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convento de são francisco do funchal

O mais importante e interventivo Convento na vida geral da Madeira sempre foi o de S. Francisco do Funchal, com profundas raízes locais e, ao mesmo tempo, com um especial sentido de liberdade imediatista, que criou inúmeros problemas às autoridades instituídas. Os Franciscanos acompanharam os primeiros povoadores em 1420, e foi-lhes depois entregue a assistência espiritual nos primeiros anos do povoamento. Dez anos depois, por volta de 1430, estava na Madeira Fr. Rogério, então também acompanhado de frades de origem castelhana, galega e biscainha que, segundo Fr. Manuel da Esperança, bem podiam encher de conventos toda a Ilha, se ela tivesse povoações nas quais se sustentassem. Acrescenta ainda o cronista que tal não teria acontecido de imediato, pois “vinham fugidos do mundo e não podiam (ou não queriam) ver gente”. Assim, “encovados pela serra, conversavam só com Deus, pretendendo imitar o rigor da penitência” (ESPERANÇA, 1666, 670-671). Foi com esse espírito que os Franciscanos se instalaram num eremitério com a invocação de S. João Baptista, cerca de 10 anos depois, por volta de 1440, como viria a escrever, mais tarde, Fr. Nuno Cão (c. 1460-1530/1531), vigário do Funchal, em sentença de 1499: “que haveria ora sessenta anos” que ali se tinham fixado (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 11, n.º 1). O eremitério era na margem direita do ribeiro de S. João, no Funchal, e teria quase uma dezena de irmãos leigos, tendo tido como guardião Fr. Pedro das Covas ou Fr. Pedro Mourão, “homem velho e de muita autoridade” (SILVA, 1946, 163). Os Franciscanos da província de Portugal só em 1450 conseguiram autorização, pela bula Iniunctum Nobis, de 28 de abril desse ano, do Papa Nicolau V para manterem um eremitério na Madeira, que já teriam erguido sem qualquer beneplácito. Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita   Convento de São Francisco. (pormenor) Arquivo Rui Carita   A comunidade madeirense foi entregue ao vigário provincial dos observantes portugueses, mas, como haveria de referir o vigário do Funchal, os Franciscanos que à “ilha iam habitar e morar, iam de passada a ver o mundo, cada um por sua arte e não faziam assento” definitivo, correndo “para as outras ilhas de baixo (as Canárias, em princípio), como caminhantes” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 11, n.º 1). Essa situação e a interferência das outras comunidades provinciais ibéricas acabaram por levar os Franciscanos a sair da Madeira, em 1459, então nove elementos, dois padres e sete leigos, vindo a instalar-se, por ordem real, no futuro Convento de Xabregas, em Lisboa, sob o padroado da condessa da Atouguia. No continente, e depois do falecimento do infante D. Henrique, em 1460, os principais das Ordens de S. Francisco e de Cristo procuraram um entendimento e, por certo, uma delimitação de campos de ação. Encontrado esse acordo, regressaram os Franciscanos à Ilha, embora somente quatro do grupo que havia saído em 1459, voltando a ocupar o pequeno Hospício de S. João, por volta de 1464. Os Franciscanos voltaram sob a direção de Fr. Rodrigo de Arruda, homem de certa influência junto do geral da Ordem, em Roma, e que fora já provincial em Portugal, além de manter relações pessoais de amizade com o segundo capitão donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Referiu o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) e transcreve Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) que, tendo os Franciscanos acompanhado o Cap. João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), este lhes deu agasalho no Funchal, numas casas em lugar ermo, de onde depois se transferiram para o edifício que construíram “em baixo na vila […], nuns chãos e terras defronte de Santa Catarina, além da ribeira” (FRUTUOSO, 1968, 86). Foi, assim, na sua primeira residência, a pequena capela de S. João Batista, ou de S. João da Ribeira, que se vieram a instalar, de novo, em 1464, e que, pouco tempo depois, teria breve de autorização do Papa Sisto IV, de 1476. Entretanto, Fr. Rodrigo de Arruda, logo que chegou ao Funchal, aproveitando as boas disposições dos habitantes e a autorização que já possuía, tratou de levantar um novo convento no centro da povoação. Os Franciscanos achavam o sítio em São João da Ribeira impróprio para a sua instalação, “escondido no meio da ribeira e tão distante do povo para o serviço dele, nas confissões e sermões, e noutros ministérios da alma”, ainda acrescentando as Saudades da Terra que a causa da mudança, para além de que “o lugar era ermo”, era que um frade, “por induzimento do Demónio, que sempre urde semelhantes teias”, se tinha ali enforcado, havendo assim necessidade de encontrar outro sítio (Id., Ibid., 85). O terreno escolhido foi um que pertencera a Clara Esteves, que em testamento o havia vinculado a um seu parente, o então escudeiro João do Porto, cedendo os religiosos, em troca, o Hospício de S. João, menos a capela, tendo tudo sido autorizado pela infanta D. Beatriz, como tutora de seu filho, o duque D. Diogo, grão-mestre da Ordem de Cristo, a quem a Ilha pertencia. A instalação no Funchal deve datar de 1473, como se pode ler na lápide sepulcral dos fundadores, Luís Álvares da Costa e seu filho, Francisco Álvares da Costa, provedor da Fazenda, igualmente o ano do testamento de Clara Esteves, de 1 de janeiro, que já deixava ao Convento, por certo ainda à comunidade de S. João da Ribeira, 2000 réis, uma peça de pardo para vestuário e 30 varas de burel para vestes. Laje sepulcral dos fundadores. 1473. Arquivo Rui Carita As instalações do novo Convento progrediram rapidamente, já tendo guardião em 1476, Fr. Rodrigo Contendas, tendo-se ali registado, em finais de 1482, o célebre milagre com a imagem de um crucifixo. Segundo a tradição, esta imagem, que “falava algumas vezes” com Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, aos pés de cujo altar foi depois sepultada, teria realizado um milagre, a 26 de dezembro de 1482. Nesse dia, pregando então o P.e Fr. Rodrigo, viu D. Helena o “braço direito do dito crucifixo derribado fora da cruz, todo ao lado do corpo”, milagre depois autenticado pelo bispo D. Fr. Loureço de Távora (1566-1629), a 24 de outubro de 1615 (BNP, IGRAPRF, 1775, fls. 85-88). O Convento passou logo a usufruir dos privilégios gerais concedidos por D. Afonso V, em 2 de abril de 1459, em que se isentava os Franciscanos do pagamento de fintas, taxas e tributos, como a sisa e a dízima, a “portagem costumada de peão”, o vinho, a carne e o pescado. O longo documento de isenção refere ainda aquilo que comprassem para seu mantimento, “para seus vestidos e necessidades”, materiais que comprassem para reparação dos mosteiros e casas, tais como pedra, cal, areia, madeira, pregadura, tabuado, cavalgaduras e animais de carga, “com seus aparelhos, que para servidão comprarem”, “posto que os tornem a vender”, etc. O mesmo se passava com as coisas que lhes fossem dadas ou deixadas, “que eles possuir não possam, e quaisquer joias e ornamentos” que comprassem ou lhes vendessem para os serviços divinos, assim como vestimentas, capas, livros, imagens e quaisquer outras coisas “que para isso pertencerem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 1, n.º 4). As obras da primeira fase do Convento foram, assim, iniciadas em 1474, e o Convento já se encontrava habitado por volta de 1487, numa primeira fase das obras. Gaspar Vaz, que fora para a Madeira em 1539, por ordem de D. João III, em carta de 20 de maio de 1542 dá conta ao Rei das obras que, nessa altura, decorriam no Convento de S. Francisco, ordenadas pelo visitador da Ordem, Fr. Nuno, que, “por o mosteiro de S. Francisco estar mal remediado de dormitório, ordenou uma obra mui formosa e honrada, a saber: dormitório novo e debaixo refeitório com seu peio”, ou seja, uma fonte de água (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 72, doc. 9). O visitador que ordenara estas obras era também um pregador de grande fama e fora angariar fundos para as obras necessárias ao Convento do Funchal, e reformar igualmente os restantes Conventos franciscanos locais, que, após terem formado uma província autónoma, por bula de Sisto IV, de 1477, tinham voltado a depender da província de Portugal, por bula de Inocêncio VIII, em 1488. O Convento veio a ser sucessivamente ampliado, logo a partir de 1550, quando beneficiou de um legado de D. Maria de Atouguia, filha do provedor Francisco Álvares da Costa, que, falecendo solteira, a 11 de fevereiro desse ano, deixou uma pensão para missas por sua alma e para aquisição da cerca. Nos anos seguintes, era ampliada a igreja, sendo sagrada a 14 de março de 1554 pelo bispo castelhano D. Sancho Trujillo, que, passando pela Ilha vindo das Canárias, ali passou algum tempo. Este bispo castelhano pretendeu depois, inclusivamente, ser titular do bispado do Funchal, quando era bispo de pleno direito D. Fr. Gaspar do Casal (1510-1584), embora o mesmo nunca se tenha deslocado ao Funchal, tendo sido depois, em 1557, bispo de Leiria e, em 1579, de Coimbra. O Convento já possuía importantes adegas em 1566, conforme consta do saque corsário de outubro desse ano, onde alguns dos huguenotes franceses estiveram alojados e se teriam embebedado. Aliás, alguns dos frades do Convento de S. Francisco teriam sido dos poucos habitantes da cidade que afrontaram as forças francesas, por indicação do comissário, Fr. Baltasar Curado, na rua da Carreira, tendo à frente Fr. Álvaro de Miranda, que em Mazagão se havia notabilizado contra os mouros, mas ali foi morto, tal como cinco dos frades que o acompanhavam. No interior do Convento, ainda seria morto o sacristão, o P.e Fr. Rodrigo de Portalegre, que ali tinha ficado a esconder o tesouro com o vigário Fr. João dos Reis. O vigário, entretanto descoberto na sua cela, veio a escapar à morte por ter revelado o esconderijo das pratas do Convento. A cerca e o claustro de S. Francisco serviram depois para o enterramento das cerca de 300 vítimas do saque dos corsários franceses. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), mais tarde, por volta de 1722, escreve que os 10 Franciscanos mortos durante o saque de 3 de outubro foram sepultados no chamado “capítulo velho”, “debaixo de uma só campa”, seguindo as informações de Fr. Manuel da Esperança (ESPERANÇA, 1666, 684). O cronista acha serem muitos corpos para uma só sepultura, embora entenda que ali foi sepultado, pelo menos, Fr. Álvaro de Miranda, por determinação de seu irmão João Mendes de Miranda, porque da família do instituidor da capela daquele capítulo, ou seja, Simão Acciauoli (c. 1480-1544). Os Franciscanos mortos tinham sido, para além de Fr. Álvaro de Miranda e de Fr. Rodrigo de Portalegre, que refere como Rodrigo de Santiago, já mencionados, ainda Fr. Inácio de Leiria, Fr. Pedro de Eça, Fr. Pantaleão, Fr. Manuel da Cruz, Fr. Custódio Corista, Fr. Simão Corista e Fr. Francisco Cartaxo, assim como Fr. Gaspar “Terceiro”, um irmão donato, ou seja, que ainda não havia professado, embora já de alguma idade, por certo, que “pasmou e de pasmo morreu” (NORONHA, 1996, 240).   Planta da cidade 1570. Arquivo Rui Carita   Planta da cidade e Convento 1567. Arquivo Rui Carita Na armada de socorro de uma semana e pouco depois, provavelmente teria vindo o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1530-1595), que levantou uma planta da cidade, aproximadamente entre 1567 e 1570, onde se percebem as dimensões e a forma geral do Convento de S. Francisco. O edifício ocupava cerca de metade do posterior jardim municipal, dando sobre a rua dessa evocação nos começos do séc. XXI e ocupando a igreja o limite sul do jardim, com o adro lateral a avançar para a Av. Arriaga. A igreja parece já apresentar planta em cruz latina, com o braço sul do transepto saliente, tal como parece ter tido nártex nessa época, indicado com um ponteado para a colunata, como se encontra marcado para os claustros. O dormitório, sob o qual se encontrava o refeitório, deveria ficar para norte, e a cerca envolvia o Convento pelo norte e poente, prolongando-se até ao que é, nos começos do séc. XXI, a R. Conselheiro José Silvestre Ribeiro e ocupando a Av. Arriga quase até à R. das Fontes, tendo o teatro municipal sido levantado no antigo espaço da cerca do Convento. Registam depois as Saudades da Terra, entre 1585 e 1590, que, naquela altura, estava fundado um Mosteiro de S. Francisco da observância, “de boas oficinas, como um dos mais nobres e graves do reino” que os Franciscanos tinham em Portugal, em que sempre estavam perto de 50 frades (FRUTUOSO, 1968, 114). A grande mobilidade social dos Franciscanos é patente depois no recenseamento de 1598, “tirado pelos róis das confissões”, onde se refere o Mosteiro de S. Francisco, “que geralmente tem quarenta religiosos” (BGUC, cód. 210, fl. 30), o que é perfeitamente indicativo de que, mesmo pelos róis de confissões, era impossível assegurar um número concreto. A igreja era “muito grande e lustrosa”, segundo escreveu Frutuoso, especialmente após a ampliação levada a cabo pelo P.e Fr. Diogo Nabo, “guardião dela e comissário de toda a ilha”. Havia então oito capelas “muito ricas” e dois altares, que pensamos serem os colaterais, para além da capela-mor. Diziam missa “uma hora ante manhã”, onde concorria muito povo, dando muitas esmolas na portaria e tendo o púlpito sempre três a quatro pregadores. A cerca era muito grande, com “água de levadas”, com que regavam muita hortaliça “de couves murcianas, beringelas e cardos”, e tinham pomar com “árvores de espinho”, palmeiras, ciprestes, pereiras, romeiras “e toda a frescura que se pode ter de frutas e ervas cheirosas”, sem se ter necessidade das de fora. Na cerca, também tinham muitas uvas e, como a população era “gente de tanta caridade”, no verão juntavam de esmolas trinta pipas de vinho (Id., Ibid., 114).                     