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arquitetura popular na madeira

O termo "vernacular" terá sido usado pela primeira vez por Bernard Rudofsky, em 1964, no âmbito da exposição “Arquitetura sem arquitetos” realizada no Museu de Arte Moderna, de Nova Iorque. Neste roteiro vamos ao encontro de exemplos constitutivos desta expressão “popular” na Madeira, bem como das construções que se enquadram na tipologia tradicional, cujas técnicas foram apropriadas nalguns casos pelos arquitetos.      Núcleo arquitetónico dos Salgados O Sítio dos Salgados é tido como a primeira área habitada desta zona, apontando-se a mesma como sendo o berço da freguesia da Camacha. No entanto, neste sítio encontramos um conjunto de habitações que remetem para diversas épocas. As casas com telha-marselha, por exemplo, remetem para o século XX, provavelmente relacionado com o regresso de emigrantes. As suas características, segundo o arquiteto e investigador português Vítor Mestre, são largamente influenciadas pelas técnicas tradicionais. Aqui encontramos vários exemplos caracterizadores da arquitetura popular madeirense. Na parte de menor altitude da localidade, junto ao acesso pela Levada da Camacha, proveniente do Caniço, que terá sido a primeira via de ligação ao litoral, encontramos habitações datadas de períodos anteriores. Casa Elementar de dois pisos Estas casas correspondem a um modelo evolutivo das casas de um piso, sendo que um dos principais objetivos consiste no aproveitamento do desnível do terreno. No andar superior situam-se os aposentos, enquanto que no inferior encontram-se as "lojas", normalmente duas, reservadas para armazenamento dos produtos agrícolas. Repare-se ainda que o balcão de acesso à casa fica situado no piso superior, sendo o espaço aproveitado para a lida da casa. Cachorros de pedra Este elemento desempenha a função de suporte das varas da latada, presença característica na arquitetura popular. As latadas funcionavam como um prolongamento do espaço habitado, desenrolando-se aí algumas actividades relacionadas com a lida da casa. Provavelmente um espaço eminentemente feminino sendo também por esse motivo um espaço de ligação entre a casa e a horta ou campo agrícola, no qual as mulheres tinham papel ativo. A relação entre este espaço e a feminilidade representativa da cultura madeirense é reforçada nos casos em que a latada se encontra na zona mais discreta da casa, isto é, afastada das áreas de ligação ao mundo exterior da habitação, cuja presença masculina é muito mais notada que a feminina. A rocha como espaço funcional A perfuração da rocha para construção de grutas, ou furnas, como localmente são mais conhecidas, foi uma das primeiras formas de habitar na ilha. Provavelmente, com influencias do habitar guanche, povo canário, que terá sido trazido para a Madeira na condição de escravo. Paulatinamente abandonadas, foram no entanto recuperadas em períodos de crise, desenvolvendo-se o conceito até ao ponto em que eram edificadas fachadas com os elementos caracterizadores das casas. A continuação da evolução remeteu as grutas para espaços de despejo ou de apoio à habitação. Mas foram-lhe dadas outros usos, como abrigo de animais ou armazéns. Neste caso concreto, aproveitava-se o frio deste espaço para guardar mantimentos que requerem frio para evitar a deterioração dos mantimentos. Forno e Chaminé Nesta casa de dois pisos encontramos dois elementos presentes na arquitetura popular. Referimo-nos à chaminé e ao forno. Sobre este último, estamos na presença de um forno exterior com boca para o interior, colocado a um nível relativamente superior ao piso térreo, situação encontrada com alguma regularidade. Quanto às chaminés, tornaram-se mais esbeltas e ligeiras ao longo da sua evolução, apresentando forma retângular na maior parte dos casos. Por último, referência para os elementos decorativos na extremidade dos beirais. Estes elementos expressam o caráter supersticioso e religioso, associando-se estas representações ao desejo de proteção e de fertilidade. Influenciado por exemplos existentes no continente português adquiriram especificidade na Madeira, atingido expressões exuberantes no século XX. As “pombinhas” estarão associados ao Espírito Santo. Outro exemplo de iconografia animalista neste âmbito é a cabeça de cão ou outros animais. Casa elementar com telhado de palha Este tipo de casa (a casa elementar) é um dos paradigmas da arquitetura popular na Madeira, cujos modelos incorporam caraterísticas dos modelos de Portugal continental mas que ganharam especificidade no contexto insular madeirense, fruto das condições geográficas, climáticas e dos materiais disponíveis no meio natural. Esta é a tipologia mais comum na ilha da Madeira, podendo o telhado ser de palha ou de cerâmica, e as paredes serem em pedra ou em madeira. Por outro lado, a cozinha pode aparecer integrada no corpo principal ou num corpo à parte por motivos de segurança. Casa elementar de dois pisos com balcão As casas elementar de dois pisos podem apresentar caraterísticas distintivas quanto à volumetria do corpo. Observou-se relativamente a este aspecto duas formas diferentes, uma de cariz mais modesto, de aspeto sóbrio, enquanto que outras têm um aspeto pretensioso, com um maior equilíbrio nas proporções. Ganham relevância precisamente pela sua volumetria inserida na paisagem rural.   textos: César Rodrigues fotos: Rui A. Camacho

Arquitetura Património Rotas

igrejas e capelas erguidas pela força da fé

A Ordem de Cristo com o Infante D. Henrique como Grão Mestre teve um papel fundamental na expansão portuguesa. Um dos territórios descobertos por nobres pertencentes à casa do Infante foi o arquipélago da Madeira, que viria a tornar-se uma posse da Ordem de Cristo até D. Manuel se ter tornado rei de Portugal, em 1495. Mas a relação de grande proximidade à Igreja Católica Romana manteve-se ao longo dos séculos, cristalizando-se na paisagem através das igrejas e capelas, algumas das quais de cariz particular. Igreja Nova do Jardim da Serra A nova Igreja do Jardim da Serra, desenhada por Cunha Paredes, arquitecto português de origem madeirense, e inaugurada em 2009 tem invocação a São Tiago e constitui-se como símbolo da forte religiosidade católica da população e da melhoria das condições económicas que caracterizou nas últimas décadas a ilha da Madeira. A comparação das suas características e dimensão com as da anterior sede paroquial, situada bem próxima desta, é elucidativa. Capela da Mãe de Deus - Caniço A Capela da Mãe de Deus ou Madre de Deus, de traça manuelina, foi construída em 1536 e é um dos mais antigos templos marianos na Madeira. Integra-se num pequeno núcleo de construção mais antiga que se confronta com a construção mais recente que o rodeia, constituído por uma mercearia, e duas habitações particulares, que mantêm as características originais. Nas casas é possível observar a distinção das cores, o vermelho e o ocre, resultantes do facto de estes serem os únicos pigmentos disponíveis, mas também do facto de as cores carregarem o símbolo de classe ou de status social. O vermelho estava reservado para as casas senhoriais e mais abastadas. Observe-se ainda o banco em pedra, espaço de socialização e de lazer. Capela de São José - Largo da Achada, Camacha Foi mandada erigir por Alfredo Ferreira Nóbrega Júnior em 1924 e concluída em 1928, que pretendeu desde o início criar um espaço educativo de cariz religioso. Possui um altar-mor rico em ornamentação e bem conservado bem como uma obra de Martin Canan. O livro “Ao Redor de um Ideal”, de Eutíquio Fusciano, publicado com a chancela da Câmara Municipal de Santa Cruz, é um dos documentos que podem ser consultados. Igreja Paroquial da Camacha A construção deste imóvel dedicado ao culto católico data do século XVII. Trata-se de uma estrutura arquitectónica com planta longitudinal de nave única e capela-mor. Completam o conjunto uma torre sineira e duas capelas laterais. Como elemento decorativo destaca-se a tela do retábulo da capela-mor, ali colocado no ano de 1914 e com provável autoria dos Irmãos Bernes. Aquando da sua recuperação descobriu-se que a mesma tapava outra tela, a original, provavelmente da autoria de Nicolau Ferreira Igreja Paroquial da Achada de Gaula Uma das duas paróquias da freguesia de Gaula, denominada Achada de Gaula, encontra sede nesta igreja construída já no século XX. Tem por padroeira a Nossa Senhora da Graça. Das festividades que aqui ocorrem destaque-se a festa em honra da sua padroeira, realizada no primeiro fim-de-semana depois de 15 de Agosto. Em Janeiro realiza-se, desde há relativamente pouco tempo, a Festa de Santo Antão, padroeiro dos animais. Igreja de Santa Beatriz - Água de Pena Construída no ano de 1745, no local onde antes existia a Capela de Santa Beatriz, e a partir de onde segundo as crónicas, cresceu a freguesia. Foi mandada construir por Lançarote Teixeira, que lhe deu o nome da Santa Beatriz, por ser o mesmo de sua esposa. A fachada principal ostenta a cantaria regional, de basalto, e no cimo da mesma uma Cruz de Cristo. No último Domingo de Julho realiza-se uma festa popular em honra de Santa Beatriz e que tem nesta Igreja o seu epicentro. Igreja Paroquial do Porto da Cruz Sendo de construção recente (1958), a Igreja matriz alberga no seu interior alguns pormenores muito interessantes no que respeita ao património imaterial e móvel. No interior, observa-se um moderno lambril de azulejos padronados do prestigiado artista Querubim Lapa. O templo guarda ainda alguns elementos decorativos barrocos provenientes da antiga igreja de Nossa Senhora de Guadalupe. Uma Nossa Senhora de Guadalupe (séc. XVI ou XVII, em madeira policromada) e um Santo António (em terracota). Os quadros da Via-sacra são de autoria de João Gomes Lemos, de pseudónimo "Melos", médico natural da freguesia. É uma obra do Arquitecto Raul Chorão Ramalho.   textos: César Rodrigues fotos: Rui A. Camacho

História da Arte Religiões Rotas Madeira Cultural

do ouro branco e pela vinha às quintas

Desde o Século XV, a Madeira recebeu comerciantes e turistas de diversas nacionalidades. Pela Madeira passaram, por exemplo, comerciantes venezianos e flamengos no contexto do afamado período do “ouro branco” deixando a sua marca na toponímia da cidade do Funchal e no sobrenome de famílias madeirenses, mas a partir do século XVII, com a paulatina substituição da cultura do açúcar pela da vinha, os comerciantes britânicos tornaram-se a comunidade estrangeira mais importante no arquipélago. A influência desta comunidade manifestou-se em alguns de setores económicos e na edificação, entre as quais se contam as tão conhecidas quintas da Camacha e do Santo da Serra.     Quinta do Jardim da Serra Esta Quinta, construída no século XIX pelo Cônsul Inglês Henry Veitch, tem importância fulcral na história da própria freguesia. Foi o nome desta propriedade que deu origem à denominação da freguesia: Jardim da Serra. Adaptada em 2010 numa excelente unidade hoteleira, preserva um edifício com arquitetura tradicional. É ainda possível contactar com as práticas de agricultura biológica e alguns exemplares de flores madeirenses nos amplos jardins da propriedade. Realce para o facto da quinta ter sido fonte de inspiração para Max Römer, e estar representada numa gravura do século XIX, patente na reitoria da Universidade da Madeira, no Funchal. Quinta das Romeiras Esta quinta foi desenhada pelo conhecido arquiteto português Raul Lino e foi mandada construir pelo Drº Alberto Araújo, como residência de férias. Foi construída no ano de 1933, ano em que a 14 de Abril o Diário da Madeira noticiava que se estava “trabalhando afanosamente na construção de uma opulenta vivenda de campo, no sítio das Romeiras, desta freguesia, donde se desfruta um largo e aprazível panorama. O povo já a baptizou de Quinta dos Penedos”. A escritora Maria Lamas em 1956 descrevia assim seus jardins: “Do branco de neve ao salmão, ao carmesim, ao amarelo-oiro e ao roxo, passando por todas as escalas de tons - quem poderá imaginar, sem a ter visto, aquela sinfonia de cores?” Quinta do Vale Paraíso Constituída por um edifício principal, construído em meados do século XIX, e por outros 9 de dimensões mais reduzidas, transformadas em pequenas residências de férias, as quais mantêm de um modo geral o nome da sua função original. Este espaço oferece ainda amplos jardins compostos por plantas endémicas e exóticas pertencentes a cerca de 220 espécies. A partir desta quinta acedemos, através de uma vereda, à Levada da Serra do Faial. fonte: ariscaropatrimonio.wordpress.com Quinta do Revoredo Esta propriedade foi mandada construir por John Blandy, em 1840, que depois de conhecer a Madeira como marinheiro de um navio inglês nas guerras napoleónicas viria a tornar-se no mais importante homem de negócios da ilha e cuja família ainda é uma das mais influentes na Região. Hoje a quinta é propriedade da edilidade e é nela que se encontra a sede da orquestra filarmónica de Santa Cruz, sendo utilizada também como Casa da Cultura do município. Quinta de São Cristóvão Esta quinta com caraterísticas da arquitetura portuguesa, foi mandada construir em 1692 pelo morgado Cristóvão Moniz de Menezes e manteve-se como propriedade da família até que recentemente Carlos Cristóvão da Câmara Leme Escórcio de Bettencourt, sem descendentes, o cedeu ao Governo Regional da Madeira. Chegou a albergar o Conservatório de Música e actualmente funciona como casa do artista. Este solar está ainda relacionado com a Paróquia do Piquinho, uma vez que foi aqui erigida a Capela de São Cristóvão, a qual recebe em Maio a festa religiosa de São Cristóvão. Também aqui funcionou uma escola fundada pela irmã Mary Jane Wilson, entre 1904 e 1910.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Arquitetura Património História Económica e Social Rotas

