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castelbranco, manuel (maurício carlos de)

Maurício Carlos de Castelbranco, que se apresentava literariamente com o semi-pseudónimo de Manuel Castelbranco, nasceu no Funchal em 1842 e faleceu na mesma cidade no dia 6 de Setembro de 1901. Era filho do comendador Maurício José de Castelbranco Manuel, em título de Mendes Serranos, e de D. Maria Dionísia de Freitas Abreu, em título de Freitas Abreu. Casado com Guilhermina Maria de Vasconcelos Fernandes Castelbranco, teve dois filhos: Gastão de Castelbranco Manuel e Gabriela Castelbranco Machado, por sua vez casada com Vicente Machado. Exerceu durante alguns anos a função de escriturário de fazenda no Funchal. Foi redator de folhetos e um poeta admirado. Colaborou em vários jornais do Funchal, principalmente nos seguintes: Direito, O Recreio, O Crepúsculo e Diário Popular. Há registo de vários poemas seus publicados nas coletâneas Flores da Madeira, que foram objeto de notas elaboradas por Alberto F. Gomes, em 1955, e publicadas nesse mesmo ano no n.º 15 da revista Das Artes e da História da Madeira – Revista de Cultura da Sociedade de Concertos da Madeira, e no Álbum Madeirense: poesias de diversos auctores madeirenses, coligido por Francisco Vieira em 1884.   António José Borges  (atualizado a 22.12.2016)

