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sé do funchal

A Sé do Funchal é o mais importante conjunto patrimonial religioso da Madeira. Construída e sagrada como tal na época áurea da expansão portuguesa e europeia, foi dotada com aquilo que de melhor o rei de Portugal pôde enviar para a Ilha e que, nos anos seguintes, os seus quadros, ou seja, bispo, cabido e demais ministros eclesiásticos, mas também a população, através das confrarias e de ações individuais, preservaram e aumentaram. Contingências várias proporcionaram que conseguisse chegar aos nossos dias com as linhas gerais com que foi construída nos primeiros anos do séc. XVI e com o principal equipamento com que foi inicialmente dotada, por D. Manuel I (1469-1521), o que não aconteceu com as suas congéneres continentais, espelhando interiormente as várias épocas e devoções, bem como a maior parte da história da Madeira. Sé do Funchal. Vista da nave central. Foto: BF A necessidade de construção de uma nova igreja para o Funchal fez-se sentir logo pelos meados do séc. XV, dado o desenvolvimento populacional e económico dessa então vila. A determinação surgiu em 1486, com a subida à administração da Ordem de Cristo do à data duque D. Manuel, escolhendo-se o antigo “chão do duque” seu pai, até então utilizado para experiências de plantio das várias espécies de cana-de-açúcar, para se edificar uma câmara e paço de tabeliães, uma “igreja grande” e uma praça para o pelourinho, denominado “picota” (Urbanismo; Pelourinho). A situação de instabilidade das coroas de Portugal, Castela e Aragão, face à delimitação das áreas de influência ultramarina, protelou as obras da igreja, acontecendo o mesmo localmente, dados os custos que tal empreendimento representava para a população e até porque, pouco tempo depois, também estava em construção o convento de Santa Clara. Os oficiais do concelho insistiam que seria mais fácil e económico construir a “igreja grande” como ampliação da de N.ª Sr.ª do Calhau, ou como ampliação da da Conceição de Cima, onde estaria para se fazer o convento de S.ta Clara. O impasse levou, inclusivamente, a que, nos finais de 1488, na vereação de 28 de dezembro, o capitão do Funchal ameaçasse não participar na reunião camarária se os oficiais não respondessem à carta do duque sobre “o fazimento da sé em baixo” (ARM, Câmara Municipal..., liv. 1299, fl. 53v.); de facto, somente acedeu depois de lhe garantirem que já havia sido dada a resposta afirmativa ao contador do duque. Saliente-se que o capitão do Funchal já utiliza a designação de “sé”, sinal que a instituição da Diocese era assunto assente em 1488, provavelmente com base nas cartas de D. Beatriz e do vigário de Tomar, escritas quase 10 anos antes, quando, em janeiro de 1477, o bispo de Tânger, D. Nuno de Aguiar, pretendeu incluir a Madeira na sua diocese e visitar a Ilha. Nessa data, a infanta escreveu, em nome do “dom” prior de Tomar, e o mesmo fez o secretário da Ordem de Cristo, não autorizando o bispo a entrar na Ilha e exortando a população a que não se “agastasse”, pois “cedo, com o favor divino, esperava el-rei, nosso senhor, criar bispo da mesma Ordem na Ilha” (COSTA, 1995, 36). As cartas foram presentes à vereação camarária de 1 de junho seguinte, realizada em N.ª Sr.ª do Calhau. Nessa data ainda reinava D. Afonso V (1432-1481) e, em 1488, reinava D. João II (1455-1495), existindo já um herdeiro para o trono, o infante D. Afonso (1475-1491). Logo, foram escritas e remetidas numa altura em que o duque D. Manuel não tinha em mente a possibilidade de vir a ser rei. Nesse quadro, só depois da subida ao trono de D. Manuel, em 25 de outubro de 1495, se começou a pressionar decisivamente para a executar as obras da nova igreja e só com a definição concreta da Coroa portuguesa no quadro ibérico se passou a contemplar um projeto mais alargado, de criação de uma diocese, o que se equacionava havia mais de 20 anos. O rei D. Manuel era primo direito da rainha de Castela, Isabel, a Católica (1451-1504), casada com Fernando de Aragão (1479-1516). Com o falecimento do infante D. Afonso, filho de D. João II e legítimo herdeiro da coroa, subiu ao trono D. Manuel, que se casou com a viúva do infante, filha mais velha dos Reis Católicos, pelo que, em 1498, o casal chegou a ser jurado herdeiro dos tronos de Castela e de Aragão. Entretanto, falecendo a rainha de parto e, pouco depois, o jovem príncipe, a sucessão dos senhorios desses reinos ibéricos passou para a outra irmã e para o filho, o futuro imperador Carlos V. Mas, mantendo-se em Roma o papa Alexandre VI (1431-1503), nascido Rodrigo de Bórgia e que fora arcebispo de Valência, especial defensor dos interesses dos Reis Católicos, foi preciso aguardar mais algum tempo para poder negociar a criação de uma diocese ultramarina em Portugal. O rei D. Manuel, a partir de 1500, iniciou um programa de reestruturação administrativa geral da ilha da Madeira, começando por criar, em dezembro de 1501, com o falecimento do segundo capitão-donatário, em março desse ano, a vila da Ponta do Sol e, em julho de 1502, a vila da Calheta, desmembrando, assim, o espaço administrativo do Funchal. No entanto, a 16 de agosto de 1502, cativou as imposições das vilas recém-criadas para fazer face às obras da nova igreja do Funchal. Estando levantadas as paredes desta igreja em 1508, data em foram benzidas por D. João Lobo, bispo de Tânger, elevou o Funchal a cidade, a 21 de agosto do mesmo ano, iniciando os contatos para a criação, na nova cidade, da diocese dos Descobrimentos. As despesas de manutenção do culto religioso eram da responsabilidade geral da Ordem de Cristo, mas a sua definição precisa levou algum tempo a ser determinada. Cobrando a administração da Ordem o dízimo eclesiástico, cabia-lhe o pagamento da manutenção do clero e do culto, mas com o desenvolvimento da comunidade e a diversificação das fontes de rendimento, houve que especificar concretamente as responsabilidades. À Ordem de Cristo e então à coroa passou a corresponder o pagamento das côngruas do clero, o projeto geral das novas igrejas e o acervo e manutenção da capela-mor, ou seja, altar, retábulo e principais alfaias religiosas, tal como o serviço dessa capela e da sacristia. Cabendo à coroa a coordenação geral do projeto, ficando prontas as capelas colaterais da futura sé, em agosto de 1508, o rei determinou a sua venda, para, com o dinheiro das mesmas, continuar as obras. Definia-se assim o modelo de financiamento do culto, com a coroa a pagar, através da Alfândega, as despesas gerais do clero e do culto, mas os habitantes, em nome individual ou através das confrarias, a pagarem o serviço das restantes capelas. Com a instalação de uma fábrica com verbas próprias e responsável pela manutenção geral do edifício, veio a atribuir-se à mesma também os dinheiros obtidos com os enterramentos, situação com a qual, juridicamente, nem todos os analistas estiveram de acordo, dado que fora a população que pagara o corpo da igreja (Cemitérios). Os serviços religiosos começaram a funcionar na nova igreja em 1512, data em que também foi referida a necessidade de cativar verbas para o retábulo, devendo o mesmo estar a ser montado com o cadeiral dois anos depois. Esta informação coloca em causa a longa tradição histórica das “ofertas” do magnânimo rei D. Manuel, pois grande parte das obras acabou por ser paga pelos rendimentos da Ilha e pelos vários impostos criados especialmente para esse efeito. Mais tarde, quando D. João III mandou entregar ao cabido do Funchal, em 1528, o conjunto de alfaias encomendadas pelo pai, do qual faz parte a magnífica cruz processional, as mesmas vieram acompanhadas do peso da prata e da conta “do feitio” de cada peça (ANTT, Cabido..., avulsos, mç. 7), com certeza, para tudo ser descontado nas contas da fábrica da sé. A 12 de junho de 1514 a igreja foi elevada a sé por bula do papa Leão X e a 2 de agosto ainda se trocava correspondência sobre como rematar a torre. O cadeiral para o coro da capela-mor estava a ser montado nos meados ou finais desse ano, pois D. Manuel, em carta de 27 de fevereiro de 1515, a pedido da Câmara, autorizava que o coro se não fizesse na capela-mor, o que acabou por não ter efeito, dado que o mesmo se manteve nesse local, já devendo estar, então, em adiantado estado de montagem. Tudo devia estar concluído a 18 de outubro de 1517, quando o altar-mor foi sagrado por D. Duarte, bispo de Dume, por delegação do bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro, em nome da “Beatíssima Virgem Maria e das Onze Mil Virgens” (APEF, Documentação de sagração...). O projeto da nova igreja deve ter vindo de Lisboa ou de Tomar, sede da Ordem de Cristo, nos meados da déc. de 80, quando o duque D. Manuel começou a cativar as verbas para a futura construção ou, mais provavelmente, por volta de 1492, quando enviou para o Funchal um escrivão para a obra, Marcos Lopes, depois elevado a escudeiro da casa real e mamposteiro-mor dos cativos e que se fez enterrar na sé. Por essa altura, sensivelmente, deve ter ido também para o Funchal um mestre-de-obras, João Gonçalves, embora só tenhamos conhecimento da sua existência em 6 de junho de 1503, quando se deslocou a Lisboa, “por causa da mãe”, provavelmente doente e foi apresentar ao rei D. Manuel o estado da construção da então “igreja nova” (ANTT, Corpo Cronológico, Fragmentos, doc. 7). O mestre João Gonçalves era pago através do capitão do Funchal, superintendente das alfândegas, mas não voltamos a ter informações a seu respeito, pelo que não deve ter voltado à Madeira. A igreja, no entanto, estava sumariamente levantada por volta de 1508, como antes afirmámos, ano em que foi sagrada por D. João Lobo, bispo de Tânger e quando o rei mandou colocar à venda as capelas colaterais, tal como referimos, para com o dinheiro continuar as obras, tudo assuntos que acabaram por ficar ao cuidado do vigário frei Nuno Cão (c. 1460-1530), correndo os pagamentos pela fazenda régia, com uma interferência mínima por parte do capitão do Funchal. Entre 1514 e 1517 voltamos a ter informações da direção geral das obras, encontrando-se as mesmas entregues a Pêro Anes, “mestre das obras de Sua Alteza” e “mestre da carpintaria” da sé e da Alfândega (ANTT, Núcleo Antigo, doc. 764). Temos, assim, nesses anos, uma profunda alteração da situação, com um mestre das obras reais de carpintaria à frente destas empreitadas, como era habitual no continente, passando os mestres pedreiros a seus subordinados. A superintendência de Pêro Anes sobre as obras da sé parece confirmada na assinatura de mestre: um compasso de pontas que aparece nas paredes da antiga capela do Amparo e na porta da antiga sacristia, sob a torre da sé, em tudo semelhante às que constam na documentação dos arquivos camarários do Funchal onde assinou pareceres. Para além de inúmeros carpinteiros, do mestre das obras reais Pêro Anes terá dependido Gil Enes, que mais tarde se fez enterrar na Serra de Água como “mestre pedreiro da sé” (NORONHA, 1996, 135-136). Ao contrário, o mestre das obras reais Pêro Anes seria enterrado na sé, entre 1536 e 1538, data provável do seu falecimento e, muito mais tarde, em 1579, a sua viúva, Isabel Gonçalves, ainda era referida como “mestra da sé” (ARM, Registos Paroquiais, Sé, Óbidos, liv. 5, fls. 83v. e 100), sinal da fama de longa duração que o marido, mestre Pêro Anes, gozara. A Sé do Funchal é uma igreja de três naves com transepto somente definido em planta, com ampla nave central e largo transepto, o mais largo das catedrais portuguesas. De tudo isto resulta uma edificação clara e luminosa, destacando-se também a inteligência e singularidade da aplicação dos materiais locais que caracterizam o modelo corrente português de arquitetura chã, uma arquitetura despojada, repetida e apurada na infinita variação local de igrejas mais ou menos comuns, mas algumas depois instituídas em sés. Teto da capela-mor. Foto BF O aumento da dimensão da nave central e do transepto apontam já o decidido propósito ducal ou real de a tornar, futuramente, sede do bispado dos Descobrimentos. A cobertura das naves e do transepto por um magnífico conjunto de tetos mudéjares (Tetos de alfarge), o mais monumental que chegou aos nossos dias em Portugal, tal como a montagem, na capela-mor, de um aparatoso retábulo e de um cadeiral, evidenciam, decididamente, o intento manuelino de levantar uma igreja primaz das Índias Orientais e Ocidentais. O conjunto da Sé do Funchal assenta numa plataforma nivelada, constituída por um adro gradeado, razoavelmente amplo, com a fachada principal virada a poente, aspeto obrigatório até ao Concílio de Trento, localização onde se veio a colocar a estátua do papa João Paulo II, que aí esteve em 12 de maio de 1991. O pano central é totalmente em cantaria vermelha aparente do cabo Girão, ligeiramente relevado em relação aos laterais, com um pequeno portal de seis arquivoltas, envolvido por arco relevado, rematado superiormente pelo que parece ser uma copa ou uma custódia, encimada pelas armas de D. Manuel com coroa aberta. Superiormente, apresenta uma pequena rosácea com grilhagem radiante centrada numa pequena cruz de Cristo, sendo rematada por cimalha de cantaria e, igualmente, pela cruz de Cristo. Os panos laterais são cegos, caiados e estão rematados, lateralmente, por fortes cunhais de cantaria aparente. As fachadas laterais das naves apresentam quatro janelas em forma de fresta, que se repetem no clerestório, ou seja, na parte superior da nave central, aí com colunelos decorados, de que restam vestígios, e existe um largo janelão quadrangular a iluminar o batistério, a norte, provavelmente, algo posterior. Todas as janelas são da construção inicial, embora as paredes tenham sido reforçadas nas obras de 1790 para a reposição dos altares das confrarias, nessa altura, foram feitos os portais neoclássicos, atribuíveis ao pintor e arquiteto de origem canária António Vila Vicêncio (c. 1730-1796), então mestre das obras reais. O adro serviu também de cemitério, talvez nos meados do séc. XVIII, quando se limitou ao máximo os enterramentos no interior dos templos, aparecendo quase sempre restos de ossadas quando se processam obras nessas áreas. No lajeamento, foram utilizadas algumas pedras tumulares provenientes do interior da sé, mas a maioria das inscrições terão sido bujardadas. Escapou um pequeno fragmento na área norte, com escrita gótica, mas quase impossível de ler, provavelmente, é das mais antigas lápides da sé. Para os degraus da porta sul também foram utilizadas lápides sepulcrais antigas, uma das quais muito curiosa, porque dupla. A inscrição refere ser da sepultura de Manuel Vieira Jardim, mulher e herdeiros, e de Pedro Vaz, mercador e, igualmente, mulher e herdeiros, tudo famílias de cristãos-novos dos meados do séc. XVI. A sua colocação fora do edifício da sé e como degrau da porta parece indiciar que, mesmo nos finais do séc. XVIII, o estigma de cristão-novo se mantinha. O transepto tem um grande impacto visual e apresenta