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita A cerca do Convento de S. Francisco do Funchal, confrontando para poente com o solar de D. Mécia, como ficou depois conhecido, ficaria no final do século seguinte ligada a uma das mais célebres ocorrências de então. Este solar fora levantado, em princípio, por João de Ornelas de Magalhães, alcaide da fortaleza do Funchal por nomeação de 14 de maio de 1555, pois já figura na planta da cidade, dos anos de 1567 a 1570, e ostenta no portal exterior as armas desta família. O acidente ocorreu a 7 de março de 1695: encontrando-se D. Mécia de Vasconcelos na janela do seu solar, foi atingida por um tiro disparado por um Franciscano na cerca do Convento. Regista o termo de óbito do cura da Sé, o P.e Francisco de Bettencourt e Sá, que certo religioso de S. Francisco, “natural desta ilha”, para matar um francelho que estava pousado em uma árvore, lhe fez um tiro de espingarda e, disparando-a, deu “um perdigoto na testa por cima do olho” de D. Mécia, de tal sorte “que perdeu os sentidos e o juízo”, falecendo pouco depois (ABM, Sé, Óbitos, liv. 9, fl. 24). Certidão do Guardião do Convento de São Francisco. 1619. Arquivo Rui Carita Com a concentração de inúmeras capelas vinculadas às principais famílias insulares, muitas das quais com sepultura no Convento de S. Francisco, a comunidade adquiriu uma notável influência na vida económica e social insular, não deixando o edifício de crescer nos anos seguintes. O primeiro problema foi o dos testamentos e do usufruto dos legados dos mesmos e, depois, o da impossibilidade de, a curto prazo, cumprir muitos desses legados pios, logo nos meados do séc. XVI, especialmente pela enormidade de missas a celebrar “enquanto o mundo for mundo”, como por vezes se registou. A questão do elevado número de missas, estando muitas já em atraso, levou o prelado, nos finais desse século, a ter de solicitar autorização de Roma para o seu perdão (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, t. 3, 608-608v.). Depois, foi a progressiva centralização do poder nos sécs. XVII e XVIII, quer régio quer eclesiástico, aspeto relativamente ao qual os membros desta comunidade, com a sua tradicional liberdade de movimentos e de costumes, e a sua facilidade de palavra, não ofereciam especial vocação de subordinação. Os problemas com os legados testamentários ocorreram logo em meados do séc. XVI, colocando em oposição o cabido da Sé do Funchal e os Franciscanos. Queixaram-se, então, os membros do cabido a D. João III, “por descargo de suas consciências”, em carta de 22 de maio de 1550, das formas fraudulentas dos frades do Convento de S. Francisco “no fazer dos testamentos”. Contam que, tendo falecido um mês antes “um certo doutor físico de uma prosternação”, o mesmo fora visitado e “importunado”, quando acamado, por um padre que então servia de guardião do Convento, de nome Fr. António de Leiria, conseguindo que o mesmo fizesse testamento a favor do Convento. Escrevem os elementos do cabido que o testamento em questão “foi feito de tal maneira, que tendo ele perto de trezentos mil réis de fazenda, sem sua mulher viva e com três filhas para casar, despendeu em legados para o mosteiro, missa e ofícios, sessenta mil réis”. O enfermo ainda recuperou e pediu para ser revisto o testamento, mas tendo perdido a fala (embora acenasse a cabeça), os Franciscanos não aceitaram a alteração. Pedindo para ser enterrado na Sé, dado dali ser freguês, e vindo o corpo, os Franciscanos foram buscar “o defunto com a tumba”, que levaram para S. Francisco, não atendendo a “excomunhões” (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 84, doc. 59), nem ao provisor, deão e cabido que ali estavam. Os elementos do cabido queixam-se ainda de que os Franciscanos “usurpavam a jurisdição do arcebispado”, utilizando inibitórias do Dr. Luís de Alarcão, “como juiz apostólico com comissão do Núncio”, para mudarem o vigário da vila da Calheta, “desta jurisdição, que servia como ouvidor pedâneo pelo cabido”. Remata a missiva: “E porque isto é em grande prejuízo do Seu padroado, lho fazemos saber”, para se tomarem as devidas providências (Id., Ibid.). Assinam todos os membros do cabido, mas não consta que se tivessem tomado especiais providências contra os Franciscanos. No final do episcopado de D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), a 31 de outubro de 1607, reprovava-se o procedimento de alguns oradores franciscanos, que pregavam “paixões e escândalos esquecidos da obrigação do seu ofício”. Determinou assim o bispo que não fossem admitidos ao púlpito da Sé sem a sua expressa comissão e licença, tendo comunicado inclusivamente à hierarquia da Ordem as atitudes inconvenientes de Fr. António de Pádua, enquanto pregador na Catedral (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, n.º 19). Mais tarde, nas Constituições Sinodais do seu sucessor, de 14 de junho de 1615, o assunto voltava a ser recomendado ao comissário do Convento de S. Francisco do Funchal, alertando-o para que recrutasse pregadores experientes e sabedores, que soubessem atrair os fiéis, caso contrário o prelado reservava-se no direito de prover o lugar a pessoas mais competentes. O assunto, no entanto, atravessaria todo o séc. XVII e passaria ao seguinte. As questões com os Franciscanos ocorreram essencialmente por duas ordens de razões. A primeira, ligada à nova custódia de S. Tiago Menor da ilha da Madeira, determinada por patente do geral da Ordem, em 5 de junho de 1683, e confirmada por Inocêncio XI, a 30 de junho de 1683, pela qual os Conventos da Madeira voltaram a ser separados da província de Portugal. A situação foi sancionada por resolução régia de 6 de maio de 1688, ficando a nova custódia sob proteção régia, por alvará de 23 de janeiro de 1689, que colocava o Convento de S.ta Clara na dependência do custódio do Convento de S. Francisco. A situação levou a confrontos entre os frades e as freiras, com interferências dos primeiros nas eleições e na organização interna do Convento das Clarissas, que muito “escandalizavam” a população. O assunto já levara a um alerta do príncipe regente D. Pedro para o Gov. João de Saldanha da Gama, em 1673 (ABM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 1215, fl. 63), mas também tocava ao prelado, que envidou esforços no sentido de serenar os ânimos entre as duas comunidades seráficas. A segunda razão dos problemas com os Franciscanos envolvia, periodicamente, as violentas e inoportunas pregações na Sé, cujo púlpito lhes estava atribuído, pelas quais eram inclusivamente pagos, mas que se afastavam por vezes bastante da contenção a que deviam obedecer. O assunto voltaria a agudizar-se poucos anos depois, sendo objeto de acórdão do cabido, de 16 de janeiro de 1684, onde se refere “que o púlpito não era lugar de despiques”, a propósito da contenda pessoal, e perfeitamente privada, entre dois pregadores franciscanos, os padres Fr. Raul de Santo António e Fr. Manuel de Santo Inácio, que aproveitaram os seus sermões para, do púlpito da Sé, fazerem ataques mútuos (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, fls. 32ss.). O cabido decidiu a suspensão dos Franciscanos, voltando a advertir o padre comissário do Funchal para, no prazo de 15 dias, enviar à Catedral religiosos de “melhor talento” de outros Conventos. Insistia o cabido que, caso contrário, preencheria o lugar de pregador “em sujeitos, que com mais exemplo e aproveitamento dos ouvintes, pregassem a palavra de Deus” (Ibid., fls. 47ss.). Os avançados anos do prelado e, muito especialmente, o desgaste sofrido com os problemas em que se viu envolvido com os Franciscanos, e outros, como a censura régia pela excomunhão lançada sobre o governador, que prendera, sem sua autorização, o deão da Sé, Pedro Moreira (c. 1600-1674), fizeram com que, depois de uma breve enfermidade, D. Fr. Gabriel de Almeida (c. 1600-1674) falecesse no Funchal, a 13 de julho de 1674, com pouco mais de dois anos de episcopado. Mais tarde, também a tradicional mobilidade da comunidade franciscana era alvo de provisões do Desembargo do Paço, de 24 de setembro de 1718 e de 21 de outubro de 1729, determinando-se que se deveria notificar os capitães dos navios e os respetivos cônsules, para que não levassem “religioso algum” sem expressa licença dos seus prelados, ou seja, dos superiores dos conventos, “sob pena pecuniária e de prisão”. O segundo diploma, dirigido ao custódio provincial, especifica inclusivamente que faltar ao cumprimento daquela provisão implicava a pena de cem mil réis “para os cativos” no Norte de África e um mês de cadeia (BNP, IGRAPRF, 1775, 88v.). Mas os Franciscanos eram “uma força da natureza” e, pouco tempo depois, o governador e capitão-general Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, a 21 de junho de 1738, queixava-se para o secretário de Estado, em Lisboa, da fuga da Madeira de Fr. Álvaro de São Luís (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 45). O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ocupou um importante papel na história da Madeira ao longo de todo o Antigo Regime. A igreja do Convento era o verdadeiro panteão de grande parte das mais antigas famílias do arquipélago, e nas suas Confrarias tinham assento não só os principais membros dessas famílias, como os quadros superiores da Ilha, incluindo governador, bispo e provedor da Fazenda, aspeto que persistiu inclusivamente até à extinção do Convento. Em 1722, Henrique Henriques de Noronha descreve o Convento, começando pela cerca e claustro, afirmando que tem um chafariz no meio “e um asseado jardim”, para o qual davam as varandas, sustentadas por colunas “de cantaria fina”. Para o claustro davam a sacristia e as casas da Confraria da Senhora da Soledade e dos Irmãos Terceiros, “ambas custosamente asseadas”, a última, em princípio, dedicada depois a Nossa Senhora da Conceição (NORONHA, 1996, 234). Refere o cronista que o Convento deveria ter, pelos seus estatutos, 50 religiosos, mas tinha então muitos mais. A igreja era de uma só nave, com quatro altares de cada lado da nave, dois colaterais e altar-mor, referindo Noronha que, em tempos, o cadeiral tinha ficado na capela-mor, mas que o removera Fr. Diogo Nabo antes de 1554, ampliando então aquela capela e passando a entrada principal para a fachada sul, devendo o cadeiral do coro ter passado para o fundo da nave, a poente. O altar-mor tinha “nobre retábulo”, já dotado de tribuna, e a mesma estava “coberta por excelente pintura do Santo Patriarca” (Id., Ibid., 236) dos Franciscanos, cuja pintura não sobreviveu. Toda a igreja fora azulejada em 1632, incluindo a capela-mor, onde tinham sepultura os religiosos, como era hábito nas casas franciscanas, tendo as armas dos Costa nas paredes e, ao centro, a sepultura dos fundadores Luís Álvares da Costa e Francisco Álvares da Costa, com a indicação da data de 1473, coberta por laje de brecha calcária da serra da Arrábida, que se encontra no cemitério de S. Martinho. O altar colateral do lado do evangelho era dedicado a St.o António “de Pádua, imagem milagrosa” (Id., Ibid.), como se podia constatar, segundo o cronista, pelos inúmeros votos mandados pintar e colocados na parede junto do mesmo altar. Fora fundado por Rui Gonçalves de Velosa, filho único de Gonçalo Anes Veloso, escudeiro do infante D. Fernando e fundador do Hospital e capela de S. Bartolomeu. O fundador deste altar encontrava-se sepultado aos pés do mesmo, com sua mulher Leonor Dória. No altar colateral do lado da epístola, dedicada às Almas Santas, onde figurava o Senhor do Milagre, “que representando estar morto tem a boca aberta, como quem fala”, encontrava-se sepultada, em frente, D. Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, que fora mulher de Martim Mendes de Vasconcelos, o Velho. Ao seu lado, e numa laje flamenga, com “lâminas de bronze” e uma figura feminina a rezar, estava sepultada Joana Valente, “devota das Chagas de Cristo” (Id., Ibid., 236-237), que fora a primeira mulher do terceiro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). Distribuídas pela nave da igreja, do lado do evangelho, encontrava-se a capela do Espírito Santo, depois também dos mártires de Marrocos, que fora fundada por D. Maria de Bettencourt (c. 1430-1491), mulher de Rui Gonçalves da Câmara (c. 1430-1497), mas cujo marido que não estava ali sepultado, dado ser capitão da ilha de São Miguel, nos Açores. Na parede lateral, estava um brasão com o leão de negro e rampante, armado de vermelho, dos Bettencourt, a “agarrar” uma flor-de-lis, símbolo da ligação desta linhagem à família real de França. Seguia-se a capela de N.a S.ra dos Anjos, mandada edificar por Manuel de Amil (1509-1585), filho do bacharel João Fernandes de Amil (c. 1460-c. 1520), que fora o primeiro provedor da misericórdia do Funchal. A terceira capela do lado do evangelho era dedicada a S. João Batista, tendo sido fundada pela família Mondragão e da qual era então administrador Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt Machado (1644-1717), pai da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1789). A última capela era dedicada a S. Diogo, “que antigamente se chamou de Santiago” e fora instituída por Lourenço da Gama Pereira (c. 1521-1604), que ali se encontrava sepultado com a primeira mulher, Águeda Teixeira, e a segunda, Isabel de Mondragão. O instituidor era irmão do célebre António da Gama Pereira (1520-1595), desembargador do Paço na época de Filipe II de Castela, e que “dispôs as ordenações do reino” (NORONHA, 1996, 238-239) as famosas Ordenações Filipinas, terminadas e aprovadas em 1595, embora só editadas em 1603, elaboradas em colaboração com Damião de Aguiar e Jorge Cabedo de Vasconcelos, que Noronha não cita. Rainha Santa Isabel. 