande trabalho de fundo: Elementos da Arte Militar, em que se não assume como autor, mas somente como coordenador, editado em 1862 com “juízo crítico” do Ten. José Maria Latino Coelho (1825-1891), então secretário da Academia Real das Ciências. Este trabalho ainda teve uma II parte, em 1863; e III e IV partes em 1864, recolhendo logo os melhores elogios, como na Gazeta de Portugal, tendo tido edições aumentadas nos anos seguintes. Por estes anos era chefe da 3.ª secção da secretaria da direção-geral de Engenharia e, em 1864, teve a nomeação de subchefe da 3.ª repartição do Ministério da Guerra, sendo promovido a major em 1866. Nos inícios desse ano de 1866 foi nomeada uma comissão par dar parecer acerca do armamento com que deveria ser dotado o exército português, “visto que a época das armas de carregar pela boca tinha acabado como o último tiro de espingarda de agulha do soldado prussiano nos campos de Sadowa” (LEME, Diário de Lisboa, 19 set. 1866). Luís da Câmara foi o redator dessa comissão, que manifestou a opinião de que se adotasse a carabina do sistema Westley-Richards de carregar pela culatra e do cano Whitworth, como sendo o modelo mais perfeito para os caçadores. Em vista disso ordenou o ministro da Guerra que se fizesse um contrato provisório para a compra de 8000 carabinas desse sistema para caçadores e 2000 clavinas para a cavalaria. O “Relatório apresentado a sua excelência o ministro da Guerra…”, datado de 10 de setembro de 1866, saiu no Diário de Lisboa, de 19 do referido mês, sendo reproduzido no dia seguinte na Gazeta de Portugal. Nessa sequência, Luís da Câmara, então chefe interino do gabinete do ministro da Guerra, teve ordem de ir a Londres ratificar esse contrato, a 25 de outubro desse ano, com ordem de embarque e ajudas de custo despachadas por António Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887), também oficial de engenharia. A deslocação a Londres terá corrido muito bem e, a 18 de julho de 1867, foi nomeado para ir estudar na Exposição Universal de Paris, realizada nesse ano, “tudo o que se faz relativo às artes e ciências militares, formulando depois um relatório das suas observações para ser presente ao Governo” (AHM, Processos Individuais, cx. 1097, n/catalog.). O “Relatório a S. Ex.ª o ministro da Guerra…” de 1867, na sequência da visita à exposição de Paris, saiu no Diário do Governo de 24 de dezembro desse ano, continuando nos números seguintes, e foi depois impresso em separado com data do referido ano, mas, por certo, já no ano seguinte. Face aos contatos estabelecidos em Londres e, depois, em Paris, o Maj. Câmara Leme publicaria novo trabalho em 1868, sob o título Considerações Gerais acerca da Reorganização Militar de Portugal, que o confirmava como um dos militares portugueses mais bem informados do seu tempo. Nesses anos, como chefe da repartição de gabinete da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, interessou-se especialmente pela situação económica dos militares, o que granjeou então profunda gratidão e reconhecimento. Entre as várias ações desenvolvidas contam-se os contactos com a congénere Secretaria dos Negócios da Fazenda e o facto de ter levado os militares a seu cargo a aderirem ao Montepio Oficial. Em 1870, quando se deu a revolta de 19 de maio, promovida pelo Mar. de Saldanha, o Maj. Câmara Leme foi chamado ao ministério que o referido marechal organizou, a 22 desse mês, como “antigo deputado da Nação Portuguesa” (AHM, Processos Individuais, 3.ª div., sec. 23.ª, cx. 1097, dec. 22 jun. 1870), tendo sido encarregando da pasta da Marinha e Ultramar, com nomeação datada de 20 de julho, sendo então agraciado com a carta de conselho. Com data de 1 de agosto, ainda seria nomeado interinamente para a pasta das Obras Públicas, Comércio e Indústria, substituindo o marquês de Angeja. O gabinete de Saldanha, entretanto, teria muito curta duração, pois, a 29 de agosto do mesmo ano de 1870, outro golpe levou à queda do ministério, sendo provisoriamente substituído por outro, formado pelo marquês de Sá da Bandeira e o velho marechal teve de aceitar retirar-se para Londres, para onde foi como ministro plenipotenciário e onde veio a falecer com 86 anos, a 20 de novembro de 1876. Nos meados de 1874 era dado por terminado o período legislativo de 1871 a 1874, sendo fixadas para 12 de julho seguinte as eleições, que passariam a partir daí a ocorrer no mesmo dia que no “continente do reino” (ABM, Governo Civil do Funchal, liv. 8, fls. 188v.-189). Nestas eleições foram então eleitos D. Luís da Câmara Leme (irmão do então governador civil), pelo Partido Popular, e Ricardo Júlio Ferraz (1824-1880), pelo Partido Regenerador. Este era sócio da firma açucareira Ferraz & Irmão, sucessora das várias firmas fundadas por seu pai, pelo que juntamente com Câmara Leme viria a apresentar um projeto de lei para a extinção do direito que o açúcar madeirense pagava no continente e nas restantes ilhas – projeto esse que a Comissão da Fazenda veio a aprovar em 22 de março de 1875 pelo prazo de cinco anos. D. Luís da Câmara Leme seria promovido a tenente-coronel em 1874, e a coronel, em 1876. Em 1878 foi eleito par do reino, tomando posse na respetiva Câmara a 10 de janeiro de 1879. Neste ano também exerceu o cargo de governador civil do distrito de Lisboa, sendo promovido a general de brigada em 1883 e reformando-se, como general de divisão, a 4 de junho de 1884. General de divisão reformado, do conselho de Sua Majestade, ministro de Estado, par do reino, deputado, sócio correspondente da Academia Real das Ciências e da Sociedade Literária Almeida Garrett, etc., tratou sempre com conhecimento das questões ligadas aos militares, com que também