janelões, já de alguma dimensão, nas paredes laterais, tendo o virado a poente, do braço norte, capitéis com esferas armilares; os do braço oposto são mais simples e, um deles, foi aberto em campanha de obras bastante posterior. As fachadas sul e norte têm pequenas rosáceas, semelhantes à da fachada poente. O janelão poente do braço norte do transepto ainda apresenta, interiormente, moldura polilobada de tradição tardo-gótica que deverá ter tido correspondência no braço sul, mas que sucessivas obras de reabilitação terão feito desaparecer. A cabeceira apresenta-se toda em cantaria aparente e é composta por abside de topo facetado, com quatro contrafortes repostos nas campanhas de obras dos meados do séc. XX, altura em que foram também repostas as frestas de arcos apontados, então dotadas de vitrais de Joaquim Rebocho (1912-?), datados de 1959. O absidíolo da atual capela do Santíssimo é igualmente reforçado por contrafortes escalonados, rematado por uma grelha decorada com cruzes de Cristo e encimada por grandes pináculos torsos, sendo o remate da inicial capela de Santiago, a norte, uma reposição conjetural, efetuada na campanha de 1950. A direção das obras gerais de levantamento das paredes da sé e da torre parecem ter sido da responsabilidade do mestre João Gonçalves, entre 1492 e 1503, ano em que se deslocou a Lisboa, como referimos, e parece não ter voltado à Ilha. No entanto, nos anos seguintes, a direção foi assumida por Pêro Anes que, além das obras da sé, se encarregou, a partir de 1514, das da alfândega (Alfândega nova). Destes factos, resultam duas leituras totalmente diferentes da sé: exteriormente, vemos um edifício fechado e marcadamente de uma ordem militar, em especial, na desmesurada torre sineira medieval, coroada com ameias e merlões piramidais, e interiormente, um elegante e luminoso conjunto, sobretudo na articulação das altas colunas de suporte dos magníficos tetos de alfarge. Torre da Sé. Foto BF. A torre, elevando-se a cerca de 55 m de altura, possui quatro pisos com cobertura de abóbadas nervadas e janelas para nascente, sendo o último ocupado pelos sinos, com sete janelas sineiras. O pequeno terraço superior sobre o andar dos sinos encontra-se praticamente rematado ao gosto dos castelos medievais templários, indiciando uma campanha de obras de um mestre diferente daquele que executou o coruchéu quadrangular piramidal, assente sobre oito arcos góticos com capitéis decorados com motivos vegetalistas e revestido de azulejos sevilhanos, por certo, obra da campanha seguinte, de Pêro Anes. O acesso exterior é hoje feito por uma pequena porta de arco apontado, acedida por um lanço de escadas adossadas, reconhecendo-se as estreitas escadas de caracol interiores de acesso aos vários pisos pela sequência das pequenas frestas de iluminação. Esta torre marcou ainda toda a história urbana da cidade pelo seu impacto visual, e a regional, dado ter servido de prisão a inúmeros eclesiásticos nas complicadas questões que opuseram os prelados ao clero local. Na junção superior com o braço do transepto, que corre à mesma face, resiste uma gárgula, em forma de canhão de corpo helicoidal, porventura a única gárgula que resta das campanhas iniciais do edifício. O coruchéu de remate da torre, revestido a azulejos das oficinas de Sevilha, foi mandado levantar em agosto de 1514 pelo rei D. Manuel. O remate superior, no entanto, é uma reposição de outubro de 1601, dado o original ter sido derrubado por um temporal, ocorrido a 28 de dezembro de 1591, tendo a grimpa, na queda, provocado importantes estragos na cobertura da abside. A reposição utilizou já azulejos de produção nacional e a nova grimpa não reaproveitou os pesados materiais da anterior, com quase 100 kg, em ferro e cobre, entretanto vendidos, mas repetiu em linhas gerais, por certo, a sua forma inicial, rematada por esfera armilar e catavento. O acesso principal da sé é feito por um para-vento montado na campanha de obras de 1790 a 1794, altura em que foi construído o coro sobre a entrada. As pesadas portadas da entrada principal da sé não são já as de origem, pois foram remontadas em 1652, pelo carpinteiro Manuel Afonso, com cedro vindo da Ponta do Sol, tendo-se utilizado também antigas madeiras, que pertenciam à fábrica da igreja e que repetem, em desenho inciso, as decorações do teto mudéjar. Face ao desenho de raiz islâmica, podemos afirmar que se trata de um trabalho contemporâneo dos magníficos tetos que cobrem quase toda a igreja, pois, poucos anos mais tarde, com a entrada da Inquisição em Portugal e as diretivas do Concílio de Trento, não era possível executar um trabalho do género. A dificuldade de o observar, dado o contraste da luz interior com a exterior terá possibilitado que chegasse aos nossos dias. A entrada dá acesso ao batistério, a norte, dotado de interessantes arcos de cantaria e abóbada de nervuras manuelina, tendo, no interior, a pia batismal, em calcário-brecha da serra da Arrábida. A Coroa manuelina estabeleceu um quase monopólio sobre as correspondentes pedreiras, pelo que os vários elementos neste tipo de calcário que existem na sé devem ter vindo das oficinas reais da área de Setúbal. Embutido na parede, existe um pequeno armário; nas paredes superiores do batistério, encontram-se pintadas as armas reais e uma esfera armilar; em princípio, tudo contemporâneo das primeiras décadas de vida da sé. No lado sul, encontra-se um compartimento semelhante em dimensões, igualmente com um interessante arco manuelino, rematado superiormente por esfera armilar, que dá acesso às escadas para o coro. O arco parece ser, decididamente, manuelino, embora conste nos cadernos das obras de 1790 como tendo sido levantado apenas então. Deve, assim, ter sido remontado de uma estrutura anterior, pois apresenta todas as características estilísticas e materiais dos inícios do séc. XVI. Na campanha de obras de abril de 1755, para esta área e para a das portas laterais, já no interior, quando a sé foi quase toda assoalhada, a maioria das lápides sepulcrais que existiam dispersas pela igreja foi transferida, referindo-se que se deveriam aproveitar as que se encontravam em melhor estado. Para a entrada foi transferida uma lápide das esculpidas em pedra azul-escura, muito semelhante às chamadas “pedras azuis” de Hainaut, na Bélgica, rematadas por inscrições laterais, que, aqui, infelizmente, se perderam; ainda assim, o grupo de lápides da sé, remontado nas juntas das portas laterais, é o maior que se regista em Portugal (Lápides sepulcrais). O interior da Sé do Funchal é definido por um conjunto de dupla e elegante arcaria de finas colunas góticas decoradas com capitéis esculpidos, delimitando uma alta nave central iluminada por frestas, sendo os tetos elaborados em madeira de cedro insular (juniperus oxycedrus). O conjunto destas complexas armações de carpintaria de alfarge, que referimos atrás, chamados “tetos mudéjares” ou “de alfarge”, é, como notámos antes, o maior existente em território nacional. Esta ampla campanha de obras deve ter ocorrido sob a direção de Pêro Anes, “mestre das obras de Sua Alteza”, tal como indicámos, que, por volta de 1514 e já na direção das obras da Alfândega, estava à frente de uma larga equipa de carpinteiros, onde, a par dos seus três criados – Bartolomeu, Brás e Cosmo –, tinha sob as suas ordens mais de dezena e meia de carpinteiros, serradores, ajudantes e, inclusivamente, escravos. O conjunto da capela-mor da Sé do Funchal é uma “joia da coroa” da Região, dado ser o único conjunto manuelino de altar, retábulo e cadeiral que chegou aos nossos dias no seu local original. A estrutura geral da capela estava pronta em 1508, data da bênção do templo e em que foram colocadas à venda as capelas colaterais, tal como expusemos antes. A capela abre com um arco triunfal polilobado, sendo coberta por uma abóbada de nervuras de três tramos, com as armas de D. Manuel na última chave, cruz de Cristo e esfera armilar nas outras chaves, e os capitéis de arranque dos arcos das abóbadas com decoração zoomórfica e antropomórfica bastante cuidada. Todo o conjunto se apresenta profusamente pintado e dourado, o que será especialmente fruto da campanha de obras dos meados do séc. XVIII, da oficina de António Vila Vicêncio, que parece ter-se deslocado das Canárias para efetuar este trabalho, acabando por se radicar no Funchal.   Este complexo foi sofrendo reabilitações ao longo dos séculos, adaptando-se, inclusivamente, às alterações litúrgicas, mas manteve, no essencial, a articulação geral dos inícios do séc. XVI e, muito especialmente, o mencionado conjunto do primitivo altar manuelino, recuperado nos finais do séc. XX, dado nos finais do XVI, em princípio, ter sido incluído no altar tridentino, tal como o retábulo e o cadeiral manuelinos. Deve datar dos finais do séc. XVI ou dos meados do XVII a construção de uma cripta sob o altar, onde passaram a ser sepultados os prelados que foram falecendo na diocese, embora tivessem sido muito poucos e somente um se encontre identificado no exterior da sepultura: D. Fr. António Teles da Silva, 11.º bispo do Funchal, falecido em 1682. Deve datar de 1512, de quando o serviço religioso do Funchal foi transferido para a nova igreja, a assunção, pela corte de D. Manuel, das responsabilidades da elevação da nova igreja principal a sé, assunto que fora equacionado havia mais de uma dezena de anos, tal como expusemos atrás, e que ficou patente, também nessa data, na cativação de dinheiro para o futuro retábulo. Nestes anos, o retábulo português conheceu uma especial evolução iconográfica, tornando-se num políptico rígido, enquanto na Flandres e mesmo em Castela se mantiveram os painéis articuláveis, adaptando-se à planta do topo das absides. Cadeiral da Sé. Foto: BF                Retábulo-mor. Foto BF O retábulo do Funchal é constituído por cinco corpos, dispostos em três andares e rematado superiormente por um sobrecéu com francas afinidades com o do cadeiral, tendo ao centro as armas de D. Manuel, ladeadas por duas esferas armilares. O corpo central do políptico terá sido ocupado, inicialmente, por três conjuntos escultóricos, dos quais resta, in loco, somente o sacrário, no corpo inferior. O corpo intermédio está ocupado, neste início de milénio, por uma monumental imagem da N.ª Sr.ª da Assunção ou da Conceição, de uma oficina continental do séc. XVIII e o registo superior foi, entretanto, preenchido com um crucifixo, em memória do Calvário desaparecido. O conjunto das 12 pinturas a óleo ao gosto flamengo encontra-se dividido de acordo com as orientações iconográficas religiosas então seguidas: o primeiro registo, com cenas do Antigo Testamento e da Paixão de Cristo; o registo médio, com temática mariana, evocação do orago da Sé do Funchal e de todas as congéneres portuguesas; o registo superior, as representações finais da Paixão, com a Descida da Cruz e a Ressurreição. A oficina régia encarregada desta empreitada continua por esclarecer, sendo a opinião mais corrente, já na passagem para o séc. XXI, a de que houve uma parceria alargada na execução dos vários painéis, mantendo-se a atribuição de ao incógnito Mestre da Lourinhã. Para além dessa oficina, devem ter trabalhado outras duas, não sendo de excluir a hipótese de uma delas ser a de Francisco Henriques (c. 1460-1518), ou alguns elementos que estavam ligados à mesma, tendo sido ela que, por volta de 1500, terá trabalhado na matriz da Ribeira Brava. As pinturas foram executadas no continente, segundo um programa iconográfico certamente proposto pelo grão prior da Ordem de Cristo, em Tomar, o futuro bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro (1437-1525), que cuidava no despacho régio, e aprovado pelo rei D. Manuel. A equipa que se deslocou ao Funchal para a sua montagem na máquina retabular terá sido a mesma que executou o cadeiral, dadas as afinidades do trabalho geral de talha; mas comportaria vários entalhadores, como está patente nos pormenores esculpidos, podendo, um ou outro dos oficiais de talha do retábulo não terem trabalhado no cadeiral e vice-versa. O coro de uma grande igreja era essencialmente definido, ao longo da Idade Média, pelo cadeiral onde os vários clérigos rezavam e celebravam os ofícios em conjunto e era praticamente sempre nos presbitérios ou capelas-mores. Tratava-se de um espaço fechado à igreja e onde decorriam, inclusivamente, as reuniões mais importantes do cabido, tendo o rei D. Manuel, em 1517, proibido os leigos de entrarem na capela e coro da Sé do Funchal. A parede do cadeiral que fechava a capela-mor apresentaria duas portas laterais, pois o centro deveria ser ocupado pela cátedra episcopal. O cadeiral do Funchal foi alterado em 1587 e em 1588, talvez na sequência dos desmandos ocorridos durante o saque corsário de 1566 e, muito especialmente, como consequência da implantação das diretivas de Trento, na vigência do bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608), altura em que foram retiradas “umas cadeiras do coro, que não serviam” (FERREIRA, 1963, 249). Tudo leva a crer que o trabalho da montagem do retábulo e da execução do cadeiral da “igreja nova”, a, em breve, Sé do Funchal, tivesse sido executado pela equipa do mestre Machim Fernandes, dadas as semelhanças existentes com o cadeiral da colegiada de Santa Cruz de Coimbra, onde o mesmo trabalhara entre 1512 e 1513 (Cadeirais). Este mestre, de provável origem alemã e talvez de nome Maximiliano, fora contratado em Toledo, juntamente com o “carpinteiro de Tomar” João de Tojal (Sé do Funchal, 2003, 65-67), e estava naquela cidade em fevereiro de 1513, tendo acabado, ambos, as cadeiras dos cónegos da igreja de S. João Batista, em novembro do mesmo ano. Em fevereiro seguinte, os seus trabalhos foram vistos pelo próprio rei D. Manuel, tendo então sido, provavelmente, contratados para seguirem para o Funchal. O largo transepto da sé é definido somente em planta, como já afirmámos, pois é constituído pelo prolongamento da nave central e, lateralmente, por duas capelas independentes, cobertas por elaborados tetos de alfarge. A cabeceira interior da sé, onde se inscrevem os arcos triunfais da capela-mor e das colaterais, apresenta um pano frontal muito amplo, largamente iluminado pelas grandes janelas do transepto e por um pequeno óculo sobre o arco triunfal da capela-mor. Especialmente na capela do Senhor Jesus, os dois janelões permitem uma visão quase luminosa do teto mudéjar, o que não acontece nos restantes espaços da sé, sendo as capelas colaterais dedicadas ao Santíssimo e a N.ª Sr.