Mais Recentes

biologia marinha

Biologia marinha é a parte da biologia que estuda os organismos que vivem nos ecossistemas de água salgada, a relação entre eles e a sua relação com o ambiente. Quase 71 % da Terra está coberta por oceanos. Estes funcionam como reguladores da temperatura no planeta e as suas características e alterações físicas afetam, direta ou indiretamente, as populações (Oceanografia). O fenómeno do El Niño, e.g., que provoca alterações no clima de muitas regiões do mundo, tem origem no oceano Pacífico. Da mesma forma, os níveis das ondas e marés afetam diretamente os contornos dos continentes e as populações costeiras. Além disto, os organismos marinhos são uma importante fonte de alimentação e produtos naturais para o mundo. Por isso, entender a relação e a interdependência entre os organismos marinhos entre si e com o ambiente é muito importante. História da biologia marinha Os primeiros estudos sobre organismos marinhos remontam à Grécia e Roma antigas. Aristóteles, e.g., descreveu cerca de 500 espécies, 1/3 das quais são marinhas, e interessou-se especialmente por entender o funcionamento das brânquias. Plínio, o Velho, um naturalista romano, incluiu diversas espécies de peixes, moluscos e mexilhões na sua História Natural. Foi, porém, nos sécs. XVIII e XIX que o estudo dos organismos marinhos cresceu exponencialmente com os avanços da tecnologia, nomeadamente com a construção de melhores barcos e instrumentos de navegação. A investigação das costas portuguesas foi alvo de numerosos estudos a partir do séc. XIX, sendo tal região nordeste do Atlântico denominada Província Lusitana. Nesta altura, colecionaram-se inúmeros exemplares de organismos marinhos, escreveram-se inventários de espécies e descreveram-se muitas espécies novas para a ciência. Neste período, a maior parte das amostras eram disponibilizadas por pescadores locais ou encontradas nos mercados. Algumas expedições oceanográficas, e.g. as organizadas por D. Carlos I (1863-1908), contribuíram significativamente para o avanço da biologia marinha em Portugal. Foi também o penúltimo rei de Portugal quem concebeu e impulsionou a fundação do Aquário Vasco da Gama, inaugurado em maio de 1898. Em meados do séc. XX, a publicação de Peixes do Portugal e Ilhas Adjacentes em 1956, por R. Albuquerque, foi um marco na biologia marinha em Portugal, constituindo-se na principal referência desta área durante mais de 30 anos. Esta obra incluía uma lista completa da ictiofauna (espécies de peixes) conhecida na época, assim como uma chave para a sua identificação. Durante a segunda metade do séc. XX, um dos grandes impulsionadores da biologia marinha em Portugal foi Luiz Saldanha (1937-1997), professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que publicou inúmeros estudos nesta disciplina, desde invertebrados e algas até à fauna das profundezas oceânicas, e impulsionou a proteção de áreas naturais marinhas. O desenvolvimento e melhoramento das técnicas de mergulho, no princípio do séc. XXI, assim como outros avanços tecnológicos, deram um novo impulso ao conhecimento da ictiofauna e dos habitats marinhos. É possível, e.g., aos cientistas irem até ao chão marinho com submergíveis de águas profundas ou enviarem robots com câmaras para estudarem os habitats mais profundos e os organismos que neles habitam. Zonas ou regiões oceânicas O lugar específico onde os organismos vivem é chamado habitat. Alguns exemplos de habitats marinhos são: costas rochosas, praias de areia, recifes de coral, mar profundo, entre outros. Os habitats e as suas condições dependem muito da zona ou região oceânica onde se encontram. Domínio bentónico: É a área mais próxima do fundo oceânico e pode ser subdividida em várias zonas. A zona litoral é o conjunto de habitats que estão sob a influência das marés, e a parte que fica exposta durante a maré baixa é denominada de zona entremarés. Estes habitats estão sujeitos à força mecânica das ondas, à alternância entre submersão e exposição ao ar, à água salgada (ondas), à água doce (chuvas), e a uma grande variação de temperatura, luz solar, salinidade, etc. Em virtude de tudo isto, os organismos que habitam nestas zonas têm de ter uma grande capacidade de adaptação. As zonas mais profundas do domínio bentónico são similares às zonas do domínio pelágico: a zona batial, situada no declive ou talude continental até aproximadamente aos 4000 m de profundidade; a zona abissal, com profundidades até aos 6000 m; e a zona hadal, que compreende o fundo das fossas oceânicas. Os organismos que habitam no domínio bentónico são denominados de bentos e vivem no substrato, sobre o sedimento ou enterrados nele, fixos ou não. Domínio pelágico: É a zona de mar aberto que começa a seguir à zona litoral e continua até ao alto mar. A sua profundidade vai desde os 10 m até quase aos 6000 m. A camada de água que cobre a plataforma continental é conhecida como província nerítica e é adjacente à zona litoral. A área por cima do oceano mais profundo é denominada de província oceânica. O domínio pelágico pode ser dividido em presença de luz solar em zona eufótica, até aproximadamente aos 200 m de profundidade, e em zona afótica, a parte do oceano que se mantém na escuridão. Este domínio também pode ser dividido segundo as diferentes profundidades: zona epipelágica, até aos 200 m de profundidade; zona mesopelágica, entre os 200 e os 1000 m; zona batipelágica, entre os 1000 e aos 4000 m; zona abisopelágica, dos 4000 aos 6000 m, incluindo as planícies abissais; zona hadopelágica, abaixo dos 6000 m, incluindo as fossas abissais (a fossa mais profunda conhecida é a fossa das Marianas que se encontra no oceano Pacífico e atinge 11.034 m de profundidade). Os organismos que vivem no domínio pelágico são de dois tipos: plâncton, organismos que ficam à deriva dos movimentos da água, e nécton, organismos capazes de nadar. Fig. 1 – Desenho com os diferentes domínios e as zonas oceânicas. Por P. Puppo.     Fatores ambientais Cada um dos habitats marinhos possui um conjunto de características físicas que, juntamente com a capacidade dos organismos para se adaptarem a elas, determina a distribuição de espécies. Cada espécie tem requisitos diferentes para cada um destes fatores e a sua capacidade de adaptação às mudanças pode alterar a sua distribuição ou mesmo levar a que uma espécie não se reproduza ou morra. É este conjunto de fatores, e.g. luz solar, temperatura, salinidade, pressão, nutrientes, que determina a distribuição das espécies. Luz solar: Este é um dos fatores mais importantes nos habitats marinhos. A luz solar penetra até diferentes profundidades, dependendo da qualidade da água. Em zonas onde a água é mais turva, a luz solar pode chegar a um metro de profundidade, enquanto, em zonas onde a água é mais transparente, a luz solar pode chegar aos dois metros de profundidade. A luz solar é essencial para os processos de fotossíntese de muitos organismos, e.g. plantas marinhas, algas e fitoplâncton. Também é necessária para a visão, já que muitos animais dependem deste sentido para caçar, fugir aos predadores ou para comunicar entre si. Os animais das profundezas, onde a luz solar é escassa ou não chega, dependem de outros sentidos, como o cheiro e o gosto, ou desenvolvem formas de produzir luz (bioluminescência). Temperatura: Da mesma forma que a luz solar, a temperatura também varia consoante a profundidade. A maior parte dos animais marinhos são ectotérmicos, ou seja, a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior e, por isso, são mais ativos quando a água fica mais quente. Os mamíferos e aves, por outro lado, são endotérmicos, produzem o seu próprio calor, e possuem uma temperatura interior normalmente maior que a temperatura da água. Os animais endotérmicos precisam de adaptações especiais que lhes permitam isolar a temperatura do seu corpo da temperatura exterior. Salinidade: Salinidade é a concentração de sais orgânicos dissolvidos na água. Os organismos possuem membranas semipermeáveis que deixam passar a água, mas não os sais (osmose) e, por isso, é muito importante conseguirem manter o equilibro dos níveis de água nos seus corpos. Se os organismos deixarem sair água a mais, podem-se desidratar ou mesmo morrer. Pressão: A pressão do mar mede-se em atmosferas (atm), sendo 1 atm equivalente a 101.325 Pa (pascais, a medida padrão de pressão). A pressão que a atmosfera exerce sobre o nível do mar é de 1 atm e vai aumentando consoante a profundidade, à razão de 1 atm por cada 10 metros de profundidade. Assim, e.g., a uma profundidade de 4000 m, a pressão é de 400 atm. Com esta diferença em pressão, os animais que normalmente habitam na superfície do mar não conseguem sobreviver às profundezas oceânicas. Organismos como as baleias, que conseguem nadar tanto na superfície do mar como nas profundezas, possuem adaptações especiais que lhes permitem tolerar estas diferenças em pressão. Nutrientes: Os organismos também precisam de uma série de compostos orgânicos e inorgânicos para crescerem e se reproduzirem. O cálcio, que é abundante no mar, é necessário para que organismos como os crustáceos, caracóis, ostras, corais, etc., se possam desenvolver. Da mesma maneira, compostos como o nitrogénio e o fósforo são essenciais para os organismos que produzem fotossíntese, e.g. o fitoplâncton, as algas e as plantas marinhas. O oxigénio, por seu turno, é indispensável a muitos organismos, como as plantas, os animais e muitos micróbios. O excesso de nutrientes, por outro lado, também pode levar a problemas sérios, como a sobrepopulação de fitoplâncton, conhecida vulgarmente como explosão de algas – que, ao morrerem, se decompõem, consumindo todo o oxigénio e matando outros organismos. Normalmente, as zonas de águas rasas e as zonas intermareais apresentam uma maior variação em luz solar, temperatura, salinidade e nutrientes, e os organismos que nelas habitam necessitam de se adaptar a estas variações. Pelo contrário, as zonas de águas mais profundas apresentam níveis de temperatura, sal, pressão e nutrientes mais constantes, pelo que os organismos destas áreas são muito mais intolerantes a alterações abruptas nestes fatores. Ecossistemas e cadeias alimentares A interação entre as comunidades de organismos e o efeito que o meio (os fatores ambientais) tem sobre elas é designada por ecossistema. Uma das principais interações entre as comunidades bióticas é a cadeia alimentar, em que umas comunidades se alimentam de outras e, por isso, dependem delas para sobreviver. Estas cadeias alimentares são um ciclo que começa com os produtores, organismos capazes de produzir o seu próprio alimento e que servem de alimento a outros organismos, os consumidores, e que acaba com os decompositores, organismos que transformam cadáveres e excrementos em nutrientes, que podem ser reutilizados pelos produtores. Frequentemente, os consumidores alimentam-se de diferentes organismos, o que torna estas interações muito mais complexas. Produtores: Os produtores são organismos autótrofos, ou seja, são capazes de produzir o seu próprio alimento. A maior parte dos produtores faz isto através de um processo conhecido como fotossíntese, em que os organismos usam luz solar, dióxido de carbono e água para produzir glucose, libertando oxigénio. Consumidores: Os consumidores são todos os organismos incapazes de produzir o seu próprio alimento e que, por isso, se alimentam de outros organismos. Os consumidores podem ser herbívoros, que se alimentam dos produtores; carnívoros, que se alimentam de outros consumidores; ou omnívoros, que se alimentam tanto de produtores como de outros consumidores. Decompositores: São organismos que se alimentam de cadáveres ou de qualquer outro resto orgânico, transformando-os em compostos ou moléculas mais simples, que podem ser reaproveitadas pelos produtores. Microrganismos marinhos Os microrganismos são os organismos mais abundantes no oceano e, embora não sejam visíveis a olho nu, cumprem funções importantíssimas nos ecossistemas marinhos: são a base das cadeias alimentares, decompõem organismos mortos e reciclam nutrientes. Existem vários tipos de microrganismos marinhos: vírus, bactérias, fungos, diatomáceas, etc. Os mais significativos são mencionados com mais detalhe a seguir. Vírus marinhos: Os vírus não são considerados organismos, mas parasitas, já que só se podem reproduzir usando uma célula hóspede. Fora de um hóspede, os vírus são inertes e são chamados vírions. Uma vez dentro de uma célula, podem-se reproduzir rapidamente, produzindo milhares de novos vírus. As células infetadas morrem e, por isso, os vírus podem reduzir significativamente populações de bactérias e outros microrganismos, libertando nutrientes no mar. Bactérias marinhas: As bactérias são organismos unicelulares procariontes (que carecem de membrana no núcleo e organelos). As cianobactérias, também conhecidas como algas azuis ou algas verde-azuladas, são organismos capazes de produzir o seu próprio alimento através da fotossíntese. Grandes quantidades de cianobactérias podem formar tapetes