1640. Arquivo Rui Carita A primeira capela do lado da epístola devia corresponder ao inicial braço do transepto, sendo citada como “maior que as demais, custosamente ornada e com porta travessa para o adro”. Era dedicada à Rainha S.ta Isabel e encontrava-se entregue aos Irmãos Terceiros de S. Francisco, “e ali têm enterro os que querem” (Id., Ibid.). Desta capela deve restar a magnífica imagem da Rainha Santa, que a tradição dá como proveniente do Convento da Encarnação, mas que tem muito mais probabilidades de ser desta capela, até porque desde os inícios do séc. XX se encontrava no Museu Municipal, onde podia ter chegado pelos Irmãos Terceiros, antes de ter figurado no antigo Museu da Cidade nos inícios da déc. de 80 do séc. XX. Seguia-se a capela de N.a S.ra da Conceição, “imagem de grande devoção”, onde existiam as sepulturas de António da Silva Madeira e de Jerónimo Pires do Canto, que, por se terem extinguido os herdeiros, ficara devoluta para o Convento. A terceira capela era de N.a S.ra da Encarnação, fora instituída por Diogo de Barcelos e passara depois para Jerónimo Vieira da Costa. A quarta capela era de N.a S.ra da Graça e tinha sido edificada por João Gomes da Ilha (c. 1430-1495), o Trovador, pajem do livro do infante D. Henrique, e que passou depois ao seu filho Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1460-1544), que fora vedor das obras da Sé. Por baixo desta capela ainda havia outra, mais pequena, “a qual edificaram de moderno” (Id., Ibid.) os irmãos da Confraria de S. Benedito, no dizer do cronista, pelo que seria capela levantada já nos inícios do séc. XVIII. Esta devoção era, em Portugal e no Brasil, geralmente dos escravos forros, havendo uma imagem deste frade na capela do Corpo Santo, mas não se conhecendo qualquer documentação a esse respeito para o Funchal. À volta dos claustros ainda existiam mais capelas, a começar pela levantada no chamado “capítulo velho” por Simão Acciauoli, dedicada a Nossa Senhora da Piedade, “que é de excelente pintura”, no dizer do cronista, que só teve idêntica referência para a pintura do retábulo-mor. No “capítulo novo” ficava a capela da Virgem Santíssima e, anteriormente, dos mártires de Marrocos, que, segundo a tradição, teriam passado depois para a capela do Espírito Santo, instituída por Maria de Bettencourt. Nesta capela tinham os religiosos “a sua aula, decentemente ornada”, e igualmente muitas “sepulturas nobres, cujos donos dizem os seus letreiros”. No andar superior ainda existiam mais capelas, como a de N.a S.ra da Estrela e, com especial destaque, “outra que chamam” de N.a S.ra da Escada, ou do Poço, com “imagem de muita devoção” (Id., Ibid., 241), curiosamente uma imagem, muito provavelmente flamenga, em pedra, o que, até por razões de transporte, não é comum. Na passagem dos claustros para a portaria ainda ficava a capela de N.a S.ra da Piedade, acerca da qual havia crentes que afirmaram “que a viram chorar” e, na sua sequência, a capela de S. Caetano. Na portaria havia a capela do Senhor Crucificado e, da parte de fora, outra capela de S. João Batista, “cuja imagem se tirou do mar, misteriosamente”. Igualmente da porta de fora da portaria e pegada com esta estava a capela de N.a S.ra de Jerusalém, “edificada com as próprias medidas do Santo Sepulcro”, seguindo-se logo outra capela da Virgem da Piedade, “onde concorre a todas as horas muita gente”. O mesmo se passava com a capela das Almas, que lhe ficava contígua, sendo “as suas paredes interiores cobertas artificiosamente de ossos e caveiras organizados” (Id., Ibid.). A capela dos Ossos dos Franciscanos do Funchal resistiu à reconstrução dos finais do séc. XVIII, sendo referida na Viagem à Cochinchina do botânico e pintor sir John Barrow (1764-1848), em 1792 e 1793, sendo inclusivamente representada em litografia colorida na edição de 1806 (BARROW, 1806, 37A). Apresenta retábulo ao gosto dos finais do séc. XVII e inícios do séc. XVIII, com pintura de S. Miguel das Almas e duas grandes imagens sobre a mesa do altar, uma das quais parece ser de S. Sebastião. As paredes e o teto encontravam-se totalmente revestidos de caveiras enquadradas por ossos longos, talvez tíbias ou perónios, sobre lambril pintado ou revestido a azulejos. A vida do Convento de S. Francisco foi de alguma forma contida na vigência do bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), freire da Ordem de Cristo, que chegou ao Funchal a 22 de junho de 1725, não se registando nesse episcopado especiais problemas. Dos poucos livros deste Convento que chegaram aos nossos dias consta o Livro das Patentes, iniciado em 1732 por Fr. Jorge dos Serafins, que fora examinador e definidor das custódias açorianas franciscanas e então custódio provincial da de S. Tiago Menor da ilha da Madeira. Das várias provisões lançadas pelo custódio provincial, a primeira aborda o inteiro cumprimento da celebração das missas a que os Franciscanos se encontravam obrigados, incluindo as do dia de finados, no qual deveriam dizer missa “pelas benditas almas do Purgatório”, assunto que os “reverendos prelados locais, respeitando a indigência dos conventos”, descuravam, inclusivamente deixando que alguns clérigos pobres cobrassem dinheiro pelas mesmas, em nome individual da alma encomendada, o que se proibia terminantemente a partir do dia 1 de novembro seguinte, pois essas missas eram em nome “das almas de todos os finados defuntos” (ANTT, Conventos, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 1, fl. 7). A segunda provisão aborda o inveterado costume de muitos Franciscanos divulgarem “fora de portas” o que se passava no Convento, tal como as possíveis culpas de uns e de outros. O assunto já teria ido a capítulo e, em “nome do crédito dos religiosos desta Santa Custódia”, Fr. Jorge dos Serafins ameaçava com “pena de excomunhão maior, ipso facto incurrenda” todo aquele que revelasse a seculares, a religiosos de outra Ordem e a religiosas “defeito algum de seus irmãos” de que se pudesse atribuir culpa grave. Nessa sequência, advertia igualmente os padres pregadores e confessores que deveriam renovar as suas patentes 15 dias antes de as mesmas findarem, ou seja, no final do ano. As patentes deveriam ser entregues ao seu secretário, o P.e Fr. João de Santa Rosa, para serem avaliadas, o mesmo se passando com os novos padres que, no último capítulo, tinham sido instituídos “confessores de seculares”, e que até ao final de dezembro se deveriam pôr “expeditos para fazerem o seu exame”. Tendo tido conhecimento da falta de inúmeros livros nas várias livrarias dos Conventos da custódia, assunto que lembrara aos vários responsáveis e sobre o qual inclusivamente o Santo Padre já se pronunciara, listava vários dos livros em falta e voltava a ameaçar com pena de excomunhão os infratores (Id., Ibid., fol. 8). Com o novo bispo do Funchal, D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), que chegou à Ilha a 5 de setembro de 1741, a situação de início ainda teve outra cobertura, pois o prelado era Franciscano e vinha acompanhado de dois padres pregadores, igualmente “frades menores”, para o ajudarem na sua missão: Fr. Lourenço de Santa Maria e Fr. João do Sacramento. O novo bispo e os padres pregadores recolheram-se durante 12 dias no Convento de S. Francisco do Funchal, pelo que D. Fr. João do Nascimento só tomou posse da Diocese a 17 desse mês. De imediato, fez publicar uma carta pastoral, tal como fizera o seu antecessor, especialmente dedicada à “reforma dos costumes, à extirpação de abusos, restauração, perfeição e esplendor do culto divino”, assim como outra, dirigida ao cabido da Sé, introduzindo algumas modificações nos serviços do culto ali realizados (APEF, cx. 122, doc. 3, fls. 21v.-22v.). Ao longo do seu episcopado, no entanto, reacenderam-se alguns problemas, com situações que já vinham do anterior, como a demência do P.e Fr. João de São José Ferraz, cuja interdição foi solicitada pelo procurador-geral da custódia da ilha da Madeira, o P.e Fr. José da Conceição, em 1748, ou os incidentes relacionados com a expulsão da ilha de dois franciscanos, Fr. João de São José e Fr. José do Rosário, em 1755. Por vezes, era ao contrário, como em 1753, quando o custódio provincial, então Fr. José de Santa Maria, solicitou aos visitadores da mesma custódia no continente que obrigassem três religiosos do Funchal, que se encontravam em Lisboa, a regressar ao Convento, dado já ter expirado há muito o prazo da licença que lhes fora concedida. O controlo das instâncias superiores apertou-se ao longo do séc. XVIII, acusando os visitadores quase sempre os Franciscanos de “relaxados”, quer na forma como se comportavam dentro do Convento, quer em relação às eleições, aos seus deveres, etc., como se queixa em carta do Funchal, de 28 de maio de 1753, o visitador Fr. José da Natividade ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real, enviando, inclusivamente, uma representação do custódio provincial Fr. José de Santa Maria (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 13). Os problemas envolviam mesmo a atividade exterior dos Franciscanos, como se queixa depois o Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804), futuro barão de Alverca, em ofício de 21 de novembro de 1768, a respeito de um caso contrabando de tabaco, envolvendo o guardião do Convento, Fr. António de São Guilherme. O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ultrapassou sempre os pontuais problemas em que se foram envolvendo alguns dos seus membros, pois manteve-se, até à sua extinção, graças à capacidade de intervenção dos Franciscanos e à força das suas Confrarias, como um dos mais importantes centros de decisão políticos e económicos da Madeira. Assim, embora o gabinete pombalino tenha decretado a restrição de entradas nos conventos, com a subida ao trono de D. Maria I, em março de 1777, e o afastamento do marquês de Pombal, logo se envidaram esforços para ultrapassar a situação, sendo autorizada a entrada de 12 noviços por ano no Convento de S. Francisco do Funchal. Em carta datada do Convento do Funchal, de 8 de junho de 1777, o vigário custódio provincial Fr. Manuel de São José acusava a receção da autorização régia e agradecia. O Convento devia ter por essa data cerca de 100 religiosos, entre padres professos, leigos e noviços. A documentação das suas Confrarias, na maior parte, não chegou aos nossos dias, mas mesmo numa altura de franca recessão desse tipo de atividades, como no consulado pombalino, sucederam-se as iniciativas desse género. Por petição de 23 de março de 1765, e.g., o morgado João José de Bettencourt de Vasconcelos (1715-1766), familiar do Santo Ofício e administrador da capela de S. João Batista da igreja de S. Francisco, encabeçava uma lista dos principais proprietários madeirenses para fundarem uma nova Confraria de Nossa Senhora dos Anjos, Mãe dos Homens, e de S. José, Rei dos Homens. A petição era dirigida a Fr. António da Encarnação, vigário custódio da província, e incluía inúmeros eclesiásticos, como os padres doutores António José de Vasconcelos, João Henriques de Aragão e Manuel José da Rosa, Domingos João Alves da Silva Barreto, o Cap. António Vogado Teles de Meneses e os importantes comerciantes Pedro Jorge Monteiro, José João Veríssimo e José Fayan, entre outros. Os estatutos da Confraria seriam aprovados a 15 de fevereiro de 1767, e, tendo já falecido o promotor, era eleito como prefeito da mesma o então governador e capitão-general José Correia de Sá, enviado à Madeira para a extinção da Companhia de Jesus, que assina juntamente com o secretário António João Spínola de Macedo, para além dos outros membros da mesa. O documento é ainda reconhecido a 5 de março seguinte, pelo tabelião de notas Bartolomeu Fernandes e por Domingos Afonso Barroso, provedor da Fazenda. A aprovação do Rei D. José ocorreu a 27 de outubro seguinte e foi registada no Funchal a 23 de abril de 1769, tendo sido eleito para prefeito o então governador e capitão-general João António de Sá Pereira, servindo de secretário o padre genealogista José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, filho do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos e depois fidalgo-capelão, por nomeação de 5 de fevereiro de 1782. Armas de Mouzinho de Albuquerque. Arquivo Rui Carita A importância das Confrarias do Convento de S. Francisco está ainda patente na confraria de N.ª S.ra da Soledade, que, nos finais do séc. XVIII, assumiu a tradição de integrar sempre como irmãos o governador da Madeira e a mulher, quando o acompanhava, elaborando artísticas folhas aguareladas com as armas dos mesmos. A tradição manteve-se até à extinção do Convento, sendo a última folha dedicada ao prefeito liberal e governador militar Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846) – e D. Ana de Mascarenhas de Ataíde –, que, a 14 de março de 1835, entrou como “irmão protetor e presidente da confraria”, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da mesma Confraria” (ARM, Governo Civil, liv. 235, fl. 71). Seria Mouzinho de Albuquerque, no entanto, como prefeito da província, poucos meses depois, em agosto desse ano, a determinar as instruções para a extinção do Convento e, logicamente, da Confraria da Soledade. Os elementos chegados até nós não nos permitem uma avaliação mínima da vida económica dos Franciscanos do Funchal. Os livros das Confrarias são muito escassos e os de “receita e despesa” quase inexistentes. A vida do Convento não se afastava, no entanto, da dos conventos de S. Bernardino de Câmara de Lobos ou da Piedade de Santa Cruz, mas era mais complexa, dado o maior número de frades e, também, dada a sociedade urbana e a classe social que serviam e onde se inseriam. Existem dois livros de sacristia de “Registos de Missa” que dão uma pálida ideia do movimento do Convento, que celebrava semanalmente, nos finais do séc. XVIII, quase 100 missas, enquanto S. Bernardino, na mesma época, e.g., celebrava entre 20 e 30, embora os preços fossem semelhantes: na generalidade, entre $200 e $300 réis a missa. Na primeira semana do mês de agosto de 1797, v.g., celebraram-se 85 missas, sendo 7 pelas obrigações do Convento, 19 pelas obras pias, 34 pelas capelas, 5 pelas Confrarias e 2 pelos frades. Houve ainda uma celebrada na Festa do Ilhéu, provavelmente a festa de Nossa Senhora da Conceição, e que deve ter custado 1$500 réis, dado envolver a deslocação, e 15 missas dos “ofícios de frade e de grade”, que é possível que correspondam às missas em que é dada a comunhão aos fiéis na grade. Somente foram contabilizadas 14 a $200 réis, sendo as restantes das obrigações gerais do Convento, rendendo o conjunto 4$300 réis. Celebraram missa nessa semana 23 religiosos, incluindo o custódio provincial, o guardião, “o mais digno”, etc., tendo o domingo 20 missas, o maior número, rondando as 10 a 12 nos restantes dias da semana (ANTT, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 2, fl. 1). Na semana seguinte, a segunda semana de agosto de 1797, os números foram semelhantes, celebrando-se 95 missas, com um “noturno das Almas”, obrigação do Convento, em princípio, porque não contabilizado, rendendo nove missas a $300 réis e outras seis a $200, num montante de 3$900 réis (Ibid., fl. 1v.). Na terceira semana, celebraram-se 79 missas, uma com “com festa na Fortaleza”, que deve ser a de S. Lourenço e que deve ter rendido $800 réis, embora tenha havido outra, não especificada, que rendeu 450, contabilizando-se, com mais cinco missas a $300, duas a $250 e nove a $200, 5$050 réis (Ibid., fl. 2). Nos inícios do séc. XIX, os preços subiram em relação ao século anterior, passando as missas a render entre $300 e $500 réis, pelo que, embora não havendo um significativo decréscimo no número geral das mesmas, deu-se um franco aumento do montante global cobrado. Na quarta semana de julho de 1809, e.g., celebraram-se 87 missas, entre as quais umas de obrigação do Convento e 52 de grade, 1 a 1$000 réis e 51 a $400 réis, somando 21$400 réis, montante muito acima do cobrado semanalmente nos finais do século anterior. Para os anos seguintes, existem informações gerais da vida económica do Convento, entre 1809 e 1832, correspondendo, assim, sensivelmente à fase final da vida do Convento. A descrição do tipo de missas é mais sucinta, deixando de se referir as missas das Confrarias, provavelmente incluídas nas capelas, e aumentando o preço das mesmas, cobrando-se no mínimo 400 réis por missa. Os totais semanais passaram a rondar os 20$000 réis e, por mês, as missas renderam à sacristia quantias acima dos 80$000 réis. Para estes anos, as despesas gerais do Convento não se afastam especialmente, e.g., das do de S. Bernardino de Câmara de Lobos. No mês de julho de 1809, o Convento teve uma receita de 360$800 e uma despesa de 287$720. O Convento já vinha com um saldo positivo do ano anterior, “de alsas”, como se dizia, de 1808$236, ficando então com 1881$316, como certificam o guardião, Fr. Matias de S. Boaventura, o síndico, Pedro de Santa Ana, os discretos Fr. Manuel da Piedade, Fr. Januário das Chagas de São Francisco, Fr. António de São Joaquim e Fr. António de N.