ª de Lourdes, mas tiverem inicialmente outras evocações. Na capela que depois foi do Santíssimo começou a funcionar, entre 1508 e 1512, a capela de Pedro Gonçalves de Barros e de sua mulher Branca Fernandes, que haviam adquirido esse espaço, cuja evocação inicial se desconhece. Sabe-se apenas que, nos meados do séc. XVI, estava consagrada ao Santíssimo Sacramento, pois o Santíssimo encontrava-se no sacrário do retábulo da capela-mor. Como para esta capela teria sido encomendado, em Antuérpia, um retábulo do Calvário, atribuído a Pieter Coeck van Aelst (1502-1556), é possível que a mesma tenha tido essa evocação, sendo, em 1566, designada do Sacramento e, em princípio, só após o Concílio de Trento, do Santíssimo Sacramento, já sendo assim referida em 1572. A capela passou depois para Manuel de Barros, casado com Maria de Lemos, que terão encomendado um novo retábulo, pintado a óleo, muito possivelmente um tríptico, mas do qual só resta a tábua central, hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal (MASF). A manutenção do altar passou depois à filha, Branca de Barros, falecida em outubro de 1621, casada com Francisco Bettencourt de Atouguia e daí aos Barros Atouguia, como registou Henriques de Noronha, família essa que deveria incluir Gonçalo de Barros, falecido a 3 de janeiro de 1613, como consta na sua pedra tumular, que se encontra na entrada da sé. A confraria do Santíssimo da sé não deve datar de muito antes do episcopado de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), iniciado em 1573 e prolongado até 1585, quando se registaram, nas Constituições de 1585, as regras gerais por que se deveriam reger as confrarias, de acordo com as diretivas iniciais do Concílio de Trento (Confrarias). Com este prelado deve ter passado a capela do Santíssimo, pois quando chegou ao Funchal o bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, foi assim referida, na visita que o mesmo lhe fez, na sua entrada solene. Durante este novo episcopado são várias as indicações da existência da confraria, mas a instituição da mesma, com a aprovação dos respetivos estatutos, data do episcopado de D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), concretamente, de 1638, embora também só o saibamos por documentação posterior. Na transição do séc. XVI para o XVII, a confraria do Santíssimo corporizou especialmente os ideais reformistas de Trento, integrando “os homens principais da terra”, que pertenciam também a outras confrarias, “para melhor serviço de Deus e bem das almas” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tombo 7, fls. 86v.-87). Nos meados do séc. XVII, esta confraria ganhou ascendente sobre as restantes, chegando a pedir para os elementos da sua mesa serem dispensados do serviço de vigias e alardos (Vigias). No quadro das ações gerais de afirmação social da confraria do Santíssimo da sé, em 1648, quando presidia o reitor Jorge de Andrade Correia e era tesoureiro Francisco Gonçalves Figueira, a mesa da confraria encomendou à oficina de Manuel Pereira (c. 1605-1679) a mais monumental obra de talha do seu tempo: o conjunto escultórico do camarim da sé. Os trabalhos decorreram entre 1648 e 1654, envolvendo uma vasta equipa, marcando, a partir de então, com a sua montagem e até aos meados do séc. XIX, as festas da Semana Santa no Funchal. A montagem e remontagem sucessiva dos vários andares dessa estrutura, ao longo dos anos, danificou irremediavelmente o conjunto escultórico do camarim, que chegou aos finais do séc. XVIII em muito mau estado. Foram então encetadas várias tentativas de reformulação, o que veio a ocorrer, sob a direção do mestre Estevão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), em 1801. No entanto, nos meados do século, estava de novo impraticável de montar, acabando por serem recolhidas, no MASF, as suas peças principais. Com a exposição do trabalho do camarim, as confrarias do Amparo e do Santíssimo devem ter-se abalançado, por pressão do cabido da sé, certamente, a mandar executar os remates de coroamento dos arcos de acesso às respetivas capelas, entre 1660 e 1670. São dois monumentais trabalhos de talha dourada, com os pendentes com dois anjos apresentando coroas de louro e, por cima, um entablamento maneirista, de inspiração arquitetónica, rematado por um frontão triangular e a enquadrar duas grandes telas de dois metros de largura, provavelmente, de uma oficina local. A rigidez dos anjos, no entanto, aponta mais para um dos mestres que trabalhou na oficina de Manuel Pereira do que para o mestre em questão, embora a obra repita o mesmo esquema maneirista geral usado pela oficina. Por estes anos, também, a confraria do Santíssimo ampliou o conjunto de alfaias de prata do seu serviço, encontrando-se algumas documentadas. A maior parte delas foi reformulada depois, dando origem a outras, dentro do costume de fundir as peças mais antigas e já com defeitos, para, com a sua prata, mandar executar alfaias novas (Ourivesaria e prataria). Em 1661, por exemplo, foram realizados vários trabalhos deste teor pelos ourives Simão Lopes, Manuel Fernandes Chita, Sebastião de Afonseca e António de Araújo. A entrega deste tipo de trabalho a vários prateiros adveio do acidente ocorrido em 1658, quando a confraria confiou ao prateiro José Dias Araújo a prata de “dois anos de esmolas que deram os irmãos da mesa” para fazer um sacrário e o mesmo fugiu com a mesma para o Brasil (Sacrários) (FERREIRA, 1963, 214). Sé do Funchal. Sacrário. Foto: BF Na segunda metade do séc. XVIII, a capela do Santíssimo foi reformada já ao gosto rococó, com um novo retábulo de talha onde figuram as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. O autor do risco destas peças foi o mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), que trabalhou sobre uma proposta do entalhador Julião Francisco Ferreira, pois parte dos mesmos trabalhos foi pago pela fazenda régia. Executaram os labores de escultura os entalhadores António José, António João, Manuel Francisco Gomes, o escultor Agostinho José Marques e o limpador João de Nóbrega, que preparou o trabalho para o dourador José António da Costa, também pintor, natural das Canárias e cunhado de António Vila Vicêncio. Os trabalhos decorreram entre janeiro de 1769 e fevereiro de 1772, custando à confraria a importante verba de mais de oito contos de réis. O conjunto apresenta uma certa harmonia, embora dentro do gosto pesado de começo do rococó, com as virtudes, nas paredes laterais, assentes em largas peanhas entalhadas, ladeadas por colunas salomónicas e encimadas por um baldaquino, do qual pende um dossel, também entalhado. O mesmo esquema foi repetido no retábulo, encimado por uma cimalha contracurvada com baldaquino e com uma grilhagem decorativa, entre o rococó e o neoclássico, no topo. O retábulo foi sobrelevado cerca de 20 anos depois, quando se deu a grande reforma dos altares das confrarias, dentro do gosto de transição do rococó para o neoclássico difundido pela oficina do mestre Estêvão Teixeira de Nóbrega, como é patente na própria estrutura retabular. Nessa altura, ter-se-á voltado a dourar e policromar a parte superior do retábulo, como atestam as assinaturas dos pintores Ambrósio Joaquim de Sousa e Jacinto Januário de Vasconcelos, em 1790. Nos inícios do séc. XIX, ainda para esta capela, foram adquiridos os grandes potes de porcelana chinesa da época Kangxi, datáveis de 1680 a 1720, aproximadamente, que tinham pertencido ao bispo D. Luís Rodrigues Villares (c. 1740-1810), falecido na quinta da Nazaré, em 1810 e que teriam vindo do espólio de um anterior prelado. O complexo da confraria do Santíssimo prolonga-se para as traseiras da sé, envolvendo um pequeno pátio interior e, nos sécs. XVIII e XIX, tinha mesmo instalações fora, pois foi necessário alugar um edifício, nomeadamente, para guardar a grande quantidade de peças que constituíam o camarim. As instalações da confraria possuem uma boa sala de reuniões, reformulada em 1732, data em que foi encomendado, em Lisboa, um bom conjunto de azulejos que chegou nesse ano, por intermédio do comerciante Caetano da Costa, registando-se os preços dos mesmos e dos transportes, mas não da oficina que os executou. Estes painéis apresentam cenas campestres e de caça inspiradas em gravuras da época, provavelmente francesas, como era hábito neste tipo de instalações, mesmo no âmbito de instituições religiosas. A capela colateral norte teve inicialmente a evocação de Santiago Maior e à mesma pertencia a tábua flamenga da oficina de Dieric Bouts, o velho (c. 1415-1475), depois transferida para a nova igreja de Santiago, levantada por voto da cidade, na sequência do surto de peste dos inícios do séc. XVI (Voto da cidade). A tábua flamenga em causa é, inclusivamente, anterior à construção da sé, datando o mais tardar de 1475, ano do falecimento de Bouts. Esta capela veio a ser comprada, em 1628, pela confraria de N.ª Sr.ª do Amparo. Tudo leva a crer que a confraria se havia instituído dois anos antes, em 1626, pois foi essa a data em que foi pintada no retábulo. A pintura em questão, um magnífico retábulo flamengo atribuível à oficina de Jan Gossart (c. 1478-1532), dito o Mabuse, dado ser natural de Maubeuge, em França, contém a inscrição “Ano de 1543”, conforme revelou o restauro efetuado nos meados do séc. XX. Trata-se de uma data posterior, em 11 anos, ao falecimento do mestre, mas a obra mantém muitas das características da pintura do mesmo. Assim, será uma obra que ficou inacabada e foi retomada, nos anos seguintes, por elementos da sua oficina. A capela do Amparo é a única que apresenta revestimento cerâmico de azulejos na Sé do Funchal, pois estes existem apenas na torre, em estilo mudéjar, datando de século e meio antes e no anexo da confraria do Santíssimo, montados no século seguinte (Azulejaria). Assim, as paredes laterais da capela do Amparo encontram-se cobertas com painéis de azulejos pseudoenxaquetados azuis e brancos do séc. XVII, tal como as paredes das escadas, mas de um século depois. São painéis de muito boa qualidade, atribuídos à oficina de Bartolomeu Antunes (1668-1753) e datáveis de cerca de 1732, quando a capela foi alterada para se construir a ligação à nova sacristia. Nos finais do séc. XIX, em data que não conseguimos apurar, a evocação da capela passou a ser de N.ª Sr.ª de Lurdes, devendo estar na origem desta alteração o 25.º bispo do Funchal, D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), cuja família possuía ligações e contactos em França. Para a capela foi uma imagem realizada por Raphael Verrebout, um célebre escultor à época, ativo entre 1857 e 1880, fundador da Raffl, Delin Frères, em Paris, casa de artigos religiosos que exportou, nesse final de século, milhares de imagens para todo o mundo. Esta capela dá acesso àquela que se veio a designar como sacristia velha, sob a torre, e que perdeu parcialmente as suas funções com a construção da nova, em 1732. É composta por uma abóbada de nervuras e apresenta ainda o antigo lavabo, cuja posição indica que terá sofrido alterações ao longo dos tempos. Para este local foi transferido, nos inícios da República, o retábulo da antiga capela de N.ª Sr.ª do Monte dos Varadouros (Portão dos Varadouros), capela então demolida e que provocou a primeira crise no seio do partido republicano madeirense (República). Trata-se de um retábulo dos primeiros anos do séc. XIX, dentro da linha geral dos existentes nas naves laterais e proveniente de uma das oficinas locais de filiação neoclássica, ficando, logicamente, muito longe da riqueza dos trabalhos montados nas naves ainda nos finais do séc. XVIII. No braço sul do transepto, foi inicialmente levantada a capela de S.ta Ana, da qual restam apenas as pinturas do retábulo. Tudo leva a crer que estas tenham chegado por interferência de António Rodrigues Mondragão, enviado a Lisboa, pela Câmara do Funchal, à aclamação de Filipe II de Castela, primeiro de Portugal. Trata-se de um conjunto de pinturas da oficina de Michel de Coxcie (1499-1592), pintor da especial estima daquele rei, encontrando-se uma assinada, com a indicação “pictor Regi” e a data de 1581. Poucos anos depois, a capela passou a ter a evocação de Senhor Jesus, sendo referida assim em 1585. No século seguinte, o altar foi novamente todo reformulado, mas manteve os painéis de Coxcie no novo e espetacular retábulo. Não possuímos referências documentais sobre a execução da primeira fase deste retábulo, datado de 1677, embora, face às características formais, deva ser atribuído à oficina de Manuel Pereira, figura dominante no panorama da talha dos meados desse século na Madeira. A avançada idade do mestre à data, indica-nos que terá sido assessorado pelo sobrinho Manuel Pereira de Almeida (c. 1648-c. 1706), que o terá concluído, entre 1683 e 1684, registando a documentação que se tratou de um “acrescentamento” (ANTT, Cabido..., liv. 21, fls. 1 e 6v.-7). No entanto, só 10 anos depois se procedeu ao douramento, provavelmente, por se ter aguardado a chegada, de Lisboa, das três grandes telas pintadas a óleo que preenchem o andar superior e que chegaram apenas em 1691, por ventura, vindas da oficina de um dos colaboradores de Bento Coelho da Silveira (c. 1620-1708), oficina que, aliás, trabalhou para a Madeira (Igreja e recolhimento do Carmo), Essas três telas repetem parte do forte colorido daquele mestre, mas as figuras nelas representadas revelam alguns defeitos anatómicos. Nesta capela, foram montadas as imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, devoções excecionalmente divulgadas nos primeiros anos do séc. XX. A imagem de Jesus é um modelo do já referido escultor Raphael Verrebout, das oficinas Raffl, Delin Frères, de Paris, dos finais do séc. XIX ou inícios do XX, quando esta casa já havia mudado de proprietário: a do Imaculado é da oficina de Porto de Pereira d’Abreu, Filhos, decididamente, já dos inícios do séc. XX. Anexa a esta capela e à do Santíssimo, existe ainda a capela de N.ª Sr.ª dos Anjos, que teve aprovação eclesiástica em 1689 e foi instituída pelo comerciante Manuel Gonçalves de Freitas, homem de confiança do cabido da sé. Esta capela, que veio a fazer parte da sacristia da do Santíssimo, à época e como refere a petição do instituidor, pertencia à sacristia da capela do Senhor Jesus. O retábulo de N.ª Sr.