contacto linguístico

A coexistência de línguas é um facto. Existe desde sempre e desempenha um papel importante na variação inerente a qualquer sistema linguístico, nomeadamente quando esta variação ocorre ao longo do tempo. A publicação de Languages in Contact (1953), de Uriel Weinrich, constitui um marco nesta área de estudos linguísticos e na investigação sobre multilinguismo. Os principais temas relacionados com o contacto linguístico tinham sido abordados já na sua tese de doutoramento, Research Problems in Bilinguism with Special Reference to Switzerland (1951), obra que teve por base o trabalho de campo feito pelo autor na Suíça e que contém uma descrição detalhada da situação linguística naquele país, sobretudo nos espaços de fronteira e de contacto linguístico. O contacto entre línguas mereceu, desde então, a atenção de vários investigadores, que procuraram observar e descrever, de modo sistemático, as suas propriedades – origens, processos e resultados. Contacto linguístico (conceitos) Uma situação de contacto linguístico pode ser definida como “aquela em que pelo menos algumas pessoas usam mais do que uma língua” (THOMASON, 2001, 1). Tal acontece em várias situações do quotidiano, e.g., por via de vários tipos de mobilidade humana (emigração e imigração, turismo, etc.), em que os falantes de uma determinada língua materna se encontram em contacto com falantes de outras línguas. Este fenómeno ocorre também na escola, em situações de aquisição formal de uma segunda língua, não materna, ou L2, e ainda na comunicação digital (Internet). Na era da globalização, podemos entender que, de acordo com Maria Antónia Mota (1996), as sociedades de começos do séc. XXI são, na sua maioria, plurilinguísticas e que as línguas são sistemas marcados por grande variação interna, pois a relação comunicacional entre comunidades linguísticas é tão grande que é quase impossível não se influenciarem umas às outras. Trata-se de um processo que decorre da coexistência temporal e espacial de duas ou mais línguas ou variedades linguísticas, para o qual é necessário não só “definir a natureza [como também] a escala e o grau desse contacto e determinar quem entra em contacto com quem, se indivíduos, famílias, comunidades ou sociedades inteiras”, como observam René Appel Pieter Muysken, em obra citada por Glaucia Santos (SANTOS, 2008, 23). A dinâmica do contacto pode ser descrita como a passagem de uma situação de monolinguismo para uma de bilinguismo, existindo ainda a possibilidade de um regresso ao monolinguismo (manutenção da língua de origem, anterior ao contacto). Os processos e resultados linguísticos envolvidos nesta dinâmica, descritos na bibliografia de referência e referidos por Amália de Melo Lopes (2011), são os seguintes: (i) manutenção da língua de origem (LO) como única língua da comunidade; (ii) mudança de língua (language shift, FISHMAN, 1964), em que a LO é substituída pela língua de outro grupo em contacto, pelo facto de a comunidade considerar a língua adotada mais funcional ou mais prestigiada socialmente, ou por outro tipo de circunstâncias; (iii) mistura de línguas (language mixing), que pode dar origem a outros produtos linguísticos, marcados pela influência mútua das duas línguas, tais como: bilinguismo, pidgins e crioulos. Vários fatores, tais como a quantidade de migrantes e a duração da coabitação, o prestígio ou o poder económico e político das comunidades migrantes e daquelas que as recebem, intervêm nos resultados do contacto. Este assunto tem sido particularmente debatido no âmbito da ecologia do contacto de línguas, que faz parte da disciplina de ecolinguística, que consiste no estudo das relações entre língua e meio ambiente (ou território), e foi detalhadamente discutido, e.g., por Jean-Louis Calvet e Salikoko Mufwene. Assim, nem todas as comunidades respondem ao contacto linguístico da mesma forma. Há aquelas nas quais ocorrem processos de hibridismo, quando os falantes não diferenciam os diferentes códigos, constituindo-se então uma mistura de línguas – de tipo code-switching ou alternância de códigos e/ou de tipo code-mixting – que resultam de um maior e mais permanente contacto linguístico. É o caso dos crioulos e dos pidgins, que resultam do “surgimento de uma nova entidade linguística qualitativamente distinta de todas as línguas envolvidas na situação de contacto de onde ela emergiu” (LUCCHESI, 2004, 157). Noutras situações, podemos assistir à coabitação entre duas línguas na mesma comunidade linguística – bilinguismo – ou de duas variedades da mesma língua – diglossia. Bilinguismo O bilinguismo, situação muito comum no mundo dos alvores do séc XXI, corresponde ao conhecimento e uso de duas ou mais línguas por um indivíduo – bilinguismo individual – ou por uma comunidade – bilinguismo social –, quando esta se caracteriza pela existência de um número significativo de falantes bilingues. Os falantes bilingues podem apresentar diferentes graus de proficiência e uma grande variedade de uso das duas línguas, manifestando, na sua fala, interferências e alternâncias de línguas. Assim, o code-switching é uma manifestação de bilinguismo e consiste em trocar de língua no decurso de uma mesma produção linguística, mesmo que não haja mudança de interlocutor ou de situação. Em alguns casos, esta influência pode criar uma dualidade dentro de uma comunidade linguística, que, sendo “monolingue pode tornar-se bilingue pela conservação da sua língua autóctone e da língua forasteira” (LOPES, 2011, 14). Relativamente ao bilinguismo social, é de assinalar que um país pode ser bilingue ou multilingue/plurilingue, mas parte da sua população ser monolingue, assim como pode ser predominantemente monolingue sem que tal signifique que todos os cidadãos desse país falem só uma língua ou que todos os que vivem nesse país tenham essa língua como materna. Podem configurar-se situações estáveis de bilinguismo, de bilinguismo mútuo ou assimétrico, e outras situações que se situam entre esses dois extremos. Diglossia A diglossia é uma variante de bilinguismo, sendo um termo usado para classificar situações de comunicação em comunidades que recorrem ao uso complementar de variedades e/ou línguas distintas na vida quotidiana. Nestas circunstâncias, uma variedade/língua só pode ser usada em situações em que a outra variedade/língua está excluída. Esta definição abrange muitas situações que ocorrem na maioria das sociedades. A ilha da Madeira, e.g., no âmbito do português europeu (PE), poderá ser caracterizada, do ponto de vista linguístico, por uma situação de diglossia, uma vez que os falantes madeirenses usam uma variedade falada do português, distinta da variedade padrão e excluída das trocas comunicacionais em que é exigido o uso da variedade padrão (conferências, escrita). Este tipo de situação poderá gerar um conflito, uma vez que as duas variedades não gozam do mesmo prestígio, sendo a variedade falada e informal (conversas com familiares próximos etc.) objeto de maior estigma. Interlíngua A probabilidade de ocorrer uma ou outra das três situações referidas pode estar relacionada com condições socio-históricas e políticas específicas, com as atitudes dos falantes em relação à variação linguística observada, e com as relações de força que se estabelecem entre as comunidades de falantes de línguas ou variedades distintas. A estes fatores extralinguísticos juntam-se fatores de natureza linguística, tais como a importância da distância tipológica entre a língua materna (LM) e a língua não materna, ou língua alvo (LA), e os que estão relacionados com os efeitos linguísticos da interferência na LA, dando origem ao surgimento de uma outra variedade nessa língua. Assim, no processo de aquisição de uma segunda língua, como destaca Sara Thomason (2001), os falantes podem permanecer numa fase de interlanguage (ou “interlíngua”, SELINKER, 1972), um processo de variação linguística no qual se incluem os empréstimos lexicais e mesmo interferências estruturais, resultado da transposição de alguns traços da LM para a LA. Este processo poderá dar também origem à mudança linguística; tal ocorre quando traços de interferência são conservados e transmitidos às gerações seguintes, construindo-se, assim, uma nova versão da LA. No entanto, estar em contacto com outras línguas não implica necessariamente mudança. De assinalar também que todos os níveis dos sistemas linguísticos – fonológico, morfossintático e lexical – podem ser afetados (SANKOFF, 2001). O contacto linguístico é, normalmente, mais saliente ou dinâmico em zonas fronteiriças, onde duas línguas interagem constantemente, em comunidades onde a afluência de estrangeiros é grande, e ainda em espaços marcados pela ocorrência de fluxos migratórios (emigração para o estrangeiro e o seu regresso), bem como naqueles que foram objeto de colonização ou de ocupação por parte de outros países e, como anteriormente referido, em situações de aprendizagem de outra língua (MOTA, 1996). A língua portuguesa, e.g., tal como hoje se apresenta no começo do séc. XXI, resulta de séculos de contacto com o latim vulgar e com línguas de outros povos. Emergiu no Noroeste da península Ibérica, por volta do séc. IX, numa comunidade linguística que incluía também a língua falada na Galiza. A língua escrita continuou a ser o latim, e a primitiva produção escrita em português de que há conhecimento, de natureza notarial, data do séc. XIII. A partir da constituição do reino de Portugal, em 1143, o português foi acompanhando a configuração de novas fronteiras para o reino, passando a ser falado em espaços cada vez mais alargados. O repovoamento do Sul do território reconquistado aos árabes e a situação de contacto linguístico com os falares moçárabes que dele resultou criaram novas condições para a transformação e mudança na língua. A norte e a sul desenharam-se variedades distintas: nas áreas dialetais setentrionais, a norte, a mudança tinha levado, e.g., à perda da oposição etimológica entre /b/ e /v/; no centro e sul, emergiram variantes inovadoras, como foi o caso da monotongação do ditongo [ej] em [e] em palavras como “ceifar” [sefar] e “feito” [fetu]. Estabelecidas as novas fronteiras, também a capital do reino se mudou para sul do rio Mondego, fixando-se em Lisboa. Esta mudança histórica iria determinar novos caminhos para a língua: o modelo unificador do português desloca-se, a partir do séc. XVI, para esta região, que se torna pólo inspirador da sua norma culta e ponto de partida do padrão linguístico posterior. A partir do séc. XV, a língua conquistadora foi povoando ilhas e sendo também acolhida em sociedades distintas, em África, na Ásia e na América. As diferentes situações de contacto com as línguas faladas pelos nativos nos novos espaços ocupados enriqueceram o português, tendo tido um papel muito relevante na construção das suas variedades geográficas extra-europeias – brasileiras e africanas. No âmbito do PE, as variedades insulares, afastadas do contacto com as variedades peninsulares, desenvolveram traços linguísticos próprios. Deles fazem parte a manutenção de traços conservadores nas suas variedades populares, como no caso da variante nasal [õ] nas finais verbais de terceira pessoa do plural (“comeram” [kumerõ]) – também atestada em variedades peninsulares setentrionais –, que correspondem a uma fase da língua na qual ainda não tinha ocorrido a ditongação em [Œ)w)], variante que viria a ser integrada na norma do português apenas no séc. XVI. As variedades insulares ostentam também aspetos inovadores, como a mudança manifesta na ditongação das vogais altas acentuadas /i/ e /u/, em palavras como “aqui” e “rua”, pronunciadas [Œ’kŒj] e [{’ŒwŒ], respetivamente. Tal como a estrutura sonora da língua, também o léxico está em permanente renovação, com ganhos e perdas de palavras, e com outras a gerarem novos sentidos. No português, a herança lexical latina incorporou, no início da sua formação, os contributos de povos colonizadores – germânicos (nomes como “guerra”, “luva”, “roupa”) e árabes (“alcatifa”, “arroz”, “açúcar”, “atum”, “armazém”, “aldeia”). Mais tarde, na sua expansão marítima, os contactos com outras comunidades linguísticas enriqueceram a língua portuguesa e as suas variedades, sendo introduzidos novos itens: empréstimos das línguas ameríndias (“canoa”, “amendoim”, “tapioca”, “mandioca”, “goiaba”, “pitanga”), africanas (“banana”, “berimbau”, “cachimbo”, “cubata”) e asiáticas (“leque”, “chá”, “bengala”, “azul”, “bambu”, “chávena”, “xaile”). Em diversos momentos da sua história, provenientes de outras línguas europeias de cultura e de prestígio, outros empréstimos foram importados e integrados, sendo de notar, e.g., os galicismos (“monge”, “joia”, “blusa”, “soutien”, “envelope”), os italianismos (“soneto”, “aguarela”, “bússola”, “piano”, “violoncelo”) e os anglicismos (“pudim”, “bife”, “lanche”, “futebol”, “andebol”, “penalti”). Aspetos socio-históricos dos contactos linguísticos no espaço insular atlântico Na altura dos Descobrimentos, como referido, os Portugueses levaram a língua para as terras por onde passavam, que conquistavam e povoavam. Tal aconteceu na ilha da Madeira, descoberta em 1418. Os primeiros colonos, oriundos tanto do Norte como do Sul do reino, terão chegado pouco depois, por volta de 1420 ou 1425. Sendo as suas fronteiras traçadas pelo mar, poder-se-ia pensar que, quando comparada com outros espaços não insulares, a ilha da Madeira, e assim as suas comunidades de falantes, se caracteriza pelo isolamento e a falta de qualquer tipo de contacto. Porém, historicamente, a Madeira estabeleceu, desde o seu povoamento, no séc. XV, vários tipos de contacto linguístico, não só com falantes de outras variedades regionais do português europeu continental, como também com falantes de outras línguas, graças a fatores relacionados com o seu desenvolvimento socioeconómico (comércio, turismo, emigração). Assim, tal como outras ilhas situadas em alto mar, mas localizadas no centro de rotas marítimas, a ilha da Madeira nunca ficou completamente isolada, porque, beneficiando das condições económicas internas oferecidas pelas culturas da cana-de-açúcar, primeiro, e da vinha, mais tarde, constituiu-se num lugar de passagem obrigatório nos caminhos traçados no oceano Atlântico. O Funchal, uma cidade portuária, era um lugar de paragem quase obrigatória para a maioria das pessoas que viajavam pelas principais rotas do Atlântico. Esta situação manteve-se quase inalterada até ao séc. XIX, tornando a Ilha, na periferia da Europa, um ponto estratégico de ancoragem, um microcentro atlântico. A sociedade madeirense pode ser vista como resultado de fluxos migratórios constantes desde o início da sua história, regulados pelos ciclos económicos. Para além da presença de comerciantes, sobretudo europeus, e de escravos vindos inicialmente das Canárias (os guanches) e, mais tarde, do Norte de África (árabes) e da Costa da Guiné (negros), é de assinalar o alto nível de mobilidade social dos madeirenses. Povoamento do arquipélago da Madeira Aquando do descobrimento do arquipélago da Madeira, no séc. XV, houve a necessidade de o povoar, tal como aconteceria posteriormente noutros espaços atlânticos portugueses: os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde. Inicialmente, foram enviadas para a Madeira pessoas de variadas origens sociais. Como afirma Joel Serrão, “o primeiro grupo de povoadores da pequena nobreza, pelo menos, uns catorze, e os restantes, gente de condição modesta, entre a qual, antigos presos das cadeias do Reino, e aos quais se destinavam as tarefas mais humildes e ingratas” (SERRÃO, 1961, 2). As origens geográficas da população madeirense teriam sido, como observado por Luís de Sousa Melo, sobretudo as “províncias do Minho e do Algarve” (MELO, 1988, 20). Pinto e Rodrigues (1993) apresentam também evidências de que os distritos a norte de Portugal terão contribuído em maior quantidade para a ocupação humana do espaço insular. [table id=108 /] Apesar do decréscimo de matrimónios de imigrados ao longo dos decénios, podemos observar que Faro tem uma representação mais baixa, comparativamente aos imigrantes provenientes das zonas mais a norte de Portugal. Crê-se que a importância dos indivíduos oriundos do Algarve estivesse ligada à atividade marítima e a dos emigrantes do Norte de Portugal à atividade agrícola. Por outro lado, registou-se a presença de Espanhóis na ilha da Madeira entre os anos de 1539 e 1600, como podemos comprovar no gráfico apresentado por Luís de Sousa Melo no mesmo artigo: [caption id="attachment_16108" align="aligncenter" width="661"] Fig. 2 – Gráfico representativo do movimento migratório para a Madeira no séc. XVI.Fonte: MELO, 1988, 26.[/caption]   A presença espanhola na Madeira estaria ligada sobretudo à chegada de indivíduos da Galiza. Talvez tenha sido significativa anteriormente, sobretudo pelo comércio de escravos com o arquipélago das Canárias. O povoamento teve início no perímetro entre Machico e Calheta, portanto, na costa sul, por ser mais apropriada para o arroteamento. Porém, é à cidade do Funchal que se manifesta uma maior afluência de falantes vindos de todas as partes, uma vez que ali se encontrava o porto de embarque e de desembarque. Presença de escravos (canários e africanos) A chegada dos primeiros colonos à Madeira não pareceu ser suficiente para a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola, bastante exigente no seu início, devido à orografia e densidade florestal da Ilha. Julgou-se então necessário recorrer, para esse fim, à introdução do escravo na região. No fim do séc. XV, a população de escravos ascendia a cerca de 2 milhares, perfazendo 12 % da população total da altura. Veja-se, na fig. 3, a evolução global da população madeirense entre os finais do séc. XV e o séc. XVI: [table id=109 /] Foram, aliás, os escravos, os negros do Golfo da Guiné, os mouros cativos do Norte de África e ainda os canários quem mais contribuiu para o desenvolvimento do arroteamento de terras e, mais tarde, para a produção de cereais e de açúcar. Crê-se que até da Índia foram escravos, pois, segundo se lê no Elucidário Madeirense, “Tristão Vaz da Veiga, que foi governador-geral do arquipélago em 1582 tinha doze escravos indianos para serviço particular da casa” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Alberto Vieira, citando Alberto Sarmento, adianta que a escravatura na Madeira se apresenta como “um regresso à História Antiga, ao tempo patriarcal, com o escravo doméstico; à velha Grécia, com o escravo lavrador do Império Romano, com o escravo industrial” (VIEIRA, 1996). Os escravos guanches, marroquinos e africanos foram os primeiros a chegar à Ilha, porque a localização geográfica da Madeira, perto do continente africano, a posicionava idealmente para a receção do mercado escravo, sendo também de referir a intervenção de escravos vindos do Brasil e das Antilhas. Aos escravos deve-se, na sua maioria, o crescimento e o desenvolvimento da economia do arquipélago, que podem ser vistos por duas perspetivas: primeiro, como uma “economia de aproveitamento imediato daquilo que se apresenta com valor mercantil (madeiras, pastel, urzela) ou valor alimentar (peixe); segundo, como uma economia de produção (trigo, gado, mais tarde açúcar e vinho)” (PINTO e RODRIGUES, 1993, 408). A afluência de escravos foi tão acentuada na Ilha que muitos terão aí casado e permanecido. Inventariam-se 593 casamentos, dos quais uns ocorriam entre escravos da mesma condição, outros entre escravos e forros ou libertos, e outros ainda entre escravos ou ex-escravos e não escravos. O primeiro casamento no seio desta comunidade teria ocorrido em 1539, na igreja da Sé, e o último em 1830. Influência europeia através da história económica e social (comércio e turismo) A presença de estrangeiros na Ilha remonta ao seu povoamento. Os primeiros mercadores estrangeiros que aí apareceram eram florentinos, genoveses e venezianos, todos comerciantes do açúcar, o que originava muitas vezes na sua naturalização. Assim, refere o Elucidário Madeirense: “Os estrangeiros contribuíam consideravelmente, embora com proveito próprio, para o estado de prosperidade a que chegou esta ilha desde os fins do século XV até meados do século seguinte. Entregaram-se a diversos ramos de negócio, montaram muitos engenhos de açúcar e era por seu intermédio que se fazia uma boa parte da exportação desse produto para os países estrangeiros” (SILVA e MENESES, 1998, 422). Os Ingleses adquiriram um lugar de relevo na burguesia cosmopolita da cidade desde o séc. XVII, e a ilha da Madeira transformou-se numa escala obrigatória nas rotas marítimas da Inglaterra. A expansão do comércio, através dos negócios de exportação de produtos diversos, como o trigo, as madeiras, o açúcar, o vinho e o bordado Madeira, foi uma forma de a comunidade madeirense entrar em contacto, não só com os escravos, mas também com estrangeiros europeus que pela Madeira passavam. O comércio açucareiro terá tido início logo no dealbar do séc. XV, acentuando-se a sua produção depois da crise económica na última metade do séc. XVI, que decorreu da falta de trigo e, consequentemente, de pão. Os madeirenses viram-se para a produção do açúcar, uma vez que a produção cerealífera não prosperava nas frondosas e acentuadas montanhas da Ilha. A produção subiu, assim, em grande escala, não só para consumo próprio, como também para exportação, sendo de registar, a este propósito, o despacho enviado em 1461 ao Rei de Portugal, D. Fernando, a pedir autorização para “carregar vinhos açuquares madeyra pam e todo ho q avees de vosas nouidades pera hu vos mais prouuer sem me pagardes dizima da carregaçam”, acrescentando ainda: “taes carregações […] pera fora destes reynos” (PEREIRA, 1991, 91). Durante algum tempo, a produção e a exportação de açúcar seguiram bom porto e estenderam-se pelas cidades mediterrânicas e nórdicas, bem como para o reino, fomentando um grande interesse da burguesia estrangeira pelo comércio do açúcar. O mercado açucareiro, e principalmente a exportação deste produto para Flandres, Inglaterra, Ruão, Rochela e Bretanha, deram grande visibilidade à Madeira, sobretudo entre 1450 e 1550. Contudo, o comércio do açúcar não vingou nos séculos seguintes, devido à forte concorrência de outros locais, com maior produção. A Madeira, por ser uma ilha de pequenas dimensões, não conseguiu competir, pelo menos em grande escala, com os novos produtores da América do Sul (Caraíbas e Brasil). Com o declínio do açúcar, é a vinha que, enquanto cultura, passa a predominar, já nos fins do séc. XVI. O clima da Madeira, ameno em qualquer estação do ano, para além de favorecer as culturas, também não passou despercebido aos estrangeiros do Norte da Europa, cujos invernos eram muito mais rigorosos. De acordo com Albert Silbert, citado por António Marques da Silva, as características peculiares do clima da Madeira devem-se à “presença dos ventos alísios que emolduram o arquipélago da Madeira” (SILVA, 2007, 35). Apesar da grande afluência de Ingleses à Madeira, não foram apenas estes que tiveram interesse na beleza, no clima e no comércio que a Ilha podia oferecer. Os Alemães também mostraram essa vontade. A presença alemã na Madeira, tal como a inglesa, remonta ao seu povoamento, no séc. XV; com efeito, há registo de duas figuras lendárias, Henrique e André Alemão, tendo este etnónimo por referência “um indivíduo natural de Além-Reno” (VERÍSSIMO, 2012, 17). Henrique Alemão, cavaleiro de Santa Catarina, recebeu terras na ribeira da Madalena, em sesmaria de Gonçalves Zarco; uma outra terra, situada entre a Madalena e o Arco da Calheta, teria sido doada a André Alemão. A presença alemã nesta zona da Ilha “ficou assinalada através do topónimo Fajã do Alemão, hoje designada, por corruptela, Fajã do Limão” (VERÍSSIMO, 2012, 16). Mais tarde, já no séc. XVI, o comércio internacional do açúcar fica associado aos Alemães da família Paumgarther de Augsburg e à sua companhia, que mantinha relações entre a Madeira e as Canárias. Outros nomes associados à companhia são Welser Lucas Rem, Hans Rem e os feitores Leo Ravensburger e Hans Schmid. No século posterior e até ao séc. XIX, sabe-se que a presença alemã em território português vigorou principalmente nos Açores. A partir do séc. XVIII, a Madeira recebe um outro tipo de