se salientou na imprensa, em artigos dispersos por vários jornais e revistas militares. Câmara Leme foi um propagandista acérrimo da responsabilidade ministerial e das incompatibilidades entre cargos políticos e, nos últimos tempos, já alquebrado pelos anos mas ainda com admirável lucidez de espírito, renovava em quase todas as sessões legislativas o seu antigo projeto de lei nesse sentido, fazendo sempre largas considerações sobre o assunto, para provar a conveniência da sua aprovação, que nunca viu realizada, e cujas principais linhas ainda veio a publicar em 1893. Nos últimos anos, e quando já muito afastado da política partidária ativa, a sua voz era ainda ouvida no Parlamento com atenção e respeito. A oficialidade do exército português, que sempre lhe consagrou a maior veneração pela defesa dos seus interesses ao longo de muitos anos, cotizou-se, nos finais do século, para lhe oferecer uma comenda especialmente executada num dos melhores ourives da capital. Para esse efeito foi aberta subscrição, que num curto espaço de tempo excedia os 8.000$000 réis. O Gen. D. Luís da Câmara Leme aplicou então metade dessa quantia em esmolas para as viúvas pobres dos oficiais do exército, ficando o resto para custear a comenda. Faleceu em Lisboa, a 27 de janeiro de 1904, sendo cavaleiro da Ordem da Torre e Espada e da de N.ª S.ra da Conceição de Vila Viçosa e comendador da de S. Bento de Avis, em 1866; tal como das de Cristo e de Santiago da Espada; de S. Maurício e de S. Lázaro, de Itália; grã-cruz de Isabel “a católica” e de Carlos III, de Espanha; grande oficial da Legião de Honra, de França; e da de Leopoldo, da Bélgica. Era ainda condecorado com as medalhas militares de ouro de bons serviços, e de prata de comportamento exemplar. Elemento especialmente combativo, já se encontrava envolvido, em finais de 1838, num processo por desacato no passeio público de Lisboa, cujos contornos não conseguimos determinar corretamente, mas que sugere que Câmara Leme era já um nome de certa importância, dado ter sido especificamente nomeado pelo então ministro da Guerra. A referência consta da documentação do seu processo individual e, em princípio, teria sido a razão para o conde do Bonfim lhe passar ordem, a 18 de outubro desse ano, para que regressasse “a servir às ordens do comandante da 9.ª Divisão Militar” no Funchal (Ibid., Processos Individuais., 3.ª div., sec. 23, cx. 7, n.º 9, Minuta de ofício…, 1867). O seu espírito combativo e de defesa da classe militar é referido numa carta de Lisboa, de 15 de março de 1869, do diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) para o irmão, o então Cón. D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), onde refere estar em causa a nomeação de governador civil do Funchal para D. João Frederico da Câmara Leme. Escreve o diplomata Agostinho de Ornelas, que era o ministro do Reino, que tinha “muita repugnância a aceitar” a nomeação do “João Câmara, porque o Luís tem feito e faz aqui uma guerra terrível ao Ministério, procurando excitar contra ele os militares que estão geralmente descontentes com as reformas que feriram os seus interesses” (GOMES, 1997, 98-99). Pelos meados da déc. de 40, D. Luís era dado como muito próximo da célebre artista Emília das Neves e Sousa (1820-1883), filha do açoriano Manuel de Sousa, tal como o irmão mais velho de D. Luís, um dos “bravos do Mindelo” (Leme, D. Jorge da Câmara). A “bela Emília” fez a sua estreia nos palcos de Lisboa em 1838, data dos referidos desacatos no passeio público de Lisboa do então Alf. Câmara Leme, e teria sido a primeira grande vedeta feminina a surgir em Portugal, tendo atuado, inclusivamente, no Brasil. Um texto anónimo, Emília das Neves, Documentos para a sua Biografia, por um dos seus Admiradores, editado em 1875, é atribuído a Câmara Leme. Alguns biógrafos citam um primeiro casamento de D. Luís da Câmara com Emília das Neves e que a mesma, falecendo em 1883, o teria feito herdeiro da sua apreciável fortuna, então avaliada em 80 contos de réis. Contudo, à data do seu falecimento, em 1883, Emília é sempre mencionada como solteira, tal como então o seu possível biógrafo. O Gen. D. Luís da Câmara Leme casou-se mais tarde, na freguesia dos Mártires de Lisboa, a 5 ou 15 de outubro de 1887, com D. Ana de Albuquerque (1858-1924), que foi escritora e também atriz no teatro de D. Maria II e que, nascida em São Tomé e Príncipe e filha de Luís Maria do Couto de Albuquerque da Costa, fidalgo e cavaleiro da casa real, bem como sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa, era igualmente senhora de apreciável fortuna, tal como uma das mulheres mais cultas do seu tempo.   Obras de Luís da Câmara Leme: Elementos de Arte Militar (1862-1864) (atr.); “Relatório apresentado a sua excelência o ministro da Guerra em desempenho de uma comissão concernente à aquisição das novas armas de fogo portáteis” (1866); “Relatório a S. Ex.ª o ministro da Guerra acerca dos objectos militares mais notáveis apresentados na exposição universal de Paris em 1867” (1867); Considerações Gerais acerca da Reorganização Militar de Portugal (1868); Emília das Neves, Documentos para a sua Biografia, por um dos seus Admiradores (1875) (atr.); Incompatibilidades Políticas sob o Aspecto Histórico, Jurídico, Político e Moral (1893).   Rui Carita (atualizado a 14.12.2017)

História Militar Personalidades

leme, jorge da câmara