ª S.ª das Dores (Ibid., liv. 5, fl. 2). Tal como nos restantes conventos franciscanos masculinos, as principais receitas vinham das missas e cerimónias realizadas fora do Convento e da venda de hábitos de burel e hábitos de saial, com o pormenor de tanto se terem vendido os de saial para enterro de homens, como os de burel para enterro de mulheres, o que até então não se tinha verificado. Os preços também são muito mais altos que os praticados em S. Bernardino nos finais do século anterior: entre 3$000 a 6$000 réis, em S. Francisco, não incluindo, em princípio, acompanhamento. Por “um hábito de burel e três religiosos, a seiscentos réis cada, para Sabina, da freguesia de São Martinho”, e.g., só cobraram 4$800 réis, e por um hábito de saial para João Paulo Medina, sem referir acompanhamento, cobraram 6$000. Os Franciscanos cobraram 9$400 réis “por merecido” dos religiosos que tinham ido à festa da Visitação na misericórdia do Funchal, 18$000 pela novena e procissão do Carmo e mais 10$000 pelas matinas da dita festa. Nas despesas desse mês entrou essencialmente a aquisição de carne de vaca, que custou mais de 100$000 réis, tal como peixe, bacalhau, azeite, manteiga, queijos, toucinho, presunto, azeitonas, sal, milho, semilhas, couves, feijão, chá, açúcar, etc. Algumas aquisições vinham de fora, como as cebolas, compradas no Caniço, que tiveram um acréscimo de 2$000 réis, “pelo frete, carreto e pagamento do moço que tirou as cebolas do Caniço”. Nesse mês também se adquiriu cerveja e sabão, tal como se pagou $400 réis para amolar as navalhas de barba do irmão leigo Fr. José das Mercês. Também se adquiriram umas rodas para o relógio, que custaram 1$000 réis, tal como se pagou $400 pela montagem das mesmas e ao moço António de Aguiar seis meses e 20 dias, a 3$000 réis por mês, o que somou 20$000 (Ibid., liv. 5, fls. 1v.-2). A partir dos inícios do séc. XVIII, com a oficialização da custódia, tinha passado a Fazenda Real a tomar a seu cargo a manutenção destes edifícios e a assumir a reconstrução do Convento de S. Francisco do Funchal, dado o templo primitivo ser considerado acanhado e modesto. As obras do Convento tiveram início por volta de 1750, data do reenvio para o Funchal da planta efetuada pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), já devidamente corrigida, para o que D. João V tinha atribuído a valiosa esmola de 20.000 cruzados (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 973, fl. 112v.). O edifício teria então passado por várias ampliações, até para suportar a população de 100 religiosos, com admissão de 12 noviços em cada ano, autorizada a partir de junho de 1777. Em julho de 1780, deve-se ter inaugurado uma parte da construção, dado ter-se exumado, em 1880, uma inscrição alusiva a D. Maria I, ao Papa Pio VI e ao P.e Fr. Bernardo. A inscrição teria sido depositada no arquivo municipal, mas, segundo os autores do Elucidário, algumas décadas depois tinha desaparecido. No entanto, entre agosto e setembro já não havia dinheiro para continuar as obras, pedindo o principal do Convento a deslocação ao Brasil de dois irmãos leigos, para ali recolherem esmolas, certificando o velho mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins, a 19 de outubro desse ano, para a corte de Lisboa, que as obras ainda continuavam. No ano seguinte, voltou a haver pedidos de subsídios para as obras, requerendo os Franciscanos inclusivamente o edifício do extinto Colégio dos Jesuítas, dadas as obras e os vários cursos que lecionavam então em S. Francisco, motivando a troca de cartas entre o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro e o bispo do Funchal D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1710-1784), em 9 de agosto e 6 de novembro de 1781. Nesta sequência, igualmente requereu Fr. Manuel de São Boaventura “as sobras do subsídio literário e do almoxarifado” do Funchal, para se continuar a construção do novo Convento (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, docs. 588 e 599). A 10 de fevereiro de 1782, as obras passaram por novas alterações; o mestre das obras reais José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) refere alterações de custo. Face às dificuldades de obtenção de pedra, as obras e correriam o risco de parar, pois o pedreiro de Câmara de Lobos encarregado de a fornecer faltara ao ajuste. Alvitra-se, então, o trabalho das companhias de ordenança no retirar da pedra da pedreira, entendido como uma esmola das mesmas para os Franciscanos, o que foi autorizado pelo governador a 30 de agosto desse ano (ABM, Governo Civil, liv. 520, fl. 104). O Convento esteve assim em obras durante todo o final do séc. XVIII, possivelmente sob uma desastrosa administração, pelo que nunca chegou a ser acabada a enorme igreja, até à extinção dos conventos nos meados do séc. XIX, o que levou à sua demolição. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido como “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A extinção do Convento de S. Francisco do Funchal foi acionada pelo prefeito Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, em agosto de 1835, em articulação com Diogo Teles de Meneses (1788-1872), provedor da Alfândega (ABM, Alfândega do Funchal, liv. 675), tendo decorrido sem especiais dificuldades e quase sem qualquer interferência da autoridade religiosa. O Convento de S. Francisco do Funchal foi desocupado por forças militares a 9 de agosto de 1834 e, pouco mais de 15 dias depois, a 27 de agosto, o prefeito mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Dado não terem ocorrido problemas, nesse mesmo dia 27 de agosto, o prefeito enviava para o provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851), instruções precisas sobre a execução do decreto de 30 de maio sobre a extinção dos conventos, para que tal se efetuasse nos restantes conventos do concelho do Funchal. As instruções determinavam que se deveria fazer o inventário dos bens do Convento em causa, entregando-se ao representante do cabido da Sé do Funchal as alfaias religiosas, os paramentos, “ornatos dos templos e utensílios de culto”. As imagens e as cruzes, porém, deveriam permanecer onde estivessem. As igrejas deveriam ser fechadas, ficando as chaves à disposição do prefeito, mas na posse do provedor do concelho, que elaboraria, entretanto, uma relação dos religiosos de cada convento. No espaço de um mês, os religiosos deveriam apresentar-se na prefeitura, com uma relação testemunhável, para que se verificasse se teriam direito à pensão anual para a sua sustentação, prevista no artigo 4.º do decreto de 30 de maio anterior. Luís Mouzinho de Albuquerque recomendava que a diligência deveria ser feita com “a mais escrupulosa atenção”, em que tudo fosse praticado com a maior “circunspeção, prudência e urbanidade”, para que de maneira alguma houvesse lugar a “escândalos dos povos ou pretexto à maledicência” (VERÍSSIMO, 2002, 69-77). As imagens e muitas das pinturas, entretanto, foram transferidas para outros locais, como a imagem do Senhor do Milagre do Convento de S. Francisco, que teria falado algumas vezes com Helena Gonçalves da Câmara – razão pela qual recebeu essa designação –, e que foi transferida para a Sé, inclusivamente com o diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, assim como outras alfaias, pelo menos entre 1848 e 1850, na vigência do governador civil José Silvestre Ribeiro (1807-1891), para a igreja do Colégio do Funchal, que nesses anos foi reabilitada e entregue à Diocese. A transferência das pinturas e imagens que ainda restavam nas instalações do Convento para a igreja do antigo Colégio dos Jesuítas deve datar de fevereiro de 1847, tendo sido acordada entre o governador e o bispo D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1797-1862), quando se preparou a instalação, em S. Francisco, do Asilo de Mendicidade do Funchal, com cerca de 400 indigentes, cuja administração foi entregue ao prelado e cuja inauguração se fez a 27 de março desse ano (MENESES, 1848, 25-30 e 50-54). Algumas das telas existentes nesta igreja, como parte da coleção mariana da sacristia, senão mesmo toda, a tela dos mártires de Marrocos, a de Nossa Senhora do Pópulo, etc., pertenceram, por certo, ao Convento de S. Francisco, pois não fazem parte dos sucessivos inventários do Colégio, podendo a tela de N.ª S.ra da Porciúncula ter vindo da capela do Hospício da Ribeira Brava ou também de S. Francisco. O mesmo deve ter acontecido com algumas imagens, como a de S. Luís, Rei de França, em barro, aparentemente de produção regional, que se encontra na sacristia do Colégio, e o conjunto de imagens de roca, que se encontram no Museu de Arte Sacra do Funchal. O mesmo se teria passado com o conjunto de bustos relicários dos mártires de Marrocos, que foram descobertos quase emparedados na torre do Colégio e que igualmente transitaram para aquele Museu. Outra parte do espólio do Convento de S. Francisco transitou para o Convento de S.ta Clara, como foi o caso dos dois grandes painéis de azulejos de S. Francisco e de S.ta Clara, de oficinas de Lisboa (1740-1760), posteriormente remontados na portaria daquele Convento. No coro de baixo de S.ta Clara, algumas das pinturas que decoram as paredes laterais, segundo a tradição, terão vindo também de S. Francisco. A maioria das pratas, entretanto, fora arrecadada na Alfândega, e, em 28 de maio de 1836, elas seguiram para a Casa da Moeda de Lisboa, onde o antigo prefeito da Madeira fora provedor. Sem especial explicação, somente em virtude da portaria de 9 de junho de 1886, os livros do Convento de S. Francisco foram entregues à repartição da Fazenda do Funchal, sendo posteriormente incorporados na Torre do Tombo, juntamente com os da Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, mas não os que estavam no Governo Civil, que passaram, depois, ao Arquivo Regional da Madeira, nem a biblioteca, que deve ter recolhido ao paço episcopal e ao Seminário, peregrinando e perdendo-se pelos vários locais por que quer o paço, quer o seminário foram passando, assim se explicando que quase nada da importante documentação bibliográfica ali guardada tenha chegado até nós. O edifício foi logo disputado pelos novos poderes liberais instituídos, como a Câmara Municipal do Funchal, que o requereu e o recebeu por decreto de 7 de novembro de 1844, para construção, nesse espaço, de um amplo edifício destinado à instalação da nova Câmara Municipal e dos tribunais judiciais, mas a situação de instabilidade política retardou o projeto. O concurso público para apresentação de um projeto só se veio a realizar em 1864 e, a 11 de março de 1866, saía da Sé do Funchal “um luzido cortejo” presidido pelo bispo do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que fora bispo de Cabo Verde, cortejo onde se incorporaram as autoridades superiores do distrito, procedendo ao lançamento da primeira pedra do novo conjunto de edifícios, que não passou da primeira pedra (SILVA e MENESES, 1998, I, 313). [caption id="attachment_14397" align="alignleft" width="199"] Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita.[/caption] [caption id="attachment_14394" align="alignleft" width="226"] Demolição do Convento de São Francisco[/caption] Nos anos seguintes, os edifícios do velho Convento arruinavam-se progressivamente, mas só devem ter sido demolidos nos inícios da déc. de 70, pois restam algumas fotografias do conjunto, ainda parcialmente de pé. Nos anos seguintes, parte da cerca foi dando origem aos novos arruamentos, depois as ruas Hermenegildo Capelo, Serpa Pinto e Conselheiro José Silvestre Ribeiro, e, por volta de 1880, ao jardim municipal e ao teatro municipal. Do conjunto edificado parecem só restar o brasão de armas nacionais e franciscanas, no canto sudeste do jardim, e o chafariz da cerca do Convento, que nos inícios do séc. XIX já estava na vizinha praça da Constituição, então passeio público, servindo de base ao conjunto do largo do Chafariz, cuja pilastra superior parece ter sido encomendada para o monumento à Constituição de 1820 – chegando ao Funchal depois da abolição da mesma, nunca chegou a ser montada no monumento, cuja base também já havia sido demolida.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