visitantes europeus: cientistas, sobretudo britânicos, mas também franceses e alemães. De facto, no séc. XIX, a permanência de Alemães na Ilha relaciona-se sobretudo com a chegada de cientistas cujos estudos incidem sobre a Madeira e têm como objeto o clima e a tuberculose; Alemães como Karl Mittermeier (que esteve na Madeira em 1855) e Rudolph Schultz (que ali esteve em 1864), entre outros, acreditavam que a Ilha possuía condições favoráveis para a sua cura. De acordo com Eberhard Wilhelm (1997), durante o período de 1815 a 1915, foram imensos os visitantes de língua alemã na Madeira, sobretudo naturalistas e médicos, que mostraram grande interesse pela botânica insular, sendo de referir, e.g., Johann Reinhold Foster e Johann George Adam Foster, e ainda, na área geológica, Leopold Von Buch. Na fig. 4, apresentam-se alguns nomes importantes de figuras alemãs que estiveram na Madeira e que em muito contribuíram para o seu desenvolvimento em diversas áreas: [table id=110 /] No séc. XIX, devido à vasta literatura científica e de viagem que inclui a ilha da Madeira, é possível reconstruir a situação da mesma nessa altura. Os viajantes que por lá passavam descreviam vários aspetos, como a natureza, a topografia, o relevo, as tradições, as vestimentas e os hábitos alimentares, e acrescentavam detalhes muito significativos, que representavam as suas ideias sobre determinadas situações do quotidiano madeirense: “De facto, o século XIX trouxe à Madeira muitos viajantes que julgaram oportuno proceder em termos dum ‘fifty-first’ e, assim, o número dos que deixaram registado em livro o seu ‘glimpse’ madeirense ascende a umas boas dezenas. Entre eles e para mencionar apenas os mais representativos em campos literários diferentes e perseguindo também diferentes objetivos temos Robert Steele, James Edward Alexander, o Dr. Wilde, James Golman, John Osborne, Wiliam Hadfield, Henry Vizetelly” (BRANCO, 1989, 201). Para além do grande número de estrangeiros interessados no arquipélago da Madeira, inicialmente pelo comércio do açúcar, do vinho, do bordado Madeira, e pelas características naturais do território (clima, botânica, geologia, medicina), na viragem do séc. XIX para o séc. XX, a Madeira começou a ser pensada como um espaço de lazer. É nesta altura que tem início o turismo na Madeira, uma nova era em que se começa a desenvolver um ciclo económico ligado a esta atividade. Se, por um lado, o turismo pode ser visto como algo motivador e revitalizador de práticas estagnadas, através do processo de aculturação, por outro, podemos inferir que o mesmo processo poderá influenciar e motivar a comunidade linguística a que se destina. Esta atração pelo turismo permitiu que houvesse, a nível económico e urbanístico, principalmente na cidade do Funchal, um grande investimento na construção de hotéis, levado a cabo sobretudo por Ingleses, que fez surgir na cidade uma realidade nova. A atividade turística transforma, assim, a capital insular num centro cosmopolita e num palco de muitas culturas. A emigração madeirense entre os séculos XV e XX Desde o séc. XV que a Madeira viu os filhos da sua terra partirem em busca de novos rumos, num movimento normalmente associado a crises socioeconómicas. A primeira crise do trigo, logo no séc. XVI, forçou os madeirenses a partirem, sendo a falta de cereais, que perdurou pelos séculos seguintes, responsável pelo facto de a Madeira se ter tornado refém da importação cerealífera vinda dos Açores. Nos sécs. XVI e XVII, os madeirenses foram essenciais no Brasil, pois contribuíram com as suas aptidões como lavradores e mestres de engenho, bem como na exportação de cana-de-açúcar, tendo tido um papel relevante no comércio açucareiro do Brasil. No séc. XVII, com a invasão holandesa do Brasil, o comércio teve dificuldades. Houve necessidade de enviar novamente madeirenses para a reconstrução dos engenhos, e eles contribuíram para a expulsão dos Holandeses do Maranhão em 1642, em particular o madeirense António Teixeira Mello; em Pernambuco, em 1645, a organização de resistência foi feita pelo madeirense João Fernandes Vieira. No séc. XVIII, a fome e a crise persistiam, consequência, ainda, da falta de trigo, como afirma Maria Licínia dos Santos: “logo nos primeiros anos do século XVIII, ou seja, 1806, a Madeira foi intensamente ameaçada pelo espectro da fome” (SANTOS, 1999, 16). A emigração para o Brasil foi, portanto, uma fuga à fome e uma forma de ascender social e economicamente. Por esta razão, os madeirenses optam por levar os seus cônjuges, decisão que beneficiou e garantiu as terras do Sul do Brasil, que estavam quase à mercê dos Espanhóis com o Tratado de Madrid. Daqui resultou uma grande afluência de madeirenses para as regiões de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Maranhão e Rio de Janeiro. A chegada dos madeirenses ao Brasil foi difícil, tendo esta situação ficado conhecida como “escravatura branca” (VIEIRA, 2004a). Na tabela seguinte, apresentam-se os dados fornecidos por Alberto Vieira relativamente ao número de emigrantes para este destino, entre os anos de 1835 e 1860. [table id=111 /]   A par do Brasil, outro destino procurado pelos madeirenses foi o sul de África, nomeadamente a extensa colónia angolana, onde se regista presença madeirense desde 1664. Até ao séc. XIX, a emigração (imigração/emigração) para esta região não se fazia de forma acentuada, quando comparada com esse século e os seguintes. O processo de emigração, resultado da continuada crise económica e das várias calamidades naturais que afetaram a agricultura, especialmente a vinícola, levou os insulares a procurarem em massa, comparativamente aos séculos anteriores, outros destinos para obterem melhores condições de vida. Para além dos problemas acima enunciados, a Madeira sofreu ainda o impacto do conflito político entre liberais e absolutistas, tornando o arquipélago vulnerável e dando aso às investidas de ocupação por parte dos Ingleses, em 1801 e em 1810. A crise permitiu que as diferenças sociais aumentassem e as classes sociais se diferenciassem mais umas das outras, levando a que as classes mais baixas, famintas, procurassem outros rumos. A meio do século (1846 e 1847), a Madeira sofre nova crise, desta vez no cultivo da semilha, o meio de sustento dos pobres, levando a mais um surto de fome e, consequentemente, a nova vaga de emigração. As Antilhas britânicas foram um dos locais procurados pelos madeirenses para emigrar, até porque, na altura, os ingleses tinham falta de mão de obra para as suas plantações. Assim, os destinos de emigração mais frequentes dos madeirenses foram as Antilhas, Demerara, os países da América Central, o Brasil, o Havai e Angola. Nas tabelas seguintes, podemos observar o número de emigrantes distribuídos pelos vários países entre 1834 e 1847 (fig. 6) e pelas colónias britânicas entre 1843 e 1866 (fig. 7): [table id=112 /] [table id=113 /]   No outro lado do oceano, a colonização de Angola era um assunto premente, pelo que, em 1884, se fixaram nessa terra os primeiros 222 colonos saídos do porto do Funchal. Ainda no mesmo ano, chegariam mais 349 emigrantes e, até 1890, registaram-se mais de 704 indivíduos. Ainda no séc. XIX, outro destino procurado pelos madeirenses foi o Havai, que, na segunda metade da centúria, recebeu 400.000 emigrantes de todo o mundo. A emigração madeirense deveu-se em grande parte ao trabalho de Wilhem Hillebrand. Em 1978, este promoveu uns panfletos denominados “Breve notícia acerca das ilhas Sandwich – e das vantagens que elas oferecem à emigração que as procure”. Segundo Susana Caldeira, “Primeiro, foram os chineses, em 1852. A emigração portuguesa começou com o primeiro grupo de 120 madeirenses que chegaram lá [ao Havai] no dia 29 de setembro de 1878, a bordo do navio Priscilla, respondendo [ao apelo de] mão de obra [para as] plantações de açúcar”. A predominância dos madeirenses durou até ao início do séc. XX, e “o português, que foi ensinado, na universidade do Havai, até 1956 e, mesmo depois, por alguns tutores privados, ainda é falado por alguns descendentes, sendo que o sotaque e os termos utilizados podem denotar-se de origem madeirense” (CALDEIRA, 2011). Se, por um lado, a emigração madeirense se acentuou no séc. XIX em países da América Central e nas colónias ingleses, já no séc. XX os destinos emigratórios serão predominantemente o Brasil, Curaçau, a África do Sul e a Venezuela. No início do séc. XX, com as guerras mundiais à porta, a emigração viu-se fechada e será apenas a partir de 1940 que irá acentuar-se, consequência dos danos colaterais provocados pela Segunda Guerra Mundial. Neste período, o turismo diminuiu, assim como a exportação do vinho, o que fez agravar a situação económica na Ilha e aumentar a necessidade de saída dos madeirenses. Na fig. 8, podemos ver o número de emigrantes para a Venezuela e para o Brasil no período compreendido entre 1943 e 1954.   [table id=114 /]   No séc. XIX, apesar de muitos madeirenses terem saído da Madeira, muitos regressaram também; já no séc. XX, e segundo os censos 2011, a população de nacionalidade portuguesa residente na Madeira que já tinha residido no estrangeiro é de 18,2 %; a maior fatia corresponde aos que tinham emigrado para a Venezuela (37,1 %), seguindo-se os indivíduos que tinham estado no Reino Unido (17,5 %). A Madeira é, portanto, uma porta aberta para o mundo, para o fluxo de entradas e saídas de várias comunidades linguísticas e culturais, caracterizada por um contacto persistente e acentuado com outras comunidades linguísticas ao longo do tempo. Desta forma, é possível entender o contacto linguístico na Madeira como um facto que poderá estar na origem de vários fenómenos linguísticos variáveis, sobretudo a nível lexical, mas também fonético, morfológico e, porventura, sintático. Os produtos resultantes dos contactos etnolinguísticos no arquipélago da Madeira serão exemplificados a seguir.   Produtos linguísticos resultantes do contacto linguístico Os estrangeirismos correspondem a empréstimos, porque são termos importados de outras línguas, podendo ou não sofrer adaptações para se adequarem às características fonéticas e morfológicas da língua de acolhimento; surgem por necessidades denominativas e comunicativas. Um dos empréstimos mais usados e generalizados no arquipélago será, sem dúvida, o nome “semilha” (batata), empréstimo do espanhol “semilla” (semente), a partir do qual surgem as formas derivadas “semilheira” (de “semilha” + sufixo -eira), para designar a planta que dá a semilha, e “semilhal” (de “semilha” + sufixo -al), para denominar uma grande quantidade de semilhas. Património linguístico ligado à presença britânica No séc. XVII, uma considerável comunidade inglesa afirma-se na Madeira. Para tal contribuiu também a conjuntura favorável ao comércio colonial inglês, definida em 1663 por D. Carlos II, que lança o vinho madeirense como um importante produto do Atlântico. O vinho ganha hegemonia na cultura madeirense, substituindo o açúcar, tal como refere, em 1727, António Cordeiro, citado por Alberto Vieira: “a abundância de frutos já não é tanta, como nem é tanto açúcar, […] mas a principal de todas é a dos muitos, e excelentes vinhos” (VIEIRA, 2004a, 44). O vinho da Madeira ganha grande relevo e atrai investidores estrangeiros, nomeadamente Ingleses, à Ilha. Aliás, António Ribeiro Marques da Silva, falando da perspetiva de um estrangeiro, afirma que: “Hancock parece ter razão em referir o vinho Madeira como um dos mais importantes motivos da deslocação do comércio atlântico” (SILVA, 2007, 38). Nos séculos que se seguem ao ciclo do açúcar, a Madeira continua a receber imensos estrangeiros, na sua maioria Ingleses, que se fixaram na Ilha e que contribuíram significativamente para o comércio vinícola. Estas comunidades estrangeiras terão provavelmente começado a influenciar linguisticamente a comunidade madeirense. A língua inglesa é, assim, depois da portuguesa, a que é mais falada e a que detém mais prestígio na Ilha. Os elementos da comunidade britânica aí assentaram primeiro como comerciantes e, mais tarde, como naturalistas. No séc. XVIII, a Madeira era vista como um centro político e social em transformação, o que se deveu à presença de duas comunidades linguísticas diferentes. Aliás, a comunidade inglesa na Madeira contribuiu maioritariamente para o desenvolvimento da economia insular, desde o séc. XVII até ao séc. XX, tendo estabelecido uma organização conhecida como British Factory. A narrativa segundo a qual a descoberta da ilha da Madeira é tributária dos Ingleses, ou a lenda de Machim, reforça a ideia da ligação mítica e histórica à cultura anglicana, ideia que tem sido explorada sobretudo na literatura britânica. Alberto Gomes (1950) menciona que uma revista britânica sugere que a conservação da Cruz do túmulo de Anne d’Arfet e Robert Machim na capela da Ordem de Cristo em Machico poderá ser um sinal de que os madeirenses consentem na tese de que o descobrimento foi feito pelo casal inglês. Esta lenda poderá também explicar a forte adesão de Ingleses ao arquipélago. De acordo com David Hancock (2012), a comunidade inglesa fixada na Madeira no início do séc. XIX deveria rondar os 500 indivíduos, muitos deles a viverem nas suas quintas, próximas ao Funchal. Embora a comunidade britânica tivesse poucos membros, a sua influência na construção e no desenvolvimento da sociedade insular foi enorme. Na verdade, não foi só o vinho que os interessou. No séc. XIX, em 1850, apareceram numa exposição no Funchal uns bordados madeirenses que chamaram a atenção de Elisabeth Phelps. No mês de junho do mesmo ano, nos dias 29 e 30, o Cons. Silvestre Ribeiro promoveu os bordados numa feira com o objetivo de fomentar o comércio interno, feira que, de acordo com Luísa Clode (1968), foi visitada por 15.000 pessoas. Posteriormente, Elisabeth Phelps deu a conhecer o bordado madeirense aos Ingleses e, a partir 1854, deu-se início à produção de bordados em larga escala. Com o continuar dos anos, e apesar dos altos e baixos que a sua produção conheceu, pode considerar-se que, de um modo geral, houve um aumento significativo do número de bordadeiras e da sua produção, que se refletiu numa maior afluência de estrangeiros, em especial de Ingleses, ao Funchal para a compra do bordado, assim como na exportação. O património natural insular também resulta, em grande parte, da atividade científica conduzida por naturalistas britânicos que viveram na Ilha, tal como o Rev. Lowe, ou que nela permaneceram algum tempo, e.g., sir Joseph Banks, no séc. XVIII e, no séc. XIX, Morgan Lemann, James Yate Johnson, sir Dalton Hooker, entre outros, a fim de coletar dados que integram várias taxonomias científicas (botânica, fauna, geológica, etc.). Os Ingleses estiveram, assim, ligados à história socioeconómica da Madeira nas suas diferentes fases (açúcar, vinho, bordados e turismo). Logo no final do séc. XVII, a economia da Madeira beneficiou da sua integração no sistema comercial do Atlântico inglês, através do acordo conhecido como Lei da Navegação de 1660, usufruindo, posteriormente, do Tratado de Methuen. No entanto, é de salientar que, apesar da influência da comunidade inglesa na economia insular, os contactos com os ilhéus eram superficiais. Como afirma David Hancock “Interactions between strangers and natives […] were more restrained. […] The Portuguese had ‘a strong aversion’ to the British in particular, specially British Protestants, and the British held a similar view in reverse [As interações entre os estrangeiros e os nativos […] eram mais contidas. […] Os Portugueses tinham ‘uma forte aversão’ aos Britânicos em particular, especialmente aos protestantes britânicos, e os Britânicos tinha uma visão semelhante, simétrica]” (HANCOCK, 2009, 18). Destes tipos de contacto linguístico e intercultural há a registar vários produtos linguísticos, entre os quais regionalismos como “bambote” e “bamboteiro” (de “bum boat”). Aline Bazenga, João Adriano Ribeiro e Miguel Sequeira (2012) referem também o uso de etnónimos, tais como “inglês” e “britânico”, tanto no domínio da antroponímia como da toponímia. No que concerne ao primeiro caso, são de sublinhar os registos da alcunha “o inglês” em arquivos notoriais da Região; no caso dos topónimos, são de assinalar a antiga R. dos Ingleses, a igreja inglesa e o cemitério dos Ingleses. O etnónimo “inglês” também integra nomes de estabelecimentos comerciais, e.g., Botica Inglesa. Os patrónimos de figuras de prestígio da comunidade britânica insular foram também celebrados através do seu uso na toponímia regional. É o caso de Blandy (levada do Blandy), de Phelps (Lg. do Phelps) e de Murray (fontanário Carlos Murray, na freguesia do Monte, no Funchal). O legado da comunidade britânica contempla referências onomásticas de naturalistas britânicos nas descrições taxonómicas de plantas endógenas da ilha da Madeira, e.g. nomes de espécies, como Arachniodes webbiana (A. Braun) Schelpe, de Philip Barker Webb (1793-1854); Dryopteris aitoniana Pic. Serm., de William Aiton (1731-1793); Limonium lowei R. Jardim, M. Seq., Capelo, J.C. Costa & Rivas Mart.; Monanthes lowei (A. Paiva) P. Pérez & Acebes; Lotus loweanus Webb & Berthel; Peucedanum lowei (Coss.) Menezes; Scrophularia lowei Dalgaard; Phagnalon lowei DC.; Koeleria loweana Quintanar, Catalán & Castrov., todas dedicadas ao Rev. Thomas Lowe (1802-1874), naturalista britânico que viveu alguns anos na ilha da Madeira, Convolvulus massonii F. Dietr. e Cheirolophus massonianus (Lowe) A. Hansen & Sunding, ambas em nome de Francis Masson (1741-1805), e ainda Musschia wollastonii Lowe 1856, do mesmo autor, cujo naturalista celebrado é T. Vernon Wollaston (1822-1878). Influência do castelhano na variedade insular madeirense O arquipélago madeirense possui, ainda no séc. XXI, um grande número de emigrantes a residir na Venezuela. As segundas e terceiras gerações, já de nacionalidade venezuelana, quando regressam, esporádica ou definitivamente, à terra natal dos pais ou avós apenas falam castelhano. O bilinguismo é raro nesta comunidade, que, mesmo a residir no espaço insular, conserva a língua daquele país da América do Sul. Quem emigrou jovem fala, normalmente, português com muitas interferências castelhanas, mas o inverso também acontece, porque há quem opte pelo castelhano com, inevitavelmente, interferências portuguesas. De qualquer modo, sucede que, quando regressam para residir no arquipélago, formam comunidades, essencialmente familiares, mas também de vizinhança, mantendo tradições venezuelanas e conservando o idioma que falam entre si. Diz-se que o hábito madeirense de cozer milho terá origem venezuelana, mais precisamente na polenta; não será por acaso que muitas marcas de farinha de milho usadas neste prato madeirense têm nomes castelhanos. Estes “madeirenses venezuelanos” são reconhecidos e identificados pelos locais como “mira”, a exclamação castelhana usada para chamar a atenção de outrem. Congregando a comunidade, o Consulado da Venezuela joga um papel determinante na valorização da mesma, que inclui madeirenses casados com venezuelanos de outras origens que não a madeirense, havendo, portanto, outros contactos linguísticos. Esta influência castelhana é notória, e.g., nos nomes próprios de muitos madeirenses, sobretudo os de dupla nacionalidade, que se destacam no conjunto dos nomes próprios tipicamente portugueses dos madeirenses que não emigraram. Quando se ouvem nomes como “Melita”, “Reina”, “Estefani”, “Nancy”, “Juan” e “Juan Carlos”, reconhecem-se, sobretudo, lusodescendentes, cujos pais passaram por aquele país da América Latina. Para além disto, é na culinária que se destaca a ocorrência de vocábulos de origem castelhana; assim, a empanada, que se reencontra em restaurantes da ilha da Madeira, é um exemplo claro deste contacto linguístico motivado pela aquisição de novos hábitos culturais. Apesar do forte peso que tem, não se deverá, contudo, apenas à Venezuela a influência castelhana na variedade insular madeirense. Segundo Deolinda Macedo, tal influência remontará ao séc. XVII, aquando do domínio filipino; é uma convicção da autora, embora não exemplifique: “Em algumas regiões, nomeadamente, no norte, existem certos vocábulos que parecem acusar influência espanhola. O caso não deve parecer-nos muito estranho, porquanto é facto averiguado que durante o domínio filipino se foram estabelecer, na Madeira, várias famílias daquela nacionalidade. É natural, pois, que a estada dessas famílias na ilha tivesse deixado entre os seus habitantes alguns vestígios” (MACEDO, 1939, 3). Quando enuncia, e.g., “particularidades fonéticas”, a autora refere que “no norte, especialmente em S. Vicente, é vulgaríssima a pronúncia de tu e su para designar respetivamente os pronomes teu e seu ou tua e sua, o que denota certamente influência espanhol [sic]” (Id., Ibid., 14). No entanto, não fica bem demonstrada esta influência. Aliás, Helena Rebelo (2007), procurando influências do castelhano na variedade insular madeirense pela consulta de alguns vocabulários madeirenses, realça isso mesmo. O exemplo mais flagrante é o caso de “semilha”, que, comprovadamente, tem origem castelhana, mas pelo contacto, de novo, com a América Latina. Contudo, a presença de falantes de castelhano no arquipélago madeirense vai sendo, pontualmente, referida. Na narrativa “Prophetas” (1884), de Mariana Xavier da Silva, e.g., é mencionada a presença de um castelhano a viver no Porto Santo: “Um aventureiro espanhol servia-lhes de sacristão, e tocava todos os dias a campainha lançando pregão para a prática”; “servindo-lhes de porteiro o espanhol, que era fino e astuto, e muito dedicado aqueles impostores” (SILVA, 1884, 167-168). Esta presença não será, decerto, caso isolado e isso terá consequências na língua falada. Num dos textos de “populismos madeirenses”, o subintitulado “origens”, escreve Alberto Artur Sarmento: “A corrente de famílias estrangeiras que acudiu à Madeira pouca influência teve, a não ser a castelhana e depois mais durante o domínio em que foi estabelecido no Funchal o presídio com tropas vindas de Espanha. [...] Além dos nomes de origem algarvia, grande número de vocábulos dos árabes e castelhanos andam de mistura com termos corrompidos do inglês que atropelam os primitivos numa contínua variedade de palavras introduzidas, especialmente no Funchal, coração de todo o comércio, e onde o negociante de bordo ou bomboteiro tem uma linguagem muito sua própria” (SARMENTO, 1914). Esta quase ausência de dados, como se não houvesse grandes relações entre o castelhano e a variedade insular, deixa, no entanto, sérias dúvidas. Sabe-se que os arquipélagos da Madeira e das Canárias mantiveram desde muito cedo contactos estreitos, existindo, inclusivamente, famílias mistas; talvez por isso, gerou-se o hábito de passar férias no outro arquipélago, quer para madeirenses, quer para canários. Os investigadores do arquipélago espanhol procuram atestar influências recíprocas entre o português e o castelhano falado nas ilhas. Além disso, residirá no arquipélago da Madeira um número considerável de galegos, que se foram misturando com a população. Terá sucedido o mesmo com alguns gibraltinos, espanhóis, bolivianos, peruanos, mexicanos, etc. Mas o que se conhece, no começo do séc. XXI, sobre os contactos linguísticos entre o castelhano e o português falado no arquipélago madeirense é muito pouco; a deteção dos vestígios linguísticos de uma influência castelhana carece de trabalho de campo, faltando aprofundar a investigação no terreno.   