ª dos Anjos apresenta uma boa pintura, datada de 1688, de uma oficina de Lisboa, tendo um enquadramento simples, mas bem entalhado, que deve ter sido também executado por Manuel Pereira de Almeida ou por algum dos seus colaboradores. No braço norte do transepto foi instituída a capela de S.to António pelo navegador Álvaro de Ornelas e sua mulher Branca Fernandes de Abreu. Álvaro de Ornelas faleceu em 1526 e foi ali sepultado, assinalando-o uma magnífica laje em calcário-brecha da serra da Arrábida que indicia muito bons contatos com as cortes de D. Manuel e D. João III. O instituidor, em testamento de 1517, menciona que a capela se encontra levantada e possui capelão privativo. Portanto, por essa data, haveria um altar, dotado, pelos finais do mesmo século, de pinturas óleo, pois ainda ostenta quatro tábuas muito semelhantes às de Michel de Coxcie que estão no altar fronteiro, sendo, assim, de data próxima a 1581. Com a reformulação do monumental retábulo do Senhor Jesus, a confraria de S.to António iniciou rapidamente os pedidos para reformular também o seu. A solicitação foi feita pelos mordomos da confraria ao rei, a 6 de fevereiro de 1697, alegando que o mesmo estava muito velho e citando, inclusivamente, a recente reforma do altar em frente. Logo na tarde de 20 de fevereiro desse ano de 1697, ainda antes de chegar a resposta de Lisboa, remetida apenas em 1700, a confraria procedeu à montagem de uma grade para suporte do futuro altar. Portanto, já tinha sido desmanchado o anterior e, muito provavelmente, os trabalhos de entalhamento do novo já tinham sido iniciados. No alto da grade estava, então, o pedreiro Teodósio Pestana, que se desequilibrou e caiu, salvando-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário que, com os seus 35 kg de prata, lhe amparou a queda. O sucedido foi logo considerado milagroso, embora só tenha vindo a ser registado alguns anos depois, em 1702, por ordem do bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), o que proporcionou que chegasse aos nossos dias a constituição da equipa de entalhadores, carpinteiros e pedreiros. Nos autos, vieram a depor o mestre principal Manuel Pereira de Almeida, “mestre imaginário”, Agostinho de Almeida, oficial imaginário, João de França, oficial de carpinteiro, João Vieira, mestre pedreiro e Teodósio Pestana, o pedreiro que havia caído da grade (ANTT, Cabido..., mç. 4, doc. 20). O retábulo de S.to António repete quase formalmente o retábulo que se encontra em frente, com duas ordens arquitetónicas suportadas por dois pares de colunas, um remate com duplo frontão interrompido e óculo superior entalhado sobre a rosácea do transepto, e anjos idênticos, reclinados sobre as aletas, tudo em talha dourada. O trabalho de talha, no entanto, é muito mais relevado e profundo, especialmente nos entablamentos e nas colunas, já salomónicas e avançadas sobre mísulas, sendo o centro ocupado por um nicho fundo, rematado por par de colunas, que se prolongam em arcos concêntricos de volta perfeita, dentro do chamado barroco nacional ou barroco português, com a imagem monumental do orago, que deve ser de data muito aproximada à da reformulação do retábulo, 1697 a 1699, embora já existisse quando ocorreu a queda do pedreiro Teodósio Pestana e à mesma se atribuiu o milagre. Os meados do séc. XVIII corresponderam, um pouco por toda a Europa, ao recrudescimento da regulação e centralização do poder régio que, de certa forma, tentou ocupar um espaço, até então e em parte, ocupado pela Igreja. Num breve período de uma a duas décadas, a igreja madeirense deu a sua resposta, com a realização de uma reforma da própria imagem, montando uma ampla campanha de obras na sé, determinada pelo bispo D. José da Costa Torres (1741-1813), a partir de 1790, sob coordenação do cónego fabriqueiro João Paulo Berenguer, falecido em 1797, ao qual se seguiu o Cón. João Leandro Afonso e, depois, o Cón. Miguel Caetano Moniz e direção, por certo, do mestre das obras reais natural das Canárias, o já referido António Vila Vicêncio. [ Sé do Funchal. Vista Interior a partir do coro. Foto: BF A campanha envolveu a montagem do coro sobre a entrada, nessa altura, na fachada, foram abertos dois amplos janelões neogóticos e montado um pequeno varandim, e envolveu também a reformulação de parte das paredes laterais, então dotadas de novas portas, com portais exteriores neoclássicos, embora interiormente se tivessem mantido as pias de água benta manuelinas. O reforço das paredes exteriores das naves laterais foi feito para a montagem, no interior, dos altares das confrarias, emoldurados por arcos neogóticos, levantando-se ligeiramente o piso ao longo das naves para o serviço dos altares e limitando-se esse espaço por balaustradas de madeira torneada. Até então, os altares das confrarias encontravam-se todos montados no transepto, numa situação difícil de compreender, no nosso tempo; inclusivamente, dois deles tapavam parcialmente a entrada da capela-mor. O primeiro passo para a reforma do interior da sé foi a provisão episcopal de 18 de abril de 1792, extinguindo as antigas confrarias dos mesteres, incorporando os seus bens e encargos no património da fábrica da sé, acusando-as o bispo D. José da Costa Torres de irregular ou nula administração. A provisão episcopal, a breve trecho, não foi cumprida, pelo menos em algumas confrarias, tendo o prelado, por este e outros motivos, especialmente pela perseguição a prováveis elementos de lojas maçónicas e já estando eleito bispo de Elvas, sido embarcado compulsivamente para o continente. O primeiro altar a ser levantado nas naves laterais foi o da confraria de S. José dos Carpinteiros e Pedreiros do Funchal, que, ao longo do séc. XVII, conseguira parte dos proventos das pedreiras de Câmara de Lobos e, na segunda metade do séc. XVIII, ganhara um protagonismo muito especial, sob a direção da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Sá Vasconcelos Bettencourt Machado Vilhena (1705-1798), a grande proprietária da Madeira nos últimos quartéis dessa centúria (Vilhena, D. Guiomar Madalena de Sá). A confraria de S. José, através do seu tesoureiro, o carpinteiro Manuel José de Freitas, a 25 de setembro de 1797, contratou o pintor Filipe Caetano da Trindade e Silva para “pôr um altar completo e acabado de tudo que preciso seja para a mesma obra, segundo o risco que tem em seu poder”, dado “bem entendido que é de carpinteiro, e entalhador, e pintor” (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 58-59). O altar era para estar concluído a 1 de março de 1798, dando o tesoureiro a madeira e o ouro necessários; o pagamento devia ser faseado por três prestações, remetendo-se a última para quando o altar estivesse assente. O altar seguinte foi levantado na nave em frente, sendo o contrato de 14 de novembro de 1797 celebrado entre o sargento-mor de milícias do regimento da Calheta, Agostinho Domingos de Gusmão, tesoureiro da confraria de S.ta Ana e S. Joaquim, o pintor Filipe Caetano da Trindade, o entalhador João da Câmara Sá e o carpinteiro José Rodrigues Gonçalves, para construírem o novo altar. O pintor Filipe Caetano ficou responsável por dirigir a obra, fornecer todas as “plantas e riscos” que fossem necessários ao carpinteiro e ao entalhador, ficando obrigado a dourar e pintar o altar no final do trabalho do entalhador, referindo-se o mesmo como idêntico ao “que se está fazendo para o altar de S. José da mesma catedral”, igualmente a cargo deste mesmo pintor e dourador (ARM, Registos Notariais, liv. 1072, fls. 13v.-15v.). Os altares das naves laterais da Sé do Funchal, mais tarde colocados no lado Evangelho, o primeiro dedicado às Almas, o segundo a N.ª Sr.ª da Conceição, S.ta Ana e S. Joaquim, e o terceiro ao Senhor do Milagre, imagem vinda do extinto convento de S. Francisco, apresentam, sensivelmente, um desenho geral similar. O mesmo acontece com os altares do lado da Epístola, onde se evoca N.ª Sr.ª de Fátima, mas que, anteriormente, terá sido de N.ª Sr.ª do Rosário, imagem de pequena dimensão, provavelmente, então transferida para o altar contíguo, de S. José; o mesmo se passou com o de S. Miguel Arcanjo. Para além de algumas variações cromáticas dos efeitos de marmoreados, os altares revelam apenas pequenas diferenças nos pormenores decorativos. No altar de S. José existe um excecional frontal de prata, que seria também da confraria de N.ª Sr.ª do Rosário. A confirmar-se essa hipótese, a peça terá sido mandada fazer pela confraria, em 1724, ao prateiro Faustino de Araújo Feio, estando pronta no início de 1725. No Funchal, terão existido quatro ou cinco frontais de prata, na igreja do colégio dos Jesuítas e na sé, mas terá subsistido apenas este. No entanto, todos os retábulos das naves laterais, tal como os das restantes capelas, ainda apresentam, no começo do séc. XXI, os seus lampadários de prata, sendo os expostos nestas naves dos meados e finais do séc. XVIII. O último altar do lado do Evangelho apresenta a célebre imagem do Senhor do Milagre (milagre feito perante Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, a 26 de dezembro de 1482), proveniente do extinto convento de S. Francisco, de onde veio com o seu diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, por requisição do cabido da sé. Em frente ao retábulo do Senhor do Milagre e adossado à última coluna da nave, encontra-se o púlpito da sé, em calcário brecha da serra da Arrábida, como outras peças já referidas. Apresenta uma interessante caixa cilíndrica decorada com ligeiro relevado helicoidal, assente em coluna de fuste hexagonal, também com decoração helicoidal, sendo a base constituída por seis meias-moedas. Tudo leva a crer que é obra das oficinas régias de Setúbal, existindo, aliás, na igreja de Jesus, um púlpito idêntico, embora de menores dimensões, mas igualmente de grande qualidade formal. O acesso é feito por escada exterior, de cantaria regional, pintada a imitar o calcário-brecha da Arrábida e, na caixa das escadas, encontra-se uma carranca com uma cabeça de homem de cabelos compridos e barrete, tradicionalmente identificado como o mestre das obras reais Pêro Anes e, inferiormente, uma cabeça de Diabo. Os anexos principais da Sé do Funchal foram reformulados nos inícios do séc. XVIII, tendo sido reconstruídas as velhas instalações do cabido e, totalmente de raiz, a sacristia nova da sé. O autor da obra da sacristia nova e do edifício cabido da sé, provavelmente a mais importante da sua época, foi o mestre das obras reais Diogo Filipe Garcês, que servia este ofício desde 1727. O projeto primitivo data de 8 de novembro de 1732, envolvendo, entre outros, as obras de pedreiro da “casa dos lavatórios”; abrir a passagem da capela do Amparo e levantar o altar com balaustradas (ANTT, Provedoria..., liv. 971, fls. 5v.-6). Este projeto foi, depois, francamente ampliado, refazendo-se toda a antiga “casa do capelão” como “casa do cabido” (Id., Ibid., liv. 396, fls. 5v.-6 e 8), sendo assinado por Diogo Filipe Garcês e João António de França, respetivamente, como responsáveis pelas obras de pedreiro e de carpinteiro, tendo a autorização do conselho da Fazenda a data de 16 de março de 1733. A arrematação da obra, com data de 26 de setembro, foi feita por João António de França e João Moniz de Abreu, sucedendo este último a Diogo Filipe Garcês como mestre das obras reais da Madeira; o contrato da mesma data de 26 de outubro de 1734. O edifício do cabido ficou com dois pisos, um de arrecadações e serviços, não só para o cabido, mas também para as confrarias, com janelas gradeadas e, por cima, com uma larga fiada de sete janelas de sacada altas e com varandas de ferro forjado, definindo uma ampla e austera frontaria para as então casas da Câmara. Para o lado do mar, ainda apresenta outra janela de sacada idêntica, mas com uma varanda muito mais larga, que ocupa todo o corpo. As instalações do cabido eram e são no andar superior do edifício, piso constituído, essencialmente, por duas grandes salas, sendo a de reuniões para norte, coberta por um teto em caixotão e, mais tarde, dotada com a coleção de retratos dos bispos do Funchal. A sacristia da sé apresenta cobertura em caixotão, assente em trompas laterais concheadas, tudo, aparentemente, em estuque pintado. As paredes laterais são ocupadas por armários paramenteiros monumentais, com alçados decorados por réguas de talha vazada e remates entalhados com florões, obra da oficina dos entalhadores Manuel Pereira de Almeida e Julião Fernandes Ferreira, dos Açores, que foram pagos ao longo dos dois anos seguintes, ou seja, 1735 e 1736. A parede frontal está ocupada por um altar, dentro da mesma gramática decorativa, com a imagem de S. Gregório pintada a óleo sobre tela que assenta numa moldura que é o prolongamento do alçado dos armários paramenteiros e sendo enquadrado pelos armários de parede dos amitos, vestes utilizadas na liturgia. Para a sacristia veio a ser transferida, no séc. XVIII, a tábua central do retábulo de N.ª Sr.ª do Rosário, quando, nos finais da centúria, se desmancharam os altares das confrarias e os remontaram nas naves laterais. A sacristia era antecedida de uma outra sala, onde estavam os dois lavatórios, que já vinham discriminados no primeiro projeto da autoria do mestre pedreiro Diogo Filipe Garcês, então orçamentados em 50.000 réis cada. No entanto, parece-nos uma verba francamente baixa para a obra existente, ou que existiu, pois estes dois lavatórios foram “restaurados” nos anos 50 do séc. XX, tendo ficado somente um na sé e tendo o outro passado para a igreja matriz de S.ta Luzia. O trabalho que chegou até nós é de uma das boas oficinas de Lisboa da época e, por certo, foi muito mais caro do que a verba prevista. Resta acrescentar que, com a reforma dos meados do séc. XVIII, foram executadas uma série de pinturas, que terão contado com o trabalho em parceria de António Vila Vicêncio e o seu cunhado José António da Costa, devendo datar dessa época os frescos da casa dos lavabos. Com as obras da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), nos meados do séc. XX, esse compartimento foi demolido, acabando por se perder os frescos, de que só resta um vago apontamento da Expulsão do Paraíso. O conjunto edificado da sé foi alvo de uma importante campanha de obras na déc. de 50 do séc. XX, como já sugerimos. Nessa ocasião, foram eliminadas as enormes janelas neogóticas da fachada e o varandim; gradeou-se de novo o adro e eliminaram-se algumas das construção encostadas à torre, à sacristia nova e, inclusivamente, às absides. Nos finais do século, dentro da mesma linha, recuperou-se a pintura da abóbada da capela-mor, reabilitou-se o retábulo do Bom Jesus e limpou-se a talha da capela do Santíssimo. Entre 1997 e 2003, efetuou-se o estudo do estado de degradação e do tipo de alterações da pedra vulcânica utilizada na sé, numa parceria entre a Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC), hoje Direção Regional da Cultura (DRC), e a antiga DGEMN, procedendo-se ainda à revisão das estruturas de amarração dos tetos; destes trabalhos resultou um dossiê, publicado na revista Monumentos daquela direção geral, em 2003. Sé do Funchal, 2007. Foto: Wikimedia Commons Nos primeiros anos do séc. XXI, numa ampla parceria entre a Diocese, o Governo Regional e a World Monuments Fund – Portugal, através de um protocolo assinado a 7 de agosto de 2011, iniciaram-se vários trabalhos, visando o restauro e a conservação da sé. Estes envolveram a intervenção no retábulo-mor e no cadeiral, realizada por técnicos do Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo e do Departamento de Conservação e Restauro do Instituto dos Museus e da Conservação, em colaboração com o Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora. Os resultados foram apresentados em junho de 2014, já tendo sido perante este retábulo restaurado que, a 21 de setembro do mesmo ano, se celebrou a missa comemorativa do encerramento do congresso internacional dos 500 anos da diocese do Funchal, “A primeira diocese global – História, Cultura e Espiritualidade”, como lembra o subtítulo do encontro.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