Literatura

câmara, maria celina sauvayre da

A escritora Maria Celina Sauvayre da Câmara, filha de João Sauvayre da Câmara e de Matilde Lúcia de Sant’Ana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, nasceu no Funchal, na freguesia de Santa Luzia, a 1 de setembro de 1856, e faleceu em Lisboa, em 1929. A data de nascimento levantou nos estudiosos algumas dúvidas, já que as informações fornecidas por diversos investigadores ao longo dos tempos não encontravam confirmação nos documentos de registo da época. Autores como o visconde do Porto da Cruz, Alfredo de Freitas Branco (1890-1962), em Notas e Comentários para a História Literária da Madeira, bem como Fernando Augusto da Silva e Carlos Meneses de Azevedo, no volume I do Elucidário Madeirense, situam o nascimento da escritora em 1857, indicando os últimos a data de 1 de setembro. No entanto, no registo paroquial dos batismos da Sé, nesse ano, encontra-se apenas a informação sobre o nascimento, a 9 de setembro, de uma sua irmã, Maria Matilde. Já na paróquia de São Pedro, no ano de 1858, registou-se o batismo de Maria da Graça. Em 1864, nasce Maria das Dores, e, em 1868, João. Matilde Olímpia, a mais nova das irmãs, como aparece referenciado em algumas notícias de jornais da época, nasce em 1871. Tendo os pais contraído matrimónio em 1854, e considerando a ligação privilegiada que Maria Celina Sauvayre da Câmara tem com a avó, a viscondessa das Nogueiras, era provável que fosse uma das irmãs mais velhas. Encontra-se, de facto, a notícia do seu batismo no registo paroquial de Santa Luzia, e não nos registos paroquiais da Sé ou de São Pedro, nos quais estão lavradas as notícias dos batismos dos seus irmãos. Proveniente de uma família da aristocracia funchalense, cuja história se liga ao panorama literário e cultural da Ilha, a autora cresce num ambiente letrado, pautado por uma educação moderna, atenta à literatura e às artes. Neta da escritora madeirense Matilde de Sant’Ana e de Vasconcelos (1805-1888), a viscondessa das Nogueiras, que publicou, em 1862, Diálogos entre Uma Avó e Suas Netas, escolhido pelo Conselho Superior de Instrução Pública para uso nas escolas, e que foi a primeira senhora a escrever para o Almanaque Luso-Brasileiro de Lembranças, como se pode comprovar pelo estudo levado a cabo por Vania Chaves e Isabel Lousada (2014), Maria Celina teve o privilégio de privar com uma das mulheres mais notáveis do séc. XIX da Madeira. Profunda conhecedora das línguas inglesa e francesa, a viscondessa das Nogueiras traduziu Lamartine para português e foi autora de uma retroversão para francês de Eurico, O Presbítero, de Alexandre Herculano. O visconde do Porto da Cruz escreveu, nas suas Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (vol. II), que a viscondessa tinha sido uma das figuras mais proeminentes da intelectualidade portuguesa do séc. XIX, atribuindo-lhe qualidades que a distinguiam no cenário literário da época. Bulhão Pato – amigo de Jacinto Augusto de Sant’Anna e Vasconcelos, filho da escritora e tio de Maria Celina – conta, nas suas Memórias, a visita que fez à viscondessa, referindo as suas qualidades precisamente como escritora: “compunha versos, admiráveis de mimo e sentimento. Escrevia prosa adorável. Num meio mais largo teria sido uma escritora de primeira ordem” (PATO, 1894, 279). No mesmo sentido se dirigem as palavras de Alberto F. Gomes, que a considerou um espírito superior e uma mulher pouco vulgar para a época e para o meio, dando “exemplo de estreito contacto com o público e de estímulo às senhoras que escreviam nessa época” (GOMES, 1953, 20). Responsável pela educação nas letras das netas, a quem dedica o volume dos Diálogos, a viscondessa contribuía com composições poéticas para os periódicos da época, não descurando, como afirma numa das suas poesias, o papel de educadora em prol do de poetisa. Esta posição explica o cuidado que teve na instrução das netas e a forte impressão que deixou em Maria Celina. Na família da escritora não era só a avó a ter uma forte propensão para as letras: o tio Jacinto Augusto de Sant’Anna e Vasconcelos era poeta, autor de um livro de versos prefaciado por Latino Coelho, “com muito aplauso” (PATO, 1894, 278), e fazia parte do círculo ao qual pertenciam, em Lisboa, Mendes Leal, A. Pedro Lopes de Mendonça, José Maria d’Andrade Ferreira, Luiz de Vasconcelos, António Correia Herédia e Bulhão Pato. Também a sua tia-avó, Maria do Monte de Sant’Ana e de Vasconcelos, irmã do visconde das Nogueiras, colaborava na imprensa, mantinha um encontro regular de letrados em sua casa e dedicava-se à escrita, tendo publicado obras na área do romance histórico. A irmã mais nova de Maria Celina, Matilde Olímpia, destacou-se como compositora, poetisa e autora de comédia. Aquando da visita à Madeira dos Reis D. Carlos e D. Amélia, em 1901, presenteia-os com Morto à Força, comédia que é representada no Teatro D. Maria Pia (sala cuja construção tinha sido iniciada com o apoio de João Sauvayre da Câmara, quando este fazia parte do executivo camarário), e cujos atores foram a própria autora e uma das irmãs, Maria das Dores, além de várias figuras da elite social madeirense. Maria Celina obteve considerável notoriedade no meio social e cultural português, como comprovam as notícias publicadas no Diário Illustrado, de Lisboa, na secção “High-Life”, que dão conta dos seus passeios na avenida, do seu iminente regresso de Jerusalém e da sua chegada do estrangeiro, a 11 de maio de 1898. No Diário de Notícias, aquando do seu falecimento, é descrita como “senhora madeirense das mais ilustres pelo sangue, pelo espírito, pela inteligência” (DNM, 28 fev. 1929, 2). Na residência que tinha na capital, reunia a alta aristocracia portuguesa em serões que lembravam os tempos “em que ainda em Lisboa se juntavam tantos e tantos que marcaram em Portugal pela sua distinção e seu talento” (Ibid.). O jornal lembra a publicação do seu livro de impressões de viagem e considera a autora “invulgarmente culta” (Ibid.). De facto, a escritora não só tinha uma educação esmerada, mas também possuía um vasto conhecimento, que adquirira com as várias viagens que realizara pela Europa e pelo Médio Oriente. É à avó que Maria Celina Sauvayre da Câmara dedica, lembrando “aquela que semeou em minha alma o gérmen de todas as virtudes” (CÂMARA, 1899, I), o seu livro De Nápoles a Jerusalém: Diário de Viagem – relato das lembranças e impressões de uma longa viagem que tinha levado a autora da cidade italiana de Nápoles a Jerusalém (passando por Alexandria, Cairo e Jafa) –, com edição em Lisboa de 1899. A abertura de espírito e o gosto pela literatura que alarga os horizontes, especialmente das mulheres, são os traços definidores que a autora assume como direta influência da avó. Se o texto abre com uma dedicatória que a recorda, termina com a declaração da “saudade eterna” (Id., Ibid., 196)  que a sua figura representa; saudade esta que