Arquitetura Educação Património Religiões

laboratório de genética humana

O Laboratório de Genética Humana (LGH) é uma unidade de investigação, na área da genética humana, da Universidade da Madeira. Foi fundado em 2001, com o objetivo de dotar a Região de um laboratório no qual fosse possível a realização de testes genéticos para apoio à população madeirense. Desde a sua criação, o laboratório foi dirigido pelo seu fundador, o Prof. Doutor António Brehm, investigador e docente na Universidade da Madeira. A partir desta data, passou a ser possível realizar na Madeira muitos testes genéticos que eram realizados apenas em território continental. É o caso dos testes de paternidade, dos testes para a deteção de anomalias genéticas e de testes de patologias diversas. O LGH tem duas linhas de atuação: investigação e prestação de serviços. Assim, como resultado de um protocolo estabelecido com o Instituto Nacional de Medicina Legal, o LGH presta serviços na área de genética forense e, em articulação com o serviço de saúde da Região Autónoma da Madeira, nomeadamente com o Hospital Central do Funchal (Hospitais) realiza testes genéticos para diagnóstico precoce de malformações congénitas em fetos humanos com apenas 10 semanas de gestação.   Ana Londral (atualizado a 11.02.2017)

Biologia Terrestre Educação

junta de planeamento 1975

A transição da Madeira para o processo democrático foi de certa forma calma, se comparada com a agitação vivida no continente ou nas antigas colónias portuguesas de África. As forças militares e militarizadas não colocaram especiais problemas ao Movimento das Forças Armadas (MFA), e a primeira agitação, aliás vaga, decorreu na manifestação do 1.º de Maio, quando apareceu um cartaz a colocar em causa a presença no Funchal dos ex-governantes Américo Thomaz (1894-1987) e Marcello Caetano (1906-1980), com os dizeres “A Madeira não é caixote de lixo”. A notícia chegou a António de Spínola (1910-1996), que presidia à Junta de Salvação Nacional e se comprometera com Marcello Caetano, no quartel do Carmo, a fornecer-lhe proteção pessoal, pelo que poucos dias depois se encontrava na Madeira um delegado do Movimento, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-) (Azeredo, Carlos de). A função do delegado do Movimento era a segurança das altas figuras do final do Estado Novo, mas, embarcadas as mesmas para o Brasil, a 20 de maio, teve de aguardar a nomeação do governador civil do Funchal (Governo civil), Fernando Rebelo (1919-2002) (Rebelo, Fernando Pereira), somente exarada a 7 de agosto. O novo governador tomou posse em S. Lourenço a 8 de agosto e, nesse mesmo dia, Carlos de Azeredo regressou ao continente, fixando-se no Porto. A 13 de setembro de 1974, o novo governador civil do Funchal – em consequência do pedido de exoneração de Rui Vieira (1926-2012), pedido que nunca fora aceite por Carlos de Azeredo – nomeava nova presidência para a Junta Geral. A 10 de outubro, a Junta Geral é dissolvido e é nomeada uma comissão administrativa, que também não resistiu muito tempo. As nomeações que se seguiram, essencialmente de elementos sem impacto político e social nas restantes estruturas locais, que não haviam sofrido especiais alterações, tornariam a situação geral insustentável a curto prazo. A instabilidade que se viria a desenvolver depois na Ilha levou a que, por solicitação dos elementos do Movimento na Madeira, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo, então graduado em brigadeiro, regressasse no final desse ano de 1974 ao Funchal. A 11 março de 1975, em Lisboa, entretanto, registava-se novo pronunciamento militar. O grupo mais moderado de forças políticas e militares ligadas ao Gen. António de Spínola, que não tinha aceitado o seu afastamento, a 30 de setembro, na sequência do falhanço da manifestação da “maioria silenciosa” de dois dias antes, nem, essencialmente, o acelerado processo de descolonização e de politização progressiva da sociedade portuguesa, movimentou-se. Os grupos mais politizados e a Comissão Coordenadora estavam, no entanto, atentos à movimentação, pelo que a mesma se saldou por um novo fracasso, sendo o Gen. Spínola definitivamente afastado, e tendo tido, inclusivamente, de abandonar o país. As notícias chegadas ao Funchal levaram à realização de manifestações de rua em apoio ao MFA. O processo foi acompanhado pelos comandos militares madeirenses, não tomando o Brig. Carlos de Azeredo qualquer posição, dependente, até certo ponto, que estava ainda do governador civil, Fernando Rebelo. Carlos de Azeredo encontrava-se nessa manhã numa cerimónia de distribuição de diplomas e condecorações na sede da Polícia de Segurança Pública do Funchal, à R. dos Netos, e, tendo sido informado pelo Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015) do que se passava em Lisboa, não interrompeu a distribuição. Escreveria mais tarde que continuou “calmamente na cerimónia” (AZEREDO, 2004, 205), mas, regressado ao palácio de S. Lourenço, acompanhou a situação, como os vários oficiais do seu gabinete, com a máxima apreensão. Com o pronunciamento de 11 de março, as forças mais à esquerda desenvolveram o que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso e popularizado como PREC. No dia seguinte, a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado eram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução, a que se seguiria um plano de nacionalização da Banca, dos Seguros, dos Transportes, etc. Este período constituiu a fase mais marcante da tentativa de revolução portuguesa, durante o qual as tensões políticas e sociais atingiram uma virulência nunca experimentada. Principalmente o verão desse ano de 1975, o chamado “verão quente”, prestou-se a todo o tipo de violências numa sociedade considerada até então de brandos costumes e que nesse período parecia ter querido deixar de o ser. As forças madeirenses ligadas ao velho Movimento Democrático mostraram-se completamente incapazes de fazer face à situação e, a 20 março, Fernando Rebelo deixava o cargo de governador civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, onde fora chamado, desconhecendo o motivo e tendo tido então as mais sérias reservas e apreensões, Carlos de Azeredo tomava posse desse cargo, por despacho do ministro da Administração Interna. A nomeação de um elemento dado como próximo do Gen. António de Spínola não foi bem aceite nos sectores militares e civis continentais ligados ao PREC, que preferiam a nomeação do Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015), mas representou uma vitória para os sectores mais moderados e marcaria, na Madeira, o início da progressiva demarcação em relação ao processo continental. O Brig. Carlos de Azeredo, como governador civil – mas sempre fardado –, quase de imediato, a 25 de março, dava posse no Funchal à Junta de Planeamento para a Madeira, criada pelo dec.-lei n.º 139/75, promulgado no polémico dia 11 de março, pelo Presidente da República, Gen. Francisco da Costa Gomes (1914-2001), e publicado a 18 seguinte. O dec.-lei já considerava este órgão com um cariz transitório, mas com forte poder de decisão, sendo composto pelo governador civil, que presidia, com voto de qualidade, e por três vogais. Este órgão vinha um pouco na sequência do grupo criado alguns anos antes no âmbito da Junta Geral, a comissão regional de planeamento, mas já com funções deliberativas mais amplas, superintendendo, inclusivamente, sobre a mesma Junta Geral que, embora dissolvida, continuava em exercício. Foram então empossados como vogais João Abel de Freitas (n. 1942), Virgílio Higino Pereira (n. 1941) e José Manuel Paquete de Oliveira (1936-2016), que dirigia o Diário de Notícias. A presença de João Abel de Freitas, ligado à comissão do salário mínimo, e mesmo dos restantes elementos, pois que a sua nomeação fora acordada em Lisboa, não reunia o consenso alargado que alguns sectores locais requeriam, pelo que a Junta de Planeamento foi alvo de críticas no Jornal da Madeira, o que levou Carlos de Azeredo a convocar a S. Lourenço Alberto João Jardim (1943-), recentemente colocado à frente daquele jornal pelo bispo do Funchal, D. Francisco Antunes Santana (1924-1982), embora tal não tenha refreado os ataques daquele periódico à nova estrutura governativa regional. As críticas ainda aumentaram com o dec.-lei de 2 de julho de 1975, que alargava os poderes da Junta de Planeamento para proceder ao saneamento dos serviços do Estado e dos corpos administrativos, podendo suspender por 90 dias os funcionários desses organismos e nomear comissões para efetuarem reclassificações dos mesmos. Foi por esse diploma que se acrescentou um quarto elemento à Junta de Planeamento, dado como representante do comando militar, Faria Leal, que desde o início participava já em todas as reuniões. A Junta de Planeamento sofreria uma contínua contestação, não só local, dado que, como o governador Carlos de Azeredo anunciara na sua formação, tinha sido escolhida de cúpula, por decisão autocrática, logo sem a consulta das forças políticas já sumariamente colocadas no terreno, como igualmente dos círculos mais à esquerda do MFA nacional, que a consideravam não revolucionária. Poucos dias depois, comemorando-se o segundo 1.º de Maio em liberdade, deslocar-se-iam à Madeira dois conselheiros da revolução, o Com. Carlos de Almada Contreiras e o Maj. José Manuel Costa Neves, que participariam na manifestação, mas que quase não contactaram os elementos das forças armadas de S. Lourenço, limitando-se o Brig. Carlos de Azeredo a depois os acompanhar ao aeroporto. Ao contrário do ano anterior, também nenhum dos elementos militares da Madeira participou na mesma manifestação que, inclusivamente, levou a alguns incidentes na baixa da cidade, o que não acontecera no ano precedente. A Junta de Planeamento começou a conhecer dificuldades de articulação interna a partir das eleições de 25 de abril de 1975 (Eleições Autonomia), que elegeram a Assembleia Constituinte (sendo a organização dessas eleições a mais importante missão de que a referida Junta estava incumbida). Assim, se até então a sua nomeação de cúpula, como havia sido referido por Carlos de Azeredo na sua apresentação pública, era defensável por não ter havido eleições na Região, a partir daquela data, tal já não era sustentável. Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de 1975, que começara a 11 de março, e logo a 4 de abril registara uma tentativa de assalto ao palácio de S. Lourenço por uma manifestação de produtores de cana-de-açúcar – situação geral à qual Carlos de Azeredo deu uma resposta que não foi entendida como correta, nem pela esquerda, nem pela direita, tentando limitar a sua atuação a uma gestão negociada de crise, que nunca fora bem aceite por alguns elementos da Junta de Planeamento. A cisão foi iniciada pelo pedido de demissão de João Abel de Freitas, a 5 de agosto de 1975, pois que o mesmo não poderia ter sido feito pelo Maj. Faria Leal, dada a sua condição militar, pretendendo ambos a detenção de alguns empresários madeirenses por sabotagem económica. A demissão de João Abel Freitas foi imediatamente aceite pelo Brig. Carlos de Azeredo, e seguiu-se-lhe a demissão dos restantes membros. Estava assim aberto o caminho para a constituição de um novo órgão de gestão governativa da futura Região Autónoma da Madeira, que, embora ainda não democrático nem verdadeiramente representativo das forças políticas com representação no terreno, caminhava já nesse sentido: a Junta Governativa e de Desenvolvimento de 1976. Levaria, no entanto, mais de seis meses para ser negociada e tomar posse.     Rui Carita (atualizado a 09.06.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