Filho mais velho do morgado D. João Frederico da Câmara Leme, que também usava o apelido Homem de Sousa, e de D. Maria Carolina Correia Henriques, ou Correia Pinto, filha dos viscondes de Torre Bela, nasceu no Funchal, a 13 de março de 1807. Teve como irmãos D. Luís da Câmara Leme (1817-1904), general, deputado e ministro da Guerra, D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), tenente-coronel, e D. José da Câmara Leme (c. 1825-1883), capitão do estado-maior, secretário do ministro da Guerra e oficial às ordens honorário do rei D. Luís. Este ramo dos Câmara Leme descendia dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de Catarina Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, descendência que se cruzou com os Leme (Genealogias), nos inícios do séc. XVII e de que a principal figura foi, em Seiscentos, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). O pai de D. Jorge da Câmara Leme, o morgado D. João Frederico, era ainda sobrinho materno do 1.º conde de Carvalhal, pois era filho da irmã do próprio, D. Ana Josefa de Carvalhal, que casara com João Francisco da Câmara Leme, tendo desposado com uma prima em segundo grau, Correia Henriques de Noronha, ou Correia Pinto, como indicámos, neta materna do 1.º visconde de Balsemão. D. Jorge da Câmara Leme seguiu a carreira militar, assentando praça, como voluntário, a 2 de dezembro de 1826, na 1.ª companhia de granadeiros do regimento de infantaria 4. Mas integrou-o por pouco tempo, pois, com a instalação do governo absolutista do infante D. Miguel, o regimento foi dissolvido. Devido às suas ideias liberais, emigrou, pouco depois, para Inglaterra, ao contrário do tio João Carlos Correia Brandão de Bettencourt Henriques de Noronha, 2.º visconde de Torre Bela (1794-1875), ajudante-de-campo de D. Miguel e um dos poucos morgados madeirenses que abraçou o absolutismo. D. Jorge passou, depois, à ilha Terceira, nos Açores, alistando-se no batalhão de caçadores 5, que desembarcou na praia de Mindelo, a 8 de julho de 1832, e participando em toda a campanha liberal, até à convenção de Évora Monte, tendo, na ocasião, o posto de alferes. Todos os seus irmãos integravam, então o exército e , pouco tempo depois, por volta de 1835, pediu a reforma, como tenente, tendo fixado residência na Madeira. Apenas temos notícias da sua participação na vida pública madeirense perto de meados de Oitocentos, no início do governo do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891). As primeiras informações datam das eleições, determinadas para 1846, mas realizadas somente nos finais de 1847, depois dos pronunciamentos da revolução da Maria da Fonte. As circulares para as eleições na Madeira começaram a ser expedidas nos finais de setembro de 1847, mas, em novembro, ainda não se sabia como suprir a falta de D. Jorge da Câmara Leme, que fora nomeado para coordenar as comissões de revisão dos recenseamentos e que, com os pronunciamentos revolucionários desse ano, a referida Maria da Fonte, se retirara da vida pública do Funchal. O seu nome aparece mencionado, na mesma altura, na administração do Asilo de Mendicidade do Funchal, mas não sabemos se, dada a instabilidade política do período, terá abdicado da função. O governador conseguira que o bispo do Funchal, D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862), assumisse a direção geral do asilo, integrando na administração D. Jorge da Câmara Leme e outros elementos da sociedade madeirense, que “tiveram a bondade de se prestarem gostosos a esse serviço”, como refere o próprio governador (FREITAS, 1852, 19-20 e 48-49). A comissão do asilo principiou, a 21 de abril, com cinco membros, aumentando para sete, a 23 do mesmo mês. Começou por funcionar no edifício do extinto convento de S. Francisco, mas, pouco depois, passou para as instalações das Angústias, iniciadas para servir essa mesma função. Como os terrenos haviam pertencido a D. Guiomar Madalena de Vilhena e, depois, passaram ao seu sobrinho bisneto, o 1.º conde de Carvalhal, sendo cedidos para construção do asilo, talvez D. Jorge da Câmara Leme, como herdeiro de ambos, tenha participado, pelo menos, nesta primeira fase da reinstalação. No entanto, somente temos referência ao próprio devido ao seu falecimento, que ocorreu a 8 de julho de 1889, e muito depois desta data.     Rui Carita (atualizado a 14.12.2017)

História Militar

leme, joão frederico da câmara

Filho do morgado homónimo, que também usava o apelido Homem de Sousa, e de D. Maria Carolina Correia, filha dos viscondes de Torre Bela, nasceu no Funchal, a 18 de março de 1821. Teve como irmãos o Ten. D. Jorge da Câmara Leme (1807-1889), que colaborou ativamente nas lutas liberais, o deputado e general D. Luís da Câmara Leme (1817-1904), ministro da Guerra e D. José da Câmara Leme (c. 1823-1883), capitão do estado-maior. Descendiam do ramo dos Câmara da linha de Garcia Homem de Sousa e de uma das filhas de Zarco, descendência que se cruzou com os Leme (Genealogias), nos inícios do séc. XVII e de que a principal figura foi, nos meados e finais de Seiscentos, o Ten.-Gen. Inácio da Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general). D. João Frederico da Câmara Leme seguiu, como os irmãos, a carreira militar, assentando praça, como voluntário, no batalhão de infantaria 16, em Évora, a 3 de outubro de 1842, já com alguma idade para a época. Aí serviu “2 anos, 5 meses e 16 dias” (AHM, Processos individuais, João, 6-19), até 18 de março de 1845, data em que foi promovido a alferes, por decreto, passando a porta-bandeira do regimento de granadeiros da rainha, em Lisboa. Promovido a tenente, por dec. de 1 de agosto de 1849, integrou o batalhão de caçadores 6, a 18 de outubro de 1850 e, no ano seguinte, por dec. de 5 de julho, foi promovido a capitão graduado, contando antiguidade desde 29 de abril. Por razões que se desconhecem, muito provavelmente para assumir o controlo das propriedades da família e entrar na vida política, algo que seu irmão D. Luís