que dão uma cor característica à água, e.g. o caso do mar Vermelho. As bactérias incapazes de produzir o seu próprio alimento alimentam-se de outros organismos e decompõem matéria orgânica, libertando compostos inorgânicos no mar. Algumas bactérias associam-se a outros organismos (simbiose), tal como acontece com alguns peixes dos abismos oceânicos que produzem luz (bioluminescência) por meio de uma simbiose com bactérias produtoras de luz. Arqueias: Estes organismos são procariontes e muito parecidos com as bactérias, mas as suas membranas celulares são muito resistentes e, por isso, conseguem habitar áreas extremas com temperaturas muito baixas ou muito elevadas (acima dos 100 ºC) ou com uma alta concentração de sais, alta pressão, ambientes muito ácidos, etc. Algumas arqueias não precisam de oxigénio para viver e libertam metano. Fungos marinhos: Os fungos são organismos eucariotas (as suas células têm um núcleo delimitado por uma membrana e por organelos) cuja membrana celular é composta de quitina, o mesmo composto que se encontra nas carapaças de animais como os crustáceos. Os fungos são organismos que precisam de oxigénio para viver e são incapazes de produzir o seu próprio alimento. Não são muito abundantes no mar e, de facto, menos de 1 % dos fungos são marinhos. Liquens: Estes organismos são uma simbiose entre um fungo e uma bactéria, o que lhes permite viver em zonas inóspitas para outros organismos como, e.g., zonas intermareais altas. Diatomáceas: As diatomáceas pertencem ao grupo das Straminopiles, um grupo variado de algas que inclui as algas castanhas. As diatomáceas são organismos protistas (grupo de organismos eucariotas), unicelulares e fotossintéticos caracterizados por possuir a membrana exterior à maneira de carapaça (conhecida por frústula), rica em dióxido de silício. Como a sílica é indissolúvel, quando estes organismos morrem, as suas frústulas depositam-se no fundo marinho, formando sedimentos de sílica que podem ser depois colhidos e usados como filtros ou abrasivos para usos comerciais. São um grupo numeroso de organismos, estimando-se que existem mais de 100.000 espécies de diatomáceas, e são o principal componente do fitoplâncton. Cocolitóforos: Parecidos com as diatomáceas, estes microrganismos fotossintéticos possuem, em vez de uma carapaça de sílica, escamas de carbonato de cálcio (conhecidas como cocólitos). Após a morte do organismo, estes cocólitos formam importantes depósitos de cálcio no chão marinho. Na Madeira, Kaufmann registou, em 2004, cerca de 37 espécies de cocolitóforos. Dinoflagelados: São organismos protistas, unicelulares cobertos por placas de celulose. Muitas espécies são autótrofas, outras são heterótrofas (alimentam-se de outros organismos), algumas são parasitas e outras vivem em simbiose com outros organismos. Algumas espécies produzem luz (são bioluminescentes) e outras produzem toxinas que podem matar outros animais. Estas toxinas podem-se acumular em alguns organismos (e.g. peixes) que se alimentam de dinoflagelados, e também afetar a saúde dos seres humanos. Em todos os verões, desde 2007, se têm registado casos, na Madeira e nas Selvagens, de pessoas intoxicadas por dinoflagelados. Um outro fenómeno originado por estes organismos são as marés vermelhas, uma concentração de dinoflagelados que aparece quando as condições são favoráveis e estes organismos se reproduzem rapidamente. As espécies autótrofas de dinoflagelados são o segundo componente mais importante do fitoplâncton, após as diatomáceas. Fig. 2 – Desenhos de dois microrganismos marinhos: cocolitóforo (esquerda) e dinoflagelado (direita). Por P. Puppo.   Protozoários ameboides: São organismos protistas e heterótrofos que se alimentam de bactérias e outros microrganismos. Possuem extensões no citoplasma, denominadas de pseudópodos, que usam para locomoção ou para apanhar presas. Pertencem a dois grupos: os foraminíferos, que possuem uma concha calcária, que, muitas vezes, é responsável pela tonalidade cor-de-rosa da areia em algumas praias, e os radiolários, que possuem uma cápsula porosa que deixa passar os pseudópodos e formam uma carapaça interna de sílica. Após a morte destes organismos, as conchas e carapaças formam depósitos importantes no fundo marinho. Fitoplâncton: é o conjunto de microrganismos marinhos capazes de realizar fotossíntese, e.g. as cianobactérias, diatomáceas, cocolitóforos, algumas espécies de dinoflagelados e algumas espécies de algas castanhas. Pertencem ao grupo dos produtores e são os principais responsáveis pela transformação de dióxido de carbono (CO2) em oxigénio, não só nos oceanos, mas também na atmosfera. Um estudo realizado em 2015 por Kaufmann, no oceano Atlântico ao redor da Madeira, concluiu que o fitoplâncton é composto de mais de 470 espécies, das quais 55 % são diatomáceas e 33 % são dinoflagelados.   Algas e plantas marinhas Embora os principais produtores marinhos sejam os microrganismos conhecidos como fitoplâncton, as algas e plantas marinhas também estão incluídas no grupo dos produtores. Na sua maioria, estes organismos não flutuam com as correntes marinhas, mas estão fixos no substrato. A exceção a esta regra é um grupo de algas castanhas conhecidas como sargaço, que formam tapetes flutuantes no oceano. Além da sua função como produtores, as algas e plantas marinhas proporcionam habitats para outros organismos e, por outro lado, as raízes das plantas são importantes para fixar o substrato marinho. Algas marinhas: Existem três grupos de algas: as verdes, as vermelhas e as castanhas. As algas verdes e as algas vermelhas são parecidas com as plantas, enquanto as algas castanhas estão mais relacionadas com as diatomáceas. O seu nome deriva dos diferentes pigmentos que cada um destes grupos de algas possui. Estes pigmentos ajudam estes organismos a absorver diferentes comprimentos de onda da luz e, assim, a adaptar-se às diferentes zonas do oceano. Também protegem as algas em caso de excesso de exposição à luz solar. As algas verdes, e.g., absorvem ondas de luz vermelha e, por isso, estas algas encontram-se mais perto da superfície. As algas vermelhas, por seu lado, absorvem ondas de luz azul (que penetram mais no oceano) e, por isso, encontram-se a maiores profundidades, enquanto as algas castanhas se distribuem tipicamente por profundidades intermédias. A temperatura também afeta a distribuição e abundância das algas, sendo que estes organismos são geralmente mais abundantes perto dos trópicos. As algas não têm folhas, caules, nem raízes como as plantas. O seu corpo é denominado talo, a parte plana é a lâmina, o estipe é a parte parecida com o caule das plantas, mas sem tecidos vasculares, e a zona parecida com uma raiz, que fixa o organismo ao substrato, chama-se rizoide. Algumas algas formam vesículas cheias de ar nas lâminas que ajudam os organismos a flutuar e, assim, a ficar mais perto da superfície e a captar mais luz solar. Muitas espécies de algas são exploradas pelo homem para consumo direto, e outras são usadas como fonte de alguns compostos usados na indústria farmacêutica e alimentícia, e.g. substitutos da gelatina (ágar) para produzir cápsulas, supositórios, anticoagulantes, cremes, geleias, etc. Plantas marinhas: As plantas que vivem em águas salgadas são plantas com flores que se adaptaram a estes ecossistemas. Diferentemente das algas, as plantas marinhas possuem folhas, caules e raízes pelas quais absorvem nutrientes do substrato. Vivem em zonas de pouca profundidade, formando prados marinhos, oferecem refúgio a muitos animais bentónicos e servem de alimento a algumas espécies de peixe-papagaio, ouriço-do-mar e tartarugas marinhas. Estas plantas, conhecidas também como ervas marinhas, fixam o sedimento marinho com as suas raízes, diminuindo a turbidez da água, e diminuem a velocidade da água com as suas folhas. A lista mais recente de algas e plantas marinhas do arquipélago da Madeira, publicada em 2001 por Neto e colaboradores, inclui uma espécie de planta marinha e 359 espécies de algas marinhas, das quais 231 são algas vermelhas, 64 são algas verdes e 64 são algas castanhas.   Fig. 3 – Desenho das partes de uma alga castanha. Por P. Puppo.      Invertebrados marinhos Os invertebrados são aqueles animais que carecem de coluna vertebral, ao contrário dos vertebrados (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos), que possuem esta estrutura. Os invertebrados são muito mais numerosos que os vertebrados e, entre os invertebrados marinhos, encontram-se as esponjas, cnidários, ctenóforos, vermes marinhos, moluscos, crustáceos, etc. Esponjas: As esponjas são os animais mais simples, pois não têm tecidos, órgãos ou sistema nervoso. O seu corpo apresenta uma forma de tubo, um dos seus extremos é fechado, por estar preso ao substrato, e o outro extremo, denominado ósculo, por onde sai a água, é aberto. O interior do corpo é chamado espongiocele. Alimentam-se de pequenas partículas (bactérias, plâncton, detritos) que apanham, filtrando a água que entra por vários pequenos orifícios – os óstios – no corpo. As esponjas são um componente importante de águas pouco profundas e ajudam na reciclagem de cálcio no oceano. Até 2012, foram registadas por Xavier e Van Soest 95 espécies de esponjas de águas rasas na região oceânica em redor das ilhas Canárias e da Madeira. Cnidários: Os cnidários são animais cujo corpo está organizado em redor de um único buraco (ou boca) rodeado de tentáculos urticantes que injetam uma toxina. A toxina de algumas espécies pode ser mortal, embora alguns animais, e.g. o peixe-palhaço, lhe sejam imunes. Os cnidários apresentam duas formas de vida, pólipo ou medusa, e estão subdivididos em quatro classes principais. Os Hydrozoa apresentam duas fases no seu ciclo de vida (pólipo ou medusa) e incluem as hidras e a caravela-portuguesa ou garrafa azul. Os Scyphozoa são sobretudo medusas, mexem-se, mas são incapazes de ir contra a corrente e são as comummente chamadas medusas, águas-vivas ou alforrecas. Os Cubozoa são medusas em forma de cubo, também conhecidas como cubozoários, e são predadores ativos que matam a sua presa, injetando-a com toxinas; alimentam-se sobretudo de peixe. Os Anthozoa são pólipos, vivem fixos no substrato marinho e incluem as anémonas, que apanham as suas presas com os seus tentáculos, e os corais, que segregam um esqueleto externo de cálcio e formam colónias de inumeráveis indivíduos (recifes). Os cnidários alimentam-se por filtração (Hydrozoa e corais) ou apanhando pequenos peixes e invertebrados com os seus tentáculos (Scyphozoa, Cubozoa e anémonas). A comida é digerida no interior oco dos organismos, na cavidade central ou gastrovascular, e os restos são expulsos para o exterior pelo único buraco que estes organismos possuem. Muitos cnidários também servem de alimento a outros animais, e.g. tartarugas marinhas e várias espécies de peixe, que comem medusas, e uma espécie de estrela-do-mar, que come corais. Os recifes de corais são as colónias de organismos maiores do mundo e são importantes em muitos aspetos: constituem o habitat de muitos outros seres vivos, servem de substrato para várias espécies do domínio bentónico e atenuam o impacto das ondas marinhas. Os cnidários são muito abundantes na Madeira e no Porto Santo; e.g., só para os Hydrozoa, Wirtz registou em 2007 a ocorrência de 53 espécies. Ctenóforos: conhecidos vulgarmente como carambolas-do-mar ou águas-vivas-de-pentes, estes organismos caracterizam-se pela presença de filas de cílios (à maneira de pentes), que utilizam para nadar, e por produzirem luz (são bioluminescentes). São parecidos com as medusas, mas normalmente não têm tentáculos ao redor da boca; poucas espécies possuem só dois tentáculos, que não produzem toxinas e que usam para apanharem as suas presas. Os ctenóforos são predadores e alimentam-se principalmente de plâncton, embora algumas espécies comam medusas. Vermes marinhos: Os vermes marinhos são muito numerosos e estão subdivididos em muitos grupos. Só alguns serão mencionados seguidamente com mais pormenor. Os platelmintos são vermes-planos, têm olhos rudimentares, que lhes permitem distinguir as diferentes intensidades de luz, têm um só buraco por onde entra o alimento e saem os resíduos, e são carnívoros, alimentando-se de pequenos invertebrados. Algumas espécies destes vermes-planos, os turbelários, medem entre alguns milímetros e 50 cm e vivem livremente no domínio bentónico; outras espécies são parasitas de outros animais e, em alguns casos, como as ténias das baleias, podem medir até 30 m de comprimento. Os nemátodos são vermes redondos cujo corpo é cilíndrico e alongado e possui uma boca e um ânus. Os seus hábitos alimentares são muito variados, desde varredores, parasitas e predadores, consumindo, alguns, bactérias e algas. Estes vermes são muito abundantes e, embora normalmente sejam pequenos (menos de 5 cm), algumas espécies podem atingir mais de um metro de comprimento. Os anelídeos são vermes segmentados cujo corpo é composto de muitos segmentos iguais entre si, o que lhes permite uma maior mobilidade. Os