forte novo de são pedro

Entre 1704 e 1712, o novo governador Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, aumentou a defesa da ilha da Madeira, tendo mandado construir o forte novo de São Pedro, então datado de 1707 em lápide sobre o portal da entrada. O forte tinha planta pentagonal, incorporando-se no pano da muralha sobre a chamada R. dos Balcões, quase em frente da R. dos Barreiros, posterior Campo Almirante Reis, e apoiando as restantes fortalezas da orla marítima. Em 1797, foi ainda este forte dotado de um forno de balas ardentes, vindo a ser demolido entre 1897 e 1898. Palavras-chave: fortes; arquitetura militar; defesa; praça académica; urbanismo.   Nos finais do séc. XVII foram enviados à Madeira alguns fortificadores, habilitados nas novas escolas continentais, que completaram as muralhas (Muralhas do Funchal) e terão deixado algumas propostas de obras, face ao aumento da navegação e do comércio marítimo no Funchal. Assim, com a vigência do Gov. Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, a defesa da Ilha foi bastante aumentada, executando-se uma série de fortes, desde Machico (Fortes de Machico) até ao Porto do Moniz (Fortes do norte da Ilha). Duarte Sodré Pereira era morgado de Águas Belas e notabilizara-se como capitão na armada da corte; terá sido nessa altura que estabeleceu contactos comerciais vários, que, durante a sua vigência na Madeira, entre 1704 e 1712, utilizou, tornando-se num fidalgo-mercador. Nos meados do séc. XVII o porto tinha sido melhorado com a construção do baluarte da Alfândega (Reduto da Alfândega), que protegia a entrada das fazendas e com a fortaleza do Ilhéu, que oferecia proteção geral aos navios surtos no local. Com o incremento do porto do Funchal, nos inícios do séc. XVIII, sentiu-se de imediato a necessidade de erigir mais uma fortaleza que apoiasse, concretamente, as de São Filipe e de São Tiago, assim como a longa muralha entre as duas. Nesta sequência, construiu-se o forte Novo de São Pedro, integrado no meio da longa muralha do bairro de Santa Maria do Calhau. O forte tinha planta pentagonal, incorporando-se no pano da muralha sobre a chamada rua dos Balcões, quase em frente da rua dos Barreiros. Possuía seis canhoneiras abertas para artilharia grossa e uma importante porta de cantaria regional, encimada por uma inscrição sob o brasão das armas reais: “No último ano de governo d’el rei D. Pedro II, nosso senhor, mandou levantar este forte de S. Pedro, o governador e capitão general Duarte Sodré Pereira e juntamente os de Machico, Santa Cruz e Ribeira Brava, que se guarneceram de artilharia que meteu nesta Ilha, que foram 54 peças, além de munições, armas e outros reparos que fez fazer em todas as fortificações dela. E tudo se acabou no ano de 1707” (ARAGÃO, 1987, p. 307). Foi primeiro comandante do forte Novo de São Pedro o capitão Zenóbio Acciauoli de Vasconcelos, em 1707 e, no ano seguinte, dado o seu falecimento, foi provido como comandante desta fortaleza, a 8 de setembro, o antigo capitão do Campanário, Jorge Correia de Vasconcelos. O primeiro condestável da fortificação foi Domingos Carvalho e, por provimento de agosto de 1709, Manuel Fernandes Vieira ocupou depois o lugar, passando o anterior condestável para a bateria da Alfândega. Manuel Fernandes Vieira prestara serviço como bombardeiro da Alfândega, com 50 réis por dia e fora aí provido, a 9 de junho de 1704, pelo Gov. Duarte Sodré Pereira, numa “praça paga”, passando a receber 36$000 por ano (ARM, Governo Civil, cód. 418, fls. 1-1v.). Esta “praça” era a que cumpria ao capitão António Nunes e se “achava vaga por impedimento crime e ausência” do mesmo (Id., Ibid.), dado ter-se envolvido numa sedição contra o anterior governador. Em 1724, Manuel Fernandes Vieira era ainda condestável de São Pedro, recebendo a carga de 15 peças de artilharia de ferro, montadas, de calibres de 4 até 24 libras. Havia também uma peça ligeira, de calibre de 4 libras, montada no revelim da “porta grande do cabo do calhau”, igualmente à carga daquela fortificação (Id., Ibid., fls. 9-9v.). Em 1729, dada a idade avançada de Manuel Fernandes Vieira, tomou posse um novo condestável, Francisco Dinis, recebendo a mesma carga. Depois, em 1771 e de acordo com os encargos financeiros do pessoal militar, era condestável do forte, José Gonçalves, com um ordenado 36$000 réis. Nos finais do séc. XVIII, o forte foi ainda dotado de um artifício tecnológico: um forno de balas ardentes. Tratava-se de uma inovação de combate naval, mais tarde vulgarizada a bordo, mas com graves problemas e sem a potência e o alcance da artilharia de costa, assente em terra firme. A alteração baseava-se no disparo, ou seja, enquanto nas bocas-de-fogo tradicionais desta época se colocava a carga de pólvora, a bala e depois se acionava o disparo por um morrão, aqui era a bala incandescente que acionava o disparo. Este dispositivo obrigava ao isolamento da pólvora, que era feito através de um pano humedecido sobre o qual ia atuar a bala previamente colocada ao rubro num forno e depois para ali transportada por tenazes. O disparo da bala e dos pedaços incandescentes do pano que tinham servido de “atraso”, indispensável para pôr a peça em bateria após a colocação da bala ardente, incendiavam as velas, cordame e madeiras dos navios. Na parede exterior do forte, onde se fez o dito forno, havia uma inscrição: “Forno de balas ardentes feito com o conserto neste forte no ano de 1797” (SARMENTO, 1951, 58). Embora fosse dos fortes mais modernos do Funchal, com o decurso do séc. XIX e verificadas as alterações das estratégias de combate, por se encontrar então demasiado exposto, perdeu o interesse militar. Assim, na descrição de Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), de 1817, o forte Novo era considerado em boa posição, “porém, o ângulo saliente que oferece ao mar não foi boa lembrança de quem o construiu, porque o navio que fundear na direção do ângulo não sofrerá o menor dano, só o fogo dos lados serve para proteger S. Tiago e as praças do Pelourinho e Ilhéu” (CARITA, 1982, 92). Nessa data já só tinha duas peças de calibre 12 e cinco de calibre 24. Paulo Dias de Almeida eliminou então a guarita avançada ao mar, colocando nesse espaço uma das novas peças de longo alcance, como fizera em São Tiago, queixando-se de que o forte tinha “um sofrível quartel” e não tinha cisterna (Id., Ibid.). Este engenheiro levantou a planta e o alçado do forte em apreço, como também o fez António Pedro de Azevedo (1812-1889), em 1855 e em 1862. Mesmo assim, nos finais do séc. XIX era considerado inútil e foi demolido em 1898, durante a vigência do Dr. José António de Almada (1843-1905) como chefe do distrito. Esta demolição permitiu o alargamento do “campo das pipas”, como era alcunhado o espaço em frente, dada a localização na área de vários armazéns de vinho, passando então a designar-se “Praça Académica”. Este campo seria depois chamado “das Loucas”, dado ser o local onde passeavam, a horas mortas, algumas mulheres “da miséria social a que a pobreza arrasta”, como se dizia (SARMENTO, 1951, 60). Foi, ainda nesta época, também chamado “dos Chalons” e “de São Tiago”, dados os exercícios militares que ali decorriam. Com a visita do rei D. Carlos e com a exposição comercial e industrial que se realizou, passou a ser “D. Carlos”; com a República, “Almirante Reis”, tal como o conhecemos hoje. O projeto de “melhoramentos” urbanísticos começou a ser equacionado em 1886 e consumou-se em 1897, com a demolição do velho forte, de que só resta um desenho do portal publicado no Diário Popular do Funchal, de 10 de outubro de 1897, as plantas militares entretanto feitas e algumas fotografias daquela área urbana da cidade, onde o mesmo aparece timidamente.   Rui Carita (atualizado a 31.01.2017)