começara a ensaiar em Lisboa, optou por ser colocado na disponibilidade, por dec. de 15 de janeiro de 1852, passando para ajudante do corpo de artilheiros auxiliares da ilha da Madeira, por dec. de 27 de julho de 1856, ano em que o irmão foi eleito deputado pela Madeira; D. João Frederico tornou-se ainda capitão do corpo auxiliar, por dec. de 25 de novembro de 1861. Nos anos de 1857 a 1862 decorreu um conflito político, com aspetos anticlericais, envolvendo a presença das ordens religiosas em Portugal e que levou as irmãs de S. Vicente de Paulo a abandonarem o Hospício Princesa D. Maria Amélia e até o país. Nos meados de março de 1859, o gabinete do duque de Loulé, que formava a nova corrente progressista histórica, caiu, perante a dissidência de alguns dos seus próprios apoiantes. O novo governo, então constituído pelo Partido Regenerador e com o qual voltava, novamente, António Maria Fontes Pereira de Melo, terá tentado fazer outras alterações, mas a sua vigência durou pouco tempo. Assim, foi nomeado governador civil do Funchal, por dec. de 21 de maio de 1860, o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme, que comunicou a tomada de posse a 27 de maio, através de um impresso dirigido às autoridades superiores do distrito. Mas, em breve, a correspondência continuaria a ser assinada pelo anterior governador, o 2.º conde do Farrobo (1823-1882), genro do duque de Saldanha (1790-1876), como se nada se houvesse passado. Não deixa de ser curioso que, nos documentos do processo militar individual de D. João Frederico da Câmara Leme, não conste qualquer documentação desta sua primeira nomeação para governador civil, nem haja referência a ela nos registos biográficos de Luiz Peter Clode ou no Elucidário Madeirense. Os inícios de 1868 foram marcados, no Funchal e uma vez mais, pela tentativa de tomada do palácio de S. Lourenço pelo antigo administrador do Porto Santo, João de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1825-1892). Como membro, à data, do conselho de distrito, porque era chefe do Partido Regenerador, e tendo sido exonerado o anterior governador e conselheiro, Jacinto António Perdigão, por dec. de 16 de janeiro, passado este a governador civil de Bragança, a 30 desse mês, João de Santana de Vasconcelos enviou uma circular a todas as autoridades insulares a informar que tinha tomado posse nesse dia. Porém, desta vez, ficou em S. Lourenço apenas cerca de 10 dias. Com efeito, a 10 de fevereiro, tomou posse o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme, nomeado por dec. de 25 de janeiro de 1868. D. João Frederico deparou-se com uma situação muito difícil e à qual, nesta sua segunda permanência no Governo Civil, não conseguiu responder da melhor maneira, até porque não teve cobertura política do governo do central. Os finais de 1867 tinham sido marcados por uma subida generalizada dos preços, motivada pela situação de difusão geral da crise no país e agravada pelo imposto da sisa, ou imposto sobre o consumo, na ordem dos 6,5 %. Este valor, decretado em dezembro, que deu origem a graves tumultos por todo o continente, em breve se espalhava à ilha da Madeira. O movimento ficou conhecido como janeirinha, dado ter decorrido nos primeiros dias de janeiro de 1868, resultando em vários motins, tendo sido um, no Funchal, designado por pedrada, o responsável por ter impedido o desembarque de Jacinto de Santana e Vasconcelos (1824-1888). O capitão e governador civil D. João Frederico da Câmara Leme, depois do sucedido no Funchal e, especialmente, na Câmara de São Vicente, onde, entretanto, se deslocou, devido a novos tumultos (Tumultos populares), deve ter sentido uma profunda insegurança no palácio do governo de S. Lourenço. Assim, em abril desse ano, requisitou mesmo uma força militar para ficar em permanência nas imediações do palácio, “não só para defesa do cofre central, como dos arquivos que existem no mesmo edifício” (Alfândega do Funchal) (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 680, 18 abr. 1868). A força ficou aquartelada nos armazéns de bagagens da Alfândega, de forma algo provisória. E, com o decorrer dos acontecimentos, depois de 1870, tomou mesmo assento definitivo, quando D. João da Câmara Leme ocupava já o lugar de governador civil. Para o efeito, por proposta do próprio governador e após a aprovação da Junta Geral, foram adquiridas, em Lisboa, 30 camas “e seus pertences”, transportadas para a Madeira no vapor Maria Pia. D. João Frederico da Câmara Leme foi exonerado pelo novo executivo, do açoriano conde de Ávila (1806-1881), que lhe ofereceu o lugar de governador civil de Santarém, para o que teve decreto de nomeação, a 25 de janeiro de 1868, “dada a desistência do coronel Francisco de Mello Breyner” (AHM, Processos individuais, João, 6-19), mas não aceitou o lugar. No entanto, só veio a ser exonerado a 9 de setembro e, a 14 de outubro, dado que “frequentara o tirocínio para oficial superior em Lisboa” (Id., Ibid.), foi de novo colocado no batalhão de caçadores 12 do Funchal, como regista o despacho do rei D. Luís e do marquês de Sá da Bandeira, tendo tido ordem de embarque para o Funchal, a 9 de outubro do mesmo ano. O periódico A Revolução de Setembro, por essa altura, transcrevia uma série de notícias da ilha da Madeira: “Dizem-nos cartas dali, que foi muito mal recebida a notícia ‘encapotada’ da transferência para Santarém do governador civil D. João da Câmara Leme. Não ajudou também a notícia de que o Frade [deverá tratar-se do bispo de Viseu, D. António Alves Martins (1808-1882), que fora franciscano e era então um dos elementos proeminentes do Partido Reformista] apresentara e premeditara impor como deputado governamental