A presença árabe na Madeira A presença árabe no arquipélago da Madeira deve-se, sobretudo, à contribuição dos madeirenses para a conquista e proteção das praças marroquinas, assim como ao desenvolvimento das relações comerciais e culturais entre as ilhas atlânticas, neste caso entre a Madeira e as Canárias, como resultado principalmente da produção açucareira. Alberto Artur Sarmento, no seu artigo acerca dos mouros na Madeira transcrito no Elucidário Madeirense, afirma: “O mouro era mais trabalhador do que o escravo da Guiné e da Mina, por isso a preferência dos senhores das terras em importá-lo para as suas fazendas de cultivo. Este comércio escandaloso […] originou o clamor do chefe dos mouros que lamenta em carta a D. Manuel, o que fazia Azambuja, apanhando a torto e a direito e de todas as classes, para enviar de contrato aos capitães da Madeira. Os mouros formaram núcleos importantes, reunindo-se em grupo ou bairro à parte, como o atesta a Mouraria, uma das ruas mais antigas do Funchal. […] Tiveram grande comércio nas vilas, especialmente em Ponta do Sol e Santa Cruz” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Acrescenta ainda que foi grande o número de mouros existentes no arquipélago da Madeira, nos primitivos tempos da colonização, nomeadamente no Funchal, na Ponta do Sol, no Curral das Freiras e em Machico. Os escravos mouros surgem das várias expedições guerreiras dos madeirenses a Marrocos e este grupo servil teve grande importância na sociedade madeirense no séc. XV. No Elucidário Madeirense, pode ler-se: “Em Santa Cruz, mostrava-se ainda há anos um retábulo existente na igreja paroquial, onde figuravam escravos mouros usando um pequeno turbante afunilado, com uma ponta caída, de que derivaram a carapuça do vilão e a toalhinha pendente da cabeça, antigos trajes característicos da camponesa da Madeira” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Sobre a carapuça madeirense, Wuellerstorf-Urbair, citado por Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, afirmava em 1857: “O capuz mourisco também se modificou, desfigurando-se em gorra semelhante ao barrete frígio e desceu aos ombros em tapa-nuca; reduziu-se depois a carapuça limitada à cabeça, elevada em esboço de ponta cónica no cocuruto e sobreposta a um curto pano de linho, contra o sol, descaído até o pescoço; aguçou em apêndice a parte superior retesada em rabo-de-gato, adelgaçando para cima até acabar em ponta. Em sua forma atual não oferece abrigo nem contra o frio nem contra o calor; não parece mais do que um fragmento de touca mourisca” (PEREIRA, 1989, II, 569). Acrescenta que os habitantes das costas africanas, com quem os primeiros colonos madeirenses tiveram estreitas relações, usavam carapuças semelhantes, as quais eram à maneira de turbantes, circundadas dum pano branco fino, referindo também a igreja de Santa Cruz, onde apareciam alguns escravos árabes com estas carapuças (Id., Ibid.). Voltando ao Elucidário Madeirense, na transcrição do texto de Sarmento, o autor explicita: “Dos mouros, a dolência dos cantares, mas a dança repisada é movimento de negro. Dos mouros as lengas-lengas serranas, os populares: lengi lengi o nevoeiro corriqueiro, a formiga que o seu pé prende” “Entre as brumas, princesas encantadas, as histórias de palácios e riquezas entesouradas, ladrões e varas de condão, são influências e assuntos do povo, migrados nesta corrente de longe subordinada” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Francisco Lacerda, na sua enumeração de influências mouras no arquipélago, também regista os contos de princesas mouras encantadas, bem como os tapetes mágicos, as varinhas de condão e as lengalengas (lingue-lingue). Afirma também que certos sítios têm na sua toponímia reminiscências mouriscas, como a Fajã da Moura (Serra de Água) e a Cova do Mouro (Monte), acrescentando que “aonde hoje se encontra a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, no Faial, existiu uma pequena mesquita, com entrada disfarçada, aonde os mouros secretamente se reuniam” (LACERDA, 1993, 102). O autor menciona ainda que os corsários mouros rondavam os mares do arquipélago e que, muitas vezes, assaltavam povoações, como o Caniçal e a Fajã dos Padres (no Campanário), e salienta que o Porto Santo foi assolado muitas vezes, ficando em escombros e a ilha quase desabitada. Refere ainda a expressão “vai-te p’ra Argel” como praga popular que relembra o saque e cativeiro em terras da moirama. Ao fazer o estudo das tradições orais populares, Lacerda documenta o romance de conde Claro (ou Claros), variante de D. Carlos de Mont’Alvar, recolhido no Porto Santo, no qual podemos encontrar uma referência aos mouros ou moiros: “– Aonde vais tu, conde Claro,/que assim vais tão arreiado?/ – Se eu venho muito arreiado,/É p’ra com moiros brigar” (LACERDA, 1993, 24). A forma “arreiado”, provavelmente de “arrear”, significa “pôr os arreios, peças do aparelho das cavalgaduras” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Nas cantigas, regista uma referência à moirama nos seguintes versos: “Fui cativo p’ra moirama,/pelo triste azar da guerra;/que por mim moneta desse,/não houve perro nem perra [?]” (LACERDA, 1993, 62). “Moirama” ou “mourama”, “terra de muçulmanos” e “os mouros”; “moneta”, possivelmente “moeda” (de monetário); “perro” e “perra”, respetivamente “cão” e “cadela”, “pessoa vil, canalha, patife, sacana” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). O autor documenta ainda, na parte denominada “Cantigas d’amor”, a composição “Pretidão de amor”, onde também há uma clara referência aos mouros: “Passei pela tua porta/Pedi-te água, não me deste./Tu passaste pela minha/Bebeste quanta quiseste./Nem os moiros da moirama/Faziam o que tu fizeste!” (LACERDA, 1993, 153). Outra relação entre a ilha da Madeira, o Norte de África e Portugal diz respeito à lenda da ilha de Arguim, que Lacerda regista da seguinte forma: “Em certas tardes brumosas, aparece, ao pôr do sol, para os lados do Porto Santo uma ilha, também envolta em bruma, onde o Desejado (Rei D. Sebastião) dorme e espera, desde a desastrosa jornada de Alcácer-Quibir. Espera, até que uma alma forte consiga abordar a misteriosa ilha de Arguim” (LACERDA, 1993, 80). Arguim é uma ilha na baía de Arguim, na Mauritânia, onde teria sido construída a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, por ordem do infante D. Henrique, senhorio do arquipélago da Madeira. Foi um importante centro de comércio, estabelecendo ligações com Safim, depois Marrocos. O Rei D. Sebastião, derrotado pelos mouros na batalha de Alcácer-Quibir, teria fugido para uma ilha no oceano Atlântico, que seria Arguim; na rota para esse lugar, teria passado pela ilha da Madeira, tocando o cabo do Garajau, e na rocha teria espetado a sua espada, que aí ficou encantada, a aguardar que um dia ele voltasse para a conquista do território português que, entretanto, tinha sido submetido aos Filipes de Castela. Outra versão da lenda diz que o Rei enterrou a sua espada na encosta mais árida e escarpada da Penha de Águia, no Porto da Cruz. Marco Livramento refere ainda a lenda da construção do templo a S.to António, na freguesia de Santo António da Serra (concelho de Santa Cruz), que, curiosamente, teve como interlocutor preferido um escravo mouro (Lendas e mitos fundadores). A presença árabe parece estar patente na música e nas tradições populares madeirenses, e.g. na mourisca, como o próprio nome indica. Lacerda, a propósito da presença moura no arquipélago da Madeira, diz que mourisca é o nome de uma dança que perdeu todo o seu carácter mouro (LACERDA, 1993, 103). Carlos Santos afirma tratar-se de uma canção que se popularizou, adquirindo variantes de freguesia para freguesia, sendo cantada sobretudo na cultura do trigo do trabalhador mouro ou madeirense (SANTOS, 1937, 39). No entanto, não há nenhuma certeza sobre a herança árabe no folclore madeirense, i.e., não há dados concretos que provém esta influência. Carlos Santos refere que “A canção popular revela fielmente a vida e os trabalhos do homem rural, as alegrias e dores, esperanças e incertezas, o amor e a fé. As ilhas da Madeira e Porto Santo, colonizadas por gentes vindas do Norte ao Algarve de Portugal continental, assim como escravos mouros, negros e outros, naturalmente reflete o modo de ser, pensar, agir e reagir, a mentalidade dos povos que as precederam […]. A influência árabe, que mais do que qualquer outra se manifesta no nosso povo, não é já árabe, senão portuguesa na sua origem, para nós. Essencialmente portugueses são a nossa gente e o nosso carácter” (Id., Ibid., 8). O autor escreve: “Igualmente não é crível que as primeiras gerações madeirenses fossem todas puras e assimilassem unicamente os hábitos e costumes dos seus progenitores. […] Não esqueçamos, igualmente, que aos escravos nunca foi proibido dançar e cantar” (Id., Ibid., 39), tal como aconteceu no Brasil. No entanto, isto não invalida que haja traços de música continental portuguesa, i.e., parecenças entre a música da Madeira e a do Minho, do Alentejo e do Algarve. Mas, segundo o autor, o estilo é madeirense, produto de uma miscelânea em que prepondera o árabe; e questiona: “E se no Minho há muitas canções alegres, porque haviam de ficar na Madeira só as monótonas?” (Id., Ibid., 40-41), para concluir que, na Madeira, “tanto nas populações ribeirinhas como nas serranas usam-se as mesmas músicas – o charamba, a mourisca e o bailinho. […] Se o estilo preponderante e generalizado mais se aproxima do mouro, segue-se que eles o deixaram por cá como aconteceu em várias províncias continentais. […] Há de haver de tudo um pouco; mas o estilo musical, não sendo o característico do continente, convida a uma reflexão demorada. A sua pobreza melódica aproxima-se da música árabe tanto quanto se afasta das ricas melodias portuguesas” (Id., Ibid., 44-45). Posto isto, o charamba, a canção mais conhecida no folclore madeirense, possivelmente deixada pelos árabes, foi adotada com variação de freguesia para freguesia. Com um ritmo arrastado e sentimental que revela a alma do povo madeirense, é o género musical mais antigo da tradição popular ou rural. Na Madeira é cantado, enquanto nos Açores é uma dança. Para Carlos Santos, o charamba parece traduzir o lamento de escravo ou ser uma melodia árabe; os camponeses madeirenses identificaram-se com esta melodia, devido à sua dura vida rural. O autor observa que, sempre acompanhado com a viola de arame, o charamba entrou no ouvido dos madeirenses, como provam as seguintes quadras: “O charamba pelo meio/Toda a vida m’agradou/Depois que o charamba veio/Outra moda não se usou” e “O Charamba foi às lapas/A mulher aos caranguejos/A filha ficou em casa/A dar abraços e beijos” (Id., Ibid., 49). Maria de Lurdes de Oliveira Monteiro, ao descrever o baile da meia-volta do Porto Santo, aponta as “características irrefragáveis dos árabes, com os quais a ilha, durante séculos, teve intercâmbio populacional: [...] não há ninguém que, vendo estas rodas e meneios lentos, em noites de luar e ouvindo as toadas melancólicas e trinadas que os acompanham não chegue instantaneamente a essa conclusão, tão grande é a semelhança” (MONTEIRO, 1945, 48). Adalberto Alves (1999) afirma que grande parte dos instrumentos musicais usados em Portugal, como o violino, a guitarra, o alaúde, a gaita, o pandeiro e o adufe, deriva diretamente dos instrumentos árabes. Jorge Torres e Rui Camacho (2015), a propósito dos instrumentos musicais populares, citam Gaspar Frutuoso, que, por volta de 1590, na descrição da ilha da Madeira, referindo-se à romaria de N.ª Sr.ª do Faial, diz congregar mais de 8000 pessoas, “que se deixam estar dois, três e mais dias em Nossa Senhora […] e juntos fazem muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, flautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 1873, 99). Os autores não nos dão nenhuma indicação sobre o que seria(m) este(s) instrumento(s) denominado(s) rabis, talvez por ser(em) desconhecido(s). Nem Torres e Camacho (2015) nem Torres (2015) fazem qualquer referência à influência árabe, pelo facto de não existirem dados que a comprovem, como já referido. Sobre o violino popular, o grupo de folclore do Porto Santo escreve: “Mais conhecido por rebeca foi sempre um acompanhante inseparável das danças e cantares mais característicos e tradicionais do Porto Santo, como o Baile da Meia Volta e Ladrão. Assim, pode-se concluir que o seu aparecimento no Porto Santo esteja ligado à chegada dos mouros a esta ilha, tal como as danças referidas. Posteriormente, este instrumento passou a acompanhar todas as festas populares, tanto religiosas como profanas” (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1999, 10). Relativamente à influência árabe na alimentação madeirense, os autores do Elucidário Madeirense citam Sarmento, que chama a atenção para o cuscuz dos mouros, “massa granulada de farinha de trigo, tão apreciada pelas classes pobres e que só a comem nas ocasiões solenes, com um naco de carne de porco, pelos batizados e casamentos, não faltando o ramo de segurelha e coentro que encima o prato e o aromatiza” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408-409). A palavra “cuscuz” (do ár. “kuskus”) surge em Luís de Sousa com a grafia “cuscus”, definida como “produto de confeção mourisca, fabricado principalmente em Marrocos e na Madeira. Notas. I. Z.” (SOUSA, 1950, 57), que se utiliza geralmente como arroz; com efeito, na Madeira, o trigo, convertido em farinha, além de ser usado para fazer pão e doces, também é usado para fazer cuscuz. Veríssimo refere que, no Convento da Encarnação do Funchal, “No Dia de Jesus ou nos Reis nunca faltava o picado de carneiro com cuscuz” (VERÍSSIMO, 1987, 39). O trigo era empregue em pão, bolos, doces, empadas, pastéis e cuscuz. No ano de 1769, e.g., as freiras consumiram 6,5 alqueires de cuscuz (Id., Ibid., 40). O Visconde do Porto da Cruz escreve: “O cuscus – parece que foi introduzido na culinária madeirense pelos escravos mouros do tempo dos povoadores – é dos pratos mais divulgados”. Diz-nos que há dois pratos: “o cuscus vulgar e o cuscus rico. O primeiro come-se só com água, sal, um raminho de segurelha, manteiga e serve-se quente e o segundo é feito do mesmo modo mas come-se com passas de uva, azeitonas, pedaços de chouriço, de carne de porco, de carne de galinha e até conservas de pepino, couve-flor, etc.” (PORTO DA CRUZ, 1963, 43). Lacerda nota que o cuscuz é “receita e uso deixado pelos mouros, muito usado nos conventos e entre seculares, nos casamentos e batizados” (LACERDA, 1993, 96); Zita Cardoso menciona que o cuscuz é servido como arroz, especialmente na quadra do Natal e na Páscoa, com pratos de carne: “Trazido do Norte de África, depois muito usado na Madeira e Porto Santo, foi alimento dos pobres muito vulgarizado na Ponta do Sol, Ponta do Pargo e Calheta. Foi também manjar senhorial. Daí haver o cuscuz rico, quando adicionado com pedaços de carne de porco, vaca, galinha, chouriço, passas, legumes e azeitonas em conserva” (CARDOSO, 1994, 134). O cuscuz é característico da zona oeste da Madeira, mas a tradição de fazer e cozinhar cuscuz não era desconhecida na parte leste da ilha, onde, como já se referiu, também houve uma importante presença moura. Élvio Sousa mostra que o cuscuz constava do receituário tradicional das cozinhas dos solares da Vila de Machico, ou seja, o seu fabrico e consumo seria frequente apenas nas casas abastadas, ao contrário do que acontecia noutras partes da Ilha (em que o seu uso era generalizado); talvez tenha sido por isso que desapareceu da parte leste da Ilha. Normalmente, era um prato confecionado em dezembro, antecedendo a matança do porco. A Revista Folclore informa que o cuscuz de trigo, na alimentação tradicional madeirense de São Vicente, era utilizado todo o ano, mas principalmente entre novembro e junho, porque se cozinhava com linguiça de porco e esta era feita com a matança do porco (GRUPO DE FOLCLORE DA CASA DO POVO DE SÃO VICENTE, 1998, 31). Segundo o Elucidário Madeirense, os habitantes da ilha do Porto Santo dão o nome de escarpiada ao pão de fina espessura feito com farinha de milho moída em moinho de mão ou de vento, sem fermento, que só terá sobrevivido nessa ilha. A massa do pão, achatada e muito fino, é cozida numa pedra de barro (o caco), untada com azeite ou banha de porco, sendo voltada de um lado e do outro (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1998, 13). Parece tratar-se de um pão de origem árabe, característico do Porto Santo, onde a influência moura teria sido maior; contudo, segundo Alberto Vieira (2004a), consumia-se escarpiada, no séc. XVIII, no Convento da Encarnação, no Funchal. Alberto Vieira, em “A mesa e a cozinha na história madeirense” (2004b), afirma que o cuscuz, a escarpiada e o bolo do caco terão origem no Norte de África, devido ao contacto entre as duas áreas geográficas e aos escravos mouros; a escarpiada ou escrapiada teria sido introduzida no Porto Santo pelos árabes; igualmente de origem árabe será, como já se disse, o bolo do caco, pão elaborado à base de farinha de trigo, podendo levar batata-doce para ficar mais fofo e doce, tendo igualmente um aspeto achatado e de bordas arredondadas. O bolo do caco deve o nome ao facto de ser cozido a lenha, numa pedra de basalto, denominada caco de pedra, colocada sobre o lar. A presença árabe no Arquipélago da Madeira também passa pela influência berbere dos escravos guanches das Canárias. Segundo o Elucidário Madeirense, o gofe ou gófio, papa que se fazia no Porto Santo com cevada moída depois de torrada, terá sido introduzido no arquipélago no séc. XV pelos guanches, oriundos de Gran Canária, de La Palma, de Tenerife e de La Gomera (SILVA e MENESES, 1998, II, 92-93). Em Ilhas de Zargo, Eduardo Pereira informa que ainda se fabricava gófio no Porto Santo, mas em diminuta quantidade, somente para uso particular na alimentação de crianças, débeis e doentes (PEREIRA, 1989 II, 580). Destaque-se ainda a tanarifa ou abóbora moira, também conhecida por moganga com a variante boganga/o, que parece ser simultaneamente de influência canária e moura. Trata-se de uma abóbora branca que, na Madeira, serve sobretudo para fazer sopa. Os vocábulos “tanarifa” e “abóbora moira” apresentam pouca vitalidade no concelho do Funchal e na zona leste da ilha, enquanto no concelho da Ponta do Sol e Calheta (zona oeste) parecem ser muito conhecidos. O termo “tanarifa” surge em Fernando Augusto Silva (1950), em Luís de Sousa (1950), em Antonino Pestana (1970) e em Marques da Silva (2013) como sinónimo de “abóbora moira”. Helena Rebelo (2007) refere a possível origem espanhola ou canária do termo, também registado como “tenerifa” por Luís de Sousa (1950). J. M. Barcelos (2016, 392), além de registar este termo como “abóbora, o m. q. boganga/moganga”, explica que a tanarifa também é conhecida como “abóbora de Tenerife”, indicando que “Tanarife era forma antiga de Tenerife, de onde terão vindo algumas dessas espécies de legumes, em caixas de madeira, nas quais vinha escrito o nome dessa ilha das Canárias”. O estudo destas palavras e coisas da cultura madeirense mostra-nos a herança das inter-relações históricas, linguísticas e etnográficas, cuja presença se prolongou na cultura madeirense. O francesismo linguístico na realidade insular: o regionalismo “tratuário”/“trotoario” Contrariamente às situações de contacto já referidas, que remetem para a presença de comunidades linguísticas e culturais distintas no mesmo espaço insular, o contacto do português falado na Madeira com o francês pode ser visto como sendo à distância, uma vez que não pressupõe a presença de uma comunidade francesa apreciável. A influência francesa no léxico regional deve-se, tal como ocorre com a variedade padrão do português, ao facto de ser grande o prestígio da cultura francesa em geral no final do séc. XVIII e durante o séc. XIX. Esta situação, de tipo unidirecional (no sentido do francês para o português), difere, e.g., da que caracteriza o contacto com o espanhol, sobretudo nas variedades das ilhas Canárias, as quais integram um número considerável de portuguesismos, sendo por este motivo considerada uma situação de contacto bidireccional A terceira fonte em número de vocábulos no português é o francês, que, durante séculos, primeiro na Idade Média, e mais tarde, nos sécs. XVIII e especialmente XIX, foi a língua de cultura da Europa. Muitas das palavras de origem francesa recolhidas nos dicionários tornaram-se de uso culto, literário, sendo outras arcaísmos; contudo, uma parte apreciável continuou a ser utilizada, integrando-se na linguagem diária portuguesa, “abajur”, “afazeres”, “agrafo”/“agrafar”, “berma”, “betão”, “creche”, “écran”, “ancestral”, “apartamento”, “assassinato”, “avenida”, “banal”, “bicicleta”, “bobina”, “boné”, “cabine”, “cabotagem”, “camuflagem”, “chance”, “conduta”, “constatar”, “crachá”, “departamento”, “detalhe”, “eclosão”, “elite”, “embalagem”, “emoção”, “evoluir”, “fetiche”, “governante”, “greve”, “maquete”, “restaurante”, “revanche”, “revoltante”, “silhueta”, “sabotagem”, “vitrine”, etc. Algumas foram integradas no português sem alterações (“fantoche”), outras adaptaram-se às propriedades morfológicas e fonológicas do português, obedecendo também a alguns ajustes de tipo gráfico (“chauffeur”>“chofer”). Este processo de empréstimo de palavras a outras línguas pode ocorrer com alteração de propriedades gramaticais, e.g., o género, como, na passagem do francês para o português, em: “une robe”>“um robe”; “une envelope”>“um envelope”; “le courage”>“a coragem” (VILLALVA, 2008). A variedade urbana insular (Funchal) integra no seu léxico a palavra “tratuário”, que tem a sua origem no termo francês “trottoir”, nome masculino derivado do verbo “trotter” (de *“trotton”>“trotten”, correr , forma intensiva de “treten”, dar um passo, andar). Palavra atestada nesta língua desde o séc. XVI, destaca-se ainda, na sua etimologia, o uso da expressão “être sur le trottoir” (1577), com o significado ser tema de conversa; “se mettre sur le trottoir”, com o sentido figurado de produzir-se, mostrar-se (1592); o termo designa a pista na qual trotam cavalos (1660). A referência a passeio, ou “chemin élevé le long des quais et des ponts pour les gens qui vont à pied [percurso elevado, ao longo dos cais e das pontes, destinado aos transeuntes] ”, surge já no séc. XVIII (1782) (REY, 2005). Do ponto de vista das suas propriedades semânticas, integra-se, enquanto nome locativo, na categoria de objetos dimensionais de superfícies de duas dimensões; nesta categoria, pertence à classe dos nomes de passagem, caracterizados pelas correlações com deslocação, ao lado de uma via urbana, no domínio da vida quotidiana (LE PESANT, 2000). “Tratuário” aparece, assim, no léxico regional madeirense, variedade do PE, entre peregrina e empréstimo, acompanhada de uma outra, “trotoário” (como em O Amor Que Purifica e Trotoário Azul, Fotonovelas Feitas na Ilha da Madeira). Estas duas formas gráficas revelam opções de adaptação distintas: a primeira procura conformar-se à fonologia do português e a uma das suas propriedades (redução do vocalismo átono), dando conta, no seu radical *trat-, da realização da vogal central, média-alta (VELOSO, 2012) em posição pretónica, afastando-se da representação gráfica da palavra francesa; já na segunda, reconhece-se o radical nominal trot- (de “trote”, nome masculino), com diferentes realizações fonéticas nas duas línguas em relação. Ambas opções recebem, através da vogal final -o, índice temático com valor de género (masculino), de acordo com as regras morfológicas do português. De notar que os sufixos -ário e -oir, português e francês, respetivamente, têm a mesma origem latina (-arius e -orium), sendo utilizados na formação de nomes de agente, com valores instrumental e locativo, mas com propriedades morfológicas distintas: o primeiro anexa-se a radicais nominais, o segundo a radicais verbais. “Tratuário” e “trotoário”, configuram-se então como hibridismos (CUNHA e CINTRA, 1984, 115). Palavras não registadas nos vocabulários regionais de referência, não é possível datar a sua entrada no léxico regional. No entanto, atendendo à data em que surgem atestadas no léxico de origem, é provável que o momento em que passaram a ser utilizadas na comunidade insular se situe nos finais do séc. XIX, altura em que se procede à edificação e calcetamento da praça do Rossio, em Lisboa, em que surge a calçada-mosaico e em que, “nas ilhas, o seixo rolado em abundância floresce num tratuário urbano para os peões” (MATOS, 2014), época coincidente com a do francesismo – iniciado a partir dos meados do séc. XVIII até aproximadamente à Segunda Guerra Mundial, período marcado pela influência cultural de França em vários aspetos da vida portuguesa (literatura, política, ideias) e também na língua, em diversas componentes do seu sistema, como refere Paul Teyssier (1994).     Catarina Andrade Aline Bazenga Helena Rebelo Naidea Nunes     artigos relacionados: cintra, luís filipe lindley gramáticas provérbios e outros ditos populares regionalismos madeirenses  