Arquitetura História Militar Património

fortes da ribeira brava

O escarpado das encostas nesta área da Ilha não oferece grandes possibilidades para qualquer desembarque de forças, tendo o sistema de defesa, implantado nos sécs. XVI e XVII, privilegiado a instalação de vigias. No entanto, dada a importância e riqueza do lugar, houve logo a construção de um forte, São Sebastião, designação que parece apontar para a década de 70 do séc. XVI. Mais tarde, em 1708, foi edificado o forte de São Bento, por ocasião da campanha desenvolvida ao tempo do governador Duarte Sodré Pereira, quando se erigiram também as fortificações de Machico (Fortes de Machico), Santa Cruz e o forte Novo de São Pedro, no Funchal; tal como, muito provavelmente, se reforçaram algumas das posições das vigias da costa norte. A aluvião de 9 de outubro de 1803 destruiu ambos, tendo ficado do forte de S. Bento somente a torre de gola, que foi aproveitada para posto de turismo. Palavras-chave: aluviões; artilharia; arquitetura militar; defesa; turismo.   De acordo com a inscrição ainda existente na torre da gola, o forte de São Bento, orago do lugar, foi levantado sob a direção do capitão Henrique Manuel João e “a artilharia dele foi a primeira que entrou neste lugar sem despesa para a fazenda real”. O governador empenhara-se em envolver nesta campanha de fortificação os elementos da governação local, pois eram quem mais beneficiava da defesa, assegurando a proteção das suas propriedades. O forte encontrava-se ativado e guarnecido pouco depois, tendo o governador D. Pedro Álvares da Cunha nomeado para capitão do mesmo, a 14 de janeiro de 1713, João de Vasconcelos Uzel. Em 1742, forneceu-se “papel pardo para cartuchos” ao condestável da Ribeira Brava, provavelmente Tomé Ferreira da Silveira, que custaram $200 réis (ANTT, Provedoria..., liv. 840, 1742, fls. 17-22). O primeiro forte de São Sebastião é referido por Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) como tendo sido destruído na aluvião de outubro de 1803. O autor comenta que sequer tinham restado vestígios dele, acrescentando que o mesmo acontecera com o de São Bento. Do forte de São Sebastião tinham ficado seis peças de diferentes calibres, reprovadas e do forte de São Bento, oito, também de diferentes calibres, igualmente reprovadas, além de 307 balas. A defesa do lugar reduzia-se a um pequeno plano em cima da ponta de rocha a nascente, a que então chamavam Reduto, onde se instalou uma posição fortificada, entre as duas grandes guerras mundiais e onde existiam três peças no chão, sem palamenta alguma. No entanto, no livro de carga da artilharia de 1724 já não se menciona o forte de São Sebastião, mas sim o forte de São Bento, de que era condestável Ferreira da Silva e ao qual foram entregues, com data de 4 de outubro desse ano, seis peças de artilharia de ferro montadas de calibre de 2 até 9 libras, três colheres de cobre com as suas hastes, cinco soquetes elanados, um riscador, um saca-trapo, duas pranchas de chumbo para os fogões, dois caixões para recolher pólvora e cartuchos, e “um cano de mosquete com seu reparo que serve para exercício de barreira aos artilheiros” (ARM, Governo Civil, liv. 418, fl. 24). A 30 de setembro de 1730 foi carregado ao mesmo condestável outros quatro soquetes, dois polvorinhos e duas agulhas. Em 1733, entretanto, servia de condestável Tomé Ferreira da Silveira, que recebeu ordem de entregar as armas de pedreneira que tinha para guarda no forte, e que recolheram ao Funchal. O engenheiro António Pedro de Azevedo (1812-1889) levantou a planta do lugar em 1841, na sua primeira descrição da ilha da Madeira e, de novo, em 1860, para o “tombo militar” (DSIE, Gabinete..., n.os 5584 e 5540, 1A-12A-16; ARM, Arquivos Particulares), onde o forte surge já reduzido à torre de gola, com um pano adjacente para nascente e dois lanços de escadas no mesmo, o que também aparece registado nas fotografias do final do séc. xix. Tudo parece indicar que o forte inicial era triangular, com torre de gola na entrada e semelhante aos do Amparo de Machico (embora este sem torre) e de São João Batista do Porto do Moniz (Fortes do Norte da Ilha). Na descrição do tombo militar refere-se que, não havendo quem se encarregasse da conservação da pequena parte que restava da fortificação, tinha a mesma sido arrendada para habitação a José Felício de Aguiar. A aluvião de 1842 parece não ter afetado especialmente o que restava do antigo forte de São Bento, embora na planta levantada não haja menção à construção. O forte ou, mais corretamente, o que dele sobejava, veio a ser entregue à nova câmara municipal, criada a 6 de maio de 1914, por interferência do ex-visconde da Ribeira Brava (1852-1918), havendo referências a obras realizadas por volta de 1916, altura em que, por certo, os merlões foram rematados com vivos relevados, de pequena guarita superior de proteção à escada que dá acesso ao terraço e foram executadas as frestas e o oratório do lado do mar, elementos que não se configuravam assim nas fotografias que conhecemos dos finais do séc. XIX e inícios do XX. Nos desenhos de António Pedro de Azevedo e nas fotografias mais antigas, a face, hoje do lado do mar, era dotada de larga porta de acesso à parada do forte inicial e provida superiormente de ampla janela, componentes que foram depois entaipados. Segundo a tradição local, terá servido de prisão camarária, mas não existe qualquer confirmação documental de tal serventia durante o séc. XX. Na década de 90, foi remodelado para servir de posto de turismo, situação que, de forma algo intermitente, se mantém até hoje. Nos alvores da Segunda Guerra Mundial foi levado a efeito um largo plano de defesa para a ilha da Madeira, altura em que algumas das principais baías foram dotadas de novas estruturas defensivas, onde, para além das novas baterias de costa e antiaéreas do Funchal, foram construídos abrigos enterrados, para seções de metralhadoras pesadas, como aconteceu na Ribeira Brava e na praia Formosa (Fortes da Praia Formosa). O trabalho foi entregue à Companhia de Sapadores Mineiros, pertencente à rede das unidades de engenharia, conhecendo-se uma planta para o “abrigo para uma secção de metralhadora pesada” da Ribeira Brava, da autoria do alferes miliciano de engenharia Rogério Afonso, que deve datar de meados de 1942, pois que a aprovação do subsecretário de Estado da Guerra foi de 12 de agosto de 1942 (BOTELHO, 2006, p. 3). Por esse ano ou no seguinte, escavou-se o abrigo enterrado para a secção de metralhadora pesada, que subsiste na arriba do pequeno porto da Ribeira Brava, inclusivamente com um baixo-relevo numa das antigas portas de alvenaria, com o emblema da Companhia de Sapadores Mineiros, ainda com vestígios de pintura.   Rui Carita (atualizado  a 31.01.2017)