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As primeiras gramáticas da língua portuguesa de autores portugueses e publicadas em Portugal foram editadas em 1536 e 1540 e elaboradas, respetivamente, por Fernão de Oliveira (1507-1580) e João de Barros (1496-1570). Estes livros marcaram o início do estudo da língua portuguesa como pertença a uma comunidade linguística distinta. Em sentido estrito, não há “gramáticas madeirenses”, uma vez que o dialeto da Madeira é uma variação diatópica do português europeu e que o conceito de “gramática” se enquadra na normalização da língua portuguesa, iniciada no séc. XVI com as gramáticas normativas de João de Barros e de Fernão Oliveira. Há, no entanto, autores madeirenses e personalidades residentes no arquipélago que publicaram gramáticas (de várias línguas), obras de teor linguístico diverso e apontamentos sobre formas dialetais madeirenses. Na maior parte dos casos, as gramáticas em questão serviram o imperativo de assistir os estudantes no estudo de cadeiras ligadas ao português e ao latim. Os títulos das principais obras de cariz linguístico são os seguintes: De Institutione Grammatica Libri Tres (1572, de Manuel Álvares); Principios de Grammatica Portugueza (1844, de Francisco Andrade Júnior); Grammatica Portugueza das Escholas Primarias de Primeiro Grau (1849, do mesmo autor); Grammatica das Grammaticas da Lingua Portugueza, (1850, do mesmo autor); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacção (1869, de Álvaro Rodrigues de Azevedo); Gramática Portuguêsa, em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada (1912, de Alfredo Bettencourt da Câmara); Methodo Michaelense para o Ensino da Lingua Franceza (1861, de Hector Clairouin); O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza (1874, do mesmo autor); Colloquial Portuguese or Words and Phrases of Every Day Life (1854, de Alexander J. D. D’Orsey); Estudos de Lingüística, em dois volumes (1939, de Ivo Xavier Fernandes); Questões de Língua Pátria, em dois volumes (1947-1949, do mesmo autor); Topónimos e Gentílicos, volumes I e II (1941 e 1943, do mesmo autor); Apontamentos de Grammatica e Conjugação de Verbos (1905, de Francisco José de Brito Figueiroa); Subsidios para a Bibliographia Portugueza Relativa ao Estudo da Lingua Japoneza e para a Biographia de Fernão Mendes Pinto. Grammaticas, Vocabularios, Diccionários (1905, de João Apolinário de Freitas); Regras Elementares Sobre a Pontuação (1831, de António Gil Gomes); Principios de Grammatica Geral Aplicados á Lingua Latina (1835, de Marceliano Ribeiro de Mendonça); Principios Elementares da Lingua Ingleza, Methodicamente Tratados para Facilitar aos Principiantes o Perfeito Reconhecimento desta Lingua, Tão Util aos Portuguezes (1809, de Francico Manuel de Oliveira); Principios de Grammatica Geral Applicados à Língua Portugueza Publicados e Offerecidos á Mocidade de Goa (1849, de Daniel Ferreira Pestana). O sucesso da primeira gramática madeirense, elaborada pelo P.e Manuel Álvares, manifesta-se no facto de ter sido adotada, até ao início do séc.XIX, por todas as escolas da Companhia de Jesus, não só em Portugal, como por toda a Europa. Esta gramática latina, constituída por três livros (De Etymologia, De Syntaxi e De Prosodia), foi editada 530 vezes, em 22 países, e traduzida para francês, inglês, alemão, espanhol, italiano, boémio, croata, flamengo, húngaro, polaco, chinês e japonês, não havendo contudo qualquer tradução sua para português. Após esta publicação de referência do séc. XVI, os estudos gramaticais foram evoluindo, e passou-se do modelo da gramática especulativa da época medieval para um novo paradigma do estudo da língua, a gramática geral, que se baseia na ideia de que a linguagem é regida por princípios gerais e racionais. De acordo com este pressuposto, a gramática foi descrita como a arte de analisar o pensamento: uma vez que a estrutura da língua é um produto da razão, o pensamento deverá ser expresso de forma precisa e transparente (nesse sentido, passa a exigir-se aos falantes clareza e precisão na forma como se exprimem). A gramática geral deveria funcionar de modo a distinguir, processual e infalivelmente, as ideias válidas das que não o são; levada à perfeição, conduziria à produção de uma língua ideal, universal e lógica, sem equívocos nem ambiguidades, e capaz de assegurar a unidade da comunicação humana. A obra marcante desta tendência do pensamento é a Gramática de Port-Royal (Grammaire Générale et Raisonnée Contenant les Fondements de l’Art de Parler, Expliqués d'une Manière Claire et Naturelle), dos Franceses Arnauld e Lancelot, onde se explicita a noção de signo como meio através do qual os homens expressam os seus pensamentos. A Portugal, a influência desta gramática chegou no séc. XIX, com a Gramática Filosófica da Língua Portuguesa de Jerónimo Soares Barbosa (1822). Nessa época, como consequência da reforma pombalina e da criação do Liceu do Funchal, associadas à perspetiva da gramática geral importada por Jerónimo Soares Barbosa, surgem gramáticas escritas por autores madeirenses e por residentes no arquipélago. Em 1835, é pela primeira vez editada uma gramática na Madeira, Principios da Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, de Marceliano Ribeiro de Mendonça, na sequência de a Madeira ter sido o primeiro território lusófono, à exceção do continente, a ter imprensa. O primeiro estudioso madeirense a debruçar-se sobre a língua portuguesa é Francisco Andrade Júnior, professor de gramática portuguesa e latina no Liceu do Funchal; graças ao exercício da lecionação, o autor concebeu uma gramática que se tornasse útil à aprendizagem dessas disciplinas. Embora tivesse publicado, em 1844, os Principios de Grammatica Portugueza, com 296 páginas, foi a sua Grammatica Portugueza das Escholas Primarias, que se enquadra no movimento da gramática geral ou filosófica, que representou um caso de sucesso, sendo editada cinco vezes entre 1849 e 1879. Este autor manifestava grande admiração não só pela Gramática Filosófica da Língua Portuguesa, obra que lhe serviu de referência, como também pelo sistema gramatical preconizado por Marceliano Ribeiro de Mendonça em Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina. De facto, o gramático organiza a sua obra de modo análogo ao da Gramática Filosófica de Jerónimo Soares Barbosa, embora a ordenação dos capítulos não corresponda à do modelo: etimologia, sintaxe, ortoépia e ortografia. Na obra, distinguem-se os dois primeiros capítulos (sobre a etimologia e a sintaxe), cuja extensão reflete a importância dada aos temas de que tratam. Em relação à primeira edição de Principios de Grammatica Portugueza (1844), a primeira parte é dedicada ao estudo da etimologia, com breves referências aos seus objetos de estudo. O Livro 1.º, “Da Etimologia”, está subdividido em sete capítulos que dão a conhecer as principais classes de palavras da língua portuguesa, a sua natureza e variações, cujos títulos são: “Dos Nomes Comuns”, “Dos Adjetivos”, “Dos Acidentes dos Nomes”, “Do Verbo”, “Das Palavras Conexivas ou Preposições”, “Do Advérbio” e “Da Interjeição”. A segunda parte refere-se à sintaxe e tem quatro subdivisões: “Da Sintaxe propriamente dita”, “Da Sintaxe Figurada”, “Da Construção” e “Do Mecanismo do Discurso”. Nesta parte, são apresentadas as principais noções sintáticas (discurso, construção, proposição), e explica-se que a proposição é a enunciação de um juízo, ou seja, é o ato pelo qual se afirma que uma pessoa ou coisa existe de certo modo. Na terceira parte, volta a definir-se o conceito de ortoépia e reflete-se sobre diversas questões relativas à correta pronúncia dos vocábulos, em oito capítulos: “Da Ortoépia em geral”, “Do Tom”, “Da Duração”, “Da Articulação”, “Da Voz”, “Do Acento”, “Das Figuras da Ortoépia ou do Metaplasmo” e “Dos Vícios de Pronúncia”. Na última parte, constituída por seis subcapítulos, o método de apresentação é o que foi seguido nas partes anteriores; contém uma proposta de definição de ortografia como análise da maneira adequada de representar as palavras por meio da escrita alfabética, a qual, por sua vez, regula a ortografia etimológica. Os títulos das seis subdivisões são: “Da Ortografia em geral”, “Do Alfabeto”, “Das Letras”, “Das Sílabas”, “Das Palavras”, e “Dos Sinais Ortográficos”. O autor aproveita, de igual modo, para dar uma definição de alfabeto, que entende ser um complexo de sinais gráficos representantes de cada um dos elementos das palavras – estes sinais chamam-se letras. As letras dividem-se em vogais e consoantes: as vogais representam as vozes, as consoantes soam com as vozes. Há também considerações em relação a outras matérias gramaticais: a função modificadora dos adjetivos, o papel determinativo dos artigos definidos, o valor circunstancial do gerúndio, a diferença entre voz ativa e voz passiva, a definição de locução prepositiva. Analisando a obra Principios de Grammatica Portugueza, conclui-se que se trata de um manual composto segundo o modelo da gramática filosófica, repleto de claras noções gramaticais, com exemplos apropriados às matérias apresentadas, o que se adequa à sua finalidade de auxiliar os alunos do ensino primário. É uma gramática bem fundamentada e abrangente em relação aos conceitos linguísticos abordados. Ao ser uma gramática normativa da língua portuguesa, centra-se na explanação de conteúdos morfossintáticos. A terceira parte da obra, dedicada à ortoépia (“Dos Vícios de Pronúncia”, pp. 263-264), faz também referência às formas dialetais madeirenses. Em primeiro lugar, alude ao facto de o falante ilhéu acrescentar sons ou articulações à etimologia das palavras, v.g., ao pronunciar um a- antes de algumas formas verbais (substituição de voar por avoar); em segundo lugar, faz menção do acrescento, contra o uso elegante da língua, de um -â- antes de alguns ditongos como -ôa, -ôe e -ôo (bâoa em substituição de bôa, sâoe em vez de sôe e mâoo em lugar de môo); por fim, há uma referência à troca de um som por outro, como nos casos da troca de um -e- grave acentuado por -a- grave, antes de uma articulação chiante ou de uma molhada, e do -e- agudo, antes das mesmas articulações, por -ei- (pâjo por pêjo, meicha por mécha, tânho por tenho, tâlha por têlha, hireige por herege, seige por sege). A edição de 1849 de Principios de Grammatica Portugueza expõe as mesmas definições que a de 1844: a gramática é apresentada como a arte de analisar e enunciar o pensamento; a etimologia ensina as palavras com que se faz a análise; a relação das palavras entre si é a sintaxe; a correta enunciação do pensamento pela língua falada é a ortoépia; e a enunciação pela palavra escrita é a ortografia. A obra propõe ser uma exposição sistemática, uma vez que os conhecimentos sobre a língua portuguesa estão espalhados “pelos livros que tratam desta matéria” (ANDRADE JÚNIOR, 1849, 1). O livro é composto por 293 páginas, e está dividido do seguinte modo: “Parte 1.ª Da Etimologia”, “Livro 1.º Da Etimologia”, “Parte 2.ª Da Sintaxe”, “Livro 2.º Da Sintaxe”, “Livro 3.º Da Ortoépia”, “Livro 4.º Da Ortografia”. A etimologia e a sintaxe ocupam grande parte do volume. Fig. 1 – Fotografia da folha de rosto do livro Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacção, de Álvaro Rodrigues de Azevedo, 1869. Outro autor, Álvaro Rodrigues de Azevedo, apesar de não ser um gramático (formou-se em Direito), destaca-se por ter procurado preservar a identidade do povo que se serve da língua portuguesa para comunicar. Deste modo, a pretensão maior da sua obra será desenvolver as competências na produção linguística, na fala (recitação) e na escrita (redação). Na introdução, Azevedo destaca que “a palavra é o objeto comum destas três partes do curso, vista por três diferentes faces. A recitação enuncia-a, a filologia explica-a, a redação emprega-a” (AZEVEDO, 1869, 2). No prólogo, o autor faz a apologia de um povo e uma língua, defendendo que “Portugal ainda pode, se quiser, sob qualquer forma política ou social, o que agora não importa averiguar, viver como povo e como língua” (Id., Ibid., VI e VII). O propósito da edição de Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacção é suprir a falta de um manual auxiliar ao ensino da cadeira cuja regência competia a Álvaro Rodrigues: “A cadeira foi criada há seis anos. De então até hoje, nem programa, nem compêndio para ela” (Id., Ibid., VIII). Esta obra está dividida em três partes (recitação, análise filológica e redação). Apesar de, no final do 1.º volume, se publicitarem os restantes volumes desta obra através de sumários, há indícios de que aqueles não terão sido publicados. O volume que se conhece, o qual trata da recitação, aparece organizado em três partes: “Noções Gerais” (pp. 11-32), “Leitura em voz alta” (pp. 33-54) e “Recitação propriamente Dita” (pp. 55-170). No fim do Curso Elementar de Recitação, Azevedo esquematiza os outros dois volumes. Na 2.ª parte, o tema seria a filologia, o qual seria tratado em sete partes: linguística, lexiologia, fonologia, sinonímia, homonímia, ortografia e lexicologia. A 3.ª parte, sobre a redação filológica, distinta da gramatical e da literária, seria apresentada em quatro livros, correspondentes aos seguintes temas: pureza, propriedade, correção e clareza. O manual aparenta ter sido um apoio efetivo à cadeira lecionada por Álvaro Rodrigues. Fig. 2 – Fotografia da folha de rosto da Grammatica da Lingua Portugueza, de João de Nóbrega Soares, 1884. A Grammatica da Lingua Portugueza de João de Nóbrega Soares é, a nível pedagógico, uma das gramáticas mais bem concebidas de autoria madeirense. Segue as diretrizes teóricas da época e apresenta as matérias com simplicidade e de forma esclarecedora. Na introdução, o autor faz questão de mencionar os dois principais tipos de gramática, “a ciência da palavra” (SOARES, 1884, 3): a geral, “que trata dos princípios fundamentais comuns a todas as línguas” (Id., Ibid., 3), e a particular, “que se ocupa das leis e preceitos concernentes a cada língua em especial” (Id., Ibid., 3). Em seguida, define a gramática portuguesa como “a arte de exprimir corretamente o nosso pensamento na língua portuguesa” (Id., Ibid., 3), o que, nos termos da gramática filosófica, resulta em que o estudante associe o funcionamento de uma língua concreta e da linguagem à concretização do pensamento humano. João de Nóbrega Soares dividiu a sua gramática em três partes: a fonologia, que “ensina os sons elementares das palavras” (Id., Ibid., 4) e se subdivide em ortoépia e em ortografia, ocupa as pp. 4 a 6; a morfologia, que “ensina a natureza, a classificação, e a inflexão das palavras” (Id., Ibid., 7), preenche as pp. 7 a 47; e a sintaxe, que “estuda o modo de reunir as palavras em proposições e as proposições em discurso” (Id., Ibid., 48), é tratada nas pp. 48 a 65. Nota-se a tendência descritiva da gramática, pelo facto de se apresentar, essencialmente, como um tratado de morfologia e de sintaxe, bastando, para o constatar, reparar na extensão que cada uma das temáticas ocupa no corpo da obra. Na fonologia, será explicado o que se entende por palavra, sílaba, som, letra, vogal, consoante, acentuação, ditongo. É um capítulo pouco extenso, cuja função é a de oferecer um esclarecimento sobre os sons da língua portuguesa. No segundo capítulo, dedicado à morfologia, o estudo recairá sobre as oito classes de palavras, as quatro variáveis (substantivo, adjetivo, pronome, verbo) e as invariáveis (advérbio, preposição, conjunção, interjeição). Na 1.ª parte deste capítulo, são analisados os substantivos próprios e comuns e a sua flexão em género e em número. No subcapítulo seguinte, referenciam-se os adjetivos: atributivos, determinativos e quantitativos. É na subclasse dos adjetivos determinativos que o gramático inclui o artigo, não considerado pelo autor como uma classe de palavras distinta, visto que “por si nada significa, mas que, juntando-se a um nome, serve para lhe individualizar ou determinar mais ou menos a sua significação” (Id., Ibid., 17). A classe dos numerais não é considerada como independente, pelo que é integrada na subclasse dos adjetivos quantitativos, os quais, quando junto do substantivo, exprimem a ideia de quantidade. Os pronomes, “palavra usada em lugar do nome” (Id., Ibid., 20), são estudados em sete subclasses: pessoais, possessivos, demonstrativos, relativos, interrogativos, reflexos e recíprocos. O verbo, “a principal palavra do discurso” (Id., Ibid., 22), ocupa uma parte considerável do capítulo da morfologia, por ser o tema mais complexo. A abordagem orienta-se pela necessidade de estudar, em primeiro lugar, as suas flexões em modo, tempo, número e pessoa, e, em seguida, as suas três conjugações (em -ar, em -er, em -ir). Como auxílio deste método de aprendizagem, são apresentadas algumas tábuas de conjugação dos verbos auxiliares (“ser”, “estar”, “ter”, “haver”), regulares (“falar”, “vender”, “unir”) e irregulares. No final do estudo da morfologia, há referência às palavras invariáveis: a preposição, que “liga duas palavras” (Id., Ibid., 45); as conjunções, que “unem palavras ou proposições” (Id., Ibid., 45); os advérbios (de tempo, lugar, modo, quantidade), que “aparecem juntos aos verbos, aos adjetivos e algumas vezes a outros advérbios para modificar ou qualificar o sentido da palavra ou palavras a que se unem” (Id., Ibid., 45); e a interjeição, que “é uma exclamação ou grito articulado, para exprimir algum sentimento em uma fórmula abreviada” (Id., Ibid., 46). O capítulo da sintaxe, no qual se explica como se forma o discurso, através da conjugação das palavras e da relação das orações, subdivide-se em dois subcapítulos: o da sintaxe das palavras e o da sintaxe das orações. O subcapítulo sobre a sintaxe das palavras aborda as relações de identidade e de regência (regras de concordância e de determinação, respetivamente), com exemplos relativos aos diversos tipos de complemento (terminativo, restritivo, objetivo e circunstancial), bem como a definição dos termos essenciais da oração (sujeito e atributo ou predicado) e a exemplificação das espécies de proposição. Quanto à sintaxe das orações, explicam-se a relação de coordenação (identidade e exclusão) e a relação de subordinação (determinação, ampliação e restrição). O capítulo da sintaxe conclui com uma definição de discurso, entendido como pensamento enunciado por uma série de proposições, com a breve explicação do funcionamento de nove sinais de pontuação e a exploração de figuras sintáticas da sintaxe irregular (elipse, pleonasmo e enálage). No séc. XX, há a registar o aparecimento de duas figuras notáveis na produção de gramáticas na Madeira, Francisco José de Brito Figueiroa Júnior e Alfredo Bettencourt da Câmara. O primeiro publicou os Apontamentos de Grammatica e Conjugação de Verbos para Uso dos Alumnos que Frequentam a 4.