anelídeos marinhos mais comuns pertencem ao grupo dos poliquetas, que têm o corpo coberto de cerdas e são de vida livre (pelágicos) ou sedentários. Os vermes marinhos cumprem muitas funções importantes nos ecossistemas. As espécies que vivem enterradas no substrato ajudam na reciclagem de nutrientes, pois, ao cavar no sedimento, trazem à superfície nutrientes que podem ser reaproveitados por outros organismos. Outras espécies alimentam-se de pequenos organismos ou detritos ou servem de comida para animais maiores. Briozoários: Também conhecidos como animais-musgo, pertencem ao grupo dos lofoforados, já que possuem um círculo de tentáculos ciliados ao redor da boca. O seu aparelho digestivo tem a forma de um U, sendo que o ânus está muito próximo da boca. Os briozoários são animais que vivem formando colónias sésseis e se alimentam por filtração. Moluscos: É um grupo de organismos muito variado que inclui animais como lulas, polvos, mexilhões, etc. O seu corpo é mole e é composto de uma cabeça, onde estão os órgãos sensoriais, um pé, usado para a locomoção, e um manto, que protege a maior parte do corpo e que muitas vezes segrega uma concha. Os moluscos apresentam um sistema digestivo completo (boca-ânus) e, com exceção dos bivalves, possuem uma estrutura conhecida como rádula, um tecido que contém dentes usados para raspar, rasgar ou cortar os alimentos. Os moluscos são uma importante fonte de alimento para animais e seres humanos e constituem uma importante fonte de cálcio para algumas aves marinhas. Os moluscos estão subdivididos em várias classes, algumas delas extintas (só se conhecem por fósseis). As espécies marinhas encontram-se, sobretudo, em quatro classes: Polyplacophora (cerca de 1200 espécies), Gastropoda (40.000-50.000 espécies), Bivalvia (cerca de 800 espécies), e Cephalopoda (cerca de 790 espécies). Os Polyplacophora são organismos exclusivamente marinhos que habitam sobretudo na zona entremarés, o seu corpo é plano, estando coberto por oito placas calcárias, e alimentam-se de algas e plantas que raspam do substrato com a rádula. Os quítons pertencem a este grupo. Os gastrópodes mexem-se deslizando pelo substrato com o pé musculado; a maioria das espécies possui uma concha, enroscada (caracóis) ou mais ou menos lisa (lapas), e outras espécies, como os nudibrânquios, carecem de concha. A sua alimentação é igualmente variada: algumas espécies são herbívoras e alimentam-se de algas ou plantas marinhas, outras são carnívoras e comem cnidários, equinodermos e bivalves, e outras espécies alimentam-se por filtração. Os bivalves são moluscos que têm o corpo protegido por uma concha carbonatada dividida em duas valvas que se abrem e fecham pela contração de um músculo. Não têm cabeça, nem rádula, usam o pé para se enterrarem no substrato e para se movimentarem, e alimentam-se por filtração. Os cefalópodes são moluscos carnívoros; caracterizam-se por ter o pé modificado à maneira de cabeça e por uma boca rodeada de tentáculos que usam para capturar presas, defender-se de predadores e mover-se. Os cefalópodes são um grupo numeroso e variado que inclui: os nautilus, que têm concha e de 60 a 90 tentáculos; os chocos e lulas, que têm uma pequena concha interna e 10 tentáculos (tendo 2 mais compridos que os outros), e os polvos, que carecem de concha e têm 8 tentáculos. Os chocos, lulas e polvos têm o sistema nervoso mais complexo de todos os invertebrados, possuem olhos bem desenvolvidos, libertam uma nuvem de tinta para distrair os predadores, e conseguem mudar de cor e textura. O grupo dos moluscos é muito abundante na Madeira, sendo que, em 2009, Segers e colaboradores registaram a ocorrência de cerca de 850 espécies destes organismos no arquipélago da Madeira. Artrópodes: Os artrópodes são um grupo muito numeroso de invertebrados que inclui os insetos e constituem cerca de 75 % de todas as espécies de animais. Caracterizam-se por um exosqueleto feito de quitina, corpo segmentado e apêndices articulados especializados para a locomoção, alimentação ou perceção sensorial. Os artrópodes marinhos pertencem sobretudo a dois grupos, os Chelicerata (grupo onde também estão incluídos as aranhas, ácaros e escorpiões) e os Crustacea ou crustáceos. Os Chelicerata carecem de mandíbulas e, por isso, digerem a comida antes de a ingerirem; o representante aquático deste grupo é o límulo ou caranguejo-ferradura-do-atlântico, que vive em zonas de águas rasas e se alimenta de pequenos invertebrados e algas. Os crustáceos possuem mandíbulas, que usam para esmagar e mastigar os alimentos, duas antenas e, dependendo da espécie, patas modificadas para caminhar e para nadar, ou apresentam pinças para caçar ou para defender-se. Os crustáceos são muito numerosos, cerca de 50.000 espécies, e incluem as lagostas, caranguejos e camarões, que possuem duas pinças e quatro pares de patas, sendo, na sua maioria, predadores (embora alguns sejam varredores ou filtradores), e também percebes e cracas, os únicos crustáceos sésseis, além de outros organismos como os krill, anfípodes e copépodes, que são importantes componentes do zooplâncton. Na Madeira, Wirtz e colaboradores registaram, em 2006, a ocorrência de 27 espécies de percebes, e Araújo e Wirtz, em 2015, registaram cerca de 215 espécies de lagostas, caranguejos e camarões. Equinodermes: São um grupo de organismos marinhos e bentónicos, particularmente abundantes no oceano profundo, mas também se encontram em águas rasas. Possuem um esqueleto interno (endoesqueleto) formado por placas calcárias e um grande poder regenerativo, podendo originar um novo organismo a partir de uma parte do corpo. Este grupo inclui: as estrelas-do-mar, cujo corpo é constituído por um disco central e cinco braços; os ofiúros ou estrelas-serpente, semelhantes às estrelas-do-mar, nos quais o disco central inclui todos os órgãos vitais e os braços são finos e compridos; os ouriços-do-mar e bolachas-da-praia, organismos redondos com espinhos; os pepinos-do-mar, que têm um corpo alongado; e os lírios-do-mar ou crinóides, que se fixam ao substrato e estendem os braços para se alimentarem. Os equinodermes são importantes herbívoros ou predadores e servem de alimento a uma variedade de espécies, e.g. moluscos, caranguejos, peixes, lontras marinhas e até seres humanos. Estes organismos são muito diversos na Madeira, sendo que De Jesus e Abreu registaram, em 1998, 52 espécies de equinodermes na Madeira, das quais 27 são espécies de percebes (segundo o estudo de Wirtz e colaboradores publicado em 2006) e 6 são ouriços-do-mar (segundo o estudo de Alves e colaboradores feito em 2001). Destas espécies, vale a pena mencionar Diadema antillarum, uma espécie dominante de ouriço-do-mar que se alimenta das extensas zonas de algas. Tunicados: Estes organismos são os mais parecidos com os vertebrados; estão incluídos no grupo dos cordados, mas, em vez de uma coluna vertebral, apresentam uma notocorda (corda dorsal) que surge só no seu desenvolvimento embrionário. Os adultos carecem desta estrutura. Os tunicados são organismos marinhos que se alimentam por filtração: algumas espécies são sésseis e outras vivem livremente no mar aberto; enquanto algumas são solitárias, outras formam colónias. Peixes marinhos Os peixes pertencem ao grupo dos animais vertebrados, pois possuem uma série de ossos ou cartilagens que dão suporte à medula espinal e proporcionam um lugar de fixação para os músculos do corpo. Os peixes marinhos são os animais vertebrados mais abundantes nos oceanos, distribuindo-se desde as zonas costeiras até ao mar aberto e desde zonas pouco profundas até zonas abissais. Muitas espécies de peixes têm adaptações para eliminar o excesso de sal dos seus corpos. Os tubarões, e.g., têm glândulas de sal localizadas no reto, enquanto outras espécies de peixes ósseos segregam o sal através de células especializadas nas brânquias. Os peixes estão subdivididos em três grandes grupos: os peixes sem mandíbulas (cerca de 80 espécies), que incluem as lampreias e as mixinas; os peixes cartilaginosos (cerca de 1000 espécies), que incluem os tubarões e as raias; e os peixes ósseos (cerca de 25.000 espécies), que incluem todos os peixes com esqueleto ósseo, e.g. as sardinhas, o bacalhau, o atum, etc. Peixes sem mandíbulas: Os animais neste grupo não têm mandíbulas, pares de barbatanas ou escamas, e os seus esqueletos são compostos só de cartilagem. As mixinas ou enguias-de-muco são animais parecidos com as lampreias, mas têm dois pares de tentáculos na boca que usam na alimentação, vivem no substrato a profundidades inferiores a 600 m, alimentando-se de pequenos invertebrados ou animais mortos, e produzem grandes quantidades de muco para afastar os predadores. As lampreias vivem tanto em água doce como em água salgada, têm uma boca à maneira de ventosa circular, com a qual raspam ou sugam o seu alimento, sendo muitas espécies consumidas pelo homem como alimento. Peixes cartilaginosos: Estes peixes têm mandíbula, barbatanas e o seu esqueleto é composto de cartilagem e coberto com sais de cálcio. A este grupo pertencem os tubarões, animais carnívoros que se alimentam de uma variedade de presas, desde os leões-marinhos ao fitoplâncton. As raias também pertencem a este grupo e caracterizam-se pelos seus corpos achatados, fendas branquiais localizadas por baixo do corpo, e um estilo de vida bentónico, alimentando-se de pequenos invertebrados, e.g. moluscos e crustáceos, ou de plâncton. As quimeras também são peixes cartilaginosos que, na sua maioria, habitam nas profundezas e se alimentam de peixes, crustáceos e moluscos. Os peixes cartilaginosos têm várias estratégias reprodutivas: algumas espécies são ovíparas (os embriões desenvolvem-se dentro de um ovo, fora do corpo da mãe), outras são vivíparas (o embrião desenvolve-se dentro do útero materno alimentado por uma placenta), e outras são ovovivíparas (o embrião desenvolve-se dentro de um ovo, alimentando-se das substâncias nutritivas do mesmo, mas o ovo fica dentro do corpo da mãe, proporcionando-lhe proteção). Peixes ósseos: São o grupo mais numeroso de peixes e caracterizam-se por ter esqueleto ósseo, escamas ósseas e uma bexiga-natatória, que ajuda o animal a manter uma certa profundidade. A forma do corpo varia muito consoante o estilo de vida das espécies; a forma típica é a fusiforme, que os ajuda a nadar, mas há espécies que têm um corpo globoso (e.g. o peixe-balão), ou achatado (e.g. o linguado), ou alongado (e.g. a enguia), ou com a cauda enroscada (e.g. o cavalo-marinho). O estilo de vida destes peixes também é muito variado: pelágicos (mar aberto), e.g. as sardinhas, atuns, etc.; mesopelágicos, que percorrem grandes distâncias verticais no oceano, porque vivem nas profundezas durante o dia e sobem à superfície à noite para se alimentarem; bentónicos, que vivem mais perto do substrato, enterrados nele, e.g. o linguado, ou escondidos entre as rochas, e.g. as enguias; batipelágicos e abissais, que vivem na zona batial ou abissal (de grandes profundidades). A sua alimentação também é muito variada: muitos são carnívoros e alimentam-se de pequenos invertebrados, muitos outros são herbívoros e comem plantas e algas, e outros, ainda, são filtradores e alimentam-se sobretudo de plâncton. A maior parte dos peixes ósseos é ovípara. Na Madeira, estima-se que existam cerca de 550 espécies de peixes. Entre estas, 226 são espécies costeiras e 133 são de peixes associados a recifes. Não há espécies de peixes marinhos endémicos só à Madeira (ou seja, que só ocorram no oceano ao redor da Ilha), mas há 11 espécies endémicas pertencentes aos arquipélagos da Madeira, dos Açores e das Canárias, uma espécie, Mauligobius maderensis, endémica à Madeira e às ilhas Canárias, e outra, Paraconger macrops, endémica aos Açores e à Madeira. As espécies que ocorrem na Ilha são muito variadas: raias, enguias, peixes-agulha, peixes-trombetas, cavalos-marinhos, arenques, barracudas, garoupas, sargos, peixes-papagaios, atuns, peixes-escorpião, linguados, peixes-balão, etc. Ocasionalmente, são avistadas na Madeira espécies do mar aberto, e.g. a caravela-portuguesa (Cnidário, Hydrozoa), e várias espécies de tubarões: tubarão caneja, tubarão branco, tubarão azul, tubarão martelo, tubarão baleia, entre outros. Os peixes oceânicos que ocorrem na Madeira são uma mistura de espécies similares às que ocorrem na região mediterrâneo-atlântica (espécies de águas temperadas) e de espécies tropicais que atingem o limite norte da sua distribuição nesta área, e.g.: Aluterus scriptus, Canthidermis sufflamen, Caranx crysos, Gnatholepis thompsoni, Heteroconger longissimus, entre outras. Alguns autores sugerem que há um aumento no número de espécies tropicais no mar da Madeira, presumivelmente devido ao aumento da temperatura da água ocasionado pelo aquecimento global (ver, e.g., o artigo publicado por Wirtz e colaboradores em 2008). Répteis marinhos Os répteis são um grupo de animais adaptados à vida terrestre, embora algumas espécies também habitem ecossistemas aquáticos. São animais de sangue frio, ou ectotérmicos, já que