Arquitetura História Militar Património

fortes do norte da ilha

O povoamento do norte da Ilha, da responsabilidade da capitania de Machico, foi mais tardio e o alcantilado da costa também contribuiu para não haver especial e urgente necessidade de construções defensivas, que por esta razão foram prorrogadas. Nos inícios do séc. XVIII deve ter sido construído o forte do Porto da Cruz, de que somente resta a casa da guarda. Datado da mesma altura, o arruinado forte do Porto do Moniz foi, entre 1998 e 2000, reconstruído para acolher o aquário. No calhau de São Jorge também veio a ser levantado um pequeno forte, em 1785, que as cheias de novembro de 1848 destruíram, restando somente o antigo portal de entrada. No início do séc. XX, uma das famílias do Faial levantou um miradouro romântico, o chamado forte do Faial, que equipou com velhas bocas-de-fogo abandonadas nas praias. Palavras-chave: aluviões; aquário da Madeira; artilharia; arquitetura militar; Romantismo.   Porto da Cruz Não houve necessidade urgente ou especial de edificar construções defensivas no norte da Ilha, pois o povoamento da área, da responsabilidade da capitania de Machico, foi mais tardio e o perfil da sua costa é alcantilado. A freguesia do Porto da Cruz era a que mais contactos estabelecia com a sede da capitania de Machico, embora por caminhos de difícil acesso, nos sécs. XVI e XVII. Assim, em princípio, terá sido uma das primeiras localidades do norte onde foi erigida uma fortificação, determinada nos primeiros anos do séc. XVIII pelo governador Duarte Sodré Pereira. Estaria em construção em 1708 e para ela foi nomeado capitão João de Vasconcelos Uzel, em 1713. No entanto, no livro de carga da fortificação de 1724 não consta que a mesma estivesse artilhada, ao contrário do Porto do Moniz, que já teria um reduto artilhado. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em 1817, não considerou que o vago arranjo executado no quase ilhéu do porto fosse uma verdadeira fortificação. Assim, escreveu: “tem um pequeno plano, em que se pode formar uma bateria pelo menos de quatro peças, de que bem necessita” (CARITA, 1982, 73). Conta também que existia no sítio um barbuzano e duas oliveiras, das quais se recolhia o fruto, não havendo memória de terem sido aí plantadas. Acrescenta ainda que a povoação estava dispersa pelos diversos lombos, cobertos de balseiras e que os caminhos até à Portela eram todos feitos através de despenhadeiros. O local em apreço tinha sido objeto de trabalhos de fortificação alguns anos antes, tendo sido efetuada, pelo menos, a reconstrução da casa da guarda, que ainda ostenta a data de 1793 num lintel. Quando Paulo Dias de Almeida elaborou a referida descrição, a obra estaria já levantada, porém, o autor não lhe faz referência, talvez pela sua insignificância e porque, segundo o Elucidário Madeirense, o forte teria sido desmantelado em 1804, sendo a guarnição existente mandada trabalhar na desobstrução da ribeira de Machico. Esta situação, no entanto, terá sido pontual, motivada pela aluvião de 9 de outubro de 1803, não se tratando da guarnição efetiva do forte, que nunca a terá tido em permanência, mas sim do pessoal das companhias de ordenança da freguesia que montavam a guarnição do mesmo. Mais tarde, em 1819, depois da visita geral efetuada à Ilha pelo governador Sebastião Xavier Botelho (1768-1840), o tenente-coronel Paulo Dias de Almeida, na planta da Madeira onde indicou os pontos que necessitavam de ser fortificados, registou que se devia ativar de novo a bateria do Porto da Cruz, bem como montar uma outra bateria na ribeira do Lava-pés, hoje ribeira da Maiata, na encosta nascente, efetivamente um local com um muito bom comandamento sobre toda a baía e de onde nos finais desse século vários viajantes tiraram fotografias. Não cremos que se tenha feito coisa alguma na baía do Porto da Cruz durante as décadas de 20 e 30 do séc. XIX, pois o tombo militar desse forte é de 1870, não foi escriturado por António Pedro de Azevedo (1812-1889) na década anterior, quando este considerou a grande maioria das restantes fortificações da Ilha. O forte encontrava-se na “origem setentrional da Ponta de São Lourenço”, segundo a descrição de 1870 e constava então de uma casa da guarda para depósito de munições, arruinada, e de um terrapleno de parapeito de terra, estando tudo totalmente abandonado (ARM, Arquivos Particulares, tombo militar). Não tinha, assim, qualquer interesse militar, pelo que deveria ser arrendado, segundo opinião do engenheiro Domingos Alberto da Cunha (1826-1892), que assinou a descrição a 31 de dezembro de 1870. A descrição seguinte, de António Leite Monteiro, datada de 3 de novembro de 1893, mantém a mesma opinião e propõe um valor global de 20$000 réis. É tradição local que este forte esteve artilhado até aos inícios ou meados do séc. XX. As peças terão então sido lançadas ao mar, sendo uma delas recuperada depois pela firma Soares Branco e entregue ao Museu da Quinta das Cruzes, nos finais da década de 60, mas entretanto depositada no museu de artilharia do Grupo de Artilharia de Guarnição n.º 2, onde ainda se encontra. A área do forte foi ocupada nos anos 30 por um posto da Guarda Fiscal, que deixou várias inscrições esgrafitadas nas paredes e, em 1960, por uma senhora de nome Raquel, segundo informação local, para exploração agropecuária. Voltou a ficar vago poucos anos depois, sendo ocupado somente como ponto de lançamento de fogo-de-artifício das festas regionais locais. A povoação de São Jorge desenvolveu-se na parte de cima da alta escarpa sobre o calhau da praia, tendo essa área de ocupação inicial sido mais ou menos abandonada entre os finais do séc. XVI e os inícios do XVII, justificando, inclusivamente a desmontagem da igreja matriz inicial da freguesia e a sua reconstrução na achada superior. Paulo Dias de Almeida, na sua descrição de 1817, afirma que por tal era “muito saudável e livre de humidades” (CARITA, 1982, 72-73). Menciona igualmente que “a paróquia é a melhor de toda a Ilha” (Id., Ibid.), referindo-se à igreja paroquial, reformulada nos meados do séc. XVIII, sendo que o templo compreende, de facto, um dos melhores exemplares de talha barroca da Madeira. Explica também que, sendo o porto de rocha, os barcos que ali iam receber os vinhos não se chegavam a terra, recolhendo as pipas em vaivém, pelo que muitas se perdiam. Junto ao porto onde se encontravam os armazéns desta freguesia e da de Santana, havia um pequeno reduto com duas peças de calibre 6 deitadas no chão. Acrescenta ainda Paulo Dias de Almeida que, no porto, só ficava um morador “efetivo” e os restantes recolhiam-se diariamente para o alto da população (Id., Ibid.). São Jorge O forte de São Jorge tinha sido construído a expensas de Francisco Manuel Jardim de Mendonça (Tello de Meneses), em razão do que foi nomeado, em 1785, primeiro capitão do dito forte; por sua morte, o cargo passou ao filho, Honorato Francisco Tello de Meneses. Segundo o tombo deste forte, “tudo” constava de uma “declaração passada por Agostinho Luiz Homem de El-rei, engenheiro e mestre das obras reais, e que só a bandeira, duas peças e dois reparos haviam sido pagos pela fazenda real” (ARM, Arquivos Particulares, tombo militar). Acrescente-se, entretanto, que este Agostinho Luiz Homem de El-rei não era engenheiro nem mestre das obras reais, mas sim apontador. Escreveu António Pedro de Azevedo que uma cheia, ocorrida entre 17 e 20 de novembro de 1848, destruiu totalmente a casa da guarda, que podia alojar cerca de oito homens, assim como parte da muralha do lado da ribeira, ficando o parapeito do forte “totalmente escalavrado e o terrapleno coberto de grossos calhaus” (Id., Ibid.). O forte era triangular, correndo o parapeito paralelo à praia, com 26,5 m e 9 de profundidade. O tombo foi assinado a 19 de fevereiro de 1864, por António Pedro de Azevedo, que calculava que o conjunto valeria então cerca de 350$000 réis. Em nota a esta descrição, António Pedro de Azevedo escreveu que, em toda a costa do norte da Ilha, se não podia tentar um desembarque em força sem grande perigo; embora não tirasse conclusões, tudo parece indicar que este militar não se inclinava para a reconstrução do pequeno reduto de São Jorge. A planta levantada por si, em 1868, apresenta uma “Vista do forte de S. Jorge antes da cheia de 17 de novembro de 1848”, que o mesmo teria efetuado pouco depois da sua chegada à Madeira, em 1841 (DSIE, Gabinete..., n.º 5534, 1A-12A-16). O tombo militar apresenta ainda um apontamento de cerca de 1890, dizendo estar o forte então desocupado e ter um valor de 200$000 réis. Parece ter ido entretanto a hasta pública, dado o terrapleno ser hoje propriedade privada. Faial No remate da propriedade do Faial da família do Dr. João Catanho de Meneses (1854-1942) existe um pequeno e alcantilado “forte” redondo, decorado com uma importante coleção de velhas bocas-de-fogo de ferro, quase todas inglesas e parecendo provenientes de navios desmantelados. O chamado forte do Faial foi construído como mirante de quinta madeirense, ao gosto romântico do séc. XIX, encontrando-se a uma grande altura e distância do mar, o que não lhe permitiria fazer eficazmente qualquer tipo de tiro. Deve datar dos inícios do séc. XX, ter sido executado para puro recreio dos utilizadores da propriedade, tendo a sua decoração sido feita com objetos provenientes dos vários fortes abandonados na costa norte. Num desenho do forte do Porto do Moniz, de cerca de 1850, as três bocas-de-fogo sumariamente traçadas, parecem ser “caronadas” inglesas dos inícios do séc. XIX, como as deste forte. Três destas bocas-de-fogo estiveram a decorar a esplanada do reconstruído forte do Gorgulho, no complexo balnear do Lido, no Funchal, por solicitação da Câmara do Funchal e com o acordo dos proprietários, assim como uma outra, a mais pequena de todas (98 cm de comprimento e 6,8 de calibre), integrou a exposição sobre arquitetura militar da Madeira dos sécs. XVI a XIX, realizada a 10 de junho de 1981 no teatro municipal do Funchal. Ao longo da década de 90, este conjunto de bocas-de-fogo, que tradicionalmente salvavam nas festas de N.ª S.ª do Faial, por razões de segurança, deixaram de ser usados nas ocasiões festivas. Em 1998, entretanto, utilizando-se cargas de pólvora mais fracas e depois de terem sido testadas as suas condições pela equipa militar de salvas de artilharia, os antigos canhões voltaram a disparar. O velho forte foi entretanto classificado, reconhecendo-se o seu valor local, e foi alvo de uma recuperação geral, levada a cabo pela Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC), refazendo-se então as carretas de artilharia, dentro do modelo de marinha e sítio, das várias bocas-de-fogo. Todo o empedrado em calhau rolado madeirense foi refeito, as paredes e a muralha foram consolidadas e a casa de apoio central foi reparada, sendo dotada com uma pequena exposição de fotografias de gravuras antigas da área, acompanhadas por um pequeno historial da família Catanho de Meneses, tudo sob direção e execução de técnicos da DRAC. Porto do Moniz As primeiras informações que temos das defesas do Porto do Moniz são de 1642. Assim, em julho desse ano, o capitão Manuel de Castro da Câmara recebeu 1$970 réis pelo arranjo da vigia local, sinal de ser a esta anterior e decorrente das ordens emanadas no regimento de vigias de 1567. Com a vigência do governador Duarte Sodré Pereira e com os contactos comerciais internacionais que este estabeleceu, foi sentida a necessidade da revisão geral da fortificação da Ilha. Nesse sentido, foi determinada a fortificação do norte e, especificamente, do Porto do Moniz e do Porto da Cruz, ambos sob a invocação de S. João Batista. A construção deve ter sido, assim, iniciada antes de 1711, data em que sabemos ter tido então novas obras. Foram levadas a cabo pelo capitão Manuel Rodrigues Ferreira Ferro (1685-1756), a cuja família foi dado o encargo do respetivo forte. As obras foram orçamentadas pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), mas só terminadas na vigência do conde de S. Miguel como governador, em 1758. O capitão do Porto Moniz tivera patente assinada no Funchal, a 30 de abril de 1709 e registada em Machico, a 22 de junho, sendo depois provido como sargento-mor de Machico, por patente assinada em Lisboa, a 12 de setembro de 1753 e que tomou posse no Funchal, perante o governador conde de São Miguel, a 25 de março do seguinte ano de 1754. Atendiam-se aos serviços feitos ao “longo de mais de 62 anos de soldado, à sua conta, sem soldo, em toda a costa de mar e no tempo de guerra”, assim como a edificação da “fortaleza daquele lugar”, dotada com “duas bocas-de-fogo, casa de vigia, de soldados e prisão” (ARM, Câmara..., liv. 85, fls. 86-87; ANTT, Provedoria..., liv. 973, fls. 203-204). A dotação de artilharia para este forte foi estabelecida em 1730, como se pode ler no livro de carga iniciado em 1724. Foi então transferida uma boca-de-fogo do forte de São Filipe do Funchal para o do Porto do Moniz, juntando-se-lhe mais duas, ficando o forte com uma carga de três peças de artilharia montadas, de calibre de 3 a 7 libras, três soquetes elanados com as suas hastes, um riscador, um saca-trapo e uma agulha para exercícios de pontaria. Assinou o termo o artilheiro com encargo de condestável, Manuel Lopes da Silva e o tabelião do judicial, António Cotrim, em 11 de novembro de 1730. Nos meados do séc. XVIII e com a vigência na Ilha do governador D. Álvaro José Xavier Botelho de Távora (1708-1789), 4.º conde de S. Miguel, e também com a tomada de posse do capitão do Porto Moniz como sargento-mor de Machico, deram-se andamento a algumas obras já planeadas, que aguardavam fundos e empenho político. Entre elas, a do forte do Porto Moniz, tendo corrido com a obra o filho homónimo daquele último, Francisco Ferreira Ferro (1715-1794). Como se podia ler na entrada do forte, “Este forte se fez por ordem de el rei nosso senhor, o Sr. D. João 5.°, sendo governador desta Ilha o exmo. conde de S. Miguel e provedor da fazenda real e superintendente das fortificações, Manuel Teixeira de Castro e de cuja obra foi inspetor pelo dito senhor, o capitão cabo dele, Francisco Ferreira Ferro, filho do sargento-mor do mesmo nome no ano de 1758”, lápide transcrita por António Pedro de Azevedo em 1848 (ARM, Arquivos..., Planta dos Ancoradouros, 1848). Nos inícios do séc. XIX, quando Paulo Dias de Almeida fez uma volta de inspeção à Ilha o panorama da costa norte era desolador. Toda a costa estava profundamente isolada, só mantendo contactos com a costa sul pelo mar no verão. As ligações por terra com essa costa eram feitas pelo Paul da Serra e pela garganta da Encumeada, descendo depois até à serra de Água e à Ribeira Brava, mas tratava-se de uma verdadeira aventura. A ligação com a Calheta, feita pelo Paul da Serra, era ainda mais perigosa. Segundo Paulo Dias de Almeida, na sua já citada descrição de 1817, o Porto Moniz era o melhor porto que se encontrava no norte da Ilha e onde qualquer barco da costa “corrido do tempo” encontrava abrigo. A povoação estava espalhada pelo alto, nos bons terrenos da Madalena e os habitantes mais ricos tinham as suas propriedades em baixo, no porto, onde estavam igualmente os seus armazéns de vinho. Perante este quadro, alertava Paulo Dias de Almeida, se algum corsário mais esperto quisesse, poderia aproximar-se, fundear e saquear os armazéns, pois que nenhuma defesa havia para se lhe opor. Observa ainda que “um pequeno forte triangular que ali tinham, de nada servia por se encontrar arruinado” (CARITA, 1982, pp. 67-68). Tinha então uma peça de 4 libras em bom estado, e seis de calibre 6, mas reprovadas, no chão e sem reparos. A casa de armas tinha abatido e as 29 espingardas que havia estavam umas sem fechos, outras com as coronhas podres e o correame no mesmo estado. Alguns anos mais tarde, por volta de 1850, temos um desenho do forte feito por um turista inglês: Ruin of a Fort. Porto Moniz. Madeira (Casa-Museu Frederico de Freitas) e do qual, muito provavelmente, foi depois feito um óleo, hoje numa coleção privada do Funchal. Por esse desenho vemos que o forte teria um esquema muito semelhante ao da Ribeira Brava: triangular, fechado a terra por um torreão, com porta encimada por inscrição e brasão das armas reais. No forte do Porto do Moniz havia uma passagem alta, indicativa, em princípio, de ter havido ponte levadiça. No meio do forte, em ruínas, são reconhecíveis três peças de artilharia, duas sobre possíveis reparos navais, que parecem caronadas. Muito provavelmente, estas peças foram depois recolhidas no forte do Faial. A única coisa que parece intacta neste desenho é um mastro alto, mas sem bandeira. Alguns anos depois, escrevendo sobre este forte, o tenente-coronel Alberto Artur Sarmento refere que a inscrição veio nos inícios do séc. XX para a fortaleza de S. Lourenço, no Funchal mas infelizmente, já ali não se encontra. Aliás, algumas peças de ferro igualmente recolhidas ao longo dos anos 30 e 40 desse séc. XX e que chegaram a estar na parada baixa de São Lourenço foram entregues, nos anos 50, à Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. A junta entregou-as ao Museu Quinta das Cruzes que, por seu lado, as entregou à Câmara Municipal de Machico. Encontram-se hoje a decorar o forte de Nossa Senhora do Amparo. Pelas informações do forte de São João Baptista nos tombos militares, com sequência a partir de 1870, podemos reconstruir um pouco da sua vida mais recente. Assim, “o forte referido fica a 55 quilómetros do Funchal, na costa norte da Ilha, onde se não pode tentar desembarque sem grande perigo e trabalho, em razão das escarpas serem muito mais elevadas e aprumadas que na costa sul e por serem raras as praias e enseadas, além da circunstância importantíssima dos ventos do quadrante norte, que na maior parte do ano sopram com violência naquelas paragens”. O forte consistia então numa pequena luneta bastante arruinada, com uma casa para depósito de materiais de guerra, totalmente destruída. Havia ainda uma outra, em estado sofrível, mas sem porta nem janela e que poderia alojar quatro praças. Nesta sequência, havia mais a prisão e o paiol, mas ainda em pior estado. O forte apresentava 12 m na gola onde estavam as casas referidas, ou seus vestígios, como se acrescentava em 1870. Havia também, a 70 m do forte, sobre a escarpa e a leste, uma casa de vigia que podia alojar três praças. O tombo militar descreve ainda o ilhéu Mole em frente do forte, a uma distância de 110 m, que “mascarava” o forte pelo norte e oeste, embora o mesmo continuasse a cobrir bem a praia do lado leste. A fortificação teria sido arruinada pelo mar havia muito tempo, dado se encontrar bastante exposta e situada na praia do porto, pelo qual confrontava por todos os lados. O valor total calculado do forte e vigia nesta época era de 100$000. Mais tarde, por volta de 1890, estimava-se que o valor das ruínas seria de 88$860 réis. Com a promulgação da carta de lei de 13 de setembro de 1897, permitiu-se proceder à alienação das fortificações sem interesse militar, vindo diversos fortes a serem arrematados em hasta pública. Foi o caso deste, em abril de 1926, arrematado pelo Dr. Jaime César de Abreu (1899-1976), médico no Funchal, ao Ministério da Guerra. O imóvel era então constituído pela pequena luneta, as ruínas do pequeno quartel, do paiol e o campo de exercícios anexo, tendo a respetiva posse sido tomada em maio 1927, pelo Dr. Lúcio Tolentino da Costa (1870-1939), natural da freguesia do Porto Moniz e sogro do novo proprietário. Nos finais do séc. XIX, entretanto, tinha sido editada uma fotografia pelo Bazar do Povo, em princípio da autoria de João Anacleto Rodrigues (1869-1948) e que tem sido dada como tirada no Porto Moniz. No entanto, dada a configuração do forte, tudo parece apontar tratar-se de um fotografia tirada nos Açores e não na Madeira, embora existam referências à baleação no Porto Moniz. Pela configuração do forte e a rampa anexa ao mesmo, somos levados a crer que se trata do forte do Negrito, em São Mateus, na ilha Terceira. Em 1998, a Câmara Municipal do Porto Moniz adquiriu a propriedade e, dois anos depois, iniciaram-se as obras de reconstrução do antigo forte de São João Batista, instalando-se no seu interior um aquário constituído por 12 tanques, nos quais se propôs representar os vários habitats do mundo marinho madeirense.   Rui Carita (atualizado a 31.01.2017)

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