ª Classe das Escolas Primarias, em harmonia com o Respectivo Programma Oficial (Funchal, 1906), com um total de 48 páginas, e o segundo escreveu a Gramática Portuguêsa em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada (Funchal, 1912), com 241 páginas. Apontamentos de Grammatica e Conjugação de Verbos… apresenta, na primeira página, uma definição de gramática e a estrutura da obra com as suas partes. É de notar que se exclui implicitamente a noção de que se deve falar e escrever corretamente, uma vez que se admite como possível o uso da língua com eficácia, mesmo se distante do rigor formal. É a apologia da linguística moderna: mais importante do que a correção é a comunicação. O autor divide a gramática em três partes: a fonologia, que trata dos sons das palavras; a morfologia, que estuda as diferentes formas que as palavras podem apresentar; e a sintaxe, que indica a colocação das palavras no discurso. Com as três páginas da fonologia, inicia-se o estudo da gramática, com três parágrafos sobre a ortografia e a pontuação. Deste modo, a fonologia resume-se à apresentação do alfabeto ou das letras, vogais e consoantes, e dos sinais fonéticos (sons). O capítulo da morfologia é o mais extenso (tem 38 pp.), formando o corpo principal do texto. Deduz-se, assim, que a gramática é, à data, mais um tratado sobre as palavras do que um estudo acerca dos sons ou sobre a construção de frases. Este capítulo, onde se analisam mais as palavras variáveis (substantivos, adjetivos, verbos, artigos e pronomes) do que as invariáveis (advérbios, preposições, conjunções e interjeições), é nomeadamente dedicado à flexão dos substantivos, dos artigos, dos adjetivos e dos pronomes. As restantes páginas ocupam-se da flexão verbal (pp. 16-41). Embora lhe faltem rigor científico e um método minimamente abrangente, de modo a constituir-se como uma gramática completa, a obra cumpre o propósito de ser um pequeno e prático tratado sobre a flexão de substantivos, artigos, pronomes, adjetivos e verbos. Alfredo Bettencourt da Câmara – professor primário, tal como Francisco José de Brito Figueiroa Júnior –, produziu a Gramática Portuguêsa em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada, onde apresenta, como capítulos estruturantes, a fonologia, a morfologia e a sintaxe. Em anexo à Gramática Portuguêsa…, Alfredo Bettencourt da Câmara publicou um livro de Exercícios sobre a Conjugação dos Verbos Regulares e Irregulares (Funchal, 1915), a parte da gramática mais desenvolvida por Francisco Figueiroa Júnior. Para o autor da , a gramática é o tratado de tipo pedagógico cuja finalidade é o ensino. Bettencourt escreve que a sua gramática ensina a falar e a escrever corretamente, o que significa a adoção de uma atitude normativa no ensino da língua, reforçando a ideia de que os alunos devem aprender a língua-padrão. De acordo com os pressupostos em vigor à época, a morfologia domina a extensão da gramática e a sintaxe também tem um valor acrescido. No entanto, a fonologia apresenta aqui uma definição mais completa – ensina a pronunciar todos os sons e a representá-los por sinais a que chamamos letras – e o seu tratamento comporta a subdivisão do respetivo capítulo em duas partes: a ortoépia, que faculta ao estudante a correta pronunciação das palavras, e a ortografia, que ensina a representar as palavras por letras. O capítulo da fonologia encarrega-se de apresentar o alfabeto português e os sons correspondentes a cada vogal. A apresentação de cada matéria faz-se acompanhar de exercícios de consolidação, denotando uma preocupação do autor com a vertente prática, componente importante para a consolidação do estudo de uma língua. As nove classes de palavras, tipificadas como variáveis ou invariáveis, são descritas no capítulo dedicado à morfologia: substantivos, adjetivos, numerais, pronomes e verbos (variáveis); advérbios, preposições, conjunções e interjeições (invariáveis). Este capítulo procede à exposição exaustiva da flexão de cada uma das palavras variáveis. A consideração dos verbos, que ocupa 78 páginas, é feita através da apreciação das suas desinências (sistematização) e em quadros de conjugação (exemplificação). As restantes páginas da morfologia são preenchidas com estudos sobre a formação (composição) de palavras e sobre as palavras invariáveis. São facultadas definições de sinonímia, homonímia, antonímia e paronímia (com exemplos), passíveis de ser consideradas como embrião de um estudo semântico. A sintaxe – a subdivisão da gramática que ensina a composição das partes da oração entre si, de modo a que tenham um sentido completo –, consiste numa exposição teórica e prática das partes da oração e dos tipos de orações, servindo os muitos exercícios disponibilizados para que o aluno compreenda a construção sintática por meio da análise sintática. O autor inclui um apêndice à morfologia, onde explica a utilização sintática e o emprego de certas palavras, e que é um subcapítulo de morfossintaxe; explica ainda o seu modelo de análise sintática e apresenta alguns exercícios de pontuação. Esta gramática, apesar de editada uma única vez, tem um grande valor científico e pedagógico. Daniel Ferreira Pestana (nascido na Madeira, tendo passado a vida quase por completo fora da Madeira) editou, em 1849, Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Portugueza Publicados e Offerecidos á Mocidade de Goa, em Nova Goa, Índia Portuguesa. Esta gramática encerra a curiosidade de ter sido editada por um madeirense fora do território português europeu. Esta gramática tem uma ligação estrutural a duas obras anteriores, Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, de Marceliano Ribeiro de Mendonça, e Principios de Grammatica Portugueza, de Francisco Andrade, a ponto de o Elucidário Madeirense afirmar que há um plágio evidente em relação à primeira destas obras e, mais tarde, António Cunha Silva considerar havê-lo em relação às duas. Ao seguirmos estas indicações, deparamos com uma umbilical ligação às referidas gramáticas, não só pela semelhança com elas a nível de título, mas também através do paralelismo dos respetivos índices. Assim, ao tomar conhecimento do índice do livro de Daniel Ferreira Pestana e ao compará-lo com o de Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, o leitor apercebe-se imediatamente da evidente aproximação à obra de Marceliano Ribeiro de Mendonça. A título exemplificativo, é de mencionar a parte dedicada à classificação dos nomes, cuja coincidência com as referidas obras é, a nível dos títulos, notória. Assim, o capítulo da etimologia faz menção “Dos Nomes em geral”: “Nome em geral é qualquer palavra com que designamos – ou ideias que existem per si, – ou ideias que existem naquelas, fazendo parte delas” (PESTANA, 1849, 2). Este capítulo está subdividido em duas partes, “Dos Substantivos” – “nome substantivo designa ideia que existe per si” (Id., Ibid., 2) – e “Dos Adjetivos” – “os adjetivos designam ideias que existem noutras, cuja parte fazem: por consequência – todo o nome que junto a um substantivo faz parte dele, é adjetivo” (Id., Ibid., 4). A gramática de Daniel Pestana está dividida em cinco partes: “Etimologia”, a mais extensa (pp. 1-73), “Sintaxe” (pp. 75-133), “Ortoépia” (pp. 134-176), “Ortografia” (pp. 177-185) e “Parte Acessória” (pp. 187-196). Desta breve abordagem, há algumas conclusões a tirar: regra geral, as gramáticas de língua portuguesa referidas seguem a doutrina da gramática geral ou filosófica; por se tratar de gramáticas normativas e escolares, o dialeto madeirense é praticamente inexistente nas análises destes gramáticos. Mais do que apontar os regionalismos ou os nichos de identidade numa pátria linguisticamente homogénea, parece-lhes importante defender a língua portuguesa como símbolo de um povo: os gramáticos em questão procuram, assim, dar conta da norma-padrão, não fazendo qualquer referência, direta ou indireta, à variante linguística da Madeira (ou fazendo muito poucas). Passando a outro tipo de gramáticas, as de língua latina, Marceliano Ribeiro de Mendonça publica, em 1835, uma obra de iniciação ao latim, Principios de Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina, integrando-a no movimento da gramática geral ou filosófica, como é percetível pelo título. Principios da Grammatica Geral Applicados á Lingua Latina proporciona um manancial de observações no mínimo curiosas. E.g., em relação aos nomes próprios, Marceliano Ribeiro de Mendonça opina que não devem constar da gramática, porque, ao serem uma classe invariável, não há necessidade de serem estudados pela morfologia. No capítulo “Doutros Pretendidos Elementos da Proposição”, o autor defende a inexistência do advérbio e da interjeição, sendo que o primeiro deve ser considerado “uma locução elíptica que equivale a uma proposição com um nome” (MENDONÇA, 1835, 82), e a segunda “é a palavra mais ou menos inarticulada, per meio da qual exprimimos sentimentos e paixões da alma, – palavra que equivale a proposições inteiras” (Id., Ibid., 83); assim, ao não exprimirem o pensamento, estes elementos não devem ser matéria gramatical. Em relação ao método de aprendizagem da língua latina, deverá optar-se por memorizar as desinências, a parte lógica que “nos dá conhecimento dos sinais que entram nessa análise, e se diz etimologia – ou as diferentes relações que os ligam, e denominamo-la sintaxe” (Id., Ibid., 3) e, a posteriori, por declinar os nomes, a parte mecânica que ensina “a enunciar o pensamento – ou per meio da palavra falada, e constitui a prosódia, - ou per meio da palavra escrita, e é a ortografia” (Id., Ibid., 3). Quanto à organização interna, esta gramática latina compõe-se de duas partes: sobre a etimologia/a morfologia e sobre a sintaxe. O gramático começa por definir a etimologia como a parte secundária da gramática, a qual nos dá a conhecer as diferentes espécies de palavras, a sua natureza e as suas variações, segundo o aspeto por que se contemplam e os objetos que designam. Ao estudar a etimologia em geral, Ribeiro de Mendonça considera que todas as palavras de uma língua são redutíveis a duas classes gerais: a das palavras nominativas (nomes) e a das conexivas (preposições). O capítulo sobre a etimologia/a morfologia está dividido em vários subcapítulos. Ao abordar os nomes em geral, o gramático explica que os nomes se agrupam em substantivos, se “designam ideias de objeto” (Id., Ibid., 5), e em adjetivos, “se designam ideias de qualidades, sejam estas físicas ou morais, sejam abstratas ou metafísicas” (Id., Ibid., 6). Por sua vez, os primeiros compõem duas subclasses, substantivos próprios e substantivos comuns, sucedendo o mesmo com os adjetivos, os quais são designados de articulares, quando modificam a “extensão” do substantivo, ou de atributivos, quando alteram a “compreensão” dele. No cap. V, o autor refere os acidentes do nome aplicáveis à língua latina: o género (masculino, feminino, neutro), o número (singular, plural), o caso (nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo) e as cinco declinações. Quanto às tábuas de declinação, Ribeiro de Mendonça sugere a consulta de António Verney. O verbo, de que se trata no cap. VI, é a “palavra por excelência: assim denominamos o atributivo per meio do qual enunciamos a existência real ou abstrata do sujeito da proposição” (Id., Ibid., 16). Nestas páginas, explica-se o que são “pessoas” e “tempos”, e são expostas questões relativas às formas verbais (ativa, passiva e neutra) e aos auxiliares. No que respeita à análise das palavras conexivas ou preposições (cap. VII), refere-se que estas “significam relações” (Id., Ibid., 27); subdividem-se em “preposições propriamente ditas”, pelas quais “significamos certas das relações per que os vocábulos se ligam em preposição como sinais de nossas ideias” (Id., Ibid., 27) e em “conjunções”, “a palavra per meio da qual significamos as relações das proposições no discurso, como sinais de nossos juízos” (Id., Ibid., 29). O último capítulo da 1.ª parte (cap. VIII), sobre a etimologia da língua latina, aborda a questão da existência da classe dos advérbios e da das interjeições. Marceliano adota, aqui, uma das suas posições polémicas em matéria gramatical, nomeadamente no que toca às interjeições: como estas não analisam o pensamento, são apenas um meio pelo qual “exprimimos sentimentos e paixões da alma” (Id., Ibid., 33). Para o advérbio, são indicadas as circunstâncias que este pode sugerir (lugar, tempo, quantidade). A 2.ª parte, sobre a sintaxe, constitui “a parte secundária da gramática que pelos acidentes das palavras, seu lugar em contexto, e pausas que as separam, determina as relações que umas têm para com as outras, em ordem a exprimir um sentido” (Id., Ibid., 33). Deste modo, a sintaxe divide-se em construção e em mecanismo do discurso. As relações sintáticas podem ser de identidade ou de determinação e são estudadas pela sintaxe de concordância e pela de regência, dividida em terminativa, objetiva, restritiva e circunstancial. Na sintaxe figurada, são exploradas figuras gramaticais como a elipse, o pleonasmo, o grecismo e a enálage (cap. IV). No cap. V, sobre a construção, definida como “a disposição que damos às palavras em contexto, segundo o génio de cada língua” (Id., Ibid., 54), expõem-se os seus três modos: direto, inverso, interrupto. No cap. VI, Marceliano Ribeiro de Mendonça apresenta questões relativas ao mecanismo do discurso, definido como “a parte da sintaxe que nos dá conhecimento dos diferentes grupos de ideias, pelas pausas que os separam” (Id., Ibid., 64); as pausas são determinadas pelos sinais de pontuação e organizam os textos em grupos. Para terminar, a obra apresenta uma tábua das conjugações regulares de verbos. Esta gramática revela um cariz marcadamente filosófico, transmitido pela ideia de que a linguagem serve para analisar e enunciar o pensamento. À descrição gramatical está subjacente uma teoria geral, na medida em que a definição das classes e das subclasses de palavras, das funções sintáticas e das figuras gramaticais precede a descrição e a exemplificação propriamente ditas do latim. Quanto às gramáticas de línguas estrangeiras editadas por autores madeirenses ou por residentes na Madeira, recordam-se as já mencionadas: de Hector Clairouin, Methodo Michaelense para o Ensino da Lingua Franceza e O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza; de Francisco Manuel de Oliveira, Princípios Elementares da Língua Inglesa; e de Alexander J. D. D’Orsey, Colloquial Portuguese Or Words And Phrases of Every Day Life. Fig. 3 – Fotografia da folha de rosto de O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza, 2.ª ed., de Hector Clairouin, 1874. O Methodo Michaelense para o Ensino da Lingua Franceza começa com uma crítica aos manuais de francês publicados em Portugal, cuja essência não favoreceu a aprendizagem do francês pelos Portugueses. Hector Clairouin faz a apologia do seu método, criticando claramente os já conhecidos; afirma, em relação ao “método micaelense”, que o fim do “método é ensinar a teoria, base fundamental da língua, e sem a qual todos os esforços serão baldados” (CLAIROUIN, 1861, V), e defende, como pontos fortes, o facto de que este método “não só torna o estudo fácil para o educando, senão também diminui o trabalho que hoje tem qualquer professor, especialmente nas primeiras lições; acontecendo muitas vezes não ter este em que empregar convenientemente os seus discípulos” (Id., Ibid., VI). Na 1.ª parte da gramática, o autor utiliza o português, com vista à exposição dos conteúdos da gramática francesa, e fá-lo a dois níveis: o da pronúncia e o da sintaxe/das partes da oração. As palavras e as frases dos exercícios e dos diálogos são por norma apresentadas nas duas línguas – o português e o francês –, para que o estudante as compare. Na 2.ª parte da gramática, fazendo fé que o estudante já domina o francês, os conteúdos são expostos nessa língua. Os exercícios auxiliares compõem-se de questionários, de diálogos e de ditados. A outra gramática da autoria de Hector Clairouin, O Nec Plus Ultra das Grammaticas Methodicas para o Ensino da Lingua Franceza (1874), é uma 2.ª edição do Methodo Michaelense…, como atesta uma breve nota na folha de rosto: “inteiramente refundida do Methodo Michaelense, aprovado pelo Conselho Superior de Instrução Pública”. Apesar de o autor ter um novo procedimento de ensino, esta gramática é um manual tradicional, cujo objetivo é o domínio da arte de falar e de escrever corretamente. Fig. 4 – Fotografia da folha de rosto de Principios Elementares da Lingua Ingleza, de Francisco Manuel de Oliveira, 1809. Quanto às gramáticas de língua inglesa, há que registar o trabalho de Francisco Manuel de Oliveira, Principios Elementares da Lingua Ingleza (1809). Na folha de rosto, encontra-se a especificação das três partes em que foi dividido este manual: Na 1.ª Parte Se Trata das Principaes Regras da Grammatica: na 2.ª dos Exercicios, e Elementos da Conversação: na 3.ª das Frases, e Idiotismos, ou seja, das frases feitas e das expressões idiomáticas. Pode dizer-se desta obra que é um guia de conversação, embora a 1.ª parte analise muitos conteúdos gramaticais. Apetrechada de exercícios que exigem atenção e algum conhecimento adquirido por parte do estudante (é necessário o preenchimento de lacunas com verbos, preposições, artigos, pronomes), esta obra configura-se como um manual prático. Ao longo do livro, o texto em inglês é seguido do seu equivalente em português, permitindo a comparação das duas línguas. A vantagem da obra de Francisco Manuel de Oliveira reside no facto de conseguir conjugar estudo gramatical, exercícios e o tópico da conversação num único livro, sendo um bom compêndio de língua inglesa. Alexander J. D. D’Orsey escreveu Colloquial Portuguese or Words and Phrases of Every Day Life, cujo objetivo era ser um guia de conversação para os cada vez mais comuns visitantes ingleses da Ilha. Não sendo propriamente uma gramática de língua portuguesa, a obra constituiu um sucesso editorial, ao ser editada por seis vezes entre 1854 e 1891. A obra de D’Orsey é um léxico composto de palavras e de expressões da língua inglesa, às quais se fazem corresponder frases e vocábulos do português. O autor menciona quatro marcas distintivas dos desvios lexicais madeirenses (Dialetologia): a mudança dos sons vocálicos – hômem em vez de hómem, men-íne-o em vez de menino, bow-a em vez de bô-a, sou, estou, etc. – rimando com o inglês too – em vez de so, stow, Jo-zé-ah em vez de Jo-zé, tânho em vez de tênho, meicha em vez de mécha, fazeer em vez de fazer, etc.; o transporte de consoantes – prove em vez de póbre, trocida em vez de torcida, frol em vez de flor, prantar em vez de plantar; a omissão, ’tá em vez de está, minha em vez de minhas, cavall em vez de cavalo; e o s final como sh, em vez de s (D’ORSEY, 1891, 1). Noutro âmbito, há que referir obras interessantes, como a separata de João Apolinário de Freitas, Subsidios para a Bibliographia Portugueza Relativa ao Estudo da Lingua Japoneza e para a Biographia de Fernão Mendes Pinto. Grammaticas, Vocabularios, Diccionários. No prólogo, declara-se que um dos pretextos para a elaboração do documento foi a guerra russo-nipónica, que fez com que o mundo ocidental se debruçasse sobre a Rússia e sobre o Japão, em particular sobre este. Na 1.ª parte, o autor fala das gramáticas de língua japonesa e dos respetivos autores, como a Arte da Lingua Japoneza, de Duarte da Silva, a Grammatica da Lingua Japoneza, de João Fernandez, a Arte da Lingua Japonica, de autor desconhecido, a Conjugação dos Verbos Regulares em Latim, Japonez e Portuguez, que, segundo Apolinário de Freitas, “é a chamada gramática japonesa do P.e Manoel Alvares, mas que propriamente não passa de uma nova edição da celebrada gramática latina deste não menos afamado jesuíta” (FREITAS, 1905, 38), a Arte da Lingoa Iapam, de João Rodriguez, a Arte Breve da Lingoa Iapoa Tirada da Arte Grande da Mesma Lingoa, pera os Que Começam a Aprender os Primeiros Principios della, de João Rodriguez, e a Ars Grammatica Japonicae Linguae, de Diogo Collado. Na 2.ª parte, João Apolinário de Freitas descreve outro tipo de livros, “Vocabulários e Dicionários”, e apresenta títulos e autores. Na 3.ª parte, “Notas Adicionais”, discute-se a língua materna de S. Francisco Xavier, se o português, se o castelhano, concluindo-se que o seu idioma materno deveria ser o vasconço, uma vez que o santo jesuíta nasceu na cidade de Xavier, na província de Navarra. Nesta parte, há também anotações sobre a origem de alguns vocábulos (topónimos e outros), como é o caso de “Macau”, proveniente de “Amacao” (Id., Ibid., 76). Fig. 5 – Fotografia da folha de rosto de Questões de Língua Pátria, vol. II, de Ivo Xavier Fernandes, 1949. Outra obra digna de nota são os dois volumes de Questões de Língua Pátria, de Ivo Xavier Fernandes. A obra tem o particular interesse de tratar de questões cuja atualidade se prolongou para além do seu tempo, como o Acordo Ortográfico de 1911. No cap. I, o autor começa por falar na “Questão Ortográfica”: expõe diferentes pontos de vista sobre o Acordo Ortográfico de 1911 e salienta o facto de os seus detratores terem caído por terra. No final do capítulo, há um subcapítulo dedicado a “O Idioma Brasileiro” (pp. 49 e 50), que, na opinião de Ivo Xavier, “por só existir em cérebros visionários, dominados sem dúvida por um excessivo ou mal compreendido patriotismo” (FERNANDES, 1947-1949, I, 50), não será tão cedo uma realidade. Segue-se, no cap. II, a apologia da “Língua Nacional” . No cap. III, fala-se de “Anomalias de Gramáticas”, dando-se conta de impropriedades em denominações, e.g., quanto aos graus dos adjetivos. No cap. IV, “Coisas da Língua”, abordam-se os galicismos e encontra-se uma crítica explícita aos meios de comunicação brasileiros, pelo uso excessivo de expressões francesas; referem-se curiosidades sobre a grafia de nomes de pessoas e outras – como a grafia de “indemnização”, e de “vasa” e “vaza” –, e trata-se o tema do imperativo negativo. No vol. II, Ivo Xavier aborda a questão d’“A Unidade Gráfica Luso-Brasileira” tendo como pano de fundo o Acordo Ortográfico de 1911: “Não nos esqueçamos de que a língua portuguesa é só uma e que só uma também tem de ser a sua ortografia!” (Id., Ibid., II, 6). Na parte intitulada “Acertando o Que não Está Certo” (a partir da p. 8), aborda os “Casos de Morfologia”. Há considerações sobre “Casos de Sintaxe” (a partir da p. 23), bem como sobre outras temáticas pertinentes: “Alotropismo, Polimorfismo e Sincretismo” (pp. 38 a 49), “Homotropismo” (pp. 50 a 94), “Casos da Fonética” (pp. 95 e 96) e “Verbos em ‘-izar’ e ‘-isar’” (pp. 97 a 99). Este volume finaliza com os seguintes temas: o “Pretoguês Jornalês…” (pp. 218 a 229) e “Étimos Curiosos” (pp. 230 a 240). Apesar de as gramáticas da língua portuguesa elaboradas por autores madeirenses denotarem grande apego a aspetos normativos, é de referir uma evolução em publicações posteriores às referidas que, não sendo gramáticas, acompanham o interesse, nascido no final do séc. XIX, pelas variações dialetais do português, o qual foi desenvolvido por estudiosos como Leite Vasconcellos, considerado o fundador da dialetologia portuguesa, e por académicos como o Prof. Paiva Boléo, em meados do séc. XX. Entre estas obras, encontram-se: Palavras do Arquipélago da Madeira, de Emanuel Ribeiro (1929); Vocabulário Madeirense, de Fernando Augusto da Silva (1950); Porto Santo. Monografia Linguística, Etnográfica e Folclórica, de Maria de Lourdes de Oliveira Monteiro dos Santos Costa; Peixes da Madeira, de Adão de Abreu Nunes (1953); e Falares da Ilha, de Abel Caldeira (1961). Neste domínio, são de destacar as obras de Emanuel Ribeiro, Fernando Augusto da Silva e Abel Caldeira, que, não se constituindo como gramáticas, não deixam de ser importantes nos campos da dialetologia e da lexicologia, por terem sido os primeiros trabalhos a abordar, de uma maneira profunda, os desvios dialetais da Madeira, isto é, as expressões e as denominações usadas pelas populações do arquipélago.   Paulo Figueira (atualizado a 13.12.2017)