conduz a autora a refletir sobre o sentido da própria existência (“A sensação do vácuo, da imensidade, levadas por uma frágil embarcação que levantou âncora!... A última página deste jornal que emudeceu e fechei!... A saudade eterna da minha querida avó!...” – Id., Ibid.), encontrando, em parte, resposta nos lugares com forte carga evocativa que a autora visita, como é o caso de Jerusalém. A ideia que a escritora madeirense concebe da viagem em De Nápoles a Jerusalém, e das palavras que a contam e fixam na memória, é a de algo dinâmico, que permite a mudança do ser que viaja e do leitor que experimenta as impressões da deslocação através das palavras. À união da imaginação com a investigação, que caracteriza as motivações da viajante e também da escritora, é aliado o plano da comparação: esse plano permite as viagens mentais entre o espaço que ocupa e trilha e o espaço afetivo da terra pátria, uma deslocação em pensamento à Madeira, lugar de saudade, mas igualmente de mudança, já que Maria Celina da Câmara também vê e imagina com o objetivo de comunicar e aplicar à Madeira aquilo que julga ser válido. Em Jaffa, comenta: “Os Irmãos das escolas cristãs têm aqui dois colégios para rapazes, as Irmãs de S. José da Aparição um outro para meninas. Além destes cada rito tem as suas escolas e hospitais, nós latinos temos um muito bem montado com um dispensário gratuito. (Assim tivéssemos um na Madeira!)” (Id., Ibid., 66). Na sua morte, o que considerara no seu livro como necessário à Ilha torna-se possível, através da doação de uma das suas residências (na R. da Mouraria, n.º 29) para instalação de um dispensário. A obra de Maria Celina Sauvayre da Câmara insere-se no ambiente social e cultural do séc. XIX, quando a viagem começa a fazer parte do mundo da mulher, com o surgimento da ideia de “tempo livre” (na segunda metade do século) e da viagem pedagógica, o grand tour – longa viagem de “educação” e “europeização” das camadas mais elevadas da sociedade, que incluía paragens em Londres, Paris, Bruxelas, Roma –, iniciando-se, assim, o turismo feminino. O périplo pelos países mais desenvolvidos do continente era entendido como importante para a ilustração social, histórica e cultural das jovens e das senhoras que se podiam permitir viajar. As mulheres começavam a ganhar, assim, através das deslocações a outros países – que as levavam para longe da esfera da proteção familiar, parental ou marital –, a autonomia que conduziria a uma maior autodeterminação. Os novos espaços percorridos, ao corresponder a uma abertura de horizontes, que resultava no incentivo a uma maior liberdade de espírito, potenciavam também uma maior capacidade feminina de intervenção, como refere a autora madeirense. Esta independência da mulher advinha, segundo a escritora, da possibilidade de imaginar, ver e adquirir um novo olhar sobre os valores, as tradições, os costumes e as religiões de outros povos, redimensionando a própria cultura, história e mesmo o seu próprio ser. A autora não raro refere o exemplo de Inglesas, Americanas e Holandesas, de mulheres cuja sociedade vê com naturalidade que viajem para aprender e para se divertir, ao contrário das Portuguesas, menos aventureiras e mais fechadas. Misto de diário de viagem turístico e de diário de peregrinação, o livro da escritora madeirense, cuja narração se centra principalmente no Médio Oriente, deixando muito pouco espaço para algumas pequenas indicações sobre Nápoles, contém uma parte que fornece recomendações de viagem (melhores agências a contratar, custos, alojamento, duração das deslocações entre cidades, restaurantes, ementas, lugares de diversão), chegando a transcrever um contrato de viagem, e apontamentos sobre os monumentos, as paisagens, as gentes, os costumes, bem como uma outra parte em que se dedica à descrição dos espaços simbólicos do cristianismo e dos sentimentos que esses lugares provocam. Esta última parte relaciona-se de forma mais evidente com o modo do diário de peregrinação no interior do género da literatura de viagens, ocupando-se a autora da viagem espiritual que os lugares santos permitem, percorrendo os espaços num ritual de expiação, com a promessa de salvação. Daí a referência privilegiada aos sentimentos, à introspeção, ao guia dos percursos a seguir, às leituras bíblicas ou ligadas aos lugares visitados, a orações e à possibilidade de obtenção de indulgências. No entanto, por medo de cansar o leitor e de afastá-lo do livro, designadamente com a exposição dos dias passados nos lugares santos, este jornal de viagem apresenta o relato de episódios do quotidiano dos companheiros de viagem e alojamento, não raras vezes contados com recurso a um humor quase sterniano, com “notas alegres no meio das narrações as mais sérias” (Id., Ibid., 118), fazendo uso da caricatura para traçar o perfil das várias personagens que a rodeiam. Se é certo que a espiritualidade ganha uma presença mais preponderante na visita aos lugares santos, a autora não deixa de continuar a fazer comentários sobre os costumes, a arquitetura, o espírito dos lugares e pequenas digressões sobre variados temas. Com um ritmo vivo e com a paisagem de fundo, a autora cria através da escrita quadros de cor e movimento, em que evoca pessoas e respetivos costumes, traços dos monumentos e da natureza, luzes, cores e sons. Trata-se de autênticas sinestesias que transportam os leitores aos lugares descritos e que permanecem na memória de uma longa galeria de lugares. As descrições são como bilhetes-postais animados, imagens do olhar de Maria Celina, de uma visualidade que transporta facilmente o leitor ao espírito do lugar. Além dos retratos dos espaços e das gentes, o relato contém, igualmente, uma preocupação com a mulher e a condição que esta ocupa na sociedade, com a visão do “outro”, de cultura e religião diferente, e com o diálogo possível entre Oriente e Ocidente. Pode-se considerar, assim, que o texto de Maria Celina não constitui apenas um relato, mas uma verdadeira viagem de reflexão e de um aprofundar de conhecimento, que, segundo se depreende do que declara a autora, se quer tão dinâmico como a própria viagem. O texto da autora madeirense afigura-se essencial para a perspetivação do ambiente literário e cultural da Ilha, mas também português e europeu, pela sua modernidade e pela voz feminina que se afirma autónoma, culta, de espírito cosmopolita. No início do séc. XXI, o seu livro foi em parte objeto de um estudo académico, dedicado à temática mais ampla das impressões de viagem relacionadas com as cidades europeias, caso da tese de doutoramento de Helena de Azevedo Osório e de alguns ensaios da autoria de Luísa Marinho Antunes, mas a sua riqueza literária e cultural merece uma maior divulgação e interesse científico por parte dos estudiosos. Obras de Maria Celina Sauvayre da Câmara: De Nápoles a Jerusalém: Diário de Viagem (1899).   Luísa Paolinelli (atualizado a 14.12.2016)