pelo círculo da Ponta do Sol o ex-deputado Lampreia”; “Dizem também, que o marquês de Sesimbra, novo governador, não será bem recebido. ‘O Direito’ e ‘A Ordem’, jornais de mais confiança na Ilha, passaram à oposição. Já o esperávamos: Quem tem Razão Direita, não podia andar por muito tempo desviado do Bom Caminho” (A Revolução de Setembro, 26 set. 1868). O Governo do marquês de Sesimbra (1839-1887), décimo quarto filho do duque de Palmela (1781-1850) e o Governo seguinte, do visconde de Andaluz, que viera como secretário-geral do marquês de Sesimbra, foram de vaga gestão da crise motivada pela oposição dos duques de Loulé e Saldanha, que se alternaram à frente do gabinete ministerial de Lisboa. A situação manteve-se até às eleições de julho de 1870, mas configurava-se uma nova nomeação para o Funchal. O governo cessou funções a 26 de outubro, mas, já então, o Cap. D. João Frederico da Câmara Leme estava novamente nomeado governador civil do Funchal, voltando a tomar posse, então com um Te Deum na sé do Funchal, a 31 de outubro de 1870, tal como comunicou às restantes entidades superiores da Ilha, em informação impressa. A nomeação fora bastante anterior, pois fora mandado “marchar para Lisboa”, por “ordem telegráfica” do ministério da Guerra de 20 de maio desse ano, como refere o comandante do batalhão de caçadores de Tomar, onde estava colocado (AHM, Processos individuais, João, 6-19). No dia seguinte, 21 de maio, foi colocado no seu lugar, em Tomar, o Cap. Alexandre Magno de Campos, perguntando o comandante se o mesmo também ficava na situação de “supranumerário”, como estava Câmara Leme (Id., Ibid.). As eleições e as nomeações eram acordadas, muitas vezes, entre os quadros madeirenses, em Lisboa e no Funchal, como expressa uma carta de 15 de março de 1869, onde o diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901) voltava a dar instruções ao irmão, o então cónego D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), ainda não sabendo se concorreria às eleições de 1870, estando dependente do número de deputados a eleger por cada círculo eleitoral na Madeira. Equacionava, assim, as posição dos irmãos D. João Frederico e D. Luís da Câmara Leme, adiantando uma situação interessante, que era o ministro do Reino ter “muita repugnância a aceitar o João Câmara, porque o Luís tem feito e faz aqui uma guerra terrível ao ministério, procurando excitar contra ele os militares que estão geralmente descontentes com as reformas que feriram os seus interesses” (GOMES, 1997, 98-99). D. João Frederico da Câmara Leme, desta vez, estaria à frente dos destinos da Madeira durante mais de cinco anos, o que foi um verdadeiro recorde para o tempo, só ultrapassado pelo conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891), que esteve seis anos em S. Lourenço. Entre outros apoios, pois fora nomeado por um gabinete “histórico” e o seguinte, “regenerador”, confirmou-o, contando com uma certa estabilidade governativa por parte dos novos gabinetes de Fontes Pereira de Melo, gozou de um muito especial auxílio: o do bispo do Funchal então nomeado, uma das mais interessantes personalidades da Igreja da Madeira: D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880). Confirmado bispo titular de Gerasa, em 1871, nos inícios e meados de 1872, foi governador da diocese do Funchal e a 27 de outubro de 1872, tomou posse efetiva do bispado. Familiar, em certa medida próximo, do governador civil, como todos os grandes morgados insulares, e vindo a sofrer, à frente da diocese, os mesmos problemas que D. João da Câmara Leme enfrentava no governo civil, estabeleceu-se uma discreta, mas profícua colaboração entre ambos, apoiados nos irmãos deputados em Lisboa, embora não ao mesmo tempo: D. Luís da Câmara Leme e o diplomata Agostinho de Ornelas e Vasconcelos. O governador civil procurou outros apoios ao longo do seu mandato, nomeadamente, no Conselho do Distrito, cujo vogal era Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875), elevado a visconde de São João a 3 de maio de 1871 (São João, visconde), e na nova Junta Geral do Distrito. Nas eleições de 1874 ocorreram alguns distúrbios, nomeadamente, no Porto Moniz, para onde o governador teve de destacar uma força militar, mas essas eleições elegeram de novo o seu irmão general, D. Luís da Câmara Leme, pelo Partido Popular. Ao longo desse ano, instalou-se progressivamente o telégrafo submarino, com o qual o governador foi comunicando oficialmente às restantes autoridades superioras da Ilha. D. João Frederico da Câmara Leme começou a acusar algum desgaste pelos cinco anos de governação, que, inclusivamente, lhe haviam afetado a saúde. Por isso, nos inícios de 1876, pediu a sua exoneração, concedida a 1 de maio desse ano. Entretanto, também nos começos de 1876, já estaria indigitado um novo governador civil para o Funchal, Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro, cuja comunicação de nomeação terá chegado a 7 de abril. Levando este algum tempo em Lisboa, tomou posse do lugar interinamente, a 18 do mesmo mês, o novo secretário-geral Joaquim Curado de Campos e Meneses. A 8 de maio, tomou posse o antigo morgado das Cruzes, Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), membro do Conselho do Distrito, segundo o art. 223.º do Código Administrativo. E, a 10 de junho, finalmente, o novo governador Francisco de Albuquerque Mesquita e Castro. O ex-governador D. João Frederico da Câmara Leme casara, a 30 de julho de 1854, com D. Maria Carlota da Gama Freitas Berquó, filha do militar e político brasileiro marquês de Cantagalo (1794-1852). Do matrimónio resultou uma descendente, D. Maria Teresa da Câmara Leme, nascida a 10 de maio de 1854 e falecida em 1942, mas que não casou, não havendo, assim, sucessão, como aconteceu a todos os outros três irmãos de D. João Frederico. D. João Frederico estava, então, colocado em Tomar, embora essa colocação não conste na sua folha de matrícula militar. Foi daí que partiu, em 1870, para ser governador civil do Funchal, vindo a faleceu na mesma cidade, como Ten.-Cor., a 6 de fevereiro de 1878. Foi cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada (1847) e da de Avis (1862), comendador da de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa (1867), possuindo ainda as medalhas de Valor Militar, Bons Serviços e Comportamento Exemplar (1866 e 1867).   Rui Carita (atualizado 14.12.2017)