a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior; por isso, a maior parte destes organismos vive em zonas temperadas e quentes. Estes animais têm o corpo coberto de escamas, alimentam-se de diversos organismos, têm muito poucos predadores, e reproduzem-se colocando ovos amnióticos, onde o embrião está rodeado por uma série de membranas, tendo o ovo uma casca dura. Os répteis marinhos bebem água salgada e eliminam o excesso de sal através de umas glândulas especializadas localizadas na cabeça. Estes animais vão sempre a terra para depositar os seus ovos. As espécies de répteis adaptadas à vida marinha são poucas. A iguana-marinha é a única espécie de lagarto que vive em águas salgadas e só ocorre nas ilhas Galápagos; tem a glândula de sal no nariz. Existem cerca de 50 espécies de serpentes marinhas e todas ocorrem nos oceanos Pacífico e Índico. Só existem três espécies de crocodilos adaptadas à vida em águas salgadas: o crocodilo-marinho distribuído pela Ásia (Crocodylus porosus), o crocodilo americano (C. acutus), e o crocodilo do Nilo (C. niloticus). Estes crocodilos têm as glândulas de sal na língua. Das tartarugas, só sete são marinhas e têm uma ampla distribuição por águas tropicais e subtropicais, mas só uma espécie, a tartaruga-de-couro, consegue tolerar águas mais frias, tendo sido avistada em zonas como o Canadá e Alasca. Estas tartarugas são carnívoras, com exceção da tartaruga-verde, que é herbívora; têm as glândulas de sal localizadas por cima dos olhos. Seis das sete espécies de tartarugas marinhas estão em perigo de extinção devido ao impacto humano: o desenvolvimento do turismo nas praias afasta as tartarugas que vão até à areia depositar os seus ovos; muitas tartarugas ficam presas nas redes de pesca ou em lixo; outras comem sacos de plástico que encontram no mar, confundindo-os com medusas, e muitas espécies são também caçadas pelo seu couro. Os únicos répteis marinhos que ocorrem na Madeira são cinco espécies de tartarugas: a tartaruga-boba (Caretta caretta), que é a mais comum, a tartaruga-verde (Chelonia midas), a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), a tartaruga-de-Kemp (Lepidochelys kempii), e a tartaruga-de-escama (Eretmochelys imbricata). Aves marinhas As aves são animais endotérmicos ou de sangue quente, já que conseguem manter a sua temperatura corporal constante, apesar da temperatura exterior, devido à sua elevada taxa metabólica. Por isso, conseguem habitar zonas muito mais frias, como o Ártico e o Antártico. Além disto, os seus corpos estão cobertos de penas, o que lhes dá um maior isolamento. As aves também põem ovos amnióticos como os répteis e têm glândulas de sal sobre os olhos que as ajudam a libertar o excesso de sal através do nariz. Das quase 8000 espécies de aves que existem, cerca de 250 estão adaptadas a ambientes marinhos; estas aves alimentam-se no oceano, mas retornam a terra, onde se reproduzem e formam colónias de ninhos que as protegem de predadores. Aves costeiras: Estas aves não são propriamente aves marinhas, no sentido em que não nadam muito e não têm as patas palmadas (especiais para nadar); têm patas compridas e um bico longo e fino e alimentam-se sobretudo na zona entremarés. A este grupo pertencem espécies como as garças, ostraceiros, etc., e estão incluídas em várias famílias da ordem Ciconiiformes. Gaivotas, gaivinas e afins: Este grupo de aves é muito diverso e inclui espécies como a gaivota, gaivina, torda-comum, papagaio-do-mar, etc. Estas espécies estão incluídas em várias famílias da ordem Charadriiformes. Estas aves têm patas palmadas e glândulas de óleo para impermeabilizar as suas penas. Vivem perto do mar, formam grandes colónias na terra e têm distribuição a nível mundial. Pelicanos e afins: Este grupo inclui espécies como o pelicano, alcatraz, fragata, etc. São aves aquáticas que, na sua maioria, têm um saco extensível pendurado na sua mandíbula inferior e alimentam-se mergulhando na água e capturando peixes, cefalópodes e crustáceos. Estas espécies pertencem à ordem Pelecaniformes. Aves pelágicas: A este grupo pertencem espécies como as cagarras, albatrozes, petréis, e outras, todas incluídas na ordem Procellariiformes. Estas aves têm as narinas em forma de tubo e vivem em mar aberto, podendo passar vários meses no oceano. Alimentam-se de peixes e cefalópodes e, como as outras aves marinhas, nidificam em terra formando grandes colónias. Pinguins: São o grupo de aves mais bem adaptado à vida marinha: não voam, as suas asas estão modificadas à maneira de barbatanas para nadar e possuem uma camada de gordura por baixo da pele para isolar o corpo do frio exterior. Todas as espécies de pinguins, com exceção de uma (o pinguim-das-galápagos), vivem em zonas frias no hemisfério sul e alimentam-se de peixes, lulas e krill. Os pinguins pertencem à ordem Sphenisciformes. Na Madeira, os diferentes habitats e ilhas que compõem o arquipélago constituem importantes zonas de nidificação para numerosas aves marinhas. Os penhascos, assim como a ocorrência de pequenas ilhas e ilhotas como as Desertas, os ilhotes de Porto Santo e as ilhas Selvagens, são especialmente importantes para a reprodução de numerosas espécies, e.g. a freira-do-bugio, ave endémica da Macaronésia (Madeira, Selvagens, Canárias, Açores, Cabo Verde), que se reproduz em Bugio, uma das ilhas das Desertas. A própria ilha da Madeira, pela sua localização no meio do oceano, constitui um sítio ideal para a nidificação de muitas aves pelágicas, e.g. a freira-da-madeira, ave endémica desta Ilha. Outras aves pelágicas (ordem Procellariiformes) que ocorrem nestas ilhas são: alma-negra, roque-de-castro e pintainho, que nidificam nas Selvagens e Desertas; a cagarra, que nidifica na Madeira, Selvagens e Desertas; e o calcamar, que nidifica nas Selvagens. Outras aves marinhas, da ordem Charadriiformes (gaivotas e afins), que ocorrem nas ilhas são: gaivota-de-patas-amarelas, borrelho-de-coleira-interrompida, garajau-rosado e garajau-comum. Mamíferos marinhos Os mamíferos são animais endotérmicos, capazes de manter a sua temperatura corporal, e dão à luz crias que são alimentadas com leite materno produzido em glândulas mamárias. Os mamíferos marinhos vivem a maior parte da sua vida na água e, por isso, possuem adaptações especiais, como barbatanas; têm uma camada de pelos ou uma camada grossa de gordura por baixo da pele que os ajuda a isolá-los das temperaturas exteriores e, por isso, podem viver em águas geladas como a dos polos. Os mamíferos marinhos estão agrupados em seis grupos pertencentes a três ordens: Carnivora (lontras, ursos polares, focas), Sirenia (peixe-boi), e Cetacea (baleia, golfinho, etc.). Lontra-marinha: Estes animais têm uma camada grossa de pelagem que os protege do frio, as patas traseiras têm os dedos unidos à maneira de barbatanas e alimentam-se de ouriços-do-mar, crustáceos, moluscos e peixes que apanham no fundo do mar e, depois, levam até à superfície para comer, enquanto flutuam sobre as suas costas. As lontras-marinhas estão distribuídas pelo Norte do oceano Pacífico. Ursos polares: Os ursos polares habitam na região ártica, onde são os maiores predadores, alimentando-se sobretudo de focas. Estão em perigo de extinção, porque são caçados pelo homem e porque o seu habitat (o gelo do Ártico) está a diminuir drasticamente em virtude do aquecimento global. Estes animais têm uma camada de gordura debaixo da pele e uma pelagem densa que prende o ar, mantendo o corpo quente, mesmo quando o animal está dentro de água. Pinípedes: Os pinípedes são um conjunto de três famílias de mamíferos marinhos: Otariidae, que inclui lobos-marinhos e leões-marinhos; Phocidae, onde estão as focas e os elefantes-marinhos; e Odobenidae, que inclui as morsas. Estes animais passam a maior parte do tempo na água; só vão a terra (ou gelo) para se reproduzirem, dar à luz e amamentar as crias. Possuem uma grossa camada de gordura debaixo da pele e pelo que os ajuda a isolar o frio exterior, e têm patas modificadas em forma de aletas; alimentam-se de peixes e invertebrados, sendo que só o leopardo-marinho se alimenta de outras focas, pinguins e aves marinhas. Sirenia: Os sirénios são animais estritamente herbívoros que passam a totalidade da sua vida na água. Não têm pelo, apresentam só duas patas (à frente), à maneira de aletas, e uma cauda achatada que usam como remo. Existem duas famílias na ordem Sirenia: Dugongidae, que inclui os dugongos, animais estritamente marinhos distribuídos pelo oceano Índico, e os Trichechidae, a família dos peixe-bois, animais que habitam zonas de água salgada ou água doce no Oeste de África e no centro e Sul da América. Cetáceos: De forma semelhante aos sirénios, os cetáceos não têm pelo, têm uma camada grossa de gordura debaixo da pele para isolamento, só possuem duas patas (embora os embriões destes animais apresentem as quatro patas, perdendo depois as patas traseiras) e têm a narina (espiráculo) na parte superior da cabeça. Os cetáceos estão divididos em dois grandes grupos: as baleias sem dentes ou baleias com barbas (subordem Mysticeti) têm, em vez de dentes, cerdas feitas de queratina com as quais filtram a água para se alimentarem de plâncton e pequenos invertebrados, e.g. krill. Este grupo inclui os maiores mamíferos que existem na Terra, como a baleia-azul (até 27 m de comprimento), a baleia-comum (25 m) e a baleia-franca (20 m). As baleias com dentes (subordem Odontoceti) incluem animais como os cachalotes, as orcas, os golfinhos e os narvais. À exceção do cachalote (20 m), as espécies deste grupo são muito mais pequenas que as baleias sem dentes e alimentam-se de peixe, lulas e outros cefalópodes, sendo que as orcas também consomem focas, tartarugas e tubarões. No oceano em redor da Madeira, foram registadas 19 espécies de mamíferos marinhos: uma espécie de foca e 18 espécies de cetáceos. A foca-monge-do-mediterrâneo é a única espécie de foca que se encontra no arquipélago, tendo uma população residente nas ilhas Desertas, embora alguns indivíduos sejam avistados na Madeira. As espécies de grandes baleias (baleias com barbas), e.g. a baleia comum, passam nesta região durante as grandes migrações que realizam anualmente. Espécies de baleias com dentes, e.g. cachalote ou golfinhos, usam o oceano da Madeira para se alimentarem, para se reproduzirem ou como área de residência. Algumas das espécies de baleias com dentes (subordem Odontoceti) frequentemente avistadas na Madeira são: o cachalote, a baleia-piloto-tropical, o roaz e o golfinho-comum. Fig. 4 – Fotografia de golfinhos na Madeira. Por P. Puppo.   Os habitats marinhos da Madeira e os organismos que neles habitam A Madeira é uma ilha de origem vulcânica; este tipo de ilhas aparece primeiro debaixo da superfície do mar como um monte que se forma no fundo marinho e depois cresce por atividade vulcânica até emergir (topografia marinha). Assim, quando uma ilha emerge (é visível por cima do nível do mar), está vazia e é colonizada por elementos da flora e fauna de regiões circundantes. No caso dos organismos marinhos da Madeira, estes têm diferentes origens e, na sua maioria, provêm da região atlântico-mediterrânica. Várias espécies do Atlântico colonizaram a Madeira e também o Mediterrâneo, daí que estas regiões tenham organismos semelhantes. Espécies do Norte do Atlântico e espécies provenientes de outras ilhas do Nordeste do Atlântico também colonizaram a Ilha. Afinidades das espécies marinhas da Madeira com outras de regiões mais longínquas também têm sido observadas, e.g. espécies provenientes de regiões tropicais e subtropicais do Atlântico, que atingiram o limite norte da sua distribuição na Madeira, juntamente com espécies do Norte de África, como Marrocos, encontrando-se também, na Madeira, espécies cosmopolitas, que habitam a maioria das regiões marítimas da Terra. A diversidade de espécies marinhas na Madeira também depende das diferentes zonas ou regiões oceânicas, como se verá em seguida. Domínio bentónico: O mar à volta da Madeira é geralmente frio devido às correntes que vêm do Nordeste, atingindo 22 ºC durante o verão. É frio demais para a construção de recifes de corais e, por isso, os corais que existem na Madeira vivem isoladamente (não formam recifes). A diversidade de peixes é grande, cerca de 550 espécies são conhecidas na Madeira, coincidindo a maior parte com as da zona do Mediterrâneo. Algumas espécies são de origem tropical e atingem na Madeira o limite norte da sua distribuição, como, e.g., o peixe-globo Diodon hystrix ou o peixe-trombeta Aulostomus strigosus. Algumas espécies de peixes, e.g. os sargos, são muito comuns nas costas da Madeira, nadando no substrato rochoso e alimentando-se das algas que crescem nele. Zona costeira: Na Madeira, a costa é caracterizada por penhascos abruptos. Estes penhascos, sobretudo os do lado Norte da Ilha, servem de habitat a muitas espécies de aves marinhas que nidificam nestas zonas. Por outro lado, as extensões de areia das outras ilhas, que compõem os arquipélagos da Madeira e Selvagens, também servem como lugares de nidificação para espécies de aves