Literatura

concurso literário francisco álvares de nóbrega - "camões pequeno"

A 21 de junho de 2001, a Câmara Municipal de Machico (CMM), em reunião do executivo e sob proposta do então presidente, Lino Bernardo Calaça Martins, deliberou instituir o Prémio Francisco Álvares de Nóbrega, justificado pela “importância do poeta machiquense Francisco Álvares de Nóbrega, no panorama cultural madeirense”, pelo “seu valor literário no quadro nacional, em razão do qual foi chamado de ‘Camões Pequeno’”, e, igualmente, pela “necessidade de divulgar e preservar o seu espólio, que constitui património local, regional e nacional”, pelo “dever de passar o seu testamento às atuais e futuras gerações” e pela “obrigação de incentivar a juventude a cultivar os valores e a obra do escritor machiquense” (CMM, “Ata n.º 13”, de 21 jun. 2001). Anexos à proposta, foram incluídos os 14 itens do regulamento, através dos quais se definia, entre outras regras, o género literário (poesia), o objetivo (“galardoar inéditos de autores de língua portuguesa com a intenção de fomentar a produção literária”), o prémio, de “1.000.000$00 (um milhão de escudos)”, e o dia do anúncio da obra vencedora, 30 de novembro. Na primeira edição, em 2002, a vencedora foi São Moniz Gouveia, com a obra Musa das Coisas Pequenas. Em 2002, sob a presidência de Emanuel Sabino Vieira Gomes e com a colaboração da Associação de Escritores da Madeira, foi lançada a segunda edição do prémio literário, com o género literário conto e um prémio de 2500 €. No mesmo ano, a obra vencedora da primeira edição mereceu honras de publicação, e o galardão da segunda edição, fruto de uma menor qualidade dos trabalhos apresentados, não foi atribuído, tendo o prémio literário caído no esquecimento. Em 2006, a Junta de Freguesia de Machico (JFM), identificando uma lacuna no campo literário e as potencialidades de um adequado fomento à produção cultural, cogitou a criação de um Concurso Literário, cuja pertinência se fundamentava nas muitas solicitações que, ao longo dos tempos, esta autarquia local vinha recebendo. Sendo um prémio já existente (lançado em 2001 pela CMM), a JFM, sob a presidência de Emanuel Ricardo Franco Sousa, solicitou autorização à Câmara Municipal para dinamizar o prémio literário, pedido que mereceu a anuência. Com a colaboração de Élvio Sousa e de Lino Moreira, em 2007 foi produzido um novo regulamento para o III Concurso Literário Francisco Álvares de Nóbrega – “Camões Pequeno”, com o objetivo de incentivar a produção literária original de cidadãos nacionais, contribuindo, assim, para o enriquecimento do património linguístico e literário nacional. A modalidade de texto escolhida foi a prosa sob a forma de conto, e tinha como principais objetivos “criar e/ou consolidar hábitos de escrita, criar e/ou consolidar hábitos de leitura, promover a escrita criativa/valorizar a expressão literária, divulgar autores portugueses e aspectos relativos à cultura literária, descobrir novos talentos e valorizar a cultura machiquense” (JUNTA DE FREGUESIA DE MACHICO, 2007, 4). Foram instituídos quatro prémios: o 1.º Prémio, no valor de 1000 € (mil euros); o 2.º Prémio, no valor de 500 € (quinhentos euros); o 3.º Prémio, no valor de 250 € (duzentos e cinquenta euros); e o Prémio para a Melhor Ilustração Original, no valor de 150 € (cento e cinquenta euros). Nos anos seguintes, foram apresentados a concurso vários géneros literários, como a prosa sob a forma de crónica/narração (2008), a poesia (2009), a epistolografia (carta(s)/correspondência) (2010), o microrrelato ou minificção ou miniconto (2011) e a biografia literária (2012). Ao longo destas edições, o júri foi composto por ilustres individualidades que vieram emprestar ao concurso um redobrado prestígio e notoriedade: o presidente, José Eduardo Franco, a secretária, Lucinda Silva Moreira, e os vogais, Jorge Moreira, Thierry Proença dos Santos e João Nelson Veríssimo. Com o intuito de levar à estampa os trabalhos vencedores, foi criada a “coleção Camões Pequeno”, pela JFM. Uma nota de destaque para a internacionalização da V Edição Concurso Literário, já que em 2009 o concurso foi alargado a toda a diáspora portuguesa, mas mantendo a condição de que os trabalhos fossem redigidos em português, versando sobre qualquer temática à escolha do autor, tendo como horizonte de inspiração Machico. Em 2013, houve um interregno no concurso, fruto de uma alternância democrática nos destinos da autarquia local, reaparecendo em 2014, já sob a presidência de Alberto Olim e com um novo figurino, a IX Edição Concurso Literário, agora dividido em duas categorias: infanto-juvenil e adulto. O género literário escolhido foi o texto dramático, mantiveram-se os objetivos e os prémios foram reduzidos a dois: 1.º Prémio – categoria “adulto”, no valor de 500 € (quinhentos euros), e o 1.º Prémio – categoria “juvenil”, no valor de 250 € (duzentos e cinquenta euros).   Emanuel Franco Sousa (atualizado a 30.12.2016)