História Militar Personalidades

ribeiro real, visconde do

Visconde do Ribeiro Real. 1885. Arquivo Rui Carita João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo. Casando-se, a 24 de junho de 1882, já com mais de 40 anos, com Teresa da Câmara Carvalhal, filha do 2.º conde de Carvalhal, recebeu o título de visconde do Ribeiro Real. Passara, entretanto, pela Junta Geral e depois pela presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia. Na sua vereação camarária ainda se fundou o corpo de bombeiros voluntários e procedeu-se a reformas urbanas na área do cemitério britânico, tendo hoje o seu nome o largo que fica mais a sul. Foi ainda cônsul de França e elevado a conde do Ribeiro Real, título que parece não ter usado. Faleceu em 1902. Palavras-chave: bombeiros voluntários; Câmara Municipal do Funchal; cemitério britânico; caminho de ferro do Monte; Teatro Municipal.     João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo, de São Pedro, no Funchal, e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, de Ponta Delgada. Casando-se, a 24 de junho de 1882, com Teresa da Câmara Carvalhal (1857-c. 1925), filha do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888), recebeu o título de visconde do Ribeiro Real por decreto de 23 de março desse ano, sendo depois elevado a 1.º conde, por decreto de 16 de fevereiro de 1899, após a sua passagem pelo governo civil do Funchal, em 1897, como interino. Para além do cargo que ocupou na Junta Geral e da presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia (Teatro Municipal), ocupou também o lugar de cônsul de França. O futuro visconde do Ribeiro Real deveria ser uma figura muito discreta e reservada, não sendo fácil recuperar o seu percurso político e social. Casou-se bastante tarde para a época, já passando dos 40 anos, não havendo descendência do seu casamento. A primeira referência política a seu respeito é como procurador da Junta Geral, quando se pronuncia sobre a lei de 13 de maio de 1872, que criara as bases da nova regulamentação. Como vogal, João Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo esteve na reunião de 11 de março de 1874 e na de 11 de abril seguinte, aprovando as alterações que o vogal do conselho de distrito, visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875) mandou imprimir a 14 de abril desse ano. A sua ação mais relevante foi à frente da Câmara Municipal do Funchal, onde sucedeu ao sogro, 2.º conde de Carvalhal, que somente ocupara o lugar no quadriénio de 1882-1885 por ser, ainda, o maior proprietário latifundiário do Funchal, mas cujas funções tinham sido desempenhadas pelo vice-presidente, morgado João Sauvaire da Câmara e Vasconcelos (1828-1890). A partir de 1886, a Câmara do Funchal teve uma interessante atividade, entre outras coisas, acabando as obras do Teatro Municipal, apresentado aos funchalenses a 29 de julho de 1887, e inaugurado oficialmente a 11 de março de 1888. Nessa altura, teve o visconde de se defrontar com o primo, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), conde de Canavial e então governador civil, que queria ocupar o camarote da presidência, o que veio a acontecer, mas como convidado, pois o Teatro era propriedade da Câmara. A questão do camarote do Teatro ocupou então as primeiras páginas da imprensa da cidade. Foi durante a presidência do visconde do Ribeiro Real, quando tinha o pelouro dos incêndios o Dr. José Joaquim de Freitas (1847-1936), então também médico do hospital da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, que se fundaram os bombeiros voluntários do Funchal, serviço inaugurado oficialmente a 24 de setembro de 1888. A apresentação pública do inúmero material adquirido para esse serviço, de que existe abundante documentação fotográfica, foi feita junto à fachada do referido hospital, a 7 de abril de 1889. O primeiro quartel foi construído na antiga R. do Príncipe (assim designada em homenagem ao príncipe, depois D. João VI (1767-1826)), posteriormente R. 31 de Janeiro, passando, duas décadas depois, para a R. da Princesa (em referência a D. Carlota Joaquina (1775- 1830)), posteriormente R. 5 de Outubro. José Joaquim de Freitas era um republicano de arreigadas convicções (República), mas tal não obstou ao apoio que sempre lhe foi dado pelo visconde do Ribeiro Real, tendo-se registado, inclusivamente, um forte apoio das mais destacadas famílias funchalenses à criação dos bombeiros voluntários, existindo fotografias destes anos de inúmeros dos seus elementos fardados de bombeiros, independentemente da sua filiação partidária e, inclusivamente, nacionalidade; há mesmo fotografias de comerciantes britânicos, o que só se explica pelo apoio dado à iniciativa pelo visconde. João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo foi igualmente um dos principais impulsionadores do projeto do caminho de ferro do Monte, numa altura em que o projeto poderia ter sucumbido ao conflito de interesses entre os comerciantes britânicos