Linguística

museus

No arquipélago da Madeira, e particularmente na cidade do Funchal, os museus desenvolveram-se como resultado da investigação e da constituição de coleções científicas, saídas do espírito iluminista dos finais do séc. XVIII. A sua posição estratégica, entre os circuitos do Velho Mundo e os seus impérios coloniais, nas rotas de atravessamento do Atlântico fez com que se iniciassem investidas do domínio científico, sobretudo no âmbito das ciências naturais. Charles Darwin não esteve na Madeira, mas mandou lá um discípulo e incluiu várias espécies madeirenses nos seus trabalhos científicos. James Cook, por sua vez, esteve no arquipélago à procura de raridades botânicas, iniciado que estava na Europa um pensamento sistemático de cariz científico para conhecer a fauna e a flora. Do estudo e catalogação da natureza, partiu-se rapidamente para a sua recriação, procurando-se, num espaço confinado, reproduzi-la a partir do trabalho do homem. Nasciam assim, e tornavam-se cada vez mais comuns, os jardins botânicos. Já Hans Sloane (1660-1753), fundador do Museu Britânico, esteve na Madeira a caminho de expedições às Antilhas Inglesas. As expedições científicas tinham por objetivo a constituição de coleções, como são os casos do Museu Britânico, dos Kew Gardens, da Universidade de Cambridge e do Museu de História Natural de Paris. A Madeira funcionou muitas vezes como laboratório de experimentação das técnicas de estudo e recolha que foram aplicadas nas viagens feitas no Atlântico, no Índico e no Pacífico. Serviu também o arquipélago de espaço de aclimatação de plantas entre os hemisférios Sul e Norte, existindo até, desde finais do séc. XVIII, estudos para a criação de jardins com esse propósito. Até cerca de 1828, funcionou, na zona do Monte, um primeiro viveiro de plantas. Em 1850, o governador civil da Madeira, José Silvestre Ribeiro, lançou a ideia da criação de um gabinete de história natural, afirmando: “tomei sobre mim o empenho de dar começo ao estabelecimento de um museu, na cidade do Funchal, deixando ao tempo, ao zelo dos que me substituírem e à solicitude do ilustrado Governo de Sua Majestade e seu progressivo desenvolvimento. Em todos os países cultos, a fundação de Museus tem merecido aos governantes a mais desvelada atenção. É que estas instituições são livros abertos aos olhos da inteligência popular e o melhor meio de cultura científica e social” (SILVA, 2002, 72). Neste contexto, chegaram mesmo a ser disponibilizadas algumas salas do palácio de São Lourenço para a instalação provisória do museu, que acabou por ser desmontado com a saída do governador. Em 1852, Frederico Welwitsch propôs a criação de um jardim de aclimatação do Funchal. Uma recolha realizada na Madeira foi depois entregue ao herbário da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Em 1854, o barão de Castelo de Paiva desenvolvia na Madeira trabalhos de recolha científica, que resultou na doação de um herbário da Madeira e Porto Santo à Real Academia das Ciências. Já o documento elaborado por Frederico Welwitsch, sob o título Aforismos acerca da Fundação de Jardins de Aclimatação na Ilha da Madeira e em Angola, na África Austro-Ocidental, e entregue à Casa Real refere curiosamente que a existência de um bem organizado jardim, povoado com as mais vistosas produções da flora de todas as zonas, havia forçosamente de chamar para ali um avultado número de viajantes curiosos e aumentar consideravelmente a já não pequena concorrência de doentes, convidando uns e outros a uma maior demora naquela Ilha dos encantos: “parece a criação de um jardim de aclimatação, com as componentes modificações para ao mesmo tempo servir de passeio público, uma das mais eficazes providências que o governo de Sua Majestade atualmente podia dar para aquela Ilha, a fim de mitigar algum tempo tanto as tristes consequências da devastadora epífita que lá reina, bem como para evitar a futura repetição de semelhantes desastres, que mais cedo ou mais tarde sempre se deverá recear, se os madeirenses continuarem a basear exclusivamente, como até agora, todas as suas esperanças agrícolas sobre um só género de cultura” (VIEIRA, 1985, 102). Assim, ao longo do séc. XIX, foi-se acumulando experiência científica no ramo das ciências da natureza, transformando-se a Madeira num ponto estratégico no quadro da exploração mundial. Para além disso, a presença assídua da Madeira na rota das campanhas oceanográficas do príncipe Alberto do Mónaco, entre 1879 e 1912, parece ter também inspirado a atenção dada ao mar por D. Carlos I, Rei de Portugal. O padre alemão Ernesto João Schmitz, nascido em Rheydt, vice-reitor do Seminário do Funchal, fundou em 1882 um Museu de História Natural, conhecido como Museu do Seminário, reunindo, na sua qualidade de especialista em ornitologia, uma coleção notável da fauna madeirense. As coleções primeiramente organizadas por Schmitz foram depois completadas e aprofundadas por outros especialistas. Em 1908, o Museu passa a ser dirigido pelo então reitor do Seminário, Cón. Manuel Agostinho Barreto. Com a implantação da república, o Museu foi desmontado e transferido para casa própria no Lg. de Ribeiro Real. Esteve depois um tempo desativado até ter voltado, na déc. de 40 do séc. XX, ao Seminário da Encarnação, integrado, já na déc. de 80 do mesmo século, no Jardim Botânico do Funchal. Como são exemplo outras unidades surgidas com a República, foram criados pelo país museus escolares, como é o caso do Museu do Liceu do Funchal, a partir de coleções ligadas às ciências da natureza adquiridas em 1913 e 1914 por Alberto Artur Sarmento. A primeira experiência museológica fora das ciências da natureza que revela uma preocupação com a proteção do património construído é da Câmara Municipal do Funchal (CMF), em 1915, com o projeto de constituir um museu arqueológico no Convento de Santa Clara do Funchal, reunindo elementos arquitetónicos de demolições de edifícios históricos, como as armas do Convento de São Francisco do Funchal e várias inscrições epigráficas. Foi ainda revelada a intenção de esse Museu ser o fiel depositário do próprio espólio artístico do Convento de Santa Clara, que se encontrava praticamente ao abandono. No entanto, problemas relativos à tutela e direitos de outras instituições sobre o Convento não permitiram dar continuidade ao projeto. Outra ideia sem continuidade efetiva foi a do museu oceanográfico que a CMF, em 1920, queria instalar no edifício da Santa Casa da Misericórdia. Por deliberação da CMF, foi criado, em 1929, o Museu de Ciências Naturais, sob proposta de Adolfo César de Noronha (nomeado diretor da Biblioteca Municipal em 1928), só abrindo ao público em 1933, no palácio de São Pedro, antiga residência dos condes Carvalhal. Nasceu com a designação Museu Regional da Madeira, anexo à Biblioteca Municipal, tendo-se achado pertinente a existência de secções de arqueologia, arte e etnografia. A inexistência de outras unidades museológicas que desenvolvessem outros aspetos da história do arquipélago justificavam a presença das secções referidas. Em visita à instituição, Manuel Cayola Zagallo refere a sua insuficiência no que concerne à designação de “museu regional”, visto ser pouco abrangente noutros campos do conhecimento para além das ciências da natureza, afirmando a necessidade de ser rebatizado como Museu de História Natural, a sua verdadeira vocação. Por sugestão de Adão Nunes, em 1957, foi possível concretizar, no rés do chão do edifício, um aquário de água salgada, já com orientação técnica de Günther E. Maul, onde se apresentaram os mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira. Günther E. Maul, diretor do Museu entre 1943 e 1981, foi desenvolvendo a apresentação de animais montados, encontrando-se, em 2015, acessíveis ao público cerca de 78 espécies de peixe, 247 aves, 14 mamíferos terrestres e marítimos, 3 répteis marinhos, 152 insetos e outros invertebrados, assim como uma importante coleção de rochas e minerais do arquipélago, tais como fósseis marinhos do Porto Santo. Em 2015, as coleções atingem cerca de 37.500 exemplares. Permanecendo praticamente intacto desde a sua inauguração, este museu passou a ser, em termos de conceção museográfica, e apesar da reorganização do seu programa científico e orientação museológica, um importante exemplo da história da museologia portuguesa, mantendo o seu cariz oitocentista. É também de destacar o facto de ter sempre desenvolvido uma vertente de investigação científica, publicando desde 1945 o Boletim do Museu Municipal do Funchal e ainda, de forma não periódica, a revista Bocagiana, com a inscrição de novas espécies para a ciência dos vários arquipélagos atlânticos. A manutenção, desde o nascimento do Museu, de um sistema de permutas deu origem a uma importante biblioteca especializada. O Museu desenvolveu ainda uma importante ação educativa, com atividades ligadas à educação ambiental e divulgação científica que são desenvolvidas dentro do espaço museológico dos seus serviços de educação, mas também no exterior. O Museu seria integrado no departamento de ciência da CMF, assim como na Estação de Biologia Marinha, junto ao antigo cais do carvão, no Funchal. No campo das artes plásticas, história e arqueologia, sendo esparsas as preocupações das entidades governamentais e autárquicas, apesar de referidas em vários fóruns, a Madeira não conseguiu, até meados da segunda década do séc. XX, concretizar nenhuma instituição museológica com plena autonomia. No campo das artes plásticas era notória a existência de algumas coleções e do interesse por obras de arte dos colecionadores portugueses e de origem inglesa estabelecidos na Ilha. É exatamente por via de uma coleção privada, a de César Filipe Gomes, e da sua doação ao Estado, após a aquisição em 1946 da Qt. das Cruzes, que nascerá o primeiro museu de vocação próxima das artes decorativas. A inauguração do Museu da Quinta das Cruzes, quinta que, em 1947, havia sido classificada como imóvel de interesse público, só acontecerá em 1953, integrada nas comemorações oficiais do 28 de Maio. O processo de aquisição do imóvel não foi pacífico, tendo sido concluído apenas em 1948. No documento de doação de toda a coleção de obras de arte por parte de César Filipe Gomes, fica à responsabilidade da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal a criação do Museu de Artes Decorativas, com particular empenho do então presidente João Abel de Freitas. Já em 1955, João Couto refere: “Esta primorosa instituição cuja base foi a coleção do amador César Gomes, não tem deixado de ser enriquecida com peças adquiridas pela Junta Geral. A Madeira, graças aos seus atuais dirigentes, dignos herdeiros dos esforçados paladinos doutras felizes eras, passa agora um momento alto no que diz respeito à resolução dos seus difíceis problemas artísticos” (COUTO, 1955, 32). O Museu, desde a sua fundação até 1976, foi dirigido por comissões diretivas que dependiam diretamente da Junta Geral. A comissão que vigorou até 1973 era constituída por Rui Vieira, Frederico de Freitas e António Aragão Mendes Correia, que em 1970 publica o primeiro catálogo geral do Museu. São depois substituídos por Rui Carita, Álvaro Simões e Jorge Marques da Silva. Em 1976, Amândio de Sousa torna-se no seu primeiro diretor. A instalação do Museu de Artes Decorativas na Qt. das Cruzes não deixa de ter uma raiz simbólica, na medida em que se trata de uma das mais prestigiadas quintas madeirenses. A quinta madeirense liga-se ao conceito de quinta de recreio portuguesa, distribuindo-se por várias dependências, desde a casa grande, a capela, a casinha de prazer, o parque ajardinado e a pequena horta, que, a partir do séc. XVIII, foram pontuando sobretudo o anfiteatro da baía do Funchal. A designação “das cruzes” permanece incerta no tempo, aproximando-se das primitivas casas de João Gonçalves Zarco, 1.º capitão donatário do Funchal. Esta casa foi depois ampliada no tempo do seu filho, o 2.º capitão João Gonçalves da Câmara, ao mesmo tempo que se realizava obras na capela de Nossa Senhora da Conceição de Cima e construía o Convento de Santa Clara do Funchal. Ao longo dos séculos, foi sofrendo transformações importantes até que, em meados do séc. XVIII, deverá ter ganho a estrutura que se manteve. Em 1692, havia sido construída a capela de N.ª Sr.ª da Piedade, pela família Lomelino. A vocação de artes decorativas sempre marcou a coleção do Museu da Quinta das Cruzes, sendo que a designação “Museu da Quinta” procurava, de certa forma, apontar para um programa científico que visava enquadrar a ideia de quinta funchalense, das suas funcionalidades, espaços e equipamentos. A coleção, primeiro nascida do conjunto doado por César Gomes, refletia de certa forma o gosto dominante na Madeira da primeira metade do séc. XX. A primeira montagem da coleção ficará a dever-se essencialmente a Frederico de Freitas e a José Leite Monteiro, com a colaboração de Ângelo Silva, de Eduardo Pereira, de Basto Machado e de João Maria Henriques. Veja-se o que nos diz António Aragão: “Na realidade, os espaços das ‘casas das cruzes’ que através dos séculos serviram de moradia a variadas gerações, voltaram a ser compostos com objetos de uso doméstico, objetos esses, é claro, selecionados segundo um critério de qualidade e apresentação que os transferem de posição utilitária e doméstica para uma situação de objetos referenciáveis dentro duma outra escala de valores” (CORREIA, 1970, 46). Às coleções iniciais, juntaram-se, em 1966, as de ourivesaria europeia de João Wetzler, antiquário que residia na Madeira, havendo um importante esforço de aquisição sobretudo no mercado regional, e depois nacional, de obras de arte. Nas coleções, e dentro da sua variedade tipológica, deveremos destacar o conjunto de mobiliário português dos sécs. XVII-XVIII ao gosto madeirense, dito “caixa de açúcar”, realizado com madeiras exóticas, na sua maioria brasileiras. No mobiliário estrangeiro, o destaque vai para o mobiliário inglês dos sécs. XVIII-XIX, Chippendale, Hepplewhite, Sheraton, etc. Refiram-se ainda dois contadores indo-portugueses, produzidos em Goa em meados do séc. XVII, um outro da Índia Mogol, realizado no segundo quartel do séc. XVII, e um escritório Namban, japonês, de inícios do séc. XVII. Notáveis são também os dois contadores espanhóis ao gosto hispano-mourisco, dito Vargãnos, de meados do séc. XVII. Merece especial referência um conjunto de ourivesaria portuguesa religiosa e civil de meados do séc. XVI até ao séc. XVIII, com destaque para uma bandeja com pé, de inícios do séc. XVI, e um porta-paz do início do segundo quartel do mesmo século com a aplicação de cabochões de pedras preciosas. Na ourivesaria estrangeira, pode destacar-se uma taça com pé de Nuremberga, coberta, de meados do séc. XVI, uma salva de Augsburgo de finais do séc. XVII, outra de Amsterdão de meados do séc. XVII e um par de escravas saleiro em prata e ébano, do México, de meados do séc. XVII. No Museu, consta ainda um pequeno conjunto de jóias e objetos de adorno femininos e masculinos, originários da coleção de César Gomes. Trata-se de peças oriundas, na sua maioria, de oficinas europeias, com destaque especial para algumas obras portuguesas de meados do séc. XVIII, como minas de proveniência brasileira ou um par de brincos goeses de início do séc. XVII. O Museu possui também uma importante coleção de glíptica, com exemplares de entalhes romanos (séc. I d.C.) e modernos (sécs. XV e XVI), assim como camafeus desta última época. Integrada na exposição de joalharia, e montada num estojo de meados do séc. XVIII, encontra-se uma placa aberta a buril com a representação da Sagrada Família, assinada por um dos mais importantes artistas holandeses da segunda metade do séc. XVI, Henrick Goltzius (1558-1617). A cerâmica existente nas coleções divide-se em dois núcleos. O das faianças, maioritariamente portuguesas, dos sécs. XVII a XIX e um núcleo de porcelanas europeias e orientais. Estas últimas estão representadas por alguns exemplares da dinastia Ming e sobretudo da dinastia Qing, com peças de encomenda europeia, ditas da Companhia das Índias. Muito curiosa é a presença de um conjunto, serviço de chá, encomendado pelos lealistas franceses, com as silhuetas, dissimuladas em jogo ótico, do Rei Luís XVI, de Maria Antonieta e do delfim real, de finais do séc. XVIII. Na pintura, o Museu possui uma coleção eclética, com destaque especial para algumas pinturas de raiz romântica, maioritariamente inglesas, com vistas da baía do Funchal e da ilha da Madeira, assim como três pinturas de Tomás da Anunciação, das quais se destaca O Piquenique, onde se vê em primeiro plano a família do conde de Carvalhal na sua propriedade do Palheiro Ferreiro. Na coleção, encontramos ainda vários retratos do pintor Joaquim Leonardo da Rocha e uma pintura, rara na obra do artista, com a representação do forte da Pontinha. É ainda de destacar duas pequenas pinturas atribuídas a Jacques Callot (1692-1625) ou o retrato do marquês de Castelo Rodrigo, D. Francisco de Moura, de escola flamenga ou holandesa de meados do séc. XVII. Referência especial deve ter ainda a pintura da Virgem do Loreto, pintura a óleo sobre madeira que parece ser ainda uma cópia do séc. XVI, de Rafael. Na escultura, deve nomear-se especialmente um retábulo flamengo da cidade de Bruxelas do último quartel do séc. XV, em madeira de carvalho, assim como uma Virgem com o Menino, provavelmente da escola de Bruges, de finais do mesmo século. Deve aqui referir-se ainda uma coleção de figuras de presépios de barro datáveis de meados do séc. XVIII, algumas delas produzidas em oficinas regionais. Montadas em enquadramento romântico, em pleno jardim, estão algumas pedras significativas, provindas de demolições que tiveram lugar ao longo dos sécs. xix e xx no Funchal. Destaque-se a presença de duas janelas de recorte manuelino em cantaria basáltica, assim como parte do pelourinho da cidade do Funchal. Nos jardins do Museu está implantada uma cafetaria anexa a uma estrutura de apresentação de um orquestrofone, adquirido pelo visconde de Cacongo, João Rodrigues Leitão (1843-1925), na Exposição Mundial de Paris de 1900, e integrado nas coleções do Museu desde 1978. Em 2007, depois de devidamente restaurado, este foi apresentado ao público. O Museu de Arte Sacra do Funchal nasce de uma crescente preocupação das entidades civis e religiosas relativamente ao património artístico da ilha da Madeira depois da extinção das ordens religiosas a partir de 1834 e da revolução de 1910. Desde 1933 que se reuniram algumas peças da Sé em duas salas anexas, gesto que manifestou uma primeira preocupação com o património religioso. Em 1934, o conservador do palácio da Ajuda, Manuel Cayola Zagallo, com a colaboração das entidades locais e o entusiasmo de D. António Pereira Ribeiro, bispo do Funchal, realizou um primeiro levantamento da pintura flamenga da ilha da Madeira. Esta primeira abordagem constitui uma primeira consciência da qualidade e excecionalidade do conjunto redescoberto. Depois do apoio logístico e financeiro da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, o conjunto foi enviado para Lisboa para ser restaurado no ateliê de Fernando Mardel e apresentado, em 1949, no Museu Nacional de Arte Antiga, numa exposição temporária orientada pelo diretor João Couto. De regresso ao Funchal, o conjunto fica exposto num anexo da Sé até à abertura do Museu, a 1 de junho de 1955. O Museu foi instalado no antigo paço episcopal, que, entre 1914 e 1943, havia funcionado como Liceu do Funchal, sofrendo depois profundas obras de adaptação praticamente contemporâneas da reorganização urbanística da praça do município, nas suas traseiras. O antigo paço episcopal, harmonizado por grandes obras da segunda metade do séc. XVIII, no tempo do bispo D. João do Nascimento, foi primitivamente fundado por Luís de Figueiredo Lemos, em 1594. Da época primitiva é a arcaria dupla de sabor maneirista sobre a posterior praça do município e a capela de São Luís de Tolosa, datada de 1600. Dominando a construção, sobre o edifício do séc. XVIII ergue-se uma torre avista navios, que permitia, no último piso, através de uma varanda aberta, observar toda a baía do Funchal. Nesta varanda na parede a norte, foram colocados gigantes painéis de azulejaria portuguesa do séc. XVIII, que ilustram os temas da fé, da esperança e da caridade. Nas coleções do Museu, podem destacar-se duas áreas essenciais, a da arte flamenga e a da arte portuguesa. A presença da arte flamenga na ilha da Madeira relaciona-se com os intensos contactos comerciais estabelecidos com a Flandres, desde meados do séc. XV e por todo o séc. XVI, por causa do açúcar produzido em larga escala sobretudo na costa sul da ilha da Madeira. Muitos dos produtores e donos de engenhos, assim como comerciantes, realizaram encomendas sumptuárias à Flandres, de pintura, escultura e ourivesaria, de que a coleção do Museu de Arte Sacra é um exemplo paradigmático. A coleção de pintura apresenta exemplares do período que vai do último quartel do séc. XV até aos anos 40 do séc. XVI, com obras atribuídas a Dieric Bouts, Gérard David, Joos Van Cleve, Jan Provoost, mestre do tríptico Morrison, Pieter Coeck van Aelst, Jan Gossaert, dito Mabuse, entre outros. Dos conjuntos retabulares, de invulgaríssimas dimensões, refira-se, a título de exemplo, A Virgem e o Anjo da Anunciação, atribuída a Jan Provoost, e, provindos da igreja matriz da Calheta, A Adoração dos Reis Magos, atribuída ao Mestre da Adoração de Machico, da igreja matriz de Machico, Maria Madalena, atribuída a Jan Provoost da