Literatura

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares Madeira Cultural

feiticeiro da calheta (joão gomes de sousa)

O “Feiticeiro da Calheta”, como ficou conhecido, foi um dos maiores poetas populares madeirenses. É autor dos versos que mais tarde originaram a música Bailinho da Madeira. João Gomes de Sousa era analfabeto, mas revelou ter uma grande capacidade para criar versos e rimas, relatando diversas histórias, acerca do quotidiano insular e acontecimentos do seu tempo, que imprimia em folhetos. Da sua obra conhecida fazem parte quarenta e dois títulos, reunidos em 2015 no livro de edição póstuma Feiticeiro da Calheta: vida e obra, João Gomes de Sousa. Palavras-chave: “Feiticeiro da Calheta”; poesia popular; folhetos, cultura, tradições populares.   Na Madeira, dava-se o nome de “feiticeiro” à figura do poeta popular que, com aparência estranha ou marginal, tinha a capacidade de versejar relatos e pensamentos, de trovar, de cantar ao despique e de exercer poder através da palavra cantada, obtendo grande impacto e encantamento junto do público. Feiticeiro da Calheta fig 1. Imagem da colecção da autora João Gomes de Sousa, o “feiticeiro da Calheta”, como ficou conhecido, foi um poeta popular madeirense, analfabeto e agricultor, considerado, depois do “feiticeiro do Norte”, o maior dos poetas populares da Madeira. Nasceu a 30 de novembro de 1895, no sítio do Lombo do Atouguia, freguesia e concelho da Calheta, e faleceu a 8 de julho de 1974, no Lombo do Brasil, Calheta. Descendente de uma família pobre e humilde, que vivia da lavoura, era filho de João Gomes de Sousa e de Maria Rodrigues dos Santos. Em 1918, casou-se com Catarina Pestana, que faleceu em maio de 1945. Tendo ficado viúvo, casou em segundas núpcias, em dezembro desse mesmo ano, com Augusta Gomes, de quem teve uma filha. Evidenciou-se pela sua grande capacidade para criar versos e rimas sobre factos e gentes da Madeira, e é recordado como um homem que animava as festas e os arraiais realizados na Ilha, a cantar e a tocar viola de arame. O “feiticeiro da Calheta” relatava em verso diversas histórias, nas quais descrevia as vivências do povo e acontecimentos do seu tempo. O registo das suas composições na literatura de cordel surge em 1938, após a participação na primeira Festa da Vindima ocorrida no Funchal, nos dias 18 e 19 de setembro daquele ano, com o grupo folclórico do Arco da Calheta, ao qual pertencia. A ideia de realizar a festa surgiu de uma iniciativa solidária, em favor da Escola de Artes e Ofícios (criada em 1921, pelo P.e Laurindo Leal Pestana, para apoio aos menores desfavorecidos ou abandonados), que estava a passar por dificuldades, correndo o risco de fechar. A iniciativa ficou a cargo da Estação Agrária da Madeira. Os organizadores acabaram por tornar o evento mais abrangente, aproveitando para promover o vinho e a uva, e para exaltar as tradições e a ruralidade, numa estratégia de propaganda do regime do Estado Novo. Instituíram um concurso e um prémio para o grupo folclórico que, participando no cortejo, melhor se apresentasse. Os grupos de toda a Ilha, convidados a participar no certame, desfilaram pelas ruas do Funchal, apresentando as suas músicas, cantares e trajes tradicionais. O rancho folclórico do Arco da Calheta, liderado por João Gomes de Sousa, destacou-se pela sua animação, a sua indumentária e o seu rigor, e acabou por arrecadar o primeiro lugar. O grupo do Arco da Calheta chegou ao Funchal a bordo do barco Gavião, que partiu do Porto Moniz, passou pelo Paul do Mar e apanhou o rancho no porto da Fajã do Mar, freguesia do Arco da Calheta. Consigo levavam produtos agrícolas, vinho e muita animação. No primeiro dia do evento, durante o desfile, ao passar junto à tribuna, em frente do Governador da Madeira e dos membros da organização, João Gomes de Sousa cantou as seguintes quadras: “Deixai passar/ Esta nossa brincadeira/ Que nós vamos cumprimentar/ o Governo da Madeira. Eu venho de lá tão longe/ Venho sempre à beira mar/ Trago aqui estas coivinhas/ Para amanhã o seu jantar. [...]” No dia 19, quando foi anunciado o vencedor do concurso, o poeta avança, a cantar: “Deixa passar/ o homem da capa preta/ Quem ganhou o primeiro lugar/ Foi o rancho da Calheta. [...] Deixa passar/ Esta linda brincadeira/ Que a gente vamos bailar/ Pr’a gentinha da Madeira”   Feiticeiro da Calheta fig 2. Imagem da colecção da autora A partir de então, perante os vários elogios obtidos no Funchal, o “feiticeiro da Calheta” começa a produzir versos acerca de situações do quotidiano dos madeirenses e de acontecimentos ocorridos na época. Como não sabia ler nem escrever, foi Manuel Baeta de Castro quem registou, entre os anos de 1938 e 1955, as criações literárias de João Gomes de Sousa. Depois, passou a ser Maria de Jesus, a única filha do “feiticeiro da Calheta”, a escrever os versos que o pai lhe ditava. Ganhando fama como artista popular e trata da impressão das suas histórias em folhetos na tipografia Madeira Gráfica, no Funchal, vendendo-os depois, com a ajuda de Augusta, a mulher, no Funchal, nos arraiais, no final das missas, nos autocarros da Rodoeste e nas vendas (mercearias de bairro). Esta era também uma forma de o artista popular sustentar a família, que vivia com dificuldades financeiras. Apesar disso, o “feiticeiro” prometeu oferecer à sua única filha um cordão em ouro, de três voltas, como tinham as raparigas da altura. Promessa que cumpriu depois de vender 1500 folhetos no Funchal, com a história do assalto ao paquete Santa Maria, criada por ele e passada ao papel pela mão de Maria de Jesus. O “feiticeiro da Calheta” foi um observador atento do quotidiano insular e dos assuntos do seu tempo. O trovador popular conta as suas histórias em verso, retratando o dia a dia do seu povo, do meio rural, as suas emoções, opiniões e anseios, mas também relata acontecimentos que marcam a vida política e social do meio urbano. Os seus temas versam a religião, a política e a sociedade, incidindo especialmente sobre os comportamentos sociais, a moral e diversos acontecimentos insólitos ocorridos na Ilha. Conta histórias da vida do pescador e da vida do comerciante, refere tipos sociais e expõe virtudes e vícios. Num tom de crítica social faz vários reparos: ao luxo das raparigas; às meninas e mulheres vaidosas; às mulheres que têm os maridos embarcados e que os não respeitam; às bilhardeiras; aos caloteiros à loucura dos rapazes que andam para casar; às desordens causadas pelas bebedeiras e pelos bêbados; à doença e ao médico; e à escassez de carne devida à falta do gado da serra. O “feiticeiro” também faz versos acerca de tragédias, acidentes, crimes e tempestades. Relata, entre outras histórias, a de uma mulher que envenenou o marido no Chão da Loba, a de dois assassinos do Arco da Calheta e São Jorge, a de um homem que queria matar a mulher e os filhos e apareceu morto, a de um acidente trágico que resultou na morte de cinco pessoas, na Praia Formosa, a de dois irmãos que faleceram num desastre de automóvel, na freguesia do Estreito da Calheta, e a de um ciclone que ocorreu nos Açores e que vitimou alguns pescadores madeirenses. João Gomes de Sousa publicou as suas quadras durante a vigência do Estado Novo, revelando-se um defensor desse regime político. Em 1946, em Versos do Estado Novo, Obras do Porto, Estradas da Madeira, elogiava o Governo pelas obras realizadas para o desenvolvimento da Ilha, particularmente a construção do porto, de escolas e estradas. Diversos acontecimentos ligados ao sistema político vigente, bem como algumas figuras