importantes, e.g. o calcamar, que ocorre no ilhéu de Fora e Selvagem Grande, ou o borrelho-de-coleira-interrompida, em Porto Santo. Nas Desertas, a foca-monge-do-mediterrâneo Monachus monachus, a única espécie de foca que vive em águas temperadas, tem nestas ilhas um importante refúgio, já que a espécie se encontra em perigo de extinção. Poças de maré: Estas poças formam-se quando uma depressão na rocha fica inundada com água do mar, durante a maré-baixa. Na Madeira, estas poças de maré constituem o habitat de uma série de espécies de invertebrados: e.g. o camarão Palaemon elegans, os caranguejos Percnon gibbesi e Eriphia verrucosa, estrelas-do-mar, ouriços-do-mar, anémonas, caracóis marinhos, como Monodonta edulis, espécie endémica da Macaronésia, entre outros. Entre as algas comuns nestas zonas, encontramos algas castanhas como Padina pavonica, uma alga em forma de funil, ou espécies do género Cystoseira, algas com lâminas ramificadas que criam uma aparência frondosa. Algumas destas poças de maré podem ser observadas em Porto Moniz e em Seixal. Zona entremarés: A zona entremarés é a zona que fica coberta de água quando a maré é mais alta e que fica a descoberto quando a maré é mais baixa. É uma zona onde a exposição ao ar, à humidade, à luz solar, à temperatura, à salinidade, etc. muda constantemente. Na Madeira, esta zona é frequentemente habitada por algas vermelhas dos géneros Lithophyllum e Corallina. Nesta zona, também são comuns as lapas, moluscos que permanecem fixos no substrato durante o dia e saem à noite para comer as algas que raspam com a sua rádula, sobretudo as espécies do género Patella, e.g. P. candei, que é endémica da Macaronésia. As lapas são muito apreciadas na gastronomia local. Outros organismos abundantes desta zona são os percebes ou cracas, caranguejos, caracóis marinhos (e.g. as litorinas Tectarius striatus (=Littorina striata), espécie endémica da Macaronésia), a barata-do-mar, a Ligia oceanica (espécie de crustáceo da ordem Isopoda), entre outros. Muitas espécies de aves também se encontram nestas zonas, e.g.: a rola-do-mar, a gaivota-de-patas-amarelas, o garajau, o guincho-comum, maçaricos, borrelhos, entre muitas outras. Domínio pelágico: O facto de a Madeira estar tão longe da costa continental faz com que o alto mar seja o sítio ideal para que muitas espécies se alimentem e reproduzam, e.g. cachalotes, golfinhos e também muitas aves pelágicas. Outras espécies, que também se encontram algumas vezes no alto mar da Madeira, são o tubarão branco e muitas outras espécies de tubarões e baleias, e.g. a baleia azul, etc. Uma espécie muito conhecida e apreciada na culinária madeirense é o peixe-espada-preto, Aphanopus carbo, espécie de peixe batipelágica, comum nas profundezas oceânicas, que habita a profundidades entre os 200 e os 1600 m. Conservação das espécies marinhas da Madeira A conservação na Madeira foi sempre levada a sério. Nenhuma árvore, e.g., na Madeira pode ser cortada sem autorização desde 1515. A 10 de novembro de 1982 foi fundado o Parque Natural da Madeira (PNM), pelo dec. regional n.º 14/82/M. O PNM abrange cerca de 67 % da superfície da ilha da Madeira e está subdividido em zonas com diferentes estatutos de proteção. Algumas destas zonas, onde estão protegidas espécies marinhas de interesse, encontram-se descritas em baixo. Reserva da Ponta de São Lourenço: A ponta de São Lourenço é uma pequena península de 9 km de comprimento e 2 km de largura, localizada a leste da ilha da Madeira, e tem um clima muito diferente do resto da Ilha, sendo muito mais seca. Esta região não só tem uma série de espécies de plantas e animais terrestres endémicas, como também é o local de nidificação de muitas espécies importantes de aves pelágicas, e.g. a alma-negra (Bulweria bulwerii), a cagarra (Calonectris borealis), o garajau-comum (Sterna hirundo), ou o roque-de-castro Hydrobates castro. Num dos ilhéus adjacentes a esta região, o ilhéu do Desembarcadouro, encontra-se o local de nidificação de uma das maiores colónias da gaivota-de-patas-amarelas (Larus cachinnans atlantis), espécie endémica da Macaronésia. Na ponta de São Lourenço, também se podem observar cachalotes, golfinhos, focas-monge-do-mediterrâneo e tartarugas marinhas. A ponta de São Lourenço pertence ao PNM desde que este foi criado e, a partir de 2001, esta península, juntamente com o mar adjacente até à batimétrica de 50 m, foram incluídos na Rede Natura 2000 da União Europeia como Zona Especial de Conservação. Os ilhéus do Desembarcadouro e do Farol são Áreas de Proteção Total, sendo que quaisquer atividades humanas, fora da investigação científica, assim como ações de conservação e de educação ambiental, estão proibidas. A península da ponta de São Lourenço é Área de Proteção Parcial, onde qualquer atividade humana deve ser primeiro autorizada, e as zonas de praias e miradouros são Áreas de Proteção Complementar, em que as atividades humanas são permitidas sempre que não ponham em risco o equilíbrio ambiental. A região da ponta de São Lourenço, juntamente com os ilhéus adjacentes, está classificada como Important Bird Area (IBA) pela Birdlife International, em virtude de ser o local de nidificação de várias espécies de aves pelágicas protegidas. Reserva Natural Parcial do Garajau: Esta reserva foi estabelecida em 1986 e compreende uma área aproximada de 3,76 km2, contando com uma extensão de 6 km ao largo da costa sul da Madeira entre a ponta do Lazareto e a ponta da Oliveira, e chegando até os 50 m de profundidade. Esta área é caracterizada pelas suas águas transparentes e a sua rica biodiversidade. Nesta Reserva, está proibida a pesca e recoleção de organismos vivos, assim como chegar à costa num barco a motor; o mergulho é permitido, mas é necessária uma autorização do PNM. Algumas das espécies mais frequentes da zona entremarés da Reserva são: litorinas, líquens, cracas, lapas, caranguejos, algas, esponjas, anémonas, estrelas-do-mar, etc. Nos bentos, o ouriço-de-espinhos-longos, Diadema antillarum, é bastante frequente. No domínio pelágico, ocorrem numerosas espécies de peixes: a garoupa ou mero Epinephelus marginatus, que chega a medir 150 cm, a raia ou manta-diabo Mobula mobular, moreias como Muraena helena, e enguias como Heteroconger longissimus, e outras espécies de peixes, e.g. o sargo, a salema, o bodião, o boga, a dobrada, a tainha, o peixe-verde, a castanheta, etc. Também é possível observar nesta reserva tartarugas-marinhas, golfinhos e focas-monge-do-mediterrâneo. O Miradouro do Pináculo, na parte elevada da reserva, também está incluído na Rede Natura 2000, pois é importante para aves como a cagarra e o garajau. Fig. 5 – Fotografia da ponta de São Lourenço. Por P. Puppo.     Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio: Esta Reserva foi criada em 1997 e estende-se desde a ponta de São Jorge até à ponta de Clérigo, no Norte da Madeira, no concelho de Santana, contando com uma área aproximada de 1700 ha e incluindo a linha batimétrica dos 100 m, o ilhéu da Rocha das Vinhas ou ilhéu de São Jorge, e o ilhéu da Viúva ou ilhéu da Rocha do Navio. Esta Reserva também faz parte da Rede Natura 2000, sobretudo porque constitui uma representação da flora típica do litoral madeirense. Esta Reserva também é um local importante de nidificação para algumas espécies de aves marinhas, e.g. a cagarra, a alma-negra, o garajau-comum, o roque-de-castro e a gaivota-de-patas-amarelas. A diversidade da ictiofauna (peixes) também é considerável, contando, e.g., com espécies como o mero, sargo, peixe-cão, bodião, badejo, peixe-verde, a castanheta, a moreia, entre outros. Nesta Reserva, também se encontram lapas, caramujos, golfinhos, tartarugas-marinhas e focas-monge-do-mediterrâneo. São permitidos, além do mais, o mergulho amador e a pesca, mas não o uso de redes ou de barcos motorizados. Rede de Áreas Marinhas protegidas do Porto Santo: Esta Rede foi criada em 2008 e inclui a ilha de Porto Santo e os seis ilhéus circundantes: ilhéu das Cenouras; ilhéu de Baixo ou da Cal; ilhéu de Cima, dos Dragoeiros ou do Farol; ilhéu de Fora ou Rocha do Nordeste; ilhéu da Fonte da Areia; e o mar circundante aos ilhéus de Cal e de Cima, incluindo a zona onde o barco O Madeirense se afundou, até à linha batimétrica dos 50 m. Os ilhéus estão também incluídos na Rede Natura 2000 e três deles (ilhéu de Cal, de Cima e de Ferro) têm sido designados como IBA, por serem locais de nidificação de aves importantes, e.g. a cagarra, o pintainho, o roque-de-castro e a alma-negra, e outras espécies como a gaivota-de-patas-amarelas e o garajau. O Porto Santo e os ilhéus também são importantes pela quantidade de fósseis que se encontram neles. Os ilhéus de Fora, de Ferro, das Cenouras e da Fonte da Areia são considerados Áreas de Proteção Total, enquanto os ilhéus de Baixo e de Cima, assim como a parte marinha da Rede, são considerados Áreas de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Desertas: As ilhas Desertas estão localizadas a cerca de 20 km da ponta de São Lourenço e têm um clima muito semelhante ao da região da Madeira. Estas ilhas estão desabitadas, possuindo uma estação de vigilância localizada na Deserta Grande, onde vivem guardas do Corpo de Vigilantes da Natureza. As Desertas estão protegidas por lei, desde 1990, como Área de Proteção Especial, sobretudo para proteger a colónia de foca-monge-do-mediterrâneo que nelas se encontra. Em 1992, foram reconhecidas pelo Conselho de Europa como Reserva Biogenética e, em 1995, como Reserva Natural. Estas ilhas integram a Rede Natura 2000 como Zona de Proteção Especial e Zona Especial de Conservação, e também são consideradas como uma IBA. Esta Reserva tem uma área total de cerca de 82,5 km2 e é formada por: Deserta Grande, Bugio, ilhéu Chão, e os ilhéus adjacentes, incluindo o mar até à linha batimétrica dos 100 m. As Desertas são importantes, porque são um dos últimos refúgios no Atlântico, juntamente com a Mauritânia, da foca-monge-do-mediterrâneo. Estas ilhas também são relevantes por serem locais de nidificação de espécies importantes de aves, e.g. a freira-do-bugio, que só nidifica em Bugio, a alma-negra, que forma na Deserta Grande a maior colónia do Atlântico, a gaivota-de-patas-amarelas, que nidifica em Chão, e outras espécies, e.g. a cagarra e o roque-de-castro. Nas Desertas, também se encontram inúmeras espécies de peixes, e.g. tainha, boga, castanhetas, sargo, bodião, garoupa, peixe-cão, cavaco, peixe-verde, e várias espécies de tartarugas-marinhas e cetáceos. As ilhas e os ilhéus, juntamente com o mar adjacente a elas até aos 100 m de profundidade, estão classificados como Áreas de Proteção Total. A zona marinha circundante é considerada como Área de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Selvagens: As ilhas Selvagens são um conjunto de ilhas inabitadas, sobretudo pela carência de água doce, e, embora estejam localizadas a cerca de 250 km da Madeira, pertencem politicamente a esta região autónoma. As Selvagens são formadas por: Selvagem Grande, Selvagem Pequena, ilhéu de Fora, e outros ilhéus adjacentes. A Reserva inclui estas ilhas e ilhéus e todo o mar circundante até uma profundidade de 200 m, tendo uma área total de cerca de 94,5 km2. Estas ilhas estão legalmente protegidas desde 1971, ano em que foram compradas pelo Governo português a um particular, constituindo-se na primeira reserva de Portugal. Esta zona foi protegida, sobretudo, pela diminuição na população de cagarras, após terem sido durante anos exploradas pela sua penugem e a sua carne ter sido salgada e vendida como petisco nos mercados madeirenses. Esta Reserva começou a ter uma vigilância permanente desde 1976 e, a partir de 1991, passou a ser da responsabilidade do PNM. Em 1992, recebeu o Diploma do Conselho Europeu para Áreas Protegidas e, em 2001, integrou a Rede Natura 2000 como Zona Especial de Conservação e Zona de Proteção Especial, sendo também considerada uma IBA. Esta Reserva foi criada, sobretudo, para a proteção das aves marinhas que nidificam nestas ilhas: a cagarra, que tem a população mais densa do mundo nesta área, o calcamar, a ave mais abundante nas ilhas, o pintainho, o roque-de-crasto e a alma-negra. No total, estima-se que, nas Selvagens, haja perto de 39.000 pares reprodutores de aves marinhas, o que, no seu conjunto, é um número superior ao que ocorre na Madeira, Porto Santo e Desertas em conjunto (dados publicados por Peter Sziemer em 2010). O mar adjacente às Selvagens é de águas transparentes e possui uma variada biodiversidade: gastrópodes como os caramujos, lapas, cracas e litorinas são abundantes nas zonas rochosas, assim como as esponjas, anémonas, ouriços-de-espinhos-compridos e estrelas-do-mar. A ictiofauna é também muito variada: sargo, tainha, castanheta, boga, bodião, garoupa, peixe-verde, peixe-cão, tartarugas-marinhas, e espécies de cetáceos, entre outras, podem ser observados nestas águas. Toda a Reserva é Área de Proteção Total, sendo as visitas permitidas, com prévia autorização do PNM.   Pamela Puppo (atualizado a 24.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