Sé do Funchal, e São Pedro, São Paulo e Santo André, atribuído a Joos van Cleve, da capela de São Pedro e São Paulo do Funchal. Na escultura flamenga, encontram-se exemplares das escolas de Malines, Antuérpia e Bruxelas e de ateliês hispano-flamengos de finais do séc. XV até ao fim do primeiro quartel do séc. XVI. A escultura flamenga tem vindo, ao lado da pintura, a ganhar maior significado, até pela entrada na coleção de novas obras. Refira-se especialmente as peças Calvário, São Roque e Deposição no Túmulo, da Sé do Funchal, Santa Luzia, da primitiva igreja de Santa Luzia do Funchal, ou a Virgem com o Menino da igreja matriz de Machico. Na coleção, destacam-se ainda duas raríssimas peças, uma bandeja e um cálice puncionados, da cidade de Antuérpia, de inícios do séc. XVI. No Museu encontramos também uma coleção importante de arte portuguesa, provinda na sua maioria de igrejas e capelas da Diocese do Funchal. Esta divide-se em vários núcleos, estando as peças organizadas cronologicamente e com uma forma de apresentação que revela o cruzamento de tipologias artísticas. Na pintura, referência para São Bento, de uma oficina portuguesa de finais do séc. XV, provindo da Sé do Funchal, ou Ecce Homo, do antigo Convento das Mercês, Ascensão de Cristo, de Fernão Gomes, ou A Visitação, de Vieira Lusitano. Na escultura portuguesa, especial referência deve ter São Sebastião, de finais do séc. XV ou inícios do séc. XVI, atribuído à oficina de Diogo Pires, o Moço, ou o conjunto respeitante ao camarim da Sé do Funchal, datável do início da segunda metade do séc. XVII, atribuído ao imaginário Manuel Pereira. Destaca-se ainda uma Santa Isabel, do séc. XVII, provinda do antigo Convento da Encarnação, e a Dormição de São Francisco Xavier, do mesmo século, provinda do Convento do Bom Jesus da Ribeira. No Museu de Arte Sacra, é ainda de referir uma importante coleção de ourivesaria portuguesa dos meados do séc. XV até aos últimos anos do séc. XVIII. Destaca-se igualmente o conjunto do denominado tesouro da Sé do Funchal, onde assume relevo a cruz processional, oferecida por D. Manuel I e chegada já depois da sua morte ao Funchal, em 1527, e uma excecional caldeirinha, com o recorte no fundo da esfera armilar, símbolo régio. Na coleção, encontra-se ainda um importante grupo de ourivesaria maneirista, datável entre o último terço do séc. XVI e meados do séc. XVII, como o cálice, datado de 1580, da capela do Corpo Santo no Funchal, a naveta da matriz de Câmara de Lobos, de 1589, ou a ânfora de prata da Sé, de meados do séc. XVII. No séc. XVIII, referência especial devem ter a urna de prata da Sé e a custódia de ouro assinada e datada de 1799, de Paul Mallet, de uma oficina de Lisboa. A exposição de ourivesaria do Museu é apresentada a par de paramentaria dos sécs. XVII - XVIII. O Museu de Arte Sacra desde cedo se constituiu como sede de exposições temporárias pela existência de uma sala especialmente a elas dedicada. À própria fundação do Museu se ligam trabalhos de levantamento patrimonial, que resultaram em edições como Lampadários – Património Artístico da Ilha da Madeira (1949), por Luiz Peter Clode, e a organização, em 1951, de uma exposição e catálogo de ourivesaria sacra, no Convento de Santa Clara do Funchal, à qual se seguiu uma outra, em 1954, sobre esculturas religiosas. No Museu, organizaram-se, desde a déc. de 70, exposições temporárias sobre temas próximos à defesa do património cultural e artístico e, mais tardiamente, de integração de arte antiga e contemporânea. Exemplo disso são as exposições Jesus Cristo Ontem Hoje Sempre, O Futuro do Passado, Eucaristia Mistério de Luz, A Madeira nas Rotas do Oriente ou Alguns Santos Mártires Revisitados, de Rui Sanches em 2003, Remains de Graça Pereira Coutinho, em 2006, Obras de Referência dos Museus da Madeira, em 2008, e Madeira do Atlântico aos Confins da Terra, exposição comemorativa dos 500 anos da Diocese do Funchal, em 2014. Como foi já referido, é bastante antigo o interesse pela botânica e por coleções de espécies naturais na ilha da Madeira. Desde o séc. XIX se mostrou interesse pela fundação de um jardim botânico, o que só se concretizou com a aquisição da Qt. do Bom Sucesso por parte da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, em 1960. O Jardim Botânico da Madeira é uma instituição científica do Governo regional da Madeira que se dedica ao estudo e conservação da flora e da vegetação dos arquipélagos da Madeira e das Selvagens. A Qt. do Bom Sucesso, que havia pertencido à família Reid, situa-se numa zona privilegiada da baía do Funchal, na encosta sul de um vale compreendida entre os 150 e os 300 m. Reúne as condições para a instalação de numerosas espécies, numa área superior a 80.000 m2, apresentando, nos inícios do séc. XXI, cerca de 2000 espécies exóticas. Neste espaço, as plantas encontram-se identificadas com o nome científico comum, origem e afinidades ecológicas e geográficas. Nos jardins, ainda deve ser destacada uma zona respeitante às plantas indígenas e endémicas, exclusivas da Madeira e da Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde), com a natural presença de espécies da Laurissilva, caracterizada como floresta perenifólia de características subtropicais, sendo as suas árvores mais comuns as laureáceas, como o til, o loureiro, o barbusano e o vinhático. Encontram-se ainda no Jardim Botânico espécies de outras zonas do globo, ecologicamente opostas, desde os Himalaias, à América do Sul e trópicos. Uma área independente apresenta uma importante coleção de plantas tropicais, cultivares, aromáticas e medicinais, ligadas aos costumes e tradições culturais e gastronómicos madeirenses. Foi ainda disponibilizado ao público um parque com aves tropicais. Na casa principal da Qt. do Bom Sucesso, está instalada uma parte do antigo Museu de História Natural do Seminário do Funchal, transferido em 1982, que alberga os trabalhos de João Schmitz, ornitólogo alemão estabelecido na Madeira em 1874. A Photographia - Museu “Vicentes”, como o próprio nome indica, nasceu da tentativa da musealização de um ateliê fotográfico. O Vicentes Photógraphos foi um dos mais antigos estúdios de fotografia de Portugal, tendo sido fundado em 1848 por Vicente Gomes da Silva e permanecido em funcionamento ininterrupto até 1982, dentro da mesma família, ao longo de quatro gerações. Em 1852, estes fotógrafos foram convidados a fazer parte da comitiva que organizou a visita de Sua Majestade a Imperatriz do Brasil e de sua filha, a princesa D. Amélia. No ano seguinte, apresentava já na fachada das suas instalações as armas imperiais do Brasil e era reconhecido como “Gravador de S. M. Imperatriz do Brasil”. Da mesma época são as suas primeiras experiências com a daguerreotipia. O estúdio inicia, assim, uma longa carreira, registando importantes acontecimentos da história da Madeira e de muitos dos seus visitantes ilustres. Em 1866, fotografa a Imperatriz Isabel de Áustria, a célebre Sissi, e, em 1901, aquando da visita de D. Carlos e D. Amélia, Reis de Portugal, fotografa-os na varanda sul do palácio de São Lourenço. Este Museu possui um espólio notável de 800.000 negativos, registo incontornável de uma história mental, social e cultural da ilha da Madeira. Ao património inicial, juntaram-se os de outras casas ou de fotógrafos amadores, como os de João Francisco Camacho (1833-1898), José Júlio Rodrigues (1843-1893), Joaquim Augusto de Sousa, João António Bianchi (Vale Paraíso), Major Charles Courtnay Shaw, Gino Romoli, Francisco Barreto, João Soares, Álvaro Nascimento Figueira, Luís de Bettencourt, João Anacleto Rodrigues, Russel Manners Gordon (Torre Bela), Alexander Lamont Henderson, Photo Figueiras, Foto Arte, Joaquim Figueiras e Carlos Fotógrafo, assim como o espólio de um notável ateliê, o Perestrellos Fotógrafos, com uma coleção notável de reportagem de acontecimentos sociais e políticos. No Museu, para além de originais fotográficos, é também de relevar uma estrutura organizativa de um ateliê fotográfico do séc. XIX que permanece quase intacta. A coleção passou depois a desenvolver outras áreas de interesse, como a recolha e identificação de cinema documental sobre a Madeira. Em 1972, todo o recheio do ateliê Vicentes havia sido vendido pela família Vicentes à Sociedade Pátio, Livros e Artes, Lda., através da sua gerente, Maria de Mendonça, uma jornalista açoriana radicada na Madeira que desenvolveu a esperança de abrir um museu dedicado às fotografia e artes gráficas. Em 1982, todo o conjunto foi adquirido pelo Governo regional da Madeira, sendo criado o Museu. Em 1983, foi criada uma nova pequena unidade museológica pelo Instituto do Vinho Madeira, que, em 1979, veio substituir a antiga Junta Nacional do Vinho: o Museu do Vinho Madeira. O Museu foi instalado numas dependências do Instituto, importante edifício romântico da cidade do Funchal edificado no princípio do séc. XIX pelo cônsul inglês Henry Veitch. A sua coleção, de modesta dimensão, procurava mostrar o processo de produção do vinho Madeira e agenciá-lo no seu contexto histórico. O Museu foi encerrado pela tutela, que passou a ser o Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira (IVBAM). Em 1986, a 21 de agosto, Dia da Cidade do Funchal, foi inaugurada no edifício da CMF uma pequena estrutura museológica em duas salas, sob a designação de Museu da Cidade, que procurava mostrar os ciclos fundamentais da história da Ilha, socorrendo-se de algumas peças de época do acervo da CMF e de elementos de apoio gráfico. Esta unidade foi encerrada em 1995, passando uma parte do seu espólio a integrar o Núcleo Museológico A Cidade do Açúcar. Por iniciativa da CMF, foi inaugurado, nas instalações de um antigo auxílio materno-infantil e durante o Marca – Festival de Arte Contemporânea, em setembro de 1987, o Museu Henrique e Francisco Franco. Em 1966, a CMF adquiriu, junto de herdeiros de Francisco Franco, um importante conjunto de obras que pensou colocar numa sala especial do Museu da Quinta das Cruzes. Contudo, essa intenção não chegou a concretizar-se. Em 1972, um novo conjunto do espólio dos irmãos Franco foi adquirido aos seus herdeiros, incluindo um grupo de pinturas de Henrique Franco. No entanto, só em 1987, depois de várias apresentações públicas do espólio, foi criado o Museu. Apesar da dignidade do espaço, não era possível apresentar de forma sistemática e global o conjunto reunido, tendo-se, depois de um pequeno período de encerramento, reaberto o Museu com exposições temporárias de média duração, que permitiam explorar em regime de rotatividade temas e conteúdos específicos na obra dos irmãos Franco, facultando a visita de especialistas às reservas organizadas. Na reorganização de 1996, procedeu-se ao inventário sistemático da coleção, a trabalhos de conservação e restauro, e à implementação de um novo programa museológico e museográfico. O Museu apresentou a exposição Por Causa de Paris, juntando por coerência temática algumas obras cedidas pelo Museu da Quinta das Cruzes. No mesmo ano, o Museu disponibilizou ainda um roteiro de visita às esculturas de Francisco Franco em locais públicos da cidade do Funchal. Em 1988, foi aberta ao público a Casa-Museu Frederico de Freitas, que ficou instalada na denominada Casa da Calçada, a residência dos condes da Calçada entre o séc. XVII e os inícios do séc. XX. Nos meados dos anos 40 do séc. XX, ali se instalou Frederico de Freitas e a família até à sua morte, em 1978. Todos os seus bens móveis foram deixados à RAM para que se criasse uma casa-museu. Frederico de Freitas (1894-1978) fora um advogado e importante impulsionador das artes e da defesa do património cultural na Madeira. Em 1999, ficou concluído o processo de adaptação da sua residência a casa-museu, englobando áreas diversificadas: a casa da entrada, com receção, loja, serviço educativo e gabinete de estampas e desenhos, a casa principal, designada por Casa da Calçada, a Casa dos Azulejos, edifício novo construído para acolher a coleção de azulejaria, assim como um auditório e uma cafetaria. O Museu possuía, desde 1988, uma sala de exposições temporárias junto a um jardim que se abre à Calç. de Santa Clara, com o tradicional pavimento de calhau rolado, um corredor de vinha e canteiros de flores, rematando a extremidade do muro, e uma “casinha de prazer” que fora, no tempo de Frederico de Freitas, o espaço que albergava parte da coleção de azulejos holandeses. Das coleções, destaque-se o particular interesse de todos os temas relacionáveis com a Madeira e a sua memória patrimonial e artística. A Casa-Museu possui uma importante coleção de estampas, aguarelas e desenhos da Ilha, na sua maioria de ingleses do séc. XIX, com álbuns de Pitt Springett, Andrew Picken, Emily Geneviéve Smith, Susan Vernon Harcourt, John Eckersberg, Frank Dillon, etc. Refira-se especialmente o manuscrito original de Journal of a Visit to Madeira and Portugal (1853-1854), de Isabella de França. Outro importante núcleo da coleção é o da azulejaria portuguesa, hispano-mourisca, holandesa, flamenga, inglesa, turca e persa, desde meados do séc. XII até aos meados do séc.XIX. Do conjunto, destaque-se os conjuntos de Toledo, Manises, Valência, Sevilha, Talavera de la Reina, Bristol, Liverpool, Delft, Kashan, Rayy, Iznik e Tabriz, entre outros. Na azulejaria portuguesa, refiram-se conjuntos de padrão de tapete de meados do séc. XVII, provindos, na sua grande maioria, de demolições na ilha da Madeira. A coleção de cerâmica da Casa-Museu é vasta, integrando desde exemplares portugueses e europeus até aos do Extremo Oriente, como o conjunto de peças da denominada Companhia das Índias, à volta de duas divisões da casa, o quarto dos bules e das canecas. Na Casa-Museu Frederico de Freitas encontra-se ainda, entre outras coleções, uma importante coleção de escultura religiosa datável entre os sécs. XVI e XVIII. Do conjunto, destaca-se um São Jerónimo de barro de meados do séc. XVI, uma cena da Visitação de meados do séc. XVII, uma Santa Ana Ensinando a Virgem a Ler de meados do séc. XVIII ou um São João Evangelista, para além de um importante conjunto de marfins luso-orientais, dos quais se destaca, para além de Bons-Pastores de Goa, uma especialmente rara Virgem com o Menino sino-portuguesa de inícios do séc. XVII. O conjunto de mobiliário da Casa-Museu é eclético, sendo marcado sobretudo por peças madeirenses que remontam aos inícios do séc. XIX, sob a forte influência do mobiliário inglês de finais do séc. XVIII. Desde 1989, podem ser visitadas, em regime de visita acompanhada e organizada, as antigas adegas de São Francisco do Funchal, propriedade da Madeira Wine Company. Estas adegas são o remanescente do antigo Convento de S. Francisco do Funchal, situado nas suas dependências principais no posterior Jardim Municipal, que foi demolido nos finais do séc. XIX. O Convento foi fundado primitivamente em 1473, por Luís Álvares da Costa e pelo seu filho Francisco Álvares da Costa. As adegas correspondem a algumas dependências que eram usadas como armazéns nos meados dos sécs. XVII e XVIII. A Madeira Wine Company foi fundada em 1913, incorporando várias empresas de produtores independentes que se associaram, como William Hinton, Welsh, Cunha & Co. Lda., Henriques & Câmara, Cossart Gordon, Blandy, Leacock e Miles. As adegas passaram a possibilitar a visita a salas que mostram os mais importantes passos, e a tecnologia utilizada, para a produção do vinho das principais castas, como Sercial, Malvasia, Verdelho e Boal, e ainda a sua história ao longo dos muitos séculos. Para além disso, há também a possibilidade de visitar armazéns e salas de provas, entre outros espaços. O Museu-Biblioteca Mário Barbeito de Vasconcelos era uma pequena unidade museológica da empresa Vinhos Barbeito (Madeira) Lda., sendo fundado em 1989. As suas coleções foram reunidas pelo bibliófilo Mário Barbeito de Vasconcelos, comerciante de vinhos da cidade do Funchal, que desde sempre se interessou pela criação de uma biblioteca que tivesse como temas principais a história do arquipélago da Madeira e da expansão portuguesa, bem como a figura de Cristóvão Colombo. Nas três salas de exposição, encontravam-se livros raros, moedas, medalhas e gravuras sobre Cristóvão Colombo. Na segunda sala, edições raras, manuscritos e estampas sobre o arquipélago da Madeira e a história do seu vinho, e ainda uma coleção de documentação e livros sobre a botânica da Madeira, adquirida a outro colecionador, George Walter Grabham. A terceira área era dedicada a um arquivo documental sobre vários aspetos culturais de predominância regional. O Museu foi miseravelmente atingido pela aluvião de 20 de fevereiro de 2010, tendo entrado num processo de reorganização. A Casa Colombo, inaugurada em novembro de 1989, correspondia a um pequeno museu evocativo da figura do navegador Cristóvão Colombo, ligado de forma indelével ao arquipélago da Madeira, em particular ao Porto Santo. Segundo a tradição popular, tal Casa terá sido residência de Cristóvão Colombo, sendo harmonizada mais tarde por uma arquitetura de fundo popular de meados do séc. XVIII sobre um núcleo mais antigo, do qual se destaca, numa parede a norte, duas janelas armadas de blocos de barro em ogiva de finais do séc. XV. Cristóvão Colombo casara com Filipa de Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo, 1.º capitão donatário do Porto Santo. Deve ter estado pela primeira vez na Madeira em 1476, tendo sido depois encarregue por Paolo di Nero de deslocar-se à Ilha para negociar açúcar para o genovês Ludovico Centurione. A Casa Colombo, que, em 2005, passou a ser Casa Colombo – Museu do Porto Santo, foi completamente reformulada, contando com um novo programa museológico que permitiu uma nova organização de espaços e a criação de três áreas temáticas, tendo por pano de fundo a posição estratégica do Porto Santo no contexto da expansão. Numa primeira sala, explora-se o contexto histórico da expansão portuguesa e o descobrimento do Porto Santo e da Madeira, bem como dos primeiros séculos da sua economia dominante, com a presença de peças de época que criam um enquadramento temático, como um elmo português de meados do séc. XVI ou uma cruz processional de cobre dourado de finais do séc. XV. Uma segunda sala é dedicada à expansão castelhana e à figura do descobridor da América, Cristóvão Colombo, com destaque para uma pintura italo-flamenga de meados do séc. XVII. As últimas duas pequenas salas do percurso expositivo são dedicadas ao afundamento, na costa norte do Porto Santo, de um galeão holandês, o Slot ter Hooge, em 1724. As três áreas temáticas afirmam o papel de três das potências europeias fundadoras da expansão. A Casa Colombo – Museu do Porto Santo possui áreas específicas para exposições temporárias, uma loja, um auditório de ar-livre, uma sala de serviço educativo e um acervo documental onde se encontra um conjunto de gravuras sobre Cristóvão Colombo, oferecido ao Museu por Mário Barbeito de Vasconcelos. O Museu da Baleia é um museu da Câmara Municipal de Machico, cujos estatutos foram aprovados em 1990, ano da sua abertura ao público, com a participação, para além das verbas municipais, do International Fund for Animal Welfare (IFAW). O Museu pretende contar a história da atividade baleeira na Madeira, proibida em 1981, partindo da coleção recolhida por Eleutério Reis na antiga Fábrica das Baleias e de doações da comunidade local no Caniçal. Sendo um baluarte da história, este Museu constitui-se como centro de defesa da conservação das baleias, especialmente do cachalote, contribuindo para a sua preservação. Em 2011, o Museu abriu novas instalações para o desenvolvimento das suas funções museológicas, transformando-se num pólo de investigação e defesa dos mares. A Fundação Berardo abriu ao público em 1991, nos jardins da Qt. Monte Palace, situada numa zona privilegiada sobre a baía do Funchal. A freguesia do Monte, sede de muitas quintas de veraneio, transformou-se num importante reduto do romantismo na ilha da Madeira. A história da Qt. Monte Palace está ligada à compra, nos meados do séc. XVIII, de uma propriedade a sul da igreja do Monte pelo cônsul inglês Charles Murray, que aí construiu a Qt. do Prazer. Em 1897, Alfredo Guilherme Rodrigues adquiriu a propriedade e construiu a casa sede da propriedade em estilo revivalista, criando o prestigiado Monte Palace Hotel. Em 1987, após longos anos de abandono, a propriedade foi adquirida por Joe Berardo. Realizaram-se grandes trabalhos de reordenamento da vegetação, plantando-se numerosas espécies novas. Foram introduzidas plantas exóticas, como uma importante coleção de cicas e próteas da África do Sul, azáleas da Bélgica, urzes da Escócia e uma grande quantidade de espécies características da laurissilva madeirense. Nos jardins, foram colocadas várias peças decorativas, destacando-se um retábulo em pedra renascentista de uma oficina coimbrã, do séc. XVI. Está também presente uma grande coleção de painéis de azulejos, na sua maioria portugueses, desde os exemplares hispano-mouriscos do séc. XVI até às produções do início do séc. XX. Foi ainda criado um jardim oriental, com vários elementos arquitetónicos. Foi também construído um edifício de raiz, onde ficaram reunidas outras coleções do comendador Joe Berardo, como uma de escultura contemporânea africana e outra de minerais provenientes de praticamente todo o mundo. O Museu de Arte Contemporânea – Fortaleza de Santiago tem a sua origem na criação dos prémios de arte contemporânea Cidade do Funchal, em 1966 e 1967, organizados pela então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, através da