do regime, inspiraram muitos dos seus poemas. O cardeal patriarca Cerejeira, e.g., foi referido como “o pai da religião”, enquanto Óscar Carmona, num folheto datado de 1951, foi mencionado como o “grande Presidente”. Em 1955, cantava a visita do Presidente da República, Craveiro Lopes, à Madeira. O trovador gostava de saber o que se publicava nos jornais. Quando ia ao Funchal, pedia aos amigos para lhe lerem as notícias e ouvia as histórias dos acontecimentos da Madeira e do mundo, que lhe ficavam na memória, para depois criar versos sobre esses assuntos. Por vezes, era a filha que lhe lia o jornal que chegava ao Lombo do Brasil, na Calheta. O poeta popular, apesar de analfabeto, era um homem informado. Viveu numa época de grandes alterações e acontecimentos que marcaram o séc. XX e aproveitou esses marcos da história mundial para fazer as suas rimas. A Segunda Guerra Mundial e a chegada do homem à lua foram momentos registados nas suas originais reportagens em verso. Segundo Eugénio Perregil “a partilha de todo este conhecimento, nos seus arredores, facilmente o conduziam a ser reconhecido e apontado como alguém mais sabedor, como um adivinha dos tempos e dos acontecimentos. Era conhecedor de todas as ocorrências locais, nacionais e, também, as que aconteciam no estrangeiro, o que lhe valeu ser batizado com a alcunha de Feiticeiro” (PERREGIL, 2015, 41). Produziu ainda versos de teor religioso, invocando a vida de Jesus Cristo, reunidos sob o título Versos da Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de Nossa Senhora, intitulados Despedida do ano Santo – versos da vida de Nossa Senhora e do Nascimento do Menino Jesus – Peregrinação de Roma – A Assunção da Virgem Maria nos Céus. Em 1948, dedica um poema à passagem da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima pela Madeira. Também deixou um folheto de cariz autobiográfico, intitulado Vida do Feiticeiro da Calheta, porém, os versos apresentam semelhanças aos deixados por Manuel Gonçalves (o “feiticeiro do Norte”), com o título A vida do Feiticeiro do Norte. Da sua obra conhecida fazem parte 42 títulos, de versos e de histórias, publicados entre 1938 e 1971. Como se referiu atrás, João Gomes de Sousa foi o autor das estrofes principais que originaram, mais tarde, o famoso “Bailinho da Madeira”, celebrizada pelo cantor madeirense Max, com arranjo musical de António do Amaral e M. Gonçalves Teixeira. Em 1949, Max grava esta canção em Lisboa, na produtora Valentim de Carvalho; a música, divulgada nas rádios, foi ouvida pelo “feiticeiro da Calheta”, que se sentiu defraudado por ouvir cantar as suas letras sem ter dado autorização para tal. Deslocou-se, então, ao Funchal, esperando o regresso de Max, para confrontar o cantor com a situação. Max acabou por lhe pagar uma quantia irrisória, no intuito de remediar o caso. Para assinalar os 120 anos do nascimento do “feiticeiro da Calheta”, foi lançado, em julho de 2015, o livro Feiticeiro da Calheta: vida e obra, João Gomes de Sousa, coordenado por Eugénio Perregil e editado pela Câmara Municipal da Calheta. O livro relata alguns acontecimentos relevantes da vida do “feiticeiro” e apresenta uma compilação da sua obra conhecida, publicada em folhetos. A maior parte dos folhetos reunidos na obra foram cedidos pela filha, Maria de Jesus. Também para assinalar a efeméride, formulou-se o projeto de uma longa-metragem para contar a vida e obra de João Gomes de Sousa, com realização de Miguel Jardim e produção de Eugénio Perregil e Eva Gouveia. João Gomes de Sousa foi ainda recordado numa exposição que esteve patente ao público no Funchal, no âmbito da Festa do Vinho da Madeira de 2015, no Espaço InfoArte, na Secretaria Regional do Turismo, entre 31 de agosto e 6 de setembro. A mostra evocou a primeira Festa da Vindima, realizada em 1938, homenageando o P.e Laurindo Leal Pestana, promotor do evento, e também João Gomes de Sousa, por ter participado e vencido o concurso de grupos folclóricos. Obras de João Gomes de Sousa (“feiticeiro da Calheta”): Versos Cantados na Exibição do Rancho do Arco da Calheta no Campo Almirante Reis Sobre A Vinda do Presidente Carmona (1938); A Revolução da Madeira (1939); O Desastre da Ponte da Madalena (1939); Versos da Catástrofe que se Deu na Madalena do Mar – 30 de Dezembro de 1939 (1940); Versos A Sua Eminência O Senhor Cardeal Patriarca de Volta d' África Passou pela Madeira em 29 de Setembro e Foi Até À Ribeira Brava (1944); Versos da Atual Guerra Mundial (1945); Versos da Paz da Guerra da Europa (1945); Versos da Vida do Feiticeiro da Calheta Feitos por Ele Próprio (1945); Versos do Ciclone dos Açores em que Morreram Alguns Pescadores Madeirenses (1946); Versos do Comércio da Madeira Depois da Guerra Acabar (1946); Versos da Guerra que Acabou (1946); Versos da Mulher que Envenenou o Marido no Chão da Lôba (1946); Versos do Estado Novo – Obras do Porto – Estradas da Madeira (1946); Versos do Lavrador (1947); Versos da Malícia das Mulheres (1947); Versos das Facadas que se Deram no Natal por Causa da Ruína do Vinho (1948); Versos da Passagem pela Madeira de Nossa Senhora de Fátima (1948); Versos da Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo (1948); História, em Verso, dos Dois Assassínios do Arco da Calheta e São Jorge – João Mau e Catingueiro (1949); Versos da Vida do Pescador (1949); Despedida do Ano Santo – Versos da Vida de Nossa Senhora e do Nascimento do Menino Jesus – Peregrinação de Roma – A Assunção da Virgem Maria nos Céus (1950); A Epopeia dum Grande Herói – O Senhor Carmona (1951); História dos Vendeiros e Caloteiros e da Vendeirinha Mimosa (1951); História Sentimental – Das Cinco Mortes no Trágico Desastre da Praia Formosa em Dia de São Pedro (1952); Versos da Máquina de Coser das de Duas Lançadeiras, Atribuída às Mulheres Vaidosas que Têm Os Maridos Embarcados (1952); A História do Frangainho Loiro (1953); História do Desastre do Fogo que Se Deu no Arco da Calheta (1953); Continuação da História das Meninas Vaidosas e das Mulheres que Têm os Maridos Embarcados e que Os Não Respeitam (Segunda Parte) (1954); História em Versos dum Inimigo Vencido – A Doença e o Médico (1954); A Visita de Sua Excelência o Senhor Presidente da República – General Craveiro Lopes à Madeira (1955); Versos das Bilhardeiras que Não Cumprem Com A Lei dos Seus Ministros (1958); História das Mulheres que Aproximam O Fim do Mundo (1958); A Falta de Carne Devido À Falta do Gado da Serra – Os Bichos que Desterram O Lavrador (1959); História em Verso da Agonia dos Passageiros do Barco “Santa Maria” (1961); História em Verso dum Caso que Sucedeu na Freguesia da Calheta – Um Homem que Queria Matar A Mulher e Os Filhos e Apareceu Morto! (1961); História dos Bêbedos – Das Desordens que Se Dão por Causa da Bebedeira e do Bêbado que Jogou A Panela de Milho para A Ladeira (1962); História em Verso – Dum Desastre de Automóvel que Aconteceu No Sítio da Ribeira Funda, Freguesia do Estreito da Calheta. Dois irmãos, Ambos solteiros que Morreram No Mesmo Dia (1963); História Em Verso – O Engrandecimento de Portugal – O Festejo que Houve Para As Obras do Hospital da Calheta (1964); História da Maior Virtude e Das Mulheres que A Perdem – que Tendo Seus Maridos Embarcados Os Não Respeitam (1965); História Maravilhosa dos Três Astronautas Americanos que Foram no «Apolo-11» e Desembarcaram na Lua (1969); História em Versos – das Meninas Vaidosas e das Mulheres que Têm Os Maridos embarcados… (1971); O Luxo das Raparigas e A Loucura dos Rapazes que Andam para Casar (s.d.).   Sílvia Gomes (atualizado a 06.01.2017)