aquário municipal do funchal

  O Aquário Municipal do Funchal encontra-se localizado no rés do chão do Palácio de São Pedro, uma das mais significativas obras da arquitetura civil portuguesa, de meados do séc. XVIII, mandado construir pela família Carvalhal e adquirido pela Câmara Municipal do Funchal a 19 de setembro de 1929, quando se deu início às obras de reformulação do Palácio com o propósito de aí se instalar um museu. Inicialmente designado Museu Regional da Madeira, este foi oficialmente inaugurado a 5 de outubro de 1933, e mais tarde deu origem ao Museu de História Natural do Funchal. A primeira vez que se falou na criação de um aquário público no arquipélago da Madeira foi em 1937, através de uma deliberação do município do Funchal, ficando esta sem efeito até 1951. Foi devido em grande parte a Charles L. Rolland, industrial norte-americano de bordados na Madeira e grande admirador da fauna ictiológica da ilha, que em 1951 a sua construção teve lugar. Este filantropo ofereceu à Câmara Municipal do Funchal 30.000 escudos (cerca de 150€) e o material necessário para que as obras tivessem o seu início. Sob a orientação, técnica e científica, de Günther Maul, conservador do Museu, inaugurou-se a primeira fase do Aquário, em dezembro de 1953, com três grandes tanques, sendo parte do material necessário para a construção do Aquário obtida graças à generosidade de vários entusiastas, de entre os quais se destacou o importador E. Brendle. Na segunda fase, concluída em 1957, o Aquário passou a ter 15 tanques de exposição de diversos tamanhos, nos quais passaram a estar representados alguns dos mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira, tais como meros, moreias, sargos, castanhetas, cabozes, caranguejos, lagostas, camarões, polvos, búzios, estrelas, ouriços do mar, etc. A captura de organismos para serem colocados nos tanques de exposição deveu-se à generosidade e dedicação de um grupo de pescadores amadores, Américo Durão, A. Correia da Silva, David Teixeira e João de Freitas, entre outros. A renovação regular dos exemplares vivos em exposição nos tanques é assegurada essencialmente através de dois métodos de captura, dependendo do tipo de organismo: alguns invertebrados marinhos são colhidos, à mão, nas poças de maré (zona do intertidal) ou no subtidal, através de mergulho com escafandro autónomo ou de mergulho em apneia; quanto à maioria das espécies piscícolas, bem como de outros invertebrados, a captura é feita recorrendo a diferentes tipos de artes de pesca, sendo muitas vezes necessária a utilização de uma embarcação para o lançamento e a recolha dos respetivos aparelhos de pesca. Durante muitos anos o Aquário dispôs de uma pequena embarcação de apoio, a Ianthina, para a captura de espécimes; através desta eram utilizados essencialmente dois métodos tradicionais de pesca: pesca à linha e covos. Posteriormente, deixou de ser utilizada qualquer embarcação de apoio, o que condicionou muito não só a própria renovação dos exemplares do Aquário, como a diversidade de espécies. O sistema de circulação de água do mar existente funciona em circuito fechado, tendo um volume total de cerca de 200.000 l, que estão distribuídos pelos tanques de reserva (cerca de 150.000 l) e pelos tanques de exibição (cerca de 50.000 l). A qualidade da água do mar é mantida não só através de sistemas de filtração de natureza biológica e mecânica, como também de um sistema de arejamento, pelo qual é introduzido ar em cada um dos tanques de exposição. A água do circuito é renovada uma vez por ano, sendo colhida diretamente no mar e transportada em autotanque para o Aquário. Toda a iluminação nos tanques é de natureza artificial; são utilizadas as lâmpadas mais adequadas para que as cores dos organismos expostos se aproximem o mais possível das que podem ser observadas quando estes se encontram no seu meio natural. A alimentação dos organismos é baseada essencialmente em cavalas, chicharros e espada preto, adquirido na praça e administrado três vezes por semana. Aquando da existência da embarcação Ianthina, para além das espécies anteriormente referidas, era adicionado à dieta dos espécimes do Aquário um crustáceo, conhecido vulgarmente como camarão comestível (Plesionika narval), que era capturado através da utilização de covos apropriados, sendo depois armazenado em arcas congeladoras e administrado de acordo com as necessidades e as características alimentares das espécies existentes. A manutenção diária do Aquário Municipal do Funchal é realizada por uma equipa técnica constituída por três funcionários com formação adequada às exigências de uma estrutura desta natureza: um técnico superior (biólogo) e dois assistentes técnicos. O Aquário Municipal do Funchal é uma das principais atrações da visita ao Museu de História Natural do Funchal, recebendo em média cerca de 11.000 visitantes por ano, 3500 dos quais são alunos provenientes dos vários níveis de escolaridade do ensino básico e secundário da Região Autónoma da Madeira.   Ricardo Araújo (atualizado a  23.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

berredo, antónio pereira de

O governador António Pereira de Berredo ficou cativo em Alcácer Quibir e participou depois na Invencível Armada, onde foi cabo de 10 galeras. No entanto, embora fosse  um militar experiente, teve grandes problemas com o pessoal do presídio do Funchal, sobretudo devido às dificuldades de pagamento, a que se acrescentam vários pequenos problemas com corsários ingleses e franceses. Os problemas do presídio de S. Lourenço ficaram patentes na visitação do Santo Ofício, a primeira que ocorreu na Madeira e que o governador acompanhou de perto, mas de que não resultaram especiais processos. Data da sua vigência como governador a instalação da fundição em S. Lourenço. Palavras-chave: corso; governo filipino; Invencível Armada; organização militar; Santo Ofício. O reinado de Filipe II (1527-1598) foi marcado, na sua última fase, pelo desastre da Invencível Armada, funesto acontecimento que deixou profundas marcas na Península Ibérica e comprometeu ainda mais a manutenção e a defesa do Império português, então em franco declínio. O Rei, ainda príncipe, tinha-se casado em 1553 em Inglaterra, mas, com o falecimento da Rainha Maria Túdor (1516-1558), não foi possível juntar as duas Coroas. A situação religiosa da Inglaterra era uma profunda afronta ao catolicismo hermético da Península Ibérica, pelo que Filipe II queria, a todo o custo, representar a voz e o poder capazes de abater o foco protestante que ali se instalara e pretendia difundir-se. Essas razões, bem como a atuação dos corsários ingleses, principalmente de Francis Drake (1540-1596) e de John Hawkins (1532-1595), que constantemente atacavam a navegação portuguesa e espanhola no Atlântico e ambas as faixas costeiras do mesmo oceano, levavam a que a Inglaterra fosse uma das preocupações da Coroa filipina. Aumentava o poderio naval inglês e o refúgio de D. António, prior do Crato (1531-1595) (Crise sucessória de 1580), em Inglaterra, a partir de 1585, que ainda aumentavam mais os receios da Coroa filipina. Por outro lado, o suplício infligido à Rainha católica Maria Stuart da Escócia (1542-1587), que a Rainha Isabel (1558-1603) mandou executar a 8 de fevereiro de 1587, deu ao Monarca ibérico o pretexto final para uma intervenção alargada contra o poderio britânico. Neste quadro, o Rei organizou a mais poderosa Armada do séc. XVI, crendo-a invencível, mas à qual o destino, e não só, reservou um estrondoso fracasso. Em maio de 1588, concentrou-se em Lisboa uma Armada que possuía 130 naus, cujo comando foi entregue ao duque de Medina-Sidónia (1550-1615), que não tinha grande experiência marítima, encontrando-se nos restantes postos de comando nobres sem quaisquer conhecimentos de guerra naval. A Armada largou a 27 de maio de 1588, com nevoeiro e mau tempo, para o canal da Mancha, onde defrontou uma Armada inglesa mais ligeira e com navios muito mais manobráveis. Na noite de 6 para 7 de agosto, após uma semana de desgaste, os ingleses, aproveitando ventos fortes e desfavoráveis para os grandes galeões ibéricos, lançaram uma série de pequenas embarcações carregadas de combustível inflamado. Esta ação obrigou os principais navios da Armada ibérica a dispersar e provocou incêndios noutros, fracionando todo o conjunto. Aproveitando a situação, os pequenos e rápidos navios ingleses infligiram uma memorável derrota à dita Invencível Armada. O cronista Pero Roiz Soares, em Lisboa, refere que “desta maneira se perdeu tão grande máquina, sem se salvar quase nada, nem dela tornar galeão, nau, nem navio, nem coisa que prestasse” (SERRÃO, 1979, 36-37). A Madeira concorreu com pessoal para esta aventura, embora não haja na documentação madeirense coeva dados sobre a mesma participação. Em Ensaios Históricos da Minha Terra: Ilha da Madeira, escreveu Artur Alberto Sarmento (1878-1953) que D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), descendente de Zarco (Melo, D. Francisco Manuel de), nas suas Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa (1660), refere a participação do galeão S. Filipe, com 28 peças de artilharia, nesta Armada, sob o comandado de Manuel Dias de Andrade (1580-1638), que foi depois mestre-de-campo, aditando que a guarnição era composta por grande número de madeirenses. Referia ainda este autor que muitos nobres da Ilha embarcaram na Armada, como António Gonçalves da Câmara, filho de João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620) (Eça, João Fogaça de), que fora governador da Madeira, mas que não tinha os seus nomes tão presentes como desejava (SARMENTO, 1946, 177). No entanto, a ação do S. Filipe e de Manuel Dias de Andrade refere-se ao desastre da Armada portuguesa de D. Manuel de Meneses (c. 1540-1628), relatado na “Epanáfora Trágica” de 1627 (MELO, 1660, 153-272). Não conhecemos diretamente as implicações deste desastre na Madeira. No entanto, uma informação dos livros do cabido da Sé atesta o facto de se ter passado por um mau momento na Ilha. Assim, em 1589, ordenou o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) a transferência “desta cidade para a serra, de toda a prata e demais ornamentos da Sé, por esperar a chegada dos ingleses que tinham ido a Lisboa. E foi a prata para Nossa Senhora do Monte e por não parecer estar segura, a tornaram a trazer aqui e foi para o Estreito de Câmara de Lobos com os ditos ornamentos. E depois para a vila da Calheta em seis arcas encoiradas e dali se tornou a trazer. E se despendeu em tudo com as bestas, carretos, fretes e outras despesas com a ida e a vinda e conserto das arcas ao todo” 3$495 reis (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fl. 178v.). Desta Armada de triste memória, foi para a Madeira o novo Gov. António Pereira de Berredo (c. 1550-c. 1614), que tinha ficado cativo em Alcácer Quibir e participara depois na “armada da perdição, onde fora cabo de dez galeras” (NORONHA, 1996, 49). Este experiente militar tinha prestado serviço como fronteiro em Tânger, onde estava em 1573, quando ali perdeu a vida o Cap. Rui de Sousa de Carvalho e ele uma vista, sendo depois comendador de Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cristo. Era filho de António Lopes Homem e de Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura próxima do secretário Miguel de Moura (1538-1600), que viria depois a integrar o Conselho de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao cardeal e arquiduque Alberto de Áustria (1559-1621) quando este saiu para se tornar governador dos Países Baixos. Não descortinámos, no entanto, os ascendentes familiares aos quais foi buscar o apelido Berredo. António Pereira de Berredo assumiu Governo da ilha da Madeira por patente de 30 de dezembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto do seguinte ano de 1591. A carta vem transcrita com a data de posse na Câmara Municipal do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Senhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pereira”, informando: “Eu mando ora Antonio Pereira do meu concelho para ora me servir de geral dessa Ilha e superintendente das coisas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.), sendo o registo da provisão do capitão geral na Provedoria da Fazenda da mesma data. As coisas não lhe correriam muito bem no Funchal, como largamente se haveria de queixar para Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos os seus haveres tinham sido tomados por corsários, daí que os 2000 cruzados com que fora dotado para o Governo não lhe tenham chegado para as despesas. Depois, chegado à fortaleza, descobriu que os soldados do presídio não eram pagos há mais de um ano, acabando por fazer face às suas necessidades com roubos à população, pelo que pouco lhe obedeciam. Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frouxidão do desembargador António de Melo, que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que desempenhava igualmente as funções de provedor da Fazenda, não ajudava. O governador, que já então não gozava de muito boa saúde, o que também se passava com sua mulher, Mariana de Portugal, queixava-se amargamente para Lisboa da situação do presídio, dos capitães castelhanos e portugueses. Refere numa carta que, em todo o tempo que fora militar, “não houve algum que me perdesse o respeito e que hoje, sem fundamento, me têm assim maltratado” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão desconsiderado, que temia francamente o futuro. Cita então um fidalgo recentemente chegado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e depois escrivão de guerra, com quem já teria tido problemas em Tânger, e o próprio capitão castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o governador que tinha sofrido “alguns desatinados termos e muitas desordens, a que se com brevidade não acudira, seriam causa de muitos males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa alguma e confesso a Vossa Majestade, que me receio dele pela grande natureza que tem de fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). Por outro lado, dava as melhores referências do tenente do presídio, Luís de Benevides, embora com a situação vigente dos pagamentos pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, o governador propõe nesta carta “que destas duas companhias se fizesse uma só, e sendo assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria menos gasto, e os donos das casas que ora servem de quartel receberiam nisso grande esmola e mercê” (Ibid.). Nesta carta, o governador conta também o sucedido com a Armada que se deslocava para a Índia e que incluía o célebre galeão S. Pantaleão. Os navios tinham passado na Madeira um pouco dispersos, o que levou a que uma urca fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Índia, que os corsários colocaram em terra, na ilha do Porto Santo. Os corsários tinham tentado negociar com o governador da Madeira a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal como as mercadorias e a restante gente que seguia no navio, ameaçando levar tudo para o Norte de África (Berberia, como se cita) se não acedessem aos seus pedidos. O governador recusou-se a negociar, com base na gente do Porto Santo, que se encontrava em armas, pronta a defender a ilha, e por ter sido informado de que essas naus inglesas deveriam fazer parte dos navios de Francis Drake e do conde de Cumberland (1558-1605), que em 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que António Pereira conhecia da Invencível Armada. A carta termina por, mais uma vez, solicitar a “mercê de licença para me poder ir a minha casa” (Ibid.), no que não foi atendido. A 5 de setembro do mesmo ano de 1592, o governador voltou a escrever para Lisboa, dando conta da maneira como se resolvera o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo e das aquisições de pólvora e de mosquetes. A pólvora destinava-se aos exercícios de barreira efetuados todos os domingos e controlados pelo governador, sargento-mor e capitães entertenidos, ou seja, sem comando de companhia (Comando militar). Nesta carta, descreve alguns incidentes ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera um exercício de fogo de barreira no dia 28 de agosto. O governador tinha ido acompanhado de Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para assuntos militares que, na Madalena, tinha tentado prender os vários negligentes do serviço de vigias e alardos. Os populares tinham então apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus criados, o qual “feriram muito mal, de cima dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá ainda parte do movimento de navios no mar da Madeira, com a passagem de vários navios do porto de Marselha, que tinham ido comerciar açúcar em Cabo de Gué (Marrocos) e que haviam informado da presença de cerca de 12 navios ingleses também nesse comércio. O governador tinha apresado, a 23 de agosto, um desses navios de Marselha, uma setia, barco comprido, afilado de boca aberta, de velas e remos, extremamente rápido. Para que não pudesse sair do porto, apreendera-lhe as três velas grandes, pensando que assim não se poderia fazer ao mar. Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o governador e as duas companhias do presídio. Assim, D. António Pereira, como começa a ser referido, teve de reformular a Junta Militar criada pelo conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598) (Lançarote, conde de), também chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio e só reunindo com dois capitães de cada vez. Este órgão era formado pelos quatro capitães das ordenanças, para além do comandante da guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís de Benevides, dada a saída em finais de 1588, ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aranda. Este órgão não tinha sido muito desenvolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da), se é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, parece que teria tido razões para isso, pois com o novo governador estes elementos acabaram por se envolver em intrigas várias, que incluíram o próprio D. António Pereira e que levaram a uma alçada do licenciado Pero de Alfaro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 de agosto de 1594, presidida por Miguel de La Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e arbitrariedades dos capitães castelhanos com os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a segunda deve ter-se deslocado à Ilha também motivada pelo escândalo causado pela visitação de 1592, que envolvera alguns dos militares da guarnição castelhana, embora por razões que posteriormente seriam consideradas ridículas. O Funchal foi visitado pela primeira vez por um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, visitação que ocorreu em 1591. A visitação envolveu um prolongado processo contra os cristãos-novos e acabou por envolver também um quantitativo populacional importante, principalmente do Funchal. Assim, acabaram por se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos militares do presídio castelhano estacionado na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamente alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, da companhia do Cap. Luís de Benevides, e o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra companhia. Nesta visitação, foram ainda envolvidos os soldados Alonso de Vila Real, natural de Castro Monte; Belchior Simões; Francisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia, no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodrigues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da companhia de Luís de Benevides. Da companhia do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Francisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque de Penafiel, também de Valhadolid. No entanto, tratou-se tudo de pequenos delitos incluídos nas preposições, geralmente denunciados por camaradas da mesma companhia, que alguns – como Belchior Simões – nem confessaram, acabando todos por ver os seus processos despachados no Funchal. Passando em revista estes processos, ressalta, essencialmente, o isolamento então vivido por esses soldados do presídio castelhano e até uma certa má vontade contra os mesmos por parte da população civil. O principal processo envolve o soldado Pedro Sans, já citado, e uma série de companheiros. Em linhas gerais, estando alguns soldados na igreja do Colégio, no Funchal, a assistir a uma prédica do P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visitação, estes murmuraram ao ouvir o pregador referir que os soldados eram maus porque haviam feito mal a Jesus. Teriam então murmurado os soldados que maus eram os soldados romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bastou para de imediato serem presos no aljube da Sé. No complicado processo que se seguiu, foram chamadas, ou apareceram a depor, as mais diversas pessoas, algumas das quais, para além de se identificarem, quase não disseram mais nada. Depuseram alguns dos assistentes à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel Fernandes, cristão velho, o ourives de prata Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate Simão Gonçalves, entre outros. O processo acabou por ser despachado no Funchal e por não levar a especiais penas. Outro processo, praticamente só envolvendo soldados do presídio, roda à volta de uma partida de dados, jogada na casa da guarda da fortaleza Velha (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), em meados de 1591. O soldado Francisco Velasco, cansado de não ter sorte aos dados, disse num determinado momento, na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso bastou para ser acusado do crime de proposição herética, ou seja, renegação da fé, pelos seus camaradas de jogo e para dar origem a mais uma série de processos. A notícia da partida do inquisidor foi dada pelo governador em carta de 29 de abril de 1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem “bem negociada, da qual o capitão ficou aqui em terra, e é homem conhecido, segundo me dizem, e o preço foi muito moderado porque foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 106). Com os pedidos do governador e os casos da Inquisição, que não devem ter deixado de pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou com as alçadas que se deslocaram nesses anos à Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem os pagamentos das companhias do presídio do Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de Alencastre, na menoridade do filho, Fernando Martins Mascarenhas, mas que não seria o então bispo do Algarve (1548-1628) – que não era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de câmbio foram passadas por João de Valdavesso Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador do exército. No ano seguinte, 1593, há mandados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), 4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de Aranda fazer diversos pagamentos, nomeadamente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e a António Bocarro. Nestes anos, há igualmente registo de pagamentos pontuais a diversos soldados que devem ter acabado o seu serviço na Madeira. Encontrámos elementos sobre Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, porque culpado duma morte, não teve direito a soldo algum, e Fernando de Torres. Um dos pagamentos mais interessantes foi o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, recebido por Manuel Bocarro a 8 de janeiro de 1592 e sancionado por mandado do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitativo é francamente elevado para ser um simples soldo, devendo tratar-se de uma obra de empreitada e envolver mesmo aquisições importantes de material. A família Bocarro foi uma das principais famílias de fundidores portugueses, tendo tido o seu expoente máximo em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625-1652), na fundição de Macau. Descendente de várias gerações de fundidores, o seu avô materno, o fundidor Francisco Dias, era irmão de João Dias e tio de Baltazar Gomes e António Gomes Feo, todos fundidores de artilharia nos inícios e meados do séc. XVI. Este António Bocarro, a ser membro da mesma família, em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal em finais do 1591 para preparar a fundição de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns anos depois, embora, tanto quanto temos conhecimento, esta não tenha chegado a fundir bocas de fogo. O Gov. D. António Lopes Pereira de Berredo, como também depois aparece referido, entregou o Governo a 20 de abril de 1595, data em que tomou posse o novo Gov. Diogo de Azambuja de Melo (c. 1530-1599) (Melo, Diogo de Azambuja de). António Pereira, que, em 1592, no Funchal, se queixava de falta de saúde e desejava voltar para a sua casa no continente, ainda assumiria o lugar de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substituindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou até setembro de 1605, quando foi substituído por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em 1613, foi também enviado a Marrocos como inspetor das fortificações e com instruções para reformar parte das mesmas, intento localmente muito pouco aceite. Teria ainda sido nomeado para a Índia com o governo da parte do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras mercês, mas nada aceitou, dada a avançada idade. Deve ter falecido em 1614.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