radicados na Ilha e os financeiros alemães, que o apoiavam. Ao nível do Governo central, o apoio ao projeto não foi muito evidente, exceto na isenção de impostos que concedeu à Companhia do Caminho-de-Ferro do Monte, aquando da entrada na Alfândega do Funchal do material fixo e circulante para a via-férrea. O grande apoio partiu da Junta Geral, que adquiriu algumas ações, e, especialmente, da Câmara do Funchal, através do vereador João Luís Henriques e do presidente, o visconde do Ribeiro Real, tendo a Câmara adquirido 250 obrigações. As transformações ocorridas na malha urbana da cidade permaneceram e decorrem da urbanização envolvente do traçado da via-férrea e da montagem de uma série de instalações turísticas de apoio, como o Hotel do Bello Monte, e depois das instalações do Terreiro da Luta, consolidando a estruturação da freguesia de Santa Luzia e a ligação da cidade à freguesia do Monte, e contribuindo para a visão geral de anfiteatro que da encosta do Funchal. Foi também a vereação do visconde de Ribeiro Real que permitiu e apoiou a ampliação do cemitério britânico (Cemitério britânico), como contrapartida pela expropriação de uma faixa do terreno do mesmo. Foram então demolidas duas das vielas anexas entre aquele espaço e a R. dos Aranhas, do que resultou a R. 5 de Junho, depois R. Major Reis Gomes, onde viria a ser construído o largo com o seu nome. Os viscondes do Ribeiro Real habitaram o palácio de S. Pedro que, desde 1883, era partilhado com o Colégio de S. Jorge, dirigido pela futura M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). Também ali faleceu, a 4 de fevereiro de 1888, o 2.º conde de Carvalhal, António Leandro Carvalhal Esmeraldo e, em 1897, ainda se instalou em parte do palácio o Clube Internacional. O visconde do Ribeiro Real seria elevado a conde do Ribeiro Real, a 16 de fevereiro de 1899, mas parece nunca ter usado o título, falecendo a 22 de março de 1902, altura em que se encontrava já retirado da vida pública, não havendo, por exemplo, qualquer referência a seu respeito na visita régia de junho de 1901. A condessa do Ribeiro Real, em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, mas a mesma foi contestada pelos coproprietários, conde de Resende e família de Eça de Queiroz, descendentes de sua irmã, Maria das Dores Carvalhal (1855-1910). A a 20 de janeiro de 1923, a condessa mandou vender em leilão o recheio do palácio, momento em que se dispersou aquele importante espólio. Deverá ter falecido pouco depois dessa data. O espadim de honra do visconde do Ribeiro Real, como fidalgo da Casa Real, deve ter sido logo entregue à Câmara Municipal do Funchal, por legado do mesmo. A sua liteira, no entanto, com as armas de visconde envolvidas pelos atributos utilizados pela Câmara, um ramo de videira e outro de cana-de-açúcar, tal como o seu monograma, encimado por coroa de visconde, deve ter ido então a leilão, tendo passado a mãos particulares e depois ao Museu Quinta das Cruzes, sendo dos poucos exemplares deste tipo de transporte que sobreviveu. É provável que do leilão de 1923 tenha sobrevivido uma fotografia, onde aparece um dos dois óleos de Tomás da Anunciação (1818-1879), encomendados pelo 2.º conde de Carvalhal em 1865, e que fazem igualmente parte do acervo do Museu Quinta das Cruzes. No mesmo leilão deve ter sido vendido o retrato das duas filhas do 2.º conde de Carvalhal, depois depositado na Fundação Eugênia de Canavial.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

remates de telhado

Uma das originalidades da arquitetura popular madeirense são os remates de telhado, colocados nos extremos dos beirais, que aparecem, por exemplo, com cabeças de menino e de senhora, pombas, bem como outros animais, folhas de acanto, naturalistas e estilizadas, numa diversidade francamente interessante e quase única no contexto nacional. Não temos referências sobre a sua origem, sendo sempre evasivas as respostas dadas pelos mais antigos proprietários, que se refugiam no costume e pouco mais. Nenhum deles conseguiu, pois, explicar por que se optou por este ou aquele modelo e não por outro, não tendo, em princípio, a mínima ideia de qualquer significado que possam ter estes elementos. Cabeça de menino. Foto: BF As construções urbanas e mais abastadas apresentam remates congéneres da arquitetura portuguesa e internacional divulgada nos finais do séc. XIX, com recurso a platibandas rematadas com urnas, algumas de faiança das fábricas do norte de Portugal, provavelmente de Vila Nova de Gaia. Já muito raras são as figuras alegóricas, igualmente em faiança, que proliferaram também a partir dos finais desse século como remates de fachada, sendo quase todas entretanto apeadas, tal como as decorações de algumas fachadas com azulejos arte nova, que vão igualmente rareando. Se alguns remates centrais de telhado em forma de agulha são semelhantes aos vigentes no continente, os figurativos que rematam os beirais na arquitetura popular madeirense afastam-se, no entanto, totalmente dos congéneres continentais, constituindo uma marca e uma presença profundamente originais que teima em sobreviver. A configuração destes remates de telhado que conhecemos na Madeira não é, em princípio, muito antiga, pois que a cobertura por telha com beiral não deve ser anterior aos meados do séc. XVIII. Na pouca iconografia que conhecemos, quase toda de caráter senhorial ou militar, as coberturas de telha são interiores às empenas, fazendo convergir as águas sempre para caleiras igualmente interiores e saindo as mesmas por gárgulas na divisão dos telhados, quase sempre múltiplos. Acresce que, até meados e finais do séc. XIX, a arquitetura popular e tradicional madeirense