Cultura e Tradições Populares Literatura

berredo, antónio pereira de

O governador António Pereira de Berredo ficou cativo em Alcácer Quibir e participou depois na Invencível Armada, onde foi cabo de 10 galeras. No entanto, embora fosse  um militar experiente, teve grandes problemas com o pessoal do presídio do Funchal, sobretudo devido às dificuldades de pagamento, a que se acrescentam vários pequenos problemas com corsários ingleses e franceses. Os problemas do presídio de S. Lourenço ficaram patentes na visitação do Santo Ofício, a primeira que ocorreu na Madeira e que o governador acompanhou de perto, mas de que não resultaram especiais processos. Data da sua vigência como governador a instalação da fundição em S. Lourenço. Palavras-chave: corso; governo filipino; Invencível Armada; organização militar; Santo Ofício. O reinado de Filipe II (1527-1598) foi marcado, na sua última fase, pelo desastre da Invencível Armada, funesto acontecimento que deixou profundas marcas na Península Ibérica e comprometeu ainda mais a manutenção e a defesa do Império português, então em franco declínio. O Rei, ainda príncipe, tinha-se casado em 1553 em Inglaterra, mas, com o falecimento da Rainha Maria Túdor (1516-1558), não foi possível juntar as duas Coroas. A situação religiosa da Inglaterra era uma profunda afronta ao catolicismo hermético da Península Ibérica, pelo que Filipe II queria, a todo o custo, representar a voz e o poder capazes de abater o foco protestante que ali se instalara e pretendia difundir-se. Essas razões, bem como a atuação dos corsários ingleses, principalmente de Francis Drake (1540-1596) e de John Hawkins (1532-1595), que constantemente atacavam a navegação portuguesa e espanhola no Atlântico e ambas as faixas costeiras do mesmo oceano, levavam a que a Inglaterra fosse uma das preocupações da Coroa filipina. Aumentava o poderio naval inglês e o refúgio de D. António, prior do Crato (1531-1595) (Crise sucessória de 1580), em Inglaterra, a partir de 1585, que ainda aumentavam mais os receios da Coroa filipina. Por outro lado, o suplício infligido à Rainha católica Maria Stuart da Escócia (1542-1587), que a Rainha Isabel (1558-1603) mandou executar a 8 de fevereiro de 1587, deu ao Monarca ibérico o pretexto final para uma intervenção alargada contra o poderio britânico. Neste quadro, o Rei organizou a mais poderosa Armada do séc. XVI, crendo-a invencível, mas à qual o destino, e não só, reservou um estrondoso fracasso. Em maio de 1588, concentrou-se em Lisboa uma Armada que possuía 130 naus, cujo comando foi entregue ao duque de Medina-Sidónia (1550-1615), que não tinha grande experiência marítima, encontrando-se nos restantes postos de comando nobres sem quaisquer conhecimentos de guerra naval. A Armada largou a 27 de maio de 1588, com nevoeiro e mau tempo, para o canal da Mancha, onde defrontou uma Armada inglesa mais ligeira e com navios muito mais manobráveis. Na noite de 6 para 7 de agosto, após uma semana de desgaste, os ingleses, aproveitando ventos fortes e desfavoráveis para os grandes galeões ibéricos, lançaram uma série de pequenas embarcações carregadas de combustível inflamado. Esta ação obrigou os principais navios da Armada ibérica a dispersar e provocou incêndios noutros, fracionando todo o conjunto. Aproveitando a situação, os pequenos e rápidos navios ingleses infligiram uma memorável derrota à dita Invencível Armada. O cronista Pero Roiz Soares, em Lisboa, refere que “desta maneira se perdeu tão grande máquina, sem se salvar quase nada, nem dela tornar galeão, nau, nem navio, nem coisa que prestasse” (SERRÃO, 1979, 36-37). A Madeira concorreu com pessoal para esta aventura, embora não haja na documentação madeirense coeva dados sobre a mesma participação. Em Ensaios Históricos da Minha Terra: Ilha da Madeira, escreveu Artur Alberto Sarmento (1878-1953) que D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), descendente de Zarco (Melo, D. Francisco Manuel de), nas suas Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa (1660), refere a participação do galeão S. Filipe, com 28 peças de artilharia, nesta Armada, sob o comandado de Manuel Dias de Andrade (1580-1638), que foi depois mestre-de-campo, aditando que a guarnição era composta por grande número de madeirenses. Referia ainda este autor que muitos nobres da Ilha embarcaram na Armada, como António Gonçalves da Câmara, filho de João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620) (Eça, João Fogaça de), que fora governador da Madeira, mas que não tinha os seus nomes tão presentes como desejava (SARMENTO, 1946, 177). No entanto, a ação do S. Filipe e de Manuel Dias de Andrade refere-se ao desastre da Armada portuguesa de D. Manuel de Meneses (c. 1540-1628), relatado na “Epanáfora Trágica” de 1627 (MELO, 1660, 153-272). Não conhecemos diretamente as implicações deste desastre na Madeira. No entanto, uma informação dos livros do cabido da Sé atesta o facto de se ter passado por um mau momento na Ilha. Assim, em 1589, ordenou o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) a transferência “desta cidade para a serra, de toda a prata e demais ornamentos da Sé, por esperar a chegada dos ingleses que tinham ido a Lisboa. E foi a prata para Nossa Senhora do Monte e por não parecer estar segura, a tornaram a trazer aqui e foi para o Estreito de Câmara de Lobos com os ditos ornamentos. E depois para a vila da Calheta em seis arcas encoiradas e dali se tornou a trazer. E se despendeu em tudo com as bestas, carretos, fretes e outras despesas com a ida e a vinda e conserto das arcas ao todo” 3$495 reis (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fl. 178v.). Desta Armada de triste memória, foi para a Madeira o novo Gov. António Pereira de Berredo (c. 1550-c. 1614), que tinha ficado cativo em Alcácer Quibir e participara depois na “armada da perdição, onde fora cabo de dez galeras” (NORONHA, 1996, 49). Este experiente militar tinha prestado serviço como fronteiro em Tânger, onde estava em 1573, quando ali perdeu a vida o Cap. Rui de Sousa de Carvalho e ele uma vista, sendo depois comendador de Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cristo. Era filho de António Lopes Homem e de Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura próxima do secretário Miguel de Moura (1538-1600), que viria depois a integrar o Conselho de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao cardeal e arquiduque Alberto de Áustria (1559-1621) quando este saiu para se tornar governador dos Países Baixos. Não descortinámos, no entanto, os ascendentes familiares aos quais foi buscar o apelido Berredo. António Pereira de Berredo assumiu Governo da ilha da Madeira por patente de 30 de dezembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto do seguinte ano de 1591. A carta vem transcrita com a data de posse na Câmara Municipal do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Senhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pereira”, informando: “Eu mando ora Antonio Pereira do meu concelho para ora me servir de geral dessa Ilha e superintendente das coisas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.), sendo o registo da provisão do capitão geral na Provedoria da Fazenda da mesma data. As coisas não lhe correriam muito bem no Funchal, como largamente se haveria de queixar para Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos os seus haveres tinham sido tomados por corsários, daí que os 2000 cruzados com que fora dotado para o Governo não lhe tenham chegado para as despesas. Depois, chegado à fortaleza, descobriu que os soldados do presídio não eram pagos há mais de um ano, acabando por fazer face às suas necessidades com roubos à população, pelo que pouco lhe obedeciam. Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frouxidão do desembargador António de Melo, que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que desempenhava igualmente as funções de provedor da Fazenda, não ajudava. O governador, que já então não gozava de muito boa saúde, o que também se passava com sua mulher, Mariana de Portugal, queixava-se amargamente para Lisboa da situação do presídio, dos capitães castelhanos e portugueses. Refere numa carta que, em todo o tempo que fora militar, “não houve algum que me perdesse o respeito e que hoje, sem fundamento, me têm assim maltratado” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão desconsiderado, que temia francamente o futuro. Cita então um fidalgo recentemente chegado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e depois escrivão de guerra, com quem já teria tido problemas em Tânger, e o próprio capitão castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o governador que tinha sofrido “alguns desatinados termos e muitas desordens, a que se com brevidade não acudira, seriam causa de muitos males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa alguma e confesso a Vossa Majestade, que me receio dele pela grande natureza que tem de fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). Por outro lado, dava as melhores referências do tenente do presídio, Luís de Benevides, embora com a situação vigente dos pagamentos pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, o governador propõe nesta carta “que destas duas companhias se fizesse uma só, e sendo assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria menos gasto, e os donos das casas que ora servem de quartel receberiam nisso grande esmola e mercê” (Ibid.). Nesta carta, o governador conta também o sucedido com a Armada que se deslocava para a Índia e que incluía o célebre galeão S. Pantaleão. Os navios tinham passado na Madeira um pouco dispersos, o que levou a que uma urca fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Índia, que os corsários colocaram em terra, na ilha do Porto Santo. Os corsários tinham tentado negociar com o governador da Madeira a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal como as mercadorias e a restante gente que seguia no navio, ameaçando levar tudo para o Norte de África (Berberia, como se cita) se não acedessem aos seus pedidos. O governador recusou-se a negociar, com base na gente do Porto Santo, que se encontrava em armas, pronta a defender a ilha, e por ter sido informado de que