História da Educação Linguística

governo militar

Carlos de Azeredo Ornelas Camacho Ribeiro de Andrade. 20.02.1976. Arquivo Rui Carita. A designação específica de governo militar foi aplicada na Madeira para o topo da estrutura militar entre 1926 e 1973. Ao longo da história da Madeira, o governo militar foi inicialmente da responsabilidade dos capitães do donatário, dos capitães-donatários e, depois, dos governadores e capitães-generais (Governadores e capitães-generais), até à instalação do governo liberal (Governo civil). Já se havia, inclusivamente, ensaiado a constituição de gabinetes e órgãos para o governo militar, com postos e funções ligados ao governador para o assessorar nessa área, como tinham sido os sargentos-mores (Sargento-mor), o tenente-general (Tenente-general), os engenheiros militares, etc. Uma das preocupações dos políticos liberais era a perfeita separação dos poderes, subordinando o poder militar ao político. No entanto, a instabilidade vivida durante as primeiras décadas não deixou muita margem de manobra para tal separação. O facto de que se recrutava, a maior parte das vezes, o quadro superior político do arquipélago dentro do grupo dos militares liberais, e a experiência sofrida pelo primeiro governo liberal sediado nos Açores, que não tinha conseguido submeter a Madeira, também não favoreceu a separação dos poderes. Assim sucedeu com o primeiro prefeito, o coronel de engenharia Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1847), e viria depois a acontecer com outros governadores civis, igualmente militares, chegando a ser objeto de pedido de parecer do então marquês de Saldanha ao antigo prefeito da Madeira, situação que se manteve ao longo de quase todo o séc. XIX e mesmo do séc. XX, inclusivamente após o pronunciamento militar de 25 de abril de 1974 e até o país constituir uma democracia parlamentar. A imposição de uma nova ordem institucional no território nacional foi, desde o início do liberalismo, como nos governos seguintes, acompanhada por profundas contradições dentro do Exército, herdeiro de um antigo papel nacional, que participara ativamente, embora nem sempre de forma consciente, na transformação da situação política do país. Na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, tentara-se evoluir de uma estrutura senhorial militar para uma efetiva institucionalização de forças armadas nacionais, o que um certo caciquismo regional nem sempre acompanhou e que a corte de Lisboa, a braços com outras dificuldades políticas, também não foi capaz de impor. Com a instalação do liberalismo, institucionalizou-se uma figura complexa de militar-político, herdada da guerra civil, que veio a desempenhar um papel político nacional de excecional importância, embora depois sem especial recorte na instituição castrense propriamente dita. [caption id="attachment_15051" align="aligncenter" width="717"] Parecer pedido por Saldanha a Mouzinho de Albuquerque. 1835. Arquivo Rui Carita.[/caption] A instituição militar passou, ao longo do séc. XIX, por várias reformas, tentando enquadrá-la e adaptá-la aos novos processos e métodos internacionais de combate. A primeira reestruturação data de 1836 e 1837, quando decretos sucessivos dividiram o território em 10 divisões militares, sediando a 9.ª divisão no Funchal, estabelecendo um novo plano de divisão regimental das diversas armas, regularizando o uso de uniformes e diferenciando apenas as armas em causa. Nessa reforma, decretaram-se, ainda, novas regras, mais claras, de progressão na carreira, por antiguidade nas armas de infantaria e de cavalaria, e através de provas de exame nas armas científicas, como a de artilharia e a de engenharia, assim como se criou a Escola do Exército em Lisboa e se lançou, novamente, a instalação de escolas regimentais para a aprendizagem das primeiras letras, estrutura que voltou a funcionar no Funchal, no velho aquartelamento do Colégio dos Jesuítas. Os marechais das campanhas liberais, como os duques de Saldanha (1790-1876), Terceira (1792-1860) e Sá da Bandeira (1795-1876), nunca entregaram verdadeiramente a política aos políticos e, quando tal aconteceu, por absolutos imperativos da idade e com a Regeneração, seriam substituídos por um outro militar, o Gen. Eng. António Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887). As Forças Armadas, através dos seus quadros de engenharia militar, teriam ainda um papel decisivo na organização das Obras Públicas durante todo o liberalismo (Azevedo, António Pedro de e Blanc, Tibério Augusto) e, muito especialmente, na época da Regeneração, quando foi encontrado um certo equilíbrio nas contas públicas, que possibilitou a construção de uma série de acessibilidades, entre outras obras de fomento público. Oriundos os seus quadros superiores dos vários estratos sociais que igualmente forneciam as altas esferas dos quadros políticos, participariam ambos, logicamente, na mesma luta. Assim, vamos encontrar militares no ativo em todas as frentes políticas, inclusivamente na formação dos altos quadros que deram origem ao Partido Republicano (Partido RepublicanoRepública). Voltariam depois a encabeçar os sentimentos e paixões nacionais nas campanhas coloniais de pacificação em África, onde participaram ativamente na tentativa de construção de um outro império colonial, que o trauma da perda do Brasil ainda não invalidara. O Exército representou, ainda, durante quase todo o período liberal, uma certa “reserva patriótica nacional” contra os caminhos sinuosos da política, embora configurasse, ao mesmo tempo, também uma forma romântica de participação na vida coletiva, que entraria depois pelo séc. XX. Poderemos, nessa sequência, estender a sua participação, embora num outro enquadramento, à subida ao poder do Maj. Sidónio Pais e, na Madeira, com a nomeação do Cor. Vicente José de Freitas (1869-1952) para governador civil, à implantação do Estado Novo, e ainda, num quadro mais internacional, aos finais do séc. XX e ao pronunciamento militar de abril de 1974, só então sendo definitivamente excluídos os militares da cena política portuguesa, configurando-se assim nas figuras de um comandante militar e um comandante-chefe, que até 2015 eram a mesma pessoa, assessorada por quartéis-generais diferenciados. Não foi por acaso que uma larga percentagem dos governadores civis da Madeira do séc. XIX foi recrutada nos quadros militares nacionais e mesmo regionais, embora, e progressivamente, se tentasse que as Forças Armadas tivessem cada vez mais um verdadeiro enquadramento nacional.     Rui Carita (atualizado a 13.12.2017)

História Militar História Política e Institucional

fortes

A defesa e a fortificação da Madeira foram várias vezes revistas ao longo da sua história, tendo ficado, das inúmeras edificações levantadas, grande parte do sistema construído na área do Funchal, com várias fortalezas e com pequenos apontamentos das muralhas e fortes de apoio, tanto para nascente como para poente. Do vasto conjunto de fortes, fortins ou redutos levantados ao longo das costas, dependentes das estruturas militares ali levantadas, como eram as companhias de ordenanças, também subsistem muitas construções. Palavras-chave: arquitetura militar; defesa; ordenanças; património edificado.   Fortaleza do Ilhéu A defesa e a fortificação da Madeira foram várias vezes revistas ao longo da história (Defesa), tendo ficado, das inúmeras edificações levantadas, grande parte do sistema construído na área do Funchal, com várias fortalezas – i.e., sistemas defensivos quase autónomos –, tal como pequenos apontamentos das muralhas e fortes de apoio às mesmas e à defesa geral da cidade, tanto para nascente como para poente, nem todos guarnecidos em permanência. Do vasto conjunto de fortes, fortins ou redutos levantados ao longo da costa, dependentes das estruturas militares ali levantadas (Guarnição Militar) (Ordenanças), subsistem muitas construções. De uma forma geral, o sistema defensivo fixo ao longo da costa da Madeira, representado pela rede de fortes e fortins, nasceu do “Regimento de vigias”, emitido a 22 de abril de 1567 e enviado na sequência do ataque corsário francês de 1566. Este regimento mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 3, f. 142v.), avançando ainda com outras diretivas que diziam respeito à montagem de artilharia nesses locais em caso de perigo, tendo assim sido a base de muitos, senão de quase todos os pequenos fortes ou fortins levantados pela Ilha (Arquitetura Militar).   A defesa do Funchal envolvia, para além das fortalezas, que tinham autonomia própria, alguns fortes de apoio ao conjunto das muralhas do Funchal, como os pequenos fortes de S.ta Catarina ou de S. Lázaro, que deram depois lugar à bateria das Fontes (Muralhas do Funchal), articulando-se ainda com a defesa das praias e desembarcadouros para poente e para nascente. Com o prolongamento da muralha para nascente, surgiram ainda fortificações no remate da mesma e depois um pequeno forte na foz da ribeira de Gonçalo Aires, o forte dos Louros, tal como, mais tarde, ao meio da praia do calhau de Santa Maria Maior, o forte Novo de S. Pedro. Desde os primeiros anos do povoamento, quando Zarco se abrigou nos dois ilhéus da baía, ao executar o primeiro grande reconhecimento à volta da Ilha, que se reconheceu o interesse desses ilhéus para a defesa do porto do Funchal (Fortaleza do Ilhéu). Com o desenvolvimento do porto e, principalmente, depois da passagem do Funchal a cidade (20 de agosto de 1508), esse interesse terá sido ainda mais notório, estendendo-se aos arrifes fronteiros. A primeira fortificação a surgir fora do perímetro da cidade, quase contemporânea da nova fortaleza de S. Lourenço, senão mesmo anterior a ela, terá sido levantada nestes arrifes, sendo depois devotada a N.ª Sr.ª da Penha de França, e articulando-se depois com outra levantada no chamado ilhéu Pequeno, quando nos meados do séc. XVIII se fez o molhe da Pontinha, o forte de S. José. As praias e desembarcadouros da área do Funchal também vieram a ser dotados de pequenos fortes, muitas vezes de iniciativa particular, como o referido forte dos Louros, na foz da ribeira de Gonçalo Aires, mas já antes tinha sido levantado o forte do Gorgulho e fortificada a praia Formosa, que chegou a ter uma rede de 5 fortes (Fortes da Praia Formosa), o mesmo vindo a acontecer com a foz da ribeira dos Socorridos (Fortes da Ribeira dos Socorridos). Com o desenvolvimento das vilas da capitania do Funchal, também as mesmas vieram a construir pequenos fortes, como Câmara de Lobos (Fortes de Câmara de Lobos), Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), Ponta do Sol (Fortes da Ponta do Sol) e Calheta (Fortes da Calheta). Escavações da Fortaleza de São Filipe do Pelourinho Idêntica situação se passou na capitania de Machico, cuja vila, tal como o Funchal, chegou a possuir uma muralha ao longo da praia e também a ser dotada de um conjunto de fortes (Fortes de Machico), à semelhança da vila de Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz), embora somente um deles tenha chegado até nós. Os portos e ancoradouros entre Santa Cruz e o Funchal também tiveram pequenos fortes, como os que subsistem nas praias e arribas dos Reis Magos, no Caniço, e na foz da ribeira do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), o mesmo acontecendo pontualmente na costa norte da Madeira, como na baía do Porto da Cruz, no calhau de S. Jorge e na praia do Porto Moniz. Como mirante romântico, ainda será de referir o forte do Faial (Fortes do Norte da Ilha), que, embora não tenha sido uma construção militar, veio a ser dotado de um largo conjunto de bocas-de-fogo de ferro inglesas, entretanto abandonadas nas praias do Funchal (Artilharia), que tradicionalmente salvam nas festas religiosas locais. A situação do Porto Santo foi mais complexa, dado o abandono a que a ilha foi votada pelos seus capitães-donatários e o isolamento a que sempre esteve sujeita, chegando a sofrer vários assédios corsários, alguns de graves consequências. Esta ilha não deixou, no entanto, de ter os seus fortes (Fortes do Porto Santo), mas estes não obstaram aos assédios sofridos. A definição da superintendência sobre a capitania arrastou-se ao longo do séc. XVIII, pelo que somente com a vigência do gabinete pombalino a situação foi ultrapassada e se pôde organizar a defesa e construir uma fortificação moderna. Se, ao longo do séc. XVIII, se assistiu ao aumento quase exponencial destas pequenas construções defensivas, o interesse militar da maior parte dessas construções, algumas muito precárias, decaiu francamente ao longo de todo o séc. XIX. Acresce que a importância do antigo património militar foi logo reconhecida por parte das câmaras municipais no início do liberalismo, como forma de ampliação das suas áreas de interesse, de expansão do tecido edificado e de reformulação das acessibilidades, sendo então muito do mesmo património militar edificado demolido na Ilha, o que igualmente aconteceu nos grandes centros urbanos continentais. Situação diferente voltou a ocorrer na Madeira com o advento da autonomia, mas já num quadro mais informado, sendo a arquitetura militar objeto de várias exposições, como a de 10 de junho de 1981 – ano em que o Dia de Portugal foi comemorado no Funchal –, exposição remontada em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1982, bem como no Porto e em Vila Viçosa. Foi depois solicitada a sua passagem à tutela da Região Autónoma da Madeira, com vista à instalação de instituições culturais e de apoio às atividades do turismo, nomeadamente os fortes do Ilhéu, de S. Tiago e do Pico, no Funchal, e o Amparo de S. João, no Machico (Arquitetura militar).   Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