manteve-se com coberturas de colmo, sendo raras as coberturas de telha. Nas descrições dos muitos viajantes estrangeiros que passaram pela Madeira, em princípio mais sensíveis às especificidades locais que os naturais, não lhes é feita qualquer referência aos remates, pelo que, a existirem, não teriam, por certo, a exuberância que lhes conhecemos hoje. A atenta inglesa Isabella de França (1795-1880), no Journal da sua visita à Madeira, em 1853, dedica duas linhas à arquitetura popular, dizendo apenas que, nas habitações mais modestas, “as telhas estão seguras com pedras, de forma que o vento as não leve, e rematam-se no topo com uma panela de barro invertido” (FRANÇA, 1970, 65). A utilização destas marcas ou sinais, no entanto, tem de ser muito antiga e de se encontrar profundamente enraizada no sentir e viver populares para ter tido, nos inícios do séc. XX, a espantosa e invulgar popularidade com que chegou até nós. Sendo já pontual nos Açores – em alguns casos, por recente importação da Madeira, como na Caloura, na ilha de S. Miguel –, reduz-se, no território continental, a uma outra estilização mais erudita e cosmopolita do que a existente nas áreas periurbanas e rurais madeirenses. Aliás, também na área periurbana do Funchal e nas habitações mais abastadas, a opção vai para a aplicação de elementos mais estilizados e menos figurativos, como folhas de acanto e concheados. Este costume perdeu-se quase por completo nos Açores, sendo, no entanto, referido por vários investigadores, como Luís Bernardo Leite de Ataíde, Alfredo Bensaúde e Ernesto Ferreira, que associam essas antigas representações às festividades do Espírito Santo, embora admitindo o seu cariz arcaico e fálico. Efetivamente, até o termo “pomba” ou mesmo “pombinha” têm em ambos os arquipélagos fortes ressonâncias sexuais, sendo, tanto nos Açores como na Madeira, fortemente inibitórios. De resto, a pombinha do Espírito Santo, tão celebrada pelos foliões, representa sempre a proteção e é celebrada como símbolo da abundância e da fecundidade, não espantando o seu aparecimento emblemático nas habitações, como elemento zelador da família no campo da saúde, bem-estar e alegria do lar. Pombo. Foto: BF A grande diferença dos remates madeirenses é a sua associação às cabeças de menino, mas também a cabeças femininas, mais requintadas e com elementos específicos de abastança, como brincos e colares. Parece, assim, estar-se na presença, não só de símbolos de virilidade, fertilidade e abundância, como seriam as pombas evocativas do Espírito Santo, que a Igreja Católica reservou como instrumento divino de Encarnação da Virgem, como da felicidade imediata do casal, como seriam as cabeças de menino, alusivas aos filhos que geraram. A generalização do costume dos remates de telhado em forma de pomba levou, no entanto, à sua utilização em outras habitações, como na residência paroquial de S. Pedro do Funchal, um dos poucos exemplares verdadeiramente artesanais localizados em plena cidade e obtidos pela modelação de argamassa e telha recortada. A enorme divulgação dos remates de teto figurativos na Madeira parece estar associada ao surto de construção ocorrido entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, que surgiu na sequência da divulgação da telha Marselha e adveio do poder económico dos emigrantes de “torna-viagem” (Emigração), especialmente de Demerara, daí a designação “demeraristas” dada às suas habitações (Arquitetura). Deve datar dessa época a encomenda massiva às antigas olarias madeirenses dos remates e a sua execução em barro então cozido por moldes, embora também apareçam exemplares em fibrocimento. Existem cerca de meia dúzia de variantes das pombinhas, em repouso ou com asas levantadas, sendo inclusivamente utilizadas como remates e decoração das asnas superiores dos tetos, que parecem já apontar, por vezes, para um gosto orientalizante ou orientalista, dito “chinoiserie”. A utilização destes remates é, aliás, muito comum na arquitetura chinesa, tendo influenciado decidamente alguns exemplares madeirenses mais eruditos, como os dragões chineses que ainda subsistem numa habitação abastada do sítio do Trapiche, na freguesia de Santo António do Funchal, onde as telhas de divisão das águas se apresentam decoradas no dorso com elementos lanceolados, e que também existiram numa outra habitação da freguesia do Monte, junto do cemitério, que foi já demolida. A imaginação popular, entretanto, foi criando outras variantes, como papagaios, muito divulgados, alguns tipos de cabeças de cão, gatos em meia figura – que surgem no centro de Machico ligadas às datas de 1924 e 1932 – e galos, sendo estas duas últimas figuras algo raras. Relativamente às figuras de cão, deve registar-se alguma influência inglesa, uma das matrizes de referência da cultura madeirense dos finais do séc. XIX, pois que o modelo que se tipificou foi o do buldogue, e não o dos normais cães de guarda portugueses. As variantes das folhas de acanto também são várias, podendo aparecer colocadas na vertical ou inclinadas e simplificadas para pequenos elementos lanceolados ou pela aplicação de simples pontas obtidas pelo recorte de telhas. Divulgaram-se igualmente elementos inspirados em concheados, conhecidos como “patas de leão”, que, dada a extinção das olarias na RAM, passaram a ser comercializados por olarias continentais. Os novos modelos da arquitetura e da construção civil já não contemplam a aplicação destas antigas marcas ancestrais e o encerramento das olarias madeirenses, na última década do séc. XX, decretou o fim desta ancestral tradição.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

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