essas naus inglesas deveriam fazer parte dos navios de Francis Drake e do conde de Cumberland (1558-1605), que em 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que António Pereira conhecia da Invencível Armada. A carta termina por, mais uma vez, solicitar a “mercê de licença para me poder ir a minha casa” (Ibid.), no que não foi atendido. A 5 de setembro do mesmo ano de 1592, o governador voltou a escrever para Lisboa, dando conta da maneira como se resolvera o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo e das aquisições de pólvora e de mosquetes. A pólvora destinava-se aos exercícios de barreira efetuados todos os domingos e controlados pelo governador, sargento-mor e capitães entertenidos, ou seja, sem comando de companhia (Comando militar). Nesta carta, descreve alguns incidentes ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera um exercício de fogo de barreira no dia 28 de agosto. O governador tinha ido acompanhado de Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para assuntos militares que, na Madalena, tinha tentado prender os vários negligentes do serviço de vigias e alardos. Os populares tinham então apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus criados, o qual “feriram muito mal, de cima dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá ainda parte do movimento de navios no mar da Madeira, com a passagem de vários navios do porto de Marselha, que tinham ido comerciar açúcar em Cabo de Gué (Marrocos) e que haviam informado da presença de cerca de 12 navios ingleses também nesse comércio. O governador tinha apresado, a 23 de agosto, um desses navios de Marselha, uma setia, barco comprido, afilado de boca aberta, de velas e remos, extremamente rápido. Para que não pudesse sair do porto, apreendera-lhe as três velas grandes, pensando que assim não se poderia fazer ao mar. Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o governador e as duas companhias do presídio. Assim, D. António Pereira, como começa a ser referido, teve de reformular a Junta Militar criada pelo conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598) (Lançarote, conde de), também chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio e só reunindo com dois capitães de cada vez. Este órgão era formado pelos quatro capitães das ordenanças, para além do comandante da guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís de Benevides, dada a saída em finais de 1588, ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aranda. Este órgão não tinha sido muito desenvolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) (Veiga, Tristão Vaz da), se é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, parece que teria tido razões para isso, pois com o novo governador estes elementos acabaram por se envolver em intrigas várias, que incluíram o próprio D. António Pereira e que levaram a uma alçada do licenciado Pero de Alfaro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 de agosto de 1594, presidida por Miguel de La Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e arbitrariedades dos capitães castelhanos com os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a segunda deve ter-se deslocado à Ilha também motivada pelo escândalo causado pela visitação de 1592, que envolvera alguns dos militares da guarnição castelhana, embora por razões que posteriormente seriam consideradas ridículas. O Funchal foi visitado pela primeira vez por um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, visitação que ocorreu em 1591. A visitação envolveu um prolongado processo contra os cristãos-novos e acabou por envolver também um quantitativo populacional importante, principalmente do Funchal. Assim, acabaram por se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos militares do presídio castelhano estacionado na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamente alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, da companhia do Cap. Luís de Benevides, e o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra companhia. Nesta visitação, foram ainda envolvidos os soldados Alonso de Vila Real, natural de Castro Monte; Belchior Simões; Francisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia, no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodrigues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da companhia de Luís de Benevides. Da companhia do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Francisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque de Penafiel, também de Valhadolid. No entanto, tratou-se tudo de pequenos delitos incluídos nas preposições, geralmente denunciados por camaradas da mesma companhia, que alguns – como Belchior Simões – nem confessaram, acabando todos por ver os seus processos despachados no Funchal. Passando em revista estes processos, ressalta, essencialmente, o isolamento então vivido por esses soldados do presídio castelhano e até uma certa má vontade contra os mesmos por parte da população civil. O principal processo envolve o soldado Pedro Sans, já citado, e uma série de companheiros. Em linhas gerais, estando alguns soldados na igreja do Colégio, no Funchal, a assistir a uma prédica do P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visitação, estes murmuraram ao ouvir o pregador referir que os soldados eram maus porque haviam feito mal a Jesus. Teriam então murmurado os soldados que maus eram os soldados romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bastou para de imediato serem presos no aljube da Sé. No complicado processo que se seguiu, foram chamadas, ou apareceram a depor, as mais diversas pessoas, algumas das quais, para além de se identificarem, quase não disseram mais nada. Depuseram alguns dos assistentes à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel Fernandes, cristão velho, o ourives de prata Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate Simão Gonçalves, entre outros. O processo acabou por ser despachado no Funchal e por não levar a especiais penas. Outro processo, praticamente só envolvendo soldados do presídio, roda à volta de uma partida de dados, jogada na casa da guarda da fortaleza Velha (Palácio e fortaleza de S. Lourenço), em meados de 1591. O soldado Francisco Velasco, cansado de não ter sorte aos dados, disse num determinado momento, na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso bastou para ser acusado do crime de proposição herética, ou seja, renegação da fé, pelos seus camaradas de jogo e para dar origem a mais uma série de processos. A notícia da partida do inquisidor foi dada pelo governador em carta de 29 de abril de 1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem “bem negociada, da qual o capitão ficou aqui em terra, e é homem conhecido, segundo me dizem, e o preço foi muito moderado porque foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Gavetas, XX, mç. 15, doc. 106). Com os pedidos do governador e os casos da Inquisição, que não devem ter deixado de pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou com as alçadas que se deslocaram nesses anos à Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem os pagamentos das companhias do presídio do Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de Alencastre, na menoridade do filho, Fernando Martins Mascarenhas, mas que não seria o então bispo do Algarve (1548-1628) – que não era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de câmbio foram passadas por João de Valdavesso Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador do exército. No ano seguinte, 1593, há mandados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), 4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de Aranda fazer diversos pagamentos, nomeadamente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e a António Bocarro. Nestes anos, há igualmente registo de pagamentos pontuais a diversos soldados que devem ter acabado o seu serviço na Madeira. Encontrámos elementos sobre Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, porque culpado duma morte, não teve direito a soldo algum, e Fernando de Torres. Um dos pagamentos mais interessantes foi o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, recebido por Manuel Bocarro a 8 de janeiro de 1592 e sancionado por mandado do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitativo é francamente elevado para ser um simples soldo, devendo tratar-se de uma obra de empreitada e envolver mesmo aquisições importantes de material. A família Bocarro foi uma das principais famílias de fundidores portugueses, tendo tido o seu expoente máximo em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625-1652), na fundição de Macau. Descendente de várias gerações de fundidores, o seu avô materno, o fundidor Francisco Dias, era irmão de João Dias e tio de Baltazar Gomes e António Gomes Feo, todos fundidores de artilharia nos inícios e meados do séc. XVI. Este António Bocarro, a ser membro da mesma família, em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal em finais do 1591 para preparar a fundição de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns anos depois, embora, tanto quanto temos conhecimento, esta não tenha chegado a fundir bocas de fogo. O Gov. D. António Lopes Pereira de Berredo, como também depois aparece referido, entregou o Governo a 20 de abril de 1595, data em que tomou posse o novo Gov. Diogo de Azambuja de Melo (c. 1530-1599) (Melo, Diogo de Azambuja de). António Pereira, que, em 1592, no Funchal, se queixava de falta de saúde e desejava voltar para a sua casa no continente, ainda assumiria o lugar de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substituindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou até setembro de 1605, quando foi substituído por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em 1613, foi também enviado a Marrocos como inspetor das fortificações e com instruções para reformar parte das mesmas, intento localmente muito pouco aceite. Teria ainda sido nomeado para a Índia com o governo da parte do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras mercês, mas nada aceitou, dada a avançada idade. Deve ter falecido em 1614.   Rui Carita (atualizado a 14.12.2016)

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