Delegação de Turismo do Funchal. Com as obras premiadas e outras aquisições realizadas, pensou-se na criação de uma espécie de extensão contemporânea da coleção do Museu da Quinta das Cruzes. Esta funcionou, no entanto, de forma precária a partir de 1984 numa sala da Direção Regional dos Assuntos Culturais, tendo depois transitado para outras dependências na Qt. Magnólia no Funchal sob a designação de Núcleo de Arte Contemporânea. Com a entrega da fortaleza de S. Tiago à administração do Governo da RAM em 1992, foi pensada a sua adaptação para a instalação de um museu de arte contemporânea, assim como uma sala de vocação militar que contasse de forma coerente a relação dessa fortaleza no contexto da história da defesa da baía do Funchal. A fortaleza de S. Tiago iniciou-se em 1614, sob o risco de Jerónimo Jorge e, depois, de Bartolomeu João, seu filho. A primeira fase das obras deve ter terminado por volta de 1637. No séc. XVIII, sofreu grandes transformações sob as ordens do Gov. José Correia de Sá, terminando tal intervenção em 1767. O Museu foi aberto ao público em 1992, reunindo o núcleo central dos prémios Cidade do Funchal dos anos 60 e aquisições feitas desde então. Das obras iniciais, destaque para Joaquim Rodrigo, António Areal, José Escada, Helena Almeida, Artur Rosa, Manuel Baptista e Jorge Martins, aos quais se juntaram obras de outros autores adquiridas desde então, nomeadamente de Lourdes Castro, René Bertholo, José de Guimarães, António Palolo, João Queiroz, Rui Sanches, Gaetan, Michael Biberstein, Fernando Calhau, Pedro Cabrita Reis, Pedro Portugal, Pedro Calapez, Sofia Areal, Pedro Casqueiro, Miguel Branco, Pedro Proença, Ilda David, Rigo, entre muitos outros. Foi também reunido um conjunto de obras de artistas que desenvolveram a sua atividade artística principalmente na ilha da Madeira, nomeadamente de Élia Pimenta, Celso Caires, Isabel Santa Clara, Eduardo de Freitas, Graça Berimbau, Teresa Jardim, Filipa Venâncio, Karocha, Guilhermina da Luz, António Rodrigues, Danilo Gouveia e Guida Ferraz, entre outros. Em 2009, foi realizada no Centro das Artes Casa das Mudas, na Calheta, uma exposição que permitiu reunir pela primeira vez toda a coleção nacional, sob o título A Experiência da Forma – Um olhar sobre o Museu de Arte Contemporânea I. Em 2015, a coleção de arte contemporânea da Madeira deixou a Fortaleza de S. Tiago e passou definitivamente para o antigo Centro das Artes na Calheta, criando-se o Mudas. Museu de Arte Contemporânea da Madeira. A fortaleza-palácio de S. Lourenço foi mandada construir por determinação de D. Manuel I, em 1513, tendo a construção sido iniciada logo na década seguinte. Dela, permaneceu praticamente intacto o torreão nascente, com as armas reais, cruz de Cristo e esfera armilar. As obras foram encomendadas a João Cáceres, sendo depois ampliadas após o ataque corsário de 1566. No período filipino, são feitas importantes transformações com a construção de novos baluartes da responsabilidade de Mateus Fernandes e Jerónimo Jorge. Por razões diversas, a fortaleza de S. Lourenço foi sendo progressivamente transformada em palácio dos governadores da Madeira, sobretudo a partir do séc. XVIII. Em 1836, a separação administrativa dos poderes civil e militar provocou uma divisão física do palácio. A leste, antes da responsabilidade do governador militar, passou a estar o Comando da Zona Militar da Madeira. A área oeste, correspondente às principais dependências e salas nobres, antes próximas do governador civil, ficou ligada ao ministro da República para a Madeira e, a partir de 2004, ao representante da República na RAM, sendo a sua residência oficial. Depois de 1993, foi iniciado um aturado processo de conservação e restauro do edifício e das coleções postas à sua guarda, das quais uma parte significativa tinha sido transferida de palácios nacionais, na déc. de 30 do séc. XX, sendo outras pertencentes a um fundo antigo do palácio. Destas coleções, destaque-se um conjunto de mobiliário Boulle e uma curiosa galeria de retratos, como os de D. João V e D. José I. A criação de um circuito de visita e a instalação de serviços de conservação preventiva e serviços de educação criaram, desde 1995, as condições para a musealização do espaço. Na área militar, encontra-se instalado, em pequenas dependências, um núcleo histórico-museológico onde se apresentam elementos para a compreensão da evolução histórica da construção da fortaleza, assim como do seu papel na estratégia de defesa da baía do Funchal, para além de outros aspetos da história militar da cidade. Embora já há muito tempo se fizessem apelos nesse sentido, só em 1996 foi criado o Museu Etnográfico da Madeira, cujas coleções tiveram na sua origem algumas peças da coleção etnográfica do Museu da Quinta das Cruzes. O Museu foi instalado na Ribeira Brava, no quadro de uma importante aposta na descentralização cultural, num antigo solar transformado mais tarde em unidade industrial, o antigo engenho de aguardente da Ribeira Brava. O Convento de Santa Clara, foreiro de uma casa ali existente, vendeu os terrenos a Luís Gomes da Silva, capitão de ordenanças da Ribeira Brava. Em 1710, acrescentou-se ao conjunto uma capela da invocação de S. José. Em 1853, a antiga casa foi convertida em unidade industrial, criando-se um engenho de cana-de-açúcar com alambique para a destilação de aguardente. Foi pouco depois instalado um sistema de moagem através de energia hidráulica, com roda motriz de madeira servido por levada de água própria para a moagem de cereais. Em 1974, a estrutura entretanto desativada foi adquirida pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, e só várias décadas mais tarde, em 1996, se inaugurou o Museu depois de obras de adaptação. O Museu tem por princípios orientadores a investigação, documentação, conservação e divulgação dos testemunhos da cultura tradicional madeirense, centrando-se nas atividades produtivas, como a pesca, os ciclos produtivos do vinho, dos cereais e do linho, os transportes, as unidades domésticas e o comércio tradicional. No seu acervo, podemos encontrar equipamento de uso doméstico, alfaias agrícolas, artes e ofícios, festividades cíclicas, instrumentos musicais, atividades lúdicas, trajes, sistemas de atrelagem, cerâmica, figuras de barro e tecnologia têxtil. O Núcleo Museológico do IBTAM – Instituto do Bordado Tapeçaria e Artesanato da Madeira, posteriormente o IVBAM – Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira, foi instalado na antiga sede do Grémio dos Industriais de Bordado da Madeira, inaugurado em 1958, projeto da autoria de Fabrício Rodrigues. Este núcleo tem por base duas exposições organizadas em 1986. A primeira teve lugar no Museu da Quinta das Cruzes, com a participação do Museu Nacional do Traje, onde foram recolhidas peças, cronologicamente situadas entre 1850 e 1900, de numerosas coleções particulares, na sua maioria completamente inéditas, numa organização de Luiza Clode. Uma segunda mostra foi organizada logo depois e inaugurada no mesmo ano no IBTAM, com um quadro cronológico mais abrangente que chegava aos anos 30 do séc. XX. Dessa exposição, um pequeno núcleo remanescente, que constituía a coleção do IBTAM e algumas cedências temporárias, foi montado provisoriamente. O Núcleo Museológico foi reformulado em 1996, com a criação de ambientes de enquadramento da época, a segunda metade do séc. XIX, e ainda áreas respeitantes à produção da primeira metade do séc. XX. Foram também desenvolvidas áreas pedagógicas e técnicas de explicação do processo criativo e produtivo. O Núcleo Museológico A Cidade do Açúcar foi inaugurado em 1996, sendo consequência do pequeno Museu da Cidade, já referenciado, antes aberto ao público em duas salas dos paços do concelho. Em 1989, foram realizadas escavações no terreno e imediações da antiga casa de João Esmeraldo no Funchal, que resultaram no aparecimento de numeroso e interessante espólio arqueológico, e organizada uma exposição no Teatro Baltazar Dias, no Funchal. Num edifício a norte, onde posteriormente, após reordenamento urbanístico, se criou a Pç. Colombo, foi criado o núcleo museológico que deu origem ao Museu A Cidade do Açúcar. O núcleo encontrava-se localizado no espaço correspondente a uma casa do final do séc. XV, destruída no séc. XIX, do comerciante João Esmeraldo, que hospedou o descobridor da América, Cristóvão Colombo. Para além da apresentação do espólio da escavação arqueológica e da história da desaparecida casa de João Esmeraldo, procurava afirmar-se como espaço de relação das memórias ainda vivas da cidade do Funchal no seu ciclo açucareiro. Nesse sentido, propunha guias didáticos de visita ao Funchal manuelino. Este era um museu preferencialmente ligado ao enquadramento dos achados arqueológicos, em especial os da escavação das casas de João Esmeraldo realizadas em 1989. O espólio recolhido ajudou a perceber o quotidiano da cidade do Funchal entre o final do séc. XV e meados do séc. XVII. Na escavação, foram recuperadas grandes quantidades de fragmentos de cerâmica portuguesa dos sécs. XV, XVI e XVII, entre eles formas de açúcar, selos de chumbo da Alfândega do Funchal e moedas. Na coleção, foram ainda colocadas algumas obras de enquadramento histórico, como Medidas Manuelinas, datada de 1499, um São Sebastião de madeira de carvalho de uma oficina flamenga de inícios do séc. XVI ou uma salva com pé com as armas da cidade do Funchal de inícios do séc. XVII. O projeto não pretendeu constituir-se como espaço de identificação da memória e tecnologia açucareira, que deveria ser instalado num antigo engenho de açúcar. Dedicava-se apenas às consequências culturais desse período fundamental da economia regional. Este Núcleo Museológico, que foi transformado no Museu A Cidade do Açúcar em 2009, foi totalmente destruído pela aluvião de 2010 no Funchal, entrando depois disso em processo de reorganização. O Museu da Eletricidade Casa da Luz foi inaugurado em 1997, após trabalhos de adaptação e musealização da antiga central térmica do Funchal, sob projeto museológico de Sara Silva. O Museu centra-se em várias áreas temáticas, como os vários tipos de iluminação pública ao longo dos tempos da cidade do Funchal, desde as primeiras lamparinas de azeite até aos candeeiros modernos. Uma segunda área temática apresenta-nos um historial evocativo da evolução da eletrificação do arquipélago da Madeira, com a presença de maquinaria diversa e com as duas principais formas de produção de energia elétrica: a térmica e a hidráulica. Foi ainda transformado para exposição um posto de transformação elétrica, sendo complementado por várias maquetas de centrais elétricas, urbanas e rurais. Numa terceira zona, apresenta-se, com sentido interativo e didático, uma exposição sobre fontes de energia, primárias e renováveis, como as energias eólica e solar, assim como uma área dedicada à ciência e à tecnologia. O Centro Cívico e Cultural de Santa Clara – Universo de Memórias João Carlos Abreu é uma unidade pública responsável pela conservação, manutenção e exposição ao público de todos os bens doados à RAM em 2001. Encontra-se instalado numa casa de finais do séc. XIX, na Calç. do Pico, com as coleções de artes decorativas reunidas por João Carlos Abreu, ex-secretário regional do Turismo e Cultura, jornalista, escritor, gestor e diretor hoteleiro. A coleção reflete as suas numerosas viagens à volta do mundo, nas quais adquiriu numerosas recordações. Aí, podem ser visitadas a biblioteca, a sala vermelha, a sala roxa, a sala de jantar, a sala das viagens, a cozinha, a sala dos cavalos, o oratório, a sala das joias de cena, o quarto verde e o quarto bege, entre outros espaços. Em 2003, foi aberto ao público um pequeno museu, numas instalações à R. do Carmo, das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias. Trata-se de um projeto constituído por cinco salas, que procuram apresentar a vida e obra de Mary Jane Wilson (1840-1916), fundadora da congregação. A exposição organiza-se por várias áreas temáticas, como a infância e juventude, com uma coleção de desenhos por si realizados e ainda alguns objetos ligados à sua chegada à Madeira. Uma segunda sala é dedicada à sua conversão ao catolicismo, enquanto a terceira e a quarta são dedicadas ao desenvolvimento do seu trabalho enquanto enfermeira e fundadora de obras sociais e caritativas, como aconteceu durante o surto de varíola em 1906. Na última divisão, é feita a reconstituição de uma sala com objetos pessoais de Mary Jane Wilson, como testemunho da sua vida. O Museu do Brinquedo na Madeira abriu ao público em 2003, com a apresentação de uma coleção privada de brinquedos de José Manuel Borges Pereira, provindos dos mais variados centros de fabrico europeus, desde meados do séc. XIX até ao final do séc. XX. Estão, assim, reunidos cerca de 12 mil objetos que refletem a época histórica em que se enquadram e o imaginário infantil de numerosas gerações. À coleção particular atrás referida, juntaram-se vários depósitos de outras coleções particulares. Em 2015, o Museu foi deslocado da R. da Levada dos Barreiros para o edifício Armazém do Mercado, na R. Latino Coelho, n.º 39. O Madeira Story Centre abriu ao público, como centro de interpretação histórica, em 2005, após trabalhos de adaptação de um edifício na zona de Santa Maria no Funchal, integrando uma área no jardim do Almirante Reis, junto à estação do teleférico da Madeira, onde estão expostas duas antigas lanchas de desembarque no porto do Funchal, a Mosquito e a Áquila. O Madeira Story Centre era uma organização privada da FUN – Centros Temáticos do Funchal, Lda. em parceria com a Etergeste. Apresentava-se como um centro de informação sobre a Madeira, que, de uma forma lúdica e interativa, desenvolvia o tema da história da Ilha. Os visitantes encontravam os seguintes tópicos: as origens vulcânicas; lendas da descoberta; descoberta da Madeira; tumulto e comércio; Ilha estratégica; desenvolvimento da Madeira; depois da navegação; e explore a Madeira. Foi encerrado em 2015. O Núcleo Museológico do Solar do Ribeirinho nasceu em 2007, sob a tutela autárquica de Machico, resultando de um aturado e contínuo trabalho da ARCHAIS – Associação de Arqueologia da Madeira e do CEAM – Centro de Estudos de Arqueologia Moderna. Está organizado a partir de quatro áreas temáticas: uma primeira sobre a história e a arquitetura do solar, a segunda sobre as origens, o povoamento e a vida local, a terceira sobre o percurso económico e uma quarta sobre o quotidiano. Este espaço funciona em articulação com o Núcleo Arqueológico da Junta de Freguesia de Machico. Em 2013, foi aberto ao público o Museu de Imprensa, no centro de Câmara de Lobos, junto da Biblioteca Municipal. Trata-se de uma unidade gerida pela Câmara Municipal, com a apresentação, numa grande nave, de um importante espólio de máquinas tipográficas, ligadas em muitos casos à antiga impressão de jornais. O Museu aproxima-se tematicamente também da história do jornalismo da Madeira e respetiva génese. Ainda em 2013, foi inaugurado, no Funchal, um espaço museal dedicado ao futebolista madeirense Cristiano Ronaldo, com um historial do seu percurso profissional, acolhendo numerosos troféus desportivos. Assim, o início do séc. XX trouxe à Madeira o primeiro museu de vocação científica, de história natural, mas a designação “Museu Regional” denunciava já a vontade de se abarcar outras áreas, que permaneceriam residuais, nas vertentes histórica, arqueológica, artística, etnológica, etc. O séc. XX irá, pois, estruturar progressivamente o conhecimento e fazer entender a necessidade de enquadrar outras realidades museológicas, a que os avanços da historiografia regional e levantamentos patrimoniais e artísticos davam sedimento. A aquisição e posterior transformação da Qt. das Cruzes em museu afirma-se, junto das tutelas oficiais, como um exemplo ilustrativo das muitas carências no campo das artes, servindo mesmo, ao longo da sua história, como génese de outras unidades mais especializadas. É no Museu da Quinta das Cruzes que se depositam as primeiras obras de arte contemporânea, com o objetivo de se constituir uma extensão contemporânea do próprio Museu, que levará mais tarde ao nascimento do Museu de Arte Contemporânea. Ainda no Museu da Quinta das Cruzes se conservava o reduto principal de uma coleção etnológica que se constituía com o fito de um dia integrar um museu no antigo Recolhimento do Bom Jesus, ideia que, no entanto, foi logo abandonada. Tal coleção viria a constituir o cerne da coleção do Museu Etnográfico da Madeira, na Ribeira Brava. A criação do Museu de Arte Sacra junta as vontades da Diocese e da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, e inicia uma especialização progressiva dos museus, dando seguimento aos amplos trabalhos de recuperação e, em muitos casos, de descoberta de um extraordinário património artístico. A realidade política criada com a autonomia, consequência da revolução de 1974 e de intensas mudanças a nível nacional, trouxe uma progressiva sedimentação das unidades museológicas criadas e a possibilidade de uma crescente especialização, assistindo-se, sobretudo durante as décs. de 80 e 90, como na maior parte do país, a uma explosão museológica que trouxe naturalmente necessidades de reajustamento e ponderação estratégica: “A autonomia político-administrativa alcançada pelas regiões autónomas portuguesas (Açores e Madeira) permitiu-nos, e agora refiro-me especialmente ao caso particular da Madeira, em determinadas circunstâncias e com alguma criatividade e pioneirismo, ultrapassar dificuldades específicas em áreas funcionais fundamentais, nomeadamente no que se refere à divulgação e comunicação nos museus, com a criação de serviços educativos que, numa primeira fase, funcionaram exclusivamente com recurso ao destacamento de professores efetivos, de algumas Escolas do Ensino Básico e Secundário, num claro apoio de intercâmbio institucional com a Secretaria Regional da Educação” (PAIS, 2005b). Na Madeira, os anos 90 começam com o congresso da Associação Portuguesa de Museus (APOM), sob o título “Panorama Museológico Nacional – Perspetivas para a Década de 90”, onde museólogos locais defenderam um museu da Região, dada a importância de haver uma unidade mais abrangente na história multifacetada do arquipélago. A abertura da formação em museologia a novos quadros, a colocação em atividade dos serviços de educação nos museus e o desenvolvimento de trabalho de investigação sobre as coleções abriram caminho ao aparecimento de novos museus e de novos públicos, e motivaram uma nova atenção a questões como segurança e conservação preventiva. A abertura de novos e especializados programas de formação, tal como aconteceu a nível nacional com a criação de vários tipos de pós-graduação, proporcionou a conquista de novos quadros, que programas locais, como os cursos de formação profissional, ajudaram a consolidar. A participação dos museus da Madeira em grandes exposições nacionais e internacionais (caso do Festival Europália em Bruxelas e Lisboa, em 1990-1991, e da Exposição Internacional de Sevilha, em 1992), do Museu de Arte Sacra, sobretudo, e do Museu da Quinta das Cruzes, fez equacionar a importância do seu património. Em 2009, foi organizada, no palácio nacional da Ajuda, a exposição Obras de Referência dos Museus da Madeira – 500 Anos de História de um Arquipélago, que constituiu a mais abrangente embaixada cultural e patrimonial da Madeira em Portugal continental. Já desde os anos 90 se assistia a uma maior sensibilidade relativamente ao património, que a criação de roteiros de leitura patrimonial ajudaram a concretizar. Para além disso, a posterior entrada em cena de unidades culturais de âmbito paramuseológico, como os centros culturais, vieram trazer um complemento importante à ativação do dinamismo cultural, quase todos com uma dimensão de descentralização, como o Centro Cultural John dos Passos, na Ponta do Sol, o Parque Temático de Santana, o Centro de Vulcanismo, em São Vicente, o Centro de Ciência Viva, no Porto Moniz, e especialmente o Centro das Artes Casa das Mudas, pelas excecionais condições infraestruturais e superior qualidade arquitetónica. Esta descentralização cultural e uma cada vez maior abrangência de tipologias e diversificação dos conteúdos têm motivado uma maior consciência da identidade e uma noção mais ampla de património cultural. Tal processo deve entender-se num quadro de interação cultural e rentabilização de esforços, correndo-se, no entanto, o perigo da pulverização dos recursos e estratégias. Uma esperança redobrada nasceu com o protocolo celebrado entre a Direção Regional dos Assuntos Culturais e o Instituto Português de Museus, em 2002, com a entrada dos museus dependentes desta tutela regional para a Rede Portuguesa de Museus. A participação e consolidação da presença dos museus madeirenses na Rede criou a oportunidade do estabelecimento de parâmetros comuns de atuação e a circulação de formação e informação fundamental para a ação museológica, como mostra, por exemplo, a criação de regulamentos internos dos museus, que a Lei Quadro dos Museus (n.º 47/2004, de 19 de agosto) e o estabelecimento do princípio da credenciação (desp. normativo n.º 3/2006, de 25 de janeiro) vieram impor. Assim, a Rede tem sido um agente de colaboração e de participação ativa na criação de ações de formação profissional dos quadros da Ilha e um participante ativo no financiamento de projetos do Museu de Arte Sacra do Funchal (desp. normativo n.º 3/2006, de 13 de julho).   Francisco António Clode Sousa (atualizado a 01.02.2018)