Arquitetura História Militar Património

forte dos louros

Deve datar da primeira metade do séc. XVII a construção da pequena fortificação particular que o comerciante Diogo Fernandes Branco mandou levantar nas suas propriedades dos Louros e que o capitão Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade do século. Para proteger o desembarcadouro particular das propriedades dos Louros, construiu-se uma pequena fortaleza retangular com uma esplanada capaz de cinco peças de artilharia ligeiras. A construção deve ter tido a direção do mestre das obras reais Bartolomeu João. Palavras-chave: fortes; arquitetura militar; comércio internacional; defesa.   Mateus Fernandes (c. 1520-1597), de acordo com apontamentos que deixou em Lisboa, ainda nos finais do séc. XVI realizara obras na foz da Ribeira Gonçalo Aires. As primeiras obras nesse local, que Mateus Fernandes refere terem sido feitas no governo do conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), eram para “levante”, constando de uma série de trincheiras e traveses, nas quais se fazia “vigia todas as noites” e que “têm casa”. O mestre Mateus Fernandes pedia, então, que fossem reforçados, dada a força da ribeira no inverno, com “um espigão”, ou seja, um baluarte, rebocado a cal por dentro e por fora (ANTT, Antigo Regime, Arquivo da Casa da Coroa, Cartas Missivas, mç. 2, n.º 53). A opção tomada para o que que ficaria com o nome de forte dos Louros, cerca de 50 anos depois, foi no sentido da construção, na margem oposta, de uma nova estrutura muito mais elevada, composta por um baluarte quadrangular, rematado nos cunhais por elegantes guaritas e com casa da guarda e paiol para norte. A construção deve datar da primeira metade do séc. XVII e talvez tenha continuado ainda durante o período filipino na encosta que domina a pequena praia de desembarque, mandada levantar por Diogo Fernandes Branco (c. 1600-1652), pai, como uma pequena fortificação particular. Este comerciante e armador construiu um pequeno empório comercial ao longo da primeira metade do século, que o Cap. Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade, com a montagem de armadas para comércio geral e, especificamente, de escravos, que circulavam entre as costas de África, os arquipélagos atlânticos e o Brasil (Pernambuco). Esta família tornou-se uma das mais poderosas casas comerciais da Madeira da segunda metade do séc. XVII. Para proteger o desembarcadouro particular nas suas propriedades dos Louros, cruzando fogos com a fortaleza de S. Tiago, construiu-se, então, uma pequena fortaleza retangular, com uma esplanada capaz de 5 peças de artilharia ligeiras, em que, por carta de 9 de dezembro de 1649, afirma, para um dos seus correspondentes, ter de gastar mais 2$000 cruzados, “além de 1$580 que nele estão gastos” (VIEIRA, 1996, 133-134). Com a construção da bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega) e as medidas de controlo do contrabando determinadas por D. João IV, a família Fernandes Branco oficializou a situação da sua fortaleza, colocando-a sob as ordens do Rei, mas pedindo a sua capitania. O Rei, por portaria de 4 de setembro de 1647, concedeu a capitania do forte dos Louros a Diogo Fernandes Branco, pai, enquanto fosse vivo, e determinou que, por sua morte, nela sucederia o seu filho (ANTT, Chancelaria de D. João IV, Portarias do Reino, liv. 2, fl. 245). Não temos informações sobre a construção do forte dos Louros, por certo sob direção do então mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), pois, embora muito simples como construção de defesa, possui as mais bonitas e elegantes guaritas que existem na Ilha. Perto dos finais do séc. XVII e falecido o Cap. Diogo Fernandes Branco sem herdeiros diretos, o controlo passou para o governador e a sua guarnição foi constituída com base em reservistas, assim sendo os seus artilheiros. Temos informações de artilheiros na situação de reserva, se assim se pode dizer, a transitarem dos fortes de primeira linha, como o do ilhéu, nos finais do séc. XVII a fortaleza mais importante, para o então denominado fortim dos Louros. Aconteceu assim, em 1690, com o velho tanoeiro Manuel Martins, que chegou depois a ser condestável do ilhéu, honorário, com certeza, pelo falecimento do seu irmão Simão Fernandes Forte, em 1698. A nomeação de 1690 de Manuel Martins para o fortim dos Louros especifica que havia servido mais de 20 anos na fortaleza de N.ª Sr.ª da Conceição do Ilhéu, pelo que se lhe dava mais uma pipa de vinho por ano. Atendia-se ainda ao facto de “se dar incapaz”, “já velho”, com “falta de vista” (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 966, fls. 139v. e 284). A capitania do forte dos Louros, no entanto, deve ter continuado na família, e a sua propriedade efetiva também, pois tanto os tenentes-coronéis Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em 1817, como António Pedro de Azevedo (1812-1889), entre 1841 e 1860, nas suas “descrições”, quase não referem este forte. No final do séc. XIX, o procurador-geral da Fazenda pública do Funchal, António Leite Monteiro, no tombo deste forte, datado de 7 de outubro de 1892, cita a sua construção pelo morgado e capitão Nicolau Geraldo de Atouguia Freitas Barreto, “que o ofereceu para poder obter a patente de capitão da sua guarnição auxiliar” (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 109), o que não é verdade, pois a construção é anterior. O Cap. Nicolau Geraldo de Freitas Barreto foi escudeiro e fidalgo da Casa Real, com mercê do hábito da Ordem de Cristo, e foi capitão do forte de N.ª Sr.ª da Encarnação dos Louros, por nomeação de 28 de maio de 1715, tendo tido armas concedidas em 1731, registadas na Câmara do Funchal (VERÍSSIMO, 1992, 152), que mandou pintar nas suas casas à rua do Esmeraldo, palacete onde se encontra instalado o Tribunal de Contas do Funchal (Arquitetura Senhorial). Nos inícios do séc. XVIII, segundo o Livro de Carga da Fortificação, era condestável deste forte António de Freitas, que recebeu, em 1724, cinco peças de artilharia de ferro montadas, de pequeno calibre, uma teria até oito libras, e alguns apetrechos de artilharia. Em 1729, era condestável do forte Bernardo de Sousa e, em 1730, Paulo Pereira de Lordelo. No final do século, o Gov. Diogo Pereira de Forjaz Coutinho, reconhecendo o pouco valor militar do forte dos Louros, pretendeu ali instalar uma fábrica de seda, mas a ideia não passou da documentação oficial. No entanto, todos os documentos seguintes são unânimes na necessidade da sua alienação, a tal ponto que Paulo Dias de Almeida já não o refere na sua descrição de 1817. No já citado Tombo Militar, onde o forte dos Louros tem o n.º 109, não consta a descrição de 1862, quando foi levantado pelo Ten.-Cor. António Pedro de Azevedo, que desenhou o forte e a área envolvente; e, em 1892, o forte é descrito como “insignificante”, situado a 1 km da cidade, para leste, junto à estrada geral de Santa Cruz e Machico. Encontrava-se levantado sobre a escarpa da ribeira de Gonçalo Aires, a 61 m de altura sobre o nível do mar e o Lazareto do Funchal. Havia então duas casas à carga do forte: uma dentro, com quatro quartos ladrilhados, um assoalhado e uma cozinha; outra fora, encostada ao muro do forte, mas totalmente em ruínas, e de que nada restou. São interessantes as confrontações do forte: pelo norte, com terras das freiras de S.ta Clara, “benfeitorizadas” por M.ª Rosa e Manuel de Gouveia; pelo sul, com a rocha sobranceira ao Lazareto; a leste e oeste, outra vez com terras das freiras de S.ta Clara. Saliente-se que os conventos haviam sido extintos em 1834; no entanto, as propriedades em causa não eram do convento, mas das freiras de S.ta Clara. António Leite Monteiro refere, em nota à descrição do tombo, que o forte dos Louros não tinha qualquer valor como defesa militar e, em face da sua má situação, já tinha sido proposta a sua venda, de que se poderia obter 200$000 réis, calculados pelo aluguer que a casa poderia alcançar. A sua alta localização não permitia bater-lhe o mar, o que aumentava o seu valor comercial e, dado que se encontrava dominado por toda a parte, quer de oriente, ocidente, ou norte, o seu valor militar era quase nulo, pelo que o melhor era vendê-lo. Por outro lado, com a situação do Lazareto na sua parte baixa, se se quisesse mantê-lo “naquela mal escolhida localidade”, teria o governo de despender algum dinheiro com o forte, pois não poderia, para o policiamento interno do Lazareto, deixar-se de incluir nele o mesmo forte. Haveria, então, que se estudar a localização da estrada para Santa Cruz e Machico, que teria de passar acima do forte e assim construir-se a nova ponte. A estrada passou efetivamente para cima da escarpa e o Lazareto fechou-se com um portão de ferro ao largo, encimado com as armas reais, hoje no jardim da Q.ta das Cruzes. Mas o forte acabou por ser entregue pelo Exército ao Ministério das Finanças, embora com inquilinos descendentes do antigo guarda-fiscal Henrique Marcelino de Nóbrega, de família ali residente há quase 100 anos e que somente dali saiu em 2014. O tombo seguinte, com o n.º 110, corresponde à “Casa da guarda da foz da ribeira de Gonçalo Aires” e é assinado por António Pedro de Azevedo, a 17 de setembro de 1862, data em que procedeu ao levantamento da área. A casa é descrita como ocupando uma superfície de 29 ca, com 7 x 4 m, tendo porta e janelas com grades. António Pedro de Azevedo cita que foi “primitivamente destinada a alojar a guarda noturna encarregada de vigiar o contrabando neste porto”. Acrescenta que confrontava em todos os lados com terrenos do Lazareto do Funchal e o seu valor seria de 1000 réis, em virtude de a sua proximidade com o mar tornar insegura a sua situação. Em 1892, António Leite Monteiro reitera que o prédio “devia ser vendido”, parecendo que a venda se processou a 31 de janeiro de 1896, mas parte do documento encontra-se ilegível (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 110). A localização alcantilada do forte dos Louros inspirou inúmeros artistas, desde Andrew Picken (1815-1845), Funchal from the East, em 1840 e 1842, a William Gore Ouseley (1766-1866), por volta de 1850, Isabella de França (1795-1880), em 1853, etc., assim como o lazareto depois instalado no porto, por debaixo do forte, e onde era a antiga casa da guarda da foz da ribeira, que foi utilizado também como prisão militar, v.g., dos monárquicos da Revolta de Monsanto, em 1918, e dos elementos envolvidos na Revolta da Madeira, em 1931. Vista do Funchal com Forte dos Louros. Andrew Picken. 1840.   Imagens Arquivo Rui Carita. Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

Arquitetura História Militar Património

teixeira, tristão (vaz)

(finais do séc. XIII – c. 1470) Tristão Teixeira, também conhecido por Tristão da Ilha, de ascendência documentalmente desconhecida, foi companheiro de Zarco e primeiro capitão do donatário de Machico. Dele diz Noronha que “Viveo 80 anos, governou 50 e faleceu em Silves em 1470” (NORONHA, 1994, 38) o que, mesmo que não certificado por documentos, não deve andar longe da verdade, na medida em que o faz chegar à Madeira por volta dos 30 anos, idade compatível com a atribuição da capitania, antecedida de um passado como escudeiro do Infante D. Henrique e participante na tomada de Ceuta e no cerco de Tânger onde foi armado cavaleiro pelo mesmo Infante (BARROS, 1552, Déc. I, Lº I, cap. III, 33). Segundo Azurara, que considera Tristão Teixeira “homem assaz ardido mas não tão nobre (…) como João Gonçalvez” depois do descerco de Ceuta, os dois cavaleiros ofereceram os seus serviços ao Infante, pois eram “homens mancebos e pera muyto”, e consideravam que o seu tempo era mal-empregado se não “trabalhassem alguma cousa per seus corpos” (AZURARA, 1841, 388 e 385). Assim, encomendou-lhes o Infante a tarefa de demandarem terras da Guiné, para o que lhes forneceu uma barca, a qual, por ter encontrado vento contrário, veio dar ao Porto Santo, onde os cavaleiros ficaram por alguns dias, após o que regressaram ao reino. Na segunda viagem que fizeram àquela zona do atlântico, Zarco e Teixeira dirigiram-se à Madeira a cujo reconhecimento procederam. A maior ilha do arquipélago foi, então, dividida em duas porções, uma das quais, com sede em Machico ficou à responsabilidade de Tristão Teixeira. A 8 de maio de 1440, por carta do Infante D. Henrique, a administração do território que ia “desde alem do rio do Caniço até à Ponta do Tristão” é doada a Tristão Teixeira sob a forma de capitania, legitimando-se, assim, uma situação preexistente (MH., vol. XIV, doc. 71). Este mesmo documento será, posteriormente, em 1452, reconfirmado por D. Afonso V (M. H., vol. XIV, doc. 109). Se pouco se sabe da ação do capitão à frente dos destinos do seu território, há, por outro lado, informação de ter participado em outras viagens marítimas, narradas por Azurara que, em 1445 integra o capitão de Machico, bem como Garcia Homem, genro de Zarco, numa armada que escalou a Madeira a caminho das costas de África. Essa armada deteve-se em Canárias, a tentar obter “alguma presa” para serviço do Infante, o que, não tendo sido possível, determinou o regresso de algumas caravelas, entre as quais as duas idas da Madeira (AZURARA, 1841, 414). Um outro registo documental que respeita à vida de Tristão Teixeira é o do perdão que D. Afonso V lhe outorga, em razão de o capitão ter claramente excedido a sua jurisdição, quando mandara “talhar membro” a Diogo Barradas, homem degredado do reino que acolhera em sua casa e violara uma filha sua. Barradas apresentou queixa ao rei, na sequência do que o capitão teria sido preso e degredado para S. Tomé (FRUTUOSO, 2008, 116). Uns anos depois, em 1452, porém, mediante o pagamento de uma quantia avultada, o monarca deliberou perdoá-lo, após o que ainda governou a capitania por vários anos (AZURARA, vol. IX, doc. 117). Do seu falecimento, sabe-se que ocorreu no Algarve em data que será, eventualmente, próxima da já apontada.   Cristina Trindade Paulo Perneta (atualizado a 07.12.2017)

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