azevedo, joão da costa e ataíde

João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704) tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e mais tarde do terço da Armada, tendo tido patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira em março de 1701. Uma das principias preocupações desta época era a das salvas, face a alguma anarquia que havia nas inúmeras armas estrangeiras que entravam no porto do Funchal, que foi um dos assuntos especificamente regulado. Este governador teria tido problemas com o bispo D. José de Sousa Castelo Branco, que o cronista Henrique Henriques de Noronha depois tentou distorcer. Por razões que desconhecemos, veio a ocorrer uma sedição em S. Lourenço, onde teriam tentado assassinar o governador e o juiz de fora da câmara, estando envolvidos um dos capitães de artilharia e o provedor da Alfândega. Foi enviado um desembargador para investigar a situação, mas o governador faleceu antes do desembargador chegar. Palavras-chave: Alçadas; Armadas; Devassas; Relações institucionais; Salvas; Sedição. João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho (c. 1650-1704), de seu nome completo, era filho de Gonçalo da Costa Coutinho – que servira na armada da Costa e tinha participado na fatídica armada de D. Manuel de Meneses (Meneses, João de, e Pereira, Manuel), de 1637 – e de D. Isabel de Ataíde e Azevedo, filha única e herdeira de D. João de Ataíde e Azevedo, capitão de cavalos e comissário da cavalaria da província do Alentejo. O novo governador tinha sido capitão de Infantaria dos familiares de Lisboa e depois do terço da Armada. Teve patente de governador e capitão-general da ilha da Madeira a 1 de março de 1701, tomando menagem a 6 de abril e posse, no Funchal, a 12 de junho desse mesmo ano, substituindo o mestre de campo dos auxiliares de Lisboa, D. António Jorge de Melo (c. 1645-1703) (Melo, António Jorge de). Nesta época, um dos principias assuntos de preocupação dos governadores – e que foi um dos especificamente regulados – era o das salvas, face ao aumento quase exponencial de armadas de outras nacionalidades no porto do Funchal. Nesse quadro, quando o novo governador veio para a Ilha, trouxe, com data de 25 de janeiro de 1700, o regulamento de salvas que tinha sido enviado ao seu antecessor e que, entretanto, não teria sido registado. O regimento começa por referir a obrigatoriedade de salvas, mesmo em relação às embarcações inglesas e francesas, “que por vezes não usam” esse tipo de cumprimento. Responder-se-ia com igual número de salvas aos navios de capitanias reais, com menos uma aos navios almirantes e com menos duas aos restantes. Aos navios suecos e dinamarqueses, que não salvavam com números certos, “pois tanto salvam com um tiro, como com quatro ou seis” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.), responder-se-ia sempre, mas com menos um tiro, caso salvassem com vários. As boas relações entre os governadores e os bispos do Funchal eram essenciais para o funcionamento geral das instituições insulares, como aliás referira um alto funcionário da corte de Lisboa, que pensamos ter sido António de Freitas Branco (1639-c. 1700), madeirense e desembargador da Casa da Suplicação, quando o anterior governador, António José de Melo, solicitara informações “de como se devia portar o governador [...], para fazer bem a sua obrigação, e dos interesses que tinha”. Especificava o informador que o novo governador deveria, logo à chegada, visitar o bispo, com quem, em princípio, deveria manter as melhores relações possíveis, pois nisso “consiste todo o sossego da terra e a sua quietação” (BNP, Coleção Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). Deveria mesmo haver uma específica atenção a tudo o que se relacionasse com o prelado diocesano, não permitindo que na sua presença se murmurasse a seu respeito e, no caso de isso acontecer, deveria repreender-se asperamente quem o tivesse feito. Acontece, porém, que terá havido alguma desarmonia entre estas duas autoridades e, tendo o bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740) (Castelo Branco, José de Sousa), solicitado que o governador colocasse homens da milícia das companhias de ordenanças do Funchal às suas ordens, João da Costa de Ataíde recusou-se a aceder ao pedido e, depois de enviar o assunto ao Rei D. Pedro II (1648-1706), teve o seu apoio expresso em alvará régio, emitido a 15 de janeiro de 1703. As posições devem ter-se extremado e para isso deverá ter contribuído o arcediago da Sé do Funchal, António Correia de Bettencourt (1664-1725), sucessivamente promovido por este prelado e irmão do cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de). Assim se explica a defesa do bispo e, acrescente-se, do irmão, que levou Noronha a escrever que, em 1703, D. José de Castelo Branco, “em razão do ofício de bom Pastor, teve algumas dissensões com o governador João da Costa de Ataíde e com o provedor da fazenda real, o desembargador Manuel Mexia Galvão, de cujos procedimentos se queixou a el-rei D. Pedro II”. O Rei enviou então um sindicante ao Funchal, “para que chamando o dito Provedor à Câmara, lhe estranhara corretivamente os seus procedimentos, fazendo-o assim saber ao dito Prelado. Tudo consta da provisão passada a sete de janeiro de 1704” (NORONHA, 1996, 127-128). Ora, o que consta da provisão datada de 7 de janeiro de 1704 não é, contudo, isso – e envolve inclusive algo mais grave: os Noronha passam a estar explicitamente envolvidos nos quesitos a serem investigados pelo desembargador. Em finais de 1703 terá havido uma sedição “no salão da Índia da fortaleza de S. Lourenço”, salão de que não temos qualquer outra informação, “e uma conspiração que intentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a vida” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 245v.) ao governador e ao juiz de fora da câmara, então António de Macedo Velho. No atentado ao governador teria estado envolvido o capitão de artilharia António Nunes, que imediatamente a seguir à sedição se ausentou do Funchal (Artilharia), tal como o provedor da Alfândega. Por causa desta sedição, deslocou-se ao Funchal, com poderes excecionais, o desembargador Diogo Salter de Macedo (1654-c. 1730), com provisão passada em Lisboa, a 7 de janeiro de 1704, que se apresentou na Madeira a 9 de junho desse ano (Alçadas). Em prol da correção das suas averiguações, dever-se-ia fazer sair da cidade o governador, João da Costa de Ataíde, “em distância de dez léguas, para que não fosse, com a sua presença e poder, assistindo” às averiguações, interferir nas mesmas. Nas ordens do desembargador vinha expresso: “e na mesma embarcação em que fores tirar esta devassa, voltará o provedor da fazenda Manuel Mexia, por não ser conveniente que fique na Ilha depois da vossa chegada, para se não dar tempo a negociações, e por ser o dito Provedor da Fazenda envolvido em mais suspeições” (Ibid.). As questões em causa terão tido uma significativa gravidade e envolvido também o bispo, pois ficou escrito no regimento do desembargador: “E a queixa contra o Bispo deverá ser queimada, para dela não ficar nada, nem memória, e disso deverá ser dado conhecimento ao Bispo, para o mesmo saber como o Rei e as suas Justiças tratam semelhantes casos” – o que não foi aquilo que Henrique Henriques de Noronha acabou por escrever. Neste caso, havia ainda queixas contra a família Noronha, a que pertencia o arcediago, e contra a família do vigário geral da Diocese, e ainda se encontrava envolvido o juiz de fora da câmara do Funchal, “a quem [os soldados] fizeram uma sátira difamatória” (Ibid.). Os autores do Elucidário Madeirense seguem de perto as opiniões de Noronha, embora não deixando de salientar ter sido este bispo “estrénuo defensor dos privilégios e regalias de que gozava a Igreja” (SILVA e MENESES, 1998, I, 260). Sobre o governador limitam-se a dar a sua posse e falecimento. As ordens dirigidas ao desembargador e corregedor Salter de Macedo foram passadas em janeiro, mas o mesmo só se apresentou na Ilha em junho, pelo que desconhecemos totalmente o que teria conseguido averiguar. Entretanto, já tinha falecido no Funchal o Gov. João da Costa Ataíde, a 8 de março, e já tinha tomado posse Duarte Sodré Pereira (1666-1738) (Pereira, Duarte Sodré). O novo governador tinha sido nomeado em novembro de 1703, “havendo respeito a desobrigar” João da Costa de Ataíde, referindo-se os merecimentos dos anteriores serviços e ainda “por [ser] quem ele é”, conforme vem expresso na carta patente de Sodré Pereira (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fls. 233-253v.), conforme vem expresso na sua carta patente, parecendo que em Lisboa ainda se não havia tido notícia da sedição. No entanto, o Gov. Duarte Sodré Pereira demorou-se algum tempo em Lisboa, decerto por questões oficiais, pois só em março de 1704 foi nomeado para o Conselho de Estado, chegando ao Funchal quando o anterior governador já tinha falecido. O Gov. João da Costa de Ataíde foi sepultado na igreja do Colégio da Companhia de Jesus, como aconteceu sempre que um governador faleceu no Funchal e “foram depois levados os seus ossos a Lisboa” (NORONHA, Ibid., 58). Não se casou nem deixou descendência, sucedendo na casa de seus pais o irmão Gaspar da Costa de Ataíde, sucessivamente capitão de mar e guerra, sargento-mor de batalha, fiscal da Armada, alcaide-mor de Sortelha, que tinha passado à Índia em 1701, por capitão-mor das naus daquele Estado, mas não constando também descendência do mesmo. Duas das irmãs foram freiras em S.ta Clara de Lisboa, outra morreu ainda jovem e D. Leonor Maria de Ataíde casou-se com Sebastião de Carvalho e Melo (c. 1625-1719), sendo avó do futuro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), sucessivamente conde de Oeiras e marquês de Pombal.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