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noronha, adolfo césar de

Naturalista e homem de cultura natural do Funchal, onde nasceu a 9 de setembro de 1873, Adolfo César de Noronha estudou no Liceu do Funchal e nas antigas Escola Politécnica de Lisboa e Academia Politécnica do Porto. A 11 de dezembro de 1914, foi nomeado bibliotecário da Biblioteca Municipal do Funchal (BMF) e, em 1928, seu diretor, cargo que ocupou até à sua aposentação, em 1943. Com ligações familiares ao Porto Santo, efetuou nesta ilha observações meteorológicas, colheitas de espécimes, em particular fósseis, e ainda observações ornitológicas, que, juntamente com outras colheitas no arquipélago, vieram a servir de base a estudos efetuados por eminentes cientistas da época, com destaque para Ernesto Schmitz  (aves), Z. J. Joksimowitsch, P. Oppenheim e J. Böhm (fósseis). Na área do mar, colheu esponjas e briozoários, muitos deles novos para a ciência. À época, causou sensação a descoberta de uma esponja incrustante, simultaneamente com espículas calcárias e siliciosas, Merlia normani, obtida por dragagens no Porto Santo. Estas dragagens foram feitas em conjunto por Noronha e Randolph Kirkpatrick em 1909, tendo este último publicado a descrição desta esponja num extenso artigo publicado no Quarterly Journal of Microscopical Science, em 1911. Em 1922, encabeçou uma expedição científica às ilhas Selvagens (onde já tinha ido em 1906 e 1909), acompanhado de Adão Nunes e Damião Peres. Por vicissitudes com o navio que os deveria trazer de volta ao Funchal, acabaram por lá permanecer dois meses, causando motivos de preocupação na sociedade madeirense. O seu regresso ao Funchal foi motivo de receção pelas mais altas individualidades da Madeira, conforme noticiado pelo Diário de Notícias do Funchal de 13 de junho desse ano. Dessa expedição resultaram observações meteorológicas e colheitas de espécimes que foram enviadas a especialistas mundiais da época. Com o seu vasto conhecimento da história natural da Madeira e sendo fluente no inglês, francês e alemão, Adolfo César de Noronha foi o correspondente por excelência na Madeira de muitas figuras gradas da ciência do início do séc. XX. Como gesto de reconhecimento, várias espécies novas para a ciência foram-lhe dedicadas: Schizoporella noronhai, briozoário abissal, Pecten noronhai e Spondylus noronhai, moluscos bivalves fósseis, entre outras. Estudou com profundidade os peixes da Madeira, tendo publicado em 1925, no Porto, um ensaio intitulado Um Peixe da Madeira. O Peixe Espada Preto, ou Aphanopus carbo dos Naturalistas e, no ano seguinte, nos Annals of the Carnegie Museum, dois artigos sobre duas espécies novas para a ciência: um peixe da família dos escolares, Diplogonurus maderensis, e um tubarão de profundidade raro, que dedicou ao seu amigo Alberto Artur Sarmento, Squaliolus sarmenti. Em coautoria com Sarmento, publicou também, em 1934, um trabalho de divulgação intitulado Os Peixes dos Mares da Madeira e, em 1948, o segundo volume (Peixes) do importante trabalho Vertebrados da Madeira, editado pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Colaborou ativamente com Fernando Augusto da Silva e com Carlos Azevedo de Meneses na elaboração do Elucidário Madeirense (1922), tornando esta obra numa referência da história natural do arquipélago da Madeira. Logo após a sua nomeação como diretor da BMF, à época instalada no edifício dos Paços do Concelho em exíguas condições, começou a defender a aquisição de um edifício para a sua reinstalação e a criação de um museu que pudesse alojar as suas coleções de história natural e outro património artístico, arqueológico e histórico pertencente à Câmara Municipal do Funchal (CMF). Esta intenção foi concretizada em 1929 com a criação do Museu Regional da Madeira e com a aquisição do palácio de S. Pedro, para a qual foi decisiva a ideia por si realizada de emitir um selo postal da Madeira cuja receita reverteu para esta aquisição. Com a preciosa colaboração de Günther E. Maul, o novo Museu abriu as suas portas ao público em 1933, sendo hoje o Museu de História Natural do Funchal. Ao aposentar-se, a 9 de setembro de 1943, a CMF prestou-lhe homenagem atribuindo o seu nome à sala principal do Museu. A Augusto Nobre (1865-1946), distinto cientista português e catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, são atribuídas as seguintes palavras acerca de Adolfo de Noronha: “possui todos os requisitos para ocupar com distinção uma cátedra em qualquer universidade do país” (SILVA e MENESES, 1965, 426). Adolfo César de Noronha morreu no Funchal, a 6 de abril de 1963. Obras de Adolfo César de Noronha: Um Peixe da Madeira. O Peixe Espada Preto, ou Aphanopus carbo dos Naturalistas (1925); “A New Species of Deep Water Shark (Squaliolus sarmenti) from Madeira” (1926); “Description of a New Genus and Species of Deep Water Gempyloid Fish, Diplogonurus maderensis” (1926); Os Peixes dos Mares da Madeira (1934) (coautoria); Vertebrados da Madeira. Peixes (1948) (coautoria).   Manuel José Biscoito (atualizado a 03.03.2018)

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