História Militar Personalidades

artilharia

O armamento pesado de fogo foi fulcral na expansão portuguesa, chegando Portugal a produzir do mais evoluído material de artilharia entre os meados do séc. XVI e os meados do seguinte, não só em Lisboa, mas também no Oriente, nomeadamente Cochim, depois em Goa, Campanel, Jafanapatão e em Macau. Temos poucas informações sobre a sua inicial existência e possível produção na Madeira, que não teria passado de experiência; no entanto, Fernão Lopes de Castanheta refere que, com a chegada das armadas portuguesas ao golfo Pérsico e o desenvolvimento das primeiras instalações construídas, ou seja por volta de 1507, houve que recorrer não só a artífices estrangeiros, mas também a um madeirense, citando-se nos primeiros trabalhos da fortaleza de Ormuz “quatro fundidores de artilharia, dois de artilharia de metal e dois de artilharia de ferro, e três eram gregos e um português mulato e natural da ilha da Madeira” (CASTANHETA, II, 1933, 362). A passagem contínua das armadas portuguesas pelo porto do Funchal, inclusivamente com especialistas de outras nacionalidades, e.g., em 1547, o lendário aventureiro e artilheiro alemão Hans Staden (c. 1525-c. 1579), levou à circulação pela Madeira de todo esse tipo de armamento e de pessoal com o mesmo relacionado. A primeira referência à presença de artilharia na Madeira aponta para o último quartel do séc. XV, citando Gaspar Frutuoso que João Gonçalves da Câmara (c. 1417-1501), 2.º capitão do Funchal, entre outras façanhas bélicas, fez frente a “uma grande armada de castelhanos de muitas velas, com muita gente”, que tentou atacar a praia da vila. Mesmo tendo em conta que se tratava de um cronista açoriano a escrever em Ponta Delgada 100 anos depois dos acontecimentos, e sem nunca ter ido à Madeira, Frutuoso faz notar que “não havendo naquele tempo mais artilharia na terra que um trabuco”, com essa bombarda somente e “com o seu esforço, com que animava a gente”, não só defendeu a Ilha, mas antes “fez muito dano aos navios dos castelhanos e os afugentou, sem ousar nenhum deitar gente em terra” (FRUTUOSO, 1968, 222). Estas bombardas devem ter vindo para a Madeira depois de 1477, quando a infanta D. Beatriz ordenou a montagem dos postos alfandegários, pois existem informações do envio de idêntico armamento para a capitania de Machico, que, mais de 100 anos depois, em 1595, segundo se queixa o mestre-das-obras reais Mateus Fernandes (c.1520-1597), ainda não estava sequer montado. Também há referências a outras bocas-de-fogo na ilha, como a artilharia utilizada, em 1531, nas complicadas questões da Lombada do Arco da Calheta entre elementos das famílias Câmara, Abreu e Esmeraldo (um dos elementos da família Câmara assediou uma das irmãs Abreu, que vivia com a irmã na Lombada dos Esmeraldos, tendo-se as três famílias envolvido em conflito aceso), onde aparecem referidos dois falcões pedreiros e algumas bombardas. Quando do ataque corsário francês de 1566, temos também informação quanto ao equipamento da fortaleza: oito grandes peças de bronze, por certo as enviadas em 1529. O cronista Gaspar Frutuoso refere que algumas delas teriam cerca de 1500 quilos, “145 quintais” e que eram “das maiores que havia no reino”; ainda nesse ataque, existem referências a falcões pedreiros. Um dos pormenores curiosos deste texto de Gaspar Frutuoso é a descrição dos trabalhos de Gaspar Borges, “engenhoso artífice em metais”, que desencravou duas das grandes peças da fortaleza, “grandes e grossas e que nenhumas havia maiores no reino”, como voltou a escrever. No dizer do cronista, os corsários tentaram arrastar as peças para o calhau da praia, mas dado o seu peso e não as podendo levar, deram-lhes a mesma sorte das restantes, “atupindo-as e encravando-as pelos buracos das escorvas” (Ibid., 327-386). A organização da artilharia começou por ter alguma independência, dado ser constituída por artífices especialmente contratados que muitas vezes eram também fundidores e construtores e que, localmente, tinham outras profissões. Nesse quadro, a instituição da Nómina dos Bombardeiros deve datar de 1515; a organização manteve-se mesmo depois de 1675, quando a função passou ao foro exclusivamente militar e os bombardeiros passaram a ser soldados regulares e designados por artilheiros. As primeiras bocas-de-fogo do séc. XVI devem ter sido transportadas em 1529 para o Funchal, com o fim de equipar a futura fortaleza (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), quando era provedor da alfândega Cristóvão Esmeraldo. As designações das várias peças de artilharia (“peças”, no sentido em que na época moderna começam a ser fundidas por inteiro, enquanto até então o eram por partes), como culatra, tubo, etc., também são muito díspares, tendo-se perdido, inclusivamente o significado de algumas designações. Começaram por ser simplesmente bombardas e canhões pedreiros, quando disparavam bala de pedra, passando depois a ter designações de animais mais ou menos fantásticos: e.g., as grandes peças foram nomeadas basiliscos, dragões, serpes, etc., as médias, falcões e falconetes, e as de longo alcance, com tubo mais longo, colubrinas. As de grande calibre e que faziam tiro curvo, quase sempre se designaram por morteiros. A progressiva sistematização da designação através do tamanho e relação do calibre e comprimento do tubo data dos meados do séc. XVII, passando as colubrinas a ser designadas por peças, e as de médio e curto alcance por canhões ou meios canhões e, depois, obuses. Obus. Bartolomeu da Costa. 1770. MM Madeira A reformulação da situação dos bombardeiros, civis de profissões várias, que pontualmente exerciam essa função, aparece a partir de 1640, com a aclamação de D. João IV e a progressiva e lenta constituição dos novos corpos militares permanentes.             Boca de fogo naval inglesa - 1780. GAG2 Funchal     Boca de Fogo inglesa do Porto Santo   A primeira ordem veio logo a 15 de setembro de 1641, com a reforma da companhia do presídio e com a indicação para se proverem as fortalezas “dos necessários artilheiros, para serem todos pagos à maneira das fortalezas do reino” (BNP, Index Geral…, fl. 11). De 1648 foi depois a ordem geral de reforma do material de artilharia existente, ordenando-se ao Gov. Manuel Lopo da Silva que se enviassem para Lisboa todas as peças e falcões das fortalezas da Madeira que estivessem rebentadas, para se fundirem novamente e então serem reenviadas para a Ilha. Em setembro de 1689, foi nomeado o Cap. António Nunes como capitão da artilharia da ilha da Madeira, referindo-se que até então fora condestável dos bombardeiros do Funchal. A artilharia para a Madeira foi sendo enviada de Lisboa, embora sempre com alguma dificuldade, chegando os governadores a optar pela sua aquisição em Londres, como aconteceu, pelo menos com o Gov. Duarte Sodré Pereira, nos primeiros anos do séc. XVIII, de acordo com o que o mesmo escreveu e mandou lavrar nas lápides das fortificações construídas durante o seu governo (Fortes) Este processo manter-se-ia com os governadores seguintes, como José Correia de Sá, que idêntica inscrição mandou colocar na fortaleza de S. Tiago, tendo mandado ir de Londres, em 1767, 50 peças de artilharia para a mesma. A possibilidade de reutilização do bronze das bocas-de-fogo fez com que quase nenhuma peça de artilharia nesse material chegasse ao séc. XXI, ao contrário das de ferro, cujo material não é suscetível de reutilização. Tal facto ocasionou que pelas praias do arquipélago, e.g., como também por outras das ilhas e das costas do Atlântico, etc., existam milhares de antigas bocas-de-fogo de ferro abandonadas, algumas das quais foram reunidas no forte de S. José do Porto Santo ou no do Amparo, em Machico. Segundo as ordenações navais, estas bocas-de-fogo deveriam ser obrigatoriamente lançadas borda fora após 400 tiros, pois a sua manutenção a bordo poderia levar a que, em caso de perigo, pudessem vir a ser utilizadas, o que constituía um perigo maior para a guarnição que para o inimigo. A partir desse número de tiros, o ferro ficava propenso a estilhaçar-se, atingindo toda a guarnição. As peças incapazes para combate eram muitas vezes recuperadas para tiros de salva, utilizando cargas de pólvora muito mais baixas, o que, no entanto, não deixou de causar acidentes, como chegou a acorrer na fortaleza do Ilhéu, a 23 de fevereiro de 1731, quando se deu o rebentamento de uma das peças de ferro, “que se fez em migalhas”, matando um dos artilheiros (ARM, Governo Civil, liv. 418, fls. 17-19). Existe um Livro de Carga da Fortificação das fortalezas da Madeira, entre 1724 e 1733 e, em 1754, o Gov. Manuel de Saldanha de Albuquerque (1712-1771), depois 1.º conde da Ega e vice-rei da Índia, informava existirem 18 peças de bronze, 16 nas fortalezas do Funchal 2 nas de Machico, 125 de ferro “todas de diferentes calibres”, 7 “pedreiros de bronze e ferro para balas de pedra”, todos no Funchal, e 36 peças inúteis “que só servem para salvas”, também no Funchal. Existiam, entretanto mais de 7000 balas de artilharia “de diferentes calibres” nas fortalezas e mais de 20.000 nos armazéns (AHU, Madeira, doc. 47). No Museu Militar da Madeira (Museu Militar da Madeira), instalado na fortaleza de S. Lourenço, existe uma amostragem das mais expressivas peças de bronze de artilharia, quer de fabrico português, como do célebre engenheiro brigadeiro Bartolomeu da Costa (1731-1801), autor da fundição da estátua equestre do Rei D. José, em 1775, quer dos vários arsenais estrangeiros de que o país se subsidiou para a o seu abastecimento.   Rui Carita (atualizado a 05.01.2017)

História Militar

